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Milena Junqueira Reis
Educao em Sade na Ateno Primria Sade no Brasil: um olhar sobre os contedos
divulgados nas revistas cientficas de sade coletiva de 1990 a 2015
Rio de Janeiro
2016
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Milena Junqueira Reis
Educao em Sade na Ateno Primria Sade no Brasil: um olhar sobre os contedos
divulgados nas revistas cientficas de sade coletiva de 1990 a 2015
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
graduao em Sade Pblica, da Escola
Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca, na
Fundao Oswaldo Cruz, como requisito
parcial para obteno do ttulo de Mestre em
Sade Pblica. rea de concentrao:
Processo Sade e Doena, Territrio e Justia
Social.
Orientadora: Prof.a Dra. Rosely Magalhes de
Oliveira.
Coorientadora: Prof.a Dra. Marize Bastos da
Cunha.
Rio de Janeiro
2016
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Catalogao na fonte
Fundao Oswaldo Cruz
Instituto de Comunicao e Informao Cientfica e Tecnolgica
Biblioteca de Sade Pblica
R375e Reis, Milena Junqueira
Educao em Sade na Ateno Primria Sade no Brasil:
um olhar sobre os contedos divulgados nas revistas cientficas
de sade coletiva de 1990 a 2015. / Milena Junqueira Reis. --
2016.
120 f. ; tab. ; graf.
Orientadora: Rosely Magalhes de Oliveira
Coorientadora: Marize Bastos da Cunha.
Dissertao (Mestrado) Fundao Oswaldo Cruz, Escola
Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2016.
1. Educao em Sade. 2. Ateno Primria Sade.
3. Promoo da sade. 4. Estratgia Sade da Famlia.
5. Publicaes Cientficas e Tcnicas. 6. Brasil. I. Ttulo.
CDD 22.ed. 613.070981
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Milena Junqueira Reis
Educao em Sade na Ateno Primria Sade no Brasil: um olhar sobre os contedos
divulgados nas revistas cientficas de sade coletiva de 1990 a 2015.
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-
graduao em Sade Pblica, da Escola
Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca, na
Fundao Oswaldo Cruz, como requisito
parcial para obteno do ttulo de Mestre em
Sade Pblica. rea de concentrao:
Processo Sade e Doena, Territrio e Justia
Social.
Aprovada em: 31 de maio de 2016.
Banca Examinadora
Prof.a Dra. Sonia Acioli de Oliveira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Gil Sevalho
Fundao Oswaldo Cruz - Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca
Prof. Dr. Jos Wellington Gomes Arajo
Fundao Oswaldo Cruz - Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca
Prof.a Dra. Marize Bastos da Cunha (Coorientadora)
Fundao Oswaldo Cruz - Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca
Prof.a Dra. Rosely Magalhes de Oliveira (Orientadora)
Fundao Oswaldo Cruz - Escola Nacional de Sade Pblica Sergio Arouca
Rio de Janeiro
2016
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AGRADECIMENTOS
A Deus, que guia meus passos, me fortalece e no me deixa desanimar.
Aos meus pais, Elizabeth e Enes, que acreditam comigo nos meus sonhos, me apoiam e
incentivam. Agradeo por todo amor e por serem meu porto seguro. Sem eles essa conquista
no seria possvel.
minha orientadora, professora Rosely, por todas as trocas, ensinamentos, pacincia,
compreenso, apoio e por acreditar comigo nesta dissertao.
minha coorientadora, professora Marize, pelas contribuies durante este processo.
Agradeo tambm pela oportunidade de participao nas oficinas do Laboratrio territorial de
Manguinhos, que me permitiu conhecer outra realidade, fora dos muros da Fiocruz.
professora Marly, pelas problematizaes e sugestes durante as apresentaes da
disciplina de Seminrios Avanados.
Carla Rodrigues, do Departamento de Endemias Samuel Pessoa da ENSP, por todo auxlio,
sempre paciente e disposta a ajudar.
Ao Frum de Estudantes da ENSP pelas muitas trocas e reflexes. E a aos movimentos
sociais que participei neste perodo. Estes espaos sempre foram fundamentais em minha
formao profissional e pessoal.
s queridas amigas Nara, Ana Paula e Isabel pelo companheirismo e afeto nesta trajetria.
Aos amados amigos que as curvas da vida colocaram em meu caminho. Mariana, Amanda,
Luciana e Phillippe, obrigada pelo carinho e amizade em todos os momentos.
A vida muito mais alegre e divertida com vocs.
Ao amigo Lucas, por toda ajuda e troca desde quando essa dissertao era s uma ideia para o
processo seletivo. Obrigada pelo companheirismo que j vem de outros tempos.
querida amiga Mar, por todo afeto e amizade, por estar sempre perto, ouvindo, ajudando e
compartilhando experincias. Que bom que nossos caminhos sempre se cruzam nessas
andanas da vida.
Clarisse que acompanhou de perto o processo de construo desta dissertao,
compartilhando alegrias e angstias.
A todos os amigos e familiares, que distantes ou no, participaram desta caminhada e
entenderam minha ausncia, durante este processo de construo.
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RESUMO
Esse estudo tem como objeto a produo divulgada em revistas cientficas de Sade
Coletiva sobre educao em sade na Ateno Primria Sade no Brasil, no perodo de 1990
a 2015. Tendo como fonte de dados artigos cientficos disponveis na base de dados da
Biblioteca Virtual de Sade (BVS), e utilizando anlise de contedo, o estudo objetivou,
especificamente: caracterizar a produo segundo ano de publicao, instituio de vinculao
dos autores, regio da instituio, revistas em que foram publicados, idioma e tipo de estudo
e, tambm descrever seu contedo, identificando elementos relativos s concepes e prticas
de educao em sade. O resultado do estudo apontou que a regio sudeste se destacou no
nmero de publicaes. Com relao s revistas, o destaque foi para a revista de APS
Ateno Primria Sade. Os artigos empricos lideraram as publicaes e, dentre estes, os
artigos com abordagem qualitativa foram maioria. Com a descrio do contedo foi possvel
observar que 17% dos trabalhos no definem o termo educao em sade, e nestes, est
implcito que o objetivo das prticas educativas em sade a mudana de comportamentos,
atravs de transmisso vertical de informao. Entre os artigos que definem o termo educao
em sade, a crtica viso tradicional de construo do conhecimento est presente, assim
como conceitos e teorias de base freireana. Porm, os resultados obtidos nestes trabalhos
mostraram que elementos da pedagogia tradicional e a influncia do modelo biomdico ainda
persistem. A maioria dos artigos (60%) considerou e discutiu o tema contexto, que de
grande relevncia para os autores do campo da educao utilizados no referencial deste
trabalho. O tema participao social foi discutido em apenas 43% dos artigos, o que sugere
que as atividades educativas em sade no so percebidas como um espao de fomento
articulao da comunidade. A Promoo da Sade apareceu em 80% dos artigos, o que mostra
sua grande influncia neste campo estudado, sendo que autores colocaram a educao em
sade como estratgia para implantao desta proposta nos servios. Os limites para
realizao de atividades de educao em sade esto presentes em 73% dos trabalhos
analisados. Dentre estes, esto as dificuldades relacionadas infraestrutura fsica das
unidades, disponibilidade de materiais para realizao das atividades, dinmica de trabalho e
formao acadmica dos profissionais. Este um resultado importante, que aponta a
necessidade de discusso dos problemas encontrados para aprimoramento das prticas dos
profissionais neste campo.
Palavras-chave: Educao em sade. Ateno primria sade. Promoo da sade.
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ABSTRACT
The present study has as its objective the releases about Health Education in the
Primary Health Care in Brazil, published between 1990 and 2015 in scientific journals of
Public Health. The main source were scientific articles available in the database of Biblioteca
Virtual de Sade BVS (Online Health Library) and through content analysis this study has as
its specific target: distinguish the articles based on their year of release, the authors linking
institutions and the institution regions, the journals where they were published, their language
and kind of study and, beyond that, describe their content focused on elements which might
show the conceptions and practices in health education. As a result, we were able to find out
that the Southeast Region stood out by its number of articles. Regarding the journals, we
might mention Ateno Primria Sade APS (Primary Health Care). Empirical articles
lead the publications and, among them, those with a qualitative approach are the majority.
Analyzing the content of the articles, we were able to see that 17% of them do not define the
term health education. It is implicit on them that the educative practices in health aims the
behavior changing through the vertical transmission of information. Among those articles
which define the term health education, we find many criticisms regarding the traditional
pattern of education, as well as concepts and theories based on Freire studies. However, the
results of these researches have shown how persistent are the elements of traditional pedagogy
as well as the influence of the biomedical pattern. The majority of the articles (60%)
considered and discussed the context, which is very relevant for the authors in the education
field considered as references for this study. The social participation was poorly discussed
only 43% of the articles which may suggest that the health educational activities have no
promotion room inside the community. Health promotion is present in 80% of the articles,
showing its great influence on this field and meaning that the authors used health education as
a strategy of implantation of its proposal in the services. The imposed limits when it comes to
heath education activities are present in 73% of the articles. Among them we may mention the
unities deficiency in infrastructure, availability of materials to carry out the activities, work
dynamics and academic training of professionals. This is a very important result that points to
the necessity to discuss these problems in order to improve the skills of the professionals in
this field.
Keywords: Health education. Primary health care. Health promotion.
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LISTA DE ILUSTRAES
Quadro 1 - Comparao entre as perspectivas tradicional e crtica do processo de
construo do conhecimento.....................................................................
32
Figura 1 - Fluxograma do mtodo............................................................................. 46
Grfico 1 - Proporo de artigos sobre educao em sade na APS no Brasil
divulgados em revistas cientficas e nas revistas da rea de sade
coletiva, disponveis no stio da BVS, segundo ano de publicao
(1990-2015)...........................................................................................
49
Grfico 2 - Proporo de artigos cientficos sobre educao em sade na APS no
Brasil (1990-2015), disponveis no stio da BVS, por regio...................
52
Grfico 3 - Proporo de artigos cientficos sobre educao em sade na APS no
Brasil (1990-2015) de acordo com idioma de publicao, por ano (todas
as revistas disponveis no stio da BVS)...................................................
