milton h. erickson e o cavalo de tróia- a terapia não convencional no cenário da crise dos...

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  • Disponvel em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=18815213

    Red de Revistas Cientficas de Amrica Latina, el Caribe, Espaa y PortugalSistema de Informacin Cientfica

    Maurcio S. NeubernMilton H. Erickson e o Cavalo de Tria: A Terapia No Convencional no Cenrio da Crise dos Paradigmas em

    Psicologia ClnicaPsicologia: Reflexo e Crtica, vol. 15, nm. 2, 2002, pp. 363-372,

    Universidade Federal do Rio Grande do SulBrasil

    Como citar este artigo Fascculo completo Mais informaes do artigo Site da revista

    Psicologia: Reflexo e Crtica,ISSN (Verso impressa): [email protected] Federal do Rio Grande do SulBrasil

    www.redalyc.orgProjeto acadmico no lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

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    Uma incmoda questo permanece em aberto paraquem quer que reflita sobre a obra de Milton Erickson:como ela deveria ser compreendida no atual cenrio doconhecimento das cincias psquicas. Tal questo, mesmoparecendo simples e despretensiosa, reveste-se deprofunda importncia, uma vez que toca diretamente empontos fundamentais sobre a prpria construo doconhecimento e principalmente sobre a crise deparadigma vivida na atualidade (Morin, 1983, 1998;Santos, 1987, 1989). Pode-se, sem dvidas, compreendertal obra como fruto de um gnio excntrico, associando-se suas contribuies uma forma de trabalho muitopessoal e singular de seu autor. Pode-se tambm buscar

    Milton H. Erickson e o Cavalo de Tria: A Terapia No Convencional noCenrio da Crise dos Paradigmas em Psicologia Clnica

    Maurcio S. Neubern 1 2Universidade de Braslia

    ResumoO presente artigo busca situar a obra de Milton Erickson no cenrio da transio de paradigmas cientficos, particularmente dapsicologia clnica. Destaca-se que as contribuies desse autor, ao mesmo tempo em que denunciam as limitaes do paradigmadominante, apontam na direo de pressupostos distintos, muito afins com as perspectivas de um paradigma emergente. Ametfora do cavalo de Tria busca retratar a influncia sutil e intensa do trabalho desse autor sobre as perspectivas consagradas,de modo que, enquanto fascina e causa admirao, traz em si um potencial elevado de reflexo crtica e incisiva sobre essasmesmas perspectivas. Destacando trs aspectos centrais desse processo a impossibilidade terica, o resgate da subjetividadecomplexa e a busca de novas racionalidades o artigo concludo delineando possveis caminhos para a concepo e o uso dolegado de Erickson.Palavras-chave: Milton Erickson; terapia no convencional; hipnose; paradigmas; psicologia clnica.

    Milton H. Erickson and The Trojan Horse: The Nonconventional Therapy inthe Paradigms Crisis Scenario in Clinical Psychology

    AbstractThis article places Milton Ericksons work in the scenerio of transition of scientific paradigms, especially in clinical psychology.The text shows that Erickson contribution denounces the limitations of the dominant paradigm and at the same time pointsto different assumptions that are very similar to the emergent paradigms perspectives. The trojan horse metaphor aims atshowing the powerful and subtle influence of Ericksons work on sacred perspectives. While Ericksons work cause fascinationand wonder it simultaneously provoques critical and incisive reflections about the sacred perspectives. This paper makes salientthree main aspects the theorical impossibility, the rescue of a complex subjectivity and, at last, the search of new racionalities.As a conclusion, possible pathways for understanding and using Ericksons legacy in the field of clinical psychology areenphasized.Keywords: Milton Erickson; uncommon therapy; hypnosis; paradigms; clinical psychology.

    conceb-la como um conjunto de noes a seremposteriormente traduzidas para um esquema conceitualinteligvel dentro de noes consagradas da psicologia.Dito de outro modo, a riqueza e a complexidade daterapia no convencional3 podem permitir inmerasnarrativas e formas de compreenso.

    Por outro lado, o que a maioria de tais alternativas buscaconsiste em uma tarefa impossvel, na medida em queprocuram conceber uma obra complexa, irregular esubversiva dentro de noes simplificadoras, sistemticas ereguladoras que caracterizam profundamente no s asepistemologias da psicologia (Gonzalez-Rey, 1997; Mahoney,1991; Neubern, 1999, 2000, 2001a), como tambm oprprio paradigma4 do conhecimento cientfico (Morin,1983, 1996a, 1998; Santos, 1987, 1989). Nesse sentido,1 Endereo para correspondncia: SQS 411 Bl C, 101, 70277-030. Braslia,

    DF. Fone (61) 346-4838. E-mail: [email protected] Este artigo remete a um momento da tese de doutorado do autor sobrecomplexidade e psicologia clnica. Agradecimentos orientadora DraMaria Ftima Olivier Sudbrack (UnB), ao co-orientador Dr. FernandoGonzalez Rey (UnB) e psicologa Larissa Polejack, pela reviso do abstract.Agradeo ainda CAPES, pelo apoio financeiro. Agradecimentosprofundos aos psiclogos Angela Mendona e Jos Augusto Mendonado Instituto Milton Erickson de Belo Horizonte.

    3 Adota-se a noo de Haley (1991) que designa terapia no convencionalcomo o conjunto de abordagens desenvolvidas por Milton H. Erickson.4 As noes de paradigma so tomadas de Morin (1998) de modo que,inscrevendo-se no ncleo dos sistemas de idias, determinam a formaode idias chave e conceitos mestres, como as regras e formas de associaoentre elas. Fazendo-se invisvel e inatacvel diretamente, os paradigmasdeterminam a viso de realidade que tomada como certa pelos sujeitos.

