miguel geraldo mend es reis saber - puc-rio · rio de janeiro, 2016. 162 p. dissertação de...
TRANSCRIPT
Dissertaçem ComCatólica obtenção
Tudoas ca
ção apresemunicaçãodo Rio d
o do título
Orientad
Migu
o o que artilhas
entada aoo Social de Janeirode Mestre
dora: Profa
uel Gerald
o cidadno proce
Disser
Programada Pont
como reqem Comu
a. Tatiana
do Mend
dão deveesso civi
tação de M
a de Pós-Gifícia Univquisito par
unicação S
de Oliveira
Rio dMarço
1
des Reis
e saber: ilizador
Mestrado
Graduação versidade rcial para ocial.
a Siciliano
de Janeiro o de 2016
DissertaçobtençãoGraduaçComunicPUC-Rioassinada
Tudoas ca
ção apreso do graução em Cocação Soco. Aprovada.
Departam
Departame
Migu
o o que artilhas
sentada cu de Mesomunicaçãocial do Ceda pela Co
Profa.
ento de Co
Pento de Co
Vice-DCentro d
Rio de
uel Gerald
o cidadno proce
como reqstre pelo o Social d
entro de Comissão E
Tatiana de
omunicaçã
Prof. Joséomunicaçã
Prof. IgorFund
PDecana dee Ciências
Janeiro, 10
do Mend
dão deveesso civi
uisito parPrograma o Departa
Ciências SExaminado
e Oliveira Or
ão Social –
é Carlos Rão Social –
r Pinto Sacação Osw
Profa. Mône Pós-Grads Sociais –
0 de março
2
des Reis
e saber: ilizador
rcial para de Pós-
amento de Sociais da ora abaixo
Siciliano rientadora – PUC-Rio
Rodrigues – PUC-Rio
cramento waldo Cruz
nica Herz duação do – PUC-Rio
o de 2016
3
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem a autorização da universidade, do autor e da orientadora.
Miguel Geraldo Mendes Reis
Graduou-se em Comunicação Social (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) em 1990. Tem experiência profissional na área editorial e de artes gráficas, com ênfase em cartilhas de campanhas públicas, livros paradidáticos, histórias em quadrinhos e literatura Infanto-juvenil.
Ficha Catalográfica
CDD:302.23
Reis, Miguel Geraldo Mendes Tudo o que o cidadão deve saber: as cartilhas no processo civilizador / Miguel Geraldo Mendes Reis ; orientadora: Tatiana de Oliveira Siciliano. – 2016. 162 f. : il. color. ; 30 cm Dissertação (mestrado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social, 2016. Inclui bibliografia 1. Comunicação Social – Teses. 2. Produção de cartilha. 3. Cartunismo. 4. Processo criativo. 5. Consumo. 6. Saúde. I. Siciliano, Tatiana de Oliveira. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Comunicação Social. III. Título.
4
Para Patricia, Accacio e Acacir.
5
Agradecimentos À minha orientadora Professora Tatiana de Oliveira Siciliano por ter me adotado como seu primeiro orientando em pós-graduação, por suas sugestões fundamentais para o trabalho e por seu apoio compreensivo. Ao professor Miguel Serpa Pereira, por seu aconselhamento equilibrado quando este projeto se iniciava. Ao professor César Romero Jacob, pela atenção carinhosa em seu aconselhamento. Aos meus antigos professores Fernando Ferreira, Eduardo Neiva Jr. e Sandra Korman por terem ajudado a reconduzir-me à vida acadêmica. À antiga colega de trabalho no Projeto Comunicar Rita Seghetto Luquini, pelo mesmo motivo. Aos professores e funcionários do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, com menção especial à secretária do Programa de Pós-graduação Marise Lira. Aos colegas contemporâneos dos cursos de mestrado e doutorado, pelas contribuições intelectuais, pelo acolhimento no grupo e pelas contribuições ao material de pesquisa. A João A. Buhrer, pelo interesse demonstrado na pesquisa e cessão de farto e precioso material empírico sem o qual o estudo teria sido árduo. Aos colegas cartunistas e antigos clientes que cederam parte de seu tempo para a realização das entrevistas fundamentais para esta pesquisa, todos nomeados no corpo do texto. Aos meus pais e familiares pelo ambiente intelectual formado em nossos lares. À Capes, à Vice-reitoria para Assuntos Acadêmicos e ao Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, pelas bolsas de mestrado que possibilitaram o estudo.
6
Resumo
Reis, Miguel Geraldo Mendes; Siciliano, Tatiana de Oliveira. Tudo o que o cidadão deve saber: as cartilhas no processo civilizador. Rio de Janeiro, 2016. 162 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. A dissertação investiga, inspirada nos pressupostos de Geertz, o que a
prática da produção de cartilhas de propaganda e campanhas públicas “diz” da
sociedade brasileira. Tal produção de cartilhas é muito pouco visitada pelos
estudos acadêmicos, em parte pela dificuldade de recolher material empírico, dado
que tais publicações raramente são armazenadas e catalogadas. Para tanto, a
pesquisa empreendeu a coleta de uma coleção de mais de 300 cartilhas, a qual
baseou um elenco de características as quais podem definir a cartilha de
propaganda como um gênero de discurso e diferenciá-la de outras publicações
homônimas. O corpus analisado, a partir de seleção do pesquisador, foi fruto do
conjunto de publicações encontrado e, a partir daí, foi classificado em temas
específicos. Entre as categorias propostas estão presentes os temas cidadania,
saúde, sustentabilidade, consumo, segurança, entre outros e a análise do material
apontou para certa pedagogia civilizadora e disciplinadora, na qual os referenciais
teóricos de Norbert Elias e Michel Foucault foram fundamentais. O trabalho
compara e associa publicações de diferentes épocas nas categorias de saúde e de
consumo. A análise delas foi ancorada em teorias sobre comunicação e saúde e
comunicação e consumo. O estudo do material empírico apontou, desde o inicio,
presença significativa de cartunistas e criadores de histórias em quadrinhos nas
equipes produtoras de cartilhas, o que foi investigado a partir de entrevistas feitas
com diversos profissionais e com base em teorias sobre riso, caricatura e histórias
em quadrinhos. A pesquisa buscou, com isso, compreender o significado dessa
participação profissional em tal gênero de publicação. De uma forma geral,
buscou-se compreender o papel pedagógico que a publicação de cartilhas, assim
7
como outras práticas midiáticas e outros instrumentos sociais, possui na difusão
de repertórios de comportamentos identificados como “civilizados” e “modernos”.
Palavras-chave
Produção de cartilha; cartunismo; processo criativo; consumo; saúde;
processo civilizador.
8
Abstract
Reis, Miguel Geraldo Mendes; Siciliano, Tatiana de Oliveira (Advisor). What all citizens should know: the booklets in the civilizing process. Rio de Janeiro, 2016. 162 p. MSc. Dissertation – Departamento de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. The dissertation investigates, inspired by the assumptions of Geertz, what
the practice of producing propaganda booklets and pamphlets "tells" about the
brazilian society. Such production of booklets is seldom visited by academic
studies, in part because of the difficulty of collecting empirical material, given
that such publications are rarely stored and catalogued. To this end, the research
undertook the gathering of a collection of over 300 booklets, which was based on
a cast of features which can set the propaganda booklet as a genre of discourse
and differentiate it from other homonymous publications. The corpus analyzed,
selected by the researcher, derives from the set of publications found and, from
there, was ranked on specific themes. Among the proposed categories are the
themes of citizenship, health, sustainability, consumption, safety and others. The
analysis of those pointed to some civilizing and disciplinarian pedagogy, in which
the works of Norbert Elias and Michel Foucault were fundamental as theoretical
reference. The work compares and associates publications from different times in
the categories of health and consumption. The analysis of them was anchored in
theories about communication and health and communication and consumption.
The study of empirical material pointed out, since the beginning, significant
presence of cartoonists and comic book creators in producing teams of booklets,
which was investigated from interviews with various professionals and based on
theories about laughter, caricatures and comics. The research sought to understand
the meaning of professional involvement in such genre of publication. In General,
sought to understand the pedagogical role that the publication of booklets, as well
9
as other media and other social practices, has in the dissemination of repertoires of
behaviors identified as "civilized" and "modern".
Keywords
Propaganda booklets; cartooning; creative process; consumption; health;
civilizing process.
10
Sumário
1. Introdução 11
2. Normas sanitárias, dicas de bem-estar 41
2.1. Tossir com educação 58
2.2. Setinhas e lentes de aumento 67
2.3. Um amplo leque de cuidados 77
2.4. As melhores intenções 91
3. As cartilhas e a pedagogia do consumo 97
3.1. Necessidades e luxos 105
3.2. Abrindo uma conta e um refrigerante no século XXI 111
3.3. Dominar a energia, controlar o consumo 117
3.4. Comportamento civilizado e consumo 121
4. Cartunismo, o traço de humor nas cartilhas 130
5. Considerações finais 154
6. Referências bibliográficas 159
11
1. Introdução
Em 2011, pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) começaram um projeto que visava a coletar dados de saúde entre
estudantes de 12 a 17 anos de todo o Brasil. Amostras de sangue seriam tomadas,
medições seriam feitas e questionários seriam preenchidos. Os testes, realizados
no ambiente escolar, seriam voluntários e a aprovação por escrito dos
responsáveis pelos jovens seria requisitada. O método, o âmbito, o financiamento
e a logística da pesquisa estavam estabelecidos. Porém, antes de começar, os
pesquisadores se depararam com o problema de como se comunicar com esses
jovens, seus professores e seus responsáveis. A decisão foi produzir uma cartilha.
Uma das pesquisadoras se lembrou de ver cartazes de uma campanha
antitabagista feitos pelo cartunista Ziraldo e propôs que fossem procurá-lo para o
trabalho. Numa reunião foi acertado o serviço e em outra foi passado o briefing1
da campanha para uma pequena equipe composta por roteiristas e ilustradores.
Este é um relato em primeira mão, porque o autor desta pesquisa fez parte de tal
equipe e acompanhou tal trabalho.
Não havia dúvida sobre o formato gráfico da cartilha. A publicação
seguiria o modelo de muitas outras que Ziraldo e seus colaboradores já haviam
criado: um folheto de 16 páginas, mais capas, no tamanho 14 x 21 cm, todo
ilustrado a cores. Apenas deveriam pensar na forma narrativa que usariam para, ao
mesmo tempo, evidenciarem a importância do projeto, explicarem os
procedimentos que deveriam ser seguidos pelos estudantes e convencerem um
bom número de jovens a participarem dos testes.
O nome do projeto era Estudo de Riscos Cardiovasculares em
Adolescentes e seu acrônimo, ERICA, parecia o nome de uma jovem brasileira.
Ziraldo propôs o uso da frase “Eu amo ERICA”, escrita com o desenho de um
coração no lugar da palavra “amo”. Esse foi o ponto de partida para a criação de
um texto que, dirigido aos jovens leitores, falava sobre primeiras paixões no
ambiente escolar e brincava com os dois sentidos do termo coração: o órgão do
sistema circulatório e o sentimento romântico. Uma personagem jovem, de nome
1 Termo do meio publicitário para designar instruções e diretrizes passadas pelo cliente para a criação execução de uma campanha ou peça de comunicação (NEIVA, 2013, p.75).
12
Érica, seria apresentada nas ilustrações e representaria uma estudante que decidia
participar do projeto. Depois do discurso de introdução do problema, viria um
trecho de esclarecimento na forma de perguntas e respostas. Cada pequeno trecho
do texto seria ilustrado no estilo caricato de Ziraldo, com muitas cores e uma dose
de bom humor.
A cartilha foi criada, os pesquisadores fizeram poucas alterações ao lay-
out2 e o folheto foi impresso e distribuído em escolas de todas as unidades
federativas do Brasil, precedendo a data de visita da equipe médica que faria
medições e retiraria amostras de sangue.
Segundo a Dra. Kátia Vergetti Bloch, Coordenadora Executiva do projeto
ERICA, a publicação foi muito bem aceita. Quando mostravam a cartilha numa
reunião preliminar com agentes do governo local, eles demonstravam curiosidade
por ela e pediam mais exemplares. A cartilha funcionou como “cartão de visitas”
e como uma forma mais rápida e atraente de expor as informações sobre o projeto.
Em suas palavras, “Você chega, às vezes, para conversar com o diretor – a gente
tinha um powerpointezinho que a gente levava – mas eles não tinham tempo pra
essas coisas. A cartilha você leva, ele dá uma folheada, ela prende a atenção”.
Seria melhor do que um vídeo, porque o ouvinte não presta atenção, e melhor do
que um relatório técnico, pois “Às vezes, você dá um texto falando sobre o
estudo, ninguém lê”3.
Esta é apenas uma entre centenas de história similares. Tem existido, em
nossa sociedade, uma produção importante de cartilhas. Essa produção já
envolveu muitos profissionais de educação, propaganda, comunicação visual e
ilustração, inclusive escritores e cartunistas. No entanto, é uma produção quase
invisível. Pouca importância tem sido dada ao registro e ao estudo dessa produção
tão típica do campo da Comunicação Social.
No buscador da internet Google Acadêmico, a pesquisa pela palavra
“cartilha” retornou 28.800 resultados em 17 de agosto de 2015. Verificando que
produção de artigos é essa, vê-se que a maioria deles trata de cartilhas de
alfabetização, estudadas por pedagogos, ou de testes sobre a eficácia de cartilhas
educativas de saúde. No site brasileiro do SciELO, a biblioteca online de
2 (ou leiaute): esboço ou arte provisória que se submete ao cliente para avaliação e aprovação da peça publicitária (NEIVA, 2013, p.320-321). 3 Conforme entrevista realizada em 6 de outubro de 2014.
13
publicações acadêmicas, a pesquisa pelas palavras “cartilha” ou “cartilhas”
constantes no título de artigo retornou 16 resultados na mesma data. Entre esses
16 artigos, cinco são sobre cartilhas de alfabetização, cinco são sobre testes de
eficácia de cartilhas com instruções de saúde (realizados por estudantes de
enfermagem), um é sobre cartilha de saúde, um é sobre a aplicação de uma
cartilha de psicologia, um é a própria publicação de uma cartilha de saúde mental
e três dos artigos têm outros assuntos. Se a pesquisa for feita pela palavra
“cartilha” no assunto do artigo, retornam apenas os cinco estudos sobre cartilhas
de alfabetização. Por sua vez, no Banco de Teses da Capes, a pesquisa pelas
palavras “cartilha” ou “cartilhas” presentes em resumos retornou, na mesma data,
nove resultados. Entre eles, quatro são teses sobre alfabetização, quatro são sobre
a eficácia de determinadas cartilhas no resultado de campanhas de esclarecimento
no setor de saúde e uma versava sobre o resultado da aplicação de cartilhas
educativas sobre meio ambiente em determinada localidade.
Um exemplo da dificuldade: não se encontram dados específicos sobre a
produção anual de cartilhas na publicação Números da Comunicação no Brasil da
Associação Brasileira de Agências de Publicidade (ABAP)4. As cartilhas devem
contribuir com alguma receita dentre os R$ 7.346.000 relativos aos serviços de
“edição de livros, jornais e revistas, inclusive listas telefônicas” prestados por
agências de publicidade durante o ano de 2009. E devem ter gerado algum
faturamento entre os 459 milhões de reais que as empresas gráficas receberam por
imprimirem “catálogos, cartazes, folhetos, encartes, outdoors, malas diretas, etc.”
com fins publicitários no ano de 2012. Porém, são meras suposições.
A busca no sistema da Fundação Biblioteca Nacional (FBN) pela palavra-
chave “cartilha” no âmbito de "obras gerais" deu, em 22 de julho de 2015, 1263
resultados. A maioria é de livros de alfabetização e outros livros com a palavra
cartilha no título. Há vários exemplares dos mesmos títulos, quando são cartilhas
de alfabetização e cadernos de exercício.
Pesquisar “cartilha + direitos” no âmbito de "obras gerais" retorna 63
registros de obras entre 2000 e 2015. Entre elas, Cartilha da mulher, Cartilha dos
direitos do cidadão, Cartilha do consumidor, Cartilha do cidadão, Cartilha do
idoso, Cartilha do trabalhador, muitas publicados pelos órgãos do poder
4 Relatórios disponíveis em http://www.abapnacional.com.br/downloads-publicacoes.cfm . Acesso em: 3 ago. 2015
14
legislativo, inclusive tendo parlamentares como autores, por exemplo, Celso
Russomano (direito do consumidor), Rita Camata (direitos das mulheres) e
Eduardo Paes (direitos em geral). Já pesquisar “cartilha + saúde” no âmbito das
obras gerais entre 2000 e 2015 retorna 29 registros.
Deduz-se que uma coisa são os números reais da produção de cartilhas;
outra são os números das cartilhas devidamente catalogadas e registradas, os quais
são muito menores. Foi preciso enfrentar, nesse momento da pesquisa, a
polissemia da palavra cartilha, usada para designar publicações muito distintas.
Partiu-se, então, das referências gerais para as particulares, usando os mecanismos
de busca da web, sem pretensão de fazer pesquisa quantitativa, mas meramente
avaliando a ordem de grandeza dos resultados.
Buscar a palavra “cartilha” no Google retornava, em 29 de abril de 2015,
4.370.000 de resultados de páginas na web e em 11 de janeiro de 2016
apresentava 3.920.000 resultados. Na mesma data o mecanismo buscador Bing
apresentava 6.960.000 resultados. Entre esses resultados estão todas as referências
possíveis à palavra “cartilha”, principalmente a cartilhas de alfabetização, a
notícias sobre uma celebridade qualquer que “reza pela cartilha” de outra e a
comunicados de órgãos públicos orientando os cidadãos sobre normas (como na
notícia “cartilha orienta joalheiros sobre o crime de lavagem de dinheiro” ou em
“cartilha esclarece direitos e deveres de trabalhadores e empregadores
domésticos”). Nestes casos, a palavra cartilha tem sido usada para denominar um
tipo de divulgação esquemática de dicas ou regras que se faz por meio de notas à
imprensa e postagens na internet.
Uma busca mais fina localiza melhor as cartilhas enquanto peças de
comunicação: a busca com as palavras-chave “cartilha + saúde” retornou, em 21
de julho de 2015, 713.000 resultados no Google (e 1.090.000 resultados em 11 de
janeiro de 2016); a busca por “cartilha + meio + ambiente” retornou 493.000
resultados e a busca por “cartilha + direitos” retornou 749.000 resultados. Clicar
sobre alguns desses resultados nos leva a sites em que se pode ler ou baixar
arquivos PDF de cartilhas semelhantes àquela do Projeto ERICA. Procedem de
todos os pontos do país, são divulgadas por diversas organizações, datam de
diversos anos precedentes, aparentam diferentes níveis de investimento em
comunicação visual e ilustração, apresentam versões diferentes para tratar do
15
mesmo conteúdo de informações, formando, assim, uma profusão de material
difícil de delimitar, uma nuvem de informação que apelidou-se de “cartilhosfera”.
Inspirado pelas reflexões de Geertz, (2014, p.8) uma vez que o
comportamento humano é visto como ação simbólica, o que quer que seja essa
ação, “devemos indagar é qual é a sua importância: o que está sendo transmitido
com a sua ocorrência e através da sua agência...”. Esta é a principal pergunta feita
nesta pesquisa: o que significa a produção de tantas cartilhas da forma como se
apresentam, com as técnicas comunicativas utilizadas? A essa pergunta se seguem
outras: o que isso quer dizer sobre a nossa sociedade? O que isso quer dizer, pelo
menos, sobre a parte da sociedade que produz cartilhas? Por que muitas cartilhas
foram produzidas com a intervenção de artistas do traço caricatural e desenhistas
de histórias em quadrinhos? A proposta é fazer uma descrição mais aproximada
de aspectos que interessam ao campo da comunicação em relação a esse gênero de
publicação.
Proximidade é uma questão que se coloca desde o início nesta pesquisa.
Há 25 anos este pesquisador trabalha na produção de cartilhas de campanhas de
educação e comunicação, sempre sob a orientação do cartunista e escritor Ziraldo.
A princípio, portanto, não deveria haver dúvidas quanto ao objeto de estudo.
Trata-se de uma rotina. Trabalho após trabalho, recebemos encomenda de alguma
organização, nos reunimos com seus representantes para receber um briefing e,
com o problema estabelecido, partimos para plasmar numa curta narrativa,
invariavelmente ilustrada pelo cartunista e por sua equipe, todo o conteúdo
determinado. O objetivo relatado por nossos clientes sempre é passar sua
mensagem de maneira mais acessível e prazerosa do que poderia ser feita em
forma de livro ou apostila. Em outras palavras, o objetivo principal é mudar o
comportamento dos leitores ou fazer com que eles assimilem novos conceitos e
novas informações. Ou, segundo Ziraldo, conforme entrevista concedida para esta
pesquisa, “o cara diz ‘olha o que eu quero dizer pro meu público’ e a gente diz
‘olha como você vai dizer isso pro público”. Porém, justamente por ser um objeto
tão próximo, corre-se o risco de naturalizar as práticas e de não conseguir se
distanciar delas, o que seria necessário para enxergar o grande quadro em que essa
experiência se desenvolve.
Aventurei-me, portanto, a correr o risco de pesquisar um objeto com o qual
estou intimamente envolvido. Uma das vantagens, como nos aponta Gilberto
16
Velho, é que esse contato longo com o objeto, devido à experiência profissional,
faz com que eu já tenha me deparado com aspectos “que não são explicitados” e
que demandam um esforço mais aprofundado de “observação e empatia” que um
pesquisador “de fora” teria que conquistar ao longo do tempo.
Segundo Gilberto Velho (2013, p.74), “o processo de descoberta e análise
do que é familiar pode, sem dúvida, envolver dificuldades diferentes do que em
relação ao que é exótico”. Por ter trabalhado na produção de cartilhas, carrego um
“mapa” social que utilizo para saber qual o papel do cliente e qual o papel do
produtor da cartilha. A experiência já sedimentou um padrão de como a atividade
é realizada. Cada etapa da produção já ganhou um valor, um significado.
Compartilhamos esses significados com todas as pessoas envolvidas. Por
exemplo: sei como faço uma cartilha; sei como os outros fazem; sei quais as
dificuldades a enfrentar e as maneiras como normalmente são contornadas; sei
quais são os anseios do cliente; sei o que é considerado um trabalho bem-sucedido
e um malsucedido; tenho uma imagem mental de como o trabalho é recebido pelo
público, etc. O problema é que, como um nativo no ofício, posso naturalizar os
princípios e mecanismos que organizam esses mapas e padrões, sem perceber que
se trata de convenções construídas por pessoas que trabalham conjuntamente,
entram em conflito, cooperam e, enfim, negociam a cada interação (BECKER,
1977).
Assim, tenho consciência de que minha objetividade de pesquisador será
“relativa, mais ou menos ideológica e sempre interpretativa” (VELHO, 2013,
p.75). O plano é evitar tomar o familiar por conhecido. É levar para a pesquisa
nossas avaliações prévias para gerar boas perguntas mas prestar atenção maior às
informações inesperadas dadas voluntariamente pelas fontes. É procurar ver
sempre o quadro maior em que se encaixam as informações obtidas. E não cair no
erro de extrapolar conclusões do “pequeno” para o “grande” quadro ou de tratar
seu objeto como um “laboratório” social, coisas sobre as quais nos alertou
Clifford Geertz. Existe a confiança de que, ao escolher um objeto de estudo
bastante peculiar, um gênero de publicação com importância marginal no
conjunto das atividades da área de Comunicação, busca-se chegar àquelas
“interpretações mais amplas e análises mais abstratas”, que se fazem “a partir de
um conhecimento muito extensivo de assuntos extremamente pequenos”
(GEERTZ, 2014, p.15).
17
Provavelmente os colegas cartunistas e clientes que prestaram informações
à pesquisa, caso leiam esta dissertação, farão críticas e discordarão de minhas
conclusões em parte, o que é justamente a vantagem de estudar o ambiente
familiar em vez do exótico, com o qual não manteremos contato após a coleta de
dados (VELHO, 2013, p. 77). No presente caso, o pesquisador continuará a
depurar sua pesquisa com o retorno que poderá ter após a publicação.
Conforme já foi dito, há poucos estudos com o mesmo tema proposto. O
estudo das cartilhas não constitui ainda uma linha de pesquisa. Porém, durante os
primeiros meses do mestrado, encontrei alguns trabalhos acadêmicos com que
esta pesquisa pode dialogar.
Estruturas icônicas nas cartilhas de treinamento quadrinizadas, de Ed
Marcos Sarro, dissertação de mestrado para a FAU-USP, 2009, aproxima-se do
nosso tema porque caracteriza e traça um histórico da aplicação de histórias em
quadrinhos, um meio que conjuga imagem e texto, em publicações de
treinamento.
Para a ECA-USP, Devani Salomão de Moura Reis, produziu, em 2005, a
tese Comunicação pública nos serviços de saúde para o idoso: análise da
produção e percepção da cartilha Viver Mais e Melhor. Sua principal
preocupação foi averiguar se as técnicas de comunicação são eficazes junto ao
público idoso e usuário dos serviços de saúde, o que não é o foco deste trabalho5.
A tese de doutorado em Linguística (UFPE) de Márcia Rodrigues de
Souza Mendonça Ciência em quadrinhos: recurso didático em cartilhas
educativas (2008) investiga como a informação científica se apresenta nas
cartilhas feitas na forma de histórias em quadrinhos, que recursos verbais e não-
verbais os autores utilizam, como lidam com a credibilidade do discurso científico
e como representam os personagens que dão voz à ciência. A autora analisou seis
cartilhas em quadrinhos que trataram da questão das doenças sexualmente
transmissíveis (DSTs) com diferentes públicos-alvo. O trabalho se detém muito na
caracterização dos recursos expressivos e narrativos das histórias em quadrinhos.
Nota-se que o tema das cartilhas tem atraído pesquisadores de outras áreas
além da Comunicação Social e que o que mais interessa a eles são as técnicas e
5 A maioria das teses e dissertações cujos títulos incluem a palavra cartilha têm sido desse tipo, que averigua o sucesso de uma determinada cartilha aplicada a um determinado público, a julgar pelos resultados dos alertas recebidos do sistema de busca Google Acadêmico.
18
recursos comunicativos. Aqui se pretende usar um enfoque mais aberto, na
tentativa de perceber o que é mais significativo na própria existência de uma
grande produção de cartilhas em processo na sociedade brasileira contemporânea.
Se esta pesquisa for bem-sucedida, poderá facilitar desdobramentos.
Chegou a hora, portanto, de colocar alguma ordem nos conceitos que
ajudarão a analisar o material empírico. Quando se fala de uma publicação
chamada cartilha, precisamos caracterizá-la em relação a outros tipos homônimos.
Etimologicamente, cartilha é o diminutivo de carta, sentido que se estende à ideia
de livreto ou pequeno compêndio. É uma palavra polissêmica. No âmbito desta
pesquisa, não se tratará, de maneira alguma, das cartilhas que são livros de apoio à
alfabetização (conforme a definição do Dicionário Houaiss: “livro que ensina os
primeiros rudimentos de leitura”). Outra acepção da palavra é mais próxima da
nossa definição: “padrão de comportamento ou maneira de ser” ou “compêndio
elementar ou rudimentos de arte, ciência ou doutrina” (esta última, definida no
Dicionário Aurélio). De fato, não se encontram definições para o termo “cartilha”
nem no Dicionário de Comunicação (RABAÇA & BARBOSA, 1978) nem no
Dicionário Houaiss de Comunicação e Multimídia (NEIVA, 2013). No entanto,
pode-se afirmar que cartilha é, entre outras coisas, um gênero de publicação
normalmente ligado à atividade de propaganda e da comunicação pública6.
Uma pesquisa histórica ajuda a perceber a construção do gênero. As mais
antigas publicações que têm nome de cartilha conjugam o propósito da
alfabetização com a da doutrinação cristã. Leonardo Mozdzenski (2006, p. 19)
afirma que as primeiras cartilhas surgem, em nossa língua, no século XVI, no
contexto da ação contrarreformista portuguesa e da difusão da tipografia. Um dos
pilares da empresa da colonização foi a evangelização dos povos “bárbaros” ou
“gentios”, com a difusão da cultura e religião portuguesas. Por meio de cartilhas,
esses povos podiam conhecer e usar os códigos religiosos e linguísticos da
metrópole. Uma cartilha impressa em 1554 é um dos primeiros exemplos: intitula-
se Cartilha em Tamul e Português (figura 1) e autodefine-se como “cartilha que
contém brevemente o que todo cristão deve aprender para sua salvação”.
Aprendia-se a língua portuguesa ao mesmo tempo em que se aprendiam as
6 A definição do que seja comunicação pública depende da abordagem. Pode ser aquela cuja emissão se origina necessariamente nos órgãos do Estado; pode ser aquela cujo objeto são temas de interesse geral, público; ou pode ser aquela cuja finalidade é a realização do interesse público (HASWANI, 2013, 153).
oraçõ
entitu
(ZVE
FiguraFonte
foco
entan
comu
imag
em
interp
divul
medi
repre
arte p
(GOM
ões de culto
ulado Doct
ELEBIL, 19
a 1. Folha de re: http://karkan
Em tais
é o ensino
nto, também
um encontr
gens (tais co
sequência,
pretar essas
lgar o conte
ievais era
esentações s
pictórica se
MBRICH,
o. De 1577
trina Christ
975, p.237).
rosto da Cartinirka.org/tag/f
cartilhas, c
da língua e
m caracteriz
rar, dentro
omo entalhe
representa
s obras artí
eúdo da Bí
feita em
simplificada
e tornava, n
1985, p.13
7 registra-se
tam em Lín
lha em Tamulfirst-non-europ
como nas ca
scrita. O us
za tais publ
das igrejas
es decorativ
am passag
sticas e dec
íblia para o
função d
as e liberda
naquele con
35). Durant
e, em Goa,
ngua Malau
l e Português opean-languag
artilhas de
so de image
icações que
s construíd
vos, vitrais
gens das
corativas co
os fiéis iletr
de propag
ade em rela
ntexto, uma
te a Refor
outro livro
uar Tamul –
(1554) ge-to-be-printe
alfabetizaçã
ens para com
e precedem
das durante
e baixos-re
histórias b
omo uma m
rados. A “d
gar a men
ção à repro
“forma de
rma Protest
o bilíngue d
– Tampiran
ed/
ão contemp
municar a do
as cartilha
o período
elevos) que
bíblicas. C
maneira inte
decoração” d
nsagem cri
odução da re
escrita por
tante do sé
19
de orações
n Vanakam
porâneas, o
outrina, no
as atuais. É
medieval,
e, dispostos
Costuma-se
encional de
das igrejas
istã. Com
ealidade, a
r imagens”
éculo XVI
come
Luter
maio
puram
algum
rosto
litera
escor
pesso
infer
seus
e cen
igreja
publi
FiguraFonte http:/
lado
7 Coninstitu
eçam a ser
ro era feita
or número d
mente deco
m grau, a co
o de um se
almente esp
rre vinho. N
oa em vest
rno. Segund
textos, defe
nsurou os s
as. O líder
icar belos p
a 2. Páginas de: Taylor Insti//blogs.bodleia
A verten
vem dos p
nforme site ution-library/
r produzido
a na língua
de pessoas.
orativa, mas
omunicar a
ermão de 1
premido po
Na ilustraçã
tes de papa
do Emma H
endeu o uso
seguidores
religioso c
panfletos ilu
de A paixão deitution Libraryan.ox.ac.uk/ta
nte religiosa
panfletos po
http://blogs.bAcesso em: 3
os panfletos
nacional e
Seus panf
s completav
mensagem
520 a figu
r uma cruz
ão de uma p
a é carregad
Huber, da T
o de imagen
que orques
contou com
ustrados.7
e Cristo, de Luy aylorian/tag/pr
a é um lado
olíticos. No
bodleian.ox.ac3ago. 2015.
s em mass
e não em la
fletos tinham
vam alegori
m para os ile
ura de um h
z sobre um
página da P
da por mon
Taylor Inst
ns como ferr
stravam a d
m um artista
utero, ilustrad
rotestant-refor
o da linhag
século XV
c.uk/taylorian/
sa. A propa
atim, para s
m gravuras
camente o
etrados. Por
homem, rep
m tanque ch
Paixão de C
nstros em d
titution Libr
ramenta par
destruição d
a da corte,
da por Cranach
rmation/
gem das car
VIII circulam
/2015/03/30/m
agação das
ser compree
s cuja funçã
texto e ajud
exemplo, n
presentando
heio de uva
Cristo (figu
direção às c
rary, Lutero
ra educar os
de imagens
Lucas Cra
h
rtilhas atuai
m pela Fran
martin-luther-a
20
s ideias de
endida por
ão não era
davam, em
na folha de
o Cristo, é
as do qual
ura 2), uma
chamas do
o, num de
s iletrados,
dentro de
anach, para
is. O outro
nça muitos
at-the-taylor-
21
panfletos de agitação política, clamando pela construção de uma nova sociedade,
apelando para a emoção e entronizando na cultura ocidental as palavras liberdade,
justiça, nação, pátria e cidadania.
Os inúmeros panfletos revolucionários que difundiam as luzes da
Enciclopédia para o homem comum repudiavam a linguagem utilizada pelas
classes de prestígio do Antigo Regime – rebuscada, repleta de afetações e
tecnicismos desnecessários – adaptando-a através do uso de palavras e
construções sintáticas mais próximas da linguagem cotidiana. E mais: foram
produzidos cerca de 600 impressos procurando ampliar o debate político para os
iletrados, com a imagem formando uma peça-chave para a construção do sentido
do panfleto (MOZDZENSKI, 2006, p.29).
Ainda segundo Mozdzenski, no século XIX circulam pelo Brasil folhetos
políticos ligados aos ideais liberais, como a Constituição Explicada (1821), o
Diálogo entre a Constituição e o Despotismo (1821) e o Cathecismo
Constitucional offerecido às Cortes da Nação Portugueza demonstrando os
principaes princípios em que deve ser instruído todo o Cidadão (1821), com o
propósito de educar o cidadão para o jogo político democrático. Nelas já estão
presentes várias estratégias de comunicação e persuasão que se exibem nas
cartilhas atuais, como o glossário de termos técnicos, a sequência de perguntas e
respostas, as narrações ficcionais, os diálogos, as ilustrações e o uso do humor.
Em entrevista ao jornalista Leonardo Cazes, no jornal O Globo, José
Murilo de Carvalho, comentando a “guerra literária” em torno do movimento da
independência brasileira, explica que muito foi produzido por polemistas “com
preocupações didáticas, que escreviam catecismos, dicionários cívicos para educar
as pessoas, ensinar os conceitos que surgiram naquele momento: o que é
Constituição? O que é liberalismo? O que é representação?". Seu colaborador na
pesquisa, Marcello Basile, pinta um retrato de grande popularidade dos panfletos,
que “eram geralmente vendidos nas próprias tipografias, livrarias e lojas comuns.
O fato de eles serem anunciados mostra como eram aguardados pelo público.
Temos notícia de que as tipografias ficavam engarrafadas e não conseguiam dar
conta da demanda de impressão”.8
8 Declarações ao repórter de O Globo Leonardo Cazes, em reportagem sobre o livro “Panfletos da Independência”, no dia 28/03/2015.
publi
clam
escra
anua
Bosto
uma
Figurauma cFonteDispo
Brasi
ensin
cond
sinte
instru
biógr
livro
na s
presc
Tatuz
produ
cálcu
milhõ
A camp
icações pop
mavam aos c
avidão do
almente a pa
on (figura 3
situação de
a 3. Ilustraçãocena em que oe: University oonível em: http
Outra pu
il. Em 191
no de 1920
dição prime
etiza o ideal
ução cívica
rafa Maria
, o autor se
segunda, “o
critivo, no in
Muitos a
zinho, de M
uto Biotôn
ulos do lab
ões de exe
panha aboli
pulares que
cidadãos do
sul. Eram
artir de 183
3). Cada mê
e injustiça, s
o de um almanos feitores rasgof Virginia, Ep://utc.iath.vir
ublicação m
9, o educa
em São Pa
eira do dese
l de todas a
a), uma edi
Marta Cha
e preocupa e
o livro adq
ntuito de as
ainda se lem
Monteiro Lo
nico Fontou
boratório pa
emplares di
icionista no
e, baseadas
o “Norte” p
m os cham
6 pela Ame
ês do ano a
seguida por
naque da campgam os papéis
EUA. rginia.edu/abo
marcante que
ador Antoni
aulo e defen
envolvimen
as cartilhas
ição da Lig
aves de Car
em informar
quire um c
ssentar os pr
mbram da m
obato, lança
ura, que se
atrocinador,
istribuídos
os Estados
s em gravu
para conhec
mados Anti
erican Anti-
apresentava
um texto qu
panha abolicios de alforria de
olitn/gallaaaf.h
e precede as
io de Samp
nsor da erra
nto do País
s: O que o
ga Nacional
rvalho (201
ar sobre os p
caráter mai
rincípios qu
mais difundi
ada em 192
guiu sendo
, em 1973,
em todo o
Unidos v
uras eloque
erem e com
i-slavery A
-Slavery So
uma gravur
ue explicav
onista americae uma senhora
html
s cartilhas a
paio Dória,
adicação do
s, produziu
cidadão de
lista de São
10, p. 35),
principais p
is doutriná
ue devem re
ida das cart
25 como pe
o reimpress
, havia atin
Brasil. Ne
valeu-se, ta
entes e text
mbaterem o
Almanacs, p
ociety de No
ra em que é
va o problem
ana. A gravuraa.
atuais foi pu
autor da r
o analfabeti
um livro
eve saber (M
o Paulo. Se
na primeir
ontos da co
rio, argum
ger uma soc
tilhas brasil
eça de prop
sa até que,
ngido a ma
ela, Montei
22
ambém, de
tos curtos,
regime de
publicados
ova York e
é encenada
ma.
a representa
ublicada no
reforma do
ismo como
cujo título
(Manual de
egundo sua
ra parte do
onstituição;
mentativo e
ciedade”.
leiras: Jeca
paganda do
conforme
arca de 84
iro Lobato
23
revisita seu personagem Jeca Tatu, mostrando como ele, primeiro, se livra das
verminoses e, depois, assume hábitos higiênicos, trabalha melhor, fica rico e
civiliza-se, tudo com trechos de despudorada recomendação da compra dos
produtos do Laboratório Fontoura (CARRASCOZA, 2004, P.157).
