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Page 1: Miguel Geraldo Mend es Reis saber - PUC-Rio · Rio de Janeiro, 2016. 162 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica

 

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a autorização da universidade, do autor e da orientadora.

Miguel Geraldo Mendes Reis

Graduou-se em Comunicação Social (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) em 1990. Tem experiência profissional na área editorial e de artes gráficas, com ênfase em cartilhas de campanhas públicas, livros paradidáticos, histórias em quadrinhos e literatura Infanto-juvenil.

                                                                                                                      Ficha Catalográfica                                                                                                                                                                                        

                   

CDD:302.23

Reis, Miguel Geraldo Mendes Tudo o que o cidadão deve saber: as cartilhas no processo civilizador / Miguel Geraldo Mendes Reis ; orientadora: Tatiana de Oliveira Siciliano. – 2016. 162 f. : il. color. ; 30 cm Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social, 2016. Inclui bibliografia 1. Comunicação Social – Teses. 2. Produção de cartilha. 3. Cartunismo. 4. Processo criativo. 5. Consumo. 6. Saúde. I. Siciliano, Tatiana de Oliveira. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Comunicação Social. III. Título.

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Para Patricia, Accacio e Acacir.

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Agradecimentos À minha orientadora Professora Tatiana de Oliveira Siciliano por ter me adotado como seu primeiro orientando em pós-graduação, por suas sugestões fundamentais para o trabalho e por seu apoio compreensivo. Ao professor Miguel Serpa Pereira, por seu aconselhamento equilibrado quando este projeto se iniciava. Ao professor César Romero Jacob, pela atenção carinhosa em seu aconselhamento. Aos meus antigos professores Fernando Ferreira, Eduardo Neiva Jr. e Sandra Korman por terem ajudado a reconduzir-me à vida acadêmica. À antiga colega de trabalho no Projeto Comunicar Rita Seghetto Luquini, pelo mesmo motivo. Aos professores e funcionários do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, com menção especial à secretária do Programa de Pós-graduação Marise Lira. Aos colegas contemporâneos dos cursos de mestrado e doutorado, pelas contribuições intelectuais, pelo acolhimento no grupo e pelas contribuições ao material de pesquisa. A João A. Buhrer, pelo interesse demonstrado na pesquisa e cessão de farto e precioso material empírico sem o qual o estudo teria sido árduo. Aos colegas cartunistas e antigos clientes que cederam parte de seu tempo para a realização das entrevistas fundamentais para esta pesquisa, todos nomeados no corpo do texto. Aos meus pais e familiares pelo ambiente intelectual formado em nossos lares. À Capes, à Vice-reitoria para Assuntos Acadêmicos e ao Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, pelas bolsas de mestrado que possibilitaram o estudo.

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Resumo

Reis, Miguel Geraldo Mendes; Siciliano, Tatiana de Oliveira. Tudo o que o cidadão deve saber: as cartilhas no processo civilizador. Rio de Janeiro, 2016. 162 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. A dissertação investiga, inspirada nos pressupostos de Geertz, o que a

prática da produção de cartilhas de propaganda e campanhas públicas “diz” da

sociedade brasileira. Tal produção de cartilhas é muito pouco visitada pelos

estudos acadêmicos, em parte pela dificuldade de recolher material empírico, dado

que tais publicações raramente são armazenadas e catalogadas. Para tanto, a

pesquisa empreendeu a coleta de uma coleção de mais de 300 cartilhas, a qual

baseou um elenco de características as quais podem definir a cartilha de

propaganda como um gênero de discurso e diferenciá-la de outras publicações

homônimas. O corpus analisado, a partir de seleção do pesquisador, foi fruto do

conjunto de publicações encontrado e, a partir daí, foi classificado em temas

específicos. Entre as categorias propostas estão presentes os temas cidadania,

saúde, sustentabilidade, consumo, segurança, entre outros e a análise do material

apontou para certa pedagogia civilizadora e disciplinadora, na qual os referenciais

teóricos de Norbert Elias e Michel Foucault foram fundamentais. O trabalho

compara e associa publicações de diferentes épocas nas categorias de saúde e de

consumo. A análise delas foi ancorada em teorias sobre comunicação e saúde e

comunicação e consumo. O estudo do material empírico apontou, desde o inicio,

presença significativa de cartunistas e criadores de histórias em quadrinhos nas

equipes produtoras de cartilhas, o que foi investigado a partir de entrevistas feitas

com diversos profissionais e com base em teorias sobre riso, caricatura e histórias

em quadrinhos. A pesquisa buscou, com isso, compreender o significado dessa

participação profissional em tal gênero de publicação. De uma forma geral,

buscou-se compreender o papel pedagógico que a publicação de cartilhas, assim

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como outras práticas midiáticas e outros instrumentos sociais, possui na difusão

de repertórios de comportamentos identificados como “civilizados” e “modernos”.

Palavras-chave

Produção de cartilha; cartunismo; processo criativo; consumo; saúde;

processo civilizador.

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Abstract

Reis, Miguel Geraldo Mendes; Siciliano, Tatiana de Oliveira (Advisor). What all citizens should know: the booklets in the civilizing process. Rio de Janeiro, 2016. 162 p. MSc. Dissertation – Departamento de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. The dissertation investigates, inspired by the assumptions of Geertz, what

the practice of producing propaganda booklets and pamphlets "tells" about the

brazilian society. Such production of booklets is seldom visited by academic

studies, in part because of the difficulty of collecting empirical material, given

that such publications are rarely stored and catalogued. To this end, the research

undertook the gathering of a collection of over 300 booklets, which was based on

a cast of features which can set the propaganda booklet as a genre of discourse

and differentiate it from other homonymous publications. The corpus analyzed,

selected by the researcher, derives from the set of publications found and, from

there, was ranked on specific themes. Among the proposed categories are the

themes of citizenship, health, sustainability, consumption, safety and others. The

analysis of those pointed to some civilizing and disciplinarian pedagogy, in which

the works of Norbert Elias and Michel Foucault were fundamental as theoretical

reference. The work compares and associates publications from different times in

the categories of health and consumption. The analysis of them was anchored in

theories about communication and health and communication and consumption.

The study of empirical material pointed out, since the beginning, significant

presence of cartoonists and comic book creators in producing teams of booklets,

which was investigated from interviews with various professionals and based on

theories about laughter, caricatures and comics. The research sought to understand

the meaning of professional involvement in such genre of publication. In General,

sought to understand the pedagogical role that the publication of booklets, as well

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as other media and other social practices, has in the dissemination of repertoires of

behaviors identified as "civilized" and "modern".

Keywords

Propaganda booklets; cartooning; creative process; consumption; health;

civilizing process.

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Sumário

1. Introdução 11

2. Normas sanitárias, dicas de bem-estar 41

2.1. Tossir com educação 58

2.2. Setinhas e lentes de aumento 67

2.3. Um amplo leque de cuidados 77

2.4. As melhores intenções 91

3. As cartilhas e a pedagogia do consumo 97

3.1. Necessidades e luxos 105

3.2. Abrindo uma conta e um refrigerante no século XXI 111

3.3. Dominar a energia, controlar o consumo 117

3.4. Comportamento civilizado e consumo 121

4. Cartunismo, o traço de humor nas cartilhas 130

5. Considerações finais 154

6. Referências bibliográficas 159

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1. Introdução

Em 2011, pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ) começaram um projeto que visava a coletar dados de saúde entre

estudantes de 12 a 17 anos de todo o Brasil. Amostras de sangue seriam tomadas,

medições seriam feitas e questionários seriam preenchidos. Os testes, realizados

no ambiente escolar, seriam voluntários e a aprovação por escrito dos

responsáveis pelos jovens seria requisitada. O método, o âmbito, o financiamento

e a logística da pesquisa estavam estabelecidos. Porém, antes de começar, os

pesquisadores se depararam com o problema de como se comunicar com esses

jovens, seus professores e seus responsáveis. A decisão foi produzir uma cartilha.

Uma das pesquisadoras se lembrou de ver cartazes de uma campanha

antitabagista feitos pelo cartunista Ziraldo e propôs que fossem procurá-lo para o

trabalho. Numa reunião foi acertado o serviço e em outra foi passado o briefing1

da campanha para uma pequena equipe composta por roteiristas e ilustradores.

Este é um relato em primeira mão, porque o autor desta pesquisa fez parte de tal

equipe e acompanhou tal trabalho.

Não havia dúvida sobre o formato gráfico da cartilha. A publicação

seguiria o modelo de muitas outras que Ziraldo e seus colaboradores já haviam

criado: um folheto de 16 páginas, mais capas, no tamanho 14 x 21 cm, todo

ilustrado a cores. Apenas deveriam pensar na forma narrativa que usariam para, ao

mesmo tempo, evidenciarem a importância do projeto, explicarem os

procedimentos que deveriam ser seguidos pelos estudantes e convencerem um

bom número de jovens a participarem dos testes.

O nome do projeto era Estudo de Riscos Cardiovasculares em

Adolescentes e seu acrônimo, ERICA, parecia o nome de uma jovem brasileira.

Ziraldo propôs o uso da frase “Eu amo ERICA”, escrita com o desenho de um

coração no lugar da palavra “amo”. Esse foi o ponto de partida para a criação de

um texto que, dirigido aos jovens leitores, falava sobre primeiras paixões no

ambiente escolar e brincava com os dois sentidos do termo coração: o órgão do

sistema circulatório e o sentimento romântico. Uma personagem jovem, de nome

                                                            1 Termo do meio publicitário para designar instruções e diretrizes passadas pelo cliente para a criação execução de uma campanha ou peça de comunicação (NEIVA, 2013, p.75).

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Érica, seria apresentada nas ilustrações e representaria uma estudante que decidia

participar do projeto. Depois do discurso de introdução do problema, viria um

trecho de esclarecimento na forma de perguntas e respostas. Cada pequeno trecho

do texto seria ilustrado no estilo caricato de Ziraldo, com muitas cores e uma dose

de bom humor.

A cartilha foi criada, os pesquisadores fizeram poucas alterações ao lay-

out2 e o folheto foi impresso e distribuído em escolas de todas as unidades

federativas do Brasil, precedendo a data de visita da equipe médica que faria

medições e retiraria amostras de sangue.

Segundo a Dra. Kátia Vergetti Bloch, Coordenadora Executiva do projeto

ERICA, a publicação foi muito bem aceita. Quando mostravam a cartilha numa

reunião preliminar com agentes do governo local, eles demonstravam curiosidade

por ela e pediam mais exemplares. A cartilha funcionou como “cartão de visitas”

e como uma forma mais rápida e atraente de expor as informações sobre o projeto.

Em suas palavras, “Você chega, às vezes, para conversar com o diretor – a gente

tinha um powerpointezinho que a gente levava – mas eles não tinham tempo pra

essas coisas. A cartilha você leva, ele dá uma folheada, ela prende a atenção”.

Seria melhor do que um vídeo, porque o ouvinte não presta atenção, e melhor do

que um relatório técnico, pois “Às vezes, você dá um texto falando sobre o

estudo, ninguém lê”3.

Esta é apenas uma entre centenas de história similares. Tem existido, em

nossa sociedade, uma produção importante de cartilhas. Essa produção já

envolveu muitos profissionais de educação, propaganda, comunicação visual e

ilustração, inclusive escritores e cartunistas. No entanto, é uma produção quase

invisível. Pouca importância tem sido dada ao registro e ao estudo dessa produção

tão típica do campo da Comunicação Social.

No buscador da internet Google Acadêmico, a pesquisa pela palavra

“cartilha” retornou 28.800 resultados em 17 de agosto de 2015. Verificando que

produção de artigos é essa, vê-se que a maioria deles trata de cartilhas de

alfabetização, estudadas por pedagogos, ou de testes sobre a eficácia de cartilhas

educativas de saúde. No site brasileiro do SciELO, a biblioteca online de

                                                            2 (ou leiaute): esboço ou arte provisória que se submete ao cliente para avaliação e aprovação da peça publicitária (NEIVA, 2013, p.320-321). 3 Conforme entrevista realizada em 6 de outubro de 2014.

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publicações acadêmicas, a pesquisa pelas palavras “cartilha” ou “cartilhas”

constantes no título de artigo retornou 16 resultados na mesma data. Entre esses

16 artigos, cinco são sobre cartilhas de alfabetização, cinco são sobre testes de

eficácia de cartilhas com instruções de saúde (realizados por estudantes de

enfermagem), um é sobre cartilha de saúde, um é sobre a aplicação de uma

cartilha de psicologia, um é a própria publicação de uma cartilha de saúde mental

e três dos artigos têm outros assuntos. Se a pesquisa for feita pela palavra

“cartilha” no assunto do artigo, retornam apenas os cinco estudos sobre cartilhas

de alfabetização. Por sua vez, no Banco de Teses da Capes, a pesquisa pelas

palavras “cartilha” ou “cartilhas” presentes em resumos retornou, na mesma data,

nove resultados. Entre eles, quatro são teses sobre alfabetização, quatro são sobre

a eficácia de determinadas cartilhas no resultado de campanhas de esclarecimento

no setor de saúde e uma versava sobre o resultado da aplicação de cartilhas

educativas sobre meio ambiente em determinada localidade.

Um exemplo da dificuldade: não se encontram dados específicos sobre a

produção anual de cartilhas na publicação Números da Comunicação no Brasil da

Associação Brasileira de Agências de Publicidade (ABAP)4. As cartilhas devem

contribuir com alguma receita dentre os R$ 7.346.000 relativos aos serviços de

“edição de livros, jornais e revistas, inclusive listas telefônicas” prestados por

agências de publicidade durante o ano de 2009. E devem ter gerado algum

faturamento entre os 459 milhões de reais que as empresas gráficas receberam por

imprimirem “catálogos, cartazes, folhetos, encartes, outdoors, malas diretas, etc.”

com fins publicitários no ano de 2012. Porém, são meras suposições.

A busca no sistema da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) pela palavra-

chave “cartilha” no âmbito de "obras gerais" deu, em 22 de julho de 2015, 1263

resultados. A maioria é de livros de alfabetização e outros livros com a palavra

cartilha no título. Há vários exemplares dos mesmos títulos, quando são cartilhas

de alfabetização e cadernos de exercício.

Pesquisar “cartilha + direitos” no âmbito de "obras gerais" retorna 63

registros de obras entre 2000 e 2015. Entre elas, Cartilha da mulher, Cartilha dos

direitos do cidadão, Cartilha do consumidor, Cartilha do cidadão, Cartilha do

idoso, Cartilha do trabalhador, muitas publicados pelos órgãos do poder

                                                            4 Relatórios disponíveis em http://www.abapnacional.com.br/downloads-publicacoes.cfm . Acesso em: 3 ago. 2015

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legislativo, inclusive tendo parlamentares como autores, por exemplo, Celso

Russomano (direito do consumidor), Rita Camata (direitos das mulheres) e

Eduardo Paes (direitos em geral). Já pesquisar “cartilha + saúde” no âmbito das

obras gerais entre 2000 e 2015 retorna 29 registros.

Deduz-se que uma coisa são os números reais da produção de cartilhas;

outra são os números das cartilhas devidamente catalogadas e registradas, os quais

são muito menores. Foi preciso enfrentar, nesse momento da pesquisa, a

polissemia da palavra cartilha, usada para designar publicações muito distintas.

Partiu-se, então, das referências gerais para as particulares, usando os mecanismos

de busca da web, sem pretensão de fazer pesquisa quantitativa, mas meramente

avaliando a ordem de grandeza dos resultados.

Buscar a palavra “cartilha” no Google retornava, em 29 de abril de 2015,

4.370.000 de resultados de páginas na web e em 11 de janeiro de 2016

apresentava 3.920.000 resultados. Na mesma data o mecanismo buscador Bing

apresentava 6.960.000 resultados. Entre esses resultados estão todas as referências

possíveis à palavra “cartilha”, principalmente a cartilhas de alfabetização, a

notícias sobre uma celebridade qualquer que “reza pela cartilha” de outra e a

comunicados de órgãos públicos orientando os cidadãos sobre normas (como na

notícia “cartilha orienta joalheiros sobre o crime de lavagem de dinheiro” ou em

“cartilha esclarece direitos e deveres de trabalhadores e empregadores

domésticos”). Nestes casos, a palavra cartilha tem sido usada para denominar um

tipo de divulgação esquemática de dicas ou regras que se faz por meio de notas à

imprensa e postagens na internet.

Uma busca mais fina localiza melhor as cartilhas enquanto peças de

comunicação: a busca com as palavras-chave “cartilha + saúde” retornou, em 21

de julho de 2015, 713.000 resultados no Google (e 1.090.000 resultados em 11 de

janeiro de 2016); a busca por “cartilha + meio + ambiente” retornou 493.000

resultados e a busca por “cartilha + direitos” retornou 749.000 resultados. Clicar

sobre alguns desses resultados nos leva a sites em que se pode ler ou baixar

arquivos PDF de cartilhas semelhantes àquela do Projeto ERICA. Procedem de

todos os pontos do país, são divulgadas por diversas organizações, datam de

diversos anos precedentes, aparentam diferentes níveis de investimento em

comunicação visual e ilustração, apresentam versões diferentes para tratar do

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mesmo conteúdo de informações, formando, assim, uma profusão de material

difícil de delimitar, uma nuvem de informação que apelidou-se de “cartilhosfera”.

Inspirado pelas reflexões de Geertz, (2014, p.8) uma vez que o

comportamento humano é visto como ação simbólica, o que quer que seja essa

ação, “devemos indagar é qual é a sua importância: o que está sendo transmitido

com a sua ocorrência e através da sua agência...”. Esta é a principal pergunta feita

nesta pesquisa: o que significa a produção de tantas cartilhas da forma como se

apresentam, com as técnicas comunicativas utilizadas? A essa pergunta se seguem

outras: o que isso quer dizer sobre a nossa sociedade? O que isso quer dizer, pelo

menos, sobre a parte da sociedade que produz cartilhas? Por que muitas cartilhas

foram produzidas com a intervenção de artistas do traço caricatural e desenhistas

de histórias em quadrinhos? A proposta é fazer uma descrição mais aproximada

de aspectos que interessam ao campo da comunicação em relação a esse gênero de

publicação.

Proximidade é uma questão que se coloca desde o início nesta pesquisa.

Há 25 anos este pesquisador trabalha na produção de cartilhas de campanhas de

educação e comunicação, sempre sob a orientação do cartunista e escritor Ziraldo.

A princípio, portanto, não deveria haver dúvidas quanto ao objeto de estudo.

Trata-se de uma rotina. Trabalho após trabalho, recebemos encomenda de alguma

organização, nos reunimos com seus representantes para receber um briefing e,

com o problema estabelecido, partimos para plasmar numa curta narrativa,

invariavelmente ilustrada pelo cartunista e por sua equipe, todo o conteúdo

determinado. O objetivo relatado por nossos clientes sempre é passar sua

mensagem de maneira mais acessível e prazerosa do que poderia ser feita em

forma de livro ou apostila. Em outras palavras, o objetivo principal é mudar o

comportamento dos leitores ou fazer com que eles assimilem novos conceitos e

novas informações. Ou, segundo Ziraldo, conforme entrevista concedida para esta

pesquisa, “o cara diz ‘olha o que eu quero dizer pro meu público’ e a gente diz

‘olha como você vai dizer isso pro público”. Porém, justamente por ser um objeto

tão próximo, corre-se o risco de naturalizar as práticas e de não conseguir se

distanciar delas, o que seria necessário para enxergar o grande quadro em que essa

experiência se desenvolve.

Aventurei-me, portanto, a correr o risco de pesquisar um objeto com o qual

estou intimamente envolvido. Uma das vantagens, como nos aponta Gilberto

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Velho, é que esse contato longo com o objeto, devido à experiência profissional,

faz com que eu já tenha me deparado com aspectos “que não são explicitados” e

que demandam um esforço mais aprofundado de “observação e empatia” que um

pesquisador “de fora” teria que conquistar ao longo do tempo.

Segundo Gilberto Velho (2013, p.74), “o processo de descoberta e análise

do que é familiar pode, sem dúvida, envolver dificuldades diferentes do que em

relação ao que é exótico”. Por ter trabalhado na produção de cartilhas, carrego um

“mapa” social que utilizo para saber qual o papel do cliente e qual o papel do

produtor da cartilha. A experiência já sedimentou um padrão de como a atividade

é realizada. Cada etapa da produção já ganhou um valor, um significado.

Compartilhamos esses significados com todas as pessoas envolvidas. Por

exemplo: sei como faço uma cartilha; sei como os outros fazem; sei quais as

dificuldades a enfrentar e as maneiras como normalmente são contornadas; sei

quais são os anseios do cliente; sei o que é considerado um trabalho bem-sucedido

e um malsucedido; tenho uma imagem mental de como o trabalho é recebido pelo

público, etc. O problema é que, como um nativo no ofício, posso naturalizar os

princípios e mecanismos que organizam esses mapas e padrões, sem perceber que

se trata de convenções construídas por pessoas que trabalham conjuntamente,

entram em conflito, cooperam e, enfim, negociam a cada interação (BECKER,

1977).

Assim, tenho consciência de que minha objetividade de pesquisador será

“relativa, mais ou menos ideológica e sempre interpretativa” (VELHO, 2013,

p.75). O plano é evitar tomar o familiar por conhecido. É levar para a pesquisa

nossas avaliações prévias para gerar boas perguntas mas prestar atenção maior às

informações inesperadas dadas voluntariamente pelas fontes. É procurar ver

sempre o quadro maior em que se encaixam as informações obtidas. E não cair no

erro de extrapolar conclusões do “pequeno” para o “grande” quadro ou de tratar

seu objeto como um “laboratório” social, coisas sobre as quais nos alertou

Clifford Geertz. Existe a confiança de que, ao escolher um objeto de estudo

bastante peculiar, um gênero de publicação com importância marginal no

conjunto das atividades da área de Comunicação, busca-se chegar àquelas

“interpretações mais amplas e análises mais abstratas”, que se fazem “a partir de

um conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos”

(GEERTZ, 2014, p.15).

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Provavelmente os colegas cartunistas e clientes que prestaram informações

à pesquisa, caso leiam esta dissertação, farão críticas e discordarão de minhas

conclusões em parte, o que é justamente a vantagem de estudar o ambiente

familiar em vez do exótico, com o qual não manteremos contato após a coleta de

dados (VELHO, 2013, p. 77). No presente caso, o pesquisador continuará a

depurar sua pesquisa com o retorno que poderá ter após a publicação.

Conforme já foi dito, há poucos estudos com o mesmo tema proposto. O

estudo das cartilhas não constitui ainda uma linha de pesquisa. Porém, durante os

primeiros meses do mestrado, encontrei alguns trabalhos acadêmicos com que

esta pesquisa pode dialogar.

Estruturas icônicas nas cartilhas de treinamento quadrinizadas, de Ed

Marcos Sarro, dissertação de mestrado para a FAU-USP, 2009, aproxima-se do

nosso tema porque caracteriza e traça um histórico da aplicação de histórias em

quadrinhos, um meio que conjuga imagem e texto, em publicações de

treinamento.

Para a ECA-USP, Devani Salomão de Moura Reis, produziu, em 2005, a

tese Comunicação pública nos serviços de saúde para o idoso: análise da

produção e percepção da cartilha Viver Mais e Melhor. Sua principal

preocupação foi averiguar se as técnicas de comunicação são eficazes junto ao

público idoso e usuário dos serviços de saúde, o que não é o foco deste trabalho5.

A tese de doutorado em Linguística (UFPE) de Márcia Rodrigues de

Souza Mendonça Ciência em quadrinhos: recurso didático em cartilhas

educativas (2008) investiga como a informação científica se apresenta nas

cartilhas feitas na forma de histórias em quadrinhos, que recursos verbais e não-

verbais os autores utilizam, como lidam com a credibilidade do discurso científico

e como representam os personagens que dão voz à ciência. A autora analisou seis

cartilhas em quadrinhos que trataram da questão das doenças sexualmente

transmissíveis (DSTs) com diferentes públicos-alvo. O trabalho se detém muito na

caracterização dos recursos expressivos e narrativos das histórias em quadrinhos.

Nota-se que o tema das cartilhas tem atraído pesquisadores de outras áreas

além da Comunicação Social e que o que mais interessa a eles são as técnicas e

                                                            5 A maioria das teses e dissertações cujos títulos incluem a palavra cartilha têm sido desse tipo, que averigua o sucesso de uma determinada cartilha aplicada a um determinado público, a julgar pelos resultados dos alertas recebidos do sistema de busca Google Acadêmico.

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recursos comunicativos. Aqui se pretende usar um enfoque mais aberto, na

tentativa de perceber o que é mais significativo na própria existência de uma

grande produção de cartilhas em processo na sociedade brasileira contemporânea.

Se esta pesquisa for bem-sucedida, poderá facilitar desdobramentos.

Chegou a hora, portanto, de colocar alguma ordem nos conceitos que

ajudarão a analisar o material empírico. Quando se fala de uma publicação

chamada cartilha, precisamos caracterizá-la em relação a outros tipos homônimos.

Etimologicamente, cartilha é o diminutivo de carta, sentido que se estende à ideia

de livreto ou pequeno compêndio. É uma palavra polissêmica. No âmbito desta

pesquisa, não se tratará, de maneira alguma, das cartilhas que são livros de apoio à

alfabetização (conforme a definição do Dicionário Houaiss: “livro que ensina os

primeiros rudimentos de leitura”). Outra acepção da palavra é mais próxima da

nossa definição: “padrão de comportamento ou maneira de ser” ou “compêndio

elementar ou rudimentos de arte, ciência ou doutrina” (esta última, definida no

Dicionário Aurélio). De fato, não se encontram definições para o termo “cartilha”

nem no Dicionário de Comunicação (RABAÇA & BARBOSA, 1978) nem no

Dicionário Houaiss de Comunicação e Multimídia (NEIVA, 2013). No entanto,

pode-se afirmar que cartilha é, entre outras coisas, um gênero de publicação

normalmente ligado à atividade de propaganda e da comunicação pública6.

Uma pesquisa histórica ajuda a perceber a construção do gênero. As mais

antigas publicações que têm nome de cartilha conjugam o propósito da

alfabetização com a da doutrinação cristã. Leonardo Mozdzenski (2006, p. 19)

afirma que as primeiras cartilhas surgem, em nossa língua, no século XVI, no

contexto da ação contrarreformista portuguesa e da difusão da tipografia. Um dos

pilares da empresa da colonização foi a evangelização dos povos “bárbaros” ou

“gentios”, com a difusão da cultura e religião portuguesas. Por meio de cartilhas,

esses povos podiam conhecer e usar os códigos religiosos e linguísticos da

metrópole. Uma cartilha impressa em 1554 é um dos primeiros exemplos: intitula-

se Cartilha em Tamul e Português (figura 1) e autodefine-se como “cartilha que

contém brevemente o que todo cristão deve aprender para sua salvação”.

Aprendia-se a língua portuguesa ao mesmo tempo em que se aprendiam as

                                                            6 A definição do que seja comunicação pública depende da abordagem. Pode ser aquela cuja emissão se origina necessariamente nos órgãos do Estado; pode ser aquela cujo objeto são temas de interesse geral, público; ou pode ser aquela cuja finalidade é a realização do interesse público (HASWANI, 2013, 153).

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panfletos de agitação política, clamando pela construção de uma nova sociedade,

apelando para a emoção e entronizando na cultura ocidental as palavras liberdade,

justiça, nação, pátria e cidadania.

Os inúmeros panfletos revolucionários que difundiam as luzes da

Enciclopédia para o homem comum repudiavam a linguagem utilizada pelas

classes de prestígio do Antigo Regime – rebuscada, repleta de afetações e

tecnicismos desnecessários – adaptando-a através do uso de palavras e

construções sintáticas mais próximas da linguagem cotidiana. E mais: foram

produzidos cerca de 600 impressos procurando ampliar o debate político para os

iletrados, com a imagem formando uma peça-chave para a construção do sentido

do panfleto (MOZDZENSKI, 2006, p.29).

Ainda segundo Mozdzenski, no século XIX circulam pelo Brasil folhetos

políticos ligados aos ideais liberais, como a Constituição Explicada (1821), o

Diálogo entre a Constituição e o Despotismo (1821) e o Cathecismo

Constitucional offerecido às Cortes da Nação Portugueza demonstrando os

principaes princípios em que deve ser instruído todo o Cidadão (1821), com o

propósito de educar o cidadão para o jogo político democrático. Nelas já estão

presentes várias estratégias de comunicação e persuasão que se exibem nas

cartilhas atuais, como o glossário de termos técnicos, a sequência de perguntas e

respostas, as narrações ficcionais, os diálogos, as ilustrações e o uso do humor.

Em entrevista ao jornalista Leonardo Cazes, no jornal O Globo, José

Murilo de Carvalho, comentando a “guerra literária” em torno do movimento da

independência brasileira, explica que muito foi produzido por polemistas “com

preocupações didáticas, que escreviam catecismos, dicionários cívicos para educar

as pessoas, ensinar os conceitos que surgiram naquele momento: o que é

Constituição? O que é liberalismo? O que é representação?". Seu colaborador na

pesquisa, Marcello Basile, pinta um retrato de grande popularidade dos panfletos,

que “eram geralmente vendidos nas próprias tipografias, livrarias e lojas comuns.

O fato de eles serem anunciados mostra como eram aguardados pelo público.

Temos notícia de que as tipografias ficavam engarrafadas e não conseguiam dar

conta da demanda de impressão”.8

                                                            8 Declarações ao repórter de O Globo Leonardo Cazes, em reportagem sobre o livro “Panfletos da Independência”, no dia 28/03/2015.

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revisita seu personagem Jeca Tatu, mostrando como ele, primeiro, se livra das

verminoses e, depois, assume hábitos higiênicos, trabalha melhor, fica rico e

civiliza-se, tudo com trechos de despudorada recomendação da compra dos

produtos do Laboratório Fontoura (CARRASCOZA, 2004, P.157).

Durante o período do Estado Novo, o governo, através de meios de

comunicação de massa, conduz um projeto de apoio à construção da identidade

nacional brasileira e de investimento na formação cívica do chamado “povo”. Em

1939, Getúlio Vargas decreta a criação do Departamento de Imprensa e

Propaganda (DIP). O poderoso órgão, ligado diretamente ao Presidente, recebeu

inúmeras tarefas coerentes com esse projeto e que, ao mesmo tempo, colaboravam

com a manutenção do regime autoritário: centralizar a propaganda estatal; mediar

relações com a imprensa estrangeira; censurar os meios de comunicação, os

espetáculos e os eventos esportivos; promover os intelectuais e artistas nacionais;

promover manifestações cívicas e festas patrióticas; promover a produção de

filmes educativos e organizar os serviços de turismo9. O DIP era também

responsável pela edição de folhetos, cartazes, livros e revistas culturais. Publicou

folhetos para divulgar a obra do regime, principalmente a legislação trabalhista.

Publicou, também, cartilhas destinadas a crianças e jovens, como História

de um menino de São Borja (1939), Getulio Vargas, o amigo das crianças (1940),

Getulio Vargas para escolares (1940), Getúlio Vargas para Crianças (1940) e A

Juventude no Estado Novo (1941). Nelas, toma-se a figura de Vargas como

modelo de todas as virtudes que o povo brasileiro deve ter (em nenhum trecho dos

textos usa-se o termo “cidadão”). Sua história pessoal e suas declarações públicas

compõem os textos e cuidadosas ilustrações no estilo dos livros infantis (ver

figura 4) e das histórias em quadrinhos da época defendem a Revolução de 1930 e

o golpe de 1937 que inaugurou o Estado Novo, além de explicitar o modelo ideal

de comportamento que os brasileiros, especialmente a juventude brasileira,

deveriam ter para fazerem “o que o Brasil espera” deles.

                                                            9 Conforme os termos de criação no decreto n.º 5.077 de 29/12/1939, disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-5077-29-dezembro-1939-345395-publicacaooriginal-1-pe.html . Acesso em: 29/09/2014.

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quanto a descrição das brigas de galo em Bali e tanto quanto uma obra de ficção

como Madame Bovary (ou Jeca Tatuzinho) não é gerado pela realidade imediata,

mas é produto da interpretação de um observador da realidade; é um texto,

portanto, que “diz alguma coisa sobre algo” e pode ser analisado em busca de seu

significado e em busca do “que é genérico a essas estruturas, o que pertence a elas

porque são o que são” (GEERTZ, 2014, p. 19).