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    pode-se entender a insatisfao de Hoffman (1992) aocriticar as tentativas de sistematizao do legado deErickson. justamente nesse ponto que o presente artigoassume sua posio: procura-se compreender a obra deErickson como um conjunto de contribuies que aomesmo tempo questionam, denunciam a falncia eapontam solues diante dos dilemas e limitaes doparadigma dominante na cincia e suas influncias napsicologia5 . Vale destacar que tais aes da obra desseautor antes de apontarem para a simples e cmodaconstruo de uma nova teoria, remetem paratransformaes profundas em termos epistemolgicos,cujos rumos e implicaes so imprevisveis. Tratam-semuito mais de um conjunto mltiplo de desafios queexigem constantes construes de seus interlocutores,dando lugar a uma tarefa sempre inacabada.

    Nessa perspectiva de conceber o problema, pode-senotar a considervel similaridade entre a forma comoErickson lidava com seus pacientes e, talvez sem que osoubesse, a forma como se posicionou diante dosprprios paradigmas dominantes na psicologia. Ao invsde confrontar abertamente suas crenas e ativar suasresistncias, em sua prtica teraputica e hipnoteraputicaele procedia de forma indireta desviando sua ateno eativando aos poucos, via inconsciente, seus processos demudana (Erickson & Rossi, 1979; Erickson, Rossi &Rossi, 1976; Haley, 1991; Zeig & Geary, 2000). De modosemelhante, seu legado esttico e pragmtico, ao mesmotempo em que evoca profunda admirao e curiosidadeda comunidade cientfica, parece promover em seu seio,sem que se perceba, importantes modificaes quequestionam profundamente os pressupostos da psicologiaclnica. nesse sentido que ser aqui tomada a metforado cavalo de Tria, isto , a de um presente belo eimponente que, ao cair da noite e j no interior dasmuralhas do saber, anula suas defesas, permitindo arevoluo e a construo de uma nova ordem. Contudo,parte-se do pressuposto de que o momento atual doconhecimento cientfico, particularmente em psicologia, o dessa noite confusa e tumultuada, prpria das crisesparadigmticas, cujo alvorecer ainda parece distante, poisas prprias surpresas presentes no interior do cavalo deErickson ainda no se mostraram por inteiro.

    Dentro do exposto, pode-se destacar que o objetivodeste artigo o de caracterizar a terapia no convencionalde Erickson como um dos principais marcos de transioque denuncia a crise do paradigma em psicologia clnicae tambm aponta caminhos e possibilidades de um

    paradigma emergente nessa disciplina. Tal caracterizaoabordar brevemente trs tpicos bsicos (a construoterica, a subjetividade como objeto complexo e a buscade novas racionalidades) que colocam a noo complexade subjetividade (Gonzalez-Rey, 1997; Morin, 1996a,1996b, 1998; Neubern, 1999, 2000, 2001b) como umeixo fundamental para um novo paradigma. Essatentativa, ao invs de se constituir em um exerccio depreviso, pois o novo paradigma ainda est por seconstituir, busca apenas delinear algumas de suas principaisnoes mestras, sem a pretenso de esgotar aspossibilidades do imprevisvel e da surpresa, to comunsem investigaes desse tipo. Optou-se ainda, por diversasrazes, pela restrio da discusso s reflexes maisabrangentes sobre a transio e crise de paradigmas, semconsiderar com mais propriedade as contribuies deautores que buscam sistematizar o legado de Erickson.A tentativa a de demonstrar a sintonia do autor comimportantes reflexes epistemolgicas do momento,delineando seu lugar central no cenrio da atual crise.

    Um Imenso Cavalo de Madeira Acolhido naFortaleza CientficaFissuras na Unicidade Terica

    Um dos principais pilares em torno do qual a fortalezacientfica erigiu-se de forma imponente foi a possibilidadede um acesso nico e confivel ao real (Gonzalez-Rey, 1997;Morin, 1996a, 1998; Prigogine & Stengers, 1997; Santos,1987). Uma vez afastada toda aparente complexidade dascondies iniciais, tornava-se possvel o acesso s leis imutveise universais que regiam os fenmenos. Assim sendo, oscientistas passaram a possuir o privilgio de prever e controlara natureza, impondo-se sobre ela e transformando-a demodo nunca antes visto. Tal perspectiva promoveuconsidervel impacto social para os avanos cientficos demodo a associar-lhes intrinsecamente produo de riquezase ao capitalismo (Lyotard, 1979), alando o homem a umposto antes ocupado apenas por Deus o de senhor danatureza (Morin, 1996a). Os cenrios sociais no Ocidentedos ltimos sculos promovem, ento, a superioridade daracionalidade cientfica, legando as outras formas de sabera um plano secundrio. Uma vez que a realidade seria nicae universal e seu acesso, um privilgio restrito aos mtodosespecficos da cincia, os sistemas cientficos foram imbudosde uma lgica exclusivista a fim de corresponder de modopreciso e confivel ao real. Os reflexos desse processoincidem diretamente sobre a concepo da teoria que passaa conceber realidades nicas, exclusivas e universais.

    5 Embora o artigo enfatize a psicologia clnica, ele pode tambm sercompreendido enfatizando-se as cincias psquicas de modo geral.

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    A psicologia, por sua vez, movida pelo af depretenso cientfica, passou por um percurso histricoao mesmo tempo curioso e embaraoso quanto construo de seus sistemas tericos. Por um lado, ascategorias generalistas sobrepuseram-se quase que porcompleto s noes singulares, dissolvendo os sujeitoscotidianos em estruturas universais inconscientes,comportamentais ou sociais (Gergen, 1996; Gonzalez-Rey, 1997; Neubern, 2001b). As conseqncias dessaprimazia generalista vo desde o paradoxo de umindivduo universal (Santos, 1995) at a constituio dapsicologia como uma cincia muito mais voltada para opolo da regulao do que da emancipao6 (Santos,1989). Por outro lado, a diversidade e a tendnciaexclusivista e autocntrica de seus sistemas de idiascolocou sob suspeita a to almejada cientificidade, poiso pressuposto de uma realidade nica e absoluta eraincompatvel com a multiplicidade de noes de homem.Desse modo, um campo disciplinar povoado de umadiversidade de escolas, em que cada uma delas reivindicavao privilgio da realidade sobre a psiqu humana, permitiucom que a psicologia fosse concebida como uma cinciaatrasada, pr-paradigmtica no sentido de Kuhn (1996),com relao s cincias da natureza, onde o consensoestaria mais amplamente estabelecido.