56
Grfico 4 - Proporo de artigos cientficos sobre educao em sade na APS no
Brasil (1990-2015) de acordo com idioma de publicao, por ano
(revistas de sade coletiva, disponveis no stio da BVS).........................
56
Grfico 5 - Proporo de artigos cientficos divulgados sobre educao em sade
na APS no Brasil (1990-2015), segundo tipo de estudo............................
57
Grfico 6 - Proporo de artigos cientficos empricos sobre educao em sade na
APS no Brasil (1990-2015), segundo tipo de estudo................................
58
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1 Nmero absoluto e proporo de artigos cientficos sobre educao em
sade na APS no Brasil, divulgados em revistas cientficas, segundo
ano de publicao......................................................................................
50
Tabela 2 Nmero absoluto e proporo de artigos cientficos sobre educao em
sade na APS no Brasil (1990-2015), disponveis no stio da BVS, por
regio.........................................................................................................
53
Tabela 3 - Quantidade e proporo de publicaes sobre o tema, disponveis no
stio da BVS, de todas as revistas..............................................................
53
Tabela 4 Quantidade e proporo de publicaes sobre o tema, disponveis no
stio da BVS, das revistas de sade coletiva.............................................
54
Tabela 5 Nmero absoluto e proporo de artigos cientficos divulgados sobre
educao em sade na APS no Brasil (1990-2015), de acordo com o
idioma da publicao.................................................................................
56
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
APS Ateno Primria Sade
BVS Biblioteca Virtual em Sade
CEP Comit de tica e Pesquisa
CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico
DeCs Descritores em sade
EPS Educao Popular em Sade
ESF Estratgia Sade da Famlia
NASF Ncleo de Apoio Sade da Famlia
NOB/SUS Norma Operacional Bsica do Sistema nico de Sade
PACS Programa de Agentes Comunitrios de Sade
PNAB Poltica Nacional de Ateno Bsica
PNEP Poltica Nacional de Educao Popular
PROESF Projeto de Expanso e Consolidao da Sade da Famlia
PSF Programa de Sade Famlia
RSB Reforma Sanitria Brasileira
SUS Sistema nico de Sade
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SUMRIO
1 INTRODUO.................................................................................................... 11
2 OBJETIVOS GERAIS........................................................................................ 17
2.1 OBJETIVOS ESPECFICOS............................................................................. 17
3 REFERENCIAL TERICO.............................................................................. 18
3.1 ATENO PRIMRIA SADE E A ESTRATGIA SADE DA
FAMLIA...............................................................................................................
18
3.2 A INFLUNCIA DA PROMOO DA SADE NAS ATIVIDADES DE
EDUCAO EM SADE....................................................................................
20
3.3 EDUCAO EM SADE: ENFOQUES EM DISPUTA.................................... 26
3.3.1 A construo do conhecimento em sade.......................................................... 30
3.4 PARA ALM DA EDUCAO COMO MERA TRANSMISSO DO
CONHECIMENTO: ALGUMAS CONTRIBUIES DE JOHN DEWEY,
PIERRE BOURDIEU E PAULO FREIRE...........................................................
33
3.4.1 John Dewey: a influncia do meio social........................................................... 33
3.4.2 Pierre Bourdieu: as noes de habitus e campo................................................ 35
3.4.3 Paulo Freire: a educao como forma de libertao........................................ 37
3.4.4 Encontros desses autores e suas contribuies para a educao em
sade......................................................................................................................
39
4 MTODO............................................................................................................. 43
4.1 CARACTERIZAO QUANTITATIVA DA PRODUO CIENTFICA
DIVULGADA EM ARTIGOS CIENTFICOS.....................................................
45
4.2 DESCRIO DO CONTEDO DOS ARTIGOS CIENTFICOS
DIVULGADOS EM REVISTAS CIENTFICAS DE SADE COLETIVA.......
46
4.3 ASPECTOS TICOS............................................................................................ 58
5 RESULTADOS E DISCUSSO......................................................................... 49
5.1 A PRODUO ACADMICA SOBRE EDUCAO EM SADE NA APS:
O QUE DIZEM OS NMEROS?.........................................................................
49
5.2 A PRODUO CIENTFICA DIVULGADA NAS REVISTAS DE SADE
COLETIVA NO BRASIL: DESCRIO DOS CONTEDOS..........................
58
6 CONSIDERAES FINAIS.............................................................................. 79
REFERNCIAS................................................................................................ 83
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APNDICE A ARTIGOS SOBRE EDUCAO EM SADE NA APS
NO BRASIL (1990-2015), SEGUNDO AUTOR, TTULO, INSTITUIO,
ANO DE PUBLICAO, REVISTA, IDIOMA E TIPO DE
ESTUDO...............................................................................................................
94
APNDICE B - PROPORO DE ARTIGOS SOBRE EDUCAO EM
SADE NA APS NO BRASIL PUBLICADOS EM TODAS AS
REVISTAS, NO PERODO DE 1990-2015, POR INSTITUIO................
105
APNDICE C PROPORO DE ARTIGOS SOBRE EDUCAO EM
SADE NA APS NO BRASIL PUBLICADOS EM TODAS AS
REVISTAS, NO PERODO DE 1990-2015 DAS REVISTAS DE SADE
COLETIVA POR INSTITUIO.....................................................................
107
APNDICE D - ARTIGOS SOBRE EDUCAO EM SADE NA APS NO
BRASIL (1990-2015), SEGUNDO DEFINIO DE EDUCAO E
EDUCAO EM SADE, AUTORES REFERENCIADOS E ELEMENTOS DE
EDUCAO EM SADE, CONTEXTO, PARTICIPAO SOCIAL,
PROMOO DA SADE E LIMITES E POSSIBILIDADES PARA ATUAO
EM EDUCAO E SADE..........................................................................................
108
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11
1 INTRODUO
O interesse pelo tema deste estudo surgiu durante a experincia como farmacutica
residente em uma unidade de Sade da Famlia, no perodo de 2011 a 2013, na cidade de
Ribeiro Preto SP. Este programa de residncia, do qual fiz parte, objetiva o aprendizado
em servio, possibilitando a atuao nos nveis tercirio, secundrio e primrio da ateno
sade, com nfase neste ltimo, mais especificamente, na Estratgia Sade da Famlia.
Durante este perodo de insero na unidade citada foi observada a dificuldade da
equipe para desenvolver prticas educativas em sade, que alegava falta de interesse das
pessoas em participar de grupos estruturados no modelo de palestras. Com a insero dos
residentes, os grupos que eram oferecidos foram reorganizados e outros foram inseridos,
usando metodologia participativa, a partir de materiais didticos que propiciavam este tipo de
interveno. Os temas abordados nesses grupos eram diabetes mellitus, hipertenso arterial,
dor crnica e alimentao. Alm de um grupo voltado para os cuidadores, que se conformava
como um espao de suporte e apoio para as pessoas que cuidavam de algum familiar enfermo
ou em condies de perda da autonomia.
A partir desta experincia, surgiu, em um primeiro momento, o interesse em
desenvolver um trabalho emprico sobre a educao em sade. Porm, como muitas questes
tericas desta rea ainda so nebulosas, j que este um campo que valoriza a prtica, em um
segundo momento veio a necessidade de maior aproximao com os estudos divulgados sobre
o tema e seus referenciais tericos, para compreender e analisar o processo de educao em
sade na Ateno Primria Sade (APS) no Brasil, atravs dos trabalhos cientficos
divulgados.
Este trabalho traz a Educao em Sade (tambm chamada de Educao para a Sade
ou Educao e Sade) como um conjunto de diversas prticas e saberes, oficiais ou no, que
acontecem no interior do setor sade. Sendo uma interseo entre os setores de Educao e de
Sade, este um campo que mescla disciplinas das cincias sociais e das cincias da sade.
As prticas e propostas deste campo se caracterizam, necessariamente, pelas relaes
estabelecidas entre Estado e Sociedade, j que se constituem como polticas sociais de um
estado, que palco de disputas entre grupos, classes e foras sociais. Alm de se estabelecer
segundo estas relaes, o processo de educao em sade acompanha as concepes de sade
e modelos de ateno vigentes em cada perodo histrico. (SMEKE; OLIVEIRA, 2001;
RENOVATO; BAGNATO, 2012).
-
12
As concepes de sade, por sua vez, esto relacionadas com o modo como a
sociedade se organiza para atender suas necessidades; com o modo como o espao que
contm essa sociedade organizado; com o conjunto de problemas que refletem o nvel de
desgaste, consequente da reproduo e produo social de determinado territrio; com as
concepes elaboradas sobre as causas das doenas e com suas prticas assistenciais.
Concepes de sade podem coexistir, com a presena de modelos antigos para solucionar
problemas atuais. Formas de se pensar sade e de se estruturar modelos de ateno do passado
continuam atuantes no presente, mas com caractersticas diferentes (SABROZA, 2004).
No Brasil, a origem da educao em sade foi marcada por um discurso normatizador,
influenciado por experincias uropeias do sculo XIX, impondo condutas e comportamentos
laicos a serem seguidos, o que diminuiu a fora da concepo religiosa da sade e doena
predominantes at ento. Estas aes eram estruturadas de acordo com a concepo
biologicista, focada nos microorganismos e respectivas doenas por eles provocadas,
desconsiderando as condies de vida dos indivduos. Para isso, a polcia sanitria atuava para
combater as endemias e epidemias de febre amarela que atingiram o Rio de Janeiro, atravs
de mtodos coercivos e impositivos, como a obrigatoriedade da vacinao (VALLA;
GUIMARES; LACERDA, 2005). Porm, essas medidas geraram descontentamento da
populao, que passou a organizar movimentos de resistncia, como a Revolta da Vacina em
1904 e greves dos trabalhadores (SMEKE; OLIVEIRA, 2001).