Com a intenção de manter esse modelo de observação10, de valer-se da

minha inserção na prática social que é objeto de estudo e produzir tal tipo de

relato, fiz um trabalho de coleta de dados qualitativos dividido entre:

a) analisar um corpus de publicações que se caracterizam como cartilhas

b) realizar entrevistas em profundidade com pessoas envolvidas na criação

de cartilhas.

O trabalho começou com a coleta de cartilhas para formar um corpus de

estudo. Uma vez que as cartilhas geralmente não são catalogadas e não são

encontradas em bibliotecas, recorremos a três fontes heterodoxas. A primeira é

minha coleção particular, com cartilhas recolhidas em 25 anos de trabalho,

principalmente na equipe de Ziraldo, e aquelas recebidas dos clientes, além das

recebidas no ambiente escolar por meus familiares e amigos. A segunda fonte

foram as cartilhas disponibilizadas na internet pelos seus patrocinadores, uma

fonte quase inesgotável, que só faz crescer. A terceira e mais importante fonte de

material foi a coleção de um pesquisador que conheci durante o estudo.

João Antônio Buhrer é um jornalista e cartunista que vive em Campinas –

SP e lá produz exposições e eventos culturais. Entre seus muitos interesses

culturais se destaca aquele pelos cartunistas e ilustradores brasileiros. Eu o

conheci dentro da rede Facebook, pois ele tem o hábito de postar imagens dos

arquivos de impressos que tem em casa, com comentários sobre os artistas

gráficos envolvidos. Um amigo em comum fez a conexão quando notei uma

postagem dele sobre o cartunista Ziraldo. Fiz contato por mensagens, quando

perguntei se, entre seus arquivos, havia cartilhas desenhadas por cartunistas. A

resposta foi positiva e decidi marcar uma visita para ver a coleção de perto.

Em novembro de 2014 passei dois dias em Campinas. João A. Buhrer

apresentou-me três grandes caixas de papelão cheias de cartilhas que ele havia

                                                            10 É importante ressaltar que, apesar da inspiração ser antropológica, não chega a configurar uma autêntica “descrição densa”.

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separado, mais uma sacola com exemplares repetidos que ele me cedia. Segundo

ele, foram muitos anos de coleta de publicações em sebos, banquinhas de rua e até

mesmo em descartes de papel. Nessa coleção havia cartilhas datadas dos anos

1960 até a atualidade. O primeiro levantamento do material deu a impressão de

uma notável coerência entre as publicações, apesar de toda a heterogeneidade de

títulos, autores e soluções narrativas. Fiz um registro fotográfico das capas de

todas elas e das páginas completas de algumas publicações que chamaram mais a

atenção para análise. A coleção de cartilhas para pesquisa continuou a crescer

após a conclusão do estudo.

Quanto às entrevistas, partimos do princípio de que a interpretação do que

significa a produção de cartilha deveria se basear nas informações tanto das

pessoas que executam a criação de cartilhas quanto das que propõem e patrocinam

essa produção. Realizamos um total de onze entrevistas com os seguintes

profissionais:

1) S., Gerente de Produtos de uma indústria farmacêutica, a qual não quis

ser identificada. 28/08/2014. 20 min

2) Paula Bauducci de Oliveira, Vice-presidente da organização não-

governamental Autismo e Realidade, patrocinadora da cartilha

Autismo, uma realidade. 19/09/2014. 23min.

3) Kátia Vergetti Bloch, Epidemiologista e Coordenadora Executiva do

projeto ERICA da UFRJ, distribuidor da cartilha Eu amo ERICA.

06/10/2014. 34 min.

4) Samuel Ramos Lago, Professor de Biologia, fundador do Grupo

Positivo (áreas de educação e informática), autor da série de cartilhas

Educação em Quadrinhos. 10/04/2015. 24 min.

5) Bira Dantas, caricaturista e cartunista, autor de diversas cartilhas em

quadrinhos. 17/11/2014. 2h10min.

6) Marcos Vaz, quadrinista autor de diversas cartilhas em quadrinhos.

18/12/2014. 38 min.

7) Ziraldo, escritor e cartunista, autor de diversas cartilhas. 25/11/2014.

15 min.

8) Claudius Ceccon, cartunista, Diretor do Centro de Criação de Imagem

Popular – CECIP e autor de cartilhas. 31/03/2015. 59 min.

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9) Maurício de Sousa, quadrinista, autor de diversas cartilhas.

07/04/2015. 16 min.

10) Pedro de Luna, jornalista e cartunista, autor de cartilhas em

quadrinhos. 15/09/2015. 58 min.

11) Miguel Paiva, cartunista e autor de cartilhas. 02/10/2015. 42 min.

Quanto ao estudo de recepção das cartilhas, logo no início da pesquisa

surgiu a questão de empreender ou não tal coleta de dados, e a conclusão foi de

que não contribuiria muito para a pesquisa, uma vez que, pela natureza do objeto,

seria difícil identificar um número representativo de leitores. As cartilhas são

distribuídas para públicos amplos e pouco delimitados no espaço e no tempo

(podem ser lidas por pessoas em locais diversos e distantes, em datas também

muito distantes). Além disso, ficaríamos restritos a escolher um caso em que o

estudo da recepção fosse exequível e muito recente, o que, na nossa opinião, não

forneceria base empírica para as conclusões gerais que são objetivo da pesquisa.

Antes de começar a selecionar, da massa de material existente, cartilhas

específicas e significativas para estudo, foi necessário conceituar o que caracteriza

uma cartilha típica. Essas características foram apontadas nos depoimentos dos

informantes da pesquisa, que foram procurados dentre o grupo dos produtores de

cartilhas e o dos usuários de seus serviços. Segundo Howard Becker (2009, p.20):

Falar sobre a sociedade em geral envolve uma comunidade interpretativa, uma organização de pessoas que faz rotineiramente representações padronizadas de um tipo particular ("produtores") para outros ("usuários") que as utilizam rotineiramente para objetivos padronizados.

Assim, a “organização de fazer e usar” forma uma “unidade estável” que

permite descrever a normalidade do gênero da cartilha, nas próprias palavras dos

entrevistados. O cartunista Pedro de Luna, por exemplo, indagado se o seu

trabalho se assemelhava ao de um publicitário, concordou:

Na verdade a lida é a mesma. Você recebe um briefing, um conteúdo bruto e você tem que adaptar aquilo pro roteiro, pro quadrinho, você tem que destrinchar aquilo em balões [...] Nesse trecho, o entrevistado cita termos típicos da publicidade, como

briefing e roteiro, conjugados com termos de cartunista, como quadrinho e balão.

Vários entre os entrevistados que criam cartilhas descreveram processos em que

se reúnem com representantes do cliente (caracterizado como uma organização

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pública ou privada com determinada necessidade de comunicação), conversam,

recebem material escrito em termos mais ou menos técnicos, relativos à área de

conhecimento daquele cliente, voltam para seus estúdios e, sozinhos ou em grupo,

elaboram a cartilha a partir desses conhecimentos. Depois, o trabalho é levado

para uma nova discussão com os representantes dos clientes, para receber críticas

ou ser aprovado. Essa descrição do processo é a mesma que este pesquisador faria

a partir de sua experiência profissional. O cartunista Claudius também

compartilha dessa noção de processo, entre vários outros entrevistados. Se,

algumas vezes, o cliente só traz um problema...

Noutros casos, quem pede já te dá o conteúdo: “olha, eu preciso passar para o grande público a ideia de que automedicação é uma coisa muito negativa, por isso, isso, isso... E acontece isso, isso...”. Aí, você organiza isso aqui e você vai fazer... Você pode ter um produto a partir dessa organização; você pode fazer um produto que é uma cartilha ou é um vídeo ou é uma publicação. Você pode partir pra todas essas coisas (Claudius). Os entrevistados confirmam que a cartilha não é uma obra de autor; é um

trabalho de comunicação feito sob contrato e, portanto, é produto de “uma ação

coletiva” (BECKER, 1977). Assim, só tem sentido dentro de uma campanha

publicitária ou de natureza publicitária (quando publicitários profissionais não

participam). Ela pode ser uma peça de campanha entre outras. O cartunista Miguel

Paiva confirma a descrição de tal processo de criação:

Mas eu acho que é um processo muito simples pra mim. Não necessariamente fácil, mas simples, assim, um processo de elaboração do que eu li, do que eu aprendi daquilo que está no texto. Porque a grande ideia que a cartilha tem é de você resumir um texto enorme, repetitivo e às vezes excessivo, de você resumir aquilo numa imagem sintetizada, numa imagem bastante informativa que resuma o conceito. A partir dos relatos, conclui-se que muitas das peculiaridades das cartilhas,

enquanto gênero de publicação, são as mesmas de qualquer outra peça de

propaganda: o texto é simplificado ou “acessível” a um “grande público” e a

linguagem é persuasiva. Sobre a persuasão, Adílson Citelli pondera que ela é

estratégia típica do discurso publicitário, mas não é exatamente coerção, nem

mentira: “Pode ser apenas a representação do desejo de se prescrever a adoção de

alguns comportamentos, cujos resultados finais apresentem saldos socialmente

positivos” (CITELLI, 2002, p.67). Citelli considera que “em certas áreas do

conhecimento possa imperar uma natureza discursiva menos persuasiva, até

mesmo lúdica, aberta”. É o caso do texto artístico, devido à sua “vocação

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plurissignificativa”. De fato, é impossível encontrar um discurso puro, que seja

somente persuasivo ou somente artístico, por exemplo. João A. Carrascoza retrata

a redação de propaganda como urdidura de um tecido cuja função é “vestir” a

marca, o produto ou serviço anunciado. A atividade publicitária lança mão de

qualquer recurso para persuadir a audiência de potenciais consumidores,

alcançada seja por qualquer meio. A mensagem do anunciante precisa provocar

reação da audiência de maneira “suave”. O fundamento de qualquer criação

publicitária, portanto, é a técnica da retórica, conforme Aristóteles e autores que o

atualizaram, como Jacques Durand e Chaim Perelman. Porém, a essa técnica serão

somados outros recursos linguísticos que vão situar a forma final do texto do

anúncio em algum ponto de uma escala que vai da forma mais nitidamente

“apolínea, que apresenta um viés racional” até a mais “dionisíaca, que se apoia na

emoção e no humor” (CARRASCOZA, 2004, p. 31), termos tomados

emprestados da obra de Nietzsche. Outra característica das cartilhas deduzida a

partir dos relatos dos entrevistados é que, como qualquer atividade de

comunicação destinada a um grande público, tais como lançar anúncios e jornais,

a publicação de cartilhas “implica a procura de um denominador comum”. Chega-

se a esse denominador comum pela prática da homogeneização e do

“sincretismo”, que “tende a unificar em uma certa medida os dois setores da

cultura industrial: o setor da informação e o setor do romanesco”. Para os

produtores, seu público corresponde também a uma imagem homogeneizada, um

“homem médio, resultante de cifras de venda” (MORIN, 2011, p. 25 - 27).

Sobre o público-alvo, o cartunista Marcos Vaz diz que se especializou em

cartilhas em quadrinhos para estudantes do ensino fundamental, de primeiro ao

quinto ano, mas que também teve encomenda de uma cartilha em quadrinhos para

“público trabalhador”:

Fizeram numa linguagem mais simples, de quadrinhos, uma linguagem fácil de ser assimilada, porque trabalha muita imagem junto como o texto, porque sabem que atinge mais. O trabalhador vai ter mais vontade de ler do que uma cartilha só em texto, né? Então, acaba que é o público jovem e adulto também. Apesar de ser uma linguagem mais infanto-juvenil, também é voltada para o jovem e adulto. Perguntado se o cartunista trabalha na cartilha como um tradutor, Miguel

Paiva concordou:

Eu acho que sim, que ele é um tradutor; ele é um adaptador. Ele traduz e adapta. Porque, às vezes, você resume em três parágrafos um desenho com um gesto.

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Existe um perigo, no entanto, em ver a cartilha apenas como uma

simplificação vocabular ou de linguagem: a tarefa não pode ser encarada como se

fosse sistemática. O cartunista Claudius diz que cartilha é uma palavra

desvalorizada:

As pessoas acham que é uma coisa menor, paternalista, acham que, já que as pessoas não conseguem ler, você faz uma cartilhazinha e, aí, essa cartilha, então, vai passar. Eu considero que a cartilha, essencialmente, ela deve fazer um esforço enorme pra passar informação. São as informações corretas, são as informações eventualmente cientificamente comprováveis, etc., de uma forma acessível, mas não paternalista. A cartilha, portanto, é uma publicação simplificada, mas não se confunde

com um mero resumo. Exige-se que ela provoque efeito no leitor, por meios

persuasivos. A gerente de produto farmacêutico entrevistada aponta que o

objetivo de fazer uma cartilha em vez de um folder11 é que a cartilha tem um

caráter educativo e é uma peça mais atraente para chamar a atenção quando

exposta na sala de espera dos médicos:

O foco acaba sendo educacional também. Folder, essas coisas, acabou caindo num lugar-comum. Fica só um papel em cima da mesa na sala do médico [...] [Com a cartilha] Você consegue contextualizar. Constrói uma lógica, um raciocínio, para entender aquela mensagem. De fato, conta uma história. Folder, tem que apelar para uns bullet points... A gerente de produto também considera que a cartilha traduz a linguagem

do registro científico para o registro popular. Ela compara uma publicação

direcionada a médicos com a cartilha correspondente, direcionada a mães:

O fascículo tinha caráter científico. Eles terminaram agora de entregar para os médicos todos os fascículos da série. Agora os representantes podem chegar com a cartilha e dizer "Tudo isso que a gente discutiu com o senhor, agora a gente traduziu para o seu paciente numa linguagem acessível".

O cartunista Bira Dantas, sobre a importância de se fazer cartilhas, diz:

Quem aprende primeiro com a cartilha somos nós, porque, quando você pega aquelas informações, são informações privilegiadas e o grande público não tem acesso a isso, porque a mídia não se importa em oferecer esse tipo de informação.

Os depoimentos mostram como os produtores de cartilha costumam

relacionar seu trabalho com a divulgação de informações verdadeiras e científicas

a um grande público, o que nos leva a alinhar essa prática com aquelas que,

apontadas por Foucault (1990, p.12), não existem fora do poder: “Cada sociedade

                                                            11 Folheto publicitário impresso numa única folha de papel, com uma ou mais dobras (NEIVA, 2013, p. 223).

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tem seu regime de verdade, sua política geral da verdade: isto é, os tipos de

discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros”. A produção das

cartilhas, as quais baseiam seus conselhos na autoridade científica, é um elemento

do processo de construção social da verdade.

Assim, com base nos conceitos teóricos, na própria experiência

profissional e nas informações colhidas em entrevistas, podemos definir cartilha

como uma publicação de formato pequeno, de poucas páginas e de distribuição

gratuita, criada com o propósito de informar públicos amplos e pouco habituados

à leitura sobre assuntos de relevância social. A cartilha, na maioria das vezes, é

produzida e distribuída por órgãos públicos (ministérios, secretarias, autarquias,

agências, etc.); muitas vezes, por ONGs (institutos, fundações, etc.), sindicatos e

também por grandes companhias privadas. Todas as publicações coletadas

correspondem a tal descrição geral.

É importante, agora, diferenciar o conceito de “cartilha” do conceito de

“manual”. Manuais também são publicações de formato pequeno e poucas

páginas, contêm “noções ou diretrizes relativas a uma disciplina, técnica,

programa escolar, etc.” (NEIVA, 2013, p.347), apoiam o texto com ilustrações ou

fotos e geralmente são gratuitos. Porém, destinam-se a um público que os lê

voluntariamente, por qualquer motivo pessoal ou profissional. No caso dos

manuais, a atenção do leitor não precisa ser capturada e a técnica narrativa pode

ser simplesmente objetiva ou didática. Cartilhas, por outro lado, são destinadas a

públicos mais heterogêneos, que não buscaram voluntariamente a publicação, que

não disporão de muito tempo e que devem ser convencidos, após a leitura e um

tanto de reflexão, a aprimorar seu comportamento ou a adotar determinadas

práticas. Por esse objetivo, cartilhas precisam se valer de técnicas persuasivas de

comunicação.

Paula Bauducci, uma das entrevistadas, dirige uma ONG sobre autismo e

já editou manuais e cartilhas. Ela compara um manual divulgado em seu site com

a cartilha feita em pareceria com Ziraldo:

É diferente a proposta. Ali, o pai tem interesse e, quanto mais informação, melhor. No caso da nossa cartilha, o negócio é mais chamar a atenção. Não passa batido. Ele para e coloca um olhar a mais nele. E o professor aprende toda aquela informação que vem na cartilha numa maneira fácil. A cartilha comunica com facilidade. Mesmo pra quem não está interessado sai com aquele conhecimento. É quase que impossível não sair.

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Segundo Paula, o manual e a cartilha têm a mesma mensagem, mas a

quantidade de conteúdo é diferente e a cartilha não tem pretensão de esgotar o

assunto: apenas chama a atenção para o leitor buscar aprofundamento.

É importante também advertir que os títulos das publicações encontradas

nem sempre correspondem aos conceitos construídos acima. Haverá manuais com

nome de cartilha, cartilhas com nome de manual e publicações extensas e pouco

amigáveis (ou atraentes) com o nome de cartilha.

Enfim, sob o nome de “cartilha”, encontra-se certa variedade de

publicações. Algumas se parecem com gibis infantis. Outras são apenas folhetos

ilustrados. Muitas, apesar de terem o patrocinador identificado, são anônimas;

outras têm autor e até mesmo ficha catalográfica. Também se encontram, sob o

nome de cartilha, livretos sem ilustrações. Como já foi observado, é frequente o

uso do termo “cartilha” para caracterizar séries de instruções objetivas que órgãos

públicos divulgam em sites de internet e na imprensa, caso em que não existe a

publicação nem em papel nem em formato virtual.

No entanto, o objeto de estudo desta dissertação engloba apenas as

cartilhas que se utilizem de meios visuais (ilustrações, fotos, gráficos ilustrados,

etc), conjugados com texto, para passarem sua mensagem. Utilizamos esse critério

porque o recurso das ilustrações relaciona-se com o propósito de comunicar-se de

modo o mais acessível possível e de persuadir o leitor, que são características

fundamentais de uma cartilha. Segundo Joaquim da Fonseca, a caricatura, tomada

como um termo geral que engloba obras como a caricatura pessoal propriamente

dita, a charge, o cartum, o desenho de humor, as histórias em quadrinhos cômicas

e os desenhos animados, “fala para um público o maior possível” e “desenvolveu

uma linguagem própria, com um sistema de elementos que compõem essa

linguagem”. O termo “desenho de humor”, por sua vez, denomina imagens feitas

na linguagem da caricatura, ou seja, representar por equivalência em vez de por

semelhança, aplicando simplificações e distorções propositais. O desenho de

humor não tem “como finalidade principal provocar o riso, mas representar, com

os elementos da caricatura, um momento do ser humano que seja visto sob o

prisma do humor” (FONSECA, 1999, p. 25-27). Nas palavras de Miguel Paiva,

“A melhor forma de você informar alguém ou de fazer alguém aprender alguma

coisa é usar o desenho de humor”, no que ele está acompanhado pela totalidade

dos entrevistados, como será desenvolvido mais adiante, no capítulo 3.

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As qualidades apolíneas do anúncio tendem a ser alcançadas pelo uso de

texto e as qualidades dionisíacas, pelo uso das imagens. “O que as palavras não

afirmam, a imagem o faz e vice-versa [...]. Há sempre uma fusão, uma

complementaridade semiótica entre o código linguístico e os códigos visuais”

(CARRASCOZA, 2004, p. 94). Assim, não admiramos que uma cartilha de

propaganda possa assumir a forma de um gibi de quadrinhos, ou de um livro de

conto ilustrado, como Jeca Tatuzinho. Segundo o autor, justamente quando

assumem a forma de histórias, adentrando o universo literário, as criações

publicitárias atingem sua condição mais aberta e plurissignificativa. “O texto de

propaganda impresso pode ainda ser formatado como uma oração, um sermão, um

horóscopo, uma receita médica, uma ficha de inscrição, enfim, um sem-número de

apresentações inspiradas em modelos verbais distintos” (CARRASCOZA, 2004,

p.30). De fato, é frequente a participação de cartunistas como ilustradores ou

coautores de cartilha (Luíz Sá, Ziraldo, Maurício de Sousa, Claudius, Bira Dantas,

Marcos Vaz, Miguel Paiva, Laerte, Nani, Márcio Baraldi, Pedro de Luna, Caco

Galhardo, Jean, Luís Augusto, Geandré, Nílson, Vilmar, entre muitos outros).

Sobre a convocação de cartunistas para elaborar e assinar cartilhas, a

gerente de produtos da indústria farmacêutica entrevistada diz que o motivo de

contratar Ziraldo é que

[...] a assinatura do Ziraldo já tem um peso. A pessoa olha e já pensa que tem uma coisa interessante ali. Tem uma coisa também de estimular a leitura. [...] O que chamou a atenção foi a abordagem que ele tem, de que está ligado a questões sociais; de que, no fundo, tem preocupação de educar. Casou muito com a proposta da campanha. Não foi só pela estética. Foi por toda a proposta de trabalho. Portanto, a participação dos cartunistas, desde o início do processo, não

pode ser somente creditada à necessidade de “embelezar” ou “decorar” a

publicação. Procura-se algo mais que eles podem fornecer.

Como uma das características das cartilhas é que, com elas, se busca

atingir um público amplo e esparso, faz sentido analisar cartilhas disponíveis on-

line e para download, tanto quanto cartilhas impressas, cuja distribuição é

irregular e restrita. Ainda que estejam disponíveis na internet, as cartilhas que

estudamos não apresentam recursos multimídia nem recursos interativos. Elas

mantêm o modelo da publicação impressa e a divisão do texto em páginas.

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Paula Bauducci reforça a noção de que a cartilha é um veículo de

popularização:

A nossa ideia é que isso se amplie para todo o Brasil, nas escolas do ensino infantil e fundamental. Queremos divulgar mais no site para fazer esses projetos de distribuição de cartilhas no Brasil todo. Tenho tentado, tive até uma conversa em maio que não evoluiu, pra que a gente faça com o Ministério da Saúde, pra que ele abrace a ideia e a gente distribua no Brasil todo. O cartunista Claudius também caracteriza as cartilhas por sua distribuição

a mais ampla possível, utilizando reimpressões e disponibilização na rede:

Você usar a internet significa que você tem um poder de alcance muito maior. Você faz uma cartilha; aí, você tem que mandar pro Amazonas, bota num envelope e manda. Demora uma semana e pra chegar ao Amazonas custa tanto... Agora, você também pode mandar e o cara imprimir lá. Você manda as páginas, o cara imprime e monta... De fato, os produtores de cartilhas costumam alegar que perdem de vista o

alcance dessas publicações. Miguel Paiva, por exemplo, lembra que a distribuição

“dilui muito” pelo país, e que hoje há programas e processos de financiamento

para a educação que permitem a um órgão da federação reimprimir cartilhas já

feitas em outro, o que dá uma “sobrevida” a elas e o artista “não tem como

controlar”, pois não é uma publicação à venda. Quando se pesquisa o material que

circula no Brasil sob a categoria de cartilha, podemos nos surpreender com a

profusão e a variedade delas. Quanto mais se pesquisa, maior parece ser o

tamanho da “cartilhosfera”. Essa surpresa decorre de outra característica do

formato: sua invisibilidade. Cartilhas são publicadas sem nenhuma regularidade.

São publicações isoladas, de tiro único; raramente são lançadas em sequência de

edições. Cartilhas não têm a circulação aferida. Cartilhas não têm território nem

público cativo. Cartilhas geralmente não pertencem a editoras. Cartilhas não estão

nas bibliotecas, porque poucas recebem número de ISBN. Entre as 300 cartilhas

coletadas para a pesquisa, somente 31 apresentaram algum tipo de catalogação

(sendo que 16 delas são do mesmo autor e formam uma série). De certa maneira,

são publicações invisíveis aos críticos e pesquisadores. No entanto, conforme já

foi observado, uma simples busca de títulos pela internet prova que elas estão

presentes no país inteiro e são publicadas de uma maneira profusa.

Uma vez que as cartilhas são publicações descartáveis, a pesquisa teve que

se debruçar sobre coleções particulares e sobre a coleta de títulos disponíveis para

download da internet. Num determinado momento do trabalho, foi preparada uma

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planilha para classificar as cartilhas coletadas e obter alguns números indicativos.

As informações inseridas na planilha foram:

1) Título da publicação

2) Nome da organização que patrocina a cartilha

3) Natureza da organização que lançou a cartilha

4) Projeto editorial (como apresenta os textos e ilustrações)

5) Ano de publicação

6) Tipo de autoria (se é assinada, se os criadores são identificados ou não)

7) Nomes de autores e ilustradores, quando constam na publicação

8) Catalogação (sim ou não)

9) Tema da cartilha

10) Número de páginas

11) A qual acervo pertence (coleção do pesquisador, coleção Buhrer ou

Internet)

Foram coletadas 300 cartilhas, que depois foram classificadas por temas. A

maioria, 94, apresenta temas de cidadania e direitos; 65 apresentam temas de

saúde; 37 têm tema de meio ambiente; 34 têm temas de consumo; 23 são políticas;

23 tratam de segurança pessoal, profissional e no trânsito; 17 tratam de relações

públicas; sete tratam de religião.

O critério de classificação foi assim delineado:

1) A categoria “cidadania e direitos” engloba assuntos como inclusão,

educação, direitos e deveres, voluntariado, leitura, tolerância, organização

sindical, direitos humanos a divulgação de códigos legais, como o estatuto

da criança e do adolescente ou o código de defesa do consumidor.

2) Na categoria “saúde” se encaixam as cartilhas que aconselham sobre

prevenção de doenças (principalmente DSTs, AIDS e dengue), cuidado

com os dentes, prevenção do uso de drogas, prática de atividades físicas,

práticas anticoncepcionais, saneamento, nutrição, higiene e cuidados

pessoais.

3) Na categoria “meio ambiente” agruparam-se as cartilhas que instruem

sobre mudança de comportamento para hábitos mais sustentáveis, como

economia de energia, separação do lixo para reciclagem e preservação das

matas e águas.

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4) A categoria “consumo” engloba as cartilhas que instruem o leitor sobre

a correta, segura e vantajosa utilização de produtos e serviços, desde

maçãs e filtros solares, passando por impermeabilizantes, até viagens

aéreas e serviços bancários. Naturalmente, essas cartilhas são patrocinadas

por empresas privadas.

5) As cartilhas classificadas como “políticas” fazem parte de campanhas

eleitorais, quando geralmente estão ligadas a uma candidatura, ou tomam

partido em debates sobre mudanças na legislação.

6) A categoria “relações públicas” foi criada para agregar as cartilhas em

que órgãos públicos ou grandes empresas prestam contas de suas

atividades com intenção de melhoria da imagem institucional. Por

exemplo, uma estatal de telefonia mostrava seus planos de investimento;

uma construtora imobiliária construía uma imagem positiva de si mesma.

7) As cartilhas sobre conselhos de segurança na rua, no trabalho e na

internet foram agregadas às cartilhas sobre comportamento no trânsito.

8) As cartilhas da categoria “religião” falam sobre o sistema de suas

crenças (na coleção obtivemos uma maioria de cartilhas espíritas).

É possível, certamente, classificá-las com outro critério ou obter outros

números, porque uma cartilha pode ter dois tipos de conteúdo ao mesmo tempo.

Por exemplo, a cartilha de relações públicas de uma prefeitura também passa

noções de cidadania e de sustentabilidade; a cartilha da polícia militar faz relações

públicas da corporação enquanto passa dicas de segurança no trânsito para

crianças; a cartilha sobre cuidados higiênicos sugere que o leitor cuide também do

meio ambiente para sua saúde ser beneficiada, etc.

Hipoteticamente, cartilhas são apenas mais um meio de comunicação

impressa e poderiam versar sobre tudo. No entanto, vê-se que os temas das

cartilhas atuais nunca fogem a esta lista: hábitos saudáveis; hábitos

ambientalmente sustentáveis; comportamento no trânsito; comportamento no

consumo; comportamento no trabalho; comportamento em relação às minorias;

conscientização social, etc. É possível dizer que a edição e distribuição de

cartilhas se encaixam no conjunto de práticas sociais que, segundo Michel

Foucault, criam um “regime de verdade ou política geral de verdade”. E que, ao

criar domínios do saber, criam também formas de ser sujeito do mesmo saber. Ao

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longo da história, saberes têm sido desenvolvidos com a intenção de aperfeiçoar

os indivíduos, numa multiplicidade de processos de normalização que modelam as

pessoas em sujeitos que realimentam os saberes: “O indivíduo é, sem dúvida, o

átomo fictício de uma representação ideológica da sociedade; mas é também uma

realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a

disciplina” (FOUCAULT, 2014, p.189).

Os métodos disciplinares são práticos e ligados a ambientes sociais; as

cartilhas representam tão somente um convite – uma sugestão – para o leitor

participar deles. Se os comportamentos sugeridos fossem naturais, não haveria

necessidade de produzir cartilhas. Elas existem justamente porque tais

comportamentos defendidos pelos saberes disciplinares representam um novo

grau de exigência para se estar em dia com a normalidade; um novo apertão nos

parafusos que limitam e direcionam as rotinas dos indivíduos. É um processo

multifacetado, em andamento e, provavelmente, sem fim:

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”. Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação (FOUCAULT, 2014, p.135).

A tecnologia do poder/saber cria “corpos dóceis, submissos e exercitados”

para que, por exemplo, o trânsito flua bem e com o mínimo de acidentes; para que

se economize luz; para que se diminua a produção de lixo; para que se reformem

os preconceitos, etc. A dominação não é só “para que façam o que se quer, mas

que operem como se quer, com as técnicas, a rapidez e a eficácia que se

determina” (FOUCAULT, 2014, p.135).

Além de estar enquadrado na teoria de Foucault sobre a disciplina, o

conteúdo das cartilhas foi analisado nesta pesquisa sob a ótica de Norbert Elias

(2011) sobre o processo civilizador, por se entender que as cartilhas guardam

semelhanças com os manuais de boas maneiras estudados por esse autor. O estudo

comparado de manuais de boas maneiras de épocas passadas, como Da civilidade

em crianças (1530), de Erasmo de Rotterdam e Les régles de la bienséance et de

la civilité chrétienne (1729), de La Salle, mostrou a Elias que o homem ocidental

nem sempre se comportou da maneira como estamos acostumados a considerar

civilizada: era necessário, na Renascença, aconselhar um jovem nobre que, à

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mesa, não deve soltar ventos ruidosamente, enxugar o nariz na roupa, nem

oferecer a alguém o pedaço de carne que está comendo.

Progressivamente, a educação e a comunicação, de mãos dadas, durante

séculos, vão instruindo às pessoas como se comportarem para permanecer nos

círculos sociais mais valorizados: elas têm que abandonar os antigos

comportamentos considerados mais rústicos, tais como comer com as mãos, sujar-

se, liberar espirros e gases, e adotar os novos comportamentos mais civilizados,

tais como usar talheres, observar a higiene, baixar o tom de voz, controlar a

expressão de emoções, evitar a menção a certas partes do corpo, etc. Esses

comportamentos, quando se disseminam totalmente, passam a ser considerados os

normais para qualquer círculo social, prestigiado ou não. Diz-se até que é o

comportamento "natural" de qualquer pessoa civilizada quando, de fato, eles são

aprendidos.

Em vista da evidência empírica de que o conteúdo temático das cartilhas

se restringe a essa pauta disciplinadora, foi decidido fazer uma comparação entre

cartilhas que tratam do mesmo tema, mas foram publicadas em épocas distantes

no tempo. O plano é identificar as constantes e os contrastes entre elas, de modo a

apreender algum conhecimento sobre o próprio gênero de publicação. Esse

critério de constituição de um corpus é inspirado na pesquisa de Boltanski e

Chiapello, O novo espírito do capitalismo. No citado trabalho, os pesquisadores

estudaram publicações que guardam alguma semelhança com as cartilhas: a

literatura de gestão empresarial. Os pesquisadores observam que tais livros que,

pretensamente, apenas ensinam técnicas de como aumentar o rendimento das

organizações, carregam “ao mesmo tempo um forte tom moral” e “nos moldes dos

livros edificantes ou dos manuais de instrução moral, eles praticam o exemplum” e

categorizam os casos entre “o que deve ser feito versus o que não deve ser feito”

(BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009, p.84). A decisão desses pesquisadores foi

constituir um corpus de livros publicados nos anos 1960 (1959 – 1969) e outro de

livros dos anos 1990 (1989 – 1994) para, então, compará-los em suas diferenças,

uma vez que o conteúdo temático era o mesmo. No caso da nossa coleção de

cartilhas, o conteúdo não é sempre o mesmo. Como foi dito acima, elas podem ser

categorizadas por temas. Desse modo, optamos por focar em apenas duas

categorias: a de saúde e a de consumo.