    No entanto, os percalos para um reconhecimentocientfico no impediram a conquista de espaos sociaise da a construo de fortalezas que delimitavam osdomnios da psicologia. De forma similar, no impediramas defesas acirradas contra qualquer ataque racionalidadecientfica dominante da qual tal cincia buscava se imbuir.Neste contexto, tal como ocorrido na guerra de Tria,os psiclogos recebem a obra de Erickson em meio profunda admirao, sem vislumbrar os perigos quecomporta contra suas construes tericas. A ebriedadedas festas e comemoraes das pretensas vitrias de suacientificidade parece t-los embalado na doce iluso deenquadr-la em perspectivas tradicionais, reconhecidaspor suas respectivas comunidades. assim que sua formano convencional de terapia associada ao humanismo,ao behaviorismo e psicanlise (Chertok, 1998), comotambm s teorias sistmicas (Haley, 1991; Hoffman,1992). Entretanto, em seu seio, a obra de Erickson pareceguardar um ataque contundente contra o pilar universal egeneralista das construes tericas.

    Contrapondo-se ao paradigma dominante, Ericksonresgata de modo radical a noo de singularidade. Tal

    noo, em termos epistemolgicos, implica em consideraros indivduos como seres nicos e inditos que, mesmopossuindo determinaes gerais (como da espcie, dafamlia, da sociedade, dentre outras), constituem-se emqualidades emergentes (Morin, 1999) que no se esgotamnessas determinaes nem se repetem nas construessociais. Suas qualidades ativa, consciente e interativapermitem-lhes serem considerados na condio de sujeito(Gonzalez-Rey, 1997; Morin, 1996a, 1996b) que retroagesobre as prprias determinaes que o antecedem. Issoimplica em considerar que a possibilidade de uma teoriade contedos universais e a-priori torna-se invivel,conforme a citao abaixo (Zeig, 1995):

    Acho que o terapeuta no faz nada alm de fornecer aoportunidade de pensar no problema dentro de um climafavorvel. E todas as regras da teoria gestltica, de psicanlise,de anlise transacional ... vrios autores redigiram-nas noslivros, como se cada pessoa fosse igual outra. E at ondedescobri em cinqenta anos, cada pessoa um indivduodiferente. Sempre trato cada pessoa como um indivduo,enfatizando as qualidades individuais dele ou dela. (p. 241)

    O que se destaca nesta citao, na perspectiva aquidiscutida, no apenas a confirmao do carter a-tericode Erickson (OHanlon, 1994; Zeig & Geary, 2000), masorganizao complexa de pensamento que apresentadiversas rupturas com os pressupostos dominantes sobrea construo e o papel da teoria. Em outras palavras, aomesmo tempo em que se considera a impossibilidade tericapara a terapia no convencional, remete-se a questo umaforma distinta de construir teoria em considervel sintoniacom os questionamentos epistemolgicos atuais.

    Diante de uma realidade singular e que se modifica cada instante, a construo de pensamento terico deveprivilegiar uma relao distinta com o real, calcada emoutros pressupostos epistemolgicos. princpio, umavez que no possvel um conhecimento direto e absolutodo real (Anderson & Goolishian, 1988; Gergen, 1996;Gonzalez-Rey, 1997; Keeney, 1994; Mahoney, 1991;Morin, 1996a, 1998; Santos, 1987, 1989), estabelece-seuma relao de dilogo, em que as construes relativase parciais do sujeito modificam-se diante dos movimentosativos dos objetos complexos do real. A construo dopensamento terico torna-se, portanto, uma atividade locale relativa, que gera sentidos em funo de momentossingulares e que remete uma noo de realidade marcadapela complexidade constitucional, ao invs de aparente,pela transformao constante, ao invs da imutabilidade,e pelo retorno do acontecimento, que rompe com ostecidos deterministas comuns nas teorias psicolgicas. Tal

    6 Segundo Santos (1989), a psicologia e a psicanlise parecem surgir como propsito de conciliar os sujeitos com o que existe, da sua funoreguladora.

    Milton H. Erickson e o Cavalo de Tria: A Terapia No Convencional no Cenrio da Crise dos Paradigmas em Psicologia Clnica

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    como pode ser notado em diversos momentos dotrabalho de Erickson (Erickson & Rossi, 1979; Haley,1991; Zeig, 1995; Zeig & Geary, 2000) a gerao depensamento terico adquire o carter de construo,marcada histrica, cultural e subjetivamente, ao invs deum corpo transcendente e desvencilhado de seu sistemascio-cultural; uma construo que no permite umarelao de controle e manipulao deliberada dos objetos,mas que considera, admira e contempla o entrelaamentocomplexo de dimenses prprio aos mesmos.

    H tambm um segundo ponto que depe contra apossibilidade de teorizao, em termos tradicionais, dolegado de Erickson, mas que ganha um papel central seassumido em termos epistemolgicos o terapeuta oupesquisador enquanto sujeito. Dentro de uma perspectivadominante, as colocaes sobre o estilo pessoal desseautor (Haley, 1991; OHanlon, 1994; Zeig & Geary, 2000)fazendo referncia sua genialidade, podem conduzir idia da impossibilidade terica, posto que o conhecimentode tais pressupostos jamais poderia ser repetido por setratar de um conjunto de habilidades muito pessoais eparticulares. Sem analisar os diversos ngulos desse tipode pensamento, chama-se ateno para a maneira radicalcom que Erickson toma a questo do sujeito. princpioseu esforo concentra-se muito mais no atendimento denecessidades especficas dos momentos teraputicos ou depesquisa e na criao de novas formas de abord-los,passando longe da tentativa de coerncia ou convencimentotericos de uma comunidade cientfica. Dito de outro modo,sua anarquia metodolgica parece ser focada prioritariamentesobre seu autoconvencimento (Santos, 1989), abusando deseu potencial criativo no sentido de fazer frente s diversasexigncias do real, prestando pouca ou nenhuma importncia validao de pressupostos consagrados da psicologia.