Em 1917, a greve geral dos trabalhadores possibilitou mudanas no dilogo entre
grupos hegemnicos e subalternos. Com a aprovao de um novo modelo sanitrios em 1923,
alm da Lei Eli Chaves, as iniciativas de controle higinico ganharam espao, com aes de
divulgao de higiene pessoal e pblica, confinamento de leprosos, tuberculosos e sifilticos,
cuidados com a sade infantil e materna. Essas aes, tambm baseadas na concepo
biologicista, trazem a determinao do processo sade/doena para o nvel individual. Assim,
de acordo com essa concepo vigente, os problemas de sade da populao dependeriam da
mudana de comportamentos e hbitos dos indivduos, que eram culpabilizados pela situao
de sade que se encontravam. Ainda de acordo com esse modelo, a educao em sade seria
uma maneira de prescrever aos indivduos condutas de vida consideradas saudveis (SMEKE;
OLIVEIRA, 2001).
Com o fim do Estado Novo (1945), surge a noo de participao da populao nas
estratgias do governo, que estava relacionada necessidade de modernizar a vida das classes
populares do interior do pas (com o processo de urbanizao), atravs de conhecimentos
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13
tcnicos, que transformariam essas pessoas, construindo-se assim, uma nova sociedade, com
menos doenas. (VALLA; GUIMARES; LACERDA, 2005).
No fim da dcada de sessenta, a educao sanitria passa a ser denominada educao
em sade, mas a alterao da nomenclatura no trouxe mudanas significativas nas prticas
exercidas. A educao em sade permanecia com o objetivo de esclarecer a populao sobre
as causas biolgicas das doenas, restringindo-se a questes de higiene e conscientizao
sanitria, com um carter individualista, autoritrio e assistencialista, que desconsiderava a
cultura e costumes dos sujeitos (RENOVATO; BAGNATO, 2012).
Na segunda metade da dcada de 1970, na tentativa de enfrentar e superar os
problemas de sade e ampliar seu acesso e qualidade, grupos populares, estudantes,
pesquisadores e profissionais de sade se organizaram, formando um movimento social para
propor a Reforma Sanitria e a implantao do Sistema nico de Sade (SUS) no Brasil. Este
movimento nasceu da sociedade, foi denominado movimento da Reforma Sanitria Brasileira
(RSB) e suas proposies foram debatidas na VIII Conferncia Nacional de Sade em 1986,
que contou com a participao de aproximadamente cinco mil pessoas. O relatrio originado
nesta Conferncia foi posteriormente usado para a formulao das leis orgnicas da sade
(8.080/90 e 8.142/90) que possibilitaram a implantao do SUS (PAIM, 2009). Dentre as
importantes regulamentaes provenientes destas leis, possvel citar a participao social,
que estabelecida atravs de duas instncias colegiadas, os conselhos e as conferncias de
sade, que conformam um sistema de controle social. Este sistema tem o objetivo de
possibilitar a participao da sociedade no planejamento, execuo e fiscalizao dos
programas de sade (ESCOREL; RASGA, 2012).
Embora as contribuies deste movimento tenham sido de grande importncia, as
polticas de sade implementadas continuaram embasadas pelo modelo biomdico de
assistncia.
Com a implantao do Programa de Sade da Famlia em 1994, as prticas da ateno
primria foram fortalecidas, de acordo com os princpios do SUS. Este programa trouxe
algumas mudanas com relao ao modelo assistencial de sade, incorporando aos
atendimentos prticas de acolhimento, aumento do vnculo com os indivduos atendidos e
uma proposta mais abrangente de Vigilncia da Sade. Porm, mesmo com estes avanos, a
ruptura da hegemonia do modelo biomdico de ateno ainda est longe de se concretizar. A
medicina cientfica continua distanciando o saber tcnico-cientfico e o saber popular,
monopolizando o cuidado mdico, de maneira autoritria e normatizadora (ESCOREl, et al,
2007; STOTZ, et al, 2005).
-
14
Em 2012 foi estruturada a Poltica Nacional de Educao Popular (PNEP-SUS), que
traz pressupostos terico-metodolgicos desse referencial, contemplando dimenses
filosficas, polticas, ticas e metodolgicas, buscando uma perspectiva didtica. So eles, o
dilogo, a amorosidade, a problematizao, a emancipao, o compromisso com a construo
do projeto pedaggico popular e a construo compartilhada do conhecimento (BRASIL,
2012).
Essa poltica considerada um avano para a implementao da Educao Popular em
Sade (EPS), contribuindo para o processo de consolidao deste referencial poltico
metodolgico, que busca romper com o modelo biomdico, ainda predominante nas prticas
de sade. Embora sua implementao seja importante, sua aplicabilidade ainda no est
garantida. Outro ponto a ser discutido que mesmo com a aprovao da PNEP-SUS,
necessrio avaliar se o Estado est realmente em sua defesa e se os estados do pas esto
dispostos e mobilizados para sua implementao. Embora j tenha se estruturado enquanto
poltica pblica, muitos profissionais de sade desconhecem a EPS ou a conhecem
superficialmente. Assim, a aprovao da PNEPS-SUS no deve ser motivo para diminuio
do ritmo da luta por sua consolidao, mas sim um espao de disputa para que seja cada vez
mais fortalecida (BONETTI, 2014).
A trajetria histrica da educao em sade mostra avanos na tentativa de superao
do modelo verticalizado e autoritrio das prticas, fundamentado na pedagogia tradicional que
concentra prticas na transmisso unilateral de informaes sobre agravos e comportamentos
adequados. Essa busca por mudanas nas concepes de educao em sade so embasadas
por princpios da pedagogia crtico-reflexiva e na dialgica, das correntes crticas da educao
(SILVEIRA, 2010).
Diante deste contexto, esse estudo se prope a conhecer a produo cientfica
divulgada sobre educao em sade na Ateno Primria Sade no Brasil, no perodo de
1990 a setembro de 2015 e busca responder s seguintes perguntas:
- Quais as caractersticas da produo cientfica divulgada sobre educao em sade
no mbito da Ateno Primria Sade no Brasil, no perodo de 1990 a setembro de 2015?
- O que dizem os contedos dos artigos cientficos sobre a educao em sade na
ateno primria no Brasil, divulgados nas revistas cientficas de sade coletiva, com relao
definio de educao em sade, contexto, participao social e promoo da sade?
Stotz (2005) aponta que a explicao do processo de sade e doena est sendo
pautada pelo modelo da multicausalidade, porm, as condutas encaminhadas baseiam-se em
sua maioria no sentido da causalidade linear. Desta forma, os problemas de sade so
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15
reduzidos sua dimenso fisiopatolgica e no se considera os fatores sociais e emocionais
envolvidos neste processo. Ainda segundo este autor, a educao em sade segue este padro
linear de compreenso dos problemas de sade, o que acarreta a realizao de prticas
fragmentadas e focalizadas em um agravo apenas. Por no considerar todos os fatores que
influenciam no processo sade e doena, as prticas de educao em sade ficam restritas e
no buscam a compreenso das condies e razes que levam as pessoas a adotarem
determinados comportamentos e atitudes. A conduta tomada nestas atividades muitas vezes,
a prescrio de normas e condutas.
Assim, este trabalho parte do pressuposto de que os estudos sobre educao em sade
apontam que as prticas realizadas na Ateno Primria a Sade so pautadas pelo modelo
biomdico de ateno sade, que no compreende o processo sade e doena como um
fenmeno complexo, que sofre influncia de inmeros fatores. Pressupe-se, tambm, que o
embasamento terico da produo cientfica sobre educao em sade na Ateno Primria
Sade no Brasil pode ser incipiente, na medida em que pode no estar incorporando
referencias tericos importantes do campo da educao e da sade coletiva, podendo haver
uma naturalizao de conceitos que se refletem na estruturao de prticas educativas nas
unidades deste nvel de ateno, onde predominam saber biomdico, que tambm so
predominantes na formao acadmica dos profissionais de sade.
Pressupe-se tambm que dos vrios enfoques de educao em sade vigentes, o mais
utilizado o preventivo, pautado na viso tradicional de construo do conhecimento,
denominado por Paulo Freire como educao bancria. Esse modelo caracteriza-se pela
exposio de contedos pelo educador, cabendo ao educando memoriz-los e fix-los. Neste
processo no h dilogo entre os envolvidos, desconsidera-se a subjetividade e no-
linearidade do processo educativo e os contedos apresentados no condizem com a realidade
social do educando.
Segundo Sabroza (2004), a Sade Pblica est em um momento de crise, com
acmulo de problemas de sade e incapacidade dos modelos assistenciais de resolv-los. O
autor aponta que a anlise dessa crise deve ser realizada atravs de uma perspectiva ampla,
devido complexidade do problema, sem restringir suas causas apenas a questes de
financiamento e gesto. Componentes importantes como modelo assistencial (embasado na
concepo de sade biomdica), descrena na efetividade da ateno mdica, medicalizao
de problemas sociais e reduo da resolutividade dos atendimentos tambm fazem parte das
causas da atual crise.
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16
Com a implantao da Estratgia de Sade da Famlia, questes relacionadas
reorganizao de servios e prticas esto sendo debatidas nos trabalhos acadmicos,
incluindo a importncia da educao em sade nas aes de sade. Ao analisar e discutir
prticas educativas, concepes educativas implcitas so elucidadas e com isso, perspectivas
sobre a relao entre profissionais e comunidade tambm so evidenciadas. Assim, a
educao, alm de fazer parte das prticas, um eixo estruturante de uma proposta de
mudana no modelo de ateno (STOTZ, et al, 2005, p. 10). Neste sentido a educao em
sade ganha destaque como forma de romper com o modelo assistencial vigente, propiciando
a interao dos indivduos, incentivando a participao social e aproximando servios de
sade e comunidade em que atuam.
Diante desta realidade, este trabalho pretende contribuir com a problematizao e
fortalecimento da educao em sade na APS no Brasil, atravs da caracterizao e anlise
das publicaes cientficas divulgadas sobre o tema. Com o mtodo escolhido, pretende-se
colaborar teoricamente com este campo, em que a prtica priorizada.
Este trabalho, ao apontar as concepes de educao em sade presentes nos artigos
analisados, os referenciais tericos utilizados, os elementos considerados pelos autores no
processo educativo e as dificuldades encontradas para realizao destas atividades neste nvel
de ateno, contribui para o planejamento de prticas mais participativas e resolutivas que
considerem os determinantes sociais em sade, os saberes anteriores do indivduo, incentivem
a articulao entre os sujeitos envolvidos e possibilitem a construo crtico-reflexiva e a
problematizao de sua realidade. Pode contribuir tambm para a elaborao de polticas de
sade que amparem e apoiem os profissionais na realizao destas prticas.