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Uma vez que já observamos que os temas das cartilhas se alinham à

tecnologia do poder/saber foucaultiano, sugerimos que uma descrição mais

relevante do material empírico poderá ser feita se nos debruçarmos sobre as

cartilhas de saúde. É nelas que o discurso se remete às verdades científicas para

moldar sujeitos fisicamente aptos, com noções de normas de higiene e limpeza.

Esses sujeitos bem instruídos são, segundo o saber das disciplinas, aqueles que

gozam de uma vida com mais qualidade e também mais produtiva.

Por sua vez, após a jornada de trabalho, o tempo não é “livre”; é regulado

pelo sistema de produção. E o lazer não é gozo do tempo livre, mas consumo do

tempo improdutivo. “Se bem que economicamente improdutivo, esse tempo inclui

uma produção de valor – valor de distinção, valor estatutário, valor de prestígio”

(BAUDRILLARD, 2011, p. 210). Não apenas um tempo obrigatório de repouso e

recuperação “sadia”, mas um tempo de consumo. Se as disciplinas da saúde nos

moldam como eficientes unidades de produção, tanta produção deve corresponder

a consumo, o lado complementar do sistema produtivo. Assim, o estudo de

cartilhas de educação do consumidor, em que se disciplina o público a

adequadamente usufruir das novidades do mercado e dos desenvolvimentos

tecnológicos, pode também servir para interpretações significativas.

Para dar conta de todos esses elementos, esta dissertação está dividida em

três capítulos. No primeiro capítulo é feita a comparação e interpretação de 12

cartilhas educativas com temas da área de saúde, bem-estar e hábitos de higiene.

Para proceder a análise, foi estabelecido um critério sobre aspectos levados em

conta, para comparar as publicações, sem se perder na observação de diferenças

óbvias entre o material mais antigo e o mais novo. Regularidades e pontos em

comum surgiram e as publicações puderam ser interpretadas aos pares, o que foi

muito produtivo. As conclusões desse capítulo, de modo geral, apontam que há

muita regularidade na mensagem e na estratégia persuasiva das cartilhas de saúde

mais velhas e mais novas.

No segundo capítulo, descreve-se o resultado da análise de oito cartilhas

sobre utilização de produtos e serviços, ou seja, o campo do consumo. O critério

de análise foi o mesmo traçado no capítulo anterior, com a particularidade que,

como o conteúdo das publicações girava em torno de produtos e serviços, a

interpretação se apoiou fortemente nas teorias sobre comunicação e consumo. As

conclusões encaixaram, de um lado, as cartilhas dentro do campo da propaganda

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e, de outro, os criadores de propaganda entre os colaboradores do processo

civilizador.

O terceiro capítulo aborda o significado da participação de cartunistas e

desenhistas de humor em grande número das cartilhas publicadas. Dentro da

coleção de 300 cartilhas tomadas como material de pesquisa, todas, por critério

nosso descrito anteriormente, são ilustradas de alguma maneira. Metade delas,

151, apresenta-se na forma de revista de histórias em quadrinhos. Outras 42

apresentam a forma de tópicos de informação ilustrados com cartuns

humorísticos. E, entre as 300 cartilhas, 125 são assinadas por um artista

(consideramos que a cartilha é assinada somente quando o nome do ilustrador ou

redator aparece na capa, embora, em muitos casos, os cartunistas sejam

identificados na ficha técnica como ilustradores). A partir da experiência

particular, das opiniões manifestadas nas entrevistas e de algumas abordagens

teóricas já feitas sobre o riso, o humor e o cartunismo, foram levantadas algumas

formulações teóricas sobre a relação entre o artista do traço humorístico e a

produção de cartilhas.

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2. Normas sanitárias, dicas de bem-estar

Em 1530, Erasmo de Rotterdam, na obra De civilitate morum puerilium

(Da civilidade em crianças), precisava ensinar a um jovem da nobreza que “É

grosseiro enfiar os dedos no molho. Deve tirar o que quer com faca e garfo”

(ERASMO apud ELIAS, 2011, p.96). Em 1774, o educador Jean-Baptiste de La

Salle ainda afirmava, em seu livro de boas maneiras Les règles de la bienséance et

de la civilité chrétienne (As regras de decoro e civilidade do cristão), que “No

tocante às necessidades naturais, é correto satisfazê-las apenas onde a pessoa não

puder ser vista” (LA SALLE apud ELIAS, 2011, p.134). Em 1957 o Serviço

Nacional de Educação Sanitária (SNES), na cartilha Cuidados..., instrui o leitor

que “Depois de lavar as mãos, cumpre enxugá-las em toalha individual. Quando

esta falte, melhor será enxugar as mãos agitando-as no ar, do que recorrer à toalha

que já serviu a mais de uma pessoa”. Em 1970, na cartilha Agora o Dito é meu

amigo, patrocinada pela Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica (ABIF),

o narrador explicava que “Quem faz as necessidades fora da privada pode soltar

junto ovinhos de vermes”. Em 2006, na cartilha Respire Aliviado: tuberculose tem

cura, do Forum de ONGs de combate à tuberculose no Rio de Janeiro, um

personagem médico aconselha: “Quando for espirrar ou tossir, cubra a boca”. Em

2014, na cartilha Família de Atitude, de um laboratório farmacêutico, afirma-se

que “o hábito diário da lavagem nasal com solução de cloreto de sódio beneficia a

saúde de adultos e crianças durante o ano todo”.

Os trechos selecionados acima, analisados sob a perspectiva da teoria do

“processo civilizador” de Norbert Elias, adquirem significado. Eles conduzem à

afirmação de que todas as cartilhas (no conceito construído nesta dissertação) têm

semelhança com os manuais de etiqueta, quer tenham esse título ou não12.

O estudo comparado de antigos manuais de boas maneiras de diversas

épocas, como os de Erasmo de Rotterdam e de La Salle, mostrou a Elias que o

homem ocidental nem sempre se comportou da maneira como estamos

acostumados a considerar civilizada. Comportamentos que hoje consideramos

naturais e amplamente difundidos precisavam, nos séculos que nos precedem, ser                                                             12 Tais como as cartilhas Manual de Etiqueta do Usuário de Celular, da BCP Comunicação (sobre utilização da telefonia celular) ou Manual de Etiqueta Planeta Sustentável, da Editora Abril (sobre sustentabilidade).

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ensinados mesmo aos membros das classes altas. Os tratados estudados por Elias

são de um tempo em que ainda era necessário aconselhar um jovem nobre que, à

mesa, não deve soltar ventos ruidosamente, nem enxugar o nariz na roupa, nem

mastigar de boca aberta, nem avançar sobre a travessa de comida, nem oferecer a

alguém o pedaço de carne que está comendo.

Entre as conclusões de Elias destacam-se algumas que gostaria de

considerar na presente análise das cartilhas contemporâneas. Primeiro, os

preceitos de boas maneiras vão evoluindo ao longo do tempo, ou seja, textos mais

recentes não citam regras que já estão suficientemente difundidas, regras que os

leitores já seguem “naturalmente” antes de conhecer o livro (por exemplo, o uso

de garfo e faca nas refeições). O efeito curioso desse fato é que os mais antigos

manuais de etiqueta podem causar nojo aos leitores de hoje, pois acusam

comportamentos que já estão quase banidos da sociedade, como urinar e defecar

na rua, dormir na mesma cama com um estranho e disfarçar um flato com o som

da tosse. Segundo, os manuais de boas maneiras se destinam aos novos membros

da sociedade, principalmente crianças e jovens adultos vindos “do campo” (como

nobres da província, por exemplo). É frequente, na argumentação dessas antigas

obras, a condenação dos maus hábitos pelo simples fato de serem os hábitos dos

camponeses e pessoas “rústicas”. Além disso, os adultos são instados a não se

comportarem como crianças, pois estas ainda têm a prerrogativa da ignorância

enquanto não foram educadas. Cada criança precisa, no entanto, em poucos anos

de aprendizado, ter seu comportamento ajustado a um padrão que a sociedade,

como um todo, construiu e difundiu ao longo de séculos. Terceiro, os

comportamentos “corteses” ou “civilizados” se disseminam de cima pra baixo na

pirâmide social, ou seja, as regras de etiqueta surgem na sociedade de corte antes

de serem adotadas, pelo menos em parte, pela burguesia em ascensão, para depois

se difundirem entre os trabalhadores. Tudo isso, é claro, ao longo de muito tempo.

Quarto, a ocorrência desse processo demonstra a hegemonia do projeto de

civilização e de progresso contra o de cultura e preservação da sociedade. Note-se

que as instruções de boas maneiras não são um treinamento em futilidades como,

em parte, são vistos hoje. Na França do século XVIII os termos civilisation e

homme civilisé surgem na cultura da corte, entre “esclarecidos”, mas serão

adotados, depois, pelo Estado, como um projeto universal: opor-se ao estado de

barbárie, alcançar “um tipo mais elevado de sociedade: a ideia de um padrão de

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moral e costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo e numerosos

complexos semelhantes” (ELIAS, 2011, p.59). Entende-se que as cartilhas são

alguns dos “milhares de outros instrumentos”, além da educação familiar, com

que a sociedade como um todo exerce a pressão do condicionamento sobre as

novas gerações (ELIAS, 2011, p. 139).

De fato, foi apurado que grande número das cartilhas publicadas,

especialmente por órgãos públicos, se ocupa de temas relacionados à área da

saúde, especialmente prevenção de doenças e cultivo de hábitos saudáveis e

higiênicos. Esse tema está relacionado a 21,7% dos títulos coletados para esta

pesquisa. Podemos associar esses assuntos ao cultivo de maneiras civilizadas.

Os comportamentos incivilizados ou descorteses eram, nos textos mais

antigos, censurados pelos incômodos que causariam a outras pessoas, mas pouco a

pouco os mesmos hábitos passam a ser condenados pelo que são em si, pois

passam a causar embaraço, vergonha, culpa e nojo mesmo quando o indivíduo

está sozinho. “Grande parte do que chamamos de razões de ‘moralidade’ ou

‘moral’ preenche as mesmas funções que as razões de ‘higiene’ ou ‘higiênicas’:

condicionar as crianças a aceitar determinado padrão social” a tal ponto que o

indivíduo procure o “autocontrole” e pense que ele é do interesse “de sua própria

saúde ou dignidade humana” (ELIAS, 2011, p. 148).

Assim, instalam-se noções de nojo inexistentes no passado, uma vez que

passa a ser importante para a sociedade condenar certo tipo de comportamento e

“[...] qualquer transgressão é sentida pelos indivíduos como uma enorme

violência, com pesadas consequências para o seu equilíbrio psíquico e fisiológico”

(RODRIGUES, 1983, p.138). O nojo, apesar de ser um sentimento visceral, é

também uma reação culturalmente aprendida. E as noções de higiene, que hoje

são associadas ao conhecimento científico, de fato prescindem desse

conhecimento: “A nossa evitação do sujo é de ordem simbólica e classificatória,

antes de orgânica e patológica. A descoberta dos micro-organismos patogênicos é

posterior, muito posterior, à ideia de sujidade” (RODRIGUES, 1983, p.139). Isso

não costuma ser levado em conta nos textos de cartilhas, os quais, como veremos

a seguir, insistem em fundamentar seus conselhos no conhecimento construído

pela medicina social, ou seja, conhecimento sobre causas patológicas13 e

                                                            13 Não necessariamente microbiológicas, pois houve também teorias médicas acerca de humores e de paixões como causas de doença (COSTA, 2004; FOUCAULT, 2013 b).

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conhecimento sobre as técnicas de higiene. Higiene não se resume à limpeza; é

uma disciplina que se estende à moradia, à urbanização, à rotina cotidiana e às

atividades sociais.

Segundo Jurandir Freire Costa, a respeito da classe médica brasileira do

século XIX, “Antes mesmo dos arquitetos, urbanistas, demógrafos, pedagogos,

psicólogos, sociólogos e assistentes sociais, eles impuseram à casa e à família,

desequilibradas pelo desenvolvimento urbano, seu modelo de organização social”

e “A higiene ministrava a seu público ensinamentos que iam desde aqueles de

alçada de um engenheiro ou de um arquiteto até aqueles da competência de um

mentor de etiqueta social” (COSTA, 2004, p. 114-115). Nota-se, com essa

observação, o quanto são tornados próximos os campos da Saúde e o das boas-

maneiras.

O projeto que o modelar Estado Nacional, desenvolvido nos séculos XVIII

e XIX, tinha de estender a civilização a todos os habitantes do território

(tornando-os cidadãos) também dava, segundo Foucault, uma função política à

categoria de médicos nacionais: acabar com todas as doenças, pondo fim àquelas

que seriam suas causas: as paixões, conflitos e desequilíbrios sociais. A partir daí

a importância dos médicos cresce e:

A medicina não deve mais ser apenas o corpus de técnicas da cura e do saber que elas requerem; envolverá, também, um conhecimento do homem saudável, isto é, ao mesmo tempo uma experiência do homem não doente e uma definição do homem modelo. Na gestão da existência humana, toma uma postura normativa que não a autoriza apenas a distribuir conselhos de vida equilibrada, mas a reger as relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade em que vive (FOUCAULT, 2013, p.37).

É a busca de criar esse normativo “homem-modelo” que impulsiona a

criação de tantas cartilhas que se sucedem no trato dos mesmos temas e na

pregação dos mesmos conselhos, e que coloca o saber médico como lastro para a

pregação de, praticamente, qualquer mudança de comportamento.

Assim, nesta parte da pesquisa, foi analisado um corpus de cartilhas da

área da saúde, a fim de obter dados sobre o significado dessa prática social. Foram

selecionados, da nossa coleção, dois conjuntos de cartilhas sobre saúde: um

conjunto de seis cartilhas “antigas”, publicadas entre 1949 e 1970, e um conjunto

de seis cartilhas “contemporâneas”, publicadas entre 1989 e 2010. Selecionamos

títulos que atendem ao critério de variedade, para cobrir o leque de assuntos

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enquanto que as mais recentes são todas em quadricromia.16. As cartilhas do

primeiro grupo só podiam se valer de cartas para se comunicar com os leitores; as

cartilhas do segundo grupo podem oferecer links para sites e endereços de e-mail

para receber perguntas e interagir com os leitores.

b) Diferentes pautas de problemas de saúde a serem abordados. A

população nas primeiras décadas do século XX habitava mais as áreas rurais e os

programas de saúde pública focavam na malária, na Doença de Chagas e nas

verminoses (filariose, xistossomose, ancilostomíase, principalmente), enquanto

que, nas décadas recentes, com o processo desordenado de urbanização, a dengue

preocupa mais. Por sua vez, AIDS não era conhecida até os anos 1980.

Curiosamente, a tuberculose, que já foi considerada um problema superado,

voltou a preocupar e foi assunto de cartilhas em 1953 e em 2005. Segundo o site

do Ministério da Saúde, a cada ano são notificados cerca de 70 mil novos casos no

país.

c) Estilo de época dos ilustradores. Luiz Sá tem um traço que se relaciona

aos desenhos animados do início do século XX. Ziraldo tem um traço relacionado

ao cartum político dos anos 1960/1970 e cada artista tem suas próprias referências

quanto ao estilo do traço.

d) Diferentes alcances de distribuição. Isso depende do tipo de instituição

que patrocinou a cartilha. Há cartilhas de âmbito federal, com centenas de

milhares de exemplares, e outras locais, com mil exemplares tirados. Por

exemplo, Todos contra a dengue! (setor privado) reporta uma tiragem de 35 mil

exemplares e O olho do consumidor, publicada pelo Ministério da Agricultura,

reporta 620 mil exemplares na primeira edição.

e) Diferenças na proporção entre o volume de texto e de ilustração. Isso

não depende da época nem do conteúdo da cartilha. São diferentes soluções a que

chegam os grupos autores de cada cartilha. Por exemplo, a tuberculose é abordada

em 1953 numa proporção de poucas ilustrações por página, e em 2005 ela é

explicada integralmente em forma de quadrinhos. De qualquer forma, as duas

abordagens resultaram em narrativas ficcionais. Por outro lado, em 2010, a

                                                            16 Na técnica da quadricromia (ou policromia), todas as cores são obtidas pela combinação de quatro cores de tintas na impressão, o que é mais custoso do que imprimir com uma ou duas tintas apenas.

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educação sobre drogas foi abordada numa cartilha com predominância de páginas

de texto e o caráter dele era não-ficcional.

Uma vez que o corpus é assim heterogêneo, justifica-se por que foi preciso

trabalhar com tantas obras nesta fase da pesquisa: para não correr o risco de, como

na anedota teórica de Gilbert Ryle narrada por Geertz, interpretar a “piscadela” de

uma criança sempre como um tique nervoso, quando pode ser também sinal de

conluio, ou uma imitação jocosa, ou o treino para realizar a imitação jocosa,

dependendo de que significado cultural aquele mesmo fenômeno observado (a

contração de uma pálpebra) tem dentro de seu contexto. Se o observador só

reconhece existir a piscadela de tique nervoso, pode acabar interpretando

erradamente (GEERTZ, 2014, p.5). Entre tantas páginas analisadas, é preciso

evitar interpretar uma imagem ou enunciado ali impresso num nível de significado

errado, fora de seu contexto. Por exemplo, seria um erro interpretar a presença de

uma sequência de história em quadrinhos dentro de uma cartilha sempre como

evidência de que o autor quer se comunicar com o público infantil. Muitas vezes,

não é o caso. Convém aprofundar a análise. Assim, este estudo procurou por

outros contrastes e coincidências além das que estão na superfície. Foi uma

análise interpretativa, mais afim do trabalho de um crítico literário do que o de um

decifrador de códigos – como a descreveu Geertz (2014, p.7).

Durante a seleção, descrição e análise das cartilhas mais antigas surgiu a

curiosidade de saber como aqueles profissionais do passado teriam trabalhado. A

partir da experiência compartilhada com os produtores de cartilhas de hoje, seria

desejável compará-la com a experiência daqueles. Em algum grau, o "modo de

fazer" das cartilhas mais antigas se compara aos métodos e circunstâncias atuais.

Na produção das cartilhas do DIP de Getulio Vargas, por exemplo, ou nas do

SNES, dos anos 1950, pode ter havido um briefing; pode ter havido reuniões entre

os representantes do setor que encomendou o trabalho e os profissionais de

comunicação; pode ter havido debates sobre quais mensagens são publicadas e

quais não são. Ou o processo pode ter sido diferente. Infelizmente, são dados aos

quais não temos acesso.

Não podemos saber o que se passou nesses grupos de trabalho do passado,

mas seria muito importante, para realizar a descrição densa do fenômeno social.

Contamos, então, com a experiência de “conhecedor de arte” para ler os indícios

deixados por esses grupos de trabalho em suas obras. Fazemos referência, aqui, ao

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"paradigma indiciário" descrito por Carlo Ginzburg: um modelo epistemológico

de investigação por meio da interpretação de sinais ou indícios no objeto de

estudo. Indícios são pormenores negligenciados por analistas afinados com a

epistemologia platônica. Esse paradigma também compete com o paradigma

científico galileano, que exige repetição de experimentos para comprovar

hipóteses. O paradigma indiciário é necessário para estudar fenômenos que não

poderão ser objeto de repetição em laboratório. Por isso se aplica bem à ciência

histórica. Simplificadamente expressando, "quando as causas não são

reproduzíveis, só resta inferi-las a partir dos efeitos" (GINZBURG, 2007, p.178).

Assim, fundamentado na experiência empírica de profissional de

comunicação e cartunismo, submeti esta análise do corpus a alguns ângulos de

observação. Primeiro, a observação do uso da retórica, ou seja, observar como os

autores das cartilhas conduziram o assunto e quais elementos da retórica

aristotélica se destacaram. Isso justifica-se por serem as cartilhas, assim como as

peças de propaganda em geral, textos fundamentalmente persuasivos, em que o

“gênero deliberativo é dominante” (CARRASCOZA, 1999, p.26). Segundo, o

emprego do discurso de natureza científica: de que forma a informação

cientificamente embasada é utilizada na argumentação. Isso justifica-se porque

“Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral da verdade: isto é,

os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros”

(FOUCAULT, 1990, p. 12) e o discurso científico tem ocupado essa posição,

especialmente no campo da saúde. Terceiro: a procura do que quer que seja o

apelo “lúdico”, ou seja, como os autores valem-se de elementos de jogo para atrair

e manter a atenção dos leitores. Os patrocinadores e autores de cartilhas

entrevistados consideram a ludicidade uma característica muito importante.

Quarto ângulo de observação: como as cartilhas analisadas se encaixam no

processo civilizador. Quinto: a observação da presença institucional dos

patrocinadores de cartilhas dentro da obra, e em que termos a instituição se

apresenta. Por conta disso, empreendi também a análise interpretativa dos textos

paralelos à argumentação principal da cartilha, como as cartas de apresentação,

textos de capa e fichas de créditos.

Em relação ao primeiro ângulo de observação, feito sobre o uso da técnica

retórica nas cartilhas, é preciso justificar a escolha de utilizar somente os

conceitos aristotélicos sobre o tema, quando já existem diversos estudos

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contemporâneos que incorporam a abordagem retórica em pesquisas com objetos

comunicacionais (entre eles, destacam-se os anúncios publicitários). A reflexão

aristotélica sobre a retórica como uma técnica não é a única. Platão repudiou o uso

da retórica pelos demagogos e defendia o diálogo dialético, que tinha por objetivo

produzir saberes e não persuasão; Chaim Perelman observa que, nos tempos

modernos, não se pode estudar a retórica sem considerar que o empirismo e o

racionalismo impregnam a argumentação com a aura da verdade irrefutável dos

fatos; Roland Barthes aponta no uso de imagens nos meios de comunicação como

recurso retórico comparável ao uso de palavras (LOPES, 2012). No escopo desta

dissertação, no entanto, não caberia um estudo focado na retórica de um ou alguns

autores de cartilhas. O que se buscou nesta pesquisa foi descrever um gênero de

discurso onde, como será visto adiante, a retórica é presente como uma prática

ideológica onde “os discursos – os sistemas de signos e as práticas significantes

dos mais diferentes tipos – produzem efeitos, consistentes ou não, que estão

intrinsecamente relacionados à manutenção, à reprodução e, por vezes, a

transformação dos sistemas de poder vigentes” (SACRAMENTO, 2009). Segundo

Barthes, a retórica equivale a uma ideologia da forma, ou seja, não está presa a

uma ou outra ideologia e, por isso, atravessa os séculos, naturalmente

apresentando estratégias e artifícios diferentes em cada época. Essa tal forma de

discurso persuasivo pode ser descrita pelo esquema sintético de Aristóteles e isso

basta para os objetivos desta dissertação.

2.1. Tossir com educação

Os depoimentos dos produtores de cartilha ajudaram a construir a

definição de cartilha e os elementos característicos desse gênero de publicação; a

descrição e interpretação das cartilhas citadas acima contribuiram para dar

inflexão a esse perfil, sob a luz das teorias que estão guiando este estudo.

Fizemos, inicialmente, a interpretação de duas cartilhas, de datas distantes entre

si, que trataram da tuberculose. A de 1953 é O gigante invisível. Essa é daquelas

cartilhas que simulam ser um livro, desde a capa (ver figura 17). Nada indica que

é uma cartilha educativa. O título sugere uma história de suspense, ainda mais se

for associado à ilustração da capa, de uma gigantesca mão com garras no lugar de

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uma cartilha admite que é uma publicação popular. Supomos que ela é chamada

de “popular” em oposição a publicações técnicas do departamento de saúde,

destinadas ao público profissional, como enfermeiros, professores e médicos. São

36 títulos muito sugestivos. Cinco deles seguem a linha do conto popular: A maior

riqueza, A última caçada, O Baile de formatura, O gigante invisível e O pacto

com o demônio. Um se chama Livro das Mãezinhas; um único assume no título o

que realmente é: Cartilha de combate ao tracoma. Vinte das publicações seguem

este padrão: O que se deve saber sobre Alcoolismo, O que se deve saber sobre

Asseio Corporal, O que se deve saber sobre BCG etc, cada uma sobre uma

questão de saúde. A fórmula acima é uma maneira consagrada de dar título a uma

cartilha. Remete-nos a O que o cidadão deve saber de Sampaio Dória (1920) e

também à Cartilha em lingua portuguesa e Tamul: o que deve saber o cristão

para sua salvação (1554). A cartilha parece que, de início, já se impõe como

obrigação ("deve saber").

A contracapa leva um selo do SPES. Ali indica-se claramente que o livreto

é de "distribuição gratuita", como devem ser as cartilhas, para cumprir seu

propósito de divulgação ampla. Institucionalmente, o SPES é discreto na cartilha,

pois só é citado nas capas, mas o Estado é mais presente no interior da narração,

pois fala-se de vacinas obrigatórias e de exames trabalhistas.

A história de O gigante invisível nos aproxima logo de início do cotidiano

de Carlos, um rapaz urbano, trabalhador de escritório, que mora sozinho num

quarto de pensão sem janelas, empoeirado e úmido, de onde sai toda noite para

passar a madrugada nos bares, e de onde sai toda manhã, apressado, sem tomar

café, para não perder o ponto no trabalho. É um esforço do autor para retratar o

cotidiano da cidade grande, aquela que atira a todos na promiscuidade

propagadora de doenças. Jurandir Freire Costa, narrando a história do elo informal

entre a “medicina social” e o “Estado”, desde o período colonial brasileiro, nos

lembra de que, por muito tempo, se associou a habitação fechada aos defeitos dos

colonos portugueses:

A medicina, ao se impor como técnica de regulação do contato entre indivíduos e família, cidade e Estado, teve na casa um dos maiores aliados. Do ponto de vista da higiene, a habitação antiga prestava-se a todo tipo de crítica. Sua arquitetura fechada, impermeável ao exterior, elaborada para responder ao medo dos “maus ares”, ventos e miasmas foi duramente atacada pelos médicos como insalubre e doentia (COSTA, 2004, P.110).

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Carlos, em certo ponto, pergunta a César, um colega de trabalho: “Mas,

velhinho, como é que a gente fica tuberculoso?”. César é um personagem que

sabe tudo sobre a tuberculose e é na voz dele que o leitor recebe a maior

quantidade de informação. César responde: “Você ainda não sabe? A doença é

causada por um micróbio invisível a olho nu, o bacilo de Koch. Esse perigoso

inimigo pode instalar-se em vários pontos do organismo, mas prefere os pulmões,

produzindo a tuberculose pulmonar”. O colega César sabe tudo e providencia

tudo; marca o médico, explica a doença, pede a dispensa médica ao patrão, traz o

ordenado ao doente, censura a vida desregrada dele e sugere um lugar para ele se

mudar para o interior, pois o médico ordena: “Deve sair da Capital, já não tanto

para mudar de clima, mas para mais facilmente organizar um ambiente

adequado, de repouso e tratamento. Fica proibido qualquer trabalho. Deve

entregar-se a repouso absoluto”. Carlos vai viver numa cidade do interior,

dividindo aluguel com outro convalescente de tuberculose.

A imagem metafórica da doença como um “gigante invisível” de fato não

é muito explorada para causar sensação ao leitor, mas em certo ponto o narrador

pondera: “Sim, a tuberculose é a doença da miséria. Nas nossas grandes cidades,

como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Salvador, a sua multiplicação é

rápida, acompanha o pulsar de um relógio. Há, não se sabe onde, um gigante de

clava em punho, que não se cansa de desferir golpes sobre golpes...

Tic,tac,tic,tac... Mais um, mais um, mais um... Esse gigante feroz é invisível...

Chama-se Dom Bacilo...”. O desenho de um gigante de clava, encaixado nesse

trecho, é uma das poucas imagens desta cartilha.

O uso de gírias na fala dos personagens (tais como velhinho, não é

brinquedo, as coisas andam bicudas, papinho, lero-lero e lesco-lesco) sugere que

o autor tentou simular a linguagem falada nas cidades, nas camadas populares, e

buscar a simpatia de leitores mais jovens. É o esperado, pois o foco nas crianças e

jovens é típico da educação civilizadora e higiênica, conforme Jurandir Freire

Costa:

Por estes textos vê-se quais os métodos e objetivos da educação higiênica da família. A técnica era a da criação de hábitos. As ‘más inclinações’, prevenidas pela inculcação dos bons hábitos, dispensavam o uso de castigos recorrentes e os agentes externos. Seus efeitos eram duradouros, praticamente invisíveis. Implantavam-se gradualmente na ‘alma dócil’, no ‘corpo tenro e flexível’ sem deixar marcas perceptíveis. (COSTA, 2004, p.175)

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Chico Braga, um trabalhador que está com tuberculose e já se trata há mais

tempo, é quem prescreve a Carlos a rotina de higiene: “Olhe, velhinho, quando

você tossir deve levar o lenço à boca, para segurar os perdigotos e o mal que

neles vem. E não fique com o mesmo lenço por muito tempo. Depois de tossir três

ou quatro vezes, atire-o naquele balde que ali está, com desinfetante. Não engula

os escarros, muito menos cuspa-os no chão; para eles temos essa escarradeira de

tampa, cheia também de desinfetante. O trecho guarda semelhança com trechos

dos manuais de boas maneiras citados por Norbert Elias, tais como:

Você deve usar o lenço para assoar o nariz, e nunca qualquer outra coisa, e ao fazê-lo esconda o rosto no chapéu. Evite produzir ruído quando assoar o nariz... Antes de assoá-lo, é indelicado passar muito tempo tirando o lenço do bolso. Demonstra falta de respeito para com as pessoas com quem se está desdobrá-lo em lugares diferentes para ver de que lado vai usá-lo. Você deve tirar o lenço do bolso e usá-lo rapidamente, de maneira tal que mal seja notado pelos demais (LA SALLE, apud ELIAS, 2011, p.145). Não basta dizer que os bacilos são transmitidos pelo escarro; é preciso

restringir o número de tossidas, assim como era indelicado exibir por muito tempo

o lenço; enfim, para o uso do lenço é determinada uma ordem de movimentos e

para o descarte do lenço é determinado um lugar mais conveniente, tendo sempre

a consciência de que o ato poderá ser visto por alguém18.

Na parte final, a história tem uma revelação: o colega César teve

tuberculose e já se curou; ele é um "tuberculoso de guerra" que trabalha e vive

como todo mundo, acendendo a esperança em Carlos. No fecho da história, um

trecho significativo: "Muito obrigado, doutor. Quando eu voltar à cidade e ao

trabalho, procurarei fazer pelos outros o que César fez por mim. Direi a muita

gente: cuidado, seus bobos, vigiem constantemente a saúde, não se esqueçam do

que ia acontecendo ao Carlos...". Nessa frase podem-se notar dois elementos

característicos do gênero da cartilha: a intenção de propagar a mensagem (cada

leitor pode ser agente disso) e o apelo à vergonha para disciplinar os jovens. Os

que não sabem como se prevenir são “bobos” como ele, Carlos, já foi um dia.

Segundo Elias, é muito evidente nos tratados de boas maneiras o cultivo do

sentimento de vergonha. Se, nos livros mais antigos, os jovens deveriam ter em

mente que deviam se comportar bem porque havia sempre anjos vigiando (esse

                                                            18 A literatura e o jornalismo também contribuem no mesmo processo civilizador. Por exemplo, numa crônica análoga à citada cartilha, Machado de Assis prescrevia as noções de boas maneiras no ambiente coletivo do bonde: os “encatarrados”, se “tossissem mais de três vezes” deveriam ou ficar em casa ou ir a pé (SICILIANO, 2014, p. 240).

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doente de tuberculose que precisa receber informações e precisa ser voluntário na

busca do atendimento. Esse é o alvo da cartilha. Esse doente hipotético deve ser

envolvido positivamente, com esperança de cura, em vez de assustado, como fazia

o texto de 1953. Sob tal ponto de vista, o comunicador aproximou-se mais do

leitor; ficou mais solidário.