    Essa infidelidade terica, contrabalanada pelafidelidade originalidade das prprias idias, longe deindicar qualquer ausncia de compromisso histrico como pensamento coletivo, resgata rigorosamente a ao dosujeito enquanto um campo onde as idias ganham vida,conforme a citao que se segue (Morin, 1996a):

    Uma teoria no o conhecimento; ela permite o conhecimento.Uma teoria no uma chegada; a possibilidade de uma partida.Uma teoria no uma soluo; a possibilidade de tratar umproblema. Em outras palavras, uma teoria s realiza seu papelcognitivo, s ganha vida com o pleno emprego da atividademental do sujeito. essa atividade mental do sujeito que d aotermo mtodo seu papel indispensvel. (p. 335)

    Destaca-se desta citao a noo segundo a qual acondio do sujeito, marginal em uma perspectivadominante, torna-se um momento fundamental para a

    construo terica na perspectiva de um novo paradigma,de maneira que a prpria investigao cientfica passatambm a assumir sua singularidade. Em outras palavras,tais abordagens de pensamento, como se d com o legadode Erickson, procuram romper com a idia tradicionalem que as teorias so corpos impessoais sem qualquerrelao com a subjetividade social e individual que asantecede e as acompanha (Bateson, 1998; Keeney, 1994;Morin, 1983, 1996a; Santos, 1987). Por outro lado, issono implica em considerar que se deva abandonarqualquer perspectiva comum e coletiva de pensamento,mas apenas que, no seio das construes tericas e dascrenas partilhadas na comunidade cientfica, o consensoe a generalizao precisam aprender a conviver com asingularidade, a criao e a diferena, prprias dos sujeitos.

    Diante do exposto, considera-se que as questesencontram-se muito mais como um problema a sertrabalhado de que como uma soluo a ser oferecida,particularmente no que diz respeito s relaes entre ogeral e o singular, o comum e o diverso e o papel dosujeito em sua relao com os marcos tericos que lheservem de referncia. No entanto, cabe ainda ressaltarque, embora a obra de Erickson possa ser refletida sob adicotomia teoria e prtica, as caractersticas aquiapresentadas sobre a construo terica apontam para asuperao inquestionvel de tal dicotomia. Tal heranaempirista, que aponta para momentos estanques doconhecimento como teoria prtica ou teoria mtodo,desconsidera por completo que toda ao prtica oumetodolgica implica na gerao de pensamento. Porm,uma vez que o sujeito epistemologicamente assumido,tais aes tornam-se essencialmente tericas. Em outraspalavras, a pesquisa e a interveno clnica no secaracterizam em si mesmas pelo uso de instrumentos outcnicas teraputicas, mas pela gerao de pensamentoterico desenvolvido pelo sujeito, onde tais instrumentose tcnicas ganham sentido (Gonzalez-Rey, 1997, 1999).Logo, no que se refere obra de Erickson, as afirmaesque ressaltam seu valor puramente prtico passam a carecerde sentido, porque toda prtica gerao de pensamentoe, portanto, teoria que necessita ser qualificada a fim deretroagir sobre a prpria prtica de onde nasce. Dessemodo, a obra desse autor apresenta um valor tericocentral, pois, mesmo que incompreendida em muitos deseus momentos, aponta caminhos que permitem situ-lacomo uma das principais precursoras do paradigmaemergente em psicologia clnica.

    O Resgate de uma Figura Maldita: A SubjetividadeOutro fundamento que permitiu considerar a cincia

    como um conhecimento confivel e preciso do real foi a

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    excluso da subjetividade (Gonzalez-Rey, 1997; Morin,1983, 1996a; Neubern, 1999, 2000; Santos, 1987).Colocando-se como tarefa impessoal e coletiva, oempreendimento cientfico buscava eliminar nos sujeitos,fossem pesquisadores, fossem objetos de estudo, tudo oque constitusse ameaa ou fonte de erro, por meio denoes generalistas e universais ou ainda pela vulgata doscontextos de experimentao.

    Esse processo de excluso da subjetividade abrangeuintensamente os diversos ramos do conhecimento, vindoa se estabelecer como um dos principais eixos do paradigmadominante sob a forma de uma grande diviso (Morin,1998; Santos, 1987, 1989). Um lado dessa diviso era ouniverso da objetividade, regido por leis que permitissem apreviso e o controle. A linguagem era essencialmente tcnicae prosaica e contava com o recurso inestimvel damatemtica, cuja lgica quantitativa oferecia maior precisoe segurana empresa cientfica. Trata-se do lado onde afsica reinava como modelo de cincia apontando umconjunto de procedimentos a serem seguidos por todas asdemais, o que leva a qumica a divorciar-se da alquimia, aastronomia da astrologia e a medicina a expulsar de seu seiotodos os representantes estranhos s pretenses cientficas,como o mesmerismo e os magnetizadores do sculo XVIII.O mundo dos objetos, cone de uma realidade esttica e a-histrica, concentrou-se inicialmente sobre o movimento eas propriedades dos corpos, as reaes qumicas, as rotasplanetrias, dentre outros.

    Do outro lado do abismo, achava-se o reino dasubjetividade cuja linguagem permitia o senso potico eesttico, o pensamento qualitativo e a reflexo filosfica.Encontravam-se l diversas disciplinas que ocupavam umpatamar inferior racionalidade cientfica, posto no seremcapazes de um retrato fiel da realidade. O direito, a filosofia,a teologia, a literatura e o senso comum poderiam abordaras relaes humanas, Deus, a alma, o amor, a sociedade, aproduo literria, enfim, objetos cujo teor subjetivo nopoderia permiti-los pertencerem aos interesses cientficos.