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2 OBJETIVOS GERAIS
Conhecer a produo cientfica brasileira divulgada em revistas cientficas sobre
educao em sade no mbito da Ateno Primria Sade do Brasil, no perodo de 1990 a
setembro de 2015.
2.1 OBJETIVOS ESPECFICOS
- Caracterizar a produo cientfica divulgada em artigos cientficos, segundo ano de
publicao, instituio de vinculao dos autores, regio da instituio, revistas em que
foram publicados, idioma da publicao e tipo de estudo.
- Descrever o contedo dos artigos cientficos sobre educao em sade na APS no Brasil,
no perodo de 1990 a setembro de 2015, divulgados em revistas de sade coletiva, com
relao definio de educao em sade, contexto, participao social e promoo da
sade.
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3 REFERENCIAL TERICO
3.1 ATENO PRIMRIA SADE E A ESTRATGIA DE SADE DA FAMLIA
Em 1978, a Conferncia realizada na cidade de Alma-Ata reafirmou a sade como
direito humano fundamental e como uma relevante meta social mundial. Destacou a
responsabilidade que os governos devem ter sobre a sade de suas populaes e a demanda
intersetorial que esta meta requer para que seja alcanada. A Declarao proveniente desta
conferncia tambm estipulou diretrizes e metas para a consolidao da Ateno Primria
Sade (APS), que foi descrita de forma abrangente e com funo central no sistema nacional
de sade. Ainda de acordo com esta Declarao, a APS definida como ateno sade
essencial, que representa o primeiro nvel de contato com o sistema de sade, aproximando as
prticas de sade ao local onde as pessoas residem e trabalham. Neste momento, surgiram
ento, elementos essenciais para sua organizao e estruturao. Entre estes, temos a
educao em sade, preveno de endemias, tratamento apropriado de doenas e danos mais
comuns, dispensao de medicamentos essenciais, promoo de alimentao saudvel e etc
(MENDES, 2012). (GIOVANELLA; MENDONA, 2012)
Os princpios de cuidados primrios provenientes da Conferncia de Alma-Ata
influenciaram a construo do SUS e das polticas de sade no Brasil. No processo de
implantao do SUS, a Ateno Primria Sade foi fortalecida atravs de medidas
governamentais. Mas somente em 1994, com a implantao do Programa de Sade da Famlia
(PSF), o modelo assistencial foi reorganizado nacionalmente e o programa foi tido como
estratgia para estruturar e organizar os servios e aes de sade, sendo este um marco na
incorporao da Ateno Primria nas polticas de sade do pas (ESCOREL et al, 2007).
Este programa estabelece que a equipe da unidade de sade deve ser multiprofissional
e trabalhar em um territrio definido, acompanhando a populao residente na rea. O modelo
tem como proposta atuar sobre os determinantes sociais da sade, desenvolver aes
educativas e intersetoriais de acordo com os problemas de sade identificados, assim como
realizar aes de promoo da sade e de preveno, cuidado, cura, reabilitao e paliao das
condies de sade. (ESCOREL et al, 2007; MENDES, 2012)
O Programa tambm trouxe importantes pontos para reflexo, relacionados
reorganizao de servios e prticas, como por exemplo, o papel da educao nas prticas de
sade. E com isso, alguns problemas relacionados a este tema foram levantados: currculos
dos cursos de sade so inadequados e acrticos, profissionais no possuem preparo para
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enfrentar problemas na comunidade, apresentam dificuldade em estabelecer dilogos e
parcerias e h necessidade de se conhecer os referenciais tericos e metodolgicos para que
prticas pedaggicas transformadoras sejam estabelecidas. (STOTZ, et al, 2005).
Para estruturao da ateno bsica no pas, conforme os princpios e diretrizes do
SUS, alguns programas e estratgias foram implantados ao longo dos anos. Em 1991 surgiu o
Programa de Agentes Comunitrios de Sade (Pacs), de carter emergencial e com o objetivo
de alcanar regies onde a assistncia mdica no estivesse presente. Foi inicialmente
implantado nas regies Norte e Nordeste do pas, com aes de combate e controle epidemia
de clera e outras formas de diarreia, centradas na reidratao oral e vacinao. Porm, como
no havia cobertura mdica em grande parte das localidades atendidas pelo Pacs e com a
atuao de indivduos sem formao na rea da sade, este programa correspondia a um
programa de ateno primria seletiva, com pouca resolutividade (GIOVANELLA;
MENDONA, 2012).
Em 1993 foi estruturado o Programa de Sade da Famlia (PSF), implantado em
municpios pequenos, para atender a demanda reprimida de ateno bsica, mas que no tinha
condies para garantir a continuidade do atendimento. A norma operacional bsica do SUS
de 1996 (NOB SUS 01/96) caracterizou a ateno bsica como primeiro nvel de ateno e
props o PSF como estratgia, a Estratgia de Sade da Famlia (ESF). Esta ltima mudana
possibilitou um carter mais abrangente ateno bsica no pas e mais articulada aos outros
nveis de ateno. Percebe-se que sua implementao esta fortemente associada ao processo
de descentralizao do sistema de sade, na mudana do modelo mdico-assistencial e na
reestruturao da conduo da ateno bsica. Estas aes possibilitaram a ampliao da
cobertura, melhoria dos indicadores de sade e valorizao das prticas de promoo e
preveno de sade.
Embora a estratgia tenha se fortalecido, ainda no est completamente implantada no
pas. Diversas cidades apresentam baixos percentuais de cobertura ou contam com unidades
precrias, sem os servios bsicos disponveis e sem o mnimo de profissionais de sade
preconizado. Esforos tem sido levantados para a estruturao plena desta estratgia, mas
enquanto esta pauta no for uma prioridade governamental poucas mudanas sero possveis.
O Projeto de Expanso e Consolidao da Sade da Famlia (Proesf) de 2003 apoiou e
contribuiu para a ampliao da ESF, com o objetivo de fortalecimento e organizao da
ateno bsica, o que facilitou a adeso da estratgia por grandes centros urbanos, j que a
mesma ainda estava restrita a municpios de pequeno porte (GIOVANELLA; MENDONA,
2012).
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Em 2006, foi editada a Poltica Nacional de Ateno Bsica (Pnab), que traz a ateno
bsica com uma concepo ampliada, sendo colocada como porta de entrada preferencial do
SUS e como base para a estruturao dos sistemas locais de sade. Segundo a Pnab, a Sade
da Famlia tem a funo de reorganizar a ateno bsica, que deve estar integrada rede de
servios de sade municipal (GIOVANELLA; MENDONA, 2012).
Em 2008, passa a ser incentivado o apoio matricial pelos Ncleos de Apoio Sade da
Famlia (Nasf). Estes ncleos so compostos por profissionais de diferentes reas do
conhecimento que devem atuar em parceria com os profissionais das Equipes de Sade da
Famlia, compartilhando prticas em sade para a populao adscrita (GIOVANELLA;
MENDONA, 2012).
3.2 A INFLUNCIA DA PROMOO DA SADE NO CAMPO DA EDUCAO
EM SADE
A conferncia de Alma-Ata, alm de trazer a Ateno Primria Sade e seus
componentes, incentivando sua implantao em pases, como o Brasil, tambm influenciou e
fortaleceu os defensores da Promoo da Sade. Esta proposta teve incio na dcada de 1970,
como uma nova concepo de sade, que no mais se centrava na doena. Este termo j
havia sido citado e definido anos antes, em 1945, pelo mdico canadense Henry Sigerist, que
definiu as quatro tarefas essenciais da medicina: a promoo de sade, a preveno de
doenas, a recuperao dos enfermos e a reabilitao. Segundo o mdico, para se promover
sade seria necessrio garantir boas condies de vida, de trabalho, de educao, de cultura
fsica e tambm formas de lazer e descanso, o que seria conquistado atravs de um esforo
coordenado entre polticos, educadores, mdicos, sindicatos e empresas. Em 1976, o conceito
foi utilizado no modelo da histria natural da doena, desenvolvido por Leavell & Clark.
Neste modelo, a orientao e o aconselhamento em sade do mdico para o indivduo com
extenso para sua famlia, eram considerados aes de promoo da sade (BUSS, 2000).
Corroborando esta proposta, dois acontecimentos internacionais foram relevantes
para sua estruturao: a abertura da China Nacionalista, que mostrou ao mundo a prtica de
cuidados de sade realizados principalmente no ambiente rural, com caractersticas da ateno
primria sade e o Relatrio Lalonde (1974), que deflagrou um movimento canadense que
questionou o efeito e os custos das aes com foco na assistncia mdica e props a
ampliao das aes de Sade Pblica. Este documento introduziu o conceito de
determinantes de sade, composto pelos seguintes grupos: biologia humana, ambiente,
estilo de vida e organizao dos servios de sade. Embora tenha sido alvo de inmeras
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crticas por ser centrado na ao individual, com nfase na mudana de estilos de vida e de
comportamentos, esse relatrio foi um marco histrico no campo da Sade Pblica, pois
questionava o modelo assistencial de sade hegemnico e foi o primeiro documento oficial a
apresentar a denominao de promoo da sade. Segundo Ferreira et al (2007), a nfase
deste relatrio no estilo de vida e nos fatores de risco influenciou a maneira de se
compreender a Promoo da Sade no momento em que esta comeava a aparecer de modo
mais consistente no cenrio acadmico. Estes dois acontecimentos (abertura da China
Nacionalista e Relatrio Lalonde) embasaram movimentos direcionados mudana de
paradigma no campo da sade, o Sade para todos no Ano 2000 e a Estratgia de Ateno
Primria de Sade, ambos formalizados na Conferncia de Alma-Ata, em 1978 (SCOLI;
NASCIMENTO, 2003; HEIDMANN, 2006).