É verdade que, em 1953, a mensagem também era de que a tuberculose

tem cura, mas a imagem do doente e do tratamento é negativa, conforme a

ideologia higienista. Em 2005 a mensagem higienista ainda está presente, mas não

condena o paciente. O problema ganha mais tom de problema social: “Também

descobri que o lugar onde a gente vive facilita a doença. Muita pobreza, casa que

não entra sol, sem ventilação, calor. A gente vive mal, né? Muita ralação, mesa

vazia...” diz a personagem Glorinha. O doente só é censurado por ter vergonha de

procurar o médico e por abandonar o tratamento. Zequinha já começa a história

saindo do posto médico, com o diagnóstico. Nesse aspecto, teve comportamento

mais “civilizado” do que Carlos, que temia ir ao médico, mas ambos estavam

desanimados, pensando estar condenados.

Na cartilha de 2005, até mesmo o personagem médico diz com

naturalidade que tuberculose “acontece. Existem situações que facilitam a

transmissão pela proximidade com outra pessoa que esteja doente". Em

comparação, em 1953, o personagem do médico é uma caricatura, de tão "sério" e

reservado, demonstrando controlar as emoções a ponto de ter a mesma expressão

ao comunicar uma notícia boa ou uma ruim. Um trecho de 1953, após a cena do

exame de radiografia: “Como me encontrou, doutor? O médico parecia pensar

em outra coisa. Não respondeu. Embalde o cliente procurou ler-lhe alguma coisa

na fisionomia, mas não conseguiu decifrar as rugas da sua testa, nem a

serenidade triste de seus olhos” (figura19).

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livros não admitem mais o uso dos dedos, e nem precisam ensinar que o lenço é o

correto, pois esse comportamento já foi generalizado. Porém, começam a ditar

novas normas: as de uso “educado” do lenço:

Logo que o lenço começa a ser usado, repete-se a proibição a uma nova forma de “má educação” que surge ao mesmo tempo com o novo costume – a proibição de olhar dentro do lenço depois de usado (ELIAS, 2011, p.147). A cartilha Respire aliviado sugere que a visita ao posto de saúde já é um

comportamento conhecido e difundido, mas surge uma nova forma de “má

educação”: afastar-se de um companheiro por motivo de preconceito.

Sob outro ângulo de análise, nota-se que, na história de 2005, os agentes

de saúde do bairro (chamadas Rita e Sônia) são a presença institucional discreta e

interna à narrativa. Se aquela de 1953 era uma cartilha do Estado, essa de 2005 é

do "terceiro setor"19. Essa mudança pode ser entendida como o desenvolvimento,

ao longo do tempo, de um conjunto complexo de “agentes da política do corpo”,

conforme Foucault:

É um mosaico muito complicado. Em certos períodos aparecem agentes de ligação. Tomemos o exemplo da filantropia no início do século XIX: pessoas que vêm se ocupar da vida dos outros, de sua saúde, da alimentação, da moradia... mais tarde, desta função confusa saíram personagens, instituições, saberes... Uma higiene pública, inspetores, assistentes sociais, psicólogos. E hoje assistimos a uma proliferação de categorias de trabalhadores sociais. Naturalmente, a medicina desempenhou o papel de denominador comum. Seu discurso passava de um a outro (FOUCAULT, 1990, p.151). Enfim, o mundo das cartilhas parece ser aquele cheio de “pessoas que vêm

se ocupar da vida dos outros”, na figura tanto de doutores, quanto de agentes de

saúde, quanto de familiares e amigos. Assim, chega o momento da narração em

que o personagem Zequinha assume o papel de multiplicador (“agora faz palestra

na comunidade sobre o sucesso do seu tratamento”) e enuncia o que os criadores

de cartilha pregam: “a ideia do cartaz foi batata. Descobri que informação

também cura”.

Inesperadamente, observamos que as instruções médicas em 1953 e 2005

são quase as mesmas: referência ao bacilo de Koch, à vacina BCG, aos alimentos,

ao sol. A diferença fundamental é que em 2005 o médico diz que "não é

necessário se isolar" e em 1953 se aconselha "não manter contato com

tuberculosos" (só a pobre da Zulmira era obrigada a isso, pelo casamento com

Chico Braga). Em 1953 aconselha-se fugir dos excessos (alcoolismo, trabalho                                                             19 Conjunto das organizações da sociedade civil sem vínculo com o setor público.

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exaustivo, noitadas, etc.) e, em 2005, o rapaz até se aborrece quando os amigos

insinuam que ele ficou doente por viver na boêmia.

As duas cartilhas se assemelham porque seus autores optaram por tratar do

assunto com uma história “exemplar”, que é um recurso retórico aristotélico.

Conforme Carrascoza,

Exemplificar é um recurso de persuasão que, muitas vezes, corresponde a apontar apenas uma prova dentro do modelo de texto publicitário apolíneo, ou um fato que demonstra a importância de se fazer a escolha certa, de se adotar esta ou aquela conduta, defendida pelo emissor da mensagem em seu discurso de aconselhamento. Na variante dionisíaca, o exemplo pode abranger toda a história narrada, usufruindo assim o estatuto de uma verdade, ainda que fictícia (CARRASCOZA, 2004, p. 123) Ambas as cartilhas de tuberculose são construídas como histórias narradas

do início ao fim. Ambas foram feitas para entreter e simulam língua falada e cenas

do cotidiano. Essa é uma técnica considerada valiosa para criadores de cartilhas,

conforme o depoimento do cartunista Bira, sobre uma autora de cartilha:

Porque esse texto dela foi baseado em relatos que ela anotou, ouviu de pessoas que falavam aquelas coisas. Então, de novo, a gente volta naquele ponto que eu citei. Quando o seu personagem fala o que é falado, ele passa a ser mais real. Embora não seja o único modelo adotado para a criação de cartilhas, a

referência ao cotidiano e à realidade do público-alvo é uma característica

significativa do gênero.

2.2. Setinhas e lentes de aumento

Sem esquecer as conclusões a que chegamos na comparação das duas

cartilhas sobre tuberculose, analisamos um pequeno grupo de cartilhas que

guardam relações entre si: as que tratam de verminoses e dengue, doenças

associadas às condições sanitárias de habitação.

Jeca Tatuzinho foi uma associação fértil entre uma obra literária e uma

publicação de propaganda comercial explícita, com anúncios de produtos

Fontoura nas capas e em rodapés de várias páginas (em configurações que

variaram de edição para edição). Por um lado, é um anúncio; mas, como o texto é

de Monteiro Lobato, Jeca Tatuzinho é, ao mesmo tempo, uma obra artística – uma

tese do autor. A segunda metade da história não tem mais nada a ver com saúde,

mas conta o progresso de Jeca que, só por curar-se de verminose, por ficar forte e

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trabalhador, torna-se rico, aprende inglês para copiar os americanos, compra

caminhão e cavalo árabe, instala sistemas automatizados na fazenda e passa a

trabalhar num escritório com circuito fechado de televisão. No fim, fica famoso,

estimado e vira filantropo, construindo postos de saúde para ensinar a “caipirada”

e para distribuir o remédio a todos.

A história utiliza o recurso retórico de comparar o “antes” com o “depois”

do uso de um produto comercial – técnica típica do texto publicitário

(CARRASCOZA, 2004, p.157). No início, Monteiro Lobato mal esconde a severa

condenação à falta de iniciativa do personagem: “O que Jeca Tatu queria era

beber a sua pinguinha e espichar-se ao sol, no terreiro. Ali ficava horas, com o

cachorrinho ao lado, ou ao colo, cochilando. A vida que rodasse, o mato que

crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria saber de nada. Isso de

trabalhar não era com ele”. A imagem de Jeca Tatu era ainda pior que isso.

Diziam dele: “Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota...”. Durante

praticamente todo o século XX esteve na ordem do dia dos debates nacionais a

necessidade de modernizar a estrutura agrária do Brasil, mudar a mentalidade do

meio rural e optar por um modelo de desenvolvimento moderno, industrial,

urbano e civilizado. Para tanto, eram necessárias políticas de saúde pública.

Monteiro Lobato participou desse debate de várias maneiras e seu personagem

Jeca Tatu foi adotado por políticos, jornalistas e outros artistas como um “tipo”

usado para se pensar sobre o Brasil, um símbolo de corte e inflexão, do Brasil

agrário atrasado para o Brasil urbano civilizado (CAROLA, 2004 e IANNI, 2002).

O fato de ser alçado a um “tipo” brasileiro explica o potencial de Jeca Tatu

como fulcro de uma campanha publicitária e, na cartilha, a propaganda está

presente dentro da narrativa. O personagem do médico, em certo ponto,

explicitamente prega a compra dos produtos Fontoura: “Quem sofre de sezão sara

com o MALEITOSAN FONTOURA. A ANKILOSTOMINA FONTOURA é só para

o amarelão. Eu vou curar você com a ANKILOSTOMINA”.

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gratuita”, ou seja, uma cartilha de saúde para crianças. É usual, como observado

por Jurandir Freire Costa, que a “medicina social”, pregando pela higiene, volte-se

para a educação dos jovens como meio de mudar o comportamento da família

inteira: “A higiene utilizou amplamente esta tática: apropriou-se das crianças,

separando-as dos pais e, em seguida, devolveu-as às famílias convertidas em

soldados da saúde” (COSTA, 2004, p. 204).

O argumento desta cartilha é basicamente o mesmo de Jeca Tatuzinho:

culpar as verminoses pela inação e pela falta de renda e perspectiva de uma

família que era “mesmo desanimada”. No entanto, não tem o bom humor do texto

de Monteiro Lobato. A história de Dito é mais séria. O texto se estende mais na

enumeração dos cuidados higiênicos, praticamente ausentes em Jeca Tatuzinho.

Inclui a instrução de construir uma "casinha" mais afastada possível do poço e do

curso de água. Essas recomendações estão presentes também na cartilha mais

recente O melhor lugar, bem como em outras, como lembra o cartunista Bira

Dantas:

A saúde é um tema que é recorrente nas cartilhas, pra ensinar alguma coisa, como cuidar do pessoal que bebe água de poço. Tem aquelas dicas de como ferver a água pra ficar potável, as pessoas, elas explicam. Eu cheguei a fazer desenho pra explicar pro pessoal da roça - é uma coisa que as pessoas sabem, mas um tanto de gente não sabia - que você não pode, quando você constrói um banheiro, ele não pode se ligar com os lençóis freáticos. Os autores de Dito usam o argumento persuasivo da comparação. Não é

uma história em quadrinhos de leitura linear, mas uma “montagem em paralelo”.

A cada página, o leitor vê dois quadros ilustrados. Em cima, vê a situação boa de

uma família rural (de onde vem o menino Zeca) limpa, animada e trabalhadora:

“comem na hora certa. São limpos, vestem roupa lavada. Tomam as vacinas. Têm

os dentes em bom estado”. O ilustrador se empenha em evidenciar, com

elementos visuais, cada uma dessas afirmações. Em baixo, numa cena em

paralelo, vê a família do menino Dito, convivendo com sujeira de animais, sem

vontade de trabalhar, sem perspectivas. “Reparem que diferença!”, sugere o

narrador. A comparação termina quando o menino saudável Zeca lê um livro,

aprende coisas, e vai procurar o Dito, que “se não fosse tão doente, seria um

grande amigo”. Zeca é o personagem que sabe das coisas (conhecimento

científico) e vai ajudar o próximo (comportamento cristão).

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Obviamente, a leitura da cartilha não é uma atividade dotada de um fim em

si mesmo, como seria um jogo, mas sim o caminho para a adesão a um padrão de

comportamento. Num jogo não se sabe qual das partes vai terminar vencedora; na

leitura da cartilha, o único sucesso possível é o autor convencer o leitor. E não há

regras livremente consentidas nem diálogo entre os autores e o leitor. A noção é

compartilhada pelo cartunista Bira Dantas:

Eu acho que, realmente, esse diálogo é impossível de ser feito. Só teria uma forma de esse diálogo acontecer: você ter uma cartilha em sequência. De ter uma cartilha número um, número dois, número três, que vai ser discutida pelo público. Parece-nos que existe uma confusão semântica sobre o termo “lúdico”. O

que os patrocinadores de cartilha esperam é que ela conquiste a atenção do

público pelo fato de ser “leve” ou até mesmo “divertida”. Segundo Huizinga, é

comum o pensamento de que o jogo se opõe à seriedade, mas há muita seriedade

na prática dos jogos, e há, por sua vez, outros conceitos que se opõem melhor à

seriedade: “O riso, por exemplo, está de certo modo em oposição à seriedade, sem

de maneira alguma estar diretamente ligado ao jogo” (HUIZINGA, 2014, p.8). A

relação do riso, do cômico e do humor com a criação de cartilhas terá uma análise

mais desenvolvida no capítulo 3.

Uma vez que o texto das cartilhas tem finalidade persuasiva, seria

desejável que o jogo (ou o “lado lúdico”) pudesse servir como instrumento de

sedução do leitor. Segundo Baudrillard, a sedução só acontece no terreno da

“dualidade”, quando há “apostas” de dois “jogadores” e o resultado é

imprevisível. O que existe de interação possível nas mídias não permite o

fenômeno da sedução e se restringe à “sedução fria” ou fascinação, um simulacro

da verdadeira ludicidade. Neste trecho ele exemplifica com os programas de

auditório na TV:

Gigantesco processo de simulação que conhecemos bem. A entrevista não-dirigida, os telefones para os ouvintes, a participação em todos os sentidos, a chantagem à palavra: “isso se refere a você, você é o fato, você é a maioria”. E a pesquisa de opinião, de coração, de inconsciente, para manifestar o quanto “isso” fala (BAUDRILLARD, 1991, p.186). Assim, em qualquer cartilha, mesmo um jogo de perguntas e respostas ou

uma atividade de resolver problemas (labirintos, passatempos, palavras cruzadas,

etc.) ainda não são exatamente “lúdicos” no sentido sedutor que a atividade social,

de pessoas frente a frente, permite.

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A persuasão, por sua vez, é um objetivo possível e, observando a técnica

retórica em Agora o Dito é meu amigo, concluímos que, no equilíbrio dos

princípios de ethos, pathos e logos, o discurso concentra-se no logos científico,

assim como as outras cartilhas de saúde, mas é fraco em ethos e pathos, porque a

história não transmite credibilidade e não emociona. A amizade dos dois meninos,

por exemplo, não é desenvolvida, não há altos e baixos na trajetória dos

personagens, não há representação convincente do cotidiano. A autoridade que

profere o discurso é pouco discernível, apesar de que há muita presença

institucional na contracapa. Essa cartilha foi criada pela equipe da Editora Abril e

“aprovada pelo Ministério da Saúde”, sob patrocínio da Associação Brasileira da

Indústria Farmacêutica (ABIF). Ali, na última página, desenvolve-se uma

argumentação, ilustrada em quatro cenas, de que ninguém gosta de comprar

remédio, mas é necessário, e “gasta-se menos em remédios do que em outras

coisas, algumas, até, que fazem mal à saúde” (a imagem é de um bar onde

homens bebem e fumam); que os remédios são resultado de pesquisas de

cientistas de todo o mundo e hoje salvam vidas que antigamente as doenças

matavam. A indústria farmacêutica também está presente no interior da história:

“muitos cientistas, médicos e laboratórios estão sempre procurando remédios

melhores. Hoje todos podem ter saúde”. A cartilha, sob o ponto de vista deste

pesquisador, denota alguma promiscuidade entre setor público e privado, o que

pode ter afetado sua credibilidade.

A análise das duas cartilhas sobre verminoses ofereceu contraste à de

Todos Contra a Dengue! (2006). Nesta cartilha, a lente de aumento já está em

destaque na capa (um menino em primeiro plano usa a lente de aumento para

olhar o focinho de seu cachorro, onde pousou um mosquito Aedes). Elementos de

segundo plano: três personagens da história: o pai, a irmã e a velhinha que mora

no bairro. Logo na capa já se promete a qualidade "lúdica" da obra com a

chamada “uma história cheia de brincadeiras!” (ver figura 23).

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Por ter feito isso, o autor equilibrou o logos das explicações de causa e

efeito (água parada causa mosquito que causa dengue, por exemplo) com o ethos

do apelo à autoridade oficial representada pelos folhetos e com o pathos da

ligação emocional que os leitores costumam ter com histórias em torno de

famílias e vizinhanças.

Um trecho da história chama a atenção: o menino Paulinho pede para

Aninha ir lendo as instruções oficiais do folheto enquanto ele vai “vistoriando” e

“conscientizando”. Essa família fictícia, ao recorrer ao folhetinho para guiar a si

mesmos e aos vizinhos, parece, ainda em 2006, passar pela mesma situação das

famílias do século XIX que penavam para se civilizar e acompanhar a

urbanização. Segundo Jurandir Freire Costa, a medicina higienista conseguiu se

colocar como referência permanente para a conduta saudável; tinha sempre que

ser consultada novamente e seguida à risca:

Era praticamente impossível à família acompanhar a velocidade criativa dos médicos. Onde acreditava acertar, errava; onde pensava errar, tinha acertado. (COSTA, 2004, p. 139)

Da mesma forma, ainda hoje é comum protestar que os médicos e

cientistas fazem circular pela mídia muitas orientações contraditórias e ainda

assim, muitos se empolgam em segui-las à risca.

2.3.

Um amplo leque de cuidados

A classificação das cartilhas coletadas em categorias relacionadas aos

temas de seus conteúdos é fundamental para produzir algum conhecimento por

meio desta pesquisa, mas tal classificação não deixa de ser arbitrária. Se as

cartilhas sobre prevenção de doenças são mais focadas, outras cartilhas da área de

saúde, no fundo, lidam com um leque de comportamentos diferentes que podem

ser associados ao bem-estar de todas as partes do corpo e que disciplinam

comportamentos bem diversos, chegando a tratar de hábitos de trabalho, consumo

e relação com o meio ambiente. Foi interessante analisar em conjunto as antigas

cartilhas do Serviço Nacional de Educação Sanitária (SNES) e as mais recentes

sobre prevenção de câncer, usos da água, comportamento sexual masculino e

sobre drogas.

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autoridade científica. Refere-se aos bacilos e vermes, mas é só. É agradável de ler,

tenta não culpar as pessoas por suas doenças o tempo todo, mas é categórico nas

recomendações. A arte retórica aqui é mais calcada no princípio do ethos: confiar

nas autoridades públicas (o que elas dizem “é para o seu bem”).

Mais uma vez, a maneira de aconselhar o leitor lembra os manuais de

etiqueta estudados por Elias. Por exemplo, o conselho sobre os rouges e batons

(“que tem sido causa de muita pele estragada e sem viço”) é uma pequena aula à

jovem consumidora, que no início dos anos 1950, data da cartilha, começava

apenas a ter o costume de se maquiar liberado pelas regras de recato:

Ora, não é nosso intuito apelar para que tais utensílios de beleza sejam definitivamente afastados do toucador. Não obstante, cumpre dizer que não há necessidade de se emplastar o rosto de cosméticos e de se fazerem desenhos bizarros com o baton, sobre os lábios. Os cremes, o baton e o rouge podem ser usados, exatamente como mandam as regras da maquilage, nada de excessos. Segundo Jurandir Freire Costa, a educação de caráter higienista-

disciplinador fez cair por terra as regras simples de certo e errado: “Quase toda

atividade humana podia ser potencialmente mórbida. [...]Tudo era ao mesmo

tempo sadio e doente. A sabedoria consistia em dosar os excessos, revitalizar os

meios termos” (COSTA, 2004, p.139). No mesmo tom, Henri Bergson observou

que “o que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é uma atenção

constantemente vigilante”; é certa tensão e certa elasticidade ao mesmo tempo,

para nos adaptarmos aos acontecimentos. O sinal de que saímos do meio termo é

o riso dos outros (BERGSON, 2001, p. 13).

Na mesma linha de ridicularização dos excessos, a cartilha Vestuário

(1949) parece apoiar a ideologia nacionalista que se difundiu com mais força após

a Revolução de 1930. Condena o uso de roupa excessiva e escura (trajes

europeus) e preconiza o uso de roupas “leves, folgadas e porosas”. Aponta o calor

em excesso e a falta de circulação como problemas para a saúde. Insiste nisso,

sem nenhuma variedade de argumentos. Também preconiza o banho diário. Acaba

se assemelhando a um “manual de estilo” tropical, apelando para o bom senso,

mas escondendo a severa condenação à imitação dos costumes europeus.

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peso, quarto, raios X, sol, trabalho, útil (“procure unir o útil ao agradável,

enfeitando e enriquecendo os pratos com verduras e legumes frescos”),

vestimenta, xaropes (“faça uso constante de alimentação capaz de fortalecer o

sangue e não tome conhecimento de medicamentos apregoados como tônicos e

fortificantes”) e zelo.

Outra cartilha que, décadas depois, também se ocupou de um leque de

hábitos e comportamentos é O câncer e seus fatores de risco: doenças que a

educação pode evitar (1998). Não se trata de uma história; sua forma é de um

discurso ao leitor. A argumentação, que se apoia em base científica (foi delineada

pela equipe de doutores do Instituto Nacional do Câncer), é toda ilustrada com

cartuns que funcionam, muitas vezes, como metáforas visuais do conceito que é

explicado no texto adjacente. Os autores adotam, na tessitura da obra, uma

simulação do estilo publicitário, com uma sucessão de chamadas, argumentação e

frases conclusivas formando uma “estrutura circular” (CARRASCOZA, 1999,

p.32) em que o fecho remete ao início. Os autores usaram tentativas de slogans21 e

muitas figuras de linguagem, e devem ter feito isso conscientemente, para

competir com as mensagens publicitárias que, na época, ainda circulavam para

vender cigarros22.

Em relação às cartilhas de saúde mais antigas, há menos condenação dos

vícios e menos emoção envolvida. Não há personagens com os quais o leitor se

identifica ou de quem se compadece. Aqui a retórica é mais forte no princípio de

logos, ou seja, nos silogismos. No entanto, as imagens ganham o papel de

incentivar a autocorreção disciplinadora. Nos cartuns sugere-se que passa

vergonha quem não civilizar seus comportamentos e não adotar os hábitos

saudáveis. Por exemplo, em relação ao tabagismo, a imagem de um mico que

fuma vários cigarros enquanto assiste, “vidrado”, a uma propaganda em que King

Kong fuma um cigarro no alto do prédio Empire State (figura 27). A mensagem

que se infere do cartum é que fumar é “coisa” de “macaco de imitação”. Em

outras palavras, que o hábito de fumar não é decisão autônoma, mas influência do

meio. Outro exemplo: um homem está sentado à mesa de refeições, comendo um

                                                            21 Frase criativa e concisa que pode ser associada a um produto ou serviço anunciado de modo a ser facilmente lembrado pelo consumidor (NEIVA, E. 2013, p.511). 22 O Governo Federal proibiu a propaganda de cigarros e todos os derivados de tabaco apenas no ano 2000, conforme notícia da eHealth Latin America disponível em http://www.boasaude.com.br/noticias/2127/brasil-governo-proibe-propaganda-de-fumo.html Acesso em: 16 out 2015.

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Como, nessa cartilha sobre câncer, o discurso lógico-científico é muito

importante (relacionado à organização promotora, o INCA, que é responsável por

atendimento e pesquisa), foi publicado um apêndice após o discurso principal da

cartilha, detalhando, com vocabulário mais difícil e dados adicionais, os mesmos

temas abordados anteriormente. Isso também denota que a instituição médica se

apresenta claramente na cartilha, colaborando inclusive com o princípio de

credibilidade (ethos) demandado pela arte da retórica.

O estudo das cartilhas de saúde mostra que nem sempre a narração

ficcional é a fórmula utilizada pelos autores. Mais uma cartilha que não conta uma

história, mas sim apresenta um discurso direto ao leitor é O melhor lugar (2006),

de Ziraldo. A fórmula de texto apresentada é a simulação de um diálogo entre o

narrador e os personagens, os quais representam os potenciais leitores (seu

público-alvo são moradores de pequenas cidades e vilas rurais). O título faz

alusão à qualidade de vida do meio rural. A mensagem é simples: deve-se

descartar adequadamente o lixo e os restos orgânicos, o que demanda instalações

sanitárias que podem ser reivindicadas ao Governo, com o financiamento da

Fundação Nacional de Saúde (Funasa). O ponto central do discurso é a

explicação, em gráfico, de como usar a instalação de banheiro que a Funasa faz na

zona rural. Nesse ponto, o leitor deve entender que o título é ambíguo e quer

dizer, também, que cada coisa tem seu “melhor lugar” para ser descartada, e que,

portanto, devemos separar lixo e água. A cartilha abre com a pergunta feita para a

personagem dona de casa: “pra onde vão os restos de comida?” (ver figura 29).

Mais adiante, o narrador pergunta também “e qual é o melhor lugar? O rio?” ao

que o personagem desenhado abaixo, que é um peixe (falante) responde “Não!” e,

finalmente, o narrador faz a primeira afirmação, a qual é um conselho de higiene:

“só jogue no rio o que o peixe pode comer” (frase com figura de linguagem, à

moda dos publicitários). A ela se segue, ao virar da página, outra frase de efeito:

“rio que recebe lixo vira monstro, mata e morre”. A afirmação foi ilustrada com

o cenário de destruição de um rio, assistido por um senhor e um menino, com

roupas que os caricaturam como habitantes de uma vila rural. A expressão

corporal e facial dos bonecos é de contrição e respeito ao “morto”.

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1) Um jovem com expressão de embriaguez anda numa corda bamba, mal

se equilibrando. O mesmo desenho foi usado para ilustrar a capa. Supomos que os

autores o escolheram porque chama a atenção, é cômico, e talvez porque seja um

bom substituto metafórico da mensagem, uma vez que andar na corda bamba pode

simbolizar a dificuldade de se equilibrar pelo caminho do meio, aquele sem

excessos, preconizado pela medicina higienista.

2) Um jovem de pé, com a mão no queixo, expressão que indica dúvida ou

meditação, olha para o chão, onde há o desenho de três setas amarelas, uma para

cada direção. Supomos que é a ilustração para a ideia de escolhas de rumo, que

exigem ponderação consciente.

3) O globo terrestre, antropomorfizado (com rosto e braços), “puxa fumo”

de um cigarro de maconha, a julgar pela expressão de deleite do planeta. Isso se

refere à seção que trata das estatísticas globais de uso de drogas.

4) Um grupo de quatro pessoas, reunidas, de pé, fuma cigarros de

maconha, a julgar pela expressão facial e pelo gesto de como segurar o cigarro. É

um grupo heterogêneo com predominância de jovens alternativos. A julgar pelas

roupas representadas, são: um jovem do hip hop, uma moça hippie, um rapaz do

reggae e um homem meio careca, de camisa social e gravata. O desenho se refere

à seção sobre a maconha.

5) Um homem de idade indefinida pilota uma motocicleta enquanto fuma

um cigarro de maconha. A ilustração se refere ao trecho da cartilha que fala do

risco de operar máquinas e veículos sob efeito de maconha.

6) Um homem de idade indefinida cheira cocaína por um canudo de cima

de uma pequena mesa. A expressão facial é de olhos arregalados. A ilustração se

refere à seção da cartilha sobre cocaína.

7) Um rapaz com expressão de medo, com os olhos arregalados, suando,

agita muito os braços e pernas, enquanto seu coração, batendo “TUM, TUM,

TUM” parece que vai literalmente pular para fora do peito. O rapaz apalpa o peito

como quem sente o desconforto da palpitação. A ilustração se refere às reações

físicas ao uso da cocaína.

8) Uma moça, sentada sobre um caixote e observada por um cachorro

sentado a seu lado (o cão mostra expressão de preocupação ou apreensão), acende

com um isqueiro uma pedra de crack e fuma num cachimbinho. Sua expressão

facial é de alienação, olhos vidrados no horizonte e sinais de tontura ou

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outras” e “Algumas pessoas, ao usarem maconha, sentem-se relaxadas, falam

bastante, riem à toa. Outras sentem-se ansiosas, amedrontadas e confusas”.

Os autores enfatizam que as informações da cartilha são mais confiáveis

do que as que circulam entre os jovens: “Todas as informações apresentadas

nesta cartilha têm fundamento em pesquisas e estudos científicos e podem nos

ajudar a refletir sobre os nossos comportamentos e a avaliar os riscos a eles

associados. Ter liberdade não significa poder fazer aquilo que queremos, a

qualquer hora, mas ter consciência dos efeitos e consequências de nossos atos

para poder tomar decisões responsáveis”. O esforço de “informar” sem

“persuadir” a qualquer direção foi tão grande que tivemos que procurar mais

fundo para testar a hipótese de que toda cartilha colabora com o processo

civilizador. Encontramos a argumentação da vergonha onde costuma estar: nas

ilustrações. Todos os personagens retratados nos desenhos passam por ridículos,

enquanto usam drogas. A mensagem que inferimos das ilustrações é de que quem

usa drogas pode até se divertir, mas vai também ser objeto de diversão de outros.

Além disso, nos parece que é apresentado o mesmo raciocínio visto na cartilha

Cuidados..., sobre os riscos do excesso de maquiagem e a virtude do meio termo.

No raciocínio médico, o que prejudica são os excessos. Conhecer corretamente o

hábito de consumo (de maquiagem, de vestimenta ou de uso de drogas) é o que

permite a liberdade de uso. Assim, a cartilha das drogas, que apresenta

objetivamente todas as informações sobre nomes, origem, efeitos e estatísticas dos

principais produtos, se assemelha a um manual de etiqueta tanto quanto as outras

cartilhas. A mensagem é: não faça como os ignorantes; aprenda o autocontrole e

evite os excessos; siga a etiqueta com disciplina para poder usufruir de sua

liberdade.

Nessa cartilha há forte presença institucional. No início há vários textos de

apresentação e, no final da cartilha, há links e contatos para o leitor mandar

perguntas, tais como links para as associações de Alcoólicos Anônimos,

Narcóticos Anônimos, pastorais, etc. Também há sugestões de livros e de filmes

adequados para se esclarecer sobre o tema, o que é significativo. A educação

familiar e a educação escolar não são as únicas práticas que estão envolvidas no

processo civilizador; a circulação de mensagens midiáticas (anúncios

publicitários, matérias jornalísticas) e de obras artísticas (romances, canções,

filmes, histórias em quadrinhos, etc.) também tem seu papel na difusão dos

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A cartilha aborda temas de educação sexual para homens adultos, em

forma de história em quadrinhos, com duas partes. Na primeira parte, três homens,

reunidos numa mesa de bar (ver figura 32), conversam sobre a vida e, num certo

ponto da conversa, descobrem que todos estão mentindo sobre as próprias vidas

sexuais, e que todos têm problemas: impotência, reação contra o uso da camisinha

e medo das mulheres "modernas". Conversando, os personagens concluem que

vão melhorar se começarem a ouvir suas mulheres e a conversar sobre sexo. Na

conclusão, reencontram suas parceiras e, desta vez, o sexo acontece muito

satisfatoriamente. Na segunda parte, o personagem Gatão interrompe a narração e

passa a conversar com o leitor, quando aborda cada problema e sugere mudanças

de mentalidade para resolvê-las. Segundo o autor, Miguel Paiva, entrevistado para

esta pesquisa, “as estatísticas começaram a apontar um quadro bastante

preocupante na relação do homem com a sexualidade e com o cuidado médico,

com a saúde, até com a própria relação com a mulher” e que os motivos do

Ministério da Saúde eram a alta de incidência de AIDS entre homens de meia

idade e a falta de hábito de visitar os médicos entre os homens em geral.

O que há de "lúdico" na obra é o prazer proporcionado pela leitura da

história, uma representação de situações do cotidiano com que o leitor se

identifica ou onde se projeta. E as cenas da história são inusitadas: homens “se

abrindo” sobre sexo e cenas plausíveis de sexo com personagens não-idealizados,

falíveis. Além disso, o personagem sair da história para se dirigir ao leitor é um

pouco inusitado e pode ter efeito cômico.