    Esse macrocontexto clivado o que permite considerarque a psicologia, como boa parte das cincias humanas,nasce, desenvolve-se e se estabelece em crise, pois suaspretenses de se constituir como cincia e sua busca deobjetos de estudo no reino da subjetividade consistiu nardua tentativa de unio de dois universos irreconciliveispela prpria organizao disjuntiva do paradigmadominante (Neubern, 1999, 2000, 2001a, 2001b). Dessemodo, o estabelecimento de um saber confivel, emboranunca por inteiro, implicou em preos altos a serem pagossob a forma de uma dupla excluso dos processossubjetivos. Por um lado, as interdies prpria subjetividadedo pesquisador, fosse na construo terica ou na ao

    metodolgica, romperam com as diversas possibilidadesde interao presentes no cenrio da investigao psicolgica.Toda a dimenso subjetiva prpria de tais contextos assumeum status intrinsecamente marginal, de modo que as tentativasde qualific-las como momentos integrantes da pesquisa,como no caso dos mtodos clnicos, passam a serconcebidas como propostas muitos especficas de taiscontextos, desprovidas de confiabilidade de poder degeneralizao7 (Gonzalez-Rey, 1997).

    Por outro lado, as exigncias impostas para a realizaoda empresa cientfica implicaram em um processo demltiplas disjunes e redues sobre os objetos deestudo. O caso das emoes bastante ilustrativo nestesentido (Despret, 1999; Gonzalez-Rey, 1997; Neubern,2000, 2001b). Um processo complexo, marcado pormltiplas articulaes com os sistemas internos do sujeitoou com seus sistemas sociais, passa por um conjunto deprocedimentos que o atomizam, isolando-o de suasconexes e momentos histricos, o esgotam em outradimenso (como a biologia ou a linguagem) ou orelacionam isomorficamente com nmeros ou respostascomportamentais, desconsiderando as propriedades auto-reguladoras dos processos subjetivos que integra. Taldescaracterizao dos objetos de estudo contava aindacom uma associao arbitrria a contedos a priori euniversais que freqentemente faziam mais sentido aocorpo terico do que aos cenrios prprios dos sujeitos.No entanto, determinados objetos de estudo poderiamainda sofrer intensa marginalizao, colocando-se comoterrenos proibidos ou mticos para a investigao cientfica.Tal parece ser o caso da hipnose (Chertok, 1998; Despret,1999) que, por diversos motivos e apesar dos esforosdelineados em sua pesquisa (Erickson, 1939, 1967;Erickson, Hershman & Secter, 1998; Erickson & cols.,1976; Rossi, 1997) ainda se encontra cercada por mitos epreconceitos e no consiste em unanimidade para acomunidade cientfica8 .

    Todavia, a prxima surpresa escondida no cavalo demadeira de Erickson aponta para um objeto complexo,que no se apreende pelas teorias tradicionais e que apontana direo de profundas modificaes epistemolgicas.Tal objeto, que aparece na obra do autor apenas por

    7 Gonzalez-Rey (1997) aponta para a falcia empirista segundo a qual osmtodos clnicos s so vlidos para o contexto clnico.8 Sem sombra de dvidas, esta colocao questionvel, pois a aceitaodas comunidades cientficas quanto hipnose progrediu vertiginosamentedurante o sculo XX. No entanto, tambm no deixa de ser corretoafirmar que ainda existem muitas controvrsias sobre o tema. A prprioreconhecimento tardio do CFP da hipnose como recurso auxiliar dopsiclogo (dezembro de 2000) um indicador da sua dificuldade deaceitao.

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    fragmentos, apresenta considervel sintonia com o temada subjetividade discutido sob diferentes perspectivas nocenrio cientfico (Morin, 1996a, 1996b; Santos, 1995;Tourraine, 1999) e na psicologia de modo geral (Anderson& Goolisnhian, 1988; Ausloos, 1995; Gergen, 1996;Gonzalez-Rey, 1997; Keeney, 1994; Mahoney, 1991;Neubern, 1999). As contribuies da terapia noconvencional revestem-se de especial importncia namedida em que retomam a complexidade das questesenvolvidas com o tema da subjetividade, promovendoarticulaes entre noes classicamente opostas peloparadigma dominante.

    princpio, Erickson destaca a impossibilidade deconhecer a subjetividade (OHanlon, 1994) tanto pelasdiversidade de processos emaranhados que lhe so prprios,como por sua contnua mutao. A citao seguinte (Rossi,Ryan & Sharp, 1983) ilustrativa nesse sentido:

    Seu paciente uma pessoa hoje, totalmente outra amanh, maistotalmente outra ainda na semana que vem, no ms que vem, noano que vem. Daqui a cinco, dez, vinte anos ser outras pessoas. bem verdade que possumos certo background genrico, mas somospessoas diferentes a cada dia de nossas vidas. (p.3)

    Um dos pontos centrais que se destacam desta citao a relao que Erickson estabelece entre a ao do sujeitoe sua determinao histrica. Sob o auxlio de sua prpriaorientao naturalista (Erickson, 1958; Erickson & Rossi,1979) pode-se conceber que ele preconiza um sujeito atuale auto-regulado que qualifica de forma prpria asinfluncias sociais e histricas sem colocar-se como umautmato das mesmas. Dito de outro modo, o sujeito atual, subjetiva sua histria, ao invs de se escravizar ela,e permanece aberto s opes presentes em suas aessociais. dentro dessa mesma perspectiva que se podecompreender sua orientao de presente e futuro(OHanlon, 1994; Zeig, 1995) que no lhe constrangia aum retorno obrigatrio ao passado de seus pacientes.