Durante o período do Estado Novo, o governo, através de meios de
comunicação de massa, conduz um projeto de apoio à construção da identidade
nacional brasileira e de investimento na formação cívica do chamado “povo”. Em
1939, Getúlio Vargas decreta a criação do Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP). O poderoso órgão, ligado diretamente ao Presidente, recebeu
inúmeras tarefas coerentes com esse projeto e que, ao mesmo tempo, colaboravam
com a manutenção do regime autoritário: centralizar a propaganda estatal; mediar
relações com a imprensa estrangeira; censurar os meios de comunicação, os
espetáculos e os eventos esportivos; promover os intelectuais e artistas nacionais;
promover manifestações cívicas e festas patrióticas; promover a produção de
filmes educativos e organizar os serviços de turismo9. O DIP era também
responsável pela edição de folhetos, cartazes, livros e revistas culturais. Publicou
folhetos para divulgar a obra do regime, principalmente a legislação trabalhista.
Publicou, também, cartilhas destinadas a crianças e jovens, como História
de um menino de São Borja (1939), Getulio Vargas, o amigo das crianças (1940),
Getulio Vargas para escolares (1940), Getúlio Vargas para Crianças (1940) e A
Juventude no Estado Novo (1941). Nelas, toma-se a figura de Vargas como
modelo de todas as virtudes que o povo brasileiro deve ter (em nenhum trecho dos
textos usa-se o termo “cidadão”). Sua história pessoal e suas declarações públicas
compõem os textos e cuidadosas ilustrações no estilo dos livros infantis (ver
figura 4) e das histórias em quadrinhos da época defendem a Revolução de 1930 e
o golpe de 1937 que inaugurou o Estado Novo, além de explicitar o modelo ideal
de comportamento que os brasileiros, especialmente a juventude brasileira,
deveriam ter para fazerem “o que o Brasil espera” deles.
9 Conforme os termos de criação no decreto n.º 5.077 de 29/12/1939, disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-5077-29-dezembro-1939-345395-publicacaooriginal-1-pe.html . Acesso em: 29/09/2014.
FiguralivretoFonte
ao lo
de e
discu
reper
medi
1992
porqu
ativid
intere
inspi
de te
daqu
texto
ativid
comu
histó
objet
a 4. História do foi publicad
e: CPDOC/FG
Com bas
ongo da Hist
enunciado”
urso”. Segu
rtório de g
ida que a p
2, p. 179). S
ue, apesar
dade social
essa.
Por sua
iração etnog
extos, eles m
ueles a quem
os concretos
dade socia
unicativa, d
ória do Proj
to de estud
de um meninodo pelo DepartGV
se nas linha
tória, enten
que, confo
undo o aut
gêneros do
própria esfe
Se as cartilh
da aparente
, e a percep
vez, esse
gráfica abor
mesmos conj
m eles perte
s para leitu
al caracter
de encomend
jeto ERICA
do de insp
o de São Borjatamento Nacio
as que pode
demos que
orme Bakht
or, cada es
discurso q
era se desen
has podem s
e heterogen
pção de qua
“gênero de
rdado por G
njuntos, que
encem” (GE
ura, mas nã
rizada por
dar uma car
A que conta
iração antr
a (1939), retraonal de Propag
emos traçar
lidamos co
tin, pode s
sfera da at
que vai dife
nvolve e fic
ser estudada
neidade, elas
al atividade
e discurso”
Geertz, pode
o antropólo
EERTZ, 201
ão é disso
r ações d
rtilha, de cr
amos no iní
ropológica.
atando a Polítiganda, antece
entre essas
m um “tipo
ser denomin
tividade hu
ferenciando-
ca mais com
as como um
s correspon
e se trata é
”, visto atra
e ser tratado
ogo tenta le
14, p.213). A
que estamo
de diagnos
riá-la e de d
ício) pode
Esse relat
ca como bruxssor do DIP.
s diversas p
o relativame
nado um “
umana “com
-se e ampli
mplexa” (B
m gênero di
ndem a uma
uma questã
avés de um
o como um
r por sobre
As cartilhas
os falando.
ticar a n
distribuí-la (
gerar um re
o ou narra
24
xa. Este
publicações
ente estável
“gênero do
mporta um
iando-se à
BAKHTIN,
iscursivo, é
a esfera da
ão que nos
m olhar de
m “conjunto
os ombros
s oferecem
A própria
necessidade
(tal como a
relato e ser
ação, tanto
25
quanto a descrição das brigas de galo em Bali e tanto quanto uma obra de ficção
como Madame Bovary (ou Jeca Tatuzinho) não é gerado pela realidade imediata,
mas é produto da interpretação de um observador da realidade; é um texto,
portanto, que “diz alguma coisa sobre algo” e pode ser analisado em busca de seu
significado e em busca do “que é genérico a essas estruturas, o que pertence a elas
porque são o que são” (GEERTZ, 2014, p. 19).
Com a intenção de manter esse modelo de observação10, de valer-se da
minha inserção na prática social que é objeto de estudo e produzir tal tipo de
relato, fiz um trabalho de coleta de dados qualitativos dividido entre:
a) analisar um corpus de publicações que se caracterizam como cartilhas
b) realizar entrevistas em profundidade com pessoas envolvidas na criação
de cartilhas.
O trabalho começou com a coleta de cartilhas para formar um corpus de
estudo. Uma vez que as cartilhas geralmente não são catalogadas e não são
encontradas em bibliotecas, recorremos a três fontes heterodoxas. A primeira é
minha coleção particular, com cartilhas recolhidas em 25 anos de trabalho,
principalmente na equipe de Ziraldo, e aquelas recebidas dos clientes, além das
recebidas no ambiente escolar por meus familiares e amigos. A segunda fonte
foram as cartilhas disponibilizadas na internet pelos seus patrocinadores, uma
fonte quase inesgotável, que só faz crescer. A terceira e mais importante fonte de
material foi a coleção de um pesquisador que conheci durante o estudo.
João Antônio Buhrer é um jornalista e cartunista que vive em Campinas –
SP e lá produz exposições e eventos culturais. Entre seus muitos interesses
culturais se destaca aquele pelos cartunistas e ilustradores brasileiros. Eu o
conheci dentro da rede Facebook, pois ele tem o hábito de postar imagens dos
arquivos de impressos que tem em casa, com comentários sobre os artistas
gráficos envolvidos. Um amigo em comum fez a conexão quando notei uma
postagem dele sobre o cartunista Ziraldo. Fiz contato por mensagens, quando
perguntei se, entre seus arquivos, havia cartilhas desenhadas por cartunistas. A
resposta foi positiva e decidi marcar uma visita para ver a coleção de perto.
Em novembro de 2014 passei dois dias em Campinas. João A. Buhrer
apresentou-me três grandes caixas de papelão cheias de cartilhas que ele havia
10 É importante ressaltar que, apesar da inspiração ser antropológica, não chega a configurar uma autêntica “descrição densa”.
26
separado, mais uma sacola com exemplares repetidos que ele me cedia. Segundo
ele, foram muitos anos de coleta de publicações em sebos, banquinhas de rua e até
mesmo em descartes de papel. Nessa coleção havia cartilhas datadas dos anos
1960 até a atualidade. O primeiro levantamento do material deu a impressão de
uma notável coerência entre as publicações, apesar de toda a heterogeneidade de
títulos, autores e soluções narrativas. Fiz um registro fotográfico das capas de
todas elas e das páginas completas de algumas publicações que chamaram mais a
atenção para análise. A coleção de cartilhas para pesquisa continuou a crescer
após a conclusão do estudo.
Quanto às entrevistas, partimos do princípio de que a interpretação do que
significa a produção de cartilha deveria se basear nas informações tanto das
pessoas que executam a criação de cartilhas quanto das que propõem e patrocinam
essa produção. Realizamos um total de onze entrevistas com os seguintes
profissionais:
1) S., Gerente de Produtos de uma indústria farmacêutica, a qual não quis
ser identificada. 28/08/2014. 20 min
2) Paula Bauducci de Oliveira, Vice-presidente da organização não-
governamental Autismo e Realidade, patrocinadora da cartilha
Autismo, uma realidade. 19/09/2014. 23min.
3) Kátia Vergetti Bloch, Epidemiologista e Coordenadora Executiva do
projeto ERICA da UFRJ, distribuidor da cartilha Eu amo ERICA.
06/10/2014. 34 min.
4) Samuel Ramos Lago, Professor de Biologia, fundador do Grupo
Positivo (áreas de educação e informática), autor da série de cartilhas
Educação em Quadrinhos. 10/04/2015. 24 min.
5) Bira Dantas, caricaturista e cartunista, autor de diversas cartilhas em
quadrinhos. 17/11/2014. 2h10min.
6) Marcos Vaz, quadrinista autor de diversas cartilhas em quadrinhos.
18/12/2014. 38 min.
7) Ziraldo, escritor e cartunista, autor de diversas cartilhas. 25/11/2014.
15 min.
8) Claudius Ceccon, cartunista, Diretor do Centro de Criação de Imagem
Popular – CECIP e autor de cartilhas. 31/03/2015. 59 min.
27
9) Maurício de Sousa, quadrinista, autor de diversas cartilhas.
07/04/2015. 16 min.
10) Pedro de Luna, jornalista e cartunista, autor de cartilhas em
quadrinhos. 15/09/2015. 58 min.
11) Miguel Paiva, cartunista e autor de cartilhas. 02/10/2015. 42 min.
Quanto ao estudo de recepção das cartilhas, logo no início da pesquisa
surgiu a questão de empreender ou não tal coleta de dados, e a conclusão foi de
que não contribuiria muito para a pesquisa, uma vez que, pela natureza do objeto,
seria difícil identificar um número representativo de leitores. As cartilhas são
distribuídas para públicos amplos e pouco delimitados no espaço e no tempo
(podem ser lidas por pessoas em locais diversos e distantes, em datas também
muito distantes). Além disso, ficaríamos restritos a escolher um caso em que o
estudo da recepção fosse exequível e muito recente, o que, na nossa opinião, não
forneceria base empírica para as conclusões gerais que são objetivo da pesquisa.
Antes de começar a selecionar, da massa de material existente, cartilhas
específicas e significativas para estudo, foi necessário conceituar o que caracteriza
uma cartilha típica. Essas características foram apontadas nos depoimentos dos
informantes da pesquisa, que foram procurados dentre o grupo dos produtores de
cartilhas e o dos usuários de seus serviços. Segundo Howard Becker (2009, p.20):
Falar sobre a sociedade em geral envolve uma comunidade interpretativa, uma organização de pessoas que faz rotineiramente representações padronizadas de um tipo particular ("produtores") para outros ("usuários") que as utilizam rotineiramente para objetivos padronizados.
Assim, a “organização de fazer e usar” forma uma “unidade estável” que
permite descrever a normalidade do gênero da cartilha, nas próprias palavras dos
entrevistados. O cartunista Pedro de Luna, por exemplo, indagado se o seu
trabalho se assemelhava ao de um publicitário, concordou:
Na verdade a lida é a mesma. Você recebe um briefing, um conteúdo bruto e você tem que adaptar aquilo pro roteiro, pro quadrinho, você tem que destrinchar aquilo em balões [...] Nesse trecho, o entrevistado cita termos típicos da publicidade, como
briefing e roteiro, conjugados com termos de cartunista, como quadrinho e balão.
Vários entre os entrevistados que criam cartilhas descreveram processos em que
se reúnem com representantes do cliente (caracterizado como uma organização
28
pública ou privada com determinada necessidade de comunicação), conversam,
recebem material escrito em termos mais ou menos técnicos, relativos à área de
conhecimento daquele cliente, voltam para seus estúdios e, sozinhos ou em grupo,
elaboram a cartilha a partir desses conhecimentos. Depois, o trabalho é levado
para uma nova discussão com os representantes dos clientes, para receber críticas
ou ser aprovado. Essa descrição do processo é a mesma que este pesquisador faria
a partir de sua experiência profissional. O cartunista Claudius também
compartilha dessa noção de processo, entre vários outros entrevistados. Se,
algumas vezes, o cliente só traz um problema...
Noutros casos, quem pede já te dá o conteúdo: “olha, eu preciso passar para o grande público a ideia de que automedicação é uma coisa muito negativa, por isso, isso, isso... E acontece isso, isso...”. Aí, você organiza isso aqui e você vai fazer... Você pode ter um produto a partir dessa organização; você pode fazer um produto que é uma cartilha ou é um vídeo ou é uma publicação. Você pode partir pra todas essas coisas (Claudius). Os entrevistados confirmam que a cartilha não é uma obra de autor; é um
trabalho de comunicação feito sob contrato e, portanto, é produto de “uma ação
coletiva” (BECKER, 1977). Assim, só tem sentido dentro de uma campanha
publicitária ou de natureza publicitária (quando publicitários profissionais não
participam). Ela pode ser uma peça de campanha entre outras. O cartunista Miguel
Paiva confirma a descrição de tal processo de criação:
Mas eu acho que é um processo muito simples pra mim. Não necessariamente fácil, mas simples, assim, um processo de elaboração do que eu li, do que eu aprendi daquilo que está no texto. Porque a grande ideia que a cartilha tem é de você resumir um texto enorme, repetitivo e às vezes excessivo, de você resumir aquilo numa imagem sintetizada, numa imagem bastante informativa que resuma o conceito. A partir dos relatos, conclui-se que muitas das peculiaridades das cartilhas,
enquanto gênero de publicação, são as mesmas de qualquer outra peça de
propaganda: o texto é simplificado ou “acessível” a um “grande público” e a
linguagem é persuasiva. Sobre a persuasão, Adílson Citelli pondera que ela é
estratégia típica do discurso publicitário, mas não é exatamente coerção, nem
mentira: “Pode ser apenas a representação do desejo de se prescrever a adoção de
alguns comportamentos, cujos resultados finais apresentem saldos socialmente
positivos” (CITELLI, 2002, p.67). Citelli considera que “em certas áreas do
conhecimento possa imperar uma natureza discursiva menos persuasiva, até
mesmo lúdica, aberta”. É o caso do texto artístico, devido à sua “vocação
29
plurissignificativa”. De fato, é impossível encontrar um discurso puro, que seja
somente persuasivo ou somente artístico, por exemplo. João A. Carrascoza retrata
a redação de propaganda como urdidura de um tecido cuja função é “vestir” a
marca, o produto ou serviço anunciado. A atividade publicitária lança mão de
qualquer recurso para persuadir a audiência de potenciais consumidores,
alcançada seja por qualquer meio. A mensagem do anunciante precisa provocar
reação da audiência de maneira “suave”. O fundamento de qualquer criação
publicitária, portanto, é a técnica da retórica, conforme Aristóteles e autores que o
atualizaram, como Jacques Durand e Chaim Perelman. Porém, a essa técnica serão
somados outros recursos linguísticos que vão situar a forma final do texto do
anúncio em algum ponto de uma escala que vai da forma mais nitidamente
“apolínea, que apresenta um viés racional” até a mais “dionisíaca, que se apoia na
emoção e no humor” (CARRASCOZA, 2004, p. 31), termos tomados
emprestados da obra de Nietzsche. Outra característica das cartilhas deduzida a
partir dos relatos dos entrevistados é que, como qualquer atividade de
comunicação destinada a um grande público, tais como lançar anúncios e jornais,
a publicação de cartilhas “implica a procura de um denominador comum”. Chega-
se a esse denominador comum pela prática da homogeneização e do
“sincretismo”, que “tende a unificar em uma certa medida os dois setores da
cultura industrial: o setor da informação e o setor do romanesco”. Para os
produtores, seu público corresponde também a uma imagem homogeneizada, um
“homem médio, resultante de cifras de venda” (MORIN, 2011, p. 25 - 27).
Sobre o público-alvo, o cartunista Marcos Vaz diz que se especializou em
cartilhas em quadrinhos para estudantes do ensino fundamental, de primeiro ao
quinto ano, mas que também teve encomenda de uma cartilha em quadrinhos para
“público trabalhador”:
Fizeram numa linguagem mais simples, de quadrinhos, uma linguagem fácil de ser assimilada, porque trabalha muita imagem junto como o texto, porque sabem que atinge mais. O trabalhador vai ter mais vontade de ler do que uma cartilha só em texto, né? Então, acaba que é o público jovem e adulto também. Apesar de ser uma linguagem mais infanto-juvenil, também é voltada para o jovem e adulto. Perguntado se o cartunista trabalha na cartilha como um tradutor, Miguel
Paiva concordou:
Eu acho que sim, que ele é um tradutor; ele é um adaptador. Ele traduz e adapta. Porque, às vezes, você resume em três parágrafos um desenho com um gesto.
30
Existe um perigo, no entanto, em ver a cartilha apenas como uma
simplificação vocabular ou de linguagem: a tarefa não pode ser encarada como se
fosse sistemática. O cartunista Claudius diz que cartilha é uma palavra
desvalorizada:
As pessoas acham que é uma coisa menor, paternalista, acham que, já que as pessoas não conseguem ler, você faz uma cartilhazinha e, aí, essa cartilha, então, vai passar. Eu considero que a cartilha, essencialmente, ela deve fazer um esforço enorme pra passar informação. São as informações corretas, são as informações eventualmente cientificamente comprováveis, etc., de uma forma acessível, mas não paternalista. A cartilha, portanto, é uma publicação simplificada, mas não se confunde
com um mero resumo. Exige-se que ela provoque efeito no leitor, por meios
persuasivos. A gerente de produto farmacêutico entrevistada aponta que o
objetivo de fazer uma cartilha em vez de um folder11 é que a cartilha tem um
caráter educativo e é uma peça mais atraente para chamar a atenção quando
exposta na sala de espera dos médicos:
O foco acaba sendo educacional também. Folder, essas coisas, acabou caindo num lugar-comum. Fica só um papel em cima da mesa na sala do médico [...] [Com a cartilha] Você consegue contextualizar. Constrói uma lógica, um raciocínio, para entender aquela mensagem. De fato, conta uma história. Folder, tem que apelar para uns bullet points... A gerente de produto também considera que a cartilha traduz a linguagem
do registro científico para o registro popular. Ela compara uma publicação
direcionada a médicos com a cartilha correspondente, direcionada a mães:
O fascículo tinha caráter científico. Eles terminaram agora de entregar para os médicos todos os fascículos da série. Agora os representantes podem chegar com a cartilha e dizer "Tudo isso que a gente discutiu com o senhor, agora a gente traduziu para o seu paciente numa linguagem acessível".
O cartunista Bira Dantas, sobre a importância de se fazer cartilhas, diz:
Quem aprende primeiro com a cartilha somos nós, porque, quando você pega aquelas informações, são informações privilegiadas e o grande público não tem acesso a isso, porque a mídia não se importa em oferecer esse tipo de informação.
Os depoimentos mostram como os produtores de cartilha costumam
relacionar seu trabalho com a divulgação de informações verdadeiras e científicas
a um grande público, o que nos leva a alinhar essa prática com aquelas que,
apontadas por Foucault (1990, p.12), não existem fora do poder: “Cada sociedade
11 Folheto publicitário impresso numa única folha de papel, com uma ou mais dobras (NEIVA, 2013, p. 223).
31
tem seu regime de verdade, sua política geral da verdade: isto é, os tipos de
discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros”. A produção das
cartilhas, as quais baseiam seus conselhos na autoridade científica, é um elemento
do processo de construção social da verdade.
Assim, com base nos conceitos teóricos, na própria experiência
profissional e nas informações colhidas em entrevistas, podemos definir cartilha
como uma publicação de formato pequeno, de poucas páginas e de distribuição
gratuita, criada com o propósito de informar públicos amplos e pouco habituados
à leitura sobre assuntos de relevância social. A cartilha, na maioria das vezes, é
produzida e distribuída por órgãos públicos (ministérios, secretarias, autarquias,
agências, etc.); muitas vezes, por ONGs (institutos, fundações, etc.), sindicatos e
também por grandes companhias privadas. Todas as publicações coletadas
correspondem a tal descrição geral.
É importante, agora, diferenciar o conceito de “cartilha” do conceito de
“manual”. Manuais também são publicações de formato pequeno e poucas
páginas, contêm “noções ou diretrizes relativas a uma disciplina, técnica,
programa escolar, etc.” (NEIVA, 2013, p.347), apoiam o texto com ilustrações ou
fotos e geralmente são gratuitos. Porém, destinam-se a um público que os lê
voluntariamente, por qualquer motivo pessoal ou profissional. No caso dos
manuais, a atenção do leitor não precisa ser capturada e a técnica narrativa pode
ser simplesmente objetiva ou didática. Cartilhas, por outro lado, são destinadas a
públicos mais heterogêneos, que não buscaram voluntariamente a publicação, que
não disporão de muito tempo e que devem ser convencidos, após a leitura e um
tanto de reflexão, a aprimorar seu comportamento ou a adotar determinadas
práticas. Por esse objetivo, cartilhas precisam se valer de técnicas persuasivas de
comunicação.
Paula Bauducci, uma das entrevistadas, dirige uma ONG sobre autismo e
já editou manuais e cartilhas. Ela compara um manual divulgado em seu site com
a cartilha feita em pareceria com Ziraldo:
É diferente a proposta. Ali, o pai tem interesse e, quanto mais informação, melhor. No caso da nossa cartilha, o negócio é mais chamar a atenção. Não passa batido. Ele para e coloca um olhar a mais nele. E o professor aprende toda aquela informação que vem na cartilha numa maneira fácil. A cartilha comunica com facilidade. Mesmo pra quem não está interessado sai com aquele conhecimento. É quase que impossível não sair.
32
Segundo Paula, o manual e a cartilha têm a mesma mensagem, mas a
quantidade de conteúdo é diferente e a cartilha não tem pretensão de esgotar o
assunto: apenas chama a atenção para o leitor buscar aprofundamento.
É importante também advertir que os títulos das publicações encontradas
nem sempre correspondem aos conceitos construídos acima. Haverá manuais com
nome de cartilha, cartilhas com nome de manual e publicações extensas e pouco
amigáveis (ou atraentes) com o nome de cartilha.
Enfim, sob o nome de “cartilha”, encontra-se certa variedade de
publicações. Algumas se parecem com gibis infantis. Outras são apenas folhetos
ilustrados. Muitas, apesar de terem o patrocinador identificado, são anônimas;
outras têm autor e até mesmo ficha catalográfica. Também se encontram, sob o
nome de cartilha, livretos sem ilustrações. Como já foi observado, é frequente o
uso do termo “cartilha” para caracterizar séries de instruções objetivas que órgãos
públicos divulgam em sites de internet e na imprensa, caso em que não existe a
publicação nem em papel nem em formato virtual.
No entanto, o objeto de estudo desta dissertação engloba apenas as
cartilhas que se utilizem de meios visuais (ilustrações, fotos, gráficos ilustrados,
etc), conjugados com texto, para passarem sua mensagem. Utilizamos esse critério
porque o recurso das ilustrações relaciona-se com o propósito de comunicar-se de
modo o mais acessível possível e de persuadir o leitor, que são características
fundamentais de uma cartilha. Segundo Joaquim da Fonseca, a caricatura, tomada
como um termo geral que engloba obras como a caricatura pessoal propriamente
dita, a charge, o cartum, o desenho de humor, as histórias em quadrinhos cômicas
e os desenhos animados, “fala para um público o maior possível” e “desenvolveu
uma linguagem própria, com um sistema de elementos que compõem essa
linguagem”. O termo “desenho de humor”, por sua vez, denomina imagens feitas
na linguagem da caricatura, ou seja, representar por equivalência em vez de por
semelhança, aplicando simplificações e distorções propositais. O desenho de
humor não tem “como finalidade principal provocar o riso, mas representar, com
os elementos da caricatura, um momento do ser humano que seja visto sob o
prisma do humor” (FONSECA, 1999, p. 25-27). Nas palavras de Miguel Paiva,
“A melhor forma de você informar alguém ou de fazer alguém aprender alguma
coisa é usar o desenho de humor”, no que ele está acompanhado pela totalidade
dos entrevistados, como será desenvolvido mais adiante, no capítulo 3.
33
As qualidades apolíneas do anúncio tendem a ser alcançadas pelo uso de
texto e as qualidades dionisíacas, pelo uso das imagens. “O que as palavras não
afirmam, a imagem o faz e vice-versa [...]. Há sempre uma fusão, uma
complementaridade semiótica entre o código linguístico e os códigos visuais”
(CARRASCOZA, 2004, p. 94). Assim, não admiramos que uma cartilha de
propaganda possa assumir a forma de um gibi de quadrinhos, ou de um livro de
conto ilustrado, como Jeca Tatuzinho. Segundo o autor, justamente quando
assumem a forma de histórias, adentrando o universo literário, as criações
publicitárias atingem sua condição mais aberta e plurissignificativa. “O texto de
propaganda impresso pode ainda ser formatado como uma oração, um sermão, um
horóscopo, uma receita médica, uma ficha de inscrição, enfim, um sem-número de
apresentações inspiradas em modelos verbais distintos” (CARRASCOZA, 2004,
p.30). De fato, é frequente a participação de cartunistas como ilustradores ou
coautores de cartilha (Luíz Sá, Ziraldo, Maurício de Sousa, Claudius, Bira Dantas,
Marcos Vaz, Miguel Paiva, Laerte, Nani, Márcio Baraldi, Pedro de Luna, Caco
Galhardo, Jean, Luís Augusto, Geandré, Nílson, Vilmar, entre muitos outros).
Sobre a convocação de cartunistas para elaborar e assinar cartilhas, a
gerente de produtos da indústria farmacêutica entrevistada diz que o motivo de
contratar Ziraldo é que
[...] a assinatura do Ziraldo já tem um peso. A pessoa olha e já pensa que tem uma coisa interessante ali. Tem uma coisa também de estimular a leitura. [...] O que chamou a atenção foi a abordagem que ele tem, de que está ligado a questões sociais; de que, no fundo, tem preocupação de educar. Casou muito com a proposta da campanha. Não foi só pela estética. Foi por toda a proposta de trabalho. Portanto, a participação dos cartunistas, desde o início do processo, não
pode ser somente creditada à necessidade de “embelezar” ou “decorar” a
publicação. Procura-se algo mais que eles podem fornecer.
Como uma das características das cartilhas é que, com elas, se busca
atingir um público amplo e esparso, faz sentido analisar cartilhas disponíveis on-
line e para download, tanto quanto cartilhas impressas, cuja distribuição é
irregular e restrita. Ainda que estejam disponíveis na internet, as cartilhas que
estudamos não apresentam recursos multimídia nem recursos interativos. Elas
mantêm o modelo da publicação impressa e a divisão do texto em páginas.
34
Paula Bauducci reforça a noção de que a cartilha é um veículo de
popularização:
A nossa ideia é que isso se amplie para todo o Brasil, nas escolas do ensino infantil e fundamental. Queremos divulgar mais no site para fazer esses projetos de distribuição de cartilhas no Brasil todo. Tenho tentado, tive até uma conversa em maio que não evoluiu, pra que a gente faça com o Ministério da Saúde, pra que ele abrace a ideia e a gente distribua no Brasil todo. O cartunista Claudius também caracteriza as cartilhas por sua distribuição
a mais ampla possível, utilizando reimpressões e disponibilização na rede:
Você usar a internet significa que você tem um poder de alcance muito maior. Você faz uma cartilha; aí, você tem que mandar pro Amazonas, bota num envelope e manda. Demora uma semana e pra chegar ao Amazonas custa tanto... Agora, você também pode mandar e o cara imprimir lá. Você manda as páginas, o cara imprime e monta... De fato, os produtores de cartilhas costumam alegar que perdem de vista o
alcance dessas publicações. Miguel Paiva, por exemplo, lembra que a distribuição
“dilui muito” pelo país, e que hoje há programas e processos de financiamento
para a educação que permitem a um órgão da federação reimprimir cartilhas já
feitas em outro, o que dá uma “sobrevida” a elas e o artista “não tem como
controlar”, pois não é uma publicação à venda. Quando se pesquisa o material que
circula no Brasil sob a categoria de cartilha, podemos nos surpreender com a
profusão e a variedade delas. Quanto mais se pesquisa, maior parece ser o
tamanho da “cartilhosfera”. Essa surpresa decorre de outra característica do
formato: sua invisibilidade. Cartilhas são publicadas sem nenhuma regularidade.
São publicações isoladas, de tiro único; raramente são lançadas em sequência de
edições. Cartilhas não têm a circulação aferida. Cartilhas não têm território nem
público cativo. Cartilhas geralmente não pertencem a editoras. Cartilhas não estão
nas bibliotecas, porque poucas recebem número de ISBN. Entre as 300 cartilhas
coletadas para a pesquisa, somente 31 apresentaram algum tipo de catalogação
(sendo que 16 delas são do mesmo autor e formam uma série). De certa maneira,
são publicações invisíveis aos críticos e pesquisadores. No entanto, conforme já
foi observado, uma simples busca de títulos pela internet prova que elas estão
presentes no país inteiro e são publicadas de uma maneira profusa.
Uma vez que as cartilhas são publicações descartáveis, a pesquisa teve que
se debruçar sobre coleções particulares e sobre a coleta de títulos disponíveis para
download da internet. Num determinado momento do trabalho, foi preparada uma
35
planilha para classificar as cartilhas coletadas e obter alguns números indicativos.
As informações inseridas na planilha foram:
1) Título da publicação
2) Nome da organização que patrocina a cartilha
3) Natureza da organização que lançou a cartilha
4) Projeto editorial (como apresenta os textos e ilustrações)
5) Ano de publicação
6) Tipo de autoria (se é assinada, se os criadores são identificados ou não)
7) Nomes de autores e ilustradores, quando constam na publicação
8) Catalogação (sim ou não)
9) Tema da cartilha
10) Número de páginas
11) A qual acervo pertence (coleção do pesquisador, coleção Buhrer ou
Internet)
Foram coletadas 300 cartilhas, que depois foram classificadas por temas. A
maioria, 94, apresenta temas de cidadania e direitos; 65 apresentam temas de
saúde; 37 têm tema de meio ambiente; 34 têm temas de consumo; 23 são políticas;
23 tratam de segurança pessoal, profissional e no trânsito; 17 tratam de relações
públicas; sete tratam de religião.
O critério de classificação foi assim delineado:
1) A categoria “cidadania e direitos” engloba assuntos como inclusão,
educação, direitos e deveres, voluntariado, leitura, tolerância, organização
sindical, direitos humanos a divulgação de códigos legais, como o estatuto
da criança e do adolescente ou o código de defesa do consumidor.
2) Na categoria “saúde” se encaixam as cartilhas que aconselham sobre
prevenção de doenças (principalmente DSTs, AIDS e dengue), cuidado
com os dentes, prevenção do uso de drogas, prática de atividades físicas,
práticas anticoncepcionais, saneamento, nutrição, higiene e cuidados
pessoais.
3) Na categoria “meio ambiente” agruparam-se as cartilhas que instruem
sobre mudança de comportamento para hábitos mais sustentáveis, como
economia de energia, separação do lixo para reciclagem e preservação das
matas e águas.
36
4) A categoria “consumo” engloba as cartilhas que instruem o leitor sobre
a correta, segura e vantajosa utilização de produtos e serviços, desde
maçãs e filtros solares, passando por impermeabilizantes, até viagens
aéreas e serviços bancários. Naturalmente, essas cartilhas são patrocinadas
por empresas privadas.
5) As cartilhas classificadas como “políticas” fazem parte de campanhas
eleitorais, quando geralmente estão ligadas a uma candidatura, ou tomam
partido em debates sobre mudanças na legislação.
6) A categoria “relações públicas” foi criada para agregar as cartilhas em
que órgãos públicos ou grandes empresas prestam contas de suas
atividades com intenção de melhoria da imagem institucional. Por
exemplo, uma estatal de telefonia mostrava seus planos de investimento;
uma construtora imobiliária construía uma imagem positiva de si mesma.
7) As cartilhas sobre conselhos de segurança na rua, no trabalho e na
internet foram agregadas às cartilhas sobre comportamento no trânsito.
8) As cartilhas da categoria “religião” falam sobre o sistema de suas
crenças (na coleção obtivemos uma maioria de cartilhas espíritas).
É possível, certamente, classificá-las com outro critério ou obter outros
números, porque uma cartilha pode ter dois tipos de conteúdo ao mesmo tempo.
Por exemplo, a cartilha de relações públicas de uma prefeitura também passa
noções de cidadania e de sustentabilidade; a cartilha da polícia militar faz relações
públicas da corporação enquanto passa dicas de segurança no trânsito para
crianças; a cartilha sobre cuidados higiênicos sugere que o leitor cuide também do
meio ambiente para sua saúde ser beneficiada, etc.
Hipoteticamente, cartilhas são apenas mais um meio de comunicação
impressa e poderiam versar sobre tudo. No entanto, vê-se que os temas das
cartilhas atuais nunca fogem a esta lista: hábitos saudáveis; hábitos
ambientalmente sustentáveis; comportamento no trânsito; comportamento no
consumo; comportamento no trabalho; comportamento em relação às minorias;
conscientização social, etc. É possível dizer que a edição e distribuição de
cartilhas se encaixam no conjunto de práticas sociais que, segundo Michel
Foucault, criam um “regime de verdade ou política geral de verdade”. E que, ao
criar domínios do saber, criam também formas de ser sujeito do mesmo saber. Ao
37
longo da história, saberes têm sido desenvolvidos com a intenção de aperfeiçoar
os indivíduos, numa multiplicidade de processos de normalização que modelam as
pessoas em sujeitos que realimentam os saberes: “O indivíduo é, sem dúvida, o
átomo fictício de uma representação ideológica da sociedade; mas é também uma
realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a
disciplina” (FOUCAULT, 2014, p.189).
Os métodos disciplinares são práticos e ligados a ambientes sociais; as
cartilhas representam tão somente um convite – uma sugestão – para o leitor
participar deles. Se os comportamentos sugeridos fossem naturais, não haveria
necessidade de produzir cartilhas. Elas existem justamente porque tais
comportamentos defendidos pelos saberes disciplinares representam um novo
grau de exigência para se estar em dia com a normalidade; um novo apertão nos
parafusos que limitam e direcionam as rotinas dos indivíduos. É um processo
multifacetado, em andamento e, provavelmente, sem fim:
Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as “disciplinas”. Muitos processos disciplinares existiam há muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também. Mas as disciplinas se tornaram no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação (FOUCAULT, 2014, p.135).
A tecnologia do poder/saber cria “corpos dóceis, submissos e exercitados”
para que, por exemplo, o trânsito flua bem e com o mínimo de acidentes; para que
se economize luz; para que se diminua a produção de lixo; para que se reformem
os preconceitos, etc. A dominação não é só “para que façam o que se quer, mas
que operem como se quer, com as técnicas, a rapidez e a eficácia que se
determina” (FOUCAULT, 2014, p.135).
Além de estar enquadrado na teoria de Foucault sobre a disciplina, o
conteúdo das cartilhas foi analisado nesta pesquisa sob a ótica de Norbert Elias
(2011) sobre o processo civilizador, por se entender que as cartilhas guardam
semelhanças com os manuais de boas maneiras estudados por esse autor. O estudo
comparado de manuais de boas maneiras de épocas passadas, como Da civilidade
em crianças (1530), de Erasmo de Rotterdam e Les régles de la bienséance et de
la civilité chrétienne (1729), de La Salle, mostrou a Elias que o homem ocidental
nem sempre se comportou da maneira como estamos acostumados a considerar
civilizada: era necessário, na Renascença, aconselhar um jovem nobre que, à
38
mesa, não deve soltar ventos ruidosamente, enxugar o nariz na roupa, nem
oferecer a alguém o pedaço de carne que está comendo.
Progressivamente, a educação e a comunicação, de mãos dadas, durante
séculos, vão instruindo às pessoas como se comportarem para permanecer nos
círculos sociais mais valorizados: elas têm que abandonar os antigos
comportamentos considerados mais rústicos, tais como comer com as mãos, sujar-
se, liberar espirros e gases, e adotar os novos comportamentos mais civilizados,
tais como usar talheres, observar a higiene, baixar o tom de voz, controlar a
expressão de emoções, evitar a menção a certas partes do corpo, etc. Esses
comportamentos, quando se disseminam totalmente, passam a ser considerados os
normais para qualquer círculo social, prestigiado ou não. Diz-se até que é o
comportamento "natural" de qualquer pessoa civilizada quando, de fato, eles são
aprendidos.