Nesta cartilha quase não há discurso científico. A instituição (Ministério

da Saúde) também é muito discreta; só aparece como assinatura nos créditos da

obra. Do ponto de vista da retórica, o autor aposta mais em pathos. É uma

educação civilizadora, com certeza. A preocupação maior é o cultivo de hábitos

mais adequados para a vida sexual de um homem contemporâneo, com o

abandono dos preconceitos pouco esclarecidos. Nas palavras de Miguel Paiva,

“era a questão do poder masculino questionado, que sempre foi inabalável, que

não podia entrar em julgamento jamais. Isso tinha que partir do próprio homem,

essa atitude de se questionar”. Segundo Roberto da Matta, na tradição brasileira,

“ser homem” era mostrar-se como “masculino” e “macho” em todos os

momentos, praticando (ou suportando) uma “eterna vigilância das emoções, dos

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gestos e do próprio corpo” (DAMATTA, 2010, p.138), o que leva à maioria dos

homens, até hoje, terem dificuldade em falar de fraquezas.

Os textos do personagem Gatão são a “voz da razão” falando ao público-

alvo da cartilha, como nos exemplos:

a) Temos medo de ir ao médico e pior, não fazemos exames. O de próstata, porque tem que levar dedada e o de HIV porque achamos que nunca vamos pegar AIDS. Puro preconceito. Se cuidar é fundamental. [...] b) Os homens acham que não podem se sentir fracos, ter sentimentos. [...] c) Tá certo que a vida tá difícil, mas o sexo deve ser bom para o homem e para a mulher. Hoje em dia tudo deve ser conversado e dividido com a parceira, inclusive a casa e os filhos. Assim sobra mais tempo para se divertir mais e curtir mais um ao outro. A cartilha do Gatão, portanto, em que pese ser patrocinada pelo Ministério

da Saúde, e ter sido suscitada por índices de saúde pública, no fundo, trata da

educação dos homens para terem desenvoltura num mundo em que não é mais tão

simples para uma pessoa nascida com sexo masculino seguir um modelo de

comportamento socialmente estabelecido. A mensagem da cartilha parece ser: é

preciso que todo cidadão saiba que existe – nos termos de Da Matta – “uma

problemática dimensão relacional” que é preciso “compreender e aquilatar”. Que

“Podia-se ter um belo falo e estar com uma bela mulher e, mesmo assim, não

funcionar”; que “Mais importante do que ter o aparato sexual masculino, era saber

relacionar-se” e que “relacionar-se era ser capaz de ouvir e sentir os movimentos

do corpo exatamente como fazem as mulheres que, em geral, aprendem a medir e

a pesar suas emoções e reações” (DAMATTA, 2010, p.149-150).

Feita a exploração interpretativa dessas 12 obras de dois recortes

históricos, podem ser traçadas algumas conclusões sobre o significado da

produção de cartilhas.

2.4. As melhores intenções

Partimos do princípio que as cartilhas de saúde devem ter sido feitas com a

intenção de educar o público geral de maneira que os índices de notificações de

doença caiam, ou que a qualidade de vida da população melhore. É isso que

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manifestam as pessoas que produzem as cartilhas, conforme as entrevistas feitas e

os textos de apresentação das cartilhas. Conforme S., gerente de produto,

[...] o nosso objetivo é traduzir para o paciente todo o conceito que está sendo trabalhado junto aos médicos, conscientizar sobre o que ele pode fazer para contribuir com o meio ambiente e ações pessoais como limpar o nariz, que é outra coisa que ele pode fazer, para compensar os problemas ambientais com os quais a gente convive.

Paulo Lustosa, presidente da Funasa, apresentou sua cartilha assim:

Esta cartilha que você está recebendo agora, produzida pela Funasa, retrata de forma lúdica e bastante acessível a importância do saneamento básico e do tratamento da água para a preservação da saúde e a consequente melhoria da qualidade de vida para as populações das comunidades indígenas, ribeirinhas, quilombolas e rurais.

Marcos F. Morais, diretor do INCA, escreveu que a cartilha sobre câncer

[...] faz parte de um conjunto de materiais elaborado, especialmente, para informar e subsidiar os educadores dentro do programa Prevenção do Tabagismo e de outros fatores de risco nas escolas, que faz parte das ações de prevenção de câncer desenvolvidas pelo INCA.

Kátia V. Bloch, epidemiologista, disse sobre a cartilha Eu amo ERICA:

A gente precisava levar essa informação de uma forma ágil, atrativa... A ideia foi essa: fazer um material que, de imediato, captasse a atenção de quem fosse ler, quer fosse o diretor da escola, o secretário de educação, os pais e o próprio aluno. Também temos de partir do princípio de que muitas pessoas, alertadas

pelos conselhos e informações das cartilhas, tenham se prevenido e evitado

agravos à própria saúde ou de seus próximos e familiares. Neste caso, tanto as

cartilhas com discursos mais autoritários quanto as mais libertárias devem ter tido

algum sucesso. Mas o fato é que ninguém espera que uma cartilha melhore

significativamente os índices de saúde ou mude substancialmente os hábitos de

higiene, em larga escala, ou numa proporção grande entre as pessoas que leram.

As cartilhas não são feitas para substituir o trabalho dos profissionais de saúde,

nem dos educadores, nem dos fiscais do Estado. A conjectura é que elas são feitas

para documentar uma tomada de atitude na direção de fazer avançar e se expandir

o processo civilizador.

O que se interpreta aqui, a partir de todos os indícios do material analisado

é que a pregação, por exemplo, do combate às condições que propiciam pegar

verminoses, ou pegar dengue, ou pegar tuberculose, ou pegar AIDS, ou

desenvolver câncer, essa pregação é, também, contra os comportamentos

apontados como incivilizados. Em que pese que haja casos deprimentes de

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verminose e mortes por dengue, as autoridades e os comunicadores, ao focar nesse

tipo de problema de saúde e não em outros, quando escrevem cartilhas, trabalham

com a noção de que esses problemas são exemplares para convencer as pessoas a

se comportarem dentro de padrões mais “higiênicos” e “civilizados”. Quando as

cartilhas retratavam Jeca Tatu ou o menino Dito, não estavam honestamente a

serviço de evitar o sofrimento de pessoas reais naquela condição, porque a maioria

dos habitantes da zona rural não eram jecas-tatus, e a zona rural tinha qualidade

de vida provavelmente melhor do que a cidade. Quem fazia as cartilhas estava

usando o exemplo das estatísticas e dos casos extremos para persuadir o público a

adotar hábitos e comportamentos rotulados como higiênicos, ou morais, ou

esclarecidos, ou modernos, dependendo de sua formação ideológica. Elas

documentam uma maneira de pensar – ideologia, se preferir – ligada a instituições

e ligada a momentos históricos. A medicina social, cujo nascimento Foucault

relaciona ao estabelecimento do Estado moderno e do sistema capitalista, tinha

como objetivos urbanizar as cidades que recebiam massas de operários vindos do

campo, gerir o risco de epidemias que essa concentração de gente trazia e, por

fim, garantir a produtividade do operariado. Nesse contexto, surgem as ações de

vacinação obrigatória, o registro e a estatística dos casos médicos e a demolição

de habitações insalubres 23(FOUCAULT, 1990).

Mais recentemente, o saber médico é instrumentalizado para

responsabilizar os indivíduos pelo seu bem-estar, produtividade e sucesso na

trajetória de vida. É o “imperativo da saúde” que rege o estabelecimento de

medidas e modelos corporais (discriminatórios e determinado pelas relações de

poder), o ensino de técnicas de autocontrole e construção individual do corpo

(controle do peso, capacidade aeróbica, equilíbrio postural, por exemplo) e a

associação entre o acometimento de doenças típicas das sociedades urbanizadas

(doenças cardíacas, diabetes e câncer, por exemplo) e a falha do indivíduo em

trocar seus comportamentos “de risco” por comportamentos mais “esclarecidos”

(LUPTON, 1995).

Em resumo, o combate a doenças gera bons pretextos para dar origem a

cartilhas e “civilizar” um pouco mais fundo e um pouco mais longe. Quando uma

                                                            23 Ações que, no Brasil, na virada do século XIX para XX, conhecemos como os casos da “Revolta da Vacina” e do “Bota abaixo” de moradias populares como o cortiço Cabeça de Porco (CHALHOUB, 2006).

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organização pública ou privada detecta que ainda há indivíduos “incivilizados”

sob sua jurisdição, ela provavelmente recorre à fórmula que está estabelecida há

séculos como modelo para uma peça de comunicação civilizadora: a cartilha.

Assim, pelo menos, tenta contribuir para a construção do indivíduo segundo

padrões que favoreçam o poder das mesmas organizações. Para Foucault, o

indivíduo não é um elemento preexistente sobre a qual o poder pesa; é, antes, um

efeito do poder: “Na verdade, o poder produz; ele produz realidade; produz

campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se

pode ter se originam nessa produção” (FOUCAULT, 2014, p. 183).

Isso, no entanto, não é entendido desse modo pelos autores e

patrocinadores de cartilhas. Todos os que se manifestam sobre o assunto dizem

que a cartilha, desde que seja ética, é importante para levar informação e

conscientizar mais pessoas, ou seja, apenas difunde conhecimento:

a) Também estamos indo no tom ético: “Sou uma marca que se preocupa com a educação e a conscientização” (S., Gerente de produto). b) É uma zona de discussão entre comunicação e educação. Você é jornalista, você sabe, o jornalista diz “eu informo, não estou aqui pra educar ninguém”. Mas informação é educação; educação no seu sentido mais amplo. É você pegar essa informação, passar essa informação e idealmente passar uma informação que permita à pessoa formar seu juízo (Claudius, cartunista). c) Educar é informar. De qualquer maneira, acho que nós podemos deixar plantado na cabeça do leitor, sobretudo do mais jovem, da criança, deixar informações que vão ficar pra toda vida e podem ajudar em algum momento da vida. Principalmente sobre comportamento (Maurício de Sousa, cartunista). d) E eu acho que a [cartilha] bem feita é aquela que não se impõe; nem se antecipa nem se impõe, aquela que facilita a comunicação, entendeu? Isso é o primeiro aspecto. É aquela em que o desenho de humor se coloca a serviço da informação. Ele não tá carregando a informação, ele tá contribuindo com a informação, seja simplificando ou dando um novo ponto de vista gráfico, visual, pra uma ideia (Miguel Paiva, cartunista). Manifestam também a crença de que, para levar informação a mais

pessoas, é preciso que a publicação seja “leve” ou “lúdica”, conforme os trechos:

e) Esta série, construída com base nas necessidades expressas por múltiplos setores da população e em conhecimentos científicos atualizados, procura apresentar as questões de forma leve, informal e interativa com os leitores (SENAD). f) Papo-Cabeça nasceu no estilo gibi por acreditarmos que o formato de história em quadrinhos tem grande apelo junto ao público juvenil e por entendermos que, assim, seria mais fácil tratar de um assunto tão árido para um segmento tão jovem (Joana Silva, autora de cartilha).

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g) A gente tem uns manuais e uns guias de intervenção e comportamento, que são verdadeiros guias de conhecimento a respeito do autismo, que são mais densos, são leituras menos lúdicas, mas extremamente explicativos para os pais, professores, os profissionais da área... (Paula Bauducci, diretora de ONG)

A menção à importância de a leitura de uma cartilha ser “leve”, “fácil”,

“informal” ou “lúdica” sugere que há a confusão ou, pelo menos, a junção de duas

noções sobre comunicação: a de que uma forma atraente mantém o público atento

à mensagem; e a de que uma forma com linguagem simples mantém a mensagem

acessível a mais gente. O papel da ilustração “leve” ou cômica, segundo os

autores e patrocinadores de cartilhas, é atrair o leitor e auxiliá-lo no entendimento

da mensagem, mas observamos que o “desenho de humor” tem o papel muito

evidente também de provocar a vergonha, sem chocar o leitor. O recurso à

vergonha é usual na educação disciplinadora. Nas palavras do cartunista Miguel

Paiva, sobre a cartilha sobre a sexualidade masculina, a leveza é papel do

desenhista, e um papel difícil:

E a grande dificuldade que eu me lembro era de sintetizar essas questões. [...] e depois, na hora de fazer a história, como fazer pra que não soe nem como imposição, nem como submissão, nem que dê, ou deixe o cara com vergonha, nem enfraqueça a imagem dele como homem, mas ao mesmo tempo reforce... Gente! É uma dificuldade... Outro significado importante que pudemos apreender da análise do

material é que publicar uma cartilha é a expressão de um desejo ou de um plano

de propagação de suas crenças. Isso é evidenciado pelos trechos de cartilhas em

que se toca no assunto e a multiplicação ou propagação da mensagem é sugerida

ou demandada do leitor. A diretora da ONG Autismo e Realidade aborda esse

desejo na entrevista: “A gente está esperando que isso vire um exponencial, que

multiplique mesmo para o resto do Brasil”. O presidente da Funasa, em texto de

apresentação de uma cartilha, prega: “Estamos fazendo a nossa parte. Faça a sua,

colaborando na divulgação dos conhecimentos que trazemos aqui para que um

número cada vez maior de pessoas seja beneficiado”.

A produção de cartilhas da área da saúde pode ser, portanto, interpretada

como um concerto de organizações sociais, artistas e comunicadores estendendo o

processo civilizador com base num modelo relativamente constante ao longo do

tempo. Durante a análise, surgiram também questões sobre o aprendizado da

cidadania, que já foi apontada como tema preferencial entre todas as cartilhas.

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Isso mostra como tais categorias temáticas têm fronteiras difusas. No capítulo

seguinte interpreta-se um conjunto de cartilhas sobre produtos e serviços, o que

certamente corrobora a tese dessa intercessão de fronteiras.

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3. As cartilhas e a pedagogia do consumo

Quando estudamos publicações categorizadas como cartilhas sobre

consumo, estamos tratando de uma produção muito significativa, apesar de não

encontrarmos tantas cartilhas sobre consumo quantas cartilhas sobre direitos e

cidadania na amostra coletada. De fato, “o consumo é sistema de valores central

na vida cotidiana” e não deve ser encarado como “superficialidade sujeita a toda

sorte de críticas políticas, estéticas, morais” mas sim como um “fato social” que

“assume posição proeminente como estruturador de valores e práticas que

regulam relações sociais, definem mapas culturais e constroem identidades”

(ROCHA, 2006b, pág.16).

Circula no pensamento, portanto, uma falsa oposição entre a manifestação

da cidadania e dos hábitos de consumo, em que, para se ter uma, deve-se evitar os

outros. Os objetos de consumo portam mensagens de grande relevância:

[...] as necessidades não são sociais no sentido simples de serem “influências sociais”, “pressões sociais” ou processos de “socialização” por meio dos quais a “sociedade molda o indivíduo”. A questão básica é diferente. Quando digo “preciso de uma coisa”, estou fazendo no mínimo duas declarações profundamente sociais: em primeiro lugar, estou dizendo que “preciso disso” para ter um certo tipo de vida, certos tipos de relações com os outros (ter esse tipo de família, por exemplo), ser um tipo de pessoa, realizar certas ações ou atingir certos objetivos. [...] Em segundo lugar, dizer que “Eu (ou nós - meu grupo social, minha comunidade, minha classe) preciso de alguma coisa” é fazer uma declaração sobre os recursos sociais, reivindicar um direito (SLATER, 2002, p. 12-13). Ser um fato social também não contradiz a constatação de que o consumo

é terreno de desenvolvimento do individualismo. Segundo Colin Campbell, a

prática do consumo ganha até mesmo importância existencial na vida dos

indivíduos contemporâneos, resolvendo, em vez de exacerbando, a “crise de

identidade” em que eles estão mergulhados (CAMPBELL, 2006). E o aprendizado

de novos hábitos de consumo coincide com o aprendizado de como ser um

indivíduo “moderno” e como viver nas grandes cidades, símbolos das

transformações culturais, sociais e econômicas deslanchadas no século XIX. Para

suportar a “intensificação da vida nervosa” e as “coações” vividas nas grandes

cidades, o habitante urbano se defende e reage com o “entendimento” em vez do

“ânimo”, ou seja, cultiva seu conhecimento e distancia-se intelectualmente de

tudo (SIMMEL, 2005 [1903], p.578). A pedagogia do consumo moderno e a

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entrada de milhares na “nova era de compras” foi obra conjunta da literatura, da

imprensa e dos empreendedores dos grandes magazines, como Gordon Selfridge,

que concebeu o prédio de sua loja em Londres como uma “catedral do consumo”,

um polo de encontro social, uma alternativa para a mulher burguesa sair de casa e

uma escola na prática de flanar pelas vitrines e imaginar prazeres proporcionados

por novos produtos (RAPPAPORT, 2004, p.157-183). Com base nessas

constatações, é mais que justificado o estudo da categoria “consumo” entre todas

as que foram classificadas no material coletado.

No entanto, a escolha do corpus de análise segundo o modelo de cartilhas

antigas contra cartilhas contemporâneas, adotado no capítulo 1, revelou-se pouco

cômodo para o estudo das cartilhas de consumo. Embora haja materiais muito

significativos sobre a pedagogia do consumidor, desde o final do século XIX, tais

como os catálogos de produtos dos grandes magazines (Harrod’s, Bon Marché e

Sears24, por exemplo), os anúncios das revistas ilustradas (Careta, Fon-fon e

Revista da Semana, por exemplo) e as obras literárias (O Paraíso das Damas, de

Emile Zola, por exemplo25), não foi possível recolher muitas cartilhas anteriores a

1970 que apresentassem temas de consumo.

Se os materiais impressos de propaganda e marketing, tais como catálogos,

anúncios, embalagens e displays são feitos com a intenção primeira de promover

vendas, as cartilhas com temas de consumo conjugam essa necessidade prática

com o propósito educativo ou civilizador. Se o material publicitário é de

responsabilidade das empresas e apresenta todo e qualquer produto, as cartilhas de

consumo costumam ser apresentadas por organizações sem fins lucrativos (como

associações, sindicatos de empresas e órgãos públicos reguladores da atividade

econômica) e seus temas costumam se restringir àqueles em que se imagina que

possa ser associado algum interesse social.

                                                            24 O catálogo do magazine norte-americano Sears, Roebuck and Co, assim como os dos magazines britânicos, servia para os habitantes abastados da zona rural fazer encomendas, e era escrito de maneira didática pelo próprio fundador da loja, Richard Warren Sears. Era preciso educar o consumidor rural na utilidade dos novos produtos, no “modo moderno” de fazer as coisas e na ética das compras por correspondência. A publicação, distribuída gratuitamente, fazia-se passar por algo não-comercial, “parecia existir para o entretenimento, a edificação e a fantasia” (KELLER, 2004, p. 185-213). Tais publicações não cumprem as condições para serem consideradas cartilhas no âmbito desta pesquisa, mas são muito próximas a cartilhas. 25 Através do estudo do romance “Au bonheur des dames” de Émile Zola, pode ser compreendido como os grandes magazines surgem em Paris como “catedrais do comércio moderno” e têm papel na pedagogia do consumo (ROCHA, FRID & CORBO, 2014),

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O leite B (1977) se destaca de todas as outras cartilhas feitas por Maurício

de Sousa porque não apresenta a popular Turma da Mônica como protagonista.

Em vez disso, a história se desenrola a partir do diálogo de dois personagens

infantis criados somente para a cartilha, Márcia e Ary. Os dois amigos se

encontram numa padaria; Márcia pede ao atendente “dois litros de leite", o

atendente pergunta “Leite B ou leite C?” e a menina responde “tanto faz”, ao que

o menino Ary protesta: “você não sabe que tem muita diferença entre o leite B e o

leite C?"26.

A partir daí o menino vai contar como descobriu que o leite B é “mais

forte”, “puro, puro”, por não ter parte da gordura subtraída como acontece com o

leite C. Nesse momento da narração é feito um flashback27 em que se mostra

como Ary, visitando a fazenda do amigo Xandico, nas férias, conheceu a

produção de leite B. Detalhadamente se explica que, para produzir leite B, o

fazendeiro precisa cumprir normas superiores de higiene e obter um certificado

oficial. Utiliza-se o recurso retórico da comparação entre o bom e o mau, o certo e

o errado. No sítio do menino Xandico, as vacas são “sem raça definida”, magras,

convivem com sujeira e ficam tentadas a fugir para a fazenda vizinha, pois o

capim do outro lado da cerca é mais gostoso. Os meninos vão procurar uma vaca

fujona e entram na “Fazenda Leite Bom”, do “Seu Mendonça”, que “cuida da

terra” para seu pasto ficar mais viçoso. O Seu Mendonça aparece e se incumbe de

explicar aos dois meninos, Ary e Xandico, um da cidade e outro da roça, que, na

sua fazenda, planta “capim napier” de “boa qualidade” e dá “ração

concentrada” para as vacas, todas “da raça holandesa”; e que as instalações, a

higiene e o regime de trabalho estão “de acordo com as exigências da lei”. Afinal,

“há outros cuidados muito importantes que não devem ser esquecidos,

principalmente para os produtores de leite B como eu”, diz o fazendeiro.

Após conhecerem os testes que o laboratório da usina de leite faz com o

produto recebido dos fazendeiros, atestando o tipo B, Xandico diz “puxa, Seu

                                                            26 Há três tipos de leite: A, B e C. Essa classificação é dada pelo Ministério da Agricultura (Instrução Normativa 51 de 2002) e trata-se, no fundo, de uma classificação de produtores de leite, que são ranqueados de acordo com suas instalações de ordenha e armazenamento do leite cru. Na verdade, é possível existir leite tipo C mais nutritivo do que um leite B mas, se tal produtor não tem ordenha mecânica, por exemplo, ganha apenas a classificação C. Fonte: Associação Brasileira dos Produtores de Leite em http://www.leitebrasil.org.br/legislacao.htm Acesso em: 16 out. 2015. 27 Recurso de técnica narrativa em que se narra cenas que se passaram anteriormente à cena de introdução.

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Mendonça, depois disso tudo que eu vi, tenho até vergonha de trazer aquele leite

lá do meu curral aqui para a usina” e que “pensando bem, eu acho que até posso

convencer o pai a ter todos esses cuidados de limpeza, saúde e qualidade... E

futuramente eu posso até ter um gado de raça, como o seu... e me tornar produtor

de leite B como o senhor!”. Nesse trecho ficam patentes duas características das

narrativas típicas das cartilhas: a vergonha como motivador da mudança de

comportamento da rusticidade em direção à higiene civilizada; e o empenho na

difusão ou multiplicação do conhecimento de uma pessoa instruída para outras,

que “ainda não estão esclarecidas”. No fim da história, a narração volta à cena

introdutória, na padaria, e a menina Márcia decide mudar sua compra, de um saco

de leite de cada tipo para dois sacos de leite B.

Sabendo que o leite B é um produto mais caro, e que, à primeira vista, não

difere do leite C, é necessário que a menina Márcia aprenda a dar mais valor ao

leite B a ponto de optar por comprá-lo. A cartilha, a princípio, não está fazendo

nada mais do que qualquer outra peça de propaganda, pois:

O fluxo constante de serviços, produtos e bens a que somos submetidos é fundamentalmente categorizado para nós pela publicidade. Muitos deles não fariam sequer sentido se não lhes fosse colada uma informação publicitária (ROCHA, 2006a, p. 26). Colar uma informação publicitária e dar sentido ao produto “leite B” é

transferir significados do “mundo culturalmente constituído” para o produto e,

segundo Grant McCracken, o trabalho do publicitário é justamente criar narrativas

em que as qualidades alegadas do produto ganhem similaridade com “categorias”

e “princípios” culturais: “Quando essa equivalência simbólica é estabelecida com

sucesso, o espectador/leitor atribui ao bem de consumo determinadas propriedades

que sabe existirem no mundo culturalmente constituído” (McCRACKEN, 2007,

p.104). O significado cultural, em seguida, pela prática dos “rituais” do consumo,

transita do produto para o indivíduo consumidor. Assim, temos que a personagem

Márcia, ao optar pelo leite tipo B, está, no fundo, decidindo associar a si mesma

os mesmos valores alegados do produto: limpeza, pureza, força, integralidade,

padrão de qualidade atestado, modernidade (tecnologia mecanizada), entre outros

e, enfim, uma certificação de "classe" superior. Numa visão geral:

Se o significado cultural tiver sido transferido, os consumidores podem usar os bens como marcadores de tempo, espaço e ocasião. Os consumidores exploram a capacidade desses bens de discriminar entre categorias culturais como classe, status, gênero, idade, ocupação e estilo de vida (McCRACKEN, 2007, p.109).

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A cartilha do Leite B é comparável a O olho do consumidor (2009), onde

também se aborda o assunto de uma nova certificação para produtos alimentícios:

o selo de produto orgânico28. O paralelo se dá porque, novamente, a legislação

surge para disciplinar a produção agrícola e as autoridades se voltam para a outra

ponta da relação, ou seja, o consumidor. O consumidor também deve ser

disciplinado para exercer um poder e uma função social: fiscalizar a qualidade dos

produtos. Disciplina-se também para que o leitor faça adesão a uma relação

produtor-consumidor mais civilizada, para não dizer outros termos que carregam

juízo de valor, como “moralizada”, “evoluída” e “sofisticada”. Um trecho da

cartilha evidencia isso: “Quem escolhe comprar produtos orgânicos faz isso para

manter sua saúde, para preservar o meio ambiente e para ajudar outras pessoas,

principalmente pequenos produtores rurais, a ter melhor qualidade de vida”.

Assim, a cartilha preconiza que o consumidor assuma um novo papel, ou que seu

papel social ganhe novas atribuições mais civilizadas. Ele é educado a fazer

opções políticas, pois sua opção de compra apoiará um modelo de produção que

se contrapõe ao modelo agroindustrial não-sustentável que é mais difundido e

comercializado. O argumento é que o consumidor normalmente já “vê tudo”: “vê

se é fresco, se é durável, se rende”, mas para ver se um produto é orgânico – já

que a aparência não difere – o consumidor precisa aprender uma novidade: precisa

aprender a entender a certificação dos produtores. O olho do consumidor foi

publicada para esclarecer consumidores e pequenos produtores sobre a entrada em

vigor do “selo Sisorg”, o selo oficial de produto orgânico, em 2009.

                                                            28 Segundo a cartilha do MAPA, produtos orgânicos são produtos alimentícios produzidos de maneira sustentável, normalmente por pequenos agricultores, que preservam a variedade de cultivares regionais, preservam a fertilidade do solo, cumprem os direitos trabalhistas, não plantam transgênicos, não usam agrotóxicos e contaminantes tóxicos. Por esse motivo, não podem nem ser armazenados e transportados junto a produtos não-orgânicos. A comercialização pode ser direta ao consumidor, mas deve sempre ser certificada pelas autoridades.

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110  

ser categorizado como orgânico, em relação à proporção de seus ingredientes

orgânicos e não-orgânicos.

Ainda que seja evidente o propósito que essas cartilhas têm de informar

seus leitores de um assunto de interesse público, em benefício da saúde dos

próprios, também é importante entender que elas narram processos em que a

prática do consumo se confunde com rituais sociais. Conforme a obra de Mary

Douglas e Baron Isherwood, em vez de vislumbrar uma oposição entre consumo

de bens necessários (tais como alimentos) e bens de luxo, devemos encarar todos

os bens de consumo como “marcadores” de categorias de classificação social,

como meios de comunicar relações sociais encobertas; como “a ponta visível do

iceberg que é o processo social como um todo” (DOUGLAS e ISHERWOOD,

2013, p. 121). A necessidade de marcadores advém do fato de que é complexo o

modo como se imprimem significados sobre as relações sociais; os significados

fluem e se alteram com o contexto social e com a “bagagem” cultural dos

interlocutores. Assim, objetos materiais, como os bens de consumo, são úteis para

fixar significados, por meio de rituais. Os rituais servem para fixar publicamente

os significados. Rituais marcam a transformação social de uma categoria para

outra (de criança para adulto, por exemplo, ou de solteiro para casado); eles

podem ser rituais apenas verbais, desaparecerem no vento; ou podem ser

marcados por objetos materiais, até mesmo porque estes têm valor material

fixado:

Rituais mais eficazes usam coisas materiais, e podemos supor que, quanto mais custosa a pompa ritual, tanto mais forte a intenção de fixar os significados. Os bens, nessa perspectiva, são acessórios rituais; o consumo é um processo ritual cuja função primária é dar sentido ao fluxo incompleto dos acontecimentos (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2013p. 110). O sentido “dado” por meio de rituais de consumo (no caso das cartilhas

analisadas, o ritual de posse, quando o consumidor pesa argumentos e opta pelo

leite B ou pelos alimentos orgânicos, tomando uma decisão que muda seus hábitos

“daí pra frente”), depende de quais valores foram transferidos para o produto. Não

são valores intrínsecos. “Os bens são dotados de valor pela concordância dos

outros consumidores” (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2013, p. 121), ou seja, é

preciso que mais consumidores concordem com o valor (ou significado social) do

leite B para que todo aquele que pedir leite B na padaria faça, com esse ato de

consumo, uma marcação social. Isso reforça o apelo para a propagação da

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mensagem de educação para o consumo. Cada leitor da cartilha, caso seja

convertido ao novo hábito, tenderá a ser um multiplicador da mensagem da

cartilha, pois não vale a pena ser um consumidor de leite B num meio social que

ignora as qualidades desse padrão. O mesmo vale para o exemplo dos produtos

orgânicos. De nada vale comprar produtos mais civilizados se, aparentemente,

eles forem indistinguíveis dos produtos comuns. Há de se divulgar a diferença no

nosso círculo social.

3.2. Abrindo uma conta e um refrigerante no século XXI

A análise de duas outras cartilhas, separadas entre si por trinta anos,

acrescenta evidências à conjectura de que as cartilhas sobre consumo fazem mais

do que informar e mais do que vender. De fato, elas concorrem no processo de

comunicar valores culturalmente estabelecidos entre a sociedade, os bens de

consumo e os indivíduos consumidores. Esta é a análise de Bancos? Todos eram

iguais (1970) e de Como se faz? (1999).

Bancos? Todos eram iguais, que é peça publicitária do extinto Banco do

Commercio e Industria de S. Paulo (Comind), tem uma das estruturas usuais entre

as cartilhas: divisão do assunto em tópicos desenvolvidos, um por página, com um

título (ou pergunta), um parágrafo de texto e uma ilustração de estilo cartunesco,

sempre com uma gag (piada gráfica).

A argumentação se desenvolve com duas ideias que conduzem o texto. A

primeira é a de progresso ao longo do tempo. Uma evidência disso: a imagem da

capa, em que um homem vestido de astronauta (desenho colorido) se destaca num

conjunto de homens de chapéu, bigode, paletó e gravata (desenho somente em

traço). O homem-astronauta, que representa o futuro, é o banco anunciante, e os

outros homens representam os outros bancos, aqueles que eram iguais e

continuam iguais. O personagem do astronauta é muito significativo no momento

de publicação da cartilha, lembrando que o ser humano pisou na Lua pela primeira

vez em 1969.

Outra evidência da presença do princípio cultural da evolução no tempo: a

cartilha começa com uma sucinta história do dinheiro e dos bancos (páginas 1 e 2)

e insere nela a fundação do Banco do Commercio e Industria de São Paulo,

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ou contrair empréstimos, mas agora vai se suprir de uma grande variedade de

serviços financeiros. Numa ilustração eloquente (ver figura 41), faz-se a metáfora

visual dessa ideia, com um homem, representando o cliente, passando pela

gôndola de um supermercado, empurrando carrinho, e pegando da prateleira um

dos variados “produtos bancários”, na forma de enlatados: letras de câmbio, letras

imobiliárias, seguros, fundos fiscais, fundos de investimento, ações: “tudo que se

referir a dinheiro, no sentido mais amplo, o cliente resolve num endereço só: a

agência mais próxima do BCI”.

Mais adiante, argumenta-se que, antigamente, o gerente servia cafezinho;

agora, ele ainda serve cafezinho, mas trata de tantos produtos bancários que se

tornou um verdadeiro “conselheiro de negócios”. A partir daí a cartilha vai

enumerando e detalhando os novos produtos financeiros, para que o cliente

conheça e saiba as condições de contratação. Tais serviços produzem “benefícios

para todos”. As letras de câmbio, por exemplo, são explicadas assim: “É uma

forma inteligente de obter recursos da população para financiar as vendas em

massa. O primeiro contrato de financiamento direto ao consumidor realizado no

Brasil foi assinado pela COMIND”. A imagem final é mais uma alegoria de

progresso futurístico: um astronauta apresenta seu cartão bancário num caixa em

outro planeta e é atendido por um solícito ET verde de quatro braços. O título do

tópico é “abra uma conta no século XXI”.