No ano de 1979, o Departamento de Sade, Educao e Bem-estar do governo dos
Estados Unidos da Amrica publicou o relatrio Healthy People 1979, que fez uma
separao entre preveno de doenas e Promoo da Sade e tambm associava esta ltima a
mudanas no estilo de vida, enfatizando os fatores de riscos epidemiolgicos, assim como o
Relatrio Lalonde. Percebe-se que a Promoo da Sade, em seus primrdios estava
fortemente vinculada a uma abordagem comportamentalista e voltada para os fatores de risco
(FERREIRA et al, 2007).
Influenciadas pelo Relatrio Lalonde e pelo Healthy People 1979, as prticas de
promoo da sade ao longo da dcada de 1970 foram realizadas no mbito individual,
centradas na mudana de hbitos, estilos de vida e comportamentos. Segundo Ferreira et al
(2011) esta abordagem da Promoo da Sade chamada de comportamentalista ou
conservadora e um meio de dirigir os indivduos a assumirem a responsabilidade por sua
prpria sade, reduzindo assim, os gastos com o sistema de sade. Cerqueira (apud SCOLI;
NASCIMENTO, 2003) indica o carter limitado destas prticas e ressalta que a culpabilizao
do indivduo por sua condio de sade deixa de lado a determinao social do processo
sade e doena e retira a responsabilidade dos governantes pela situao de sade da
populao (SCOLI; NASCIMENTO, 2003).
Os limites tericos e prticos desta proposta behaviorista impulsionaram o surgimento
de outra perspectiva, denominada Nova Promoo da Sade, na dcada de 1980.
Compartilhando a crtica ao modelo biomdico da proposta anterior, esta concepo veio com
o objetivo de ser contrria ao enfoque individual e de culpabilizao das pessoas por sua
situao de sade, baseando-se em uma perspectiva socioambiental. Esta proposta aponta
como pr-requisitos fundamentais para a sade a justia social, a equidade, a educao, o
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saneamento, a paz, a habitao, o salrio digno, a estabilidade do ecossistema e a
sustentabilidade dos recursos naturais (CARVALHO, 2007).
A Primeira Conferncia Internacional sobre Promoo da Sade, realizada no Canad
em 1986, possibilitou a discusso e embasamento terico desta nova perspectiva. A Carta de
Otawa, fruto desta Conferncia, foi um marco importante para a promoo da sade. O
documento ressalta a intersetorialidade, apontando a incapacidade do setor sade de
assegurar, de maneira isolada, condies sanitrias satisfatrias. Desta forma, segundo a
declarao, o setor sade deve interagir com a poltica, economia, meio ambiente e fatores
sociais, culturais e biolgicos (SCOLI; NASCIMENTO, 2003).
A carta define Promoo da Sade como processo de capacitao da comunidade
para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e sade, incluindo uma maior participao no
controle deste processo. Para atingir um estado de completo bem-estar fsico, mental e social
os indivduos e grupos devem saber identificar aspiraes, satisfazer necessidades e modificar
favoravelmente o meio ambiente. De acordo com a carta, a promoo da sade vislumbra o
alcance da equidade em sade e suas aes tem como objetivo reduzir as diferenas nos
estado de sade dos indivduos e assegurar oportunidades e recursos de maneira igualitria
para que todos se capacitem e realizem seu potencial de sade (OPAS, 1986).
Este documento associa a promoo de sade a um conjunto de valores: qualidade de
vida, sade, solidariedade, equidade, democracia, cidadania, desenvolvimento, participao e
parceria (BUSS, 2000). A participao ativa da populao apontada na Carta de Ottawa
como estratgia fundamental para operacionalizar a promoo da sade. Para isso, so
propostas aes que favoream o fortalecimento da atuao da comunidade, visando um
maior controle das pessoas sobre sua sade e o meio em que vivem. O documento traz como
estratgias para efetivar a participao o suporte social aos indivduos, atravs do repasse de
informaes, atividades voltadas para a educao em sade e apoio financeiro adequado
(CARVALHO, 2007).
Segundo Heidmann (2006), neste documento produzido em Ottawa, a educao em
sade faz parte da promoo da sade, que contempla cinco estratgias de ao: polticas
pblicas saudveis, ambientes favorveis sade, reorientao dos servios de sade, reforo
da ao comunitria e desenvolvimento de habilidades pessoais. Os autores ressaltam que
muitos avanos foram obtidos com esta proposta, porm, ainda prevalece uma viso
simplificada desta, com prioridade para mudana de estilos de vida, aes embasadas pelo
modelo tradicional de educao e prticas preventivas compreendidas como sinnimo de
promoo da sade.
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Stotz e Arajo (2004) atentam para o fato de que esta Conferncia, realizada em
Ottawa, contou apenas com a participao de pases desenvolvidos e alguns poucos
perifricos, sendo que o Brasil no esteve presente. Como consequncia desta conformao,
Carvalho (2007) relata que a Promoo da Sade, neste perodo, buscava respostas para os
problemas de sade dos pases desenvolvidos, que diferente dos pases perifricos, j
contavam com uma estrutura de servios assistenciais de melhor qualidade, podendo assim,
focar em outras prioridades para o setor sade.
Ferreia et al (2011) apontam a ambiguidade da proposta da Nova Promoo da Sade,
j que embora esta atenue a nfase da abordagem comportamentalista na mudana de estilos
de vida, ainda incipiente como instrumento de transformao social.
Depois de Ottawa, conferncias regionalizadas foram realizadas em Jacarta, Port Spain
e Bogot, contando com a presena de pases perifricos. O Brasil foi representado nesta
ltima e fez parte dos signatrios de sua declarao, a Carta de Bogot (STOTZ; ARAUJO,
2004).
Segundo material elaborado pelo Ministrio da Sade que rene os documentos de
referncia resultantes dos espaos de construo e discusso desta proposta (As Cartas da
Promoo da Sade), a Conferncia Internacional de Promoo da Sade realizada em 1992,
na Colmbia, teve carter regionalizado e seu foco foi a Amrica Latina, apontando
estratgias para recriao da proposta na regio. A declarao assinada neste espao traz
como questo central a relao mtua entre sade e desenvolvimento. Aponta que a regio
debatida enfrenta importantes problemas relacionados a condies de vida, aumento de riscos
para sade e diminuio de recursos para enfrent-los. Assim, segundo este documento, a
promoo da sade deve se empenhar na transformao desta situao, com o intuito de
conciliar os interesses econmicos aos sociais (BRASIL, 2002).
O documento apresenta cinco princpios para a proposta de promoo da sade na
regio. So eles: a superao das desigualdades econmica, social, poltica, cultural e
ambiental, assim como as relacionadas ao acesso, cobertura e qualidade dos servios de
sade; novas alternativas de prticas de Sade Pblica; reafirmao da democracia; conquista
da equidade e desenvolvimento integral e recproco dos indivduos e sociedade (OPAS,
1992).
A Carta de Bogot aponta a necessidade de mudana nas aes de sade pblica e
ressalta a participao ativa da populao como forma de mudar suas condies sanitrias e
seus modos de vida, visando criao de uma cultura de sade. De acordo com esta
declarao o repasse de informao e a promoo do conhecimento constituem valiosos
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instrumentos para a participao e mudanas dos estilos de vida nas comunidades (p.46).
Assim, a carta apresenta como um de seus compromissos aumentar a capacidade que os
indivduos tem de tomar decises referentes sua vida e assim optar por estilos de vida
saudveis (BRASIL, 2002).
De acordo com Stotz e Arajo (2004), os compromissos e estratgias presentes na
Carta de Bogot so amparados por referenciais behavioristas e responsabilizam o indivduo
por sua condio de sade, sem nenhum tipo de problematizao. Segundo os autores, a carta
ao pressupor que as pessoas no tem uma cultura de sade e que precisam se conscientizar
sobre sua importncia, nega o saber popular e torna-se uma proposta autoritria.
A Nova Promoo da Sade traz como eixo central o empowerment um termo que,
embora ainda indefinido e nebuloso, considerado por alguns autores como processo de
capacitao dos indivduos e comunidades para assumirem maior controle sobre os fatores
pessoais, scio-econmicos e ambientais que afetam a sade (p.108). Segundo autores desta
corrente, a educao e disseminao de informao esto relacionadas ao empowerment e so
fundamentais para tomada de deciso e para a prtica da promoo de sade. Labonte (apud
SCOLI; NASCIMENTO, 2003) afirma que este conceito/estratgia est relacionado
mudana do sentimento de impotncia nos indivduos, devido distribuio desigual de poder
na sociedade. Assim, devolver o poder de deciso para os indivduos seria a base desta
abordagem da promoo da sade.
Scoli e Nascimento (2003) trazem que o empowerment deve estar aliado
participao social, pois a garantia de acesso informao e conhecimento sem ampliao da
capacidade de controle e mudana pelo indivduo, pode acarretar aumento da ansiedade e do
sentimento de impotncia. Por isso, segundo os autores, espaos que estimulem e reforcem a
participao social devem ser priorizados nas aes de promoo da sade.
O conceito de empowerment engloba noes de diferentes campos do conhecimento, o
que gera inmeras interpretaes que dificultam sua utilizao. A traduo desta palavra para
o portugus motivo de controvrsia entre autores. Enquanto alguns preferem us-la em
ingls, devido inexistncia de um sinnimo fidedigno, outros autores optam pelo uso da
palavra empoderamento, mesmo que este apresente um significado distinto do termo na
lngua inglesa (SCOLI; NASCIMENTO, 2003; CARVALHO, 2004).
Por ser um conceito ainda em construo, h dificuldades para sua utilizao e
coexistncia de distintas noes sobre seu significado dentro da proposta da Promoo da
Sade. Dentre estas, est o empowerment psicolgico, que definido como o fortalecimento
do controle do indivduo sobre a prpria vida, ou seja, ele passa a ser caracterizado como
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confiante e independente, com poder sobre si mesmo e que assim, consegue se comportar
de determinada maneira e influenciar o meio em que vive. De acordo com esta concepo,
esta conduta no depende da participao do indivduo em aes polticas coletivas. Por ser
voltada para o mbito individual, ignora o contexto poltico e histrico em que as pessoas
esto inseridas e no problematiza a origem dos problemas enfrentados. As estratgias
formuladas com base nesta noo visam ao fortalecimento da auto-estima e da capacidade de
adaptao ao meio, com destaque para prticas educativas que objetivam a formao de
conscincia sanitria nas pessoas (CARVALHO, 2004; CARVALHO, 2007).