Em vista da evidência empírica de que o conteúdo temático das cartilhas
se restringe a essa pauta disciplinadora, foi decidido fazer uma comparação entre
cartilhas que tratam do mesmo tema, mas foram publicadas em épocas distantes
no tempo. O plano é identificar as constantes e os contrastes entre elas, de modo a
apreender algum conhecimento sobre o próprio gênero de publicação. Esse
critério de constituição de um corpus é inspirado na pesquisa de Boltanski e
Chiapello, O novo espírito do capitalismo. No citado trabalho, os pesquisadores
estudaram publicações que guardam alguma semelhança com as cartilhas: a
literatura de gestão empresarial. Os pesquisadores observam que tais livros que,
pretensamente, apenas ensinam técnicas de como aumentar o rendimento das
organizações, carregam “ao mesmo tempo um forte tom moral” e “nos moldes dos
livros edificantes ou dos manuais de instrução moral, eles praticam o exemplum” e
categorizam os casos entre “o que deve ser feito versus o que não deve ser feito”
(BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009, p.84). A decisão desses pesquisadores foi
constituir um corpus de livros publicados nos anos 1960 (1959 – 1969) e outro de
livros dos anos 1990 (1989 – 1994) para, então, compará-los em suas diferenças,
uma vez que o conteúdo temático era o mesmo. No caso da nossa coleção de
cartilhas, o conteúdo não é sempre o mesmo. Como foi dito acima, elas podem ser
categorizadas por temas. Desse modo, optamos por focar em apenas duas
categorias: a de saúde e a de consumo.
39
Uma vez que já observamos que os temas das cartilhas se alinham à
tecnologia do poder/saber foucaultiano, sugerimos que uma descrição mais
relevante do material empírico poderá ser feita se nos debruçarmos sobre as
cartilhas de saúde. É nelas que o discurso se remete às verdades científicas para
moldar sujeitos fisicamente aptos, com noções de normas de higiene e limpeza.
Esses sujeitos bem instruídos são, segundo o saber das disciplinas, aqueles que
gozam de uma vida com mais qualidade e também mais produtiva.
Por sua vez, após a jornada de trabalho, o tempo não é “livre”; é regulado
pelo sistema de produção. E o lazer não é gozo do tempo livre, mas consumo do
tempo improdutivo. “Se bem que economicamente improdutivo, esse tempo inclui
uma produção de valor – valor de distinção, valor estatutário, valor de prestígio”
(BAUDRILLARD, 2011, p. 210). Não apenas um tempo obrigatório de repouso e
recuperação “sadia”, mas um tempo de consumo. Se as disciplinas da saúde nos
moldam como eficientes unidades de produção, tanta produção deve corresponder
a consumo, o lado complementar do sistema produtivo. Assim, o estudo de
cartilhas de educação do consumidor, em que se disciplina o público a
adequadamente usufruir das novidades do mercado e dos desenvolvimentos
tecnológicos, pode também servir para interpretações significativas.
Para dar conta de todos esses elementos, esta dissertação está dividida em
três capítulos. No primeiro capítulo é feita a comparação e interpretação de 12
cartilhas educativas com temas da área de saúde, bem-estar e hábitos de higiene.
Para proceder a análise, foi estabelecido um critério sobre aspectos levados em
conta, para comparar as publicações, sem se perder na observação de diferenças
óbvias entre o material mais antigo e o mais novo. Regularidades e pontos em
comum surgiram e as publicações puderam ser interpretadas aos pares, o que foi
muito produtivo. As conclusões desse capítulo, de modo geral, apontam que há
muita regularidade na mensagem e na estratégia persuasiva das cartilhas de saúde
mais velhas e mais novas.
No segundo capítulo, descreve-se o resultado da análise de oito cartilhas
sobre utilização de produtos e serviços, ou seja, o campo do consumo. O critério
de análise foi o mesmo traçado no capítulo anterior, com a particularidade que,
como o conteúdo das publicações girava em torno de produtos e serviços, a
interpretação se apoiou fortemente nas teorias sobre comunicação e consumo. As
conclusões encaixaram, de um lado, as cartilhas dentro do campo da propaganda
40
e, de outro, os criadores de propaganda entre os colaboradores do processo
civilizador.
O terceiro capítulo aborda o significado da participação de cartunistas e
desenhistas de humor em grande número das cartilhas publicadas. Dentro da
coleção de 300 cartilhas tomadas como material de pesquisa, todas, por critério
nosso descrito anteriormente, são ilustradas de alguma maneira. Metade delas,
151, apresenta-se na forma de revista de histórias em quadrinhos. Outras 42
apresentam a forma de tópicos de informação ilustrados com cartuns
humorísticos. E, entre as 300 cartilhas, 125 são assinadas por um artista
(consideramos que a cartilha é assinada somente quando o nome do ilustrador ou
redator aparece na capa, embora, em muitos casos, os cartunistas sejam
identificados na ficha técnica como ilustradores). A partir da experiência
particular, das opiniões manifestadas nas entrevistas e de algumas abordagens
teóricas já feitas sobre o riso, o humor e o cartunismo, foram levantadas algumas
formulações teóricas sobre a relação entre o artista do traço humorístico e a
produção de cartilhas.
41
2. Normas sanitárias, dicas de bem-estar
Em 1530, Erasmo de Rotterdam, na obra De civilitate morum puerilium
(Da civilidade em crianças), precisava ensinar a um jovem da nobreza que “É
grosseiro enfiar os dedos no molho. Deve tirar o que quer com faca e garfo”
(ERASMO apud ELIAS, 2011, p.96). Em 1774, o educador Jean-Baptiste de La
Salle ainda afirmava, em seu livro de boas maneiras Les règles de la bienséance et
de la civilité chrétienne (As regras de decoro e civilidade do cristão), que “No
tocante às necessidades naturais, é correto satisfazê-las apenas onde a pessoa não
puder ser vista” (LA SALLE apud ELIAS, 2011, p.134). Em 1957 o Serviço
Nacional de Educação Sanitária (SNES), na cartilha Cuidados..., instrui o leitor
que “Depois de lavar as mãos, cumpre enxugá-las em toalha individual. Quando
esta falte, melhor será enxugar as mãos agitando-as no ar, do que recorrer à toalha
que já serviu a mais de uma pessoa”. Em 1970, na cartilha Agora o Dito é meu
amigo, patrocinada pela Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica (ABIF),
o narrador explicava que “Quem faz as necessidades fora da privada pode soltar
junto ovinhos de vermes”. Em 2006, na cartilha Respire Aliviado: tuberculose tem
cura, do Forum de ONGs de combate à tuberculose no Rio de Janeiro, um
personagem médico aconselha: “Quando for espirrar ou tossir, cubra a boca”. Em
2014, na cartilha Família de Atitude, de um laboratório farmacêutico, afirma-se
que “o hábito diário da lavagem nasal com solução de cloreto de sódio beneficia a
saúde de adultos e crianças durante o ano todo”.
Os trechos selecionados acima, analisados sob a perspectiva da teoria do
“processo civilizador” de Norbert Elias, adquirem significado. Eles conduzem à
afirmação de que todas as cartilhas (no conceito construído nesta dissertação) têm
semelhança com os manuais de etiqueta, quer tenham esse título ou não12.
O estudo comparado de antigos manuais de boas maneiras de diversas
épocas, como os de Erasmo de Rotterdam e de La Salle, mostrou a Elias que o
homem ocidental nem sempre se comportou da maneira como estamos
acostumados a considerar civilizada. Comportamentos que hoje consideramos
naturais e amplamente difundidos precisavam, nos séculos que nos precedem, ser 12 Tais como as cartilhas Manual de Etiqueta do Usuário de Celular, da BCP Comunicação (sobre utilização da telefonia celular) ou Manual de Etiqueta Planeta Sustentável, da Editora Abril (sobre sustentabilidade).
42
ensinados mesmo aos membros das classes altas. Os tratados estudados por Elias
são de um tempo em que ainda era necessário aconselhar um jovem nobre que, à
mesa, não deve soltar ventos ruidosamente, nem enxugar o nariz na roupa, nem
mastigar de boca aberta, nem avançar sobre a travessa de comida, nem oferecer a
alguém o pedaço de carne que está comendo.
Entre as conclusões de Elias destacam-se algumas que gostaria de
considerar na presente análise das cartilhas contemporâneas. Primeiro, os
preceitos de boas maneiras vão evoluindo ao longo do tempo, ou seja, textos mais
recentes não citam regras que já estão suficientemente difundidas, regras que os
leitores já seguem “naturalmente” antes de conhecer o livro (por exemplo, o uso
de garfo e faca nas refeições). O efeito curioso desse fato é que os mais antigos
manuais de etiqueta podem causar nojo aos leitores de hoje, pois acusam
comportamentos que já estão quase banidos da sociedade, como urinar e defecar
na rua, dormir na mesma cama com um estranho e disfarçar um flato com o som
da tosse. Segundo, os manuais de boas maneiras se destinam aos novos membros
da sociedade, principalmente crianças e jovens adultos vindos “do campo” (como
nobres da província, por exemplo). É frequente, na argumentação dessas antigas
obras, a condenação dos maus hábitos pelo simples fato de serem os hábitos dos
camponeses e pessoas “rústicas”. Além disso, os adultos são instados a não se
comportarem como crianças, pois estas ainda têm a prerrogativa da ignorância
enquanto não foram educadas. Cada criança precisa, no entanto, em poucos anos
de aprendizado, ter seu comportamento ajustado a um padrão que a sociedade,
como um todo, construiu e difundiu ao longo de séculos. Terceiro, os
comportamentos “corteses” ou “civilizados” se disseminam de cima pra baixo na
pirâmide social, ou seja, as regras de etiqueta surgem na sociedade de corte antes
de serem adotadas, pelo menos em parte, pela burguesia em ascensão, para depois
se difundirem entre os trabalhadores. Tudo isso, é claro, ao longo de muito tempo.
Quarto, a ocorrência desse processo demonstra a hegemonia do projeto de
civilização e de progresso contra o de cultura e preservação da sociedade. Note-se
que as instruções de boas maneiras não são um treinamento em futilidades como,
em parte, são vistos hoje. Na França do século XVIII os termos civilisation e
homme civilisé surgem na cultura da corte, entre “esclarecidos”, mas serão
adotados, depois, pelo Estado, como um projeto universal: opor-se ao estado de
barbárie, alcançar “um tipo mais elevado de sociedade: a ideia de um padrão de
43
moral e costumes, isto é, tato social, consideração pelo próximo e numerosos
complexos semelhantes” (ELIAS, 2011, p.59). Entende-se que as cartilhas são
alguns dos “milhares de outros instrumentos”, além da educação familiar, com
que a sociedade como um todo exerce a pressão do condicionamento sobre as
novas gerações (ELIAS, 2011, p. 139).
De fato, foi apurado que grande número das cartilhas publicadas,
especialmente por órgãos públicos, se ocupa de temas relacionados à área da
saúde, especialmente prevenção de doenças e cultivo de hábitos saudáveis e
higiênicos. Esse tema está relacionado a 21,7% dos títulos coletados para esta
pesquisa. Podemos associar esses assuntos ao cultivo de maneiras civilizadas.
Os comportamentos incivilizados ou descorteses eram, nos textos mais
antigos, censurados pelos incômodos que causariam a outras pessoas, mas pouco a
pouco os mesmos hábitos passam a ser condenados pelo que são em si, pois
passam a causar embaraço, vergonha, culpa e nojo mesmo quando o indivíduo
está sozinho. “Grande parte do que chamamos de razões de ‘moralidade’ ou
‘moral’ preenche as mesmas funções que as razões de ‘higiene’ ou ‘higiênicas’:
condicionar as crianças a aceitar determinado padrão social” a tal ponto que o
indivíduo procure o “autocontrole” e pense que ele é do interesse “de sua própria
saúde ou dignidade humana” (ELIAS, 2011, p. 148).
Assim, instalam-se noções de nojo inexistentes no passado, uma vez que
passa a ser importante para a sociedade condenar certo tipo de comportamento e
“[...] qualquer transgressão é sentida pelos indivíduos como uma enorme
violência, com pesadas consequências para o seu equilíbrio psíquico e fisiológico”
(RODRIGUES, 1983, p.138). O nojo, apesar de ser um sentimento visceral, é
também uma reação culturalmente aprendida. E as noções de higiene, que hoje
são associadas ao conhecimento científico, de fato prescindem desse
conhecimento: “A nossa evitação do sujo é de ordem simbólica e classificatória,
antes de orgânica e patológica. A descoberta dos micro-organismos patogênicos é
posterior, muito posterior, à ideia de sujidade” (RODRIGUES, 1983, p.139). Isso
não costuma ser levado em conta nos textos de cartilhas, os quais, como veremos
a seguir, insistem em fundamentar seus conselhos no conhecimento construído
pela medicina social, ou seja, conhecimento sobre causas patológicas13 e
13 Não necessariamente microbiológicas, pois houve também teorias médicas acerca de humores e de paixões como causas de doença (COSTA, 2004; FOUCAULT, 2013 b).
44
conhecimento sobre as técnicas de higiene. Higiene não se resume à limpeza; é
uma disciplina que se estende à moradia, à urbanização, à rotina cotidiana e às
atividades sociais.
Segundo Jurandir Freire Costa, a respeito da classe médica brasileira do
século XIX, “Antes mesmo dos arquitetos, urbanistas, demógrafos, pedagogos,
psicólogos, sociólogos e assistentes sociais, eles impuseram à casa e à família,
desequilibradas pelo desenvolvimento urbano, seu modelo de organização social”
e “A higiene ministrava a seu público ensinamentos que iam desde aqueles de
alçada de um engenheiro ou de um arquiteto até aqueles da competência de um
mentor de etiqueta social” (COSTA, 2004, p. 114-115). Nota-se, com essa
observação, o quanto são tornados próximos os campos da Saúde e o das boas-
maneiras.
O projeto que o modelar Estado Nacional, desenvolvido nos séculos XVIII
e XIX, tinha de estender a civilização a todos os habitantes do território
(tornando-os cidadãos) também dava, segundo Foucault, uma função política à
categoria de médicos nacionais: acabar com todas as doenças, pondo fim àquelas
que seriam suas causas: as paixões, conflitos e desequilíbrios sociais. A partir daí
a importância dos médicos cresce e:
A medicina não deve mais ser apenas o corpus de técnicas da cura e do saber que elas requerem; envolverá, também, um conhecimento do homem saudável, isto é, ao mesmo tempo uma experiência do homem não doente e uma definição do homem modelo. Na gestão da existência humana, toma uma postura normativa que não a autoriza apenas a distribuir conselhos de vida equilibrada, mas a reger as relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade em que vive (FOUCAULT, 2013, p.37).
É a busca de criar esse normativo “homem-modelo” que impulsiona a
criação de tantas cartilhas que se sucedem no trato dos mesmos temas e na
pregação dos mesmos conselhos, e que coloca o saber médico como lastro para a
pregação de, praticamente, qualquer mudança de comportamento.
Assim, nesta parte da pesquisa, foi analisado um corpus de cartilhas da
área da saúde, a fim de obter dados sobre o significado dessa prática social. Foram
selecionados, da nossa coleção, dois conjuntos de cartilhas sobre saúde: um
conjunto de seis cartilhas “antigas”, publicadas entre 1949 e 1970, e um conjunto
de seis cartilhas “contemporâneas”, publicadas entre 1989 e 2010. Selecionamos
títulos que atendem ao critério de variedade, para cobrir o leque de assuntos
englo
entre
FiguraFonte
14 De1999)
obados pela
e as cartilha
A) Conju
a.1) ABC
a 5. Páginas de: Coleção de
Publicad
48 págin
Autoria n
Esta pub
alfabetiz
ilustrada
desenvol
água, B d
senho simplif).
a área da sa
s. Segue-se
unto das car
C e Saúde (1
de ABC e SaúdJ. A. Buhrer
da pelo Serv
nas.
não identifi
blicação exp
zadora à ac
a com um
lvido em ap
de banho, e
ficado, carica
aúde, mas q
uma descri
rtilhas de sa
1949)
de (1949) ilust
viço Nacion
cada com il
plora a polis
cepção de
cartum14, o
penas dois p
tc.
atural, destina
que ainda pe
ição muito s
aúde publica
trada por Luiz
nal de Educa
lustrações d
ssemia da p
propaganda
os autores
parágrafos n
ado à ilustraçã
ermitem “di
sucinta de c
adas entre 1
z Sá.
ação Sanitár
do cartunista
palavra carti
a. Para cad
determinam
na sequênci
ão jornalística
iálogo” e co
cada título:
1949 e 1970
ria (SNES).
a Luiz Sá.
ilha, unindo
da letra do
m um tema
ia. Por exem
a e editorial
45
omparação
0:
o a acepção
o alfabeto,
a de saúde
mplo: A de
(FONSECA,
FiguraFonte
a.2) Vest
a 6. Páginas de: Coleção de
Publicad
16 págin
Autoria n
O folheto
cartuns e
equilibra
tuário (1949
de Vestuário (J. A. Buhrer
da pelo Serv
nas.
não identifi
o é dividido
e páginas co
ada escolha
9)
1949), ilustrad
viço Nacion
cada com il
o meio a me
om dois par
de roupas e
da por Luíz Sá
nal de Educa
lustrações d
eio entre pá
rágrafos de
em relação a
á.
ação Sanitár
do cartunista
áginas com
e explicaçõe
ao clima.
ria (SNES).
a Luiz Sá.
versos ilust
es e conselh
46
trados com
hos sobre a
FiguraFonte
a.3) Jeca
a 7. Primeira pe: Coleção de
Publicad
de produ
40 págin
Texto de
Livreto
personag
um dout
caminho
a Tatuzinho
página de JecJ. A. Buhrer
da pelo Insti
utos Ankilos
nas.
e Monteiro L
com ilustr
gem Jeca Ta
tor, curou-
o da saúde a
(várias ediç
a Tatuzinho, i
ituto Medic
stomina e B
Lobato e ilu
ações em
atu, pobre l
se de verm
os caipiras
ções entre 1
ilustrada por J
amenta Fon
Biotônico Fo
ustrações de
todas as p
lavrador que
minose, fic
das redonde
1925 e 1973
Juvenal U. Ca
ntoura & Se
ontoura.
e Juvenal U
páginas, con
e, um dia, o
cou rico e
ezas”.
3)
ampos.
erpe como p
. Campos.
ntando a h
ouviu os co
“resolveu
47
propaganda
história do
onselhos de
ensinar o
FiguraFonte
a.4) O gi
a 8. Páginas de: Coleção J. A
Publicad
Departam
36 págin
Texto de
Livreto
personag
recebe o
igante invis
de O gigante inA. Buhrer
da pela Seç
mento de Sa
nas.
e Afonso Sc
com algu
gem Carlos
diagnóstico
ível (1953)
nvisível, ilustr
ção de Pro
aúde do Esta
chmidt e ilus
umas ilustr
que, alerta
o de tubercu
rada por Flore
opaganda e
ado de São
strações de
rações, con
ado pelo am
ulose.
ençano.
Educação
Paulo.
Paulo C. Fl
nta a hist
migo César,
Sanitária (
lorençano.
tória do d
procura um
48
(SPES) do
desregrado
m médico e
FiguraFonte
FiguraFonte
a.5 Cuid
a 9. Páginas de: Coleção pró
Publicad
36 págin
Autoria n
Esta outr
Cada tóp
com os o
a.6) Ago
a 10. Capa de e: Coleção de
dados... (19
de Cuidados...ópria
da pelo Serv
nas.
não identifi
ra publicaç
pico corresp
olhos, cuida
ra o Dito é
Agora o DitoJ. A. Buhrer
57)
(1957), ilustr
viço Nacion
cada com il
ão do SNE
ponde a um
ados com os
meu amigo
o é meu amigo
rada por Luiz
nal de Educa
lustrações d
ES segue um
ma parte do
s ouvidos, cu
o (1970)
o (1970)
Sá.
ação Sanitár
do cartunista
m modelo d
o corpo (po
uidados com
ria (SNES).
a Luiz Sá.
de divisão e
or exemplo
m as mãos,
49
em tópicos.
o: cuidados
etc.).
FiguraFonte
15 A Emais p
Publicad
16 págin
Autoria
Abril.15
História
compara
um outro
B) Conju
b.1) O câ
(1997)
a 11. Capa de e: Coleção pró
Publicad
48 págin
Texto co
Livreto t
ocorrênc
Editora Abril,populares, pri
da pela Asso
nas
não identifi
toda ilustra
ando a vida
o, o Dito, qu
unto das car
âncer e seu
O câncer e seópria
da pelo Insti
nas
oletivo com
todo ilustrad
cia de cânce
, na década deincipalmente o
ociação Bra
ficada, ilustr
ada, com ele
de um men
ue sofre de v
rtilhas de sa
s fatores de
eus fatores de
ituto Nacion
adaptação e
do que asso
er.
e 1970, criavaos títulos com
asileira da In
rada pela e
ementos for
nino cuja fam
verminose.
aúde publica
e risco: doe
e risco (1997),
nal do Cânc
e ilustraçõe
ocia fatores
a e publicavam personagens
ndústria Far
quipe de qu
rmais de hi
mília tem h
adas entre 1
enças que a
, de Ziraldo.
cer (INCA)
es de Ziraldo
comportam
a as revistas ddos Estúdios
rmacêutica (
uadrinistas
stória em q
ábitos higiê
989 e 2010
educação p
o e equipe
mentais e am
de histórias emWalt Disney.
50
(ABIF)
da Editora
quadrinhos,
ênicos com
0:
pode evitar
mbientais à
m quadrinhos
FiguraFonteDispo
FiguraFonte
b.2) O G
a 12. Capa de e: Ministério donível em: < h
Publicad
28 págin
História
Nesta pu
conversa
b.3) Tod
a 13. Capa de e: Coleção pró
Gatão e seus
O Gatão e seda Saúde.
http://bvsms.sa
da pelo Prog
nas
e ilustraçõe
ublicação em
am em torno
dos contra a
Todos contraópria.
s amigos: de
eus amigos: de
aude.gov.br/bv
grama Nacio
es do cartun
m formato
o de seus pr
dengue! (2
a a dengue! (2
e homem pa
e homem para
vs/publicacoe
onal de DST
nista Miguel
de história
reconceitos
2006)
2006) por Bras
ara homem
a homem (200
es/cartilha_gat
T/AIDS do
l Paiva
em quadrin
e dúvidas s
sílio.
(2006)
6), de Miguel
tao_e_seus_am
Ministério d
nhos, home
obre hábito
51
l Paiva.
migos.pdf>
da Saúde
ens adultos
os sexuais.
FiguraFonte
Publicad
16 págin
História
Voltada
pai é um
vizinhan
cuidado
b.4) Resp
a 14. Páginas e: Coleção pró
Publicad
Janeiro
12 págin
História
Em form
personag
tuberculo
da pela Fund
nas
e ilustraçõe
para crianç
m voluntár
nça com aju
para não aju
pire aliviad
de Respire Alópria.
da pelo For
nas
de Marcelo
mato de his
gem, trabalh
ose e é acon
dação Educa
es do cartun
ças, esta his
rio no com
uda dos do
udar na pro
do: tuberculo
liviado: tuberc
rum de ON
o Fischer; ilu
stória em q
hador da co
nselhado po
ar DPascho
nista Brasílio
stória ilustra
mbate ao m
ois filhos p
liferação do
lose tem cur
culose tem cu
NGs no Com
ustrações de
quadrinhos,
onstrução c
or uma amig
oal
o
ada retrata u
mosquito da
ara ver se
os mosquito
ra (2005)
ra (2005)
mbate à Tu
e Liliana Os
a cartilha
civil, que de
ga que já est
uma família
a dengue e
todos estão
os.
uberculose
strovsky
conta o ca
escobre que
teve doente
52
a em que o
e sai pela
o tomando
no Rio de
aso de um
e está com
.
FiguraFonte
b.5) O m
a 15. Capa de e: Coleção pró
Publicad
20 págin
História
O livreto
de dar d
as fontes
melhor lugar
O melhor lugópria.
da pela Fund
nas
e ilustraçõe
o, todo ilust
estino corre
s de água.
r (2006)
gar (2006) por
dação Nacio
es de Ziraldo
trado, apres
eto ao lixo
r Ziraldo.
onal de Saú
do e equipe.
enta uma ar
orgânico e
de (FUNAS
rgumentaçã
inorgânico
SA)
ão sobre a im
, evitando c
53
mportância
contaminar
FiguraDispo<http:UBLI
(déca
have
focar
dos a
b.6) Dro
a 16. Capa de onível em: ://www.obid.sICA%C3%87%
Publicad
48 págin
Texto ad
Euzébio.
Livreto c
um cartu
No estud
adas de 195
ria diferenç
r nelas à pro
a) Difere
anos 1950 c
ogas: cartilh
Drogas: cart
senad.gov.br/p%C3%95ES/C
da pela Secr
nas
daptado a
.
com format
um por seçã
do compara
50 e 1960 co
ças previsív
ocura de sig
ença nos re
costumavam
ha sobre ma
tilha sobre ma
portais/OBID/Cartilhas%2C
etaria Nacio
partir de B
to de pergun
o.
ativo entre
ontra décad
veis, indepen
gnificado. C
cursos gráf
m ser impre
aconha, coc
aconha, cocaín
/conteudo/indC+livros+e+fol
onal de Polí
Beatriz H.
ntas e respo
as duas ép
das de 1990
ndentes do
Contrastes pr
ficos e tecno
essas a uma
caína e inala
na e inalantes
ex.php?id_conlhetos>
ítica sobre D
Carlini; ilu
ostas sobre
pocas corres
e 2000) foi
conteúdo, e
revistos a p
ologia. Por
a cor ou, no
antes (2010
s (2010). Font
nteudo=11198
Drogas (SEN
ustrações de
drogas, ilus
spondentes
i levado em
e que não va
riori:
exemplo, a
o máximo, d
54
0)
nte: SENAD.
8&rastro=P
NAD)
de Toninho
strado com
ao recorte
m conta que
alia a pena
as cartilhas
duas cores,
55
enquanto que as mais recentes são todas em quadricromia.16. As cartilhas do
primeiro grupo só podiam se valer de cartas para se comunicar com os leitores; as
cartilhas do segundo grupo podem oferecer links para sites e endereços de e-mail
para receber perguntas e interagir com os leitores.
b) Diferentes pautas de problemas de saúde a serem abordados. A
população nas primeiras décadas do século XX habitava mais as áreas rurais e os
programas de saúde pública focavam na malária, na Doença de Chagas e nas
verminoses (filariose, xistossomose, ancilostomíase, principalmente), enquanto
que, nas décadas recentes, com o processo desordenado de urbanização, a dengue
preocupa mais. Por sua vez, AIDS não era conhecida até os anos 1980.
Curiosamente, a tuberculose, que já foi considerada um problema superado,
voltou a preocupar e foi assunto de cartilhas em 1953 e em 2005. Segundo o site
do Ministério da Saúde, a cada ano são notificados cerca de 70 mil novos casos no
país.
c) Estilo de época dos ilustradores. Luiz Sá tem um traço que se relaciona
aos desenhos animados do início do século XX. Ziraldo tem um traço relacionado
ao cartum político dos anos 1960/1970 e cada artista tem suas próprias referências
quanto ao estilo do traço.
d) Diferentes alcances de distribuição. Isso depende do tipo de instituição
que patrocinou a cartilha. Há cartilhas de âmbito federal, com centenas de
milhares de exemplares, e outras locais, com mil exemplares tirados. Por
exemplo, Todos contra a dengue! (setor privado) reporta uma tiragem de 35 mil
exemplares e O olho do consumidor, publicada pelo Ministério da Agricultura,
reporta 620 mil exemplares na primeira edição.
e) Diferenças na proporção entre o volume de texto e de ilustração. Isso
não depende da época nem do conteúdo da cartilha. São diferentes soluções a que
chegam os grupos autores de cada cartilha. Por exemplo, a tuberculose é abordada
em 1953 numa proporção de poucas ilustrações por página, e em 2005 ela é
explicada integralmente em forma de quadrinhos. De qualquer forma, as duas
abordagens resultaram em narrativas ficcionais. Por outro lado, em 2010, a
16 Na técnica da quadricromia (ou policromia), todas as cores são obtidas pela combinação de quatro cores de tintas na impressão, o que é mais custoso do que imprimir com uma ou duas tintas apenas.
56
educação sobre drogas foi abordada numa cartilha com predominância de páginas
de texto e o caráter dele era não-ficcional.
Uma vez que o corpus é assim heterogêneo, justifica-se por que foi preciso
trabalhar com tantas obras nesta fase da pesquisa: para não correr o risco de, como
na anedota teórica de Gilbert Ryle narrada por Geertz, interpretar a “piscadela” de
uma criança sempre como um tique nervoso, quando pode ser também sinal de
conluio, ou uma imitação jocosa, ou o treino para realizar a imitação jocosa,
dependendo de que significado cultural aquele mesmo fenômeno observado (a
contração de uma pálpebra) tem dentro de seu contexto. Se o observador só
reconhece existir a piscadela de tique nervoso, pode acabar interpretando
erradamente (GEERTZ, 2014, p.5). Entre tantas páginas analisadas, é preciso
evitar interpretar uma imagem ou enunciado ali impresso num nível de significado
errado, fora de seu contexto. Por exemplo, seria um erro interpretar a presença de
uma sequência de história em quadrinhos dentro de uma cartilha sempre como
evidência de que o autor quer se comunicar com o público infantil. Muitas vezes,
não é o caso. Convém aprofundar a análise. Assim, este estudo procurou por
outros contrastes e coincidências além das que estão na superfície. Foi uma
análise interpretativa, mais afim do trabalho de um crítico literário do que o de um
decifrador de códigos – como a descreveu Geertz (2014, p.7).
Durante a seleção, descrição e análise das cartilhas mais antigas surgiu a
curiosidade de saber como aqueles profissionais do passado teriam trabalhado. A
partir da experiência compartilhada com os produtores de cartilhas de hoje, seria
desejável compará-la com a experiência daqueles. Em algum grau, o "modo de
fazer" das cartilhas mais antigas se compara aos métodos e circunstâncias atuais.
Na produção das cartilhas do DIP de Getulio Vargas, por exemplo, ou nas do
SNES, dos anos 1950, pode ter havido um briefing; pode ter havido reuniões entre
os representantes do setor que encomendou o trabalho e os profissionais de
comunicação; pode ter havido debates sobre quais mensagens são publicadas e
quais não são. Ou o processo pode ter sido diferente. Infelizmente, são dados aos
quais não temos acesso.
Não podemos saber o que se passou nesses grupos de trabalho do passado,
mas seria muito importante, para realizar a descrição densa do fenômeno social.
Contamos, então, com a experiência de “conhecedor de arte” para ler os indícios
deixados por esses grupos de trabalho em suas obras. Fazemos referência, aqui, ao
57
"paradigma indiciário" descrito por Carlo Ginzburg: um modelo epistemológico
de investigação por meio da interpretação de sinais ou indícios no objeto de
estudo. Indícios são pormenores negligenciados por analistas afinados com a
epistemologia platônica. Esse paradigma também compete com o paradigma
científico galileano, que exige repetição de experimentos para comprovar
hipóteses. O paradigma indiciário é necessário para estudar fenômenos que não
poderão ser objeto de repetição em laboratório. Por isso se aplica bem à ciência
histórica. Simplificadamente expressando, "quando as causas não são
reproduzíveis, só resta inferi-las a partir dos efeitos" (GINZBURG, 2007, p.178).
Assim, fundamentado na experiência empírica de profissional de
comunicação e cartunismo, submeti esta análise do corpus a alguns ângulos de
observação. Primeiro, a observação do uso da retórica, ou seja, observar como os
autores das cartilhas conduziram o assunto e quais elementos da retórica
aristotélica se destacaram. Isso justifica-se por serem as cartilhas, assim como as
peças de propaganda em geral, textos fundamentalmente persuasivos, em que o
“gênero deliberativo é dominante” (CARRASCOZA, 1999, p.26). Segundo, o
emprego do discurso de natureza científica: de que forma a informação
cientificamente embasada é utilizada na argumentação. Isso justifica-se porque
“Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral da verdade: isto é,
os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros”
(FOUCAULT, 1990, p. 12) e o discurso científico tem ocupado essa posição,
especialmente no campo da saúde. Terceiro: a procura do que quer que seja o
apelo “lúdico”, ou seja, como os autores valem-se de elementos de jogo para atrair
e manter a atenção dos leitores. Os patrocinadores e autores de cartilhas
entrevistados consideram a ludicidade uma característica muito importante.
Quarto ângulo de observação: como as cartilhas analisadas se encaixam no
processo civilizador. Quinto: a observação da presença institucional dos
patrocinadores de cartilhas dentro da obra, e em que termos a instituição se
apresenta. Por conta disso, empreendi também a análise interpretativa dos textos
paralelos à argumentação principal da cartilha, como as cartas de apresentação,
textos de capa e fichas de créditos.
Em relação ao primeiro ângulo de observação, feito sobre o uso da técnica
retórica nas cartilhas, é preciso justificar a escolha de utilizar somente os
conceitos aristotélicos sobre o tema, quando já existem diversos estudos
58
contemporâneos que incorporam a abordagem retórica em pesquisas com objetos
comunicacionais (entre eles, destacam-se os anúncios publicitários). A reflexão
aristotélica sobre a retórica como uma técnica não é a única. Platão repudiou o uso
da retórica pelos demagogos e defendia o diálogo dialético, que tinha por objetivo
produzir saberes e não persuasão; Chaim Perelman observa que, nos tempos
modernos, não se pode estudar a retórica sem considerar que o empirismo e o
racionalismo impregnam a argumentação com a aura da verdade irrefutável dos
fatos; Roland Barthes aponta no uso de imagens nos meios de comunicação como
recurso retórico comparável ao uso de palavras (LOPES, 2012). No escopo desta
dissertação, no entanto, não caberia um estudo focado na retórica de um ou alguns
autores de cartilhas. O que se buscou nesta pesquisa foi descrever um gênero de
discurso onde, como será visto adiante, a retórica é presente como uma prática
ideológica onde “os discursos – os sistemas de signos e as práticas significantes
dos mais diferentes tipos – produzem efeitos, consistentes ou não, que estão
intrinsecamente relacionados à manutenção, à reprodução e, por vezes, a
transformação dos sistemas de poder vigentes” (SACRAMENTO, 2009). Segundo
Barthes, a retórica equivale a uma ideologia da forma, ou seja, não está presa a
uma ou outra ideologia e, por isso, atravessa os séculos, naturalmente
apresentando estratégias e artifícios diferentes em cada época. Essa tal forma de
discurso persuasivo pode ser descrita pelo esquema sintético de Aristóteles e isso
basta para os objetivos desta dissertação.
2.1. Tossir com educação
Os depoimentos dos produtores de cartilha ajudaram a construir a
definição de cartilha e os elementos característicos desse gênero de publicação; a
descrição e interpretação das cartilhas citadas acima contribuiram para dar
inflexão a esse perfil, sob a luz das teorias que estão guiando este estudo.
Fizemos, inicialmente, a interpretação de duas cartilhas, de datas distantes entre
si, que trataram da tuberculose. A de 1953 é O gigante invisível. Essa é daquelas
cartilhas que simulam ser um livro, desde a capa (ver figura 17). Nada indica que
é uma cartilha educativa. O título sugere uma história de suspense, ainda mais se
for associado à ilustração da capa, de uma gigantesca mão com garras no lugar de
unha
pelos
algo
desen
cheio
bolso
ou se
leitor
home
contr
persu
FiguraFonte
popu
gratu
17 Seç
as, desenhad
s desenhista
monstruoso
nho do hom
o, ou seja, é
o e outra co
eja, um alv
r que o con
em desprev
ra o forte,
uasão, enfim
a 17. Capa de e: Coleção J. A
Na segu
ulares da
uitamente a
ção de Propaga
da com traç
as para repr
o e insidios
mem é pequ
é visível, est
oçando o qu
vo despreve
nteúdo da hi
venido escap
titulo sem
m.
O gigante invA. Buhrer
unda página
SPES17". E
a quem pedi
anda e Educaç
ço meio ob
resentar a in
so, faz gest
ueno em rela
tá no mund
ueixo, repre
enido para
istória prom
par do gigan
melhante ao
visível (1953)
a de capa c
Explica-se
ir por carta
ção Sanitária d
bliterado, o
nvisibilidad
to de estar
ação à mão
do real. Sua
esenta uma
a mão invi
mete ser emo
nte invisível
os títulos d
ilustrada por
consta uma
que "essa
a". Chama
da Secretaria
que costum
de. Essa mã
prestes a a
o, mas foi de
posição, de
pessoa abs
isível do gi
ocionante: c
l? Concisão
de fábulas
Florençano
a lista de t
as publicaç
a atenção q
de Saúde do E
ma ser recu
ão, represen
agarrar um h
esenhado co
e pé, com um
orta em pen
gante. A ca
como pode
o visual, tem
e contos
todas as "p
ções serão
que não é s
Estado de São
59
urso usado
ntada como
homem. O
om o traço
ma mão no
nsamentos,
apa diz ao
o pequeno
ma do fraco
populares:
publicações
o enviadas
sempre que
o Paulo.