A cartilha convida o leitor, um cliente em potencial (mesmo que já seja um

correntista, é potencial cliente de novos produtos), a “ser o primeiro”, a

acompanhar o progresso e, mais do que ser moderno, viver o futuro. Para tal, o

leitor precisa mudar de comportamento (visitar a agência para tudo, conversar

com o gerente sobre investimentos) e conhecer as novas regras da “etiqueta”

bancária, inclusive começar a se apresentar com o cartão identificador de

correntista, novidade na época (ainda não era um cartão magnético).

De mesmo modo, na cartilha Como se faz?, os fabricantes de Coca-Cola

também apresentam para os consumidores em potencial seus processos internos.

Eles abrem a fábrica de refrigerantes para visitação com a intenção de apresentar

valores que os consumidores podem associar ao produto e, através do ritual de

consumo, associar também a si mesmos. Esses valores, numa visão geral, são de

limpeza, qualidade-padrão, tecnologia, escala (operação de grandes proporções),

segurança e confiança. Diferentemente da cartilha do banco, esta assume o

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formato de revista de história em quadrinhos com passatempos e se destina ao

público infantil. Ela apresenta duas histórias. A primeira história narra a visita de

uma turma de escola, com sua professora, a uma fábrica do refrigerante Coca-

Cola. Existe, de fato, um programa de visitas de turmas a fábricas de refrigerante,

como ação de relações públicas, a fim de esclarecer dúvidas e combater conceitos

negativos sobre o consumo de refrigerante (por exemplo, o alto índice calórico

para um baixo valor nutricional e a desconfiança sobre a higiene na fabricação do

refrigerante). A cartilha era distribuída nas mesmas ocasiões de visita29. Não

apresenta personagens conhecidos, diferentemente das cartilhas de Maurício de

Sousa. A história faz alusão ao filme A fantástica fábrica de chocolate (1971,

refilmado em 2005), quando crianças são agraciadas com o convite para entrar na

misteriosa fábrica do Sr. Wonka e conhecer como ele produz os doces e

chocolates que agradam tanto às crianças. Alude também ao mistério que se

cultiva até hoje sobre a “fórmula da Coca-Cola” (esses esclarecimentos são dados

de primeira mão, porque a criação dessa cartilha ficou a cargo deste pesquisador,

há 15 anos).

Na segunda história, a narração é feita “em primeira pessoa”: o

personagem que narra é uma latinha de refrigerante, ou seja, o vaso em que o

refrigerante será despejado para ser vendido. A figura da lata é antropomorfizada

(tem um rosto desenhado na lata para representar emoções). Essa lata, depois de

consumida, é jogada numa lixeira, mas, surpreendentemente, de acordo com o

roteiro, ganha nova vida, numa fábrica de reciclagem de alumínio. É uma forma

indireta de aconselhar a separação das latas para reciclagem, que é uma mensagem

civilizadora recorrente em cartilhas sobre consumo e sustentabilidade.

Se, de um lado, a cartilha aproxima o leitor da fábrica, dissipando tanto

mistérios quanto preconceitos, de outro lado, ela apresenta uma visão

extremamente impessoal do processo fabril. Quase tudo é feito mecanicamente,

apenas com supervisão humana no controle de qualidade e manutenção. De fato,

praticamente não são representados os operários nas cenas dos quadrinhos; apenas

as máquinas funcionando, as crianças de escola observando e o cicerone

                                                            29 As visitas a fábricas de Coca-Cola continuam. Hoje existe um site na internet chamado Fábrica de Felicidade, assinado pela própria Coca-Cola Company. Tem um desenho animado com toda a alegoria de máquinas fantásticas enchendo uma garrafa de Coca-Cola. O site convida a uma visita virtual ou o agendamento de visitas às fábricas. São visitas de aproximadamente duas horas, em grupos, não necessariamente turmas de escolares. E podem ser agendadas em diversas fábricas pelo Brasil. Disponível em: < https://www.fabricadafelicidade.com.br/>. Acesso: 19 out. 2015.

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explicando os processos. O paradoxo entre a existência do produto na fábrica,

onde ele é fruto de um processo fabril impessoal, e a vida do produto como bem

de consumo, quando ele é investido de personalidade e humanidade, já foi

apontado por Everardo Rocha e exemplificado com a descrição de um anúncio de

TV da marca de um produto para misturar no leite, o Novomilk. No desenho

animado do anúncio, bonecos metálicos acionavam as máquinas que

transformavam matérias-primas naturais (morangos, bananas, etc.) em latas de pó

indiferenciadas, mas, no final do processo, um operário humanizado, de bigode,

artisticamente pintava um cuidadoso rótulo em cada lata, ritualizando o

nascimento de um produto com nome: Novomilk. Segundo Rocha, o pensamento

do publicitário faz uma correspondência “mágica” entre as séries de produtos do

mundo da produção e as séries de bens de consumo do mundo cultural. A

produção é representada como “coisa de máquinas”, mas...

"[...] produtos seriados, impessoais e anônimos deverão ser consumidos por seres humanos particulares. [...] O domínio da produção evidencia a ausência do humano, ao passo que o consumo é onde a sua presença é uma constante. Há um claro contraste. [...] A publicidade, como motor da compra, faz deste momento uma linguagem que cala o produto e fala do bem de consumo. O produto calado em sua história social se transforma num objeto imerso em fábulas e imagens". (ROCHA, 1995, p. 66-67)

Fábulas e imagens são exatamente o que se usa em histórias em

quadrinhos como as dessa cartilha, explorando as dimensões logos e pathos da

retórica. Logos, com os argumentos sobre o valor da qualidade industrial, a

modernidade das máquinas, o padrão das matérias-primas e a qualidade da

fórmula inventada por um homem de ciência30; pathos, com a humanização da

lata de alumínio, transformada no herói de uma história, e com as cenas das

diversas crianças da turma de escola, com suas perguntas e seus palpites

fantasiosos sobre como acham que se faz a Coca-Cola (“eu acho que a Coca-Cola

vem de uma chuva que só cai uma vez por ano, no dia da Coca-Cola!”, diz uma

delas). Nessas cenas, fica patente que o refrigerante é conhecido por todas,

inclusive por uma das crianças que diz não gostar dele, cuja função na história é

se convencer, no final, que pode começar a beber Coca-Cola.

                                                            30 Segundo a Coca-Cola Company, seu refrigerante foi inventado por um médico e farmacêutico do Estado da Geórgia, EUA, chamado John S. Pemberton, em 1886. Fonte: https://www.cocacolabrasil.com.br/coca-cola-brasil/historia-da-marca/ . Acesso: 19 out. 2015.

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Essa parece ser a representação exemplar de um ritual de consumo sendo

inconscientemente realizado. Segundo McCracken, numa versão em pequena

escala do mecanismo da criação publicitária, o consumidor associa suas próprias

qualidades simbólicas ao estoque de bens possuídos por ele. Pelo ritual de posse,

ele traz para seu mundo particular o bem de consumo que era do mundo externo:

“O ato de personalização é, na prática, uma tentativa de transferir significado do

mundo próprio do indivíduo para o bem recém-adquirido” e o estoque de bens

“assume um significado pessoal além do significado público” (McCRACKEN,

2007, p.109). Na trajetória da menina Amanda, na história da cartilha, ela começa

dizendo que, de fato, não gosta de Coca-Cola. Não se dá o motivo, mas é algum

tipo de receio, de rejeição. Pode-se inferir que o produto não “diz” coisas

positivas para a menina. Por duas vezes, nas páginas iniciais da história, a menina

afirma que não gosta de Coca-Cola. No decorrer da visita, no entanto, ela vai se

interessando pelo processo industrial, fazendo muitas perguntas, e parece que a

descoberta do lado oculto do produto, dos "bastidores" do "show", a visão de que

a produção é cuidadosa, técnica, racional e "moderna", tudo consegue transferir

significados positivos, da personalidade racional e cuidadosa da própria menina

para o refrigerante, tornando-o uma coisa “sua”, “de seu mundo” e, portanto, a

menina autoriza a si mesma consumir o refrigerante que antes rejeitava. Numa

cena, ela aparece pensando consigo mesma “nunca pensei que a Coca-Cola fosse

feita com tanto cuidado”. Sua última frase (e última da história) é “E eu aprendi...

a não ser cabeça-dura”, ou seja, ela mudou de opinião. Em resumo, foi

persuadida pela campanha de propaganda a fazer a opção de consumo. Se os

leitores, o público-alvo da cartilha, puderem se identificar com essa personagem,

projetando-se dentro da história, além de viverem a experiência real de visitar uma

fábrica de refrigerante, talvez mudem também sua atitude no sentido desejado

pela companhia.

A leitura das quatro cartilhas analisadas acima sugere como a publicação

de cartilhas sobre produtos e serviços ultrapassa a simples transmissão de

informações úteis; ela transfere significados e participa dos rituais manifestos

pelas práticas de consumo. Ainda falta ver como as cartilhas sobre consumo

tratam também da pedagogia dos novos hábitos de consumo, ou da educação dos

indivíduos nas boas maneiras necessárias para que ele seja integrado à

“modernidade”. Modernidade, aqui, se entende como uma fórmula abreviada para

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denominar amplas transformações sociais, econômicas e culturais que se

estendem pelo mundo há pelo menos dois séculos e em que ainda estamos

mergulhados. Ela é caracterizada pelo questionamento de “todas as normas e

valores”; pelo “surgimento da racionalidade instrumental como a moldura

intelectual por meio da qual o mundo é percebido e construído”; pela sucessão de

mudanças tecnológicas; pelas rápidas mudanças sociais calcadas em

“industrialização, urbanização e crescimento populacional”; pela “saturação do

capitalismo avançado”; pela “explosão de uma cultura de consumo de massa” e,

ainda, pela experiência subjetiva de “choques físicos e perceptivos” que se tem no

ambiente urbano (SINGER, 2004, p. 95).

O estudo das quatro cartilhas seguintes, sem se opor às conclusões a que

chegamos até aqui, traz evidências de que essas publicações são importantes no

processo histórico descrito acima. São duas cartilhas sobre o consumo de energia

elétrica, uma sobre o uso do transporte aéreo e uma sobre o uso da telefonia

móvel.

3.3. Dominar a energia, controlar o consumo

Duas das cartilhas estudadas permitem uma comparação detalhada, pois

tratam do mesmo assunto, foram feitas pela mesma equipe de criação e apenas

representam épocas diferentes: Voltinho e a Turma da Mônica (1975) e A Turma

da Mônica e a Energia Elétrica (2001).

O consumo de energia, quer seja energia elétrica ou da queima de

combustíveis, é um dos assuntos que mais sugere cartilhas; não somente para

explicar os benefícios do produto, apoiar o investimento público na área e

conquistar ou formalizar novos consumidores, mas para disciplinar seu uso, no

sentido de ser um uso mais seguro e mais “econômico”, “racional” ou

“sustentável”. Nota-se que o conteúdo de todas as cartilhas sobre energia elétrica,

de várias origens, é muito semelhante31. A lição a ser dada é quase sempre a

mesma. Recorrentemente aparece uma lista de dicas de diminuição da conta de

energia: juntar roupas para passar todas de uma vez com o ferro elétrico; evitar

                                                            31 Entre as cartilhas coletadas na pesquisa, há outras muito similares no conteúdo, como Cespinho e Paulistinha melhorando a qualidade de vida (1978), da CESP e CPFL, e Conforto sem gastar muito: campanha do uso racional de energia elétrica (1984) da CPFL.

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abrir a porta da geladeira; virar a chave do chuveiro elétrico para a posição verão;

abrir a janela para não precisar ligar as lâmpadas, entre outras. Também sempre

aparece a figura do “esbanjador”, aquele que toma banhos demorados, compra

lâmpadas erradas, deixa a TV ligada sem ninguém estar vendo, enfim, tem

comportamento reprovável, e é punido por gastar mais dinheiro na conta de luz.

Também aparece a lição de que, no Brasil, a energia elétrica quase toda é gerada

em usinas hidrelétricas, o que demanda grandes investimentos, dos quais os

cidadãos devem se orgulhar, e criam obras que batem recordes mundiais. Mas, por

isso mesmo, a energia elétrica abundante e disponível é uma conquista que deve

ser preservada e valorizada. Valorizada com o uso disciplinado: “Use bem essa

energia” é uma chamada na capa da cartilha A Turma da Mônica e a Energia

Elétrica.

O texto de apresentação de Voltinho, assinado pelo patrocinador (CESP)

na segunda página de capa, explicita tudo o que foi dito acima a respeito de

cartilhas e vale a pena ler na íntegra:

Esta revistinha pode ser considerada como um primeiro contato da CESP com o mundo infantil, tentando, apenas, despertar nele, entre crianças de 6 a 12 anos de idade, interesse inicial pelo assunto eletricidade. A CESP pretende editar, posteriormente, outras histórias com ensinamentos e informações sobre o fenômeno elétrico e a técnica mediante a qual o Homem o domina e dele se serve para o conforto de sua vida quotidiana. Com tal finalidade, nada melhor do que recorrer não só ao tipo de leitura preferido pela infância, porque a diverte – os quadrinhos – como, através dele, escolher personagens que já conquistaram a afeição da criançada, para a transmissão de sua mensagem. É por isso, apenas, que Mônica e seus companheiros estão aqui nesta historieta, visitando Ilha Solteira e conhecendo um pouquinho a CESP por dentro. Note-se que o patrocinador foca o público infantil do ensino fundamental,

que a cartilha é piloto de uma pretensa série que aprofunda o ensino do

“fenômeno elétrico”, e que é feita opção pelo formato de quadrinhos porque são

divertidos e também porque os personagens da turma da Mônica já são estimados

pelo público.

Na história Voltinho, usa-se o costumeiro recurso narrativo da “viagem

fantástica” para transmitir o conteúdo. Um ser fantástico, Voltinho, que representa

a corrente elétrica (apesar do nome) sai da tomada da casa do personagem

Cebolinha, encontra a turma de crianças e convida-os a conhecer in loco como é

gerada energia numa usina hidrelétrica. A viagem é mágica. Basta fechar os olhos

e Voltinho se encarrega de fazer a turma aparecer no lugar desejado. “Por

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procuração” aos personagens, o leitor conhece, primeiro, uma usina (a origem da

energia) e, depois, as linhas de transmissão (o meio), para chegar às instalações de

um sítio, na zona rural, onde fica demonstrada a grande utilidade da ligação de

energia. Lembrando que essa cartilha é dos anos 1970, isso é uma grande

conquista. Voltinho diz “vejam: graças ao ‘linhão’ e suas ramificações, a zona

rural já tem energia elétrica. Nos sítios e fazendas, bombas elétricas irrigam as

plantações, puxam água dos poços, etc. Luz elétrica, rádio, televisão, geladeira...

Enfim, todo o conforto das grandes cidades...”.

A viagem continua e a turma testemunha o progresso. Ajudam na obra de

uma nova usina e na reparação de uma linha elétrica; visitam uma nova indústria,

consumidora de energia, e sua vila operária “com todos os benefícios da

eletricidade”; visitam uma cidade grande com um panorama de todos os usos

cotidianos de aparelhos elétricos. Aí entra a questão da segurança. Dá-se o

conselho veemente de não soltar pipas perto da rede elétrica (em outras cartilhas

ele se soma ao conselho de não atear fogo no mato próximo às redes de

transmissão). Na parte final da viagem, visitam a grande obra da época: o

complexo hidrelétrico de duas novas usinas, Ilha Solteira e Jupiá, no Rio Paraná.

Fala-se da grandeza da obra, que seria “o maior sistema hidrelétrico no

hemisfério sul do planeta”. As últimas páginas dessa cartilha são uma revisão dos

conhecimentos adquiridos, na forma de um teste escolar de completar frases. É

mais comum cobrar os conhecimentos das crianças que leram a cartilha por meio

de atividades de resolver joguinhos de palavras e desenhos, os populares

“passatempos”.

A cartilha do Voltinho, no entanto, em 1975, não falava de economizar

energia, conceito que passou a dominar as cartilhas logo na década de 1980. É

possível fazer uma boa comparação com uma publicação posterior com o mesmo

assunto e os mesmos personagens de quadrinhos: A Turma da Mônica e a Energia

Elétrica (2001).

O mesmo recurso ao personagem fantástico foi renovado aqui. Em vez de

Voltinho, o Elétron (representado por um rapaz de boné com um raio elétrico no

lugar das pernas) é que sai da tomada da casa da menina Mônica para responder à

pergunta das crianças: “eu queria saber de onde vem a energia elétrica”. O

personagem fantástico reduz Mônica, Cascão e Cebolinha ao seu tamanho e todos

entram pela tomada, voando na contramão dos outros elétrons que estão passando

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no fio. Fazendo o “trajeto” contrário, vão compreendendo o sistema elétrico,

desde a distribuição ao consumidor até a usina hidrelétrica, passando pelas

estações e pelas linhas de transmissão. No início da história já se argumenta que,

hoje, todos pensam “como é duro ficar sem energia elétrica”. Após visitar a

usina, em vez de exaltar as grandes obras e o progresso, o discurso de Elétron se

diferencia do de Voltinho. O argumento é que gerar energia em usinas custa muito

para o meio ambiente e, portanto, em vez de construir mais e mais usinas, é

melhor poupar a energia que já está disponível. A sequência da cartilha é uma

história em que se prega “não seja um esbanjão!”. As crianças são ensinadas que

a potência dos aparelhos é medida em watts e a ideia é consumir menos watts. A

história tem mais de duas páginas de uma comparação par a par entre o

comportamento errado “Você é um esbanjão se...” e o comportamento certo

“Você usa certo a energia elétrica se...”. A última sequência da cartilha aponta

problemas de segurança na rede elétrica que o consumidor deve aprender a evitar.

Entre eles, usar os “benjamins”, atear fogo no mato perto de linhas de transmissão

e – não poderia faltar – nunca soltar pipa perto da rede elétrica.

A cartilha do Voltinho era de uma empresa estatal, a CESP. A mais nova é

geral, para todos os participantes do Programa Nacional de Conservação da

Energia Elétrica (PROCEL). Isso explica a diferença no briefing. Para o

PROCEL, o tema principal é o uso sustentável da energia, enquanto para a estatal

dos anos 1970 o tema principal era a propaganda das grandes obras da época.

Toda cartilha sobre energia elétrica ensina a olhar o medidor de luz, a fazer

manutenção das instalações, a escolher aparelhos pela potência exigida (o selo do

PROCEL nas geladeiras) e a temer/domar a corrente elétrica. Há uma relação

simbólica muito forte com ela. Está sempre disponível para trabalhar, mas é

invisível, podendo se tornar imprevisível. Quando acaba, não sabemos o que

fizemos para ela nos abandonar e nos angustiamos na espera que ela volte.

Descontrolada ou negligenciada, ela faz queimar e até mata. Foi necessária muita

disciplina para chegarmos nesse ponto e ainda precisamos nos disciplinar mais

para merecer tamanha vantagem. O consumidor de energia elétrica se acostumou

a dar a energia por natural e garantida, até o momento do apagão. O que a leitura

das cartilhas mostra é que o consumidor nem sempre usou a energia elétrica com

naturalidade, e ainda não está totalmente à vontade com ela. Quando uma

tecnologia é nova, a maioria dos consumidores tem que ser educada para adaptar

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seu comportamento – inclusive disciplinando seu corpo e sua rotina – para usar tal

tecnologia com proveito e segurança.

3.4. Comportamento civilizado e consumo

Novas tecnologias, quando ficam disponíveis para a massificação

industrial, mais do que passageiras sucessões de modas, são novidades difíceis de

encaixar no sistema do consumo, pois tecnologias criam novos serviços e

produtos que precisam de mudanças comportamentais para serem usados, ou seja,

precisam que se alterem as práticas sociais no sentido de disciplinar ainda mais o

corpo humano. Com isso em mente, analisamos Recomendações para a

comodidade dos passageiros (1945), da Panair do Brasil e Manual de etiqueta

para usuários de celular (1998), da BCP Telecomunicações.

É de se levar em conta que “Pelo consumo, os objetos diferenciam-se

diferenciando, num mesmo gesto e por uma série de operações classificatórias, os

homens entre si” (ROCHA, 1995, p. 67). Voar de avião comercial, em 1945, ou

comprar um aparelho celular para sistema digital, em 1998, eram hábitos de

consumo que conferiam distinção ao consumidor e o marcavam positivamente

entre seus pares32. Eram, no entanto, práticas de consumo que deixavam de ser

inacessíveis à maioria da população brasileira. Segundo Bourdieu, esse é um

padrão facilmente observável na sociedade de classes:

Os gostos obedecem, assim, a uma espécie de lei de Engel generalizada: em cada nível da distribuição, o que é raro e constitui um luxo inacessível ou uma fantasia absurda para os ocupantes do nível anterior ou inferior, torna-se banal e comum, além de encontrar-se relegado na ordem do que é evidente pela aparição de novos consumos, mais raros e mais distintivos; isso, ainda uma vez, até mesmo fora de qualquer busca intencional da raridade distintiva e distinta (BOURDIEU, 2013, p.233) A dinâmica do deslocamento de um bem de consumo desde a categoria de

luxo até a de necessidade popular (e a substituição desse bem por outro bem de

luxo mais moderno) tem paralelo com a dinâmica da difusão de um hábito ou

forma de comportamento civilizado desde a sua expressão enquanto

comportamento da sociedade de corte até como obrigação cidadã. Esse paralelo                                                             32 Distinção aqui definida a partir de Bourdieu (2013) no qual os gostos e preferências seriam responsáveis, mais do que as condições econômicas, pela posição do sujeito no espaço social, traduzindo-se por estilos de vida e de julgamentos estéticos.

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não é fortuito: o processo civilizador atua difundindo formas de comportamento e

normas de conduta que se manifestam concretamente por meio de hábitos de

consumo. A interpretação das cartilhas citadas toma por base essa concepção.

Em relação à primeira cartilha analisada, é preciso contextualizar que a

Panair do Brasil foi uma companhia aérea que operou de 1930 a 1965, quando

sofreu uma súbita falência por decreto do Governo. Originalmente subsidiária da

Pan American Airlines, foi nacionalizada e, durante os anos 1940 e 1950, era a

principal empresa aérea brasileira, tanto levando a elite política e empresarial em

viagens intercontinentais quanto transportando remédios, médicos e feridos em

hidroaviões por toda a Bacia Amazônica. Segundo seus passageiros habituais, era

uma companhia que possuía glamour, rivalizava com as embaixadas no apoio aos

brasileiros que viajavam para a Europa e portava um padrão de qualidade

destacado, tanto no serviço de bordo quanto na manutenção técnica. Conforme

colocou o ex-piloto Comandante Orlando Marques da Silva, "além de ser do

Brasil no nome, era dos brasileiros no coração".

Nesse contexto, voar era, ao mesmo tempo, um grande privilégio e uma

grande aventura. O irmão do presidente da companhia lembra que “a saída de um

Constellation, que era uma vez por semana, era um acontecimento social. Saía a

lista de passageiros nos jornais: as pessoas que iam embarcar no Constellation

da Panair para a Europa”. Mas as aeromoças contam que as viagens eram

longuíssimas: o voo do Rio a Lisboa durava 22 horas. O ex-piloto Cmte. Fernando

Rocha recorda que “a travessia do Atlântico de Constellation era uma epopeia.

[...] O avião sem radar, era uma coisa, assim, que, contando hoje, aos pilotos

modernos, eles acham que era uma temeridade”. Constellation era o modelo de

avião comprado após a guerra para a rota do Brasil à Europa, e era o melhor avião

de passageiros de sua época.33

Em seis páginas ilustradas no estilo bem-humorado e elegante de um

artista de publicidade não identificado, a cartilha da Panair desfia uma série de

recomendações para os supostos passageiros de primeira viagem, que não sabem o

que esperar do voo ou que o consideram uma aventura perigosa, uma temeridade

da qual ouviram falar. Não há problema: “Já se foi o tempo em que o avião era

                                                            33 Estes e outros depoimentos podem ser vistos no documentário Panair do Brasil, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=e1A9W_9xSts> Acesso: 19 out. 2015.

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durante todas as longas horas da viagem.34

O contexto da cartilha para usuários de celular é outro. Era o Brasil do

final dos anos 1990, cerca de cinquenta anos após os tempos de ouro da Panair.

Sob o ponto de vista dos estudos sobre consumo, havia, no entanto, semelhanças.

O telefone celular era um produto que já tinha sido um marcador de alta posição

social, mas, naquela conjuntura histórica, começaria a ficar acessível a uma massa

de brasileiros.35 Nesse ponto, seria curioso comparar a mensagem da cartilha da

Panair com a da cartilha dos celulares. O Manual de Etiqueta para Usuários de

celular é um folheto de 24 páginas, todo ilustrado com cartuns assinados por

Ziraldo. É dividido em sete seções temáticas: 1) o que se deve fazer; 2) o que não

se pode fazer; 3) uso do celular no trabalho; 4) uso do celular no carro; 5) uso do

celular na sala de cinema; 6) no restaurante; 7) no bar. O resumo da mensagem da

cartilha é que os tempos mudam e os costumes e regras sociais mudam também:

“a vida moderna impõe agora um novo desafio às boas maneiras: criar e difundir

um código de conduta compatível com as atuais conquistas da tecnologia, dentre

elas, o telefone celular. É que o danado insiste em tocar a qualquer hora e em

qualquer lugar”. A cartilha lista todas as situações em que não é educado atender

e mesmo deixar tocar o aparelho. Uma vez que existe o impedimento da etiqueta,

a operadora sugere que o usuário utilize os “serviços inteligentes”, como a caixa

postal, o olho mágico (identificação da chamada) e a chamada em espera, entre

outros.

Algumas dicas da cartilha do celular:

a) Você pode (e deve)... ... Deixar o celular à mão. Não deve ostentar o aparelho, mas não precisa escondê-lo no fundo da maleta ou bolsa. ...Escolher a quem dar o número do seu celular. Não é qualquer um que terá o direito de procurá-lo em trânsito. ... Escolher o horário em que vai deixar seu celular ligado. Lembre-se que, na BCP, você conta com o serviço de Caixa Postal Digital.

                                                            34 A cartilha da Panair faz contraste com uma publicação de 1996, cinquenta anos posterior: Manual do Usuário de Transporte Aéreo, distribuído pela INFRAERO. Neste, são abordados só os problemas da viagem aérea. As ilustrações, significativamente, retratam situações de conflito e desgosto, a pretexto de fazer humor. 35 A privatização da Telebrás, estatal que tinha o monopólio da exploração dos serviços de telefonia no Brasil, mas não tinha capacidade de investimento, ocorreu em 29 de julho de 1998. Surgiram então operadoras com tarifas mais baratas como BCP (Grande São Paulo e Nordeste), segundo Toni Sciarreta, em matéria para a Folha On line. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/smp-historia.shtml.> Acesso em: 13 nov 2014.

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na Panair eu não tinha medo. Eu me sentia em casa, eu ficava feliz, ia de

primeira classe, era recebida com flores no aeroporto”36. A mensagem da cartilha

é de que nada de mal pode acontecer. Aliás, o que puder incomodar o passageiro

está previsto e tem solução. É tudo muito normal. Por essa operação, o transporte

aéreo é vendido não pelo que é na prática, mas pelo que simboliza (valores

positivos como a familiaridade, o respeito, a distinção social); o consumidor,

educado para a nova modalidade de consumo, não é mais um ser humano frágil

carregado por máquinas incompreensíveis. Ele encarna um novo papel: o de

viajante aéreo.

Analogamente, o manual de etiqueta do celular também insiste que o

aparelho, apesar de novo, está perfeitamente encaixado no cotidiano. Ele

acompanha o usuário em casa, no trabalho, durante os deslocamentos, nos

compromissos sociais e no tempo de lazer. No discurso da cartilha, o telefone é

“uma poderosa arma para patrões e empregados e, como qualquer arma, deve

ser usada corretamente”. Ele foi “criado para que você possa usá-lo em quase

todos os lugares". Ele concede "essa dádiva que é a tecnologia digital". O

usuário, educado para a nova modalidade de consumo, não é mais um ser humano

que se obriga a carregar um aparelho que interrompe ruidosamente suas

atividades. É um novo ator social: o usuário de celular, ou, como se dizia num

velho anúncio, “um ligador”37.

No entanto, ao passo em que se acostuma com a tecnologia e se disciplina

a utilizá-la conforme as instruções (semelhantes a normas de etiqueta), o

indivíduo tem seu corpo abalado por “um bombardeio de estímulos” e um

aumento da sensação de “risco corporal” inerente à vida moderna e urbana

(SINGER, 2004, p. 98), Por isso, muitas vezes, a dica das cartilhas se refere a

movimentos do corpo e a incômodos físicos relacionados ao uso da nova

tecnologia: “enjoo a bordo”, “balanço”, “atropelos”, “óculos ou roupas especiais”,

etc. As inconveniências da relação entre o corpo humano e a tecnologia também

                                                            36 Estes e outros depoimentos podem ser vistos no documentário Panair do Brasil, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=e1A9W_9xSts> . Acesso: 20 out. 2015. 37 Em 2007 a companhia de telefonia móvel Oi lançou uma campanha publicitária em cujo filme um rapaz, graças às promoções da Oi, deixava de ser só um “recebedor” e passava a ser um “ligador” pelo celular, aumentando, assim, o seu capital social. Filme publicitário com o ator Mateus Solano disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=b6QqOx1eyY . Acesso: 30 nov. 2015.  

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são tema da cartilha do celular, como denotam alguns trechos sobre o volume da

voz, o exagero na expressão de emoções e a segurança corporal na “travessia de

vias públicas”, entre outros. As gerações se sucedem e os grandes “choques

sensoriais” do passado não são mais experimentados pelos consumidores. O

processo, no entanto, não termina aí. Sempre há novos comportamentos a serem

aprendidos, os quais exigem mais autocontrole de corpos e emoções e são marcas

de pertencimento a círculos sociais mais valorizados (como já foi o círculo das

pessoas que faziam viagens aéreas habitualmente ou das pessoas que utilizavam

telefones móveis). A educação para o consumo é uma vertente do processo mais

geral do processo civilizador, em que novos comportamentos considerados

“civilizados” e valorizados como marca de distinção social são, progressivamente,

difundidos por toda a sociedade, a ponto de serem, posteriormente, não mais

considerados marca de distinção, mas condições mínimas e “naturais” de

pertencimento a uma sociedade “civilizada” e “moderna”.

Sob o ponto de vista de Mary Douglas, nem mesmo o consumo das novas

tecnologias pode ser considerado consumo de “bens de luxo”. O consumo além da

subsistência se relaciona à prática social de formar redes de informação muito

importantes para manter o indivíduo na classe social com que se identifica e

maximizar a renda de seu trabalho. Consumir o que marca sua qualidade

individual e consumir aquilo que intensifica seu relacionamento social não é luxo;

é consumo de “bens de informação”, que informam ao indivíduo e informam

sobre o indivíduo ao grupo. No caso dos estivadores, a necessidade de ir com os

colegas ao bar é um dos custos de manter seu lugar na turma e arrumar trabalho

(DOUGLAS & ISHERWOOD, p. 232-234). Analogamente, um telefone celular

foi um “bem de informação” em categorias sociais minoritárias e de alta classe, e

hoje é um “bem de informação” básico entre trabalhadores.

Explorando um pouco mais a visão de McCracken, o papel da cartilha

pode estar ligado ao mecanismo dos rituais, aqueles que transferem significados

da cultura para o bem de consumo e deste para o consumidor. Por exemplo, o

ritual de posse expressa-se pelo consumidor passar muito tempo arrumando,

limpando, comparando, exibindo, fotografando ou mesmo – aí que faz sentido a

cartilha de educação para o consumo – refletindo sobre “suas posses”. A leitura da

cartilha suscita a reflexão sobre a origem do bem; sobre o cuidado necessário para

sua utilização correta; sobre o “novo mundo” ou “nova categoria social” em que

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se entra quando se adota aquele hábito de consumo.

Por exemplo: conquistar o hábito de ter um telefone, ser “um ligador”;

conquistar o hábito de fazer viagens aéreas, ser um “viajante aéreo”; conquistar

ligação elétrica em casa, especialmente se vive na zona rural; tornar-se um

consumidor de eletrodomésticos e uma pessoa que pode trabalhar em qualquer das

24 horas do dia, iluminado por luz elétrica. De fato, algumas cartilhas sobre

consumo de energia elétrica exaltam a possibilidade de suas crianças estudarem

mais e melhor, agora que podem ler livros de dia ou noite, com a luz elétrica. Isso

é a perfeita conjunção das duas “pernas” do processo civilizador: educar-se para

produzir mais e melhor, ao mesmo tempo em que consome mais e melhor.