    Porm, a passagem acima evoca ainda outra dimenso,cujas implicaes epistemolgicas so fundamentais. Asconstantes modificaes podem ser compreendidas emfuno da dialtica permanente entre as constituies econstrues (Gonzalez-Rey, 1997) presentes na ao dosujeito que o levam redimensionar com freqnciasignificados, sentidos e padres subjetivos. Dentro dessaperspectiva, uma primeira implicao refere-se prpriamanuteno dos sintomas que, ao invs de obedeceremobrigatoriamente uma estrutura profunda ondedesempenha funes, baseiam-se em modelos costumeirosde resposta (OHanlon, 1994), prprios de seu interjogosocial. Trata-se mais uma vez da possibilidade de retornoacontecimento (Morin, 1996a), cuja compreenso apresenta

    importantes alternativas quanto ao determinismo psicolgicoe histrico que podem possuir influncia sobre a produode sintomas, mas no necessariamente a esgotam.

    Em segundo lugar, depreende-se dessa noo umapostura de observao atenta quanto s vrias expressesdo sujeito, sejam elas verbais, sejam no verbais(respirao, postura, expresso facial, vestimentas, dentreoutras). Tal observao que busca atender ao mesmotempo uma viso holstica, singular e momentnea dosujeito refere-se ao que Erickson designou como minimalcues (Erickson, 1964; Erickson & Rossi, 1979) e remete exigncia de qualificao (ou utilizao) das diversasexpresses do sujeito sem a necessidade de enquadr-lasem uma dada perspectiva terica. A relevncia desteponto refere-se possibilidade de conceber o processointerativo (seja da terapia, da pesquisa ou da prpriaconstruo do conhecimento) com uma infinidade depontos (minimal cues) que conferem a tal processo momentos,rupturas e aberturas. A histria desenvolvida, importantepara a considerao dessas interaes, parte de umaperspectiva linear e homognea para uma perspectivamltipla, heterognea e com diversas possibilidades designificao e narrativa.

    Aqui toca-se em uma terceira implicao epistemolgicana medida em que se busca privilegiar os prprios cenriosdos sujeitos, de modo que a utilizao efetivada peloterapeuta volta-se para o desencadeamento de mudanasnos processos particulares dos pacientes. Nesse sentido,a funo da teoria no outra que no a de fornecerreferncias para o dilogo com a realidade mltipla dosujeito, abstendo-se do mecanismo tradicional de concebere interpretar tal problemtica a partir de contedosuniversais e a priori. Essa perspectiva pragmtica buscaenvolver o paciente em seus projetos particulares demudana, criando condies para sua participao efetivacomo sujeito nos mesmos.

    Finalmente, cabe ressaltar que semelhante resgate dasubjetividade coloca problemas de difcil abordagem noatual panorama cientfico. O fato de iniciar a criao deespaos epistemolgicos para o sujeito cotidiano, livredas amarras das superestruturas inconscientes e sociais,pronto para viver seus prprios dramas em seus cenriossociais, ao invs de viver os dramas de dipo em seucenrio terico e artificial, remetem um confrontodireto quanto a um conjunto de noes e mecanismosdo paradigma dominante para quem a subjetividadeconstituiu, nos ltimos sculos, uma terrvel ameaa.Entretanto, esse confronto parece inevitvel. O prpriohomem comea a se perguntar no seio do cenriocientfico sobre suas origens, sua condio existencial(Neubern, 2000) e o para que se faz cincia (Santos, 1989).

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    As dvidas e paradoxos que tais excluses legaram noparecem mais ser tolerveis. Porm, da mesma formaque um ser aberto ao presente e o futuro no permitiram Erickson construir uma teoria, as incertezas do porvirdo conhecimento s permitem indagaes ainda norespondidas.

    Promovendo a Subverso: Rumo a Novas Racionalidades ParaLidar com o Impondervel

    O carter a-terico com que Erickson conduziu suasconstrues traz tona um terceiro ponto que sintonizaseu trabalho com as possibilidades de um paradigmaemergente: a busca de novas racionalidades que faa frente complexidade das questes estudadas. Nesse sentido, oponto que pareceria ser sua maior falha, afigura-se comouma de suas maiores contribuies. Sua insistncia emno construir sistemas condizentes com a tradiopsicolgica altamente significativa, pois diante de umarealidade altamente complexa, Erickson preferecontempl-la e respeit-la, posto que qualquer forma deteorizao conhecida o levaria aos mesmos equvocosde seus contemporneos, isto , uma profundamutilao e descaracterizao dos objetos de estudo. Aolimitar-se a construir alguns princpios de abordagem,ele no s apontava para a necessidade de respeito dasrealidades subjetivas, mas tambm para a necessidade deinvestigaes e desenvolvimentos epistemolgicas maisprofundos que pudessem contemplar e abordar semelhantecomplexidade.

    Tal postura adotada pelo autor aproxima-sesobremaneira dos desafios com que se depararam os fsicosna mecnica quntica e na relatividade. medida que sedepararam com noes contraditrias (paradoxo partcula-onda), incertezas e ausncia de referenciais absolutos(Heisenberg, 1999; Morin, 1997; Santos, 1987) os fsicosviram-se constrangidos a buscar novas concepes, cujosquestionamentos abalaram pilares centrais do paradigmadominante como a matria, o tempo, o espao, o universoe a participao do esprito humano. interessante notarque possivelmente a considervel amplitude da atual crisede paradigmas ocorra pelo fato de que os questionamentosmais incisivos sobre seus fundamentos partiram da cinciaque mais protagonizou a racionalidade dominante. Oimpacto dessas reflexes tem levado cada vez mais aoquestionamento crtico dessas bases, particularmente sobrea grande diviso do paradigma dominante. Nessaperspectiva, antigas dicotomias como homem naturezaou sujeito objeto passam cada vez mais a carecer desentido, tornando-se possvel repetir com Santos (1987) quetoda natureza humana (p. 44) e que o sujeito se vnaquilo que v. (p. 45)