Carvalho (2004) aponta que esta noo de empowerment, por no discutir problemas
estruturais da sociedade, favorece a manuteno do status quo podendo funcionar como um
mecanismo de regulao social. A ideia de responsabilidade individual embutida neste
conceito pode servir de justificativa para diminuio de aes e polticas sociais, eximindo os
governantes de suas obrigaes perante a sociedade.
As crticas e limitaes deste termo impulsionaram a elaborao de outra abordagem,
o empowerment comunitrio, que vem como proposta para enfrentamento das determinaes
sociais e para redistribuio de poder na sociedade. Carvalho (2007) alerta que o poder um
recurso no-material, que por estar distribudo em nveis diferenciados entre os grupos da
sociedade, torna-se uma categoria conflituosa. De acordo com esta noo de empowerment,
essa relao de poder desigual deve ser colocada em questo e isso s possvel atravs da
discusso e problematizao dos macro e microdeterminantes sociais, que influenciam e
condicionam a vida das pessoas. O eixo estratgico desta proposta a participao dos
indivduos nos processos decisrios, com o objetivo de mudana, conquista e garantia dos
direitos sociais. Com essa participao busca-se o aumento do controle sobre a vida pelos
indivduos e comunidades, melhoria da qualidade de vida, justia social e eficcia poltica. Os
autores dessa corrente acreditam que as pessoas devem ser apoiadas para tomarem as decises
que acham corretas e assim sero capazes de reconfigurar o contexto social no qual vivem, o
que traz resultados positivos para sua sade.
De acordo com Stotz e Arajo (2004), o conceito de empowerment introduz o
paradoxo de que grupos que usufruem o poder possam criar condies para grupos excludos
socialmente conquistarem o poder. Os autores questionam se pessoas que dispem de poder
seriam capazes de transferi-lo aos oprimidos e caso isso fosse possvel, contestam como mais
adequado o uso da categoria participao ao invs de empowerment. Desta forma, a promoo
da sade atuaria com os movimentos populares nos conflitos da sociedade, descobrindo novas
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habilidades e competncias no decorrer da ao coletiva, atravs do processo de
conscientizao.
O significado do conceito de Promoo da Sade ainda desconhecido por alguns
profissionais e segundo Heidmann e colaboradores (2006), existe confuso entre os termos
promoo e preveno, que so muitas vezes usados como sinnimos nas prticas dos
servios de sade. Ainda h prevalncia de atividades que objetivam a mudana de
comportamentos e de estilo de vida, pautados na sade como ausncia de doena. Os autores
sugerem que os profissionais devem compreender a ampliar sua viso sobre a promoo da
sade, atuando ativa e criticamente na construo e reformulao desta proposta.
Problematizam a elaborao de polticas pblicas saudveis, que uma das estratgias da
Promoo da Sade e trazem que essa elaborao deve ser pautada em uma perspectiva
complexa, compreendendo a sade como um conceito amplo e entendendo o conceito de
Estado e seu papel na sociedade. De acordo com estes autores, a sade no pode ser
compreendida como ausncia de doena, focada no indivduo e na mera mudana de
comportamentos, sendo necessrio considerar a determinao de diversos fatores nesse
processo. E completam apontando que a elaborao destas polticas no deve ser uma
iniciativa apenas do Estado, deve contar com a participao da sociedade civil, setores
pblicos e privados.
J Stotz e Arajo (2004) apontam problemas relacionados estruturao e
embasamento da proposta, principalmente no que est documentado na Carta de Bogot. Os
autores relatam que o discurso presente no Brasil refere-se ao que foi assinado na Conferncia
de Ottawa, porm as prticas esto estruturadas com o documento da Conferncia da
Colmbia, que revestido de autoritarismo, legitimao de aes behavioristas, com
estratgias de culpabilizao dos indivduos, sem nenhuma problematizao e preconizando
uma nova cultura de sade para a populao. Por isso, de acordo com os autores, a educao
em sade ganhou grande destaque nos programas de promoo, com cursos de capacitao e
treinamentos baseados no modelo tradicional de educao.
3.3 EDUCAO EM SADE: ENFOQUES EM DISPUTA
Stotz (1993) relata que o mbito da educao em sade amplo, incluindo mtodos
para garantir a adeso ao tratamento e para prevenir comportamentos de risco. O autor alerta
para o descaso da maioria dos profissionais dos servios em relao aos fatores e condies
(que esto muitas vezes fora da rea da sade) que levam os indivduos a adotarem ou no
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esses comportamentos. As situaes injustas, oriundas da sociedade capitalista refletem no
setor sade, cabendo aos servios dessa rea compensarem as contradies sociais, levando
legitimao deste modelo econmico.
Outra considerao deve ser feita ao se analisar as prticas de educao em sade
ainda vigentes, em que os problemas de sade so reduzidos a uma conceituao
biopsicolgica e o doente torna-se um desviante da suposta normalidade instituda e passa a
ser culpabilizado pelo seu sofrimento. Nesta perspectiva, os problemas de sade passam a ser
considerados apenas no mbito individual e desconsidera-se sua forte relao com a
determinao social. (STOTZ, 1993)
Stotz (1993) caracteriza alguns enfoques de educao em sade, que esto em disputa
no campo terico e mesclados na prtica. O enfoque predominante nas unidades durante anos
tem sido o preventivo, que considera os comportamentos individuais como fatores de risco
(dieta, sedentarismo, tabagismo, etc). Este enfoque orientado pelo modelo mdico e
frequentemente usa o repasse de informaes como metodologia. Percebe-se que este modelo,
que tradicional, se mantm hegemnico, ditando e impondo comportamentos e hbitos
considerados mais saudveis. Assim, ao repassar informaes sobre riscos sade ao sujeito,
a responsabilidade pela sade ou culpa pela doena repassada a este tambm. Este enfoque
desconsidera a subjetividade do indivduo, suas crenas e valores e tambm os determinantes
sociais de sade, que requerem aes que no esto ao alcance do indivduo para sua soluo
(VASCONCELOS, 2001).
Smeke e Oliveira (2001) trazem que este enfoque de educao em sade cria uma
nova subordinao, a medida que as pessoas passam a se identificar com essas informaes,
de maneira individualista. Desta forma, passam a requerer mais medicalizao, maior nmero
de unidades de pronto-atendimento. Esta forma de se pensar a sade, embasada pelo modelo
de Histria Natural da Doena ainda muito utilizado, fazendo parte tanto do senso comum,
como dos profissionais de sade.
O enfoque da escolha informada tem como princpio a compreenso da situao de
sade pelo indivduo, atravs da informao dos provveis riscos a que est exposto. Existe a
preocupao com as crenas e valores das pessoas relacionados sade, com a discusso de
suas implicaes na vida do indivduo (STOTZ, 1993).
O enfoque do desenvolvimento pessoal atua com o objetivo de aumentar as
potencialidades dos indivduos, desenvolvendo habilidades para controlar a vida. Esse modelo
desconsidera as causas externas que influenciam as condies de vida e sade das pessoas
(STOTZ, 1993). Embora este enfoque contribua para o fortalecimento da autonomia do
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indivduo, secundariza questes de cunho poltico-econmico. Constitui-se ento, como um
primeiro passo para prticas mais libertadoras a autnomas (VASCONCELOS, 2001).
Estes dois ltimos enfoques partem do princpio que os indivduos so livres e
possuem condies para fazerem suas escolhas. Porm, segundo Stotz (1993), a maioria da
populao de pases como o Brasil, no esto em condies de fazer escolhas informadas.
Estes enfoques transferem para o indivduo a responsabilidade por problemas, que apresentam
causas de carter social, relacionadas estrutura da sociedade.
O enfoque radical vem para superar os enfoques anteriores e parte do pressuposto que
as condies e a estrutura social so as causas dos problemas de sade e a educao deve ter
como objetivo facilitar e incentivar as lutas polticas e movimentos reivindicatrios. Atravs
deste modelo, o indivduo desenvolve conscincia sobre seus limites e possibilidades,
enquanto sujeito, para promover mudanas polticas, econmicas e sociais. Para isso,
necessrio o envolvimento do Estado atravs de intervenes legislativas e normativas a fim
de transformar as condies que geram problemas. Porm, esse modelo desconsidera o
sofrimento individual, ao priorizar o carter social da enfermidade. Por isso, esta abordagem
requer a contemplao da dialtica do individual e do coletivo. (STOTZ, 1993). Segundo
Smeke e Oliveira (2001), para que esse enfoque no passe a ser uma prtica que somente
convena os indivduos da necessidade de transformaes macrossociais, polticas e
econmicas, a relao educador/educando deve ser revista, passando a ser pautada em uma
perspectiva dialgica e participativa.
O enfoque da educao popular e sade toma como ponto de partida os saberes
anteriores dos indivduos. (STOTZ, 1993) Parte do princpio de que ensinar no transferir
conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produo ou a sua construo
(FREIRE, 2011b, p.24), sendo que o processo educativo passa a ser uma relao de troca e
dilogo entre educador e educando, possibilitando uma construo compartilhada do
conhecimento.
Esta forma de interveno tem como elemento central a problematizao a partir das
concepes, saberes e representaes sociais da populao, investindo em um indivduo mais
crtico e questionador, cabendo ao educador em sade facilitar as reflexes do sujeito sobre a
realidade. Tem como pressuposto a concepo ampliada de sade (oposta ao modelo
biomdico vigente), considerando os determinantes sociais de sade no entendimento do
processo sade e doena (BRASIL, 2012; BONETTI, 2014).
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A educao popular comeou a se estruturar como referencial poltico-pedaggico na
dcada de 1950, com princpios motivadores ligados a questes populares e embasados na
pedagogia desenvolvida por Paulo Freire (BRASIL, 2012).