Outro ritual apontado por McCracken, o ritual de cuidados pessoais, é

comumente associado à frequente “ordenha” do significado do bem de consumo.

Por exemplo: produtos de beleza, que são utilizados com certa frequência pelo

consumidor para transferir para si os significados positivos, sejam eles “limpeza”,

“jovialidade” ou qualidades assim. Mas, por outro lado, também acontece o ritual

de cuidados com o bem de consumo, para que ele se invista, com frequência, de

mais significado, e possa transferi-lo ao consumidor. Um exemplo dado pelo autor

é a custosa manutenção eletiva dos automóveis. “Esse tipo de ritual de cuidado

sobrecarrega o objeto de maneira que ele possa, por sua vez, transferir

propriedades especiais ampliadas a um proprietário” (McCRACKEN, 2007,

p.109). Deste modo, parece que as cartilhas da categoria de consumo são meios de

transmitir o ritual de cuidados ao novo consumidor – consumidor esse

conquistado num tempo ou num lugar em que o produto ou serviço ainda não

tenha sido popularizado.

O novo consumidor é ensinado a realizar operações convencionadas (por

meio tanto de cartilhas quanto de campanhas publicitárias, obras literárias,

matérias jornalísticas e lições de escola) tais como: o cuidado com as instalações

elétricas do domicílio; os cuidados com a segurança, para domar o poder da

energia; a manutenção preventiva; e a troca de peças por peças mais modernas (as

lâmpadas eletrônicas, por exemplo, ou o novo padrão brasileiro de tomadas). No

caso dos serviços bancários, com certeza, a “visitinha” ao gerente (na cartilha, um

“conselheiro de negócios”), nem que seja só para tomar um cafezinho, é o ritual

de cuidados que imprime mais significado à relação contratual de correntista de

uma “bandeira” bancária. Um exemplo de metáfora visual: na cartilha do celular,

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4. Cartunismo, o traço de humor nas cartilhas

Até este ponto da pesquisa, foi possível identificar que as cartilhas de

propaganda e campanhas públicas correspondem a um gênero de discurso e foi

possível também delimitar essa categoria de publicações. O pertencimento a essa

categoria, segundo sugere este trabalho, é indicado em função do propósito da

publicação. A forma e o conteúdo também contribuem para caracterizar o gênero,

mas só o propósito da publicação a diferencia de outras publicações semelhantes,

como os manuais e os livretos. As publicações que são objetos deste estudo,

normalmente chamadas de cartilhas, são cadernos de poucas páginas, formato de

gibi ou de bolso, com linguagem simples e acessível, normalmente ilustradas com

cartuns ou sequências de história em quadrinhos, distribuídas gratuitamente para

um público amplo, com o propósito de divulgar informações de interesse social e

persuadir o leitor a mudar seu comportamento, primeiro, e espalhar o novo

conhecimento, em seguida. Com a análise de um corpus formado por cartilhas

com temas de saúde e de consumo, publicadas em diferentes épocas, foi possível

associar esse gênero de discurso a práticas sociais de longa duração: o processo

civilizador e a construção dos sujeitos na modernidade. Para compreender melhor

que práticas são essas e para descrevê-las mais “densamente”, falta investigar qual

é o papel dos cartunistas na criação de tantas delas.

Conforme visto anteriormente, a maioria das cartilhas da coleção estudada

apresenta histórias em quadrinhos; um cartunista de renome, Luiz Sá,

significativamente, era funcionário do Serviço Nacional de Educação Sanitária; e

todos os responsáveis pela publicação de cartilhas que puderam ser entrevistados

confirmam que faz alguma diferença produzi-las com o auxílio de um cartunista.

Empiricamente é possível constatar que, apesar de lidarem com informação,

poucas cartilhas são feitas com a participação de jornalistas e, apesar de lidarem

com persuasão, poucas cartilhas são feitas por publicitários. Quando os

entrevistados descreveram seu processo de trabalho na criação de cartilhas, notou-

se que, em geral, os envolvidos são profissionais de qualquer área correspondente

ao patrocinador (por exemplo, médicos, no caso de cartilhas de saúde; juízes, no

caso de cartilhas sobre direitos) e os artistas, somente. Os profissionais entram

com o briefing publicitário e a pauta de informações brutas; os cartunistas entram

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com o texto final e toda a apresentação visual da cartilha. Não deveria ser de

estranhar, porque alguns cartunistas têm formação em comunicação social. O

combativo cartunista Henfil ponderava que se definia mais como um jornalista,

um “jornalista do traço”38, do que um desenhista. Outro importante cartunista,

Fortuna, opinava que os cartunistas passaram a ser cada vez mais acionados para

criar desenhos para campanhas de propaganda porque conseguiam fazer

personagens mais “humanos” do que os desenhistas especializados das agências

de publicidade39. Pedro de Luna, quadrinista e autor de cartilhas entrevistado para

a pesquisa, tem formação de jornalista, trabalha em assessoria de comunicação e

diz que, no caso das cartilhas, ele é “uma agência sozinho”. Diz Pedro: “eu

atendia, eu criava, eu ilustrava, eu levava na gráfica. Então o relacionamento era

só eu e uma pessoa do cliente, e pronto. Não precisava envolver muita gente”.

A afinidade dos cartunistas com os campos publicitário e jornalístico é

explicitada por muitos pesquisadores. Tanto a arte da caricatura quanto a das

histórias em quadrinhos se desenvolveram no contexto das transformações

culturais e tecnológicas da virada do século XIX para o século XX: “É possível

que, sem a estrutura empresarial (jornais, editoras, distribuidoras) que tornou o

quadrinho um produto comercial, esta manifestação artística não teria

desenvolvido todo seu potencial e cativado gerações de leitores” (SANTOS,

2012a, p. 87-88). As próprias restrições tecnológicas da imprensa do século XIX,

que não reproduzia meios-tons, influenciou a maneira de desenhar dos cartunistas,

caracterizada pelos traços nítidos e a simplificação das figuras (FONSECA, 1999,

p.25). O cartunismo é uma forma de arte nativa da imprensa.

Desde as primeiras publicações satíricas40, os caricaturistas são apreciados

por seus desenhos cômicos que provocam o riso, e desde o aparecimento delas

costuma-se associar o riso à ridicularização dos maus costumes. Para Henri

Bergson, “a sociedade faz pairar sobre cada um, quando não a ameaça de um

castigo, pelo menos a perspectiva de uma humilhação que, por ser leve, nem por

                                                            38 Em carta escrita a Zé Eduardo Barbosa, transcrita no livro Diário de um Cucaracha (HENFIL,1983, p.22) 39 Em entrevista transcrita na coletânea de cartuns Fortuna, o cartunista dos cartunistas (LOREDANO, 2014, p. 244). 40 A palavra caricatura surge numa publicação italiana de 1646 que apresentava uma seção de gravuras chamadas de ritratini carichi (retratos carregados), realizadas a parir de desenhos originais dos irmãos Agostino e Annibale Carracci, satirizando tipos humanos das ruas de Bolonha (FONSECA, 1999, p.17)

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concorrente Randolph Hearst, também foi popular e contestava, pela sátira, a

burguesia e a repressão policial (SANTOS, 2012a, p.86-90). Enquanto isso, no

Brasil, o italiano Angelo Agostini publicava suas pioneiras histórias em

quadrinhos Nhô Quim, impressões de uma viagem à corte (1869), retratando um

homem comum do interior lidando com ridículas desventuras no contexto das

rápidas transformações da modernidade. De maneira geral, os cartunistas sempre

se ocuparam da representação da vida urbana e seus tipos populares. Nisso se

assemelham aos artistas plásticos da primeira vanguarda europeia

(impressionismo, cubismo, expressionismo, fauvismo), que foram os primeiros a

viver a ambiguidade na relação com o cotidiano popular que representavam

(trabalho operário, diversões baratas, bens de consumo e costumes urbanizados).

De um lado, os artistas eram cativados pelo cotidiano e, de outro, rejeitavam-no

como uma ameaça à pureza da arte – uma aproximação às forças que

transformavam a arte tradicional em mercadoria para as massas (CROW, 2002).

Para os caricaturistas e cartunistas de jornais, a adesão à reprodutibilidade da obra

de arte era inevitável, mas o conflito entre a formação acadêmica em artes e a

prática profissional nos veículos de comunicação de massa também existia.

A ambiguidade vivida pelos cartunistas e humoristas brasileiros da virada

do século XIX para o XX era de um tipo particular. De um lado, empenhados na

função social do humor, viam a si próprios como civilizadores, propagadores dos

hábitos nobres e corretos – o que corresponde à função que os cartunistas exercem

na produção atual de cartilhas – e de outro, desejavam retratar o povo brasileiro no

seu cotidiano. Aqui, as revistas ilustradas (O Malho, Careta, Fon-fon!, Para

Todos, entre outras) “forneceram uma cartilha do que era ser moderno, smart, e de

como ficar up-to-date com os polos irradiadores da ‘civilização’, como Paris e

Londres” (SICILIANO, 2014, p.137). Quando defendiam as transformações

modernas, do progresso e da urbanização, algumas vezes eram cruéis com a

sociedade mestiça e rural do Brasil (acusada de ser “atrasada” em relação à

sociedade industrial e urbana); quando se voltavam em busca do tipo nacional,

aquele personagem popular que honestamente simbolizava o povo brasileiro,

permitiam que o homem comum se identificasse com as cenas dos cartuns. E, se

ali não era um herói, pelo menos estava do lado “certo”, o lado “do bem” contra

os abusos dos poderosos (SALIBA, 2002, p.112-132). Esse homem comum que

protagonizava os cartuns pegava bonde, entrava em fila, corria atrás de dinheiro,

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censurava a loucura da sucessão de modas e, aos poucos, se acostumava com as

novidades da luz elétrica e do automóvel. Os cartunistas da Bela Época eram os

parceiros ideais para a “literatura panorâmica” ou o “gênero do cotidiano”. Tal

gênero de periódico produzido em Paris tinha por objetivo retratar a sociedade em

modernização e urbanização, traçando um panorama de hábitos e tipos urbanos.

Uma das características do gênero era sua heterogeneidade: compunha-se de

trechos escritos por diferentes autores, com diversas soluções formais, “misturas

bizarras” e “transgressões de categoria”. Representava, conscientemente ou não, o

“lusco-fusco” do cotidiano: a profusão de estímulos, a efemeridade, a queda das

hierarquias, a mercantilização geral (COHEN, 2004).

Não se pode deixar de relacionar essa prática já distante de nós em um

século às atuais práticas da produção das cartilhas de propaganda. A hipótese é

que o cartunista exerce, nas cartilhas, uma função que se equilibra entre ser o

civilizador, censurando os comportamentos indesejados por meio da

ridicularização, e ser o retratista do cotidiano, aproximando o homem comum da

obra, por meio de uma relação de identificação. Parece ser o caso do quadrinista

Will Eisner41, autor de várias cartilhas de treinamento militar nos EUA, que

começou o trabalho criando, como protagonista, uma caricatura de soldado, um

trapalhão de nome Joe Dope. Ele queria que o soldado comum se identificasse e

se divertisse com as histórias em quadrinhos educativas. Em depoimento

reportado por seu biógrafo Michael Schumacher, explicou:

“Que argumentos você usa quando quer cooperação voluntária?", Eisner perguntou retoricamente ao tentar explicar como desenvolveu Joe Dope para encaixar-se no novo programa de manutenção preventiva do Exército. "Bom, você usa a ameaça de morte. Morte ou ferimentos físicos. Você diz para o cara: ‘Se você não encher os pneus, qualquer dia vai estar em batalha, o pneu vai estar vazio, e você não vai poder fugir - e aí o seu traseiro vai ficar na reta, amigão!’. O primeiro passo era esse. Então, a partir daí, você pode criar outras situações com que as pessoas não querem se deparar, outras ameaças, como fazer papel do bobo na frente dos colegas. Foi assim que Joe Dope foi criado, com base nisso” (SCHUMACHER, 2013, p. 109). A princípio, as autoridades militares estavam reticentes. Não ousavam

abordar assuntos de guerra de maneira leve, muito menos retratar um soldado

americano como um trapalhão, mas as histórias de Eisner foram testadas e um

                                                            41 Will Eisner (1917-2005), quadrinista nova-iorquino, é apontado por Maurício de Sousa e Ziraldo, entre outros artistas, como o mais influente mestre da técnica narrativa em história em quadrinhos. Eisner, inclusive, deu aulas e escreveu livros teóricos para novos quadrinistas (MOYA, 1972, p.67-71).

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estudo interno concluiu que aqueles “manuais” em forma de gibi “eram mais

fáceis de ler, de entender e, talvez o mais importante, de serem lembrados”

(SCHUMACHER, 2013, p. 116). De um lado, Eisner ridicularizava, com sua

caricatura, qualquer um que não seguisse as normas; de outro, evitava o

distanciamento entre instrutor e leitor. Seu Joe Dope, apesar de tonto, era mais

simpático e estava mais próximo da realidade de um acampamento militar do que

um hipotético soldado perfeito.

O fato é que o modelo de história em quadrinhos, com um personagem

criado especialmente ou não, é apenas um entre vários modelos onde o trabalho de

um cartunista é aplicado num projeto de cartilha. Para aprofundar a investigação,

é preciso se voltar para os dados empíricos, e os envolvidos na produção de

cartilhas, durante as entrevistas, manifestaram-se sobre a questão. Em resumo,

para explicar a prevalência dos cartunistas na produção de cartilhas, as

formulações levantadas pelos próprios entrevistados podem ser classificadas entre

os seguintes tipos de argumentos:

a) o trabalho do cartunista faz a cartilha ser mais acessível;

b) o trabalho do cartunista faz a cartilha ser mais lúdica;

c) o trabalho do cartunista faz a cartilha obter melhor adesão do leitor;

d) o trabalho do cartunista é “resumir” ou “sintetizar” as informações;

e) o trabalho do cartunista é de mediação entre o plano dos conceitos

técnico-científicos e o plano da experiência do cotidiano.

Em relação ao primeiro argumento, tudo depende do sentido que se dá à

palavra “acessível” (segundo o Dicionário Houaiss, “que pode ser facilmente

compreendido; inteligível”). Se o importante é possibilitar a entrada de cidadãos

pouco capacitados em leitura num campo de conhecimento anteriormente fechado

para eles, não é necessário contar com cartunistas. Profissionais de comunicação

podem escrever textos em que não se levantem barreiras de caráter vocabular. Não

é necessário recorrer a desenhos. Além disso, em matéria de acessibilidade, um

vídeo produzido com o mesmo conteúdo, em linguagem jornalística, em tese, é

bem mais acessível ao público geral, porque não demanda capacidade de leitura

de texto alguma. As mídias digitais que suportam trechos de vídeos, por sua

ubiquidade (youtube, por exemplo), aumentam a acessibilidade de uma campanha

de propaganda, em relação à mídia impressa, que ainda é a preferida nas

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aprendido a interpretar essas formas de comunicação, elas serão menos acessíveis.

No caso do modelo das histórias em quadrinhos, as opiniões coletadas se dividem.

Os cartunistas Ziraldo e Claudius concordam que a história em quadrinhos não é

facilmente entendida por leitores que, apesar de terem capacidade de ler com

fluência, não estão acostumados com as convenções compartilhadas pelos autores

e consumidores de gibis. Ziraldo critica o modelo:

Não serve muito, porque uma grande parte da população não percebe o que é uma narrativa em quadrinhos. [...] Pai de aluno que é só meio alfabetizado, se o menino leva a cartilha pra ele, não entende que aquilo é uma narrativa sequencial. O cartunista Claudius apoia Ziraldo, quando diz que a eficácia da história

em quadrinhos para cartilhas é relativa, pois a linguagem de quadrinhos:

[...] é uma convenção. Ele é feito a partir de uma convenção que não é uma coisa universal. Exige um determinado conhecimento das pessoas. E, ás vezes, não acontece. Por outro lado, os cartunistas que costumam executar cartilhas sempre no

modelo em quadrinhos têm foco no público infantil e veem vantagem em se

comunicar por esse meio. Além disso, consideram que adultos também apreciam

tal leitura. Tal visão é expressada por Marcos Vaz:

O quadrinho é uma leitura que, hoje, já é considerada arte, mas ainda eu vejo que é uma leitura introdutória, onde a criança vai desenvolver o gosto pela leitura. Tem muita imagem, tal, ela pega e vai lendo. Quando ela percebeu, já pegou o gosto. Daí sim, ela parte pra uma leitura mais elaborada, que é o livro. Os quadrinhos também são defendidos pelo cartunista Maurício de Sousa,

que chama suas cartilhas de “revistas especiais” e só publica em formato de gibi:

Têm um alcance melhor. É melhor entendida porque a linguagem do quadrinho pega todo mundo. Depende, logicamente, de como você escreve, e a gente escreve pra todo mundo, escreve para a família. Eu acho que quadrinho é o melhor, é mais barato, mais fácil de fazer, pela gente.

Em torno dessas opiniões, a variável é a visão que o autor tem do seu

público: qual a característica demográfica do seu público e qual é a sua amplitude.

Como todos trabalham com cartilhas, supõem que o alcance deve ser o maior

possível, ou seja, que a cartilha possa chegar em qualquer lar brasileiro e ser

apreciada pelos membros da família. Especialmente quando a cartilha é um gibi

de histórias em quadrinhos, supõe-se que a criança vai ganhar na escola, trazer

para casa e mostrar aos adultos próximos, que serão um público secundário da

cartilha. Ziraldo já afirmou várias vezes que a cartilha é uma publicação para a

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família. Maurício de Sousa, em depoimento, confirma: “O especial funciona como

um panfleto que vai pra casa, pra família. A criança pega, leva pra casa e vale pra

todo mundo”. Se Ziraldo e Claudius não confiam plenamente no alcance dos

quadrinhos, é porque visualizam o público brasileiro com uma significativa

participação de adultos formados no meio rural ou suburbano, sem acesso a

produtos culturais como as revistas. Maurício de Sousa, Marcos Vaz e outros

imaginam que, na média, o público brasileiro já teve algum contato com histórias

em quadrinhos e não estranha essa mídia. Tudo depende do nível de

conhecimento que se tem sobre o público almejado e deve-se levar em

consideração que, com a sucessão das gerações e com o avanço do processo de

urbanização, mais e mais brasileiros passam a ser letrados em desenhos de humor

e histórias em quadrinhos.

De fato, a história em quadrinhos não deve ser encarada apenas como um

estilo ou um gênero literário, mas como uma mídia. Essa mídia tem forma, mas

seu efeito depende do conteúdo, que varia. Isso explica por que não se deve

associar histórias em quadrinhos diretamente ao público infantil ou à comicidade.

Muitos quadrinhos são adultos, sérios, dramáticos e políticos (de qualquer

bandeira). De qualquer forma, não há dúvida de que é uma linguagem aprendida.

Segundo Scott McCloud (2005), a justaposição sequencial de imagens não só é a

característica fundamental das histórias em quadrinhos, mas é o segredo da sua

qualidade comunicativa. A leitura de quadrinhos exige envolvimento do leitor, no

sentido de que a mente dele deverá completar, da maneira que puder, os fatos

ocultos entre um quadrinho e o seguinte (ver figura 47).

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McCloud aponta que as letras e outros caracteres gráficos também são

ícones (signos gráficos), na sua forma extrema, pois não guardam semelhança

nenhuma com os objetos a que se referem. Portanto, para serem lidos, exigem que

tenhamos conhecimento do código em que foram escritos. No outro extremo

temos imagens realistas, que são "lidas" apenas pela sua semelhança com os

objetos, independente de códigos. No ponto intermediário temos os desenhos

estilizados, as caricaturas e os cartuns. Eles guardam alguma semelhança com os

objetos representados, mas não tanto. Exigem, em certa medida, também o

conhecimento de um código para serem interpretados corretamente. É esse código

de leitura de histórias em quadrinhos que chama mais a atenção dos pesquisadores

e que constitui o que ficou conhecido como a "narrativa dos quadrinhos", técnica

que é tomada emprestada em obras de outra natureza, como alguns filmes. Os

ícones de tensão, medo, espanto, mau-humor, as linhas denotadoras de

movimento, as fumacinhas, as onomatopeias, os diferentes formatos de balões de

texto... tudo já foi muito teorizado42. É pela necessidade de domínio de um código

de leitura que as histórias em quadrinhos, apesar da fama de popularidade, não

conseguem causar efeito em todo e qualquer leitor. No caso das cartilhas, cujo

público pressuposto é o mais amplo possível, inclusive pessoas mal alfabetizadas

com mínimo hábito de leitura, as histórias em quadrinhos nem sempre são bem-

sucedidas.  

A segunda afirmação sobre a relação dos cartunistas com as cartilhas é que

eles contribuem para o aspecto lúdico da publicação. No capítulo 1 já foi abordada

uma objeção ao uso do conceito de ludicidade aplicado às cartilhas, pois

ludicidade subentende que há um jogo, uma atividade em que os participantes

estão em pé de igualdade e o resultado é imprevisível. A cartilha é uma

comunicação com um propósito e não é um canal de mão dupla. Portanto, só é

lúdica simuladamente. A palavra, no entanto, é usada com mais de um sentido.

Para Augusto Citelli, o discurso classificado como lúdico “seria a forma mais

aberta e ‘democrática’ de discurso”. Ele seria típico da canção e da literatura,

                                                            42 A palavra ícone é usada por Scott McCloud para chamar “qualquer imagem que represente uma pessoa, local, coisa ou ideia” (McCLOUD, 2005,p.27). Alguns serão mais conhecidos como símbolos, outros como caracteres gráficos e, nos quadrinhos, as figuras em geral também são ícones. Onomatopeias, nos quadrinhos, são palavras que simulam ruídos, tais como bam, crás e atchim, e as letras que as compõem são desenhadas de forma que expressem visualmente o ruído. Balão é a palavra com que os quadrinistas chamam o desenho que envolve os blocos de texto e indica que tal texto é a fala de alguma das figuras representadas.

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polissêmicas, ricas em sentidos, que apresentariam “menor grau de persuasão,

tendendo, em alguns casos, ao quase desaparecimento do imperativo e da verdade

única e acabada” (CITELLI, 2002, p. 38). Em tal caso, a cartilha ilustrada, uma

vez que tem como propósito a persuasão, pode, no máximo, simular uma obra

artística (um conto, um poema, uma história em quadrinhos) para melhor atingir

seus objetivos, estratégia que é usual na criação publicitária (CARRAZCOSA,

2004). Sob outro ponto de vista, a ludicidade é uma característica da publicação

que pode ser concretamente usada pelo leitor, que interfere nas páginas

escrevendo, desenhando, recortando, etc. Assim, o gênero da cartilha, que

predominantemente é distribuído como um caderno impresso, destaca-se em

relação a outras mídias, como a televisão ou a rede digital, porque pode se

transformar pelo uso do leitor. O cartunista Pedro de Luna abordou essa noção de

ludicidade em entrevista:

Eu gosto dessa coisa dos jogos. Quanto mais você tornar a cartilha lúdica, que é o ponto de... Ela não é só uma coisa pra você ler. Se tiver uma coisa que te faça rabiscar nela, escrever nela, melhor ainda. Ela vai ser mais “do cara”, ainda. Se ele fizer o passatempo... “o que se usa? CA - PA - CE - TE”... Um caça-palavras... Mas ele aprende o conteúdo... A gente fez também uma cartilha pro público de um estaleiro, que era ligue-os-pontos, aquelas brincadeiras lúdicas que fazem o conhecimento se fixar. Em toda a coleção de cartilhas analisada, esse tipo de atividade aparece

sempre como pretexto para fixar palavras, números e conceitos que se pretende

transmitir ao leitor. Ainda que essa característica seja importante, não justifica,

por si só, o trabalho dos cartunistas.

Se a palavra “lúdico” estiver sendo usada com o sentido de “divertido” ou

“cômico”, aí o papel dos cartunistas pode ser mais bem explicado. O trabalho

deles é associado à capacidade de provocar o riso; eles são chamados, em algumas

obras, de “desenhistas de humor”. Bergson, conforme lembrado acima, parte do

princípio de que castigat ridendo mores (rindo se castigam os costumes).

Portanto, é natural que se procure provocar o riso para atingir o objetivo de uma

pedagogia civilizadora, típica das cartilhas de todos os temas. No entanto,

comicidade e humor são coisas diferentes e o trabalho do cartunista, aplicado às

cartilhas, não é fazer humorismo, como se desenvolve adiante. A explicação que

Henri Bergson dá para o fenômeno da comicidade, em seu texto O Riso (2001

[1899]), a julgar pelos exemplos culturais e artísticos que ele dá (caricatura,

espetáculo circense, comédias de Molière, entre outros) relaciona o riso com o

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choque que as transformações da modernidade têm gerado na sociedade. Segundo

o autor, rimos quando se observa qualquer tipo de rigidez cristalizada sobre o que

deveria ser vivo, dinâmico e humano. A teoria se aplica tanto para o riso gerado

por uma careta, a qual imita o enrijecimento de uma face humana, quanto para

uma trama de comédia teatral, onde a piada se faz com a quebra de alguma

regularidade mecânica (por exemplo, a teima de um personagem em manter um

hábito seu). Tal rigidez que transforma corpos humanos em bonecos

(metaforicamente ou, no caso de uma caricatura, concretamente) e tal regularidade

de hábitos e vícios são frutos do processo de desumanização pelo qual a

“modernidade” costuma ser acusada. A característica da repetição pode ser

relacionada à moda, por exemplo (como fez Bergson), à especialização do

trabalho e à adesão a ideologias. O riso, no entanto, apesar de ser um “trote

social” pelo qual a sociedade exige “de cada um de nós certa atenção

constantemente desperta” e “obriga-nos a cuidar imediatamente de parecer o que

deveríamos ser”, não “castiga os costumes” no sentido de abandonar o processo

civilizador e voltar atrás, mas, pelo contrário, exorta a seguir em frente para

aprimorar os indivíduos, tira-los do marasmo, buscar o belo, o bem-viver, novos e

melhores hábitos, sempre cientes do que parecemos para os outros que nos

cercam. Nas palavras de Bergson:

O mecanismo rígido que surpreendemos, vez por outra, como um intruso, na viva continuidade das coisas humanas, tem para nós um interesse particular, por ser como uma distração da vida. Se os acontecimentos pudessem estar incessantemente atentos a seu próprio curso, não haveria coincidências, ocorrências fortuitas, séries circulares; tudo se desenrolaria para a frente e progrediria sempre. E, se os homens estivessem sempre atentos à vida, se constantemente retomassem contato com o próximo e também consigo, nada pareceria jamais ser produzido em nós por molas e cordinhas (BERGSON, 2001, p.64). Rimos, portanto, para fazer andar o processo civilizador. Se Bergson olha

o panorama do mundo moderno e aposta no riso para quebrar os vícios do

mecanicismo aplicado à vida, Bakhtin fez uma leitura inversa do mesmo quadro.

Fundamentando seus argumentos com as cenas cômicas grotescas das peças de

François Rabelais, autor da época do Renascimento, Bakhtin defende o riso de

caráter popular e condena o riso moderno. O riso popular, com sua ênfase no

“baixo corporal”, que levava a incluir sempre comida, sexo e excreção nas piadas,

e que se preocupava mais com velhice, mortes, infância e nascimentos (etapas que

estão nos limites da trajetória de vida), servia para congregar as pessoas, ligá-las

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ao cosmo e celebrar a circularidade do ciclo de vida. O valor desse riso popular,

bem representado por Rabelais, estava se perdendo com a modernidade. Foi sendo

substituído pelo riso negativo, que serve apenas para censurar o comportamento

dos outros de maneira preconceituosa, celebrando a individualidade, o corpo

perfeito e isolado do mundo e vivendo o ponto médio da sua trajetória de vida (a

juventude). O riso festivo (ou carnavalesco) é coletivo, popular, universal (todos

riem sobre tudo que há no mundo) e – o que é importante na presente questão –

ambivalente: ele nega a ordem social enquanto simultaneamente a confirma.

Importante também mostrar que o riso popular “escarnece dos próprios

burladores” que se incluem entre os ridículos. Bakhtin se alinha entre os que

diferenciam esse riso popular do riso provocado pelos escritores clássicos:

Essa é uma das diferenças essenciais que separam o riso festivo popular do riso puramente satírico que apenas emprega o humor negativo, coloca-se fora do objeto aludido e opõe-se a ele; isso destroi a integridade do aspecto cômico do mundo e então o risível (negativo) torna-se um fenômeno particular. Ao contrário, o riso popular ambivalente expressa uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual estão incluídos os que riem (BAKHTIN, p.11). O riso popular é aquele que celebra a circularidade da vida (nascer do

“baixo”, viver no “alto” e, quando morrer, voltar ao “baixo”), com a qual o

mecanicismo típico da modernidade tenta romper, imprimindo um movimento

“retilíneo” a tudo. Bergson identifica o motivo de riso na detecção de qualquer

artificialidade ou mecanicismo contrário à vida, mas entende que o humor é

puramente intelectual e só podemos rir de uma pessoa ou objeto com a qual não

guardamos empatia, justamente o tipo de riso criticado por Bakhtin.

A arte dos cartunistas, conforme observado na introdução do capítulo, é

nascida da linhagem clássica, satírica, e suas técnicas foram desenvolvidas já nos

tempos contemporâneos, dentro dos órgãos de imprensa. Embora possam também

“se incluir entre os ridículos” e ter uma posição ambivalente, o riso que provocam

geralmente é aquele que castiga os maus costumes e exige distanciamento

emocional. Ziraldo, conceituando o humor e o humorismo num artigo para a

Revista de Cultura Vozes, diferenciou a obra cômica da obra humorística, a ponto

de sugerir a criação do neologismo “risista” para denominar o artista que apenas

faz rir (um contador de piadas no teatro, por exemplo), diferenciando-o do

“humorista” que nem sempre faz rir, mas cria humor. Este último teria parentesco

com o equilíbrio e a perspicácia intelectual: “O Humor é uma forma não-linear de

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se descer ao fundo das coisas, de buscar e entender sua essência e revelá-la de

maneira não-convencional. [...] Não há humor sem invenção!” (ZIRALDO, 1970,

p.194). O cartunista, que classificou a si mesmo como humorista que, quase

sempre, faz rir, aponta a característica rara do humor:

Há uma maneira prática de você testar se uma coisa que o faz rir é humorística. Toda vez que você ouvir uma história, parar e pensar assim: "Ué, gente. Não é que é isto mesmo?...", pode estar certo de que é a revelação que o humor contém que te faz exclamar assim. O Humor tem sempre uma verdade dentro (ZIRALDO, 1970, p.197-198). Como ninguém paga a outros para dizer verdades, nem para virar “o olho

do homem para dentro dele mesmo”, mas paga para se fazer rir, o humorista não

sobrevive de seu trabalho se não souber fazer rir. Daí a confusão entre os dois

tipos de obra. Segundo Ziraldo:

Quem somente faz rir não está defendendo teses ou ideias e o Humor é quase uma defesa de tese. Ninguém faz Humor em cima de uma coisa que ele crê como verdadeira e ninguém ri de uma coisa humorística se ela vai de encontro a uma verdade que ele respeita (ZIRALDO, 1970, p. 203). Sobre o trabalho em cartilhas, Ziraldo disse, em seu depoimento, que “a

cartilha não tem Humor; tem bom humor”. Com isso, quer dizer que os desenhos

podem ser engraçados, mas não contêm verdades profundas nem invenção. Isso é

coerente com o propósito da cartilha, que é transmitir a mensagem da organização

que a patrocina, não a do autor. Sob esse ponto de vista, as ilustrações cartunescas

seriam apenas “lúdicas” no sentido de que sugerem uma “brincadeira” com o

conteúdo pedagógico. Não é, no entanto, uma conclusão geral para qualquer

cartilha. O cartunista Bira Dantas, que costuma escrever e desenhar cartilhas

políticas, diz, em seu depoimento, que pretende causar o efeito do Humor descrito

acima:

Eu acho que a cartilha, principalmente essa que é mais revoltada, ela tenta chacoalhar o leitor, a gente espera que o leitor tenha essa predisposição a ser chacoalhado e se envolva com aquilo que a gente tá falando. É claro que uma cartilha que você vai fazer pra população em geral, você não vai usar uma linguagem difícil, porque uma parte pode entender, outra parte não. Mas eu acho que, mesmo você simplificando sua forma de falar, você consegue falar esses assuntos com uma poesia, um grau de profundidade que o jornalismo da televisão não se interessa em fazer. Ainda assim, a intenção de “chacoalhar o leitor” apontando uma verdade

pode ser descrita como o riso censurador conceituado por Bergson e condenado

por Bakhtin. Neste caso, o cartunista aponta um comportamento condenável na

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sociedade e, sem diretamente incluir nem a si nem ao leitor entre os implicados,

incita o leitor a combater tal erro. A nuança é que isso pode ser feito com

ridicularização, mas também, como sugeriu Bira, com poesia, o que seria mais

inventivo e, portanto, mais humorístico.