    A questo que se coloca em meio tal cenrio , portanto,a da necessidade de busca de conjuntos alternativos decosmovises e pressupostos que permitam ir alm dasdisjunes e redues promovidas pelo paradigmadominante. Uma vez que o materialismo condenado morte por falta de matria, necessrio ir alm dasconcepes enraizadas nos sentidos fsicos, para que setorne possvel o dilogo com um universo invisvel,irregular, paradoxal e permeado por acontecimentossingulares, em que as tradicionais divises encontram cadavez menos condies explicativas9 . Nesse sentido, ummanancial de conceitos e noes, antes prprios dascincias sociais, passam aos poucos a serem inseridos nasexplicaes fsicas, permitindo novas leituras respeitodos fenmenos. Histria, imprevisibilidade, criatividade,acidente, revoluo social, violncia, dominao,escravatura, democracia nuclear, auto-poiesis vm nosomente proporcionando uma nova tica de fenmenoscomplexos, mas principalmente incluindo o humano nomago daquilo mesmo que toma como objeto de estudo(Morin, 1996a, 1998; Santos, 1987, 2000). Logo, noescomo analogias, textos, biografia e teatro passam aadquirir um papel central na psicologia (Anderson &Goolishian, 1996; Gergen, 1996), como nas cincias emgeral (Santos, 1987).

    numa perspectiva semelhante que cabe uma reflexosobre uma das principais caractersticas do trabalho deErickson: o conto de histrias e o uso de analogias(Erickson & Rossi, 1979; Haley, 1991; Mendona, 1995;OHanlon, 1994; Rosen, 1994; Zeig & Geary, 2000). Talrecurso aparece em sua obra aliado todo um conjuntode pressupostos que, conforme discutido, remetem umanoo complexa da subjetividade. Entretanto, o pontocentral que se destaca em sua utilizao que as histriase analogias, contrariamente diversas escolas psicolgicas,no aparecem subordinadas um esquema tericosubjacente. Ou seja, seu uso no est determinado deantemo por uma leitura sobre estruturas de personalidadeou conflitos psquicos, mas por um processo interativo emque se resgata o sujeito cotidiano. Histrias e anedotas noocupam, portanto, uma posio hierarquicamente inferior,mas constituem-se em uma forma privilegiada deabordagem de importantes implicaes epistemolgicas.

    9 So vrias as clivagens que se tornam cada vez mais questionveis. Almde matria orgnica inorgnica, seres vivos seres inanimados, natureza homem ou natureza sociedade, corpo alma, sujeito objeto,questiona-se sobremaneira o prprio carter construdo da cincia (cincia sociedade), concebendo-a como uma atividade intensamente imbudadas ideologias, mitos, pressupostos, linguagem e preconceitos desociedades e culturas (Gergen, 1996; Morin, 1983, 1998; Santos, 1987,1995).

    Milton H. Erickson e o Cavalo de Tria: A Terapia No Convencional no Cenrio da Crise dos Paradigmas em Psicologia Clnica

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    princpio remetem a uma noo de uso em que oprprio jogo interativo promove um contexto em quese torna possvel a reconstruo de significados e sentidossingulares do sujeito. A pragmtica de tal recurso refere-se tanto considerao dos cenrios especficos do sujeitocomo prpria coreografia que se desenha entre pacientee terapeuta, abrangendo mltiplos nveis ou dimenses(Erickson & Rossi, 1979; Erickson & cols., 1976). Apesardas crticas quanto noo de nveis de relao quepodem sugerir hierarquizaes, tal perspectiva apresentaafinidades com as noes ps-modernas que enfatizamuso e jogos de linguagem (Anderson & Goolishian, 1988;Gergen, 1996). As construes dos sujeitos sobre suasvidas, seus conflitos e problemas no consistem emsubprodutos de estruturas gerais e impessoais, masremetem a seus cenrios cotidianos onde se desenvolvem,por assim dizer, organicamente.

    Por outro lado, o uso de analogias e histrias tocamainda em outra questo epistemolgica de considervelimportncia. Uma vez que no possvel umconhecimento direto da complexidade dos sujeitos,tornam-se necessrias formas indiretas de abord-los quedesencadeiem processos de mudana (Erickson, 1958;Erickson & Rossi, 1979; Erickson & cols., 1976). Esseuso indireto da linguagem abre, ao mesmo tempo, duasperspectivas importantes: por um lado, promoveimportantes reconstrues e experincias que remetem osujeito a um auto-conhecimento, isto , um conhecimentovivencial e aberto ao qual ele se engaja ativamente comosujeito e no espectador. De outra parte, remete umareflexo aprofundada sobre o prprio conhecimentopsicolgico que necessita comportar aberturas, buracosnegros, rudos e interrogaes que o abram para odilogo com a complexidade do real, ao invs de buscarmant-lo na iluso de um conhecimento homogneo,linear e acabado.

    Desse modo, pode-se compreender que a terceirasurpresa que salta de dentro do cavalo de madeira acriao de buscas de novas racionalidades em que ohumano sai de uma posio marginal para se situar nocentro de um universo onde ele mesmo se contempla. Aperspectiva de uma linguagem indireta parece mesmoredundante nesse sentido, pois em termos epistemolgicostoda linguagem, por sua prpria condio subjetiva, necessariamente indireta. O que Erickson destaca aoencontro disso que o uso de analogias e o conto dehistrias no consistem em um anteparo indiretosubjugados a perspectivas diretas e finalistas, mas emlegtimas alternativas epistemolgicas para a construodo conhecimento. Tal uso promove uma pertinncia parapesquisador e sujeito que rompe por completo com

    formas tradicionais de interlocuo da natureza, em queela vista como um autmato ignorante e estpido. Maisque isso, promove uma pertinncia em que cincia e sensocomum apontam para a construo de um futuro promissorpara o conhecimento10 (Santos, 1989).