60
uma cartilha admite que é uma publicação popular. Supomos que ela é chamada
de “popular” em oposição a publicações técnicas do departamento de saúde,
destinadas ao público profissional, como enfermeiros, professores e médicos. São
36 títulos muito sugestivos. Cinco deles seguem a linha do conto popular: A maior
riqueza, A última caçada, O Baile de formatura, O gigante invisível e O pacto
com o demônio. Um se chama Livro das Mãezinhas; um único assume no título o
que realmente é: Cartilha de combate ao tracoma. Vinte das publicações seguem
este padrão: O que se deve saber sobre Alcoolismo, O que se deve saber sobre
Asseio Corporal, O que se deve saber sobre BCG etc, cada uma sobre uma
questão de saúde. A fórmula acima é uma maneira consagrada de dar título a uma
cartilha. Remete-nos a O que o cidadão deve saber de Sampaio Dória (1920) e
também à Cartilha em lingua portuguesa e Tamul: o que deve saber o cristão
para sua salvação (1554). A cartilha parece que, de início, já se impõe como
obrigação ("deve saber").
A contracapa leva um selo do SPES. Ali indica-se claramente que o livreto
é de "distribuição gratuita", como devem ser as cartilhas, para cumprir seu
propósito de divulgação ampla. Institucionalmente, o SPES é discreto na cartilha,
pois só é citado nas capas, mas o Estado é mais presente no interior da narração,
pois fala-se de vacinas obrigatórias e de exames trabalhistas.
A história de O gigante invisível nos aproxima logo de início do cotidiano
de Carlos, um rapaz urbano, trabalhador de escritório, que mora sozinho num
quarto de pensão sem janelas, empoeirado e úmido, de onde sai toda noite para
passar a madrugada nos bares, e de onde sai toda manhã, apressado, sem tomar
café, para não perder o ponto no trabalho. É um esforço do autor para retratar o
cotidiano da cidade grande, aquela que atira a todos na promiscuidade
propagadora de doenças. Jurandir Freire Costa, narrando a história do elo informal
entre a “medicina social” e o “Estado”, desde o período colonial brasileiro, nos
lembra de que, por muito tempo, se associou a habitação fechada aos defeitos dos
colonos portugueses:
A medicina, ao se impor como técnica de regulação do contato entre indivíduos e família, cidade e Estado, teve na casa um dos maiores aliados. Do ponto de vista da higiene, a habitação antiga prestava-se a todo tipo de crítica. Sua arquitetura fechada, impermeável ao exterior, elaborada para responder ao medo dos “maus ares”, ventos e miasmas foi duramente atacada pelos médicos como insalubre e doentia (COSTA, 2004, P.110).
61
Carlos, em certo ponto, pergunta a César, um colega de trabalho: “Mas,
velhinho, como é que a gente fica tuberculoso?”. César é um personagem que
sabe tudo sobre a tuberculose e é na voz dele que o leitor recebe a maior
quantidade de informação. César responde: “Você ainda não sabe? A doença é
causada por um micróbio invisível a olho nu, o bacilo de Koch. Esse perigoso
inimigo pode instalar-se em vários pontos do organismo, mas prefere os pulmões,
produzindo a tuberculose pulmonar”. O colega César sabe tudo e providencia
tudo; marca o médico, explica a doença, pede a dispensa médica ao patrão, traz o
ordenado ao doente, censura a vida desregrada dele e sugere um lugar para ele se
mudar para o interior, pois o médico ordena: “Deve sair da Capital, já não tanto
para mudar de clima, mas para mais facilmente organizar um ambiente
adequado, de repouso e tratamento. Fica proibido qualquer trabalho. Deve
entregar-se a repouso absoluto”. Carlos vai viver numa cidade do interior,
dividindo aluguel com outro convalescente de tuberculose.
A imagem metafórica da doença como um “gigante invisível” de fato não
é muito explorada para causar sensação ao leitor, mas em certo ponto o narrador
pondera: “Sim, a tuberculose é a doença da miséria. Nas nossas grandes cidades,
como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Salvador, a sua multiplicação é
rápida, acompanha o pulsar de um relógio. Há, não se sabe onde, um gigante de
clava em punho, que não se cansa de desferir golpes sobre golpes...
Tic,tac,tic,tac... Mais um, mais um, mais um... Esse gigante feroz é invisível...
Chama-se Dom Bacilo...”. O desenho de um gigante de clava, encaixado nesse
trecho, é uma das poucas imagens desta cartilha.
O uso de gírias na fala dos personagens (tais como velhinho, não é
brinquedo, as coisas andam bicudas, papinho, lero-lero e lesco-lesco) sugere que
o autor tentou simular a linguagem falada nas cidades, nas camadas populares, e
buscar a simpatia de leitores mais jovens. É o esperado, pois o foco nas crianças e
jovens é típico da educação civilizadora e higiênica, conforme Jurandir Freire
Costa:
Por estes textos vê-se quais os métodos e objetivos da educação higiênica da família. A técnica era a da criação de hábitos. As ‘más inclinações’, prevenidas pela inculcação dos bons hábitos, dispensavam o uso de castigos recorrentes e os agentes externos. Seus efeitos eram duradouros, praticamente invisíveis. Implantavam-se gradualmente na ‘alma dócil’, no ‘corpo tenro e flexível’ sem deixar marcas perceptíveis. (COSTA, 2004, p.175)
62
Chico Braga, um trabalhador que está com tuberculose e já se trata há mais
tempo, é quem prescreve a Carlos a rotina de higiene: “Olhe, velhinho, quando
você tossir deve levar o lenço à boca, para segurar os perdigotos e o mal que
neles vem. E não fique com o mesmo lenço por muito tempo. Depois de tossir três
ou quatro vezes, atire-o naquele balde que ali está, com desinfetante. Não engula
os escarros, muito menos cuspa-os no chão; para eles temos essa escarradeira de
tampa, cheia também de desinfetante. O trecho guarda semelhança com trechos
dos manuais de boas maneiras citados por Norbert Elias, tais como:
Você deve usar o lenço para assoar o nariz, e nunca qualquer outra coisa, e ao fazê-lo esconda o rosto no chapéu. Evite produzir ruído quando assoar o nariz... Antes de assoá-lo, é indelicado passar muito tempo tirando o lenço do bolso. Demonstra falta de respeito para com as pessoas com quem se está desdobrá-lo em lugares diferentes para ver de que lado vai usá-lo. Você deve tirar o lenço do bolso e usá-lo rapidamente, de maneira tal que mal seja notado pelos demais (LA SALLE, apud ELIAS, 2011, p.145). Não basta dizer que os bacilos são transmitidos pelo escarro; é preciso
restringir o número de tossidas, assim como era indelicado exibir por muito tempo
o lenço; enfim, para o uso do lenço é determinada uma ordem de movimentos e
para o descarte do lenço é determinado um lugar mais conveniente, tendo sempre
a consciência de que o ato poderá ser visto por alguém18.
Na parte final, a história tem uma revelação: o colega César teve
tuberculose e já se curou; ele é um "tuberculoso de guerra" que trabalha e vive
como todo mundo, acendendo a esperança em Carlos. No fecho da história, um
trecho significativo: "Muito obrigado, doutor. Quando eu voltar à cidade e ao
trabalho, procurarei fazer pelos outros o que César fez por mim. Direi a muita
gente: cuidado, seus bobos, vigiem constantemente a saúde, não se esqueçam do
que ia acontecendo ao Carlos...". Nessa frase podem-se notar dois elementos
característicos do gênero da cartilha: a intenção de propagar a mensagem (cada
leitor pode ser agente disso) e o apelo à vergonha para disciplinar os jovens. Os
que não sabem como se prevenir são “bobos” como ele, Carlos, já foi um dia.
Segundo Elias, é muito evidente nos tratados de boas maneiras o cultivo do
sentimento de vergonha. Se, nos livros mais antigos, os jovens deveriam ter em
mente que deviam se comportar bem porque havia sempre anjos vigiando (esse
18 A literatura e o jornalismo também contribuem no mesmo processo civilizador. Por exemplo, numa crônica análoga à citada cartilha, Machado de Assis prescrevia as noções de boas maneiras no ambiente coletivo do bonde: os “encatarrados”, se “tossissem mais de três vezes” deveriam ou ficar em casa ou ir a pé (SICILIANO, 2014, p. 240).
era o
tarde
qualq
indiv
vergo
em f
à de
balõe
perso
segun
FiguraFonte
(O g
pode
Supo
o argumento
e os textos n
quer pessoa
víduo. Apen
onha é men
Respire
formato de h
1953. A c
es inclusive
onagem prin
ndo plano, n
a 18. Capa de e: Coleção pró
Existe um
gigante invi
e narrar pelo
osição sobre
o de Erasmo
não se refer
a que poss
nas quando
nos utilizado
aliviado: tu
história em
capa (ver fi
e. É uma
ncipal, em
num local p
Respire Aliviópria.
m contraste
isível) e o t
o ponto de
e o raciocín
o), o que ap
rem mais a a
sa aparecer
o as razões
o nessas obr
uberculose
quadrinhos
igura 18) já
cena que
primeiro pl
público urba
iado: tubercul
e evidente e
título tranqu
vista da pe
nio dos auto
pela para se
anjos. Em s
r, ou seja,
s higiênicas
ras (ELIAS,
tem cura é
s publicada
á é o prim
chama a a
lano, é cham
ano).
lose tem cura
entre o títul
uilizador de
edagogia, d
ores: o leito
ntimentos d
seu lugar, se
a vigilânci
s predomin
, 2011, p. 13
é uma carti
em 2005 e
meiro quadri
atenção par
mado por u
(2005)
lo ameaçad
e 2005. É u
da psicanáli
r da cartilh
de temor a D
e cultiva a v
ia é interna
nam, o argu
34-135).
lha sobre tu
e podemos c
inho da his
ra a leitura
uma descon
or do livret
uma mudan
se ou da pu
a é, em pot
63
Deus, mais
vergonha a
alizada no
umento da
tuberculose
compará-la
stória, com
a (Zeca, o
nhecida em
to de 1953
nça que se
ublicidade.
tencial, um
64
doente de tuberculose que precisa receber informações e precisa ser voluntário na
busca do atendimento. Esse é o alvo da cartilha. Esse doente hipotético deve ser
envolvido positivamente, com esperança de cura, em vez de assustado, como fazia
o texto de 1953. Sob tal ponto de vista, o comunicador aproximou-se mais do
leitor; ficou mais solidário.
É verdade que, em 1953, a mensagem também era de que a tuberculose
tem cura, mas a imagem do doente e do tratamento é negativa, conforme a
ideologia higienista. Em 2005 a mensagem higienista ainda está presente, mas não
condena o paciente. O problema ganha mais tom de problema social: “Também
descobri que o lugar onde a gente vive facilita a doença. Muita pobreza, casa que
não entra sol, sem ventilação, calor. A gente vive mal, né? Muita ralação, mesa
vazia...” diz a personagem Glorinha. O doente só é censurado por ter vergonha de
procurar o médico e por abandonar o tratamento. Zequinha já começa a história
saindo do posto médico, com o diagnóstico. Nesse aspecto, teve comportamento
mais “civilizado” do que Carlos, que temia ir ao médico, mas ambos estavam
desanimados, pensando estar condenados.
Na cartilha de 2005, até mesmo o personagem médico diz com
naturalidade que tuberculose “acontece. Existem situações que facilitam a
transmissão pela proximidade com outra pessoa que esteja doente". Em
comparação, em 1953, o personagem do médico é uma caricatura, de tão "sério" e
reservado, demonstrando controlar as emoções a ponto de ter a mesma expressão
ao comunicar uma notícia boa ou uma ruim. Um trecho de 1953, após a cena do
exame de radiografia: “Como me encontrou, doutor? O médico parecia pensar
em outra coisa. Não respondeu. Embalde o cliente procurou ler-lhe alguma coisa
na fisionomia, mas não conseguiu decifrar as rugas da sua testa, nem a
serenidade triste de seus olhos” (figura19).
Figurauma cFonte
censu
terem
carta
eles v
pois
inten
avan
de ap
acon
Nota
etiqu
comp
disci
deslo
conte
manu
do le
assoa
a 19. Páginas chapa do paciee: Coleção J. A
Enquanto
ura desta c
m se afastad
az informati
veem que e
“podia ser
nção discipl
nça sobre no
presentado
nselhado, em
amos que,
ueta” porqu
portamento
iplinador nu
oquem de
emporâneos
uais de etiq
enço para a
asse o nariz
de O gigante ente. O microA. Buhrer
o, na public
artilha pesa
do dele e fe
ivo que ajud
estavam sen
r qualquer
linadora nã
ovo terreno
pelos perso
m 2005 pas
em Respir
e os operár
passado,
uma cartilh
e compo
s. Essa inte
queta de dife
assoar o na
z com os de
invisível, ilusscópio mostra
cação de 19
a mais sobr
eito coment
da a propag
ndo preconc
um de nós
ão declina
: o comport
onagens de
ssa a ser ac
re aliviado,
rios colegas
ignorante.
ha. E não é
ortamentos
rpretação b
ferentes épo
ariz existe,
edos, se o f
strada por Flora a imagem am
953, o doen
re os colega
tários mald
gar a inform
ceituosos e d
s”. Pode-se
com o des
rtamento de
1953) pod
conselhado
, respeito
s de Zequin
Vergonha
é de se est
ultrapass
baseia-se na
ocas. Nos m
mas é raro
fizesse corr
rençano. O mémpliada dos ba
nte é culpad
as de traba
osos. Quan
mação corret
decidem “da
inferir que
envolvimen
e ser solidár
ia até ser e
como noçã
e solidarie
nha ficam c
é o sinal
tranhar que
sados par
a comparaçã
mais antigos
o. Concedi
etamente. S
édico, impassíacilos.
do por seus
lho do Zeq
ndo os coleg
ta sobre a tu
ar uma forç
e isso most
nto da soci
rio que, ant
esperado, m
ão de boas
dade são “
com vergon
que marca
e os ensina
ra compo
ão que Elia
o conselho
a-se que um
Séculos mai
65
ível, tira
s hábitos, a
quinha, por
gas leem o
uberculose,
ça pra ele”
tra como a
iedade; ela
tes, (apesar
mas não era
s maneiras.
“regras de
nha de seu
a o trecho
amentos se
ortamentos
as fez entre
o sobre uso
uma pessoa
is tarde, os
66
livros não admitem mais o uso dos dedos, e nem precisam ensinar que o lenço é o
correto, pois esse comportamento já foi generalizado. Porém, começam a ditar
novas normas: as de uso “educado” do lenço:
Logo que o lenço começa a ser usado, repete-se a proibição a uma nova forma de “má educação” que surge ao mesmo tempo com o novo costume – a proibição de olhar dentro do lenço depois de usado (ELIAS, 2011, p.147). A cartilha Respire aliviado sugere que a visita ao posto de saúde já é um
comportamento conhecido e difundido, mas surge uma nova forma de “má
educação”: afastar-se de um companheiro por motivo de preconceito.
Sob outro ângulo de análise, nota-se que, na história de 2005, os agentes
de saúde do bairro (chamadas Rita e Sônia) são a presença institucional discreta e
interna à narrativa. Se aquela de 1953 era uma cartilha do Estado, essa de 2005 é
do "terceiro setor"19. Essa mudança pode ser entendida como o desenvolvimento,
ao longo do tempo, de um conjunto complexo de “agentes da política do corpo”,
conforme Foucault:
É um mosaico muito complicado. Em certos períodos aparecem agentes de ligação. Tomemos o exemplo da filantropia no início do século XIX: pessoas que vêm se ocupar da vida dos outros, de sua saúde, da alimentação, da moradia... mais tarde, desta função confusa saíram personagens, instituições, saberes... Uma higiene pública, inspetores, assistentes sociais, psicólogos. E hoje assistimos a uma proliferação de categorias de trabalhadores sociais. Naturalmente, a medicina desempenhou o papel de denominador comum. Seu discurso passava de um a outro (FOUCAULT, 1990, p.151). Enfim, o mundo das cartilhas parece ser aquele cheio de “pessoas que vêm
se ocupar da vida dos outros”, na figura tanto de doutores, quanto de agentes de
saúde, quanto de familiares e amigos. Assim, chega o momento da narração em
que o personagem Zequinha assume o papel de multiplicador (“agora faz palestra
na comunidade sobre o sucesso do seu tratamento”) e enuncia o que os criadores
de cartilha pregam: “a ideia do cartaz foi batata. Descobri que informação
também cura”.
Inesperadamente, observamos que as instruções médicas em 1953 e 2005
são quase as mesmas: referência ao bacilo de Koch, à vacina BCG, aos alimentos,
ao sol. A diferença fundamental é que em 2005 o médico diz que "não é
necessário se isolar" e em 1953 se aconselha "não manter contato com
tuberculosos" (só a pobre da Zulmira era obrigada a isso, pelo casamento com
Chico Braga). Em 1953 aconselha-se fugir dos excessos (alcoolismo, trabalho 19 Conjunto das organizações da sociedade civil sem vínculo com o setor público.
67
exaustivo, noitadas, etc.) e, em 2005, o rapaz até se aborrece quando os amigos
insinuam que ele ficou doente por viver na boêmia.
As duas cartilhas se assemelham porque seus autores optaram por tratar do
assunto com uma história “exemplar”, que é um recurso retórico aristotélico.
Conforme Carrascoza,
Exemplificar é um recurso de persuasão que, muitas vezes, corresponde a apontar apenas uma prova dentro do modelo de texto publicitário apolíneo, ou um fato que demonstra a importância de se fazer a escolha certa, de se adotar esta ou aquela conduta, defendida pelo emissor da mensagem em seu discurso de aconselhamento. Na variante dionisíaca, o exemplo pode abranger toda a história narrada, usufruindo assim o estatuto de uma verdade, ainda que fictícia (CARRASCOZA, 2004, p. 123) Ambas as cartilhas de tuberculose são construídas como histórias narradas
do início ao fim. Ambas foram feitas para entreter e simulam língua falada e cenas
do cotidiano. Essa é uma técnica considerada valiosa para criadores de cartilhas,
conforme o depoimento do cartunista Bira, sobre uma autora de cartilha:
Porque esse texto dela foi baseado em relatos que ela anotou, ouviu de pessoas que falavam aquelas coisas. Então, de novo, a gente volta naquele ponto que eu citei. Quando o seu personagem fala o que é falado, ele passa a ser mais real. Embora não seja o único modelo adotado para a criação de cartilhas, a
referência ao cotidiano e à realidade do público-alvo é uma característica
significativa do gênero.
2.2. Setinhas e lentes de aumento
Sem esquecer as conclusões a que chegamos na comparação das duas
cartilhas sobre tuberculose, analisamos um pequeno grupo de cartilhas que
guardam relações entre si: as que tratam de verminoses e dengue, doenças
associadas às condições sanitárias de habitação.
Jeca Tatuzinho foi uma associação fértil entre uma obra literária e uma
publicação de propaganda comercial explícita, com anúncios de produtos
Fontoura nas capas e em rodapés de várias páginas (em configurações que
variaram de edição para edição). Por um lado, é um anúncio; mas, como o texto é
de Monteiro Lobato, Jeca Tatuzinho é, ao mesmo tempo, uma obra artística – uma
tese do autor. A segunda metade da história não tem mais nada a ver com saúde,
mas conta o progresso de Jeca que, só por curar-se de verminose, por ficar forte e
68
trabalhador, torna-se rico, aprende inglês para copiar os americanos, compra
caminhão e cavalo árabe, instala sistemas automatizados na fazenda e passa a
trabalhar num escritório com circuito fechado de televisão. No fim, fica famoso,
estimado e vira filantropo, construindo postos de saúde para ensinar a “caipirada”
e para distribuir o remédio a todos.
A história utiliza o recurso retórico de comparar o “antes” com o “depois”
do uso de um produto comercial – técnica típica do texto publicitário
(CARRASCOZA, 2004, p.157). No início, Monteiro Lobato mal esconde a severa
condenação à falta de iniciativa do personagem: “O que Jeca Tatu queria era
beber a sua pinguinha e espichar-se ao sol, no terreiro. Ali ficava horas, com o
cachorrinho ao lado, ou ao colo, cochilando. A vida que rodasse, o mato que
crescesse na roça, a casa que caísse. Jeca não queria saber de nada. Isso de
trabalhar não era com ele”. A imagem de Jeca Tatu era ainda pior que isso.
Diziam dele: “Além de preguiçoso, bêbado; e além de bêbado, idiota...”. Durante
praticamente todo o século XX esteve na ordem do dia dos debates nacionais a
necessidade de modernizar a estrutura agrária do Brasil, mudar a mentalidade do
meio rural e optar por um modelo de desenvolvimento moderno, industrial,
urbano e civilizado. Para tanto, eram necessárias políticas de saúde pública.
Monteiro Lobato participou desse debate de várias maneiras e seu personagem
Jeca Tatu foi adotado por políticos, jornalistas e outros artistas como um “tipo”
usado para se pensar sobre o Brasil, um símbolo de corte e inflexão, do Brasil
agrário atrasado para o Brasil urbano civilizado (CAROLA, 2004 e IANNI, 2002).
O fato de ser alçado a um “tipo” brasileiro explica o potencial de Jeca Tatu
como fulcro de uma campanha publicitária e, na cartilha, a propaganda está
presente dentro da narrativa. O personagem do médico, em certo ponto,
explicitamente prega a compra dos produtos Fontoura: “Quem sofre de sezão sara
com o MALEITOSAN FONTOURA. A ANKILOSTOMINA FONTOURA é só para
o amarelão. Eu vou curar você com a ANKILOSTOMINA”.
Figurae mosFonte
apres
um te
quere
figur
ignor
ser c
micro
gigan
ele p
das c
diant
a 20. Páginas stra as larvas de: Coleção J. A
Curioso
sentando as
este: que o
endo entrar
ra da lente
rância das c
curada se u
oscópio, pa
nte invisíve
permite ter d
cartilhas de
te, Dona Ci
de Jeca Tatuzde verme nos pA. Buhrer
é que, no te
s lombrigas
homem tire
r em seus p
de aumen
causas da do
usarmos ins
ara visualiz
el, uma das
dos bacilos
e saúde, é a
iência está d
zinho. Notar apés de Jeca.
exto de Lob
que estavam
e as botinas
pés. Entra e
nto para mo
oença – os a
trumentos c
zar os agen
ilustrações
de Koch (v
a própria au
dizendo, Jec
a garrafa de pi
bato, o méd
m na barrig
protetoras
em cena, n
ostrar o de
autores de c
científicos,
ntes infecc
é a figura d
ver figura 2
utoridade qu
ca está jura
inga abandona
dico faz o ca
ga do Jeca p
e ande na la
a ilustração
etalhe das l
cartilha pare
como a le
ciosos invis
de um micr
21). A ciênc
ue dá os co
ando em cim
ada. O doutor
aipira “ver
para ele ver
ama para ve
o de J. U. C
larvas (figu
ecem acredi
nte de aum
síveis. Na
oscópio e a
cia, nesta e
onselhos: “D
ma!”.
69
pega a lupa
para crer”,
r e fazendo
er as larvas
Campos, a
ura 20). A
ditar – pode
mento ou o
cartilha O
a visão que
na maioria
“Daqui pra
FiguraampliFonte
discu
cartil
retór
e log
das i
Tatu
ficçã
pode
desm
Agor
que é
de te
volum
a 21. Detalhe iada de bacilose: Coleção J. A
A ordem
urso (exórd
lhas escrita
rica está pre
gos:
Persuadeimpressã[...] Persuadeemoção psentimos [...] Persuadimverdade, 2005, p.9 Nas refe
instituições
, a autorida
ão, às cenas
e demonst
mistificadore
Se Jeca
ra o Dito é
é evidente p
exto e ilustr
me 1 (esqu
de página de s de Koch vistA. Buhrer
m de elem
dio, narraçã
as em forma
esente, se pr
e-se pelo caráo de o orado
e-se pela dispor meio dotristeza ou a
mos, enfim, a partir do q
96-97).
ridas cartilh
que as pub
ade do autor
s dramática
trar empa
es, a luz das
Tatuzinho
meu amigo
pela escolh
ração. Na c
uistossomose
O gigante invta através do m
entos com
ão, provas e
as de conto
rocurarmos
áter quando oor ser digno d
sposição doso discurso, palegria, amor
pelo discursoque é persua
has, o princ
blicam, com
r famoso; pa
s do cotidia
atia; e lo
s lentes de a
foi muito p
o (1970) de
a do format
apa inform
e) da “Cole
visível (1953).microscópio.
que Arist
e peroração
os, nem ser
pelo equilí
o discurso é de fé.
s ouvintes, pois os juízr ou ódio.
o, quando masivo em cad
ípio do etho
mo o Ministé
athos é a se
ano dos pe
ogos são
aumento e o
popular e v
estinava-se
to de histór
ma-se claram
eção educaç
A ilustração r
tóteles ensi
o) não é se
ria de se es
íbrio dos ele
proferido de
quando estezos que emit
mostramos a vda caso parti
os é represe
ério da Saú
edução dos l
ersonagens c
os argu
o exemplo d
visava à lei
preferencia
ria em quad
mente do qu
ção sanitári
representa a im
ina a pronu
eguida à ri
sperar. Mas
ementos eth
tal maneira
es são levadtimos variam
verdade ou oicular (ARIS
entado pela
úde e, no ca
leitores pelo
com os qua
umentos c
das pessoas c
itura de tod
almente às c
drinhos e pe
ue se trata: d
a”, com “d
70
magem
unciar um
isca nessas
s a técnica
hos, pathos
que deixa a
dos a sentir m conforme
o que parece STÓTELES,
autoridade
aso do Jeca
o recurso à
ais o leitor
científicos,
curadas.
dos, o gibi
crianças, o
elos estilos
de que é o
distribuição
71
gratuita”, ou seja, uma cartilha de saúde para crianças. É usual, como observado
por Jurandir Freire Costa, que a “medicina social”, pregando pela higiene, volte-se
para a educação dos jovens como meio de mudar o comportamento da família
inteira: “A higiene utilizou amplamente esta tática: apropriou-se das crianças,
separando-as dos pais e, em seguida, devolveu-as às famílias convertidas em
soldados da saúde” (COSTA, 2004, p. 204).
O argumento desta cartilha é basicamente o mesmo de Jeca Tatuzinho:
culpar as verminoses pela inação e pela falta de renda e perspectiva de uma
família que era “mesmo desanimada”. No entanto, não tem o bom humor do texto
de Monteiro Lobato. A história de Dito é mais séria. O texto se estende mais na
enumeração dos cuidados higiênicos, praticamente ausentes em Jeca Tatuzinho.
Inclui a instrução de construir uma "casinha" mais afastada possível do poço e do
curso de água. Essas recomendações estão presentes também na cartilha mais
recente O melhor lugar, bem como em outras, como lembra o cartunista Bira
Dantas:
A saúde é um tema que é recorrente nas cartilhas, pra ensinar alguma coisa, como cuidar do pessoal que bebe água de poço. Tem aquelas dicas de como ferver a água pra ficar potável, as pessoas, elas explicam. Eu cheguei a fazer desenho pra explicar pro pessoal da roça - é uma coisa que as pessoas sabem, mas um tanto de gente não sabia - que você não pode, quando você constrói um banheiro, ele não pode se ligar com os lençóis freáticos. Os autores de Dito usam o argumento persuasivo da comparação. Não é
uma história em quadrinhos de leitura linear, mas uma “montagem em paralelo”.
A cada página, o leitor vê dois quadros ilustrados. Em cima, vê a situação boa de
uma família rural (de onde vem o menino Zeca) limpa, animada e trabalhadora:
“comem na hora certa. São limpos, vestem roupa lavada. Tomam as vacinas. Têm
os dentes em bom estado”. O ilustrador se empenha em evidenciar, com
elementos visuais, cada uma dessas afirmações. Em baixo, numa cena em
paralelo, vê a família do menino Dito, convivendo com sujeira de animais, sem
vontade de trabalhar, sem perspectivas. “Reparem que diferença!”, sugere o
narrador. A comparação termina quando o menino saudável Zeca lê um livro,
aprende coisas, e vai procurar o Dito, que “se não fosse tão doente, seria um
grande amigo”. Zeca é o personagem que sabe das coisas (conhecimento
científico) e vai ajudar o próximo (comportamento cristão).
refor
de au
meni
pesca
Figurada conFonte
mani
senti
desen
disso
na ve
“erra
efeito
O argum
rçado pela p
umento (qu
ino Dito e c
a. Uma linh
a 22. Páginas ntaminação. A
e: Coleção J. A
Entendem
ifestou ser u
ido de “entr
nhos estiliz
o, nas págin
erdade, um
adas”. No e
o lúdico na
[...] o jogdeterminconsentidacompanser difere
mento da fu
presença de
ue não pode
contaminam
ha de setinha
de Agora o DA lente de aumA. Buhrer
mos que o
uma qualid
retenimento
zados e as f
nas finais da
teste de co
entanto, con
leitura de u
go é uma atiados limitedas, mas absnhado de um ente da "vida
fundamentaç
gráficos ilu
eria faltar),
m o rio entr
as demonstr
Dito é meu amimento mostra a
o aspecto "
ade das car
o”. As ilustr
figuras infan
a cartilha, o
nhecimento
ncluímos qu
uma cartilha
ividade ou os de temposolutamente sentimento
a quotidiana"
ção científi
ustrados qu
as larvas d
rando nos p
ra o caminh
igo. O esquema larva do ver
"lúdico", qu
rtilhas, aqui
rações típic
antis podem
s autores pr
os no qual s
ue não é po
a. Segundo J
ocupação volo e de esobrigatóriasde tensão e
" (HUIZINGA
ica dos con
ue revelam,
de verme qu
pés descalço
ho da contam
ma com setinhrme.
ue a maior
i em Dito é
cas de gibis
m encantar j
ropuseram u
se propõe a
ossível verd
Johan Huizi
luntária, exerspaço, seguns, dotado de de alegria eA, 2014, p.3
nselhos de
com a figu
ue saem da
os de um h
minação (fig
as mostra a lin
ria dos ent
é alcançado
, com cores
ovens leitor
um joguinh
marcação d
adeiramente
inga:
rcida dentro ndo regras um fim emde uma con
3).
72
higiene é
ura da lente
as fezes do
homem que
gura 22).
nha causal
ntrevistados
apenas no
s vivas, os
res. Além
ho didático:
das figuras
e provocar
de certos e livremente
m si mesmo, nsciência de
73
Obviamente, a leitura da cartilha não é uma atividade dotada de um fim em
si mesmo, como seria um jogo, mas sim o caminho para a adesão a um padrão de
comportamento. Num jogo não se sabe qual das partes vai terminar vencedora; na
leitura da cartilha, o único sucesso possível é o autor convencer o leitor. E não há
regras livremente consentidas nem diálogo entre os autores e o leitor. A noção é
compartilhada pelo cartunista Bira Dantas:
Eu acho que, realmente, esse diálogo é impossível de ser feito. Só teria uma forma de esse diálogo acontecer: você ter uma cartilha em sequência. De ter uma cartilha número um, número dois, número três, que vai ser discutida pelo público. Parece-nos que existe uma confusão semântica sobre o termo “lúdico”. O
que os patrocinadores de cartilha esperam é que ela conquiste a atenção do
público pelo fato de ser “leve” ou até mesmo “divertida”. Segundo Huizinga, é
comum o pensamento de que o jogo se opõe à seriedade, mas há muita seriedade
na prática dos jogos, e há, por sua vez, outros conceitos que se opõem melhor à
seriedade: “O riso, por exemplo, está de certo modo em oposição à seriedade, sem
de maneira alguma estar diretamente ligado ao jogo” (HUIZINGA, 2014, p.8). A
relação do riso, do cômico e do humor com a criação de cartilhas terá uma análise
mais desenvolvida no capítulo 3.
Uma vez que o texto das cartilhas tem finalidade persuasiva, seria
desejável que o jogo (ou o “lado lúdico”) pudesse servir como instrumento de
sedução do leitor. Segundo Baudrillard, a sedução só acontece no terreno da
“dualidade”, quando há “apostas” de dois “jogadores” e o resultado é
imprevisível. O que existe de interação possível nas mídias não permite o
fenômeno da sedução e se restringe à “sedução fria” ou fascinação, um simulacro
da verdadeira ludicidade. Neste trecho ele exemplifica com os programas de
auditório na TV:
Gigantesco processo de simulação que conhecemos bem. A entrevista não-dirigida, os telefones para os ouvintes, a participação em todos os sentidos, a chantagem à palavra: “isso se refere a você, você é o fato, você é a maioria”. E a pesquisa de opinião, de coração, de inconsciente, para manifestar o quanto “isso” fala (BAUDRILLARD, 1991, p.186). Assim, em qualquer cartilha, mesmo um jogo de perguntas e respostas ou
uma atividade de resolver problemas (labirintos, passatempos, palavras cruzadas,
etc.) ainda não são exatamente “lúdicos” no sentido sedutor que a atividade social,
de pessoas frente a frente, permite.
74
A persuasão, por sua vez, é um objetivo possível e, observando a técnica
retórica em Agora o Dito é meu amigo, concluímos que, no equilíbrio dos
princípios de ethos, pathos e logos, o discurso concentra-se no logos científico,
assim como as outras cartilhas de saúde, mas é fraco em ethos e pathos, porque a
história não transmite credibilidade e não emociona. A amizade dos dois meninos,
por exemplo, não é desenvolvida, não há altos e baixos na trajetória dos
personagens, não há representação convincente do cotidiano. A autoridade que
profere o discurso é pouco discernível, apesar de que há muita presença
institucional na contracapa. Essa cartilha foi criada pela equipe da Editora Abril e
“aprovada pelo Ministério da Saúde”, sob patrocínio da Associação Brasileira da
Indústria Farmacêutica (ABIF). Ali, na última página, desenvolve-se uma
argumentação, ilustrada em quatro cenas, de que ninguém gosta de comprar
remédio, mas é necessário, e “gasta-se menos em remédios do que em outras
coisas, algumas, até, que fazem mal à saúde” (a imagem é de um bar onde
homens bebem e fumam); que os remédios são resultado de pesquisas de
cientistas de todo o mundo e hoje salvam vidas que antigamente as doenças
matavam. A indústria farmacêutica também está presente no interior da história:
“muitos cientistas, médicos e laboratórios estão sempre procurando remédios
melhores. Hoje todos podem ter saúde”. A cartilha, sob o ponto de vista deste
pesquisador, denota alguma promiscuidade entre setor público e privado, o que
pode ter afetado sua credibilidade.
A análise das duas cartilhas sobre verminoses ofereceu contraste à de
Todos Contra a Dengue! (2006). Nesta cartilha, a lente de aumento já está em
destaque na capa (um menino em primeiro plano usa a lente de aumento para
olhar o focinho de seu cachorro, onde pousou um mosquito Aedes). Elementos de
segundo plano: três personagens da história: o pai, a irmã e a velhinha que mora
no bairro. Logo na capa já se promete a qualidade "lúdica" da obra com a
chamada “uma história cheia de brincadeiras!” (ver figura 23).
FigurarepresFonte
“lúdi
camp
perso
labiri
fixar
a 23. Detalhe senta a visão ae: Coleção pró
O autor
ica”, porqu
pos (ver fig
onagens; ou
intos, entre
r as informa
da capa de Toampliada de uópria.
buscou ser
e montou u
gura 24): um
utro de ilu
outros. As
ações sobre
odos contra a um mosquito q
r o mais fie
uma estrutu
m de narraçã
ustração co
atividades
dengue.
dengue!.(200que o menino
el possível
ura narrativ
ão, compost
om joguinho
propostas f
06). O círculo está obtendo p
à diretriz d
va em que c
ta quase tod
os de pint
foram criada
sobre o nariz pela lente de a
de fazer um
cada página
da de diálog
ar, marcar,
as com o pr
75
do cachorro aumento.
ma cartilha
a tem dois
go entre os
, percorrer
ropósito de
FiguraamplipropóFonte
e qu
autor
pesso
veros
diz.
essas
de sa
comu
uma
os vi
instru
enco
temp
folhe
a 24. Páginas iada dos mosqósito para que e: Coleção pró
Um prob
adrinhos é
ridade médi
oas comuns
ssimilhança
Por isso, aq
s informaçõ
aúde. Aqui,
unicação of
peça de com
izinhos e v
uções de pr
ntrar probl
po!”. A per
eto sabido -
de Todos conquitos que o mo leitor pinte
ópria.
blema frequ
que os enu
ica soam fa
s, em cenas
a da história
qui, o auto
ões, os pers
o efeito de
ficiais (gran
municação
vão checand
revenção do
lema por a
sonagem co
brincou Do
ntra a dengue!menino viu. Na
a ilustração.
uente nas ca
unciados qu
lsos quando
s do cotidia
a, o que faz
r Brasílio o
sonagens es
e verdade é
nde recurso
oficial). De
do se a Do
o folheto: “
aqui. Eu sig
ompleta: “v
ona Maria”
! (2006). O círa página opost
artilhas de s
ue carregam
o são pronu
ano. Em ou
z o leitor nã
optou pela
stão, na cen
obtido proj
metalinguís
e fato, na hi
ona Maria,
“Vamos ent
go as orien
vejam, estão
”.
rculo amarelo ta o desenho f
saúde escrita
m as inform
unciados por
utras palavr
ão acreditar
solução de
na, lendo fo
etando a au
stico, porqu
stória, as cr
no caso, c
trando... M
ntações que
o todas de
representa a ificou descolor
as na forma
mações cien
r personage
ras, atenta-s
no que o pe
, sempre qu
olhetos de a
utoridade na
ue a cartilha
rianças e o p
umpre cada
Mas acho qu
e vi na tele
acordo com
76
imagem rido de
a de contos
ntíficas e a
ens que são
se contra a
ersonagem
que emitem
autoridades
as peças de
a também é
pai visitam
a uma das
ue não vão
evisão, faz
m esse seu
77
Por ter feito isso, o autor equilibrou o logos das explicações de causa e
efeito (água parada causa mosquito que causa dengue, por exemplo) com o ethos
do apelo à autoridade oficial representada pelos folhetos e com o pathos da
ligação emocional que os leitores costumam ter com histórias em torno de
famílias e vizinhanças.