Vasconcelos aponta que em 1970, diversos profissionais de sade insatisfeitos com as
prticas mercantilizadas e fortemente embasadas no modelo biomdico, iniciaram uma
atuao mais prxima e significativa junto s classes populares, indo at periferias de grandes
cidades e regies rurais. A reorientao das prticas destes profissionais foi feita atravs da
interao com movimentos sociais e da convivncia com grupos populares, que possibilitou
entender as formas e o significado do adoecimento dessas pessoas e trazer novas maneiras de
enfretamento dos problemas de sade encontrados. Nessas experincias a Educao Popular
era a metodologia utilizada, se consolidando como um instrumento fundamental, que passou a
se constituir em outros servios de sade, reorientando prticas, aproximando profissionais de
sade e comunidade e rompendo com a tradio autoritria da Educao em Sade. . A
passividade frequente de processos pedaggicos tradicionais deixada de lado e o processo de
discusso passa a ser horizontal e dialgico (VASCONCELOS, 2001).
A Educao Popular, em sua origem, apresenta um compromisso com os mais pobres,
com a emancipao humana. E, mais ainda, um compromisso poltico com as classes
populares, objetivando melhores condies de vida e sade, luta pela cidadania e pelo
controle social. A partir da problematizao da realidade, atua como instrumento de crtica,
evidenciando situaes e grupos que estavam invisveis, favorecendo, assim, a mudana
social necessria (BONETTI, 2014).
A educao popular vem como forma de superar o modelo bancrio de educao,
explicado por Paulo Freire. Constitui-se como uma contraposio s prticas autoritrias e
normatizadoras presentes na gesto, no cuidado e na educao em sade. Contribui tambm
para a reflexo sobre a construo de um outro projeto de sociedade, pautado na
solidariedade, na integralidade e em uma viso de mundo mais humana e coletiva (BONETTI,
2014).
Outro ponto importante a ser destacado a hegemonia do modelo biomdico no
campo da sade. Este modelo continua dominante desde a formao em sade e continua
sendo um entrave para consolidao de formas de entendimento do processo de sade e
doena embasadas na concepo ampliada da sade. Assim, modelos pautados em uma
perspectiva mais integradora e participativa, como a EPS, ficam dispostos em planos
subjacentes.
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Dentro do enfoque da educao popular, surge o termo construo compartilhada do
conhecimento, que parte de uma crtica cincia tradicional e pautada na experincia
cotidiana dos indivduos envolvidos. Esta proposta foi desenvolvida pelo Ncleo de
Educao, Sade e Cidadania da Escola de Sade Pblica, da Fundao Oswaldo Cruz, no
Rio de Janeiro, no incio da dcada de noventa, com o objetivo de possibilitar maior poder de
interveno das pessoas nas relaes e processos que influenciam a qualidade de suas vidas.
um processo de conhecimento desenvolvido a partir da prtica, ao longo de uma vivncia
(CARVALHO et al., 2001).
Essa proposta vem como uma alternativa cincia tradicional e tem como objetivos
compreender as representaes de sade dos indivduos, oferecer subsdios s organizaes
sociais com relao s suas reivindicaes do setor sade e compreender o papel das
organizaes locais da sociedade civil na formulao das polticas de sade. Desconstruindo a
noo de controle e poder que ocorre em alguns servios de sade, essa metodologia
considera o saber tcnico e o popular nas prticas, propondo uma relao dialtica e um
processo comunicacional entre mediadores do Estado e classes populares. Esses
conhecimentos no so hierarquizados e se relacionando a partir de um interesse comum,
permitindo um enfrentamento coletivo dos problemas. Sujeitos com diferentes saberes
interagem em um processo comunicacional e pedaggico, objetivando o enfrentamento e
soluo de questes significativas (CARVALHO et al., 2001; VALLA; GUIMARES;
LACERDA, 2005).
Para isso, necessrio atentar para o que as pessoas esto falando e para que sua fala
seja compreendida necessrio entender suas razes populares, o lugar onde moram e sua
relao de poder com os grupos dominantes. Isso necessrio, pois, profissionais e populao
no vivenciam uma experincia da mesma maneira. Essa vivncia influenciada pela
concepo de mundo de quem a vive (VALLA, 1996).
3.3.1 A construo do conhecimento em sade
Para nossa sociedade, a cincia a nica instituio capaz de legitimar o
conhecimento. A tomada de decises sobre problemas da sociedade tradicionalmente
amparada nas verdades legitimadas cientificamente por profissionais, tidos como
intelectuais, que so vistos como autoridades com sabedoria para embasar decises pblicas.
De encontro a essas necessidades, a Cincia Ps- Normal se prope a ultrapassar e
complementar a cincia tradicional, em que a mera curiosidade dos especialistas e os
interesses polticos e do setor privado estabelecem os problemas a serem estudados, de forma
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restrita. A Cincia Ps-normal traz que os problemas a serem enfrentados so criados por
fatos incertos, valores controversos, com apostas elevadas e decises urgentes. Assim, para se
adequar s novas necessidades, a Cincia Ps-normal prope um novo tipo de prtica que
integre os saberes cientficos dos especialistas e os saberes dos leigos (pessoas no
especializadas), que com seus conhecimentos enriquecem e complementam o processo de
investigao cientfica, estruturando a chamada comunidade ampliada de pares
(FUNTOWICZ; RAVETZ, 1997).
Outro conceito de produo do conhecimento identificado por Gibbons (apud
PELLEGRINI, 2004), denominado socialmente distribudo, que difere em vrios aspectos
da viso tradicional de produo do conhecimento e se assemelha Cincia Ps-normal. Este
novo modo desenvolvido atravs da integrao entre diversas instituies, que formam uma
rede de colaborao atravs das novas tecnologias de informao e comunicao. A agenda de
pesquisa definida por vrios atores (especialistas, usurios, financiadores) com interesses
comuns, em espaos de interao chamados contextos de aplicao. Estes espaos so
cenrios de aprendizagem, conformados por relaes fluidas e regulares e que permitem a
aproximao dos envolvidos atravs uma prtica comum de abordagem transdisciplinar. Esta
forma de construo coletiva possui semelhanas com a comunidade ampliada de pares
proposta pela Cincia Ps-normal. Diferente da perspectiva de produo do conhecimento
tradicional, o modo socialmente distribudo divulga seus trabalhos por variados meios, a fim
de que todos os interessados possam ter acesso aos resultados (PELLEGRINI, 2004).
Oliveira (2000) a partir da leitura de Vaz (1991) aponta que em uma viso crtica
sobre o processo de construo do conhecimento, h a necessidade de se romper a dicotomia
conhecedores e ignorantes. Embora ocorra uma disputa entre estas perspectivas, a sociedade
ainda encontra-se presa viso tradicional, que pautada na transmisso de informaes, em
que a linguagem considerada um meio. Esta perspectiva compreende a existncia de um
mundo objetivo e busca verdades que representem este mundo. Estas verdades quando
reconhecidas como legtimas devem ser acatadas e obedecidas por todos. Nesta perspectiva,
quem detm conhecimentos e compreende essas verdades possui acesso privilegiado ao
mundo verdadeiro. Ao contrrio, quem no detm conhecimento, no possui esse acesso.
Esta dicotomia formada entre conhecedores e ignorantes exerce forte influncia nas relaes
humanas e polticas. Aos primeiros, cabe a transmisso das informaes. Aos outros cabe a
obedincia e submisso.
A viso crtica sobre o processo de construo do conhecimento reconhece e admite a
legitimidade de diversos conhecimentos e conhecedores, de acordo com sua realidade. A
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realidade de cada um, por sua vez, criada a partir da linguagem e das relaes humanas e
construda a partir das vivncias de cada indivduo. Nesta perspectiva no h controle e
submisso, mas sim saberes que so compartilhados e assim, potencializam a ao coletiva e
individual. (OLIVEIRA, 2000).
O quadro 1, elaborado por Oliveira (2000), a partir da leitura de Vaz (1991), traz uma
comparao entre estas perspectivas.
Quadro 1: Comparao entre as perspectivas tradicional e crtica do processo de
construo do conhecimento
VISO TRADICIONAL VISO CRTICA
I Viso de Mundo
existe um s mundo objetivo que pode ser conhecido atravs da captao de informaes
e no qual nos comunicamos pela transmisso
de informaes. Assim, a percepo dos
indivduos no mundo como habitantes no
mundo, independe de como ele o descreve
nossas realidades so criadas por cada um de ns a partir de nossa relao com os outros que habitam
nosso mundo. Nossas percepes de mundo so to
variadas quanto nossas formas de descrev-los. A
realidade que cada sujeito percebe depende de sua
histria/ experincia de vida
II. Funo da Linguagem
A linguagem apenas um meio para a difuso de informaes sobre a verdade e ela, a
linguagem, que nos permite participar do
mundo atravs da transmisso e recepo
(consumo) de informaes
A linguagem e as explicaes que ela permite construir so fenmenos essencialmente sociais, pois
dependem das aes consensuais entre dois ou mais
observadores. A linguagem, portanto, faz parte do
processo de construo do conhecimento, na medida
que integrante da explicao da realidade de cada
sujeito.
III. Conseqncia prtica
quem acumula mais informaes sobre a verdade tem mais conhecimento e est mais
autorizado a transmitir as informaes e de
tomar decises sobre Ele (o mundo
verdadeiro). Resta aos indivduos menos
informados acatar e obedecer aos
conhecedores.
admite-se a legitimidade de diversos conhecimentos e conhecedores, de acordo com suas realidade (como
percebem e descrevem o mundo).
busca-se incessantemente a verdade, uma s verdade que represente o mundo o mais
verdadeiramente possvel. Esta verdade deve
ser acatada e obedecida, levando ao
estabelecimento de relaes humanas baseadas
no controle e na submisso
um grupo de privilegiados que tem acesso s informaes consideradas legitimas para
representar a verdade acabam por impor suas
decises e normas utilizando-se de um discurso
considerado competente.
busca-se despender esforos no sentido de melhorar as condies de convivncia com outros seres
humanos, com outros seres vivos e objetos com os
quais compartilhamos nossa existncia.
a melhoria das condies de convivncia possibilita o compartilhamento de distintos conhecimentos que
podem potencializar a ao coletiva e individual.
Reconhecemos a necessidade de conviver/
compartilhar para conhecer.