    ConclusoO Legado de Erickson Como um Presente de Grego

    A questo principal que animou o desenvolvimentodeste artigo foi o de situar o legado de Erickson comouma contribuio central no seio da crise e transio deparadigmas da atualidade tanto nas cincias em geral comona psicologia. A proposta no implica, portanto, emdesvincular as contribuies desse autor das provveisfontes que tenham alimentado a construo de sua obra.Da mesma forma que toda obra original possui vnculoscom o pensamento coletivo de uma poca, autores comoErickson so frutos de seu tempo e ao mesmo tempoprecursores que anunciam revolues nas prpriasconcepes que dominaram o cenrio de seu tempo. Aoriginalidade de uma obra no deve subentender ausnciade relaes com os cenrios sociais e culturais, aspreocupaes epistemolgicas, os debates e reflexescrticas, os componentes polticos, econmicos eideolgicos, enfim, todo o conjunto de processos quepermeiam a construo do saber.

    No entanto, uma das principais intenes do artigoconsiste em prevenir os interessados no assunto quanto aum erro epistemolgico, social e poltico muito comumnas comunidades cientficas, particularmente da psicologia:a de buscar travestir propostas novas com roupagensantigas. Ou seja, de forma quase automtica e linear, busca-se explicar contribuies revolucionrias partir deesquemas consagrados, em que todo o potencial dereflexo criativo esgotado em formas tericas emetodolgicas aceitas pela tradio, mesmo que caducasdiante dos inmeros desafios sociais com que se depara.Nessa sentido, todo processo de institucionalizao,embora necessrio, corre srios riscos, seja pela tentativadeliberada de enquadrar tais propostas em perspectivasconsagradas, seja pelo acordo tcito e inconsciente comepistemologias dominantes. Em ambos os casos, o apelo uma situao cmoda que evita os rduos percalos da

    10 Santos (1989) destaca que em um paradigma ps-moderno atransformao da cincia partir do senso comum, permitiria ao cientistaa fronesis aristotlica, isto , o hbito de decidir bem. Dentro disso, elepode ser mais pertinente para indagar o para que se faz cincia, refletindoe transformando as relaes entre conhecimento e sociedade.

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    reflexo epistemolgica que busca qualificar o novo, podedesempenhar papel decisivo.

    justamente neste ponto que se concebe que o legadode Erickson consiste prioritariamente em um presentede grego, na medida em que convida seus interlocutores transformaes profundas no apenas em suas formasde abordagem teraputica, mas tambm a uma revisocrtica de todos os momentos e situaes onde oconhecimento se constri. Por tais razes, aps a perguntafeita na introduo do artigo sobre como conceber aobra de Erickson, outra interrogao torna-se inevitvel:que usos devem ser feitos da obra de Erickson. Essaseqncia de perguntas implica na abertura deconsiderveis desafios movidos pela busca de coernciaentre os princpios adotados e s diversas formas derelao que se desenvolvem nos setores da comunidadecientfica.

    Em outras palavras, tais desafios podem sersintetizados da seguinte forma. Se: os sujeitos socomplexos, singulares, auto-regulados e modificam-se cada instante; no se permitem apreender pelas formastradicionais de construir teorias; remetem a um universoimpondervel mais invisvel que visvel e permeado poracontecimentos, desordens e caos; exigem formasindiretas de abordagem em que a linguagem analgica eanedtica passa a conviver com o rigor cientfico;implicam na superao de dicotomias tcitas para opensamento psicolgico Ento: como deveriam serconduzidas as relaes nos contextos de ensino eformao? Que parmetros poderiam nortear as relaesnos conclaves e encontros cientficos? Que pautaspoderiam permear os bastidores e o cotidiano dosinstitutos? Quais diretrizes serviriam de referncias paraa conduo da pesquisa e da terapia? Quais parmetrosauxiliariam na reflexo sobre a insero social dessa formade conhecimento?

    Na mesma linha de pensamento, a lista de questespode ser estendida consideravelmente. Contudo, no sepode alimentar a iluso de que tais questes sejamfacilmente respondidas e, mais ainda, executadas. O teorepistemolgico desses princpios vai frontalmente deencontro aos pressupostos dominantes na tradiopsicolgica e suas formas de institucionalizao do saber.Efetivamente, uma cincia que buscou se erigir numamisso social regulatria (Santos, 1989) com pressupostosde previso, controle, generalizao e impessoalidade(Neubern, 2000, 2001a, 2001b) encontrar certamentedificuldades diante de propostas emancipatrias, compressupostos de imprevisibilidade, autonomia,singularidade, histria e criao.

    No entanto, embora o desconforto e o incmodoepistemolgicos se constituam no preo pago por noconsiderar a terapia no convencional como um simpleslegado de tcnicas, eles trazem tambm outra perspectivapara a apreciao desse presente de grego a esttica(Keeney, 1994). A admirao e o espanto mobilizadospelo cavalo ericksoniano de Tria seduzem e ameaamconduzir psiclogos e cientistas s destruies necessrias,mas tambm resgatam a imaginao, a fantasia e o sonhocom um futuro distinto para o conhecimento. Contudo,uma vez que tais transformaes so inevitveis semdvida um dado significativo que tal obra tenhaimpressionado to profundamente as comunidadespsicolgicas, no tanto por um conhecimento que se suprena razo, mas principalmente por um conhecer que asurpreende, beira o absurdo, toca fundo em seusinterlocutores e mobiliza encantamento. As possveisconseqncias deste processo para o conhecimento soainda muito obscuras, pois em uma transio deparadigmas existem poucos fundamentos firmes eseguros para conceb-las. Entretanto, o legado deErickson parece apontar para uma transio entre omundo seco e morto pela arrogncia do paradigmadominante, para um universo vivo e encantado doparadigma emergente (Neubern, 2000; Prigogine &Stengers, 1997).

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    Recebido: 03/01/2002Revisado: 15/02/2002

    Aceito: 22/03/2002

    Sobre o autorMaurcio S. Neubern Psiclogo Clnico. Doutorando em Psicologia pela Universidade de Braslia(UnB).

    Maurcio S. Neubern

    Psicologia: Reflexo e Crtica, 2002, 15(2), pp. 363-372