Um trecho da história chama a atenção: o menino Paulinho pede para
Aninha ir lendo as instruções oficiais do folheto enquanto ele vai “vistoriando” e
“conscientizando”. Essa família fictícia, ao recorrer ao folhetinho para guiar a si
mesmos e aos vizinhos, parece, ainda em 2006, passar pela mesma situação das
famílias do século XIX que penavam para se civilizar e acompanhar a
urbanização. Segundo Jurandir Freire Costa, a medicina higienista conseguiu se
colocar como referência permanente para a conduta saudável; tinha sempre que
ser consultada novamente e seguida à risca:
Era praticamente impossível à família acompanhar a velocidade criativa dos médicos. Onde acreditava acertar, errava; onde pensava errar, tinha acertado. (COSTA, 2004, p. 139)
Da mesma forma, ainda hoje é comum protestar que os médicos e
cientistas fazem circular pela mídia muitas orientações contraditórias e ainda
assim, muitos se empolgam em segui-las à risca.
2.3.
Um amplo leque de cuidados
A classificação das cartilhas coletadas em categorias relacionadas aos
temas de seus conteúdos é fundamental para produzir algum conhecimento por
meio desta pesquisa, mas tal classificação não deixa de ser arbitrária. Se as
cartilhas sobre prevenção de doenças são mais focadas, outras cartilhas da área de
saúde, no fundo, lidam com um leque de comportamentos diferentes que podem
ser associados ao bem-estar de todas as partes do corpo e que disciplinam
comportamentos bem diversos, chegando a tratar de hábitos de trabalho, consumo
e relação com o meio ambiente. Foi interessante analisar em conjunto as antigas
cartilhas do Serviço Nacional de Educação Sanitária (SNES) e as mais recentes
sobre prevenção de câncer, usos da água, comportamento sexual masculino e
sobre drogas.
pesso
comp
Luiz
sua m
Reco
1999
Luiz
Impo
desti
assun
FiguraFonte
todas
de pr
indep
nariz
tem
Um sina
oas que esta
por o quadr
Sá (1907-1
maior popu
o-reco, Bolã
9, p. 250). A
Sá (ver fig
ortante nota
ina a adulto
nto.
a 25. Capa e ce: Coleção pró
A presen
s as publica
ropagar o c
pendenteme
O texto –
z, os dentes
suas quali
al de que a a
abeleceram
ro da institu
1979), ceare
ularidade. F
ão e Azeiton
A capa da ca
gura 25), ev
ar que, ape
os. Todas
contracapa de ópria.
nça da insti
ações dispon
onteúdo ao
ente de auto
– que trata d
s, os dentes
dades. Apr
arte do cartu
o SNES ac
uição, desde
ense que, co
Foi autor do
na, nas pág
artilha Cuid
videnciando
sar de as il
as páginas
Cuidados... (
ituição é cl
níveis, entr
máximo: “
orização”, d
de cuidados
da criança
resenta afir
um se entre
charam por
e o seu iníci
omo ilustrad
os personag
inas do sem
dados... (195
o ao público
lustrações p
são ilustr
1957).
lara, nas ca
re livros, fo
“A matéria
diz a mensag
s gerais com
, as mãos,
rmações ob
elaça com a
bem contra
io, em 1942
dor de revis
gens de his
manário O T
57) já é um
o de que a
parecerem
adas com
apas, onde s
lhetos e car
deste livro
gem da pág
m a saúde, o
os pés, a pe
bjetivas, m
das cartilha
tar um cartu
(SOUZA,
stas infantis
stórias em q
Tico-tico (F
festival de
leitura será
infantis, a
cartuns ref
se publicou
rtazes. A in
pode ser re
gina 2.
os olhos, os
ele e com o
as não ape
78
as é que as
unista para
2011). Era
s, alcançou
quadrinhos
FONSECA,
cartuns de
á divertida.
cartilha se
ferentes ao
u a lista de
ntenção era
eproduzida
ouvidos, o
o vestuário
ela para a
79
autoridade científica. Refere-se aos bacilos e vermes, mas é só. É agradável de ler,
tenta não culpar as pessoas por suas doenças o tempo todo, mas é categórico nas
recomendações. A arte retórica aqui é mais calcada no princípio do ethos: confiar
nas autoridades públicas (o que elas dizem “é para o seu bem”).
Mais uma vez, a maneira de aconselhar o leitor lembra os manuais de
etiqueta estudados por Elias. Por exemplo, o conselho sobre os rouges e batons
(“que tem sido causa de muita pele estragada e sem viço”) é uma pequena aula à
jovem consumidora, que no início dos anos 1950, data da cartilha, começava
apenas a ter o costume de se maquiar liberado pelas regras de recato:
Ora, não é nosso intuito apelar para que tais utensílios de beleza sejam definitivamente afastados do toucador. Não obstante, cumpre dizer que não há necessidade de se emplastar o rosto de cosméticos e de se fazerem desenhos bizarros com o baton, sobre os lábios. Os cremes, o baton e o rouge podem ser usados, exatamente como mandam as regras da maquilage, nada de excessos. Segundo Jurandir Freire Costa, a educação de caráter higienista-
disciplinador fez cair por terra as regras simples de certo e errado: “Quase toda
atividade humana podia ser potencialmente mórbida. [...]Tudo era ao mesmo
tempo sadio e doente. A sabedoria consistia em dosar os excessos, revitalizar os
meios termos” (COSTA, 2004, p.139). No mesmo tom, Henri Bergson observou
que “o que a vida e a sociedade exigem de cada um de nós é uma atenção
constantemente vigilante”; é certa tensão e certa elasticidade ao mesmo tempo,
para nos adaptarmos aos acontecimentos. O sinal de que saímos do meio termo é
o riso dos outros (BERGSON, 2001, p. 13).
Na mesma linha de ridicularização dos excessos, a cartilha Vestuário
(1949) parece apoiar a ideologia nacionalista que se difundiu com mais força após
a Revolução de 1930. Condena o uso de roupa excessiva e escura (trajes
europeus) e preconiza o uso de roupas “leves, folgadas e porosas”. Aponta o calor
em excesso e a falta de circulação como problemas para a saúde. Insiste nisso,
sem nenhuma variedade de argumentos. Também preconiza o banho diário. Acaba
se assemelhando a um “manual de estilo” tropical, apelando para o bom senso,
mas escondendo a severa condenação à imitação dos costumes europeus.
(uma
um p
Figura
um
signi
suas
fruta
tífica
20 Págsegun
É muito
a quadrinha
parágrafo de
Se faz CAPor outroGranfinaao CLIM A roupa eO excessexemplo,quentes, abrigar dtemperatu Procure u
a 26. Páginas
A terceir
inventário
ificativo par
letras inici
as, ginástica
a, o exterm
ginas pares sãndo o jargão d
interessante
a) ilustrados
e argumenta
ALOR, não so lado, é umas ou remend
MA e à TEMP
e o clima so de roupas, são indicadou quando fada chuva, ura do corpo
usar roupas a
de Vestuário
ra cartilha
de todos
ra esta pesq
ais aparece
a, horário, in
ínio das m
ão todas aqueos diagramado
e a diagram
s por Luiz S
ação e uma
se ABAFE. a "gaffe", no adas, use RO
PERATURA
s impede a pdas nos tempofaz calor. As pois dificul
o.
adequadas ao
(1949). Fonte
do SNES a
os conse
quisa é acom
em no abece
nspiração, j
oscas é me
elas à esquerdores de livros
mação da car
Sá (figura 2
frase que re
frio, vestir "OUPAS ADEA.
perda de calos frios e nãcapas de borltam a eva
o clima e à te
e: Coleção J.
analisada ch
elhos higiê
mpanhar os
edário: águ
janelas, leit
edida partic
da e páginas í.
rtilha. Nas p
26). Na pág
esume a "di
"brancura". EQUADAS
lor do corpoão há motivorracha só dev
aporação do
emperatura.
A. Buhrer.
hama-se AB
nicos disc
temas que
a, banho, c
te, moscas
cularmente
ímpares são a
páginas pare
gina ímpar,
ca":
o. As roupaspara usá-las
vem ser usadsuor e au
BC e Saúde
iplinadores.
se sucedem
lima, dente
(“no comba
útil”), nari
aquelas à dire
80
es20, versos
um título,
s de lã, por s nos climas das para nos umentam a
e (1949). É
. O mais
m conforme
es, exames,
ate à febre
iz, ouvido,
eita do leitor,
81
peso, quarto, raios X, sol, trabalho, útil (“procure unir o útil ao agradável,
enfeitando e enriquecendo os pratos com verduras e legumes frescos”),
vestimenta, xaropes (“faça uso constante de alimentação capaz de fortalecer o
sangue e não tome conhecimento de medicamentos apregoados como tônicos e
fortificantes”) e zelo.
Outra cartilha que, décadas depois, também se ocupou de um leque de
hábitos e comportamentos é O câncer e seus fatores de risco: doenças que a
educação pode evitar (1998). Não se trata de uma história; sua forma é de um
discurso ao leitor. A argumentação, que se apoia em base científica (foi delineada
pela equipe de doutores do Instituto Nacional do Câncer), é toda ilustrada com
cartuns que funcionam, muitas vezes, como metáforas visuais do conceito que é
explicado no texto adjacente. Os autores adotam, na tessitura da obra, uma
simulação do estilo publicitário, com uma sucessão de chamadas, argumentação e
frases conclusivas formando uma “estrutura circular” (CARRASCOZA, 1999,
p.32) em que o fecho remete ao início. Os autores usaram tentativas de slogans21 e
muitas figuras de linguagem, e devem ter feito isso conscientemente, para
competir com as mensagens publicitárias que, na época, ainda circulavam para
vender cigarros22.
Em relação às cartilhas de saúde mais antigas, há menos condenação dos
vícios e menos emoção envolvida. Não há personagens com os quais o leitor se
identifica ou de quem se compadece. Aqui a retórica é mais forte no princípio de
logos, ou seja, nos silogismos. No entanto, as imagens ganham o papel de
incentivar a autocorreção disciplinadora. Nos cartuns sugere-se que passa
vergonha quem não civilizar seus comportamentos e não adotar os hábitos
saudáveis. Por exemplo, em relação ao tabagismo, a imagem de um mico que
fuma vários cigarros enquanto assiste, “vidrado”, a uma propaganda em que King
Kong fuma um cigarro no alto do prédio Empire State (figura 27). A mensagem
que se infere do cartum é que fumar é “coisa” de “macaco de imitação”. Em
outras palavras, que o hábito de fumar não é decisão autônoma, mas influência do
meio. Outro exemplo: um homem está sentado à mesa de refeições, comendo um
21 Frase criativa e concisa que pode ser associada a um produto ou serviço anunciado de modo a ser facilmente lembrado pelo consumidor (NEIVA, E. 2013, p.511). 22 O Governo Federal proibiu a propaganda de cigarros e todos os derivados de tabaco apenas no ano 2000, conforme notícia da eHealth Latin America disponível em http://www.boasaude.com.br/noticias/2127/brasil-governo-proibe-propaganda-de-fumo.html Acesso em: 16 out 2015.
prato
abob
morr
FiguraFonte
texto
p. 42
cartil
deleg
alien
indiv
FiguraFonte
o feito com
bado, com u
rer pela boc
a 27. Página de: Coleção pró
As imag
os persuasiv
2). Uma im
lha, como m
gacia de p
nígena como
víduos de re
a 28. Página de: Coleção pró
alimentos
um anzol pre
ca”.
de O Câncer eópria.
gens também
vos e, natur
magem most
monstros al
olícia (figu
o causa ex
esponsabilid
de O Câncer eópria.
não saudáv
eso à boca.
e seus fatores
m entram n
almente, do
tra os fatore
lienígenas p
ura 28). É
xterna dos p
dade.
e seus fatores
veis, e olha
A “chamad
de risco (1997
na função da
o texto publ
es de risco
posando pa
recorrente
problemas
de risco (1997
para o leit
da” da págin
7) sobre a pro
a criação de
licitário (CA
, que são o
ara a foto d
o uso da
sociais, com
7) sobre a list
tor, com exp
na é “cuidad
paganda de ci
e inimigos,
ARRASCO
o assunto pr
de reconhec
imagem d
mo que ise
ta de fatores d
82
xpressão de
do pra não
igarros.
típica dos
OZA, 1999,
rincipal da
cimento na
do invasor
entando os
de risco..
83
Como, nessa cartilha sobre câncer, o discurso lógico-científico é muito
importante (relacionado à organização promotora, o INCA, que é responsável por
atendimento e pesquisa), foi publicado um apêndice após o discurso principal da
cartilha, detalhando, com vocabulário mais difícil e dados adicionais, os mesmos
temas abordados anteriormente. Isso também denota que a instituição médica se
apresenta claramente na cartilha, colaborando inclusive com o princípio de
credibilidade (ethos) demandado pela arte da retórica.
O estudo das cartilhas de saúde mostra que nem sempre a narração
ficcional é a fórmula utilizada pelos autores. Mais uma cartilha que não conta uma
história, mas sim apresenta um discurso direto ao leitor é O melhor lugar (2006),
de Ziraldo. A fórmula de texto apresentada é a simulação de um diálogo entre o
narrador e os personagens, os quais representam os potenciais leitores (seu
público-alvo são moradores de pequenas cidades e vilas rurais). O título faz
alusão à qualidade de vida do meio rural. A mensagem é simples: deve-se
descartar adequadamente o lixo e os restos orgânicos, o que demanda instalações
sanitárias que podem ser reivindicadas ao Governo, com o financiamento da
Fundação Nacional de Saúde (Funasa). O ponto central do discurso é a
explicação, em gráfico, de como usar a instalação de banheiro que a Funasa faz na
zona rural. Nesse ponto, o leitor deve entender que o título é ambíguo e quer
dizer, também, que cada coisa tem seu “melhor lugar” para ser descartada, e que,
portanto, devemos separar lixo e água. A cartilha abre com a pergunta feita para a
personagem dona de casa: “pra onde vão os restos de comida?” (ver figura 29).
Mais adiante, o narrador pergunta também “e qual é o melhor lugar? O rio?” ao
que o personagem desenhado abaixo, que é um peixe (falante) responde “Não!” e,
finalmente, o narrador faz a primeira afirmação, a qual é um conselho de higiene:
“só jogue no rio o que o peixe pode comer” (frase com figura de linguagem, à
moda dos publicitários). A ela se segue, ao virar da página, outra frase de efeito:
“rio que recebe lixo vira monstro, mata e morre”. A afirmação foi ilustrada com
o cenário de destruição de um rio, assistido por um senhor e um menino, com
roupas que os caricaturam como habitantes de uma vila rural. A expressão
corporal e facial dos bonecos é de contrição e respeito ao “morto”.
FiguraFonte
admo
estru
cartil
civili
“dive
um b
rural
que
gente
mesm
a 29. Páginas e: Coleção pró
Assim s
oestações,
utura dialoga
Parece d
lha colabora
izadora com
ertidos”. Po
banheiro ad
l comenta (e
a gente es
e!” (ver figu
mo argumen
de O melhor ópria.
segue o tex
sempre com
al; simula a
desnecessár
am no proce
mparece, as
or exemplo:
dequado, um
em balões d
stava acostu
ura 30). Ne
nto da vergo
lugar (2006).
xto, de perg
m palavras
a interação c
rio apontar
esso civiliza
ssim como
: no trecho
m casal cuj
do tipo histó
umada a fa
esse aspecto
onha que é c
Exemplo de e
rgunta em p
s simples,
com o leitor
r novament
ador. O recu
em outras
em que se
ujas roupas
ória em qua
fazer no ma
o, concluímo
comum nas
estrutura dialo
pergunta, g
do cotidian
r.
te como a
urso à vergo
cartilhas, n
apresenta e
caricaturam
adrinhos): “
ato!”, “Silê
os que em 2
cartilhas so
ogal do texto.
gerando afi
no. É um
as recomen
onha como
nos cartuns
e se defend
m habitante
“Que beleza
êncio! Estã
2006 ainda s
obre vermin
84
irmações e
texto com
ndações da
motivação
s “leves” e
de o uso de
es da zona
a! E pensar
ão lendo a
se tentou o
nose.
FiguraFonte
do sa
na vi
“Pas
FUN
grand
pequ
gritan
da in
coca
assun
nível
a res
propo
mani
pouc
descr
a 30. Páginas e: Coleção pró
Nesta ca
aber científi
ila. A ideia
sse a ideia
NASA e faze
de de pesso
uena, sauda
ndo em uní
Uma sol
nstituição di
ína e inala
nto. O nom
l de informa
sponsabilida
osta expres
ipulada) pa
cas ilustraçõ
rever todas:
de O melhor ópria.
artilha, por s
fico ou méd
a de que é p
pra frente,
er as obras
oas frente a
ando o leito
ssono “ago
lução semel
ireto para o
antes (2010
e da série já
ação do leit
ade da Secr
ssa pelos au
ara permitir
ões e cada
:
lugar (2006) r
suposta opç
dico. A histó
preciso prop
, junte a co
que vão b
a um cenár
or, com ex
ora este luga
lhante, de e
o leitor foi u
0). Faz pa
á faz imagin
tor sobre os
etaria Nacio
utores, na in
r boas esco
uma delas
representando
ção dos auto
ória termina
pagar a me
omunidade,
beneficiar a
rio que cari
xpressões co
ar está fican
escrever a c
usada em D
arte de um
nar que o pr
s assuntos d
onal de Pol
ntrodução,
olhas do pú
s se refere
o o esquema d
ores, não se
a num tom
nsagem é d
, fale pra p
a todos”. A
icatura uma
orporais e
ndo bom!!!
cartilha na f
Drogas: car
ma coleção:
ropósito dos
da série (que
lítica sobre
é dar infor
úblico. Com
a uma se
e um banheiro
e explora a
positivo, d
desenvolvid
prefeitura p
imagem é
a vila rural
faciais de
”.
forma de um
rtilha sobre
Série por
s autores é m
e são drogas
Drogas - SE
mação melh
mo essa ca
ção do tex
85
o.
autoridade
de melhoria
da no final:
procurar a
um grupo
ou cidade
felicidade,
m discurso
e maconha,
dentro do
melhorar o
s em geral,
ENAD). A
lhor (e não
artilha tem
xto, vamos
86
1) Um jovem com expressão de embriaguez anda numa corda bamba, mal
se equilibrando. O mesmo desenho foi usado para ilustrar a capa. Supomos que os
autores o escolheram porque chama a atenção, é cômico, e talvez porque seja um
bom substituto metafórico da mensagem, uma vez que andar na corda bamba pode
simbolizar a dificuldade de se equilibrar pelo caminho do meio, aquele sem
excessos, preconizado pela medicina higienista.
2) Um jovem de pé, com a mão no queixo, expressão que indica dúvida ou
meditação, olha para o chão, onde há o desenho de três setas amarelas, uma para
cada direção. Supomos que é a ilustração para a ideia de escolhas de rumo, que
exigem ponderação consciente.
3) O globo terrestre, antropomorfizado (com rosto e braços), “puxa fumo”
de um cigarro de maconha, a julgar pela expressão de deleite do planeta. Isso se
refere à seção que trata das estatísticas globais de uso de drogas.
4) Um grupo de quatro pessoas, reunidas, de pé, fuma cigarros de
maconha, a julgar pela expressão facial e pelo gesto de como segurar o cigarro. É
um grupo heterogêneo com predominância de jovens alternativos. A julgar pelas
roupas representadas, são: um jovem do hip hop, uma moça hippie, um rapaz do
reggae e um homem meio careca, de camisa social e gravata. O desenho se refere
à seção sobre a maconha.
5) Um homem de idade indefinida pilota uma motocicleta enquanto fuma
um cigarro de maconha. A ilustração se refere ao trecho da cartilha que fala do
risco de operar máquinas e veículos sob efeito de maconha.
6) Um homem de idade indefinida cheira cocaína por um canudo de cima
de uma pequena mesa. A expressão facial é de olhos arregalados. A ilustração se
refere à seção da cartilha sobre cocaína.
7) Um rapaz com expressão de medo, com os olhos arregalados, suando,
agita muito os braços e pernas, enquanto seu coração, batendo “TUM, TUM,
TUM” parece que vai literalmente pular para fora do peito. O rapaz apalpa o peito
como quem sente o desconforto da palpitação. A ilustração se refere às reações
físicas ao uso da cocaína.
8) Uma moça, sentada sobre um caixote e observada por um cachorro
sentado a seu lado (o cão mostra expressão de preocupação ou apreensão), acende
com um isqueiro uma pedra de crack e fuma num cachimbinho. Sua expressão
facial é de alienação, olhos vidrados no horizonte e sinais de tontura ou
desor
crack
pano
expre
deseq
que
solve
FiguraFonte
posiç
espre
reflet
estud
afirm
a lin
elem
puram
sensa
rientação (e
k e merla.
9) Uma
os supostam
essões são d
quilibrados,
estão fazen
entes e inala
a 31. Página de: SENAD - G
10) Uma
ção de ioga
emidos, que
tir antes de
O texto d
dante secun
mações. Pro
nguagem do
mentos de p
mente em lo
ações pode
estrelinhas s
moça e um
mente molha
de prazer, a
, a julgar pe
ndo uma po
antes.
de Drogas: maGoverno Feder
a moça de
a e sua ex
eixo elevado
escolher.
da cartilha
darista. Apr
cura mante
o cotidiano,
pathos, fug
ogos. Procu
em ser praz
sobre a cab
m rapaz, de
ados com a
a ponto de e
elas estrelin
ose deseng
aconha, cocaíral.
malha e c
xpressão é
o). A ilustra
da SENAD
resenta mui
r objetivida
não usand
gindo a sus
ura o equilíb
zerosas par
eça). Essa i
e pé, segur
substância
explodir em
nhas sobre a
gonçada. A
ína e inalantes
calça de gin
de regozijo
ação se refe
D utiliza ling
itos dados e
ade, não tom
do figuras d
scitar emoç
brio do cent
ra algumas
ilustração s
ram frascos
dos frascos
m risadas, e
a cabeça e pe
ilustração
s (2010).
nástica, sob
o (sorriso l
ere à seção f
guagem ace
estatísticos p
mando parti
de linguagem
ções. Aqui
tro, como no
s pessoas e
e refere à s
de “loló”
s (ver figura
estão desor
elo tremor d
se refere à
bre um tape
largo, olhos
final da cart
essível para
para fundam
ido, não mi
m, não exp
a retórica
o trecho “T
e desagradá
87
seção sobre
e cheiram
a 31). Suas
rientados e
das pernas,
à seção de
etinho, faz
s fechados
tilha, sobre
o nível de
mentar suas
imetizando
plorando os
se baseia
Todas essas
áveis para
88
outras” e “Algumas pessoas, ao usarem maconha, sentem-se relaxadas, falam
bastante, riem à toa. Outras sentem-se ansiosas, amedrontadas e confusas”.
Os autores enfatizam que as informações da cartilha são mais confiáveis
do que as que circulam entre os jovens: “Todas as informações apresentadas
nesta cartilha têm fundamento em pesquisas e estudos científicos e podem nos
ajudar a refletir sobre os nossos comportamentos e a avaliar os riscos a eles
associados. Ter liberdade não significa poder fazer aquilo que queremos, a
qualquer hora, mas ter consciência dos efeitos e consequências de nossos atos
para poder tomar decisões responsáveis”. O esforço de “informar” sem
“persuadir” a qualquer direção foi tão grande que tivemos que procurar mais
fundo para testar a hipótese de que toda cartilha colabora com o processo
civilizador. Encontramos a argumentação da vergonha onde costuma estar: nas
ilustrações. Todos os personagens retratados nos desenhos passam por ridículos,
enquanto usam drogas. A mensagem que inferimos das ilustrações é de que quem
usa drogas pode até se divertir, mas vai também ser objeto de diversão de outros.
Além disso, nos parece que é apresentado o mesmo raciocínio visto na cartilha
Cuidados..., sobre os riscos do excesso de maquiagem e a virtude do meio termo.
No raciocínio médico, o que prejudica são os excessos. Conhecer corretamente o
hábito de consumo (de maquiagem, de vestimenta ou de uso de drogas) é o que
permite a liberdade de uso. Assim, a cartilha das drogas, que apresenta
objetivamente todas as informações sobre nomes, origem, efeitos e estatísticas dos
principais produtos, se assemelha a um manual de etiqueta tanto quanto as outras
cartilhas. A mensagem é: não faça como os ignorantes; aprenda o autocontrole e
evite os excessos; siga a etiqueta com disciplina para poder usufruir de sua
liberdade.
Nessa cartilha há forte presença institucional. No início há vários textos de
apresentação e, no final da cartilha, há links e contatos para o leitor mandar
perguntas, tais como links para as associações de Alcoólicos Anônimos,
Narcóticos Anônimos, pastorais, etc. Também há sugestões de livros e de filmes
adequados para se esclarecer sobre o tema, o que é significativo. A educação
familiar e a educação escolar não são as únicas práticas que estão envolvidas no
processo civilizador; a circulação de mensagens midiáticas (anúncios
publicitários, matérias jornalísticas) e de obras artísticas (romances, canções,
filmes, histórias em quadrinhos, etc.) também tem seu papel na difusão dos
mode
trans
‘méd
que é
de m
entre
Segu
uma
apare
para
Costa
desre
como
análi
cartu
FigurapersonFonte
elos de co
sformações
dia’ manife
é produzida
modernização
Assim co
e os educa
undo Fouca
civilização
elhos de pr
se interrog
a (2004, p
egrado foi o
o causa do
ise da carti
unista Migue
a 32. Página dnagens.
e: Ministério d
omportamen
da cultura
sta nos fol
a segundo o
o da socied
omo o vício
dores (leig
ault (2013a,
o tão voltad
rodução e d
gar com tant
p.187) afirm
objeto de um
os mais div
ilha O Gatã
el Paiva.
de De homem p
da Saúde.
nto. Confor
a francesa
hetins, notí
o mercado e
ade [...]” (O
o em droga
os e religi
p. 172), u
a, por outro
de destruiçã
ta ansiedad
ma que en
ma atenção
versos male
ão e seus a
pra homem (2
rme pesqu
no século
ícias divers
e aos pouco
ORTIZ, 199
as, o sexo te
iosos), gov
um dia não
o lado, para
ão tenha ac
de sobre o q
ntre os mé
o desmedida
es”. Assim,
amigos: de
2010) com o e
uisa de Re
XIX, trata
sas, moda,
os “articula-
1, p.40-41)
em sido um
vernantes e
conseguire
a o desenvo
chado temp
que é do se
édicos do s
a” e que “a
, deve ser
e homem pr
encerramento
enato Ortiz
a-se de “um
publicidade
-se assim ao
.
a preocupaç
médicos h
emos entend
olvimento d
o e infinita
xo...”. Juran
século XIX
masturbaçã
muito sign
ra homem (
do diálogo do
89
z sobre as
ma cultura
e, cinema”
ao processo
ção capital
higienistas.
der “como
de imensos
a paciência
andir Freire
X “o sexo
ão era tida
nificativa a
(2010), do
os
90
A cartilha aborda temas de educação sexual para homens adultos, em
forma de história em quadrinhos, com duas partes. Na primeira parte, três homens,
reunidos numa mesa de bar (ver figura 32), conversam sobre a vida e, num certo
ponto da conversa, descobrem que todos estão mentindo sobre as próprias vidas
sexuais, e que todos têm problemas: impotência, reação contra o uso da camisinha
e medo das mulheres "modernas". Conversando, os personagens concluem que
vão melhorar se começarem a ouvir suas mulheres e a conversar sobre sexo. Na
conclusão, reencontram suas parceiras e, desta vez, o sexo acontece muito
satisfatoriamente. Na segunda parte, o personagem Gatão interrompe a narração e
passa a conversar com o leitor, quando aborda cada problema e sugere mudanças
de mentalidade para resolvê-las. Segundo o autor, Miguel Paiva, entrevistado para
esta pesquisa, “as estatísticas começaram a apontar um quadro bastante
preocupante na relação do homem com a sexualidade e com o cuidado médico,
com a saúde, até com a própria relação com a mulher” e que os motivos do
Ministério da Saúde eram a alta de incidência de AIDS entre homens de meia
idade e a falta de hábito de visitar os médicos entre os homens em geral.
O que há de "lúdico" na obra é o prazer proporcionado pela leitura da
história, uma representação de situações do cotidiano com que o leitor se
identifica ou onde se projeta. E as cenas da história são inusitadas: homens “se
abrindo” sobre sexo e cenas plausíveis de sexo com personagens não-idealizados,
falíveis. Além disso, o personagem sair da história para se dirigir ao leitor é um
pouco inusitado e pode ter efeito cômico.
Nesta cartilha quase não há discurso científico. A instituição (Ministério
da Saúde) também é muito discreta; só aparece como assinatura nos créditos da
obra. Do ponto de vista da retórica, o autor aposta mais em pathos. É uma
educação civilizadora, com certeza. A preocupação maior é o cultivo de hábitos
mais adequados para a vida sexual de um homem contemporâneo, com o
abandono dos preconceitos pouco esclarecidos. Nas palavras de Miguel Paiva,
“era a questão do poder masculino questionado, que sempre foi inabalável, que
não podia entrar em julgamento jamais. Isso tinha que partir do próprio homem,
essa atitude de se questionar”. Segundo Roberto da Matta, na tradição brasileira,
“ser homem” era mostrar-se como “masculino” e “macho” em todos os
momentos, praticando (ou suportando) uma “eterna vigilância das emoções, dos
91
gestos e do próprio corpo” (DAMATTA, 2010, p.138), o que leva à maioria dos
homens, até hoje, terem dificuldade em falar de fraquezas.
Os textos do personagem Gatão são a “voz da razão” falando ao público-
alvo da cartilha, como nos exemplos:
a) Temos medo de ir ao médico e pior, não fazemos exames. O de próstata, porque tem que levar dedada e o de HIV porque achamos que nunca vamos pegar AIDS. Puro preconceito. Se cuidar é fundamental. [...] b) Os homens acham que não podem se sentir fracos, ter sentimentos. [...] c) Tá certo que a vida tá difícil, mas o sexo deve ser bom para o homem e para a mulher. Hoje em dia tudo deve ser conversado e dividido com a parceira, inclusive a casa e os filhos. Assim sobra mais tempo para se divertir mais e curtir mais um ao outro. A cartilha do Gatão, portanto, em que pese ser patrocinada pelo Ministério
da Saúde, e ter sido suscitada por índices de saúde pública, no fundo, trata da
educação dos homens para terem desenvoltura num mundo em que não é mais tão
simples para uma pessoa nascida com sexo masculino seguir um modelo de
comportamento socialmente estabelecido. A mensagem da cartilha parece ser: é
preciso que todo cidadão saiba que existe – nos termos de Da Matta – “uma
problemática dimensão relacional” que é preciso “compreender e aquilatar”. Que
“Podia-se ter um belo falo e estar com uma bela mulher e, mesmo assim, não
funcionar”; que “Mais importante do que ter o aparato sexual masculino, era saber
relacionar-se” e que “relacionar-se era ser capaz de ouvir e sentir os movimentos
do corpo exatamente como fazem as mulheres que, em geral, aprendem a medir e
a pesar suas emoções e reações” (DAMATTA, 2010, p.149-150).
Feita a exploração interpretativa dessas 12 obras de dois recortes
históricos, podem ser traçadas algumas conclusões sobre o significado da
produção de cartilhas.
2.4. As melhores intenções
Partimos do princípio que as cartilhas de saúde devem ter sido feitas com a
intenção de educar o público geral de maneira que os índices de notificações de
doença caiam, ou que a qualidade de vida da população melhore. É isso que
92
manifestam as pessoas que produzem as cartilhas, conforme as entrevistas feitas e
os textos de apresentação das cartilhas. Conforme S., gerente de produto,
[...] o nosso objetivo é traduzir para o paciente todo o conceito que está sendo trabalhado junto aos médicos, conscientizar sobre o que ele pode fazer para contribuir com o meio ambiente e ações pessoais como limpar o nariz, que é outra coisa que ele pode fazer, para compensar os problemas ambientais com os quais a gente convive.
Paulo Lustosa, presidente da Funasa, apresentou sua cartilha assim:
Esta cartilha que você está recebendo agora, produzida pela Funasa, retrata de forma lúdica e bastante acessível a importância do saneamento básico e do tratamento da água para a preservação da saúde e a consequente melhoria da qualidade de vida para as populações das comunidades indígenas, ribeirinhas, quilombolas e rurais.
Marcos F. Morais, diretor do INCA, escreveu que a cartilha sobre câncer
[...] faz parte de um conjunto de materiais elaborado, especialmente, para informar e subsidiar os educadores dentro do programa Prevenção do Tabagismo e de outros fatores de risco nas escolas, que faz parte das ações de prevenção de câncer desenvolvidas pelo INCA.
Kátia V. Bloch, epidemiologista, disse sobre a cartilha Eu amo ERICA:
A gente precisava levar essa informação de uma forma ágil, atrativa... A ideia foi essa: fazer um material que, de imediato, captasse a atenção de quem fosse ler, quer fosse o diretor da escola, o secretário de educação, os pais e o próprio aluno. Também temos de partir do princípio de que muitas pessoas, alertadas
pelos conselhos e informações das cartilhas, tenham se prevenido e evitado
agravos à própria saúde ou de seus próximos e familiares. Neste caso, tanto as
cartilhas com discursos mais autoritários quanto as mais libertárias devem ter tido
algum sucesso. Mas o fato é que ninguém espera que uma cartilha melhore
significativamente os índices de saúde ou mude substancialmente os hábitos de
higiene, em larga escala, ou numa proporção grande entre as pessoas que leram.
As cartilhas não são feitas para substituir o trabalho dos profissionais de saúde,
nem dos educadores, nem dos fiscais do Estado. A conjectura é que elas são feitas
para documentar uma tomada de atitude na direção de fazer avançar e se expandir
o processo civilizador.
O que se interpreta aqui, a partir de todos os indícios do material analisado
é que a pregação, por exemplo, do combate às condições que propiciam pegar
verminoses, ou pegar dengue, ou pegar tuberculose, ou pegar AIDS, ou
desenvolver câncer, essa pregação é, também, contra os comportamentos
apontados como incivilizados. Em que pese que haja casos deprimentes de
93
verminose e mortes por dengue, as autoridades e os comunicadores, ao focar nesse
tipo de problema de saúde e não em outros, quando escrevem cartilhas, trabalham
com a noção de que esses problemas são exemplares para convencer as pessoas a
se comportarem dentro de padrões mais “higiênicos” e “civilizados”. Quando as
cartilhas retratavam Jeca Tatu ou o menino Dito, não estavam honestamente a
serviço de evitar o sofrimento de pessoas reais naquela condição, porque a maioria
dos habitantes da zona rural não eram jecas-tatus, e a zona rural tinha qualidade
de vida provavelmente melhor do que a cidade. Quem fazia as cartilhas estava
usando o exemplo das estatísticas e dos casos extremos para persuadir o público a
adotar hábitos e comportamentos rotulados como higiênicos, ou morais, ou
esclarecidos, ou modernos, dependendo de sua formação ideológica. Elas
documentam uma maneira de pensar – ideologia, se preferir – ligada a instituições
e ligada a momentos históricos. A medicina social, cujo nascimento Foucault
relaciona ao estabelecimento do Estado moderno e do sistema capitalista, tinha
como objetivos urbanizar as cidades que recebiam massas de operários vindos do
campo, gerir o risco de epidemias que essa concentração de gente trazia e, por
fim, garantir a produtividade do operariado. Nesse contexto, surgem as ações de
vacinação obrigatória, o registro e a estatística dos casos médicos e a demolição
de habitações insalubres 23(FOUCAULT, 1990).
Mais recentemente, o saber médico é instrumentalizado para
responsabilizar os indivíduos pelo seu bem-estar, produtividade e sucesso na
trajetória de vida. É o “imperativo da saúde” que rege o estabelecimento de
medidas e modelos corporais (discriminatórios e determinado pelas relações de
poder), o ensino de técnicas de autocontrole e construção individual do corpo
(controle do peso, capacidade aeróbica, equilíbrio postural, por exemplo) e a
associação entre o acometimento de doenças típicas das sociedades urbanizadas
(doenças cardíacas, diabetes e câncer, por exemplo) e a falha do indivíduo em
trocar seus comportamentos “de risco” por comportamentos mais “esclarecidos”
(LUPTON, 1995).
Em resumo, o combate a doenças gera bons pretextos para dar origem a
cartilhas e “civilizar” um pouco mais fundo e um pouco mais longe. Quando uma
23 Ações que, no Brasil, na virada do século XIX para XX, conhecemos como os casos da “Revolta da Vacina” e do “Bota abaixo” de moradias populares como o cortiço Cabeça de Porco (CHALHOUB, 2006).