Elaborado por Oliveira (2000) a partir de Vaz (1991)
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Essas formas de transmisso do conhecimento no se restringem aos espaos
acadmicos e podem ser observadas no campo da educao em sade. Prticas educativas
pautadas na viso tradicional, com transmisso linear de informaes, prescrio de
comportamentos, aes de controle e vigilncia so comuns nesse campo. E muitas vezes so
marcadas pela tradio iluminista, que apenas considera o que tido como racional e no
valoriza os saberes dos sujeitos, sua realidade e suas vivncias. Ficam restritas a aes de
conscientizao, sensibilizao e transmisso (OLIVEIRA, 2000).
A comunidade ampliada de pares, proposta pela perspectiva da cincia Ps-normal,
pode contribuir para estruturao de prticas de educao em sade transformadoras, que
requerem no apenas as informaes tcnicas repassadas por profissionais, mas sim dilogo e
troca de conhecimentos entre os envolvidos para construo de solues para os problemas de
sade existentes.
As vises de processos de construo do conhecimento apresentadas contribuem para
a reflexo das aes de educao em sade, alm de proporem formas de solucionar os atuais
problemas enfrentados pela sociedade. Abrem oportunidades para a superao das iniquidades
de sade, j que ampliam a participao e o acesso informao de grupos que at ento
ficavam s margens dos processos de produo do conhecimento, tornando-os sujeitos da
tomada de decises de questes de interesse pblico, fortalecendo assim, o processo
democrtico.
3.4 PARA ALM DA EDUCAO COMO MERA TRANSMISSO DO
CONHECIMENTO: ALGUMAS CONTRIBUIES DE JOHN DEWEY, PIERRE
BOURDIEU E PAULO FREIRE
Os autores aqui apontados so do campo da educao e da sociologia e seus estudos
trazem elementos importantes para pensar e analisar o processo de construo do
conhecimento. Os conceitos e teorias de cada um deles podem contribuir tambm para a
anlise das atividades de educao em sade, possibilitando a reflexo sobre essas prticas e
planejamento das mesmas a partir de perspectivas pedaggicas que no consideram e
educao como mera transmisso de conhecimentos, centram sua abordagem no educando,
nas suas vivncias e no seu contexto social, considerando a interdependncia entre indivduo e
sociedade.
3.4.1 John Dewey: a influncia do meio social
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John Dewey (1859-1952) foi um filsofo e educador estadunidense. Escreveu sobre
lgica, tica poltica, arte e religio, mas ficou famoso por seus estudos sobre educao. No
sculo XX foi considerado o mais importante pensador da educao nos Estados Unidos
(MOREIRA, 2002).
A filosofia da educao de Dewey traz a relao entre indivduo e sociedade, como
uma importante diferena entre a escola nova e a escola tradicional. O autor busca ampliar a
ideia de educao e contribuir para elaborao de um modelo pedaggico que no se paute na
mera transmisso de conhecimentos. Usa como instrumento a noo de hbito (que ser
explicada a frente), que rompe dicotomias, funcionando como ponto de interseo entre corpo
e mente, material e simblico, indivduo e sociedade (MOREIRA, 2002).
A educao uma forma de garantir a continuidade da vida humana. Atravs da
comunicao de ideias, expectativas, objetivos e opinies entre os indivduos mais experientes
do grupo e os mais novos, a vida social persiste. Esse processo denominado socializao e
garante a reproduo e renovao do que j foi acumulado anteriormente. Segundo Dewey,
esse processo de renovao dos indivduos menos experientes do grupo (ou seja, a educao)
uma incentivao, um cultivo. Ainda de acordo com o filsofo e pedagogo importante
compreender o modo como os mais jovens assimilam os conhecimentos dos mais experientes
(DEWEY, 1959; MOREIRA, 2002).
Com o desenvolvimento das civilizaes e o acmulo de conhecimentos decorrentes
do processo de renovao da sociedade, o aprendizado a partir de atividades com os mais
experientes do grupo torna-se difcil e h a necessidade da criao de instncias de
socializao para dar continuidade vida social. A partir desta passagem para uma viso mais
formal da educao vem a preocupao de Dewey, que o isolamento da escola da vida social
dos alunos. Assim, estabelecer o equilbrio entre vida social e educao e entre formao do
hbitos e transmisso de conhecimentos um dos desafios para uma nova escola
(MOREIRA, 2002).
Analisando as formas pelas quais os conhecimentos dos mais velhos so assimilados
pelos mais jovens, Dewey considera que o ambiente facilita ou no este processo. A formao
do indivduo influenciada pelo meio em que est inserido, ou seja, pelas coisas, pessoas e
relaes estabelecidas. As aes de um indivduo esto relacionadas com a dos outros, o que
constitui a noo de meio social. Assim, o modo de proceder de cada indivduo, influenciado
pelo meio, possibilita a adoo de disposies mentais para a ao, o que Dewey denominou
de hbitos. Mais uma vez surge a importncia de compreender o modo como o meio social
desenvolve e influencia os mais jovens (DEWEY, 1959; MOREIRA, 2002).
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Para Dewey (1959), o meio social cria as atitudes mental e emocional do
procedimento dos indivduos (p.17) direcionando e estimulando determinadas atividades.
Assim, o ambiente social exerce funo educativa e formativa mesmo sem inteno. A
influncia do ambiente social a primeira fase da educao de um indivduo, iniciando-o nos
costumes e crenas de seu grupo social. Assim, a educao ocorre sempre por intermdio do
ambiente e, portanto, agir sobre o meio uma forma importante de se influir na educao dos
jovens do grupo. Cabe escola coordenar as influncias do diferentes meios sociais que os
indivduos vivem, integrando todos esses sujeitos, vindos de ambientes diferentes.
3.4.2 Pierre Bourdieu: as noes de habitus e campo
Pierre Bourdieu (1930-2002) foi um socilogo francs de grande importncia para a
Sociologia do sculo XX. Desenvolveu estudos em diferentes campos das Cincias Sociais,
sendo sua obra sobre Educao de grande relevncia (SILVA, 2008).
Bourdieu (1989) utiliza a noo de habitus (que se assemelha ao hbito de Dewey),
retomada do conceito aristotlico de hexis, como forma de superar o estruturalismo, mas sem
cair na ideia da conscincia e do inconsciente. O habitus o conhecimento adquirido,
incorporado ao longo do tempo, que influencia as prticas dos sujeitos (BOURDIEU, 1989).
O habitus tido como uma estrutura estruturante e estruturadora das prticas, ou seja,
influencia as aes do indivduo. construdo ao longo do tempo, nas diferentes comunidades
humanas, produzindo prticas individuais e coletivas. Alm de determinar as prticas, a
interpretao da realidade tambm mediada pelo habitus. Sua formao acontece de forma
natural e espontnea, no processo de vivncia dos indivduos. O habitus, ento, particulariza
grupos e classes, diferenciando-os entre si (BOURDIEU, 1989).
Alm do habitus, as aes dos sujeitos so tambm determinadas pela situao em que
se encontram. Esta situao denominada em outros trabalhos de Bourdieu como campo, so
mbitos da vida social, relativamente autnomos entre si. Cada campo possui uma lgica
particular de funcionamento e estruturao, que surgem atravs de um longo e lento processo
de especializao e autonomizao. No campo esto presentes os agentes e as instituies que
fazem parte da vida social. Essa diviso do mundo social em campos feita para se entender
sua dinmica, para compreender o lugar em que se est e se vive. Esta noo equivale ao
conceito de meio social elaborado por Dewey e ajuda a entender o contexto dos indivduos
(BOURDIEU, 1989; MARTINS, 1990).
Para Bourdieu existem diferentes tipos de capital que se relacionam entre si. Por
exemplo, o capital econmico, social e cultural. O capital econmico constitudo pelos bens
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materiais e servios disponveis ao indivduo; o capital social caracterizado pelas relaes
sociais, mantidas e transmitidas pela famlia; o capital cultural institucionalizado que se refere
aos ttulos escolares do indivduo; e o capital cultural em seu estado incorporado, onde entram
a chamada cultura geral (saberes adquiridos de forma variada e informal), o domnio da
lngua culta, o gosto e bom-gosto e as informaes sobre o sistema educativo. E em cada
campo, um tipo de capital predominante. O campo se constitui tambm como um espao de
luta entre seus agentes decorrentes das relaes de poder existentes em seu interior. Quem
possui maior volume de determinado capital, ocupa posies dominantes dentro dele. A ao
ento, origina-se pela relao entre habitus e campo, na relao entre a histria objetivada,
tal como aparece nas instituies sociais e a histria incorporada sob a forma de disposies
durveis (MARTINS, 1990, p. 68).
Para explicar as desigualdades escolares, Bourdieu centra sua discusso na questo da
herana cultural familiar, ou seja, cada indivduo se caracteriza por componentes sociais
provenientes de sua famlia, desconsiderando assim, o carter autnomo do sujeito individual
(NOGUEIRA, 2004).
Como parte desses componentes esto os capitais j explicados anteriormente. Para o
autor, o capital cultural seria o componente com maior fora de influncia na explicao das
desigualdades escolares, pois, sua posse favorece o processo de aprendizagem dos contedos
e cdigos veiculados pela escola, j que servem como elementos de preparao das aes a
serem desenvolvidas pelos educadores (NOGUEIRA, 2004).
Quando o indivduo apresenta capital cultural mais elevado, a escola passa a ser uma
continuidade de seu mundo familiar e apresenta maior proximidade com as referncias
culturais e os conhecimentos considerados legtimos (cultura culta). Ao contrrio, quando o
indivduo desfavorecido de capital cultural, a escola passa a ser um ambiente ameaador,
estranho e distante de seu mundo familiar. Neste caso, a escola passa a representar a
imposio de uma cultura exgena, que para esse indivduo significa reconhecer a
superioridade da cultura dominante, que desvaloriza seus saberes e impe os saberes
socialmente legitimados. Neste sentido, a ao pedaggica familiar, expressada na forma de
habitus, estreita a relao do indivduo com a cultura transmitida pelo sistema escolar
(MARTINS, 1990 NOGUEIRA, 2004).
A teoria de Bourdieu ressalta a falta de neutralidade da escola, pois as chances e
oportunidades no so iguais para todos, j que alguns esto em condies mais favorveis
que outros com relao s exigncias da instituio (NOGUEIRA, 2004).
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3.4.3 Paulo Freire: a educao como forma de libertao
Paulo Freire (1921-1