A terceira hipótese sobre o papel dos cartunistas diz respeito à maior

adesão que o público tem a uma campanha se a cartilha é ilustrada por um artista.

Se o artista já tem fama e é conhecido pelo público como Monteiro Lobato,

Ziraldo e Maurício de Sousa, o fato de a cartilha ser assinada já eleva o apelo

ético, da autoridade que chancela a mensagem. Maurício de Sousa reconhece a

situação: “Eu avalizei. Eu sou corresponsável. Mas a autoria do negócio lá,

filosoficamente, é do cliente mesmo; [o autor] da mensagem, é o cliente mesmo”.

Esse não é, no entanto, o caso em todas as cartilhas, que podem ser assinadas por

cartunistas de menor fama, ou executadas por cartunistas não identificados, ou

mesmo por amadores (conforme observado na introdução). A característica das

cartilhas ilustradas – especialmente as de história em quadrinhos – que pode

contribuir para aumentar o interesse do leitor e, consequentemente, a percepção e

memorização da mensagem, é a de que os desenhos cartunescos ou caricaturais

facilitam a dinâmica de projeção/identificação do leitor.

Em estudo sobre a “magia” do cinema, Edgar Morin conceituou dois

processos que ocorrem de maneira complementar na relação do espectador com a

obra: a projeção e a identificação. A projeção corresponde a um antropomorfismo,

ou seja, “as nossas necessidades, aspirações, desejos, obsessões, receios projetam-

se [...] sobre todas as coisas e todos os seres”. A identificação corresponde a um

cosmomorfismo, ou seja, “o sujeito, em vez de se projetar no mundo, absorve-o”.

Trata-se de um complexo interligado: “A mais banal projeção sobre outrem – o

‘eu ponho-me no seu lugar’ – já é uma identificação de mim com o outro,

identificação essa que facilita e convida a uma identificação do outro comigo [...]”

(MORIN, 1970, p. 105-107). Quando um leitor se identifica com o personagem

apresentado numa cartilha (ou quando se projeta nele), aumenta seu interesse na

narrativa e aumenta a possibilidade de associar o que acontece com o personagem

e o que acontece com sua vida real. Assim, a mensagem pedagógica da cartilha

alcança um nível muito maior de adesão e a mudança de comportamento é mais

provável. Porém, para que a projeção/identificação seja bem-sucedida, o

personagem não pode ser tão particular ou tão distante da realidade que o leitor

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não encontre pontos em comum consigo. Morin observa que, nas obras da

indústria cultural, as celebridades (que ele chama de olimpianos) têm as

qualidades para funcionar como objeto do processo. As estrelas de cinema, por

exemplo, de um lado são distantes, têm qualidades extraordinárias e os

espectadores apreciam se projetar nelas, para viverem, em sonho, aquelas vidas

fora do comum; de outro lado, as estrelas são mostradas em sua vida cotidiana, de

pais, mães e donas-de-casa, a ponto de os espectadores poderem facilmente se

identificar com elas. Assim, os olimpianos tornam-se “modelos de cultura no

sentido etnográfico do termo, isto é, modelos de vida” (MORIN, 2011, p.101).

Não se pode, porém, saber tão a fundo sobre a vida dos olimpianos a ponto de vê-

los como pessoas tão reais quanto nós, com falhas, incoerências e singularidade.

De maneira análoga, o personagem de uma cartilha, que se apresenta

representado por um “boneco” desenhado pelo cartunista (uma representação

caricaturada), deve possibilitar uma fácil identificação do leitor com tal figura. A

característica do desenho caricato ou cartunesco é facilitar o processo. Scott

McCloud pondera que se amplia o alcance da narrativa através da simplificação.

A caricatura ou cartum nos faz concentrar em poucos detalhes específicos:

"A capacidade que o cartum tem de concentrar nossa atenção numa ideia é parte importante de seu poder especial, tanto nos quadrinhos como no desenho em geral. Outra coisa é a universalidade de imagem do cartum. Quanto mais cartunizado é um rosto, mais pessoas ele pode descrever, dizem" (McCLOUD, 2005, p.31). Para McCloud, enquanto o rosto “realista” de um personagem ricamente

detalhado no sentido “fotográfico” nos afasta e nos desconcentra da narrativa

(perdemos tempo decifrando a riqueza de detalhes da representação), um rosto

caricaturado ou “cartunizado” nos aproxima, pois preenchemos mentalmente os

detalhes suprimidos com nossas próprias características (e passamos com fluência

pela representação, como uma leitura de signos deve ser). Em outras palavras,

podemos nos identificar mais facilmente com um cartum do que com uma pessoa

singular. Aquele “boneco” caricaturado, simplificado até certo nível, pode mais

facilmente nos representar dentro da narrativa. O leitor, um ser complexo e único,

pode encontrar relações entre o que pensa que o personagem “cartunizado” é e o

que pensa de si mesmo. O leitor completa as informações faltantes com suas

características pessoais, sendo capaz, quando a obra é bem-sucedida, de se ver um

tanto representado dentro da narrativa, na pele do “herói de quadrinhos”.

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Além disso, no caso de Maurício de Sousa, que sempre produz cartilhas na

forma de gibis especiais com aventuras dos seus personagens infantis (por

exemplo, a cartilha sobre energia elétrica comentada acima), tais personagens

funcionam exatamente como os “olimpianos” de Morin. Há quatro décadas a

Turma da Mônica aparece regularmente em gibis e desenhos animados, a ponto de

ganharem um status de “atores” que existem independentemente das obras.

Maurício se refere a eles como seus “filhos” que ele empresta à comunicação via

cartilhas. Segundo ele, “Os personagens têm apelo, também. O carisma dos

personagens funciona bem. Isso é um bom vendedor. Eles são bons vendedores”.

Com isso, o cartunista está apontando que o leitor adere melhor a uma proposta de

mudança de comportamento se, acompanhando uma narrativa, vê personagens

famosos que já conhece e com os quais se identifica receberem informações e

mudarem seus comportamentos também.

A quarta hipótese levantada para o papel dos cartunistas na produção de

cartilhas é que seu trabalho é resumir a forma extensa e “bruta” da mensagem

num texto menor e mais simples. Alguns entrevistados abordaram essa ideia.

Pedro de Luna, tentando caracterizar o formato da cartilha, disse:

Acho que, principalmente, cartilha subentende resumo. Resumir uma quantidade xis de informação de uma forma mais rápida e, se possível, de fácil assimilação, porque aí entra a parte, também de ilustração e recursos visuais, mas, principalmente, um grande conteúdo que você precisa resumir, explicar de uma forma simples: “pegou fogo, aperte o botão vermelho na parede” e pronto. No entanto, o trabalho de resumir informação complexa e entregá-la

simplificada para um público amplo é típico do comunicador ou jornalista, mas

não distingue o trabalho do cartunista. É noção popular que “uma imagem vale

mais do que mil palavras”, mas o quadro que os entrevistados expressam aponta

que o processo é mais complicado do que isso. Um trecho da entrevista com o

cartunista Miguel Paiva sugere que o papel do cartunista não é apenas resumir:

Eu acho que sim, que ele é um tradutor, ele é um adaptador. Ele traduz e adapta. Porque, às vezes, você resume três parágrafos num desenho com um gesto. Embora o texto resultante seja menor em relação aos textos que

municiaram a criação da cartilha, não se trata apenas de resumir. O cartunista

Claudius, falando do seu processo de trabalho, explicou que, dependendo do tema

da cartilha, ouvirá um jurista, um ambientalista, um psiquiatra, um psicólogo, um

sociólogo, um antropólogo, e esses especialistas fornecerão informações

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complexas. Serão coautores das cartilhas, mas o cartunista entra para resumir e

“traduzir” a mensagem técnica. Nas palavras dele:

Em alguns casos, você tá trabalhando uma questão que é complexa, específica, digamos, prevenção de gravidez. O que vai acontecer? Vai ter uma especialista que vai me dar o texto que ela escreveu sobre isso. Aí eu vou ler, e o texto é impublicável, ninguém vai entender, a não ser que seja médico. Aí eu digo: olha, não dá. Isso aqui não dá. Tá chamando de cefalalgia? Tem que chamar de dor de cabeça. Não. Vamos baixar essa bola, vamos reescrever isso, etc. Eu posso reescrever esse texto, fazer desse texto alguma coisa inteligível, mas continua sendo dela. Eu fiz uma edição. Eu reescrevi, mas do conteúdo, eu dou o crédito. É possível fazer um exercício para perceber até que ponto a criação de

uma cartilha demanda um resumo. Na coleta do material para esta pesquisa, foi

possível obter a forma técnico-científica da mensagem que deu origem a uma

cartilha da área de saúde. Houve um trabalho de que participei, em 2014, em que a

criação da cartilha deveria se basear num folheto de campanha que já existia e

cujo público-alvo eram os médicos clínicos. A ideia é comparar o texto extenso,

do folheto para médicos, com um resumo do mesmo e com a solução que foi

aprovada para a cartilha. O início do texto para médicos era este:

Pela primeira vez na história da humanidade, há mais pessoas no mundo vivendo em cidades que na zona rural. Em meados do século XXI, espera-se que sete em cada dez pessoas viverão nas cidades (UNRIC, 2010). No Brasil, 84% da população já vivem em zonas urbanas. (IBGE, 2010) A urbanização, termo que conhecemos e relacionamos a essa movimentação das pessoas da zona rural para as cidades, é um fenômeno real e bem estabelecido, cujas consequências sobre a saúde humana devem ser compreendidas e divulgadas, para que seja possível o planejamento e desenvolvimento de ações preventivas. Como veremos a seguir, a urbanização gera uma série de mudanças no estilo de vida das pessoas, criando hábitos que modificam drasticamente o ambiente. As alterações do ambiente, por sua vez, desencadeiam impactos sobre a saúde em todos os seus aspectos: físicos e psíquicos, global ou individualmente. Um resumo do texto acima, escrito por qualquer bom redator, profissional

ou não, poderia ser este:

Há cada vez mais pessoas vivendo em áreas urbanas do que rurais, no mundo todo. No Brasil isso não é diferente. A vida nas cidades gera uma série de mudanças no estilo de vida das pessoas, modificando seus hábitos e alterando as condições ambientais. Essas mudanças drásticas causam problemas de saúde que exigem ações preventivas. A extensão do texto é menor do que metade do texto original. Para tanto, é

desnecessário o trabalho de um cartunista ou mesmo da técnica do cartunista. Mas

o trecho com que se inicia a mensagem da cartilha encomendada para ter o mesmo

conteúdo (mas endereçar-se ao público geral) ficou muito diferente. O cartunista

desenhou uma sequência de cenas representando caricaturalmente um “homem

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O cartunista mostrou que ali estava “falando dos picaretas” e que avisava o

eleitor a ter “cuidado como você vai escalar a sua equipe”; apontou também o

personagem do árbitro de futebol que já estaria “puxando o cartão vermelho”.

Contextualizando: tal cartilha foi lançada em 1986, por ocasião da abertura

democrática, a propósito de aconselhar os cidadãos sobre como participar das

eleições. O texto a que o desenho se refere produz analogias para explicar como se

dá o processo eleitoral. Daí vem a representação de um jogo de futebol em que a

equipe representa o Congresso Nacional e o treinador representa o eleitor, que

escolhe os parlamentares para o “jogo”. No cartum, o atleta que entra em campo

com uma picareta no lugar da cabeça faz alusão à gíria “picareta” para denominar

uma pessoa desonesta e dissimulada, que só participaria do “jogo” para obter

vantagens pessoais. Na cena, o árbitro já olha desconfiado para o jogador, e

desconfiar é a atitude que o autor sugere aos cidadãos que lerão a cartilha.

Com ou sem ilustração, o texto da cartilha passará a mensagem com

simplicidade, como convém a uma publicação para grande público. A diferença é

que, o cartum, de fato, complementa o significado e acrescenta um comentário do

artista ao texto da cartilha. É o que Miguel Paiva tentou expressar neste trecho de

seu depoimento:

Se você tem um desenho pouco criativo, um desenho que não contribui, não fornece nada a mais praquele texto, você simplesmente vai estar registrando o texto e não vai estar traduzindo... [...] Aí é que entra a diferença entre o mero ilustrador e o desenhista de humor. Porque o desenhista de humor sempre vai dar uma contribuição. Ele vai sempre ter uma visão diferenciada como cartunista, que sabe como transformar aquela informação em algo mais, como surpreender o leitor, como facilitar com que aquela informação chegue ao leitor e bata, e fique. Claudius reafirma essa opinião. Perguntado se o trabalho do cartunista era

buscar, entre as histórias e personagens compartilhados dentro da cultura, uma

que servisse de analogia visual para traduzir a mensagem (tal como a analogia

com jogo de futebol), respondeu:

Você trabalha questões que são questões da cultura em que você vive, entende? Do modo de ser, das vivências. E, em cima disso, você tem um filtro. Você tem um filtro ético, do que você pensa politicamente. Tais opiniões sugerem que, mais do que resumir ou mesmo traduzir, o

papel do cartunista na criação de cartilhas é mediar. Sua posição é intermediária

entre o plano do conhecimento técnico-científico, o qual gera a mensagem da

cartilha, e o conhecimento do cotidiano, o qual corresponde ao plano do grande

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público leitor. Conhecimento do cotidiano, aqui, é uma maneira de chamar o que

Serge Moscovici chama de “senso comum” e cujos elementos são as

“representações sociais”. Para ele, o senso comum não é universal nem deriva da

natureza, é um conhecimento construído pela sociedade e está sempre em

transformação. Existiria ciência popular, economia popular, psicologia popular e

assim por diante, pois todos nós temos conceitos que utilizamos para lidar com

fenômenos e práticas da vida cotidiana. São conceitos funcionais; são transmitidos

e aperfeiçoados socialmente, embora não sejam aceitos como ciência disciplinada.

Mesmo técnicos, quando se expressam, têm dificuldade de manter um discurso

apenas com conceitos científicos e se apoiam nos conceitos da “ciência popular”

para se explicarem. Transmitir e colocar em luta as representações sociais é papel

dos “pedagogos, ideólogos, popularizadores da ciência ou sacerdotes”

(MOSCOVICI, 2003), grupo de profissionais ao que esta pesquisa sugere

acrescentar os “tradutores” tais como jornalistas, publicitários e cartunistas.

A concepção de que existe uma “ciência do concreto” foi abordada

anteriormente, de outra forma, por Lévi-Strauss em sua obra O pensamento

selvagem, onde descreve a atividade da bricolage como analogia para a prática

artística. Mais tarde tal modelo foi associado ao trabalho dos redatores

publicitários (ROCHA, 1995; McCRACKEN, 2007). Pode ser, também, aplicado

aos cartunistas para explicar em que, fundamentalmente, contribuem na criação de

cartilhas. A argumentação de Lévi-Strauss (2012, p.29-39) é de que a atividade do

bricolage serve de analogia, no plano prático, dos objetos materiais, ao modo

como o pensamento “em estado selvagem” produz conhecimento, sendo que tal

conhecimento é descrito pela etnografia tradicional como “magia”. O processo do

bricoleur é, a partir de um problema colocado a ele (“conserte este objeto”, “cure

este mal”), fazer um inventário dos recursos de que dispõe, todos coletados na sua

vivência e já classificados por ele em categorias que limitam previamente, até

certo ponto, os casos em que podem ser utilizados. Toda peça colecionada pelo

bricoleur é, de modo geral, polivalente. Ele não sabe exatamente em que ela vai

servir; o significado dela está em aberto. As peças ganharão significado para ele

quando formarem um conjunto que resolve o problema (ou “conserta o objeto”).

O bricoleur, no entanto, não cria novas peças de propósito para resolver o

problema; ele só pode usar o que já está à disposição.

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A analogia com o trabalho do cartunista é a seguinte: primeiro, ele recebe

um problema. No caso desta pesquisa, é a encomenda de uma cartilha. O briefing

do trabalho determina qual mensagem técnico-científica deve ser transmitida com

facilidade para qual público. O primeiro passo após entender o problema é se

voltar para a coleção de representações sociais, princípios e conceitos

compartilhados pelo maior número de pessoas dentro da cultura, num dado local e

dada época. Os cartunistas costumam ser lidos e cultos; sua memória se reporta às

leituras infantis, às experiências escolares, aos silogismos aprendidos, além de

todas as piadas, canções, anedotas, slogans e ditados que já ouviram e circulam na

cultura popular. Até certo ponto, são herdeiros de Rabelais na observação dos

elementos do riso popular e grotesco. Percorrem todas as categorias de

representações, tipos e mesmo estereótipos de que têm conhecimento. Procuram

aqueles elementos da cultura que podem, em conjunto, traduzir a mensagem que

receberam na encomenda. O resultado é uma narrativa cômica ou espirituosa, um

cartum, uma colagem, uma metáfora visual, qualquer criação artística que seja

entendida pelos leitores que compartilham daquela mesma coleção cultural. Esse

processo, mais ou menos consciente, é o que o cartunista Miguel Paiva descrevia

quando falou da criação da cartilha O Gatão e seus amigos: “a maior dificuldade

que eu senti foi de sintetizar todas essas coisas”. O processo é simplificado por

Ziraldo: “Mas eu acho é assim: o cara diz ‘olha o que eu quero dizer pro meu

público’ e a gente diz ‘olha como você vai dizer isso pro público”.

Assim podem ser encaradas todas as intervenções dos cartunistas nas

cartilhas (em algumas cartilhas, como a de Monteiro Lobato, as intervenções

literárias também). No caso da ilustração do “picareta”, de Claudius, mostrada

acima, por exemplo, o artista buscou, na cultura, a gíria que denuncia um corrupto

e que podia ser representada pelo desenho de um objeto facilmente identificável.

Antes disso, buscou no jogo de futebol, muito popular e rico em anedotas, uma

metáfora para o jogo político-eleitoral. O jogo serviu de metáfora porque, na

cultura brasileira, está carregado de significados que podem ser associados

também à vida política. No caso da cartilha em quadrinhos sobre a economia e

energia elétrica, por exemplo, a equipe de Maurício de Sousa buscou, entre todas

as narrativas que encantam os leitores, uma que ajudasse a transmitir os

conhecimentos técnicos existentes no briefing. Encontraram o tema da “viagem

fantástica”, jogando a Turma da Mônica numa viagem por dentro dos cabos

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elétricos. No caso da cartilha de prevenção do câncer, no trecho em que se

denuncia a influência da publicidade de tabaco sobre os jovens, a equipe de

Ziraldo buscou, na cultura, o conceito do “macaco de imitação” e associou-o à

popular história cinematográfica do King Kong, tudo numa colagem que

representa a dinâmica entre as campanhas publicitárias de cigarro e os jovens

consumidores. Outros exemplos poderiam se seguir.

Em conclusão, duas respostas para a questão colocada neste capítulo se

projetam à frente das outras hipóteses avaliadas: aquela que se refere à origem dos

cartunistas ao redor das publicações da virada do século XIX para XX e aquela

que se refere ao modelo da bricolage como uma forma de produção intelectual

que caracteriza o trabalho dos cartunistas e justifica a escalação desses para a

criação de cartilhas. Ambas as respostas apontam para uma relação de mediação

entre polos da cultura: ciência e cotidiano, modernidade e tradição, elitismo e

popularidade. Uma vez que caricaturistas, cartunistas e autores de histórias em

quadrinhos começam a se desenvolver junto com a moderna indústria editorial e

jornalística, encontraram-se engajados no processo civilizador, principalmente por

meio da sátira, e fazendo uma ponte entre as novidades técnicas, as modas, os

conceitos sofisticados e as realidades do cotidiano popular.

O gênero de publicação que se apoia mais fortemente em um discurso

disciplinador ficou, desde então, associado ao desenho de humor. Como, na

sociedade, existem “discursos que estão na origem de certo número de atos novos

de fala que os retomam, os transformam e falam deles [...]” (FOUCAULT, 1999,

p.22) uma cartilha não pode deixar de se referir às cartilhas que a precederam, e

tenderá a empregar cartunistas para satisfazer as condições da sua ordem de

discurso. A opção é reafirmada a cada nova publicação, porque os patrocinadores

de cartilhas avaliam que, com o trabalho dos artistas, a mensagem atinge mais

pessoas, mais fundo. Analogamente à descrição que Lévi-Strauss fez da prática

artística, é um meio-termo entre um raciocínio técnico (porque tem condições

concretas de se realizar, em função do tema, do material da obra e do público-

alvo) e uma operação de bricolage, de associação “mágica”, nunca pré-definida,

de “peças” recolhidas na própria cultura. É apenas nesse sentido que o cartunista é

um “tradutor” ou faz um “resumo” com qualidades “lúdicas”.

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5. Considerações finais

Esta pesquisa se iniciou com a proposta de investigar uma produção do

campo da comunicação social que, apesar de ter já uma história de décadas, passa

despercebida aos olhos dos pesquisadores. Na minha experiência profissional, no

entanto, a produção de cartilhas era uma constante. Com o tempo comecei a me

questionar sobre o significado desse trabalho; o “familiar” começou a me parecer

“exótico”. Percebi que poderia ser feito um trabalho de classificação,

documentação e estudo sobre essas publicações, e que esse estudo poderia

identificar padrões no “modo de fazer” dessa atividade.

Ao passo em que encontrava publicações de outros cartunistas – o que

aconteceu com frequência cada vez maior após o início da pesquisa – percebia que

o padrão começava a ficar evidente. Antes de começar o mestrado, a intenção era

descrever a normatividade dessa prática e determinar como ela poderia ser bem-

sucedida. Com o início dos estudos, no entanto, a proposta passou a ser investigar

qual o significado de tantas pessoas se empenharem nesse tipo de produção, sem

preocupação com a eficácia dessas publicações. De fato, uma das características

do trabalho em cartilhas é que os criadores e patrocinadores têm uma noção muito

incompleta da eficácia de suas publicações em relação às suas intenções

(persuadir os leitores a mudarem seus comportamentos). A falta de dados

numéricos e as referências puramente subjetivas quanto ao sucesso das

campanhas, apuradas em entrevistas, levam à conclusão de que o significado das

cartilhas não remonta sobre os resultados sociais das campanhas, mas sobre a

própria prática de sua produção.

Para alcançar o objetivo da pesquisa, a primeira tarefa foi caracterizar o

modelo da cartilha de propaganda e campanhas públicas, delimitando, assim, os

contornos do objeto de estudo. Nos primeiros meses da pesquisa, percebi que

havia, entre todos, eu incluído, uma dúvida sobre que publicações poderiam ser

chamadas de cartilha e uma confusão em torno dos nomes com que diferentes

publicações eram chamadas (manual, guia, caderno?). A palavra “cartilha” é um

termo polissêmico, mas foi adotada na pesquisa porque tinha o maior peso

semântico. Se, etimologicamente, a palavra designava apenas um formato gráfico,

ganhou proeminência quando assumiu também o sentido de “publicação que

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educa” e, assim, dividir opiniões: é benefício social ou imposição? Alguns

profissionais adotam a palavra; outros a evitam.

As observações mais recentes da pesquisa levam à conclusão de que o

termo “cartilha” é cada vez mais usado para chamar listas de procedimentos que

órgãos públicos divulgam para orientar os usuários de seus serviços ou

beneficiários de direitos. Nesse sentido, porém, a produção perde muitas

características desenvolvidas ao longo do tempo e essas listas não foram

consideradas como objeto de estudo, apesar de estarem sendo chamadas de

cartilhas.

A partir da coleta e análise de 300 publicações, dos depoimentos ouvidos e

da própria experiência profissional, balizada pelas teorias de comunicação,

chegou-se a uma definição coerente do que seja uma cartilha, conforme as

características fundamentais:

a) É uma publicação em formato de livreto, ou seja, médias a pequenas

dimensões gráficas, que possam ser facilmente transportadas, guardadas e

manipuladas durante a leitura. Normalmente é dividida em páginas e é impressa.

Mesmo quando é distribuída na forma de arquivo, pela rede, mantém-se a forma

da leitura dividida em páginas.

b) É uma publicação pouco extensa. Para efeito da seleção do corpus,

foram avaliadas publicações com, no máximo, 64 páginas. A característica da

pequena extensão se traduz no número de páginas e também na rarefação de texto

por página. As cartilhas, normalmente, apresentam muito menos texto por página

do que um livro comum.

c) É publicação de responsabilidade de uma organização. Indivíduos não

são autores de cartilhas e elas não podem ser consideradas obras literárias. Mesmo

quando um artista assina a cartilha, ele o faz sob contrato de uma organização.

Normalmente as cartilhas são publicadas por órgãos públicos (ministérios,

secretarias, autarquias, agências, etc.); muitas vezes, por ONGs (institutos,

fundações, etc.), sindicatos e também por grandes companhias privadas.

d) O propósito da publicação é informar públicos amplos sobre assuntos de

relevância social ou de interesse mútuo entre a organização e o público.

Normalmente não se delimita a localização nem o nível social do público; a

cartilha é distribuída para o máximo de pessoas possível. Nem mesmo o momento

em que a cartilha encontra o leitor é delimitado. A publicação, normalmente,

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circula sem “prazo de validade”. Dentro desse público amplo supõe-se que a

maioria não tem hábito de leitura frequente. Quem avalia que o conteúdo da

cartilha é de interesse social é a organização que publicou. Normalmente ela não

parte do interesse do público e os leitores são passivos; não buscam

voluntariamente a publicação. Essa é a razão para as duas características

seguintes:

e) É uma publicação distribuída gratuitamente. Há várias maneiras de

distribuir, dependendo do alcance desejado e dos recursos da campanha.

f) A publicação se utiliza de recursos persuasivos, similares aos da

atividade publicitária, para conquistar a adesão do leitor, primeiro, para a própria

leitura do conteúdo; segundo, para a mudança de comportamento a que a

campanha almeja.

g) A publicação supõe uma estratégia de propagação da mensagem. O

leitor é estimulado a multiplicar o entendimento a que chegou com a leitura,

principalmente dentro de sua família. É comum a cartilha ser escrita para

estudantes do ensino fundamental e o público adulto recebe a mensagem de

“segunda mão”.

Essas são as constantes do formato de publicação que, nesta pesquisa, se

chama cartilha. Se ela apresenta desenhos humorísticos, fotos, gráficos,

depoimentos reais, histórias em quadrinhos, formulários, etc., são variáveis que

não importam na definição. Se a publicação tem mais texto do que imagens, ou se

aparenta ser um livro infantil, se o formato do papel é quadrado ou retangular, se

foi impressa a cores ou em preto e branco, não importa para a definição. Se o

título da publicação é “manual”, “guia” ou “livro”, não importa; o termo utilizado

não define a cartilha.

Essas definições foram possíveis porque a pesquisa mostrou que existe

uma comunidade de criadores de cartilhas que, mesmo sem se conhecerem,

compartilham de um “modo de fazer” coletivo, como já sugeriu Becker (1977).

Se, no início do trabalho, eu conhecia praticamente apenas os trabalhos de Ziraldo

e Maurício de Sousa, durante a pesquisa de campo me surpreendi com a riqueza

de publicações circulantes, e com a descoberta de muitos outros cartunistas que

têm a carreira entremeada de trabalhos do gênero. Ainda que tenhamos

desenvolvido trabalhos em separado, os problemas, soluções e opiniões sobre o

assunto são muito semelhantes. A pesquisa na rede ampliou ainda mais os

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horizontes e sugeriu que tal prática (e tal conhecimento compartilhado) se

expande e se multiplica a ponto de representar uma “cartilhosfera” ou uma

“nuvem” de publicações desse gênero, muito difícil de ser apreendida por inteira.

As noções de que tais publicações fazem parte dos dispositivos de

construção da verdade e de que também são marcas que apontam o curso do

processo civilizador foram mais bem fundamentadas com o estudo de coleções de

cartilhas dedicadas aos temas de saúde e de consumo. Se as intenções originais

das organizações e profissionais que produziram tais cartilhas eram outras, o fato

é que sua produção faz todo sentido como parte dos múltiplos instrumentos com

que a sociedade constrói sujeitos e padrões de normalidade. Uma questão foi

gerada pelo quadro descrito acima: podemos reconhecer a sociedade brasileira

como uma sociedade que tem muita vontade de disciplinar e civilizar? Temos essa

inclinação a seriamente nos “incumbir da vida dos outros”? A “cartilhosfera”

descrita acima parece resultado de um desejo de fazer circular, nesta sociedade,

preceitos sobre “tudo o que o cidadão deve saber”, em todos os campos, para se

adequar a padrões e normas. O projeto de pesquisa se iniciou focando na

linguagem das cartilhas, mas percebeu-se, no decorrer do estudo, que nada do que

uma cartilha divulga importa tanto assim. O que se deve compreender é o que o

conjunto das cartilhas quer dizer sobre a sociedade.

Entre as características que definem o gênero seria aceitável alinhar mais

uma: a de que cartilhas normalmente são criadas com a participação de

desenhistas de humor ou cartunistas. Não é necessário que esses profissionais

sejam convocados; há casos em que ilustradores e designers fazem o papel dos

desenhistas de humor. No entanto, as publicações mais significativas, que podem

melhor representar o gênero, têm a participação de artistas. Aos cartunistas, como

exceções, podem se juntar escritores, como o caso de Monteiro Lobato. Uma das

propostas desta pesquisa era investigar o significado desse fato. Ao fim do estudo,

que se valeu de entrevistas com vários artistas envolvidos, bem como alguns de

seus clientes, o papel dos cartunistas foi descritivamente aprofundado e tentou-se

alcançar a densidade do processo a partir da interpretação dos significados dos

seus discursos.

Como qualquer trabalho de pesquisa, estou ciente de que não cobri todas

as discussões possíveis. Além disso, o material empírico coletado tem potencial

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para muitas análises. Entre as alternativas de desdobramento, que não pude

aprofundar nesta dissertação, estão:

a) Estudo das cartilhas produzidas durante o período do Estado Novo,

quando o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) difundia o culto cívico à

Nação e ao líder Getulio Vargas. Elas foram analisadas durante esta pesquisa,

formam um corpus muito interessante, mas, até hoje, foram estudadas sem foco

nas questões de Comunicação Social.

b) Estudo das cartilhas classificadas na categoria de cidadania e direitos.

Embora as cartilhas com esses temas sejam as mais numerosas dentro da nossa

coleção, sua análise demandaria uma dissertação de mestrado somente com esse

recorte, com instrumental teórico adequado.

c) Estudo comparativo das representações nas cartilhas sobre segurança no

trânsito antigas e recentes. Parte-se da noção de que, conforme se desenrola o

processo civilizador, lições mais antigas vão se naturalizando ao passo que

surgem novas demandas de ajuste dos comportamentos ao padrão dito

“civilizado”. Assim, cartilhas mais antigas parecem dar conselhos desnecessários

do ponto de vista do leitor atual. Por outro lado, lições que constam nas cartilhas

mais novas não existem nas cartilhas antigas. A pesquisa do tema do trânsito,

apesar de ser relativamente novo, é a mais promissora para apontar como se

desenrola o processo.

d) Estudo comparativo entre cartilhas sobre serviços e produtos antigas e

recentes, para apontar as transformações relacionadas ao processo civilizador. Por

exemplo: como se ensinava a etiqueta da comunicação por telefone celular nos

tempos de sua introdução e como é ensinada hoje.

Esses desdobramentos decorrem da noção de que a produção e circulação

de publicações (entre as quais se inclui o gênero da cartilha) produz narrativas que

nos ajudam a compreender as transformações que as sociedades atravessam na

experiência de um processo que já atravessa alguns séculos que se convencionou

chamar de construção da modernidade.

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