94
organização pública ou privada detecta que ainda há indivíduos “incivilizados”
sob sua jurisdição, ela provavelmente recorre à fórmula que está estabelecida há
séculos como modelo para uma peça de comunicação civilizadora: a cartilha.
Assim, pelo menos, tenta contribuir para a construção do indivíduo segundo
padrões que favoreçam o poder das mesmas organizações. Para Foucault, o
indivíduo não é um elemento preexistente sobre a qual o poder pesa; é, antes, um
efeito do poder: “Na verdade, o poder produz; ele produz realidade; produz
campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se
pode ter se originam nessa produção” (FOUCAULT, 2014, p. 183).
Isso, no entanto, não é entendido desse modo pelos autores e
patrocinadores de cartilhas. Todos os que se manifestam sobre o assunto dizem
que a cartilha, desde que seja ética, é importante para levar informação e
conscientizar mais pessoas, ou seja, apenas difunde conhecimento:
a) Também estamos indo no tom ético: “Sou uma marca que se preocupa com a educação e a conscientização” (S., Gerente de produto). b) É uma zona de discussão entre comunicação e educação. Você é jornalista, você sabe, o jornalista diz “eu informo, não estou aqui pra educar ninguém”. Mas informação é educação; educação no seu sentido mais amplo. É você pegar essa informação, passar essa informação e idealmente passar uma informação que permita à pessoa formar seu juízo (Claudius, cartunista). c) Educar é informar. De qualquer maneira, acho que nós podemos deixar plantado na cabeça do leitor, sobretudo do mais jovem, da criança, deixar informações que vão ficar pra toda vida e podem ajudar em algum momento da vida. Principalmente sobre comportamento (Maurício de Sousa, cartunista). d) E eu acho que a [cartilha] bem feita é aquela que não se impõe; nem se antecipa nem se impõe, aquela que facilita a comunicação, entendeu? Isso é o primeiro aspecto. É aquela em que o desenho de humor se coloca a serviço da informação. Ele não tá carregando a informação, ele tá contribuindo com a informação, seja simplificando ou dando um novo ponto de vista gráfico, visual, pra uma ideia (Miguel Paiva, cartunista). Manifestam também a crença de que, para levar informação a mais
pessoas, é preciso que a publicação seja “leve” ou “lúdica”, conforme os trechos:
e) Esta série, construída com base nas necessidades expressas por múltiplos setores da população e em conhecimentos científicos atualizados, procura apresentar as questões de forma leve, informal e interativa com os leitores (SENAD). f) Papo-Cabeça nasceu no estilo gibi por acreditarmos que o formato de história em quadrinhos tem grande apelo junto ao público juvenil e por entendermos que, assim, seria mais fácil tratar de um assunto tão árido para um segmento tão jovem (Joana Silva, autora de cartilha).
95
g) A gente tem uns manuais e uns guias de intervenção e comportamento, que são verdadeiros guias de conhecimento a respeito do autismo, que são mais densos, são leituras menos lúdicas, mas extremamente explicativos para os pais, professores, os profissionais da área... (Paula Bauducci, diretora de ONG)
A menção à importância de a leitura de uma cartilha ser “leve”, “fácil”,
“informal” ou “lúdica” sugere que há a confusão ou, pelo menos, a junção de duas
noções sobre comunicação: a de que uma forma atraente mantém o público atento
à mensagem; e a de que uma forma com linguagem simples mantém a mensagem
acessível a mais gente. O papel da ilustração “leve” ou cômica, segundo os
autores e patrocinadores de cartilhas, é atrair o leitor e auxiliá-lo no entendimento
da mensagem, mas observamos que o “desenho de humor” tem o papel muito
evidente também de provocar a vergonha, sem chocar o leitor. O recurso à
vergonha é usual na educação disciplinadora. Nas palavras do cartunista Miguel
Paiva, sobre a cartilha sobre a sexualidade masculina, a leveza é papel do
desenhista, e um papel difícil:
E a grande dificuldade que eu me lembro era de sintetizar essas questões. [...] e depois, na hora de fazer a história, como fazer pra que não soe nem como imposição, nem como submissão, nem que dê, ou deixe o cara com vergonha, nem enfraqueça a imagem dele como homem, mas ao mesmo tempo reforce... Gente! É uma dificuldade... Outro significado importante que pudemos apreender da análise do
material é que publicar uma cartilha é a expressão de um desejo ou de um plano
de propagação de suas crenças. Isso é evidenciado pelos trechos de cartilhas em
que se toca no assunto e a multiplicação ou propagação da mensagem é sugerida
ou demandada do leitor. A diretora da ONG Autismo e Realidade aborda esse
desejo na entrevista: “A gente está esperando que isso vire um exponencial, que
multiplique mesmo para o resto do Brasil”. O presidente da Funasa, em texto de
apresentação de uma cartilha, prega: “Estamos fazendo a nossa parte. Faça a sua,
colaborando na divulgação dos conhecimentos que trazemos aqui para que um
número cada vez maior de pessoas seja beneficiado”.
A produção de cartilhas da área da saúde pode ser, portanto, interpretada
como um concerto de organizações sociais, artistas e comunicadores estendendo o
processo civilizador com base num modelo relativamente constante ao longo do
tempo. Durante a análise, surgiram também questões sobre o aprendizado da
cidadania, que já foi apontada como tema preferencial entre todas as cartilhas.
96
Isso mostra como tais categorias temáticas têm fronteiras difusas. No capítulo
seguinte interpreta-se um conjunto de cartilhas sobre produtos e serviços, o que
certamente corrobora a tese dessa intercessão de fronteiras.
97
3. As cartilhas e a pedagogia do consumo
Quando estudamos publicações categorizadas como cartilhas sobre
consumo, estamos tratando de uma produção muito significativa, apesar de não
encontrarmos tantas cartilhas sobre consumo quantas cartilhas sobre direitos e
cidadania na amostra coletada. De fato, “o consumo é sistema de valores central
na vida cotidiana” e não deve ser encarado como “superficialidade sujeita a toda
sorte de críticas políticas, estéticas, morais” mas sim como um “fato social” que
“assume posição proeminente como estruturador de valores e práticas que
regulam relações sociais, definem mapas culturais e constroem identidades”
(ROCHA, 2006b, pág.16).
Circula no pensamento, portanto, uma falsa oposição entre a manifestação
da cidadania e dos hábitos de consumo, em que, para se ter uma, deve-se evitar os
outros. Os objetos de consumo portam mensagens de grande relevância:
[...] as necessidades não são sociais no sentido simples de serem “influências sociais”, “pressões sociais” ou processos de “socialização” por meio dos quais a “sociedade molda o indivíduo”. A questão básica é diferente. Quando digo “preciso de uma coisa”, estou fazendo no mínimo duas declarações profundamente sociais: em primeiro lugar, estou dizendo que “preciso disso” para ter um certo tipo de vida, certos tipos de relações com os outros (ter esse tipo de família, por exemplo), ser um tipo de pessoa, realizar certas ações ou atingir certos objetivos. [...] Em segundo lugar, dizer que “Eu (ou nós - meu grupo social, minha comunidade, minha classe) preciso de alguma coisa” é fazer uma declaração sobre os recursos sociais, reivindicar um direito (SLATER, 2002, p. 12-13). Ser um fato social também não contradiz a constatação de que o consumo
é terreno de desenvolvimento do individualismo. Segundo Colin Campbell, a
prática do consumo ganha até mesmo importância existencial na vida dos
indivíduos contemporâneos, resolvendo, em vez de exacerbando, a “crise de
identidade” em que eles estão mergulhados (CAMPBELL, 2006). E o aprendizado
de novos hábitos de consumo coincide com o aprendizado de como ser um
indivíduo “moderno” e como viver nas grandes cidades, símbolos das
transformações culturais, sociais e econômicas deslanchadas no século XIX. Para
suportar a “intensificação da vida nervosa” e as “coações” vividas nas grandes
cidades, o habitante urbano se defende e reage com o “entendimento” em vez do
“ânimo”, ou seja, cultiva seu conhecimento e distancia-se intelectualmente de
tudo (SIMMEL, 2005 [1903], p.578). A pedagogia do consumo moderno e a
98
entrada de milhares na “nova era de compras” foi obra conjunta da literatura, da
imprensa e dos empreendedores dos grandes magazines, como Gordon Selfridge,
que concebeu o prédio de sua loja em Londres como uma “catedral do consumo”,
um polo de encontro social, uma alternativa para a mulher burguesa sair de casa e
uma escola na prática de flanar pelas vitrines e imaginar prazeres proporcionados
por novos produtos (RAPPAPORT, 2004, p.157-183). Com base nessas
constatações, é mais que justificado o estudo da categoria “consumo” entre todas
as que foram classificadas no material coletado.
No entanto, a escolha do corpus de análise segundo o modelo de cartilhas
antigas contra cartilhas contemporâneas, adotado no capítulo 1, revelou-se pouco
cômodo para o estudo das cartilhas de consumo. Embora haja materiais muito
significativos sobre a pedagogia do consumidor, desde o final do século XIX, tais
como os catálogos de produtos dos grandes magazines (Harrod’s, Bon Marché e
Sears24, por exemplo), os anúncios das revistas ilustradas (Careta, Fon-fon e
Revista da Semana, por exemplo) e as obras literárias (O Paraíso das Damas, de
Emile Zola, por exemplo25), não foi possível recolher muitas cartilhas anteriores a
1970 que apresentassem temas de consumo.
Se os materiais impressos de propaganda e marketing, tais como catálogos,
anúncios, embalagens e displays são feitos com a intenção primeira de promover
vendas, as cartilhas com temas de consumo conjugam essa necessidade prática
com o propósito educativo ou civilizador. Se o material publicitário é de
responsabilidade das empresas e apresenta todo e qualquer produto, as cartilhas de
consumo costumam ser apresentadas por organizações sem fins lucrativos (como
associações, sindicatos de empresas e órgãos públicos reguladores da atividade
econômica) e seus temas costumam se restringir àqueles em que se imagina que
possa ser associado algum interesse social.
24 O catálogo do magazine norte-americano Sears, Roebuck and Co, assim como os dos magazines britânicos, servia para os habitantes abastados da zona rural fazer encomendas, e era escrito de maneira didática pelo próprio fundador da loja, Richard Warren Sears. Era preciso educar o consumidor rural na utilidade dos novos produtos, no “modo moderno” de fazer as coisas e na ética das compras por correspondência. A publicação, distribuída gratuitamente, fazia-se passar por algo não-comercial, “parecia existir para o entretenimento, a edificação e a fantasia” (KELLER, 2004, p. 185-213). Tais publicações não cumprem as condições para serem consideradas cartilhas no âmbito desta pesquisa, mas são muito próximas a cartilhas. 25 Através do estudo do romance “Au bonheur des dames” de Émile Zola, pode ser compreendido como os grandes magazines surgem em Paris como “catedrais do comércio moderno” e têm papel na pedagogia do consumo (ROCHA, FRID & CORBO, 2014),
novo
na c
oport
agên
(prod
publi
empr
direit
etc.),
direit
cartil
cartil
no en
foram
quatr
FiguraFonte
O que fo
o padrão das
construção c
tunidades d
ncias de pub
dutos orgân
icadas por e
reendedora
tos do cons
, o assunto
tos, devend
lhas e com
lhas sobre p
ntanto, exist
Para pro
m escolhido
ro são mais
Eis o cor
A) Carti
a1) Reco
a 33. Capa de e: Facsímile. C
oi encontrad
s tomadas e
civil, sistem
de negócio
blicidade, s
nicos, refri
empresas co
imobiliária
umidor (car
pode ser m
do ser estu
m outras ref
produtos e
te.
oceder a in
os oito título
recentes, p
rpus de anál
ilhas public
omendações
RecomendaçColeção J. A.
do: cartilha
elétricas, or
mas de con
(bolsa de v
erviços ban
igerantes, c
om o propós
a). Embora h
rtilhas da as
mais bem enq
udado atrav
ferências te
serviços e o
nterpretação
os. Quatro s
osteriores a
lise:
adas entre 1
s para a com
ões par a comBuhrer
s sobre nov
relhão, viag
nstrução ci
valores, mer
ncários, etc
café, leite,
sito de se ap
haja muitos
ssociação P
quadrado de
vés da anál
eóricas. A
os conteúdo
o do conjun
são mais ant
a 1998.
1945 e 1980
modidade do
modidade dos p
vas tecnolog
em aérea, p
vil, etc.); c
rcado imobi
.); e cartilh
maçãs). T
presentarem
s títulos pub
Proteste, car
entro da cat
lise de um
relação en
os sobre dir
nto de cart
tigos, anteri
0:
os passagei
passageiros (
gias (celular
produto para
cartilhas so
iliário, cont
has sobre al
Também há
m aos cliente
blicados em
tilhas dos P
tegoria de c
diferente
tre os cont
reitos do co
tilhas sobre
iores aos an
iros (1945)
1945)
99
ar banda B,
a vedações
obre novas
tratação de
limentação
á cartilhas
es (banco e
m torno dos
PROCONs,
cidadania e
corpus de
teúdos das
onsumidor,
e consumo
nos 1980, e
voo e
para
Figura
servi
1960
com
Autor: n
Publicad
O texto
e explica os
o conforto
a2) Banc
a 33. Capa de
Autor: N
Publicad
20 págin
Breve re
iços que mo
0 e quais os
cartuns.
ão identific
da pela Pana
adverte os
s procedime
do passagei
cos? Todos
Bancos? Tod
Não identific
da pelo Banc
nas
elato histór
odernizaram
novos prod
ado
air do Brasil
novos viaj
entos obriga
iro.
eram iguais
dos eram iguai
cado
co do Comé
rico sobre o
m o serviço
dutos financ
l S.A.
antes aéreo
atórios, dem
s (1970)
is (1970). Fon
ércio e Indú
o setor fin
o bancário n
ceiros dispo
os sobre o q
monstrando
nte: Coleção
ústria de São
anceiro. Ex
no Brasil n
oníveis para
que vão en
também o
própria
o Paulo S. A
xposição de
no final da
a os clientes
100
ncontrar no
que é feito
A.
e todos os
década de
s. Ilustrada
Figura
como
capac
São P
a3) Volti
a 34. Capa de
Autor: M
Publicad
24 págin
Formato
o se produz
cidade da C
Paulo.
inho e a turm
Voltinho (197
Maurício de
da pelas Cen
nas
de revista
z e se distri
CESP, com
ma da Môn
75) por Maurí
Sousa
ntrais Elétric
em quadrin
ibui a energ
construção
nica (1975)
ício de Sousa.
cas de São P
nhos, destin
gia elétrica
o de novas u
Fonte: Coleç
Paulo S. A.
nada ao púb
e expõe o p
usinas hidre
ção própria
(CESP)
blico infant
plano de ex
elétricas no
101
til. Explica
xpansão da
o Estado de
Figura
super
quali
a4) O lei
a 35. Capa de
Autor: M
Publicad
16 págin
Formato
rioridade d
idade neces
ite B (1977)
O leite B (19
Maurício de
da pela Asso
nas
de revista
do leite tip
sário para c
)
77) por Maurí
Sousa
ociação Bra
em quadrin
o B em re
certificar o p
ício de Sousa
asileira dos P
nhos, destina
elação ao t
produtor de
. Fonte: Cole
Produtores
ada ao públ
tipo C, exp
leite B.
ção própria
de Leite B
lico infantil
pondo o c
102
l. Explica a
controle de
Figura
usar
Figura
B) Carti
b1) Man
a 36. Capa do
Autor: Z
Publicad
24 págin
Dicas de
a tecnologi
b2) Com
a 37. Capa de
ilhas public
ual de Etiqu
o Manual de et
Ziraldo
da pela BCP
nas
e como se
a do telefon
mo se faz? (1
Como se faz?
adas entre 1
ueta para u
tiqueta para u
P Telecomun
comportar
ne celular da
1999)
? (1999). Font
1998 e 2010
usuários de
usuários de ce
nicações
em diversa
a Banda B.
te: coleção pró
0:
celular (199
elular (1998).
as situações
ópria.
98)
Fonte: Coleç
s da vida so
103
ção própria.
ocial, para
Distr
o pr
alum
Figura
(PRO
como
como
Autor: M
Publicad
36 págin
Formato
ribuída nas
rocesso ind
mínio.
b3) A Tu
a 38. Capa de
Autor: M
Publicad
OCEL)
20 págin
Formato
o se produz
o controlar
Mig
da pela Asso
nas
de revis
visitas a fáb
dustrial de
urma da Mô
A Turma da M
Maurício de
da pelo Pro
nas
de revista
z e se distrib
o consumo
ociação dos
ta em qu
bricas de C
envasament
ônica e a En
Mônica e a en
Sousa
ograma Nac
em quadrin
bui a energi
de energia.
Fabricante
uadrinhos,
Coca-Cola, n
nto de refri
nergia Elétr
nergia elétrica
cional de C
nhos, destin
ia elétrica e
s de Coca-C
destinada
narra a orig
igerante em
rica (2001)
a (2001). Font
Conservação
nada ao púb
e dá conselh
Cola
ao público
gem da marc
m garrafas
te: coleção pró
o de Energ
blico infant
hos de segu
104
o infantil.
rca e expõe
e latas de
ópria
gia Elétrica
til. Explica
urança e de
Figura
(MA
suas
do pr
3.1. Nece
simil
de é
princ
prese
o en
entre
O lei
b4) O olh
a 39. Capa de
Autor: Z
Publicad
APA)
36 págin
Explica
vantagens,
roduto.
essidades
A descr
lar à das ca
épocas dis
cipalmente
ença maior
caixe no qu
e os títulos
ite B e O olh
ho do consu
O olho do co
Ziraldo
do pelo M
nas
o que cara
e como o c
s e luxos
rição/interpr
artilhas sobr
stantes rec
o uso dos r
ou menor d
uadro geral
e eles foram
ho do consu
umidor (200
onsumidor (20
Ministério d
acteriza um
consumidor
retação das
re saúde. A
eberam po
recursos de
das instituiç
l do proces
m interpreta
umidor.
09)
009) de Ziraldo
da Agricultu
produto ec
r pode ident
s publicaçõ
As diferença
ouco peso.
retórica, a
ções no disc
sso civilizad
ados aos pa
o. Fonte: cole
ura, Pecuá
cológico ou
tificá-lo por
ões acima
as já espera
. As obse
representaç
curso, tom “
dor. Foram
ares. Uma d
ção própria.
ria e Aba
u orgânico,
r meio da c
foi feita d
adas entre p
ervações fo
ção do con
“lúdico” da
encontrada
dessas relaçõ
105
astecimento
quais são
certificação
de maneira
publicações
focalizaram
nsumidor, a
narrativa e
as relações
ões é entre
106
O leite B (1977) se destaca de todas as outras cartilhas feitas por Maurício
de Sousa porque não apresenta a popular Turma da Mônica como protagonista.
Em vez disso, a história se desenrola a partir do diálogo de dois personagens
infantis criados somente para a cartilha, Márcia e Ary. Os dois amigos se
encontram numa padaria; Márcia pede ao atendente “dois litros de leite", o
atendente pergunta “Leite B ou leite C?” e a menina responde “tanto faz”, ao que
o menino Ary protesta: “você não sabe que tem muita diferença entre o leite B e o
leite C?"26.
A partir daí o menino vai contar como descobriu que o leite B é “mais
forte”, “puro, puro”, por não ter parte da gordura subtraída como acontece com o
leite C. Nesse momento da narração é feito um flashback27 em que se mostra
como Ary, visitando a fazenda do amigo Xandico, nas férias, conheceu a
produção de leite B. Detalhadamente se explica que, para produzir leite B, o
fazendeiro precisa cumprir normas superiores de higiene e obter um certificado
oficial. Utiliza-se o recurso retórico da comparação entre o bom e o mau, o certo e
o errado. No sítio do menino Xandico, as vacas são “sem raça definida”, magras,
convivem com sujeira e ficam tentadas a fugir para a fazenda vizinha, pois o
capim do outro lado da cerca é mais gostoso. Os meninos vão procurar uma vaca
fujona e entram na “Fazenda Leite Bom”, do “Seu Mendonça”, que “cuida da
terra” para seu pasto ficar mais viçoso. O Seu Mendonça aparece e se incumbe de
explicar aos dois meninos, Ary e Xandico, um da cidade e outro da roça, que, na
sua fazenda, planta “capim napier” de “boa qualidade” e dá “ração
concentrada” para as vacas, todas “da raça holandesa”; e que as instalações, a
higiene e o regime de trabalho estão “de acordo com as exigências da lei”. Afinal,
“há outros cuidados muito importantes que não devem ser esquecidos,
principalmente para os produtores de leite B como eu”, diz o fazendeiro.
Após conhecerem os testes que o laboratório da usina de leite faz com o
produto recebido dos fazendeiros, atestando o tipo B, Xandico diz “puxa, Seu
26 Há três tipos de leite: A, B e C. Essa classificação é dada pelo Ministério da Agricultura (Instrução Normativa 51 de 2002) e trata-se, no fundo, de uma classificação de produtores de leite, que são ranqueados de acordo com suas instalações de ordenha e armazenamento do leite cru. Na verdade, é possível existir leite tipo C mais nutritivo do que um leite B mas, se tal produtor não tem ordenha mecânica, por exemplo, ganha apenas a classificação C. Fonte: Associação Brasileira dos Produtores de Leite em http://www.leitebrasil.org.br/legislacao.htm Acesso em: 16 out. 2015. 27 Recurso de técnica narrativa em que se narra cenas que se passaram anteriormente à cena de introdução.
107
Mendonça, depois disso tudo que eu vi, tenho até vergonha de trazer aquele leite
lá do meu curral aqui para a usina” e que “pensando bem, eu acho que até posso
convencer o pai a ter todos esses cuidados de limpeza, saúde e qualidade... E
futuramente eu posso até ter um gado de raça, como o seu... e me tornar produtor
de leite B como o senhor!”. Nesse trecho ficam patentes duas características das
narrativas típicas das cartilhas: a vergonha como motivador da mudança de
comportamento da rusticidade em direção à higiene civilizada; e o empenho na
difusão ou multiplicação do conhecimento de uma pessoa instruída para outras,
que “ainda não estão esclarecidas”. No fim da história, a narração volta à cena
introdutória, na padaria, e a menina Márcia decide mudar sua compra, de um saco
de leite de cada tipo para dois sacos de leite B.
Sabendo que o leite B é um produto mais caro, e que, à primeira vista, não
difere do leite C, é necessário que a menina Márcia aprenda a dar mais valor ao
leite B a ponto de optar por comprá-lo. A cartilha, a princípio, não está fazendo
nada mais do que qualquer outra peça de propaganda, pois:
O fluxo constante de serviços, produtos e bens a que somos submetidos é fundamentalmente categorizado para nós pela publicidade. Muitos deles não fariam sequer sentido se não lhes fosse colada uma informação publicitária (ROCHA, 2006a, p. 26). Colar uma informação publicitária e dar sentido ao produto “leite B” é
transferir significados do “mundo culturalmente constituído” para o produto e,
segundo Grant McCracken, o trabalho do publicitário é justamente criar narrativas
em que as qualidades alegadas do produto ganhem similaridade com “categorias”
e “princípios” culturais: “Quando essa equivalência simbólica é estabelecida com
sucesso, o espectador/leitor atribui ao bem de consumo determinadas propriedades
que sabe existirem no mundo culturalmente constituído” (McCRACKEN, 2007,
p.104). O significado cultural, em seguida, pela prática dos “rituais” do consumo,
transita do produto para o indivíduo consumidor. Assim, temos que a personagem
Márcia, ao optar pelo leite tipo B, está, no fundo, decidindo associar a si mesma
os mesmos valores alegados do produto: limpeza, pureza, força, integralidade,
padrão de qualidade atestado, modernidade (tecnologia mecanizada), entre outros
e, enfim, uma certificação de "classe" superior. Numa visão geral:
Se o significado cultural tiver sido transferido, os consumidores podem usar os bens como marcadores de tempo, espaço e ocasião. Os consumidores exploram a capacidade desses bens de discriminar entre categorias culturais como classe, status, gênero, idade, ocupação e estilo de vida (McCRACKEN, 2007, p.109).
108
A cartilha do Leite B é comparável a O olho do consumidor (2009), onde
também se aborda o assunto de uma nova certificação para produtos alimentícios:
o selo de produto orgânico28. O paralelo se dá porque, novamente, a legislação
surge para disciplinar a produção agrícola e as autoridades se voltam para a outra
ponta da relação, ou seja, o consumidor. O consumidor também deve ser
disciplinado para exercer um poder e uma função social: fiscalizar a qualidade dos
produtos. Disciplina-se também para que o leitor faça adesão a uma relação
produtor-consumidor mais civilizada, para não dizer outros termos que carregam
juízo de valor, como “moralizada”, “evoluída” e “sofisticada”. Um trecho da
cartilha evidencia isso: “Quem escolhe comprar produtos orgânicos faz isso para
manter sua saúde, para preservar o meio ambiente e para ajudar outras pessoas,
principalmente pequenos produtores rurais, a ter melhor qualidade de vida”.
Assim, a cartilha preconiza que o consumidor assuma um novo papel, ou que seu
papel social ganhe novas atribuições mais civilizadas. Ele é educado a fazer
opções políticas, pois sua opção de compra apoiará um modelo de produção que
se contrapõe ao modelo agroindustrial não-sustentável que é mais difundido e
comercializado. O argumento é que o consumidor normalmente já “vê tudo”: “vê
se é fresco, se é durável, se rende”, mas para ver se um produto é orgânico – já
que a aparência não difere – o consumidor precisa aprender uma novidade: precisa
aprender a entender a certificação dos produtores. O olho do consumidor foi
publicada para esclarecer consumidores e pequenos produtores sobre a entrada em
vigor do “selo Sisorg”, o selo oficial de produto orgânico, em 2009.
28 Segundo a cartilha do MAPA, produtos orgânicos são produtos alimentícios produzidos de maneira sustentável, normalmente por pequenos agricultores, que preservam a variedade de cultivares regionais, preservam a fertilidade do solo, cumprem os direitos trabalhistas, não plantam transgênicos, não usam agrotóxicos e contaminantes tóxicos. Por esse motivo, não podem nem ser armazenados e transportados junto a produtos não-orgânicos. A comercialização pode ser direta ao consumidor, mas deve sempre ser certificada pelas autoridades.
FiguraparágrFonte
leitor
bem-
exata
persp
sendo
confu
color
pergu
que e
está
argum
relaç
selo
moda
porce
most
a 40. Páginas rafos de texto
e: coleção pró
Essa cart
r, pontuado
-humorados
amente com
pectiva dos
o uma cart
funde com a
ridas, cartun
untar dúvid
ele se ident
com dúvid
mentos rac
ção à grande
oficial e g
alidade “di
entagens, d
trar até que
de O olho do o e seus comenópria.
tilha foi esc
o por ilustr
s ao texto
mo foi vist
s recursos r
tilha com p
a autoridade
nescas, em
das ao narra
tifique com
das (ver fi
ionais: a e
e agricultur
ganhar apen
reto do pro
desenhado e
ponto um
consumidor (ntários ilustrad
crita na form
rações cart
o e simula
to na carti
retóricos, n
presença ofi
e governam
que figuras
ador, quebra
os persona
igura 40).
enumeração
ra comercia
nas o “dipl
odutor ao c
em forma d
produto com
(2009) exibinddos.
ma de um d
tunescas de
ando um
ilha O mel
nesta cartilh
ficial do MA
mental. O pa
s de person
ando a exp
agens como
O princípi
das qualid
al; como tam
loma” que
consumidor
de fatias de
mposto (co
do uma estrutu
discurso do
e Ziraldo, t
caráter dia
lhor lugar,
ha o princíp
APA. O em
athos é busc
nagens inter
ectativa do
o mais uma
io de logo
dades da pr
mbém a dif
autoriza a
r”. Até um
pão, const
omo um pão
ura dialogal en
narrador dir
trazendo co
alógico do
, já mencio
pio de etho
missor do d
cado pelas
rrompem o
leitor e faz
pessoa "co
os é a exp
rodução or
ferença entr
vender em
gráfico nu
ta dessa car
o, por exem
109
ntre os
reto para o
omentários
discurso,
onada. Da
os é forte,
discurso se
ilustrações
texto para
zendo com
omum" que
posição de
rgânica em
re ganhar o
m feiras da
umérico de
rtilha, para
mplo), pode
110
ser categorizado como orgânico, em relação à proporção de seus ingredientes
orgânicos e não-orgânicos.
Ainda que seja evidente o propósito que essas cartilhas têm de informar
seus leitores de um assunto de interesse público, em benefício da saúde dos
próprios, também é importante entender que elas narram processos em que a
prática do consumo se confunde com rituais sociais. Conforme a obra de Mary
Douglas e Baron Isherwood, em vez de vislumbrar uma oposição entre consumo
de bens necessários (tais como alimentos) e bens de luxo, devemos encarar todos
os bens de consumo como “marcadores” de categorias de classificação social,
como meios de comunicar relações sociais encobertas; como “a ponta visível do
iceberg que é o processo social como um todo” (DOUGLAS e ISHERWOOD,
2013, p. 121). A necessidade de marcadores advém do fato de que é complexo o
modo como se imprimem significados sobre as relações sociais; os significados
fluem e se alteram com o contexto social e com a “bagagem” cultural dos
interlocutores. Assim, objetos materiais, como os bens de consumo, são úteis para
fixar significados, por meio de rituais. Os rituais servem para fixar publicamente
os significados. Rituais marcam a transformação social de uma categoria para
outra (de criança para adulto, por exemplo, ou de solteiro para casado); eles
podem ser rituais apenas verbais, desaparecerem no vento; ou podem ser
marcados por objetos materiais, até mesmo porque estes têm valor material
fixado:
Rituais mais eficazes usam coisas materiais, e podemos supor que, quanto mais custosa a pompa ritual, tanto mais forte a intenção de fixar os significados. Os bens, nessa perspectiva, são acessórios rituais; o consumo é um processo ritual cuja função primária é dar sentido ao fluxo incompleto dos acontecimentos (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2013p. 110). O sentido “dado” por meio de rituais de consumo (no caso das cartilhas
analisadas, o ritual de posse, quando o consumidor pesa argumentos e opta pelo
leite B ou pelos alimentos orgânicos, tomando uma decisão que muda seus hábitos
“daí pra frente”), depende de quais valores foram transferidos para o produto. Não
são valores intrínsecos. “Os bens são dotados de valor pela concordância dos
outros consumidores” (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2013, p. 121), ou seja, é
preciso que mais consumidores concordem com o valor (ou significado social) do
leite B para que todo aquele que pedir leite B na padaria faça, com esse ato de
consumo, uma marcação social. Isso reforça o apelo para a propagação da
111
mensagem de educação para o consumo. Cada leitor da cartilha, caso seja
convertido ao novo hábito, tenderá a ser um multiplicador da mensagem da
cartilha, pois não vale a pena ser um consumidor de leite B num meio social que
ignora as qualidades desse padrão. O mesmo vale para o exemplo dos produtos
orgânicos. De nada vale comprar produtos mais civilizados se, aparentemente,
eles forem indistinguíveis dos produtos comuns. Há de se divulgar a diferença no
nosso círculo social.
3.2. Abrindo uma conta e um refrigerante no século XXI
A análise de duas outras cartilhas, separadas entre si por trinta anos,
acrescenta evidências à conjectura de que as cartilhas sobre consumo fazem mais
do que informar e mais do que vender. De fato, elas concorrem no processo de
comunicar valores culturalmente estabelecidos entre a sociedade, os bens de
consumo e os indivíduos consumidores. Esta é a análise de Bancos? Todos eram
iguais (1970) e de Como se faz? (1999).
Bancos? Todos eram iguais, que é peça publicitária do extinto Banco do
Commercio e Industria de S. Paulo (Comind), tem uma das estruturas usuais entre
as cartilhas: divisão do assunto em tópicos desenvolvidos, um por página, com um
título (ou pergunta), um parágrafo de texto e uma ilustração de estilo cartunesco,
sempre com uma gag (piada gráfica).
A argumentação se desenvolve com duas ideias que conduzem o texto. A
primeira é a de progresso ao longo do tempo. Uma evidência disso: a imagem da
capa, em que um homem vestido de astronauta (desenho colorido) se destaca num
conjunto de homens de chapéu, bigode, paletó e gravata (desenho somente em
traço). O homem-astronauta, que representa o futuro, é o banco anunciante, e os
outros homens representam os outros bancos, aqueles que eram iguais e
continuam iguais. O personagem do astronauta é muito significativo no momento
de publicação da cartilha, lembrando que o ser humano pisou na Lua pela primeira
vez em 1969.
Outra evidência da presença do princípio cultural da evolução no tempo: a
cartilha começa com uma sucinta história do dinheiro e dos bancos (páginas 1 e 2)
e insere nela a fundação do Banco do Commercio e Industria de São Paulo,
conte
segui
“cres
cham
dos s
dinhe
conta
expli
em s
banc
proce
Figurailustra
ao co
servi
propa
banc
emporânea
ida já relata
sceu” e “m
ma a atençã
serviços: “a
eiro - o BC
as de luz,
icar a um cl
seguida, rea
os-padrão:
essamento d
a 41. Página dação faz ao tex
A outra
oncentrar, n
iços que an
aganda acen
o não mais
dos evento
a os desenv
multiplicou-
ão para o p
além das tra
CI cuida de
telefone”. E
liente que a
afirma-se a
“foi um do
de dados. C
de Bancos? Toxto. Fonte: co
ideia condu
na mesma
ntes eram d
na para um
como os an
os da Procla
volvimentos
-se” em di
rogresso re
adicionais f
e câmbio, e
Essa cartilh
agência ba
a modernida
os primeiro
Computador
odos eram iguoleção própria
utora é que
agência, so
dispersos em
m novo comp
ntigos, que p
amação da
mais recen
iversos ram
epresentado
funções de
efetua paga
ha é de um
ancária serve
ade do ban
os bancos a
res já são ro
uais (1970) exa.
o banco rea
ob o coman
m diferente
portamento
precisavam
República
ntes do banc
mos dos ne
pelo aume
um banco -
amentos, re
m tempo qu
e para paga
nco em rela
a se equipa
otina no BC
xibindo uma re
alizou uma
ndo do mes
s empresas
do cliente,
m dele apena
(página 3).
co; argumen
gócios fina
ento da com
- receber e
cebe impos
ue ainda se
r a conta de
ação “aos o
ar com um
CI, faz tempo
eferência côm
"revolução
mo gerente
do mesmo
que vai à a
as para fazer
112
. Logo em
nta que ele
anceiros; e
mplexidade
emprestar
stos, taxas,
e precisava
e luz. Logo
outros”, os
centro de
o”.
mica que a
bancária"
e, todos os
o grupo. A
agência do
r depósitos
113
ou contrair empréstimos, mas agora vai se suprir de uma grande variedade de
serviços financeiros. Numa ilustração eloquente (ver figura 41), faz-se a metáfora
visual dessa ideia, com um homem, representando o cliente, passando pela
gôndola de um supermercado, empurrando carrinho, e pegando da prateleira um
dos variados “produtos bancários”, na forma de enlatados: letras de câmbio, letras
imobiliárias, seguros, fundos fiscais, fundos de investimento, ações: “tudo que se
referir a dinheiro, no sentido mais amplo, o cliente resolve num endereço só: a
agência mais próxima do BCI”.
Mais adiante, argumenta-se que, antigamente, o gerente servia cafezinho;
agora, ele ainda serve cafezinho, mas trata de tantos produtos bancários que se
tornou um verdadeiro “conselheiro de negócios”. A partir daí a cartilha vai
enumerando e detalhando os novos produtos financeiros, para que o cliente
conheça e saiba as condições de contratação. Tais serviços produzem “benefícios
para todos”. As letras de câmbio, por exemplo, são explicadas assim: “É uma
forma inteligente de obter recursos da população para financiar as vendas em
massa. O primeiro contrato de financiamento direto ao consumidor realizado no
Brasil foi assinado pela COMIND”. A imagem final é mais uma alegoria de
progresso futurístico: um astronauta apresenta seu cartão bancário num caixa em
outro planeta e é atendido por um solícito ET verde de quatro braços. O título do
tópico é “abra uma conta no século XXI”.
A cartilha convida o leitor, um cliente em potencial (mesmo que já seja um
correntista, é potencial cliente de novos produtos), a “ser o primeiro”, a
acompanhar o progresso e, mais do que ser moderno, viver o futuro. Para tal, o
leitor precisa mudar de comportamento (visitar a agência para tudo, conversar
com o gerente sobre investimentos) e conhecer as novas regras da “etiqueta”
bancária, inclusive começar a se apresentar com o cartão identificador de
correntista, novidade na época (ainda não era um cartão magnético).
De mesmo modo, na cartilha Como se faz?, os fabricantes de Coca-Cola
também apresentam para os consumidores em potencial seus processos internos.
Eles abrem a fábrica de refrigerantes para visitação com a intenção de apresentar
valores que os consumidores podem associar ao produto e, através do ritual de
consumo, associar também a si mesmos. Esses valores, numa visão geral, são de
limpeza, qualidade-padrão, tecnologia, escala (operação de grandes proporções),
segurança e confiança. Diferentemente da cartilha do banco, esta assume o
114
formato de revista de história em quadrinhos com passatempos e se destina ao
público infantil. Ela apresenta duas histórias. A primeira história narra a visita de
uma turma de escola, com sua professora, a uma fábrica do refrigerante Coca-
Cola. Existe, de fato, um programa de visitas de turmas a fábricas de refrigerante,
como ação de relações públicas, a fim de esclarecer dúvidas e combater conceitos
negativos sobre o consumo de refrigerante (por exemplo, o alto índice calórico
para um baixo valor nutricional e a desconfiança sobre a higiene na fabricação do
refrigerante). A cartilha era distribuída nas mesmas ocasiões de visita29. Não
apresenta personagens conhecidos, diferentemente das cartilhas de Maurício de
Sousa. A história faz alusão ao filme A fantástica fábrica de chocolate (1971,
refilmado em 2005), quando crianças são agraciadas com o convite para entrar na
misteriosa fábrica do Sr. Wonka e conhecer como ele produz os doces e
chocolates que agradam tanto às crianças. Alude também ao mistério que se
cultiva até hoje sobre a “fórmula da Coca-Cola” (esses esclarecimentos são dados
de primeira mão, porque a criação dessa cartilha ficou a cargo deste pesquisador,
há 15 anos).
Na segunda história, a narração é feita “em primeira pessoa”: o
personagem que narra é uma latinha de refrigerante, ou seja, o vaso em que o
refrigerante será despejado para ser vendido. A figura da lata é antropomorfizada
(tem um rosto desenhado na lata para representar emoções). Essa lata, depois de
consumida, é jogada numa lixeira, mas, surpreendentemente, de acordo com o
roteiro, ganha nova vida, numa fábrica de reciclagem de alumínio. É uma forma
indireta de aconselhar a separação das latas para reciclagem, que é uma mensagem
civilizadora recorrente em cartilhas sobre consumo e sustentabilidade.
Se, de um lado, a cartilha aproxima o leitor da fábrica, dissipando tanto
mistérios quanto preconceitos, de outro lado, ela apresenta uma visão
extremamente impessoal do processo fabril. Quase tudo é feito mecanicamente,
apenas com supervisão humana no controle de qualidade e manutenção. De fato,
praticamente não são representados os operários nas cenas dos quadrinhos; apenas
as máquinas funcionando, as crianças de escola observando e o cicerone
29 As visitas a fábricas de Coca-Cola continuam. Hoje existe um site na internet chamado Fábrica de Felicidade, assinado pela própria Coca-Cola Company. Tem um desenho animado com toda a alegoria de máquinas fantásticas enchendo uma garrafa de Coca-Cola. O site convida a uma visita virtual ou o agendamento de visitas às fábricas. São visitas de aproximadamente duas horas, em grupos, não necessariamente turmas de escolares. E podem ser agendadas em diversas fábricas pelo Brasil. Disponível em: < https://www.fabricadafelicidade.com.br/>. Acesso: 19 out. 2015.
115
explicando os processos. O paradoxo entre a existência do produto na fábrica,
onde ele é fruto de um processo fabril impessoal, e a vida do produto como bem
de consumo, quando ele é investido de personalidade e humanidade, já foi
apontado por Everardo Rocha e exemplificado com a descrição de um anúncio de
TV da marca de um produto para misturar no leite, o Novomilk. No desenho
animado do anúncio, bonecos metálicos acionavam as máquinas que
transformavam matérias-primas naturais (morangos, bananas, etc.) em latas de pó
indiferenciadas, mas, no final do processo, um operário humanizado, de bigode,
artisticamente pintava um cuidadoso rótulo em cada lata, ritualizando o
nascimento de um produto com nome: Novomilk. Segundo Rocha, o pensamento
do publicitário faz uma correspondência “mágica” entre as séries de produtos do
mundo da produção e as séries de bens de consumo do mundo cultural. A
produção é representada como “coisa de máquinas”, mas...
"[...] produtos seriados, impessoais e anônimos deverão ser consumidos por seres humanos particulares. [...] O domínio da produção evidencia a ausência do humano, ao passo que o consumo é onde a sua presença é uma constante. Há um claro contraste. [...] A publicidade, como motor da compra, faz deste momento uma linguagem que cala o produto e fala do bem de consumo. O produto calado em sua história social se transforma num objeto imerso em fábulas e imagens". (ROCHA, 1995, p. 66-67)
Fábulas e imagens são exatamente o que se usa em histórias em
quadrinhos como as dessa cartilha, explorando as dimensões logos e pathos da
retórica. Logos, com os argumentos sobre o valor da qualidade industrial, a
modernidade das máquinas, o padrão das matérias-primas e a qualidade da
fórmula inventada por um homem de ciência30; pathos, com a humanização da
lata de alumínio, transformada no herói de uma história, e com as cenas das
diversas crianças da turma de escola, com suas perguntas e seus palpites
fantasiosos sobre como acham que se faz a Coca-Cola (“eu acho que a Coca-Cola
vem de uma chuva que só cai uma vez por ano, no dia da Coca-Cola!”, diz uma
delas). Nessas cenas, fica patente que o refrigerante é conhecido por todas,
inclusive por uma das crianças que diz não gostar dele, cuja função na história é
se convencer, no final, que pode começar a beber Coca-Cola.
30 Segundo a Coca-Cola Company, seu refrigerante foi inventado por um médico e farmacêutico do Estado da Geórgia, EUA, chamado John S. Pemberton, em 1886. Fonte: https://www.cocacolabrasil.com.br/coca-cola-brasil/historia-da-marca/ . Acesso: 19 out. 2015.
116
Essa parece ser a representação exemplar de um ritual de consumo sendo
inconscientemente realizado. Segundo McCracken, numa versão em pequena
escala do mecanismo da criação publicitária, o consumidor associa suas próprias
qualidades simbólicas ao estoque de bens possuídos por ele. Pelo ritual de posse,
ele traz para seu mundo particular o bem de consumo que era do mundo externo:
“O ato de personalização é, na prática, uma tentativa de transferir significado do
mundo próprio do indivíduo para o bem recém-adquirido” e o estoque de bens
“assume um significado pessoal além do significado público” (McCRACKEN,
2007, p.109). Na trajetória da menina Amanda, na história da cartilha, ela começa
dizendo que, de fato, não gosta de Coca-Cola. Não se dá o motivo, mas é algum
tipo de receio, de rejeição. Pode-se inferir que o produto não “diz” coisas
positivas para a menina. Por duas vezes, nas páginas iniciais da história, a menina
afirma que não gosta de Coca-Cola. No decorrer da visita, no entanto, ela vai se
interessando pelo processo industrial, fazendo muitas perguntas, e parece que a
descoberta do lado oculto do produto, dos "bastidores" do "show", a visão de que
a produção é cuidadosa, técnica, racional e "moderna", tudo consegue transferir
significados positivos, da personalidade racional e cuidadosa da própria menina
para o refrigerante, tornando-o uma coisa “sua”, “de seu mundo” e, portanto, a
menina autoriza a si mesma consumir o refrigerante que antes rejeitava. Numa
cena, ela aparece pensando consigo mesma “nunca pensei que a Coca-Cola fosse
feita com tanto cuidado”. Sua última frase (e última da história) é “E eu aprendi...
a não ser cabeça-dura”, ou seja, ela mudou de opinião. Em resumo, foi
persuadida pela campanha de propaganda a fazer a opção de consumo. Se os
leitores, o público-alvo da cartilha, puderem se identificar com essa personagem,
projetando-se dentro da história, além de viverem a experiência real de visitar uma
fábrica de refrigerante, talvez mudem também sua atitude no sentido desejado
pela companhia.
A leitura das quatro cartilhas analisadas acima sugere como a publicação
de cartilhas sobre produtos e serviços ultrapassa a simples transmissão de
informações úteis; ela transfere significados e participa dos rituais manifestos
pelas práticas de consumo. Ainda falta ver como as cartilhas sobre consumo
tratam também da pedagogia dos novos hábitos de consumo, ou da educação dos
indivíduos nas boas maneiras necessárias para que ele seja integrado à
“modernidade”. Modernidade, aqui, se entende como uma fórmula abreviada para
117
denominar amplas transformações sociais, econômicas e culturais que se
estendem pelo mundo há pelo menos dois séculos e em que ainda estamos
mergulhados. Ela é caracterizada pelo questionamento de “todas as normas e
valores”; pelo “surgimento da racionalidade instrumental como a moldura
intelectual por meio da qual o mundo é percebido e construído”; pela sucessão de
mudanças tecnológicas; pelas rápidas mudanças sociais calcadas em
“industrialização, urbanização e crescimento populacional”; pela “saturação do
capitalismo avançado”; pela “explosão de uma cultura de consumo de massa” e,
ainda, pela experiência subjetiva de “choques físicos e perceptivos” que se tem no
ambiente urbano (SINGER, 2004, p. 95).
O estudo das quatro cartilhas seguintes, sem se opor às conclusões a que
chegamos até aqui, traz evidências de que essas publicações são importantes no
processo histórico descrito acima. São duas cartilhas sobre o consumo de energia
elétrica, uma sobre o uso do transporte aéreo e uma sobre o uso da telefonia
móvel.
3.3. Dominar a energia, controlar o consumo
Duas das cartilhas estudadas permitem uma comparação detalhada, pois
tratam do mesmo assunto, foram feitas pela mesma equipe de criação e apenas
representam épocas diferentes: Voltinho e a Turma da Mônica (1975) e A Turma
da Mônica e a Energia Elétrica (2001).
O consumo de energia, quer seja energia elétrica ou da queima de
combustíveis, é um dos assuntos que mais sugere cartilhas; não somente para
explicar os benefícios do produto, apoiar o investimento público na área e
conquistar ou formalizar novos consumidores, mas para disciplinar seu uso, no
sentido de ser um uso mais seguro e mais “econômico”, “racional” ou
“sustentável”. Nota-se que o conteúdo de todas as cartilhas sobre energia elétrica,
de várias origens, é muito semelhante31. A lição a ser dada é quase sempre a
mesma. Recorrentemente aparece uma lista de dicas de diminuição da conta de
energia: juntar roupas para passar todas de uma vez com o ferro elétrico; evitar
31 Entre as cartilhas coletadas na pesquisa, há outras muito similares no conteúdo, como Cespinho e Paulistinha melhorando a qualidade de vida (1978), da CESP e CPFL, e Conforto sem gastar muito: campanha do uso racional de energia elétrica (1984) da CPFL.
118
abrir a porta da geladeira; virar a chave do chuveiro elétrico para a posição verão;
abrir a janela para não precisar ligar as lâmpadas, entre outras. Também sempre
aparece a figura do “esbanjador”, aquele que toma banhos demorados, compra
lâmpadas erradas, deixa a TV ligada sem ninguém estar vendo, enfim, tem
comportamento reprovável, e é punido por gastar mais dinheiro na conta de luz.
Também aparece a lição de que, no Brasil, a energia elétrica quase toda é gerada
em usinas hidrelétricas, o que demanda grandes investimentos, dos quais os
cidadãos devem se orgulhar, e criam obras que batem recordes mundiais. Mas, por
isso mesmo, a energia elétrica abundante e disponível é uma conquista que deve
ser preservada e valorizada. Valorizada com o uso disciplinado: “Use bem essa
energia” é uma chamada na capa da cartilha A Turma da Mônica e a Energia
Elétrica.
O texto de apresentação de Voltinho, assinado pelo patrocinador (CESP)
na segunda página de capa, explicita tudo o que foi dito acima a respeito de
cartilhas e vale a pena ler na íntegra:
Esta revistinha pode ser considerada como um primeiro contato da CESP com o mundo infantil, tentando, apenas, despertar nele, entre crianças de 6 a 12 anos de idade, interesse inicial pelo assunto eletricidade. A CESP pretende editar, posteriormente, outras histórias com ensinamentos e informações sobre o fenômeno elétrico e a técnica mediante a qual o Homem o domina e dele se serve para o conforto de sua vida quotidiana. Com tal finalidade, nada melhor do que recorrer não só ao tipo de leitura preferido pela infância, porque a diverte – os quadrinhos – como, através dele, escolher personagens que já conquistaram a afeição da criançada, para a transmissão de sua mensagem. É por isso, apenas, que Mônica e seus companheiros estão aqui nesta historieta, visitando Ilha Solteira e conhecendo um pouquinho a CESP por dentro. Note-se que o patrocinador foca o público infantil do ensino fundamental,
que a cartilha é piloto de uma pretensa série que aprofunda o ensino do
“fenômeno elétrico”, e que é feita opção pelo formato de quadrinhos porque são
divertidos e também porque os personagens da turma da Mônica já são estimados
pelo público.
Na história Voltinho, usa-se o costumeiro recurso narrativo da “viagem
fantástica” para transmitir o conteúdo. Um ser fantástico, Voltinho, que representa
a corrente elétrica (apesar do nome) sai da tomada da casa do personagem
Cebolinha, encontra a turma de crianças e convida-os a conhecer in loco como é
gerada energia numa usina hidrelétrica. A viagem é mágica. Basta fechar os olhos
e Voltinho se encarrega de fazer a turma aparecer no lugar desejado. “Por
119
procuração” aos personagens, o leitor conhece, primeiro, uma usina (a origem da
energia) e, depois, as linhas de transmissão (o meio), para chegar às instalações de
um sítio, na zona rural, onde fica demonstrada a grande utilidade da ligação de
energia. Lembrando que essa cartilha é dos anos 1970, isso é uma grande
conquista. Voltinho diz “vejam: graças ao ‘linhão’ e suas ramificações, a zona
rural já tem energia elétrica. Nos sítios e fazendas, bombas elétricas irrigam as
plantações, puxam água dos poços, etc. Luz elétrica, rádio, televisão, geladeira...
Enfim, todo o conforto das grandes cidades...”.
A viagem continua e a turma testemunha o progresso. Ajudam na obra de
uma nova usina e na reparação de uma linha elétrica; visitam uma nova indústria,
consumidora de energia, e sua vila operária “com todos os benefícios da
eletricidade”; visitam uma cidade grande com um panorama de todos os usos
cotidianos de aparelhos elétricos. Aí entra a questão da segurança. Dá-se o
conselho veemente de não soltar pipas perto da rede elétrica (em outras cartilhas
ele se soma ao conselho de não atear fogo no mato próximo às redes de
transmissão). Na parte final da viagem, visitam a grande obra da época: o
complexo hidrelétrico de duas novas usinas, Ilha Solteira e Jupiá, no Rio Paraná.
Fala-se da grandeza da obra, que seria “o maior sistema hidrelétrico no
hemisfério sul do planeta”. As últimas páginas dessa cartilha são uma revisão dos
conhecimentos adquiridos, na forma de um teste escolar de completar frases. É
mais comum cobrar os conhecimentos das crianças que leram a cartilha por meio
de atividades de resolver joguinhos de palavras e desenhos, os populares
“passatempos”.
A cartilha do Voltinho, no entanto, em 1975, não falava de economizar
energia, conceito que passou a dominar as cartilhas logo na década de 1980. É
possível fazer uma boa comparação com uma publicação posterior com o mesmo
assunto e os mesmos personagens de quadrinhos: A Turma da Mônica e a Energia
Elétrica (2001).
O mesmo recurso ao personagem fantástico foi renovado aqui. Em vez de
Voltinho, o Elétron (representado por um rapaz de boné com um raio elétrico no
lugar das pernas) é que sai da tomada da casa da menina Mônica para responder à
pergunta das crianças: “eu queria saber de onde vem a energia elétrica”. O
personagem fantástico reduz Mônica, Cascão e Cebolinha ao seu tamanho e todos
entram pela tomada, voando na contramão dos outros elétrons que estão passando
120
no fio. Fazendo o “trajeto” contrário, vão compreendendo o sistema elétrico,
desde a distribuição ao consumidor até a usina hidrelétrica, passando pelas
estações e pelas linhas de transmissão. No início da história já se argumenta que,
hoje, todos pensam “como é duro ficar sem energia elétrica”. Após visitar a
usina, em vez de exaltar as grandes obras e o progresso, o discurso de Elétron se
diferencia do de Voltinho. O argumento é que gerar energia em usinas custa muito
para o meio ambiente e, portanto, em vez de construir mais e mais usinas, é
melhor poupar a energia que já está disponível. A sequência da cartilha é uma
história em que se prega “não seja um esbanjão!”. As crianças são ensinadas que
a potência dos aparelhos é medida em watts e a ideia é consumir menos watts. A
história tem mais de duas páginas de uma comparação par a par entre o
comportamento errado “Você é um esbanjão se...” e o comportamento certo
“Você usa certo a energia elétrica se...”. A última sequência da cartilha aponta
problemas de segurança na rede elétrica que o consumidor deve aprender a evitar.
Entre eles, usar os “benjamins”, atear fogo no mato perto de linhas de transmissão
e – não poderia faltar – nunca soltar pipa perto da rede elétrica.
A cartilha do Voltinho era de uma empresa estatal, a CESP. A mais nova é
geral, para todos os participantes do Programa Nacional de Conservação da
Energia Elétrica (PROCEL). Isso explica a diferença no briefing. Para o
PROCEL, o tema principal é o uso sustentável da energia, enquanto para a estatal
dos anos 1970 o tema principal era a propaganda das grandes obras da época.
Toda cartilha sobre energia elétrica ensina a olhar o medidor de luz, a fazer
manutenção das instalações, a escolher aparelhos pela potência exigida (o selo do
PROCEL nas geladeiras) e a temer/domar a corrente elétrica. Há uma relação
simbólica muito forte com ela. Está sempre disponível para trabalhar, mas é
invisível, podendo se tornar imprevisível. Quando acaba, não sabemos o que
fizemos para ela nos abandonar e nos angustiamos na espera que ela volte.
Descontrolada ou negligenciada, ela faz queimar e até mata. Foi necessária muita
disciplina para chegarmos nesse ponto e ainda precisamos nos disciplinar mais
para merecer tamanha vantagem. O consumidor de energia elétrica se acostumou
a dar a energia por natural e garantida, até o momento do apagão. O que a leitura
das cartilhas mostra é que o consumidor nem sempre usou a energia elétrica com
naturalidade, e ainda não está totalmente à vontade com ela. Quando uma
tecnologia é nova, a maioria dos consumidores tem que ser educada para adaptar
121
seu comportamento – inclusive disciplinando seu corpo e sua rotina – para usar tal
tecnologia com proveito e segurança.
3.4. Comportamento civilizado e consumo
Novas tecnologias, quando ficam disponíveis para a massificação
industrial, mais do que passageiras sucessões de modas, são novidades difíceis de
encaixar no sistema do consumo, pois tecnologias criam novos serviços e
produtos que precisam de mudanças comportamentais para serem usados, ou seja,
precisam que se alterem as práticas sociais no sentido de disciplinar ainda mais o
corpo humano. Com isso em mente, analisamos Recomendações para a
comodidade dos passageiros (1945), da Panair do Brasil e Manual de etiqueta
para usuários de celular (1998), da BCP Telecomunicações.
É de se levar em conta que “Pelo consumo, os objetos diferenciam-se
diferenciando, num mesmo gesto e por uma série de operações classificatórias, os
homens entre si” (ROCHA, 1995, p. 67). Voar de avião comercial, em 1945, ou
comprar um aparelho celular para sistema digital, em 1998, eram hábitos de
consumo que conferiam distinção ao consumidor e o marcavam positivamente
entre seus pares32. Eram, no entanto, práticas de consumo que deixavam de ser
inacessíveis à maioria da população brasileira. Segundo Bourdieu, esse é um
padrão facilmente observável na sociedade de classes:
Os gostos obedecem, assim, a uma espécie de lei de Engel generalizada: em cada nível da distribuição, o que é raro e constitui um luxo inacessível ou uma fantasia absurda para os ocupantes do nível anterior ou inferior, torna-se banal e comum, além de encontrar-se relegado na ordem do que é evidente pela aparição de novos consumos, mais raros e mais distintivos; isso, ainda uma vez, até mesmo fora de qualquer busca intencional da raridade distintiva e distinta (BOURDIEU, 2013, p.233) A dinâmica do deslocamento de um bem de consumo desde a categoria de
luxo até a de necessidade popular (e a substituição desse bem por outro bem de
luxo mais moderno) tem paralelo com a dinâmica da difusão de um hábito ou
forma de comportamento civilizado desde a sua expressão enquanto
comportamento da sociedade de corte até como obrigação cidadã. Esse paralelo 32 Distinção aqui definida a partir de Bourdieu (2013) no qual os gostos e preferências seriam responsáveis, mais do que as condições econômicas, pela posição do sujeito no espaço social, traduzindo-se por estilos de vida e de julgamentos estéticos.
122
não é fortuito: o processo civilizador atua difundindo formas de comportamento e
normas de conduta que se manifestam concretamente por meio de hábitos de
consumo. A interpretação das cartilhas citadas toma por base essa concepção.
Em relação à primeira cartilha analisada, é preciso contextualizar que a
Panair do Brasil foi uma companhia aérea que operou de 1930 a 1965, quando
sofreu uma súbita falência por decreto do Governo. Originalmente subsidiária da
Pan American Airlines, foi nacionalizada e, durante os anos 1940 e 1950, era a
principal empresa aérea brasileira, tanto levando a elite política e empresarial em
viagens intercontinentais quanto transportando remédios, médicos e feridos em
hidroaviões por toda a Bacia Amazônica. Segundo seus passageiros habituais, era
uma companhia que possuía glamour, rivalizava com as embaixadas no apoio aos
brasileiros que viajavam para a Europa e portava um padrão de qualidade
destacado, tanto no serviço de bordo quanto na manutenção técnica. Conforme
colocou o ex-piloto Comandante Orlando Marques da Silva, "além de ser do
Brasil no nome, era dos brasileiros no coração".
Nesse contexto, voar era, ao mesmo tempo, um grande privilégio e uma
grande aventura. O irmão do presidente da companhia lembra que “a saída de um
Constellation, que era uma vez por semana, era um acontecimento social. Saía a
lista de passageiros nos jornais: as pessoas que iam embarcar no Constellation
da Panair para a Europa”. Mas as aeromoças contam que as viagens eram
longuíssimas: o voo do Rio a Lisboa durava 22 horas. O ex-piloto Cmte. Fernando
Rocha recorda que “a travessia do Atlântico de Constellation era uma epopeia.
[...] O avião sem radar, era uma coisa, assim, que, contando hoje, aos pilotos
modernos, eles acham que era uma temeridade”. Constellation era o modelo de
avião comprado após a guerra para a rota do Brasil à Europa, e era o melhor avião
de passageiros de sua época.33
Em seis páginas ilustradas no estilo bem-humorado e elegante de um
artista de publicidade não identificado, a cartilha da Panair desfia uma série de
recomendações para os supostos passageiros de primeira viagem, que não sabem o
que esperar do voo ou que o consideram uma aventura perigosa, uma temeridade
da qual ouviram falar. Não há problema: “Já se foi o tempo em que o avião era
33 Estes e outros depoimentos podem ser vistos no documentário Panair do Brasil, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=e1A9W_9xSts> Acesso: 19 out. 2015.
um
comp
Possí
certa
em q
aerop
Uma
a obs
mens
“Ass
a sua
Figuraserviç
passa
cair”
“que
muita
infor
come
outro
veículo he
panhia cuid
íveis incôm
as normas, e
No prim
que observ
porto na “h
a vez na pol
servar as op
sagem de q
sim que sen
a refeição”
a 42. Ilustraçãço de lanche a
Segundo
ageiro me a
”. Ela també
eram aqu
as coisas,
rmações no
ercial, era a
o, sua vida
eroico”, ap
dará de tud
modos são a
em determin
meiro parágr
var a marc
hora estipul
ltrona “indi
perações pré
que os func
tir apetite,
(figura 42).
ão de Recomena bordo. Fonte
o depoimen
agarrou de m
ém diz que e
eles homen
mas dentr
s sugerem
ambíguo. De
a estava à
pregoa a c
do para o p
lertados de
nados mome
afo, já se pe
cação de te
lada” e em
icada pelo c
évias à deco
cionários da
o passageir
.
ndações para : coleção J. A
nto de uma
medo. Ele e
entre os pas
ns todos co
ro do aviã
que o luga
e um lado, e
mercê dos
cartilha. A
passageiro
antemão e
entos, para
ercebe que
empo é fu
mbarcar após
comissário
olagem, “se
a companhi
ro avisará a
a comodidadA. Buhrer.
a das aerom
stava trêmu
ssageiros da
om muita o
ão eram u
ar do passag
era o “patrã
mesmos fu
mensagem
e que ele
o passageir
seu próprio
viajar de av
undamental.
s ouvir o si
”, os passag
entados e cin
a estão a s
ao aeromoç
de dos passage
moças da P
ulo, e suava
a época esta
opinião, fal
uns gatinho
geiro, dentr
ão” dos func
funcionários
m principal
pode ficar
ro é instruíd
bem.
vião é como
Deve-se
inal de “doi
geiros são c
ntados”. Há
erviço do p
ço, para qu
eiros (1945) so
anair, “um
, de pânico
avam muitos
lando muito
os medroso
ro do “ritua
cionários e
s, que o co
123
é que a
r tranquilo.
do a seguir
o um ritual
chegar ao
is toques”.
convidados
á ênfase na
passageiro:
ue lhe sirva
obre o
ma vez, um
de o avião
s políticos,
o, fazendo
os”. Essas
al” do voo
pilotos; de
ontrolavam
124
durante todas as longas horas da viagem.34
O contexto da cartilha para usuários de celular é outro. Era o Brasil do
final dos anos 1990, cerca de cinquenta anos após os tempos de ouro da Panair.
Sob o ponto de vista dos estudos sobre consumo, havia, no entanto, semelhanças.
O telefone celular era um produto que já tinha sido um marcador de alta posição
social, mas, naquela conjuntura histórica, começaria a ficar acessível a uma massa
de brasileiros.35 Nesse ponto, seria curioso comparar a mensagem da cartilha da
Panair com a da cartilha dos celulares. O Manual de Etiqueta para Usuários de
celular é um folheto de 24 páginas, todo ilustrado com cartuns assinados por
Ziraldo. É dividido em sete seções temáticas: 1) o que se deve fazer; 2) o que não
se pode fazer; 3) uso do celular no trabalho; 4) uso do celular no carro; 5) uso do
celular na sala de cinema; 6) no restaurante; 7) no bar. O resumo da mensagem da
cartilha é que os tempos mudam e os costumes e regras sociais mudam também:
“a vida moderna impõe agora um novo desafio às boas maneiras: criar e difundir
um código de conduta compatível com as atuais conquistas da tecnologia, dentre
elas, o telefone celular. É que o danado insiste em tocar a qualquer hora e em
qualquer lugar”. A cartilha lista todas as situações em que não é educado atender
e mesmo deixar tocar o aparelho. Uma vez que existe o impedimento da etiqueta,
a operadora sugere que o usuário utilize os “serviços inteligentes”, como a caixa
postal, o olho mágico (identificação da chamada) e a chamada em espera, entre
outros.
Algumas dicas da cartilha do celular:
a) Você pode (e deve)... ... Deixar o celular à mão. Não deve ostentar o aparelho, mas não precisa escondê-lo no fundo da maleta ou bolsa. ...Escolher a quem dar o número do seu celular. Não é qualquer um que terá o direito de procurá-lo em trânsito. ... Escolher o horário em que vai deixar seu celular ligado. Lembre-se que, na BCP, você conta com o serviço de Caixa Postal Digital.
34 A cartilha da Panair faz contraste com uma publicação de 1996, cinquenta anos posterior: Manual do Usuário de Transporte Aéreo, distribuído pela INFRAERO. Neste, são abordados só os problemas da viagem aérea. As ilustrações, significativamente, retratam situações de conflito e desgosto, a pretexto de fazer humor. 35 A privatização da Telebrás, estatal que tinha o monopólio da exploração dos serviços de telefonia no Brasil, mas não tinha capacidade de investimento, ocorreu em 29 de julho de 1998. Surgiram então operadoras com tarifas mais baratas como BCP (Grande São Paulo e Nordeste), segundo Toni Sciarreta, em matéria para a Folha On line. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/smp-historia.shtml.> Acesso em: 13 nov 2014.
Figuraprogra
relac
se no
Assim
produ
produ
conv
emba
não p
suspe
quero
com
“uma
publi
cena
vesti
avião
b) Saiba ou colabooutro colcom o ser c) Chegadescontravira a cacompanhmil agitoúnico conao próxim
a 43. Ilustraçãamas noturno
As dua
cionamento
o significad
m como os
utos impes
uzirem ess
vencer o con
arcando é n
pensa, entã
ensa a milh
osene. A in
a distinção
a família”,
icitário da P
s mostram
idos, sem ci
o. A atriz N
separar as coorador ligar plega em melhrviço Passa C
amos ao terriação total. Ora quando so
heiro dos "guos. Não há rentrole é o domo.
ão do Manual s. Fonte: coleç
as cartilha
com o clien
do que dão
anúncios p
ssoais, ind
as peças –
nsumidor de
natural, fará
o, que seu
hares de me
nterpretação
o que merec
como dizem
Panair, “pa
a calma qu
into de segu
Norma Beng
oisas. Hora dpara você nohores condiçChamada da
itório sem le barulho faz oa a campainuerreiros" daegras rígidas o seu próprio
de etiqueta pação própria.
as descrita
nte. Mesmo
a toda essa
publicitários
distintos. O
– apesar de
e que aquela
parte de se
corpo está
etros de altu
é de que o
ce, por uma
m as ex-aer
ra aqueles
ue existe em
urança, con
gell, passage
do almoço não meio do almções de tratar
BCP.
ei: o bar. Aquparte do esp
nha de um ta noite, em b a seguir nes
o bom senso
ara usuários d
as acima
o separadas
a profusão d
s, elas oper
O grande e
e talvez nã
a nova aven
eu cotidiano
sendo trans
tura, desloc
viajante pa
a equipe sol
romoças. E
que não se
m voo”. As
nfraternizand
eira habitua
ão é hora de moço, tente r do problem
ui quase tudopírito de qualtelefone. Pelbusca de paqsse ambientee, como sem
de celular (19
são peç
por cinque
de dicas e i
ram a huma
esforço do
ão o saber
ntura tecnol
o. O consum
sportado de
ando-se pel
assará algum
lícita e amis
E, como diz
animam a
cenas most
do, tomand
al, confirma
trabalhar. Setransferir a l
ma. Você pod
o é válido, olquer botecoo contrário. queras e na e fluido por
mpre, o do res
998) sobre a et
as publici
nta anos, ap
instruções d
anização sim
s comunic
conscientem
lógica em q
midor da via
entro de um
la força de
m tempo sen
stosa de pro
zia o locuto
viajar de a
tram passag
o coquetéis
a: “quando
125
e um cliente ligação para de fazer isso
o clima é de , e ninguém O celular é armação de natureza. O speito a si e
tiqueta em
itárias de
proximam-
detalhadas.
mbólica de
cadores ao
mente – é
que ele está
agem aérea
ma máquina
motores a
ndo tratado
ofissionais,
or do filme
avião, estas
geiros bem
s dentro do
eu viajava
126
na Panair eu não tinha medo. Eu me sentia em casa, eu ficava feliz, ia de
primeira classe, era recebida com flores no aeroporto”36. A mensagem da cartilha
é de que nada de mal pode acontecer. Aliás, o que puder incomodar o passageiro
está previsto e tem solução. É tudo muito normal. Por essa operação, o transporte
aéreo é vendido não pelo que é na prática, mas pelo que simboliza (valores
positivos como a familiaridade, o respeito, a distinção social); o consumidor,
educado para a nova modalidade de consumo, não é mais um ser humano frágil
carregado por máquinas incompreensíveis. Ele encarna um novo papel: o de
viajante aéreo.
Analogamente, o manual de etiqueta do celular também insiste que o
aparelho, apesar de novo, está perfeitamente encaixado no cotidiano. Ele
acompanha o usuário em casa, no trabalho, durante os deslocamentos, nos
compromissos sociais e no tempo de lazer. No discurso da cartilha, o telefone é
“uma poderosa arma para patrões e empregados e, como qualquer arma, deve
ser usada corretamente”. Ele foi “criado para que você possa usá-lo em quase
todos os lugares". Ele concede "essa dádiva que é a tecnologia digital". O
usuário, educado para a nova modalidade de consumo, não é mais um ser humano
que se obriga a carregar um aparelho que interrompe ruidosamente suas
atividades. É um novo ator social: o usuário de celular, ou, como se dizia num
velho anúncio, “um ligador”37.
No entanto, ao passo em que se acostuma com a tecnologia e se disciplina
a utilizá-la conforme as instruções (semelhantes a normas de etiqueta), o
indivíduo tem seu corpo abalado por “um bombardeio de estímulos” e um
aumento da sensação de “risco corporal” inerente à vida moderna e urbana
(SINGER, 2004, p. 98), Por isso, muitas vezes, a dica das cartilhas se refere a
movimentos do corpo e a incômodos físicos relacionados ao uso da nova
tecnologia: “enjoo a bordo”, “balanço”, “atropelos”, “óculos ou roupas especiais”,
etc. As inconveniências da relação entre o corpo humano e a tecnologia também
36 Estes e outros depoimentos podem ser vistos no documentário Panair do Brasil, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=e1A9W_9xSts> . Acesso: 20 out. 2015. 37 Em 2007 a companhia de telefonia móvel Oi lançou uma campanha publicitária em cujo filme um rapaz, graças às promoções da Oi, deixava de ser só um “recebedor” e passava a ser um “ligador” pelo celular, aumentando, assim, o seu capital social. Filme publicitário com o ator Mateus Solano disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=b6QqOx1eyY . Acesso: 30 nov. 2015.
127
são tema da cartilha do celular, como denotam alguns trechos sobre o volume da
voz, o exagero na expressão de emoções e a segurança corporal na “travessia de
vias públicas”, entre outros. As gerações se sucedem e os grandes “choques
sensoriais” do passado não são mais experimentados pelos consumidores. O
processo, no entanto, não termina aí. Sempre há novos comportamentos a serem
aprendidos, os quais exigem mais autocontrole de corpos e emoções e são marcas
de pertencimento a círculos sociais mais valorizados (como já foi o círculo das
pessoas que faziam viagens aéreas habitualmente ou das pessoas que utilizavam
telefones móveis). A educação para o consumo é uma vertente do processo mais
geral do processo civilizador, em que novos comportamentos considerados
“civilizados” e valorizados como marca de distinção social são, progressivamente,
difundidos por toda a sociedade, a ponto de serem, posteriormente, não mais
considerados marca de distinção, mas condições mínimas e “naturais” de
pertencimento a uma sociedade “civilizada” e “moderna”.
Sob o ponto de vista de Mary Douglas, nem mesmo o consumo das novas
tecnologias pode ser considerado consumo de “bens de luxo”. O consumo além da
subsistência se relaciona à prática social de formar redes de informação muito
importantes para manter o indivíduo na classe social com que se identifica e
maximizar a renda de seu trabalho. Consumir o que marca sua qualidade
individual e consumir aquilo que intensifica seu relacionamento social não é luxo;
é consumo de “bens de informação”, que informam ao indivíduo e informam
sobre o indivíduo ao grupo. No caso dos estivadores, a necessidade de ir com os
colegas ao bar é um dos custos de manter seu lugar na turma e arrumar trabalho
(DOUGLAS & ISHERWOOD, p. 232-234). Analogamente, um telefone celular
foi um “bem de informação” em categorias sociais minoritárias e de alta classe, e
hoje é um “bem de informação” básico entre trabalhadores.
Explorando um pouco mais a visão de McCracken, o papel da cartilha
pode estar ligado ao mecanismo dos rituais, aqueles que transferem significados
da cultura para o bem de consumo e deste para o consumidor. Por exemplo, o
ritual de posse expressa-se pelo consumidor passar muito tempo arrumando,
limpando, comparando, exibindo, fotografando ou mesmo – aí que faz sentido a
cartilha de educação para o consumo – refletindo sobre “suas posses”. A leitura da
cartilha suscita a reflexão sobre a origem do bem; sobre o cuidado necessário para
sua utilização correta; sobre o “novo mundo” ou “nova categoria social” em que
128
se entra quando se adota aquele hábito de consumo.
Por exemplo: conquistar o hábito de ter um telefone, ser “um ligador”;
conquistar o hábito de fazer viagens aéreas, ser um “viajante aéreo”; conquistar
ligação elétrica em casa, especialmente se vive na zona rural; tornar-se um
consumidor de eletrodomésticos e uma pessoa que pode trabalhar em qualquer das
24 horas do dia, iluminado por luz elétrica. De fato, algumas cartilhas sobre
consumo de energia elétrica exaltam a possibilidade de suas crianças estudarem
mais e melhor, agora que podem ler livros de dia ou noite, com a luz elétrica. Isso
é a perfeita conjunção das duas “pernas” do processo civilizador: educar-se para
produzir mais e melhor, ao mesmo tempo em que consome mais e melhor.
Outro ritual apontado por McCracken, o ritual de cuidados pessoais, é
comumente associado à frequente “ordenha” do significado do bem de consumo.
Por exemplo: produtos de beleza, que são utilizados com certa frequência pelo
consumidor para transferir para si os significados positivos, sejam eles “limpeza”,
“jovialidade” ou qualidades assim. Mas, por outro lado, também acontece o ritual
de cuidados com o bem de consumo, para que ele se invista, com frequência, de
mais significado, e possa transferi-lo ao consumidor. Um exemplo dado pelo autor
é a custosa manutenção eletiva dos automóveis. “Esse tipo de ritual de cuidado
sobrecarrega o objeto de maneira que ele possa, por sua vez, transferir
propriedades especiais ampliadas a um proprietário” (McCRACKEN, 2007,
p.109). Deste modo, parece que as cartilhas da categoria de consumo são meios de
transmitir o ritual de cuidados ao novo consumidor – consumidor esse
conquistado num tempo ou num lugar em que o produto ou serviço ainda não
tenha sido popularizado.
O novo consumidor é ensinado a realizar operações convencionadas (por
meio tanto de cartilhas quanto de campanhas publicitárias, obras literárias,
matérias jornalísticas e lições de escola) tais como: o cuidado com as instalações
elétricas do domicílio; os cuidados com a segurança, para domar o poder da
energia; a manutenção preventiva; e a troca de peças por peças mais modernas (as
lâmpadas eletrônicas, por exemplo, ou o novo padrão brasileiro de tomadas). No
caso dos serviços bancários, com certeza, a “visitinha” ao gerente (na cartilha, um
“conselheiro de negócios”), nem que seja só para tomar um cafezinho, é o ritual
de cuidados que imprime mais significado à relação contratual de correntista de
uma “bandeira” bancária. Um exemplo de metáfora visual: na cartilha do celular,
uma
(na r
Figurao cons
no te
Elas
cultu
movi
depa
indiv
pensa
indiv
tamb
comu
comu
mulher cui
realidade, en
a 44. Ilustraçãsumidor deve
As transf
empo; estão
se relacion
ural, à educa
imentos de
aram com u
víduos ainda
arão em pub
víduos, estej
bém no g
unicacional
umente feita
da do apare
nergia) a ele
ão do Manual ter para mant
formações q
o continuam
nam aos há
ação e aos p
e transform
um lugar g
a não segue
blicar uma
ejam onde e
grande círc
eles busc
as com auxí
elho celular
e (figura 44)
de etiqueta pater o aparelho
que configu
mente se des
ábitos de co
padrões de s
ação (em p
geográfico
e os padrões
cartilha par
estiverem, “
culo do “
cam esse
ílio de cartu
r como se fo
).
ara usuários d. Fonte: coleç
uram a “mo
sdobrando e
onsumo tan
sociabilidad
posições d
ou social
s da modern
ra ensinar (o
“tudo o que
“mundo m
objetivo, u
unistas, é o t
osse um cão
de celular (19ão própria
dernidade”
em lugares
nto quanto à
de. Quando
o setor pú
em que o
nidade, é al
ou informar
e precisam
moderno”. C
uma vez q
tema do ter
ozinho, dan
998) sobre os c
não são eve
geográficos
à produção
os responsá
blico ou p
comportam
ltamente pro
r) ao maior
saber” para
Com que
que as car
ceiro capítu
129
ndo comida
cuidados que
entos fixos
s e sociais.
artística e
áveis pelos
privado) se
mento dos
ovável que
número de
a entrarem
estratégia
rtilhas são
ulo.
130
4. Cartunismo, o traço de humor nas cartilhas
Até este ponto da pesquisa, foi possível identificar que as cartilhas de
propaganda e campanhas públicas correspondem a um gênero de discurso e foi
possível também delimitar essa categoria de publicações. O pertencimento a essa
categoria, segundo sugere este trabalho, é indicado em função do propósito da
publicação. A forma e o conteúdo também contribuem para caracterizar o gênero,
mas só o propósito da publicação a diferencia de outras publicações semelhantes,
como os manuais e os livretos. As publicações que são objetos deste estudo,
normalmente chamadas de cartilhas, são cadernos de poucas páginas, formato de
gibi ou de bolso, com linguagem simples e acessível, normalmente ilustradas com
cartuns ou sequências de história em quadrinhos, distribuídas gratuitamente para
um público amplo, com o propósito de divulgar informações de interesse social e
persuadir o leitor a mudar seu comportamento, primeiro, e espalhar o novo
conhecimento, em seguida. Com a análise de um corpus formado por cartilhas
com temas de saúde e de consumo, publicadas em diferentes épocas, foi possível
associar esse gênero de discurso a práticas sociais de longa duração: o processo
civilizador e a construção dos sujeitos na modernidade. Para compreender melhor
que práticas são essas e para descrevê-las mais “densamente”, falta investigar qual
é o papel dos cartunistas na criação de tantas delas.
Conforme visto anteriormente, a maioria das cartilhas da coleção estudada
apresenta histórias em quadrinhos; um cartunista de renome, Luiz Sá,
significativamente, era funcionário do Serviço Nacional de Educação Sanitária; e
todos os responsáveis pela publicação de cartilhas que puderam ser entrevistados
confirmam que faz alguma diferença produzi-las com o auxílio de um cartunista.
Empiricamente é possível constatar que, apesar de lidarem com informação,
poucas cartilhas são feitas com a participação de jornalistas e, apesar de lidarem
com persuasão, poucas cartilhas são feitas por publicitários. Quando os
entrevistados descreveram seu processo de trabalho na criação de cartilhas, notou-
se que, em geral, os envolvidos são profissionais de qualquer área correspondente
ao patrocinador (por exemplo, médicos, no caso de cartilhas de saúde; juízes, no
caso de cartilhas sobre direitos) e os artistas, somente. Os profissionais entram
com o briefing publicitário e a pauta de informações brutas; os cartunistas entram
131
com o texto final e toda a apresentação visual da cartilha. Não deveria ser de
estranhar, porque alguns cartunistas têm formação em comunicação social. O
combativo cartunista Henfil ponderava que se definia mais como um jornalista,
um “jornalista do traço”38, do que um desenhista. Outro importante cartunista,
Fortuna, opinava que os cartunistas passaram a ser cada vez mais acionados para
criar desenhos para campanhas de propaganda porque conseguiam fazer
personagens mais “humanos” do que os desenhistas especializados das agências
de publicidade39. Pedro de Luna, quadrinista e autor de cartilhas entrevistado para
a pesquisa, tem formação de jornalista, trabalha em assessoria de comunicação e
diz que, no caso das cartilhas, ele é “uma agência sozinho”. Diz Pedro: “eu
atendia, eu criava, eu ilustrava, eu levava na gráfica. Então o relacionamento era
só eu e uma pessoa do cliente, e pronto. Não precisava envolver muita gente”.
A afinidade dos cartunistas com os campos publicitário e jornalístico é
explicitada por muitos pesquisadores. Tanto a arte da caricatura quanto a das
histórias em quadrinhos se desenvolveram no contexto das transformações
culturais e tecnológicas da virada do século XIX para o século XX: “É possível
que, sem a estrutura empresarial (jornais, editoras, distribuidoras) que tornou o
quadrinho um produto comercial, esta manifestação artística não teria
desenvolvido todo seu potencial e cativado gerações de leitores” (SANTOS,
2012a, p. 87-88). As próprias restrições tecnológicas da imprensa do século XIX,
que não reproduzia meios-tons, influenciou a maneira de desenhar dos cartunistas,
caracterizada pelos traços nítidos e a simplificação das figuras (FONSECA, 1999,
p.25). O cartunismo é uma forma de arte nativa da imprensa.
Desde as primeiras publicações satíricas40, os caricaturistas são apreciados
por seus desenhos cômicos que provocam o riso, e desde o aparecimento delas
costuma-se associar o riso à ridicularização dos maus costumes. Para Henri
Bergson, “a sociedade faz pairar sobre cada um, quando não a ameaça de um
castigo, pelo menos a perspectiva de uma humilhação que, por ser leve, nem por
38 Em carta escrita a Zé Eduardo Barbosa, transcrita no livro Diário de um Cucaracha (HENFIL,1983, p.22) 39 Em entrevista transcrita na coletânea de cartuns Fortuna, o cartunista dos cartunistas (LOREDANO, 2014, p. 244). 40 A palavra caricatura surge numa publicação italiana de 1646 que apresentava uma seção de gravuras chamadas de ritratini carichi (retratos carregados), realizadas a parir de desenhos originais dos irmãos Agostino e Annibale Carracci, satirizando tipos humanos das ruas de Bolonha (FONSECA, 1999, p.17)
isso
A pro
obra
escri
tais
enqu
Chic
fizera
Katze
prim
(SAN
Figuraaciden
prim
vaga
jorna
série
popu
1895
é menos tem
opósito, val
do alemão
ito em verso
como os q
uanto propag
co no Brasi
am). Pois
enjammer K
meiros pers
NTOS, 2012
a 45. Sequêncntal dos dois m
Ao par d
meiras série
abundos ou
al New York
e Hogan’s A
ularizou par
5. Happy H
mida”, e es
le lembrar q
o Wilhelm B
os e inteiram
quadrinhos
ga suas liçõ
il, acabam
bem: a du
Kids (Os s
onagens d
2a, p. 89).
cia de duas págmoleques. Fon
da ridicular
s de histó
despossuíd
k World (de
Alley, em
ra se tornar
Hooligan, d
sa é a funçã
que um dos
Busch: Max
mente ilustra
(ver figura
ões de mor
punidos co
upla de mo
sobrinhos d
das história
ginas de Juca nte: coleção pr
rização dos
órias em q
dos, que des
e Joseph Pu
que o care
r um (discu
de Opper, p
ão social do
precursore
x und Mori
ado com im
a 45). Há
ral (os meni
om a morte
oleques foi
do Capitão,
as em qu
a e Chico, de Wrópria
s comportam
quadrinhos
safiam as a
ulitzer), os v
equinha orie
utido) marc
publicada a
o riso (BER
s das histór
itz. Trata-se
magens caric
quase 150
inos travess
e por causa
transform
, na versão
uadrinhos s
Wilhelm Busc
mentos, out
era o ret
autoridades
vagabundos
ental Yellow
co fundado
a partir de
RGSON, 200
rias em quad
e de um liv
caturais em
anos o liv
sos, chamad
a das traves
ada, mais
brasileira)
seriadas do
h, a qual narra
tro tema ha
rato de pe
com bom h
eram perso
w Kid apar
r do gêner
1900 nos j
132
01, p.101).
drinhos é a
vro infantil
sequência,
vro faz rir
dos Juca e
ssuras que
tarde, nos
), dois dos
os jornais
a a moagem
abitual das
ersonagens
humor. No
onagens da
receu e se
ro HQ, em
jornais do
133
concorrente Randolph Hearst, também foi popular e contestava, pela sátira, a
burguesia e a repressão policial (SANTOS, 2012a, p.86-90). Enquanto isso, no
Brasil, o italiano Angelo Agostini publicava suas pioneiras histórias em
quadrinhos Nhô Quim, impressões de uma viagem à corte (1869), retratando um
homem comum do interior lidando com ridículas desventuras no contexto das
rápidas transformações da modernidade. De maneira geral, os cartunistas sempre
se ocuparam da representação da vida urbana e seus tipos populares. Nisso se
assemelham aos artistas plásticos da primeira vanguarda europeia
(impressionismo, cubismo, expressionismo, fauvismo), que foram os primeiros a
viver a ambiguidade na relação com o cotidiano popular que representavam
(trabalho operário, diversões baratas, bens de consumo e costumes urbanizados).
De um lado, os artistas eram cativados pelo cotidiano e, de outro, rejeitavam-no
como uma ameaça à pureza da arte – uma aproximação às forças que
transformavam a arte tradicional em mercadoria para as massas (CROW, 2002).
Para os caricaturistas e cartunistas de jornais, a adesão à reprodutibilidade da obra
de arte era inevitável, mas o conflito entre a formação acadêmica em artes e a
prática profissional nos veículos de comunicação de massa também existia.
A ambiguidade vivida pelos cartunistas e humoristas brasileiros da virada
do século XIX para o XX era de um tipo particular. De um lado, empenhados na
função social do humor, viam a si próprios como civilizadores, propagadores dos
hábitos nobres e corretos – o que corresponde à função que os cartunistas exercem
na produção atual de cartilhas – e de outro, desejavam retratar o povo brasileiro no
seu cotidiano. Aqui, as revistas ilustradas (O Malho, Careta, Fon-fon!, Para
Todos, entre outras) “forneceram uma cartilha do que era ser moderno, smart, e de
como ficar up-to-date com os polos irradiadores da ‘civilização’, como Paris e
Londres” (SICILIANO, 2014, p.137). Quando defendiam as transformações
modernas, do progresso e da urbanização, algumas vezes eram cruéis com a
sociedade mestiça e rural do Brasil (acusada de ser “atrasada” em relação à
sociedade industrial e urbana); quando se voltavam em busca do tipo nacional,
aquele personagem popular que honestamente simbolizava o povo brasileiro,
permitiam que o homem comum se identificasse com as cenas dos cartuns. E, se
ali não era um herói, pelo menos estava do lado “certo”, o lado “do bem” contra
os abusos dos poderosos (SALIBA, 2002, p.112-132). Esse homem comum que
protagonizava os cartuns pegava bonde, entrava em fila, corria atrás de dinheiro,
134
censurava a loucura da sucessão de modas e, aos poucos, se acostumava com as
novidades da luz elétrica e do automóvel. Os cartunistas da Bela Época eram os
parceiros ideais para a “literatura panorâmica” ou o “gênero do cotidiano”. Tal
gênero de periódico produzido em Paris tinha por objetivo retratar a sociedade em
modernização e urbanização, traçando um panorama de hábitos e tipos urbanos.
Uma das características do gênero era sua heterogeneidade: compunha-se de
trechos escritos por diferentes autores, com diversas soluções formais, “misturas
bizarras” e “transgressões de categoria”. Representava, conscientemente ou não, o
“lusco-fusco” do cotidiano: a profusão de estímulos, a efemeridade, a queda das
hierarquias, a mercantilização geral (COHEN, 2004).
Não se pode deixar de relacionar essa prática já distante de nós em um
século às atuais práticas da produção das cartilhas de propaganda. A hipótese é
que o cartunista exerce, nas cartilhas, uma função que se equilibra entre ser o
civilizador, censurando os comportamentos indesejados por meio da
ridicularização, e ser o retratista do cotidiano, aproximando o homem comum da
obra, por meio de uma relação de identificação. Parece ser o caso do quadrinista
Will Eisner41, autor de várias cartilhas de treinamento militar nos EUA, que
começou o trabalho criando, como protagonista, uma caricatura de soldado, um
trapalhão de nome Joe Dope. Ele queria que o soldado comum se identificasse e
se divertisse com as histórias em quadrinhos educativas. Em depoimento
reportado por seu biógrafo Michael Schumacher, explicou:
“Que argumentos você usa quando quer cooperação voluntária?", Eisner perguntou retoricamente ao tentar explicar como desenvolveu Joe Dope para encaixar-se no novo programa de manutenção preventiva do Exército. "Bom, você usa a ameaça de morte. Morte ou ferimentos físicos. Você diz para o cara: ‘Se você não encher os pneus, qualquer dia vai estar em batalha, o pneu vai estar vazio, e você não vai poder fugir - e aí o seu traseiro vai ficar na reta, amigão!’. O primeiro passo era esse. Então, a partir daí, você pode criar outras situações com que as pessoas não querem se deparar, outras ameaças, como fazer papel do bobo na frente dos colegas. Foi assim que Joe Dope foi criado, com base nisso” (SCHUMACHER, 2013, p. 109). A princípio, as autoridades militares estavam reticentes. Não ousavam
abordar assuntos de guerra de maneira leve, muito menos retratar um soldado
americano como um trapalhão, mas as histórias de Eisner foram testadas e um
41 Will Eisner (1917-2005), quadrinista nova-iorquino, é apontado por Maurício de Sousa e Ziraldo, entre outros artistas, como o mais influente mestre da técnica narrativa em história em quadrinhos. Eisner, inclusive, deu aulas e escreveu livros teóricos para novos quadrinistas (MOYA, 1972, p.67-71).
135
estudo interno concluiu que aqueles “manuais” em forma de gibi “eram mais
fáceis de ler, de entender e, talvez o mais importante, de serem lembrados”
(SCHUMACHER, 2013, p. 116). De um lado, Eisner ridicularizava, com sua
caricatura, qualquer um que não seguisse as normas; de outro, evitava o
distanciamento entre instrutor e leitor. Seu Joe Dope, apesar de tonto, era mais
simpático e estava mais próximo da realidade de um acampamento militar do que
um hipotético soldado perfeito.
O fato é que o modelo de história em quadrinhos, com um personagem
criado especialmente ou não, é apenas um entre vários modelos onde o trabalho de
um cartunista é aplicado num projeto de cartilha. Para aprofundar a investigação,
é preciso se voltar para os dados empíricos, e os envolvidos na produção de
cartilhas, durante as entrevistas, manifestaram-se sobre a questão. Em resumo,
para explicar a prevalência dos cartunistas na produção de cartilhas, as
formulações levantadas pelos próprios entrevistados podem ser classificadas entre
os seguintes tipos de argumentos:
a) o trabalho do cartunista faz a cartilha ser mais acessível;
b) o trabalho do cartunista faz a cartilha ser mais lúdica;
c) o trabalho do cartunista faz a cartilha obter melhor adesão do leitor;
d) o trabalho do cartunista é “resumir” ou “sintetizar” as informações;
e) o trabalho do cartunista é de mediação entre o plano dos conceitos
técnico-científicos e o plano da experiência do cotidiano.
Em relação ao primeiro argumento, tudo depende do sentido que se dá à
palavra “acessível” (segundo o Dicionário Houaiss, “que pode ser facilmente
compreendido; inteligível”). Se o importante é possibilitar a entrada de cidadãos
pouco capacitados em leitura num campo de conhecimento anteriormente fechado
para eles, não é necessário contar com cartunistas. Profissionais de comunicação
podem escrever textos em que não se levantem barreiras de caráter vocabular. Não
é necessário recorrer a desenhos. Além disso, em matéria de acessibilidade, um
vídeo produzido com o mesmo conteúdo, em linguagem jornalística, em tese, é
bem mais acessível ao público geral, porque não demanda capacidade de leitura
de texto alguma. As mídias digitais que suportam trechos de vídeos, por sua
ubiquidade (youtube, por exemplo), aumentam a acessibilidade de uma campanha
de propaganda, em relação à mídia impressa, que ainda é a preferida nas
camp
difer
do qu
FiguraFonte
por C
depe
leitor
elétri
pelos
perce
eleito
“pod
cartu
a pró
cartu
autor
que
interp
mode
panhas com
rença a favo
Por outro
ue um texto
a 46. Ilustraçãe: Coleção J.
O desen
Claudius. A
nde do dom
r imaginar
icos, já vai
s desenhist
eber que o
or, mas sim
der” que em
unista. A pis
ópria cartilh
uns, a imag
res e provoc
causa indif
pretar a lin
elo de carti
m cartilhas
or dos cartun
o lado, um
o de maneira
ão que abre o A. Buhrer.
nho acima il
A conjectur
mínio dos si
que os tr
estar um p
tas e leitor
os raios elé
m, por me
mana do v
sta para a in
ha chama-se
gem é rapi
ca uma reaç
ferença, se
nguagem do
ilha com ca
. Portanto,
nistas.
cartum ou
a relativa. E
discurso de O
lustra a prim
ra é de que
gnos e códi
raços em z
ouco famili
res habituai
étricos não
ecanismo m
voto, só aí
nterpretação
e O poder do
idamente in
ção; para qu
não estran
o desenho d
artunistas po
grau de
história em
Eis um exem
O poder do seu
meira página
e a leitura
igos utilizad
ziguezague
iarizado com
is de cartu
representam
metafórico,
o leitor t
o segue no t
do seu voto.
nterpretada,
uem não cos
nheza. Porta
do humor e
ode ser mai
acessibilida
m quadrinho
mplo de cart
u voto (1986) d
a de uma ca
do cartum
dos pelo car
em torno
m as conve
uns. Porém
m um choq
representam
terá entend
texto a que
Para quem
, passa a n
stuma ler ca
anto, se o
e a linguage
is acessível
ade não p
os só é mais
tum:
de Claudius.
artilha e foi
não é uni
rtunista. No
do “voto”
enções comp
m, apenas s
que elétrico
m a “energ
dido a men
o desenho
está acostu
noção desej
artuns, é um
leitor é cap
em dos qua
. Se o leito
136
pode ser a
s acessível
desenhado
iversal; ela
o caso, se o
são raios
partilhadas
se o leitor
o dado no
rgia” ou o
nsagem do
se reporta:
umado a ler
ejada pelos
ma imagem
apacitado a
adrinhos, o
or não tiver
137
aprendido a interpretar essas formas de comunicação, elas serão menos acessíveis.
No caso do modelo das histórias em quadrinhos, as opiniões coletadas se dividem.
Os cartunistas Ziraldo e Claudius concordam que a história em quadrinhos não é
facilmente entendida por leitores que, apesar de terem capacidade de ler com
fluência, não estão acostumados com as convenções compartilhadas pelos autores
e consumidores de gibis. Ziraldo critica o modelo:
Não serve muito, porque uma grande parte da população não percebe o que é uma narrativa em quadrinhos. [...] Pai de aluno que é só meio alfabetizado, se o menino leva a cartilha pra ele, não entende que aquilo é uma narrativa sequencial. O cartunista Claudius apoia Ziraldo, quando diz que a eficácia da história
em quadrinhos para cartilhas é relativa, pois a linguagem de quadrinhos:
[...] é uma convenção. Ele é feito a partir de uma convenção que não é uma coisa universal. Exige um determinado conhecimento das pessoas. E, ás vezes, não acontece. Por outro lado, os cartunistas que costumam executar cartilhas sempre no
modelo em quadrinhos têm foco no público infantil e veem vantagem em se
comunicar por esse meio. Além disso, consideram que adultos também apreciam
tal leitura. Tal visão é expressada por Marcos Vaz:
O quadrinho é uma leitura que, hoje, já é considerada arte, mas ainda eu vejo que é uma leitura introdutória, onde a criança vai desenvolver o gosto pela leitura. Tem muita imagem, tal, ela pega e vai lendo. Quando ela percebeu, já pegou o gosto. Daí sim, ela parte pra uma leitura mais elaborada, que é o livro. Os quadrinhos também são defendidos pelo cartunista Maurício de Sousa,
que chama suas cartilhas de “revistas especiais” e só publica em formato de gibi:
Têm um alcance melhor. É melhor entendida porque a linguagem do quadrinho pega todo mundo. Depende, logicamente, de como você escreve, e a gente escreve pra todo mundo, escreve para a família. Eu acho que quadrinho é o melhor, é mais barato, mais fácil de fazer, pela gente.
Em torno dessas opiniões, a variável é a visão que o autor tem do seu
público: qual a característica demográfica do seu público e qual é a sua amplitude.
Como todos trabalham com cartilhas, supõem que o alcance deve ser o maior
possível, ou seja, que a cartilha possa chegar em qualquer lar brasileiro e ser
apreciada pelos membros da família. Especialmente quando a cartilha é um gibi
de histórias em quadrinhos, supõe-se que a criança vai ganhar na escola, trazer
para casa e mostrar aos adultos próximos, que serão um público secundário da
cartilha. Ziraldo já afirmou várias vezes que a cartilha é uma publicação para a
138
família. Maurício de Sousa, em depoimento, confirma: “O especial funciona como
um panfleto que vai pra casa, pra família. A criança pega, leva pra casa e vale pra
todo mundo”. Se Ziraldo e Claudius não confiam plenamente no alcance dos
quadrinhos, é porque visualizam o público brasileiro com uma significativa
participação de adultos formados no meio rural ou suburbano, sem acesso a
produtos culturais como as revistas. Maurício de Sousa, Marcos Vaz e outros
imaginam que, na média, o público brasileiro já teve algum contato com histórias
em quadrinhos e não estranha essa mídia. Tudo depende do nível de
conhecimento que se tem sobre o público almejado e deve-se levar em
consideração que, com a sucessão das gerações e com o avanço do processo de
urbanização, mais e mais brasileiros passam a ser letrados em desenhos de humor
e histórias em quadrinhos.
De fato, a história em quadrinhos não deve ser encarada apenas como um
estilo ou um gênero literário, mas como uma mídia. Essa mídia tem forma, mas
seu efeito depende do conteúdo, que varia. Isso explica por que não se deve
associar histórias em quadrinhos diretamente ao público infantil ou à comicidade.
Muitos quadrinhos são adultos, sérios, dramáticos e políticos (de qualquer
bandeira). De qualquer forma, não há dúvida de que é uma linguagem aprendida.
Segundo Scott McCloud (2005), a justaposição sequencial de imagens não só é a
característica fundamental das histórias em quadrinhos, mas é o segredo da sua
qualidade comunicativa. A leitura de quadrinhos exige envolvimento do leitor, no
sentido de que a mente dele deverá completar, da maneira que puder, os fatos
ocultos entre um quadrinho e o seguinte (ver figura 47).
Figurafatos oprópri
pequ
da m
das h
tão
envo
quad
é a d
dos e
encai
dos s
como
a 47. Sequêncocultos entre ia.
De certa
ueno espaço
mente do lei
histórias em
utilizado
olvimento d
drinhos é ma
de predomin
envolvidos
ixar a lingu
signos mais
o as imagen
Imagens “entenderpreciso clinguagemmaiores audaciosacom maunificadadois lado
cia de dois quadois quadrinh
a maneira,
o em branco
itor, não pa
m quadrinho
na produç
do leitor co
aior do que
nância de te
na produçã
uagem dos
s abstratos
ns fotográfic
são informar a mensageconhecimentm. Quando níveis de peas, mais dire
ais rapidez, a em quadrinos de uma me
adrinhos de A hos, mas o leito
a história e
que separa
assam de du
os parece se
ão de car
om o conte
o envolvim
xto ou de e
ão de cartilh
quadrinhos
(tais como
cas):
ações recebiem”. Ela é into especializas imagens
ercepção, coetas, requerem
como imagnhos nos levaesma moeda.
Graça (2006or completa-o
em quadrin
a os quadrin
uas imagen
er um dos m
rtilhas edu
eúdo de um
mento do lei
exposição di
has confirm
no centro
o as letras)
idas. Ninguénstantânea. Azado pra dec
são mais aomo as palavm níveis infegens. Nossaa ao centro, . (McCLOU
) por Ziraldo, os em sua men
nhos realme
nhos, os qua
ns justaposta
motivos pelo
ucativas e
ma cartilha
itor quando
idática do a
ma isso. McC
de uma esc
aos signos
ém precisa dA escrita é incodificar os
abstraídas davras. Quanderiores de pea necessidad
onde palavrUD, 2005, p.4
mostrando qunte. Fonte: col
ente acontec
ais, sem a pa
as. Essa car
os quais ess
de propa
narrada na
o a fórmula
assunto. A e
Cloud argum
cala gradua
s mais conc
de educação nformação p
símbolos aa “realidade”o as palavra
ercepção e sãde de uma ras e imagen49)
139
ue há muitos leção
ce naquele
articipação
racterística
se gênero é
aganda. O
a forma de
da cartilha
experiência
menta para
ada que vai
cretos (tais
formal pra percebida. É abstratos da ”, requerem as são mais ão recebidas
linguagem ns são como
140
McCloud aponta que as letras e outros caracteres gráficos também são
ícones (signos gráficos), na sua forma extrema, pois não guardam semelhança
nenhuma com os objetos a que se referem. Portanto, para serem lidos, exigem que
tenhamos conhecimento do código em que foram escritos. No outro extremo
temos imagens realistas, que são "lidas" apenas pela sua semelhança com os
objetos, independente de códigos. No ponto intermediário temos os desenhos
estilizados, as caricaturas e os cartuns. Eles guardam alguma semelhança com os
objetos representados, mas não tanto. Exigem, em certa medida, também o
conhecimento de um código para serem interpretados corretamente. É esse código
de leitura de histórias em quadrinhos que chama mais a atenção dos pesquisadores
e que constitui o que ficou conhecido como a "narrativa dos quadrinhos", técnica
que é tomada emprestada em obras de outra natureza, como alguns filmes. Os
ícones de tensão, medo, espanto, mau-humor, as linhas denotadoras de
movimento, as fumacinhas, as onomatopeias, os diferentes formatos de balões de
texto... tudo já foi muito teorizado42. É pela necessidade de domínio de um código
de leitura que as histórias em quadrinhos, apesar da fama de popularidade, não
conseguem causar efeito em todo e qualquer leitor. No caso das cartilhas, cujo
público pressuposto é o mais amplo possível, inclusive pessoas mal alfabetizadas
com mínimo hábito de leitura, as histórias em quadrinhos nem sempre são bem-
sucedidas.
A segunda afirmação sobre a relação dos cartunistas com as cartilhas é que
eles contribuem para o aspecto lúdico da publicação. No capítulo 1 já foi abordada
uma objeção ao uso do conceito de ludicidade aplicado às cartilhas, pois
ludicidade subentende que há um jogo, uma atividade em que os participantes
estão em pé de igualdade e o resultado é imprevisível. A cartilha é uma
comunicação com um propósito e não é um canal de mão dupla. Portanto, só é
lúdica simuladamente. A palavra, no entanto, é usada com mais de um sentido.
Para Augusto Citelli, o discurso classificado como lúdico “seria a forma mais
aberta e ‘democrática’ de discurso”. Ele seria típico da canção e da literatura,
42 A palavra ícone é usada por Scott McCloud para chamar “qualquer imagem que represente uma pessoa, local, coisa ou ideia” (McCLOUD, 2005,p.27). Alguns serão mais conhecidos como símbolos, outros como caracteres gráficos e, nos quadrinhos, as figuras em geral também são ícones. Onomatopeias, nos quadrinhos, são palavras que simulam ruídos, tais como bam, crás e atchim, e as letras que as compõem são desenhadas de forma que expressem visualmente o ruído. Balão é a palavra com que os quadrinistas chamam o desenho que envolve os blocos de texto e indica que tal texto é a fala de alguma das figuras representadas.
141
polissêmicas, ricas em sentidos, que apresentariam “menor grau de persuasão,
tendendo, em alguns casos, ao quase desaparecimento do imperativo e da verdade
única e acabada” (CITELLI, 2002, p. 38). Em tal caso, a cartilha ilustrada, uma
vez que tem como propósito a persuasão, pode, no máximo, simular uma obra
artística (um conto, um poema, uma história em quadrinhos) para melhor atingir
seus objetivos, estratégia que é usual na criação publicitária (CARRAZCOSA,
2004). Sob outro ponto de vista, a ludicidade é uma característica da publicação
que pode ser concretamente usada pelo leitor, que interfere nas páginas
escrevendo, desenhando, recortando, etc. Assim, o gênero da cartilha, que
predominantemente é distribuído como um caderno impresso, destaca-se em
relação a outras mídias, como a televisão ou a rede digital, porque pode se
transformar pelo uso do leitor. O cartunista Pedro de Luna abordou essa noção de
ludicidade em entrevista:
Eu gosto dessa coisa dos jogos. Quanto mais você tornar a cartilha lúdica, que é o ponto de... Ela não é só uma coisa pra você ler. Se tiver uma coisa que te faça rabiscar nela, escrever nela, melhor ainda. Ela vai ser mais “do cara”, ainda. Se ele fizer o passatempo... “o que se usa? CA - PA - CE - TE”... Um caça-palavras... Mas ele aprende o conteúdo... A gente fez também uma cartilha pro público de um estaleiro, que era ligue-os-pontos, aquelas brincadeiras lúdicas que fazem o conhecimento se fixar. Em toda a coleção de cartilhas analisada, esse tipo de atividade aparece
sempre como pretexto para fixar palavras, números e conceitos que se pretende
transmitir ao leitor. Ainda que essa característica seja importante, não justifica,
por si só, o trabalho dos cartunistas.
Se a palavra “lúdico” estiver sendo usada com o sentido de “divertido” ou
“cômico”, aí o papel dos cartunistas pode ser mais bem explicado. O trabalho
deles é associado à capacidade de provocar o riso; eles são chamados, em algumas
obras, de “desenhistas de humor”. Bergson, conforme lembrado acima, parte do
princípio de que castigat ridendo mores (rindo se castigam os costumes).
Portanto, é natural que se procure provocar o riso para atingir o objetivo de uma
pedagogia civilizadora, típica das cartilhas de todos os temas. No entanto,
comicidade e humor são coisas diferentes e o trabalho do cartunista, aplicado às
cartilhas, não é fazer humorismo, como se desenvolve adiante. A explicação que
Henri Bergson dá para o fenômeno da comicidade, em seu texto O Riso (2001
[1899]), a julgar pelos exemplos culturais e artísticos que ele dá (caricatura,
espetáculo circense, comédias de Molière, entre outros) relaciona o riso com o
142
choque que as transformações da modernidade têm gerado na sociedade. Segundo
o autor, rimos quando se observa qualquer tipo de rigidez cristalizada sobre o que
deveria ser vivo, dinâmico e humano. A teoria se aplica tanto para o riso gerado
por uma careta, a qual imita o enrijecimento de uma face humana, quanto para
uma trama de comédia teatral, onde a piada se faz com a quebra de alguma
regularidade mecânica (por exemplo, a teima de um personagem em manter um
hábito seu). Tal rigidez que transforma corpos humanos em bonecos
(metaforicamente ou, no caso de uma caricatura, concretamente) e tal regularidade
de hábitos e vícios são frutos do processo de desumanização pelo qual a
“modernidade” costuma ser acusada. A característica da repetição pode ser
relacionada à moda, por exemplo (como fez Bergson), à especialização do
trabalho e à adesão a ideologias. O riso, no entanto, apesar de ser um “trote
social” pelo qual a sociedade exige “de cada um de nós certa atenção
constantemente desperta” e “obriga-nos a cuidar imediatamente de parecer o que
deveríamos ser”, não “castiga os costumes” no sentido de abandonar o processo
civilizador e voltar atrás, mas, pelo contrário, exorta a seguir em frente para
aprimorar os indivíduos, tira-los do marasmo, buscar o belo, o bem-viver, novos e
melhores hábitos, sempre cientes do que parecemos para os outros que nos
cercam. Nas palavras de Bergson:
O mecanismo rígido que surpreendemos, vez por outra, como um intruso, na viva continuidade das coisas humanas, tem para nós um interesse particular, por ser como uma distração da vida. Se os acontecimentos pudessem estar incessantemente atentos a seu próprio curso, não haveria coincidências, ocorrências fortuitas, séries circulares; tudo se desenrolaria para a frente e progrediria sempre. E, se os homens estivessem sempre atentos à vida, se constantemente retomassem contato com o próximo e também consigo, nada pareceria jamais ser produzido em nós por molas e cordinhas (BERGSON, 2001, p.64). Rimos, portanto, para fazer andar o processo civilizador. Se Bergson olha
o panorama do mundo moderno e aposta no riso para quebrar os vícios do
mecanicismo aplicado à vida, Bakhtin fez uma leitura inversa do mesmo quadro.
Fundamentando seus argumentos com as cenas cômicas grotescas das peças de
François Rabelais, autor da época do Renascimento, Bakhtin defende o riso de
caráter popular e condena o riso moderno. O riso popular, com sua ênfase no
“baixo corporal”, que levava a incluir sempre comida, sexo e excreção nas piadas,
e que se preocupava mais com velhice, mortes, infância e nascimentos (etapas que
estão nos limites da trajetória de vida), servia para congregar as pessoas, ligá-las
143
ao cosmo e celebrar a circularidade do ciclo de vida. O valor desse riso popular,
bem representado por Rabelais, estava se perdendo com a modernidade. Foi sendo
substituído pelo riso negativo, que serve apenas para censurar o comportamento
dos outros de maneira preconceituosa, celebrando a individualidade, o corpo
perfeito e isolado do mundo e vivendo o ponto médio da sua trajetória de vida (a
juventude). O riso festivo (ou carnavalesco) é coletivo, popular, universal (todos
riem sobre tudo que há no mundo) e – o que é importante na presente questão –
ambivalente: ele nega a ordem social enquanto simultaneamente a confirma.
Importante também mostrar que o riso popular “escarnece dos próprios
burladores” que se incluem entre os ridículos. Bakhtin se alinha entre os que
diferenciam esse riso popular do riso provocado pelos escritores clássicos:
Essa é uma das diferenças essenciais que separam o riso festivo popular do riso puramente satírico que apenas emprega o humor negativo, coloca-se fora do objeto aludido e opõe-se a ele; isso destroi a integridade do aspecto cômico do mundo e então o risível (negativo) torna-se um fenômeno particular. Ao contrário, o riso popular ambivalente expressa uma opinião sobre um mundo em plena evolução no qual estão incluídos os que riem (BAKHTIN, p.11). O riso popular é aquele que celebra a circularidade da vida (nascer do
“baixo”, viver no “alto” e, quando morrer, voltar ao “baixo”), com a qual o
mecanicismo típico da modernidade tenta romper, imprimindo um movimento
“retilíneo” a tudo. Bergson identifica o motivo de riso na detecção de qualquer
artificialidade ou mecanicismo contrário à vida, mas entende que o humor é
puramente intelectual e só podemos rir de uma pessoa ou objeto com a qual não
guardamos empatia, justamente o tipo de riso criticado por Bakhtin.
A arte dos cartunistas, conforme observado na introdução do capítulo, é
nascida da linhagem clássica, satírica, e suas técnicas foram desenvolvidas já nos
tempos contemporâneos, dentro dos órgãos de imprensa. Embora possam também
“se incluir entre os ridículos” e ter uma posição ambivalente, o riso que provocam
geralmente é aquele que castiga os maus costumes e exige distanciamento
emocional. Ziraldo, conceituando o humor e o humorismo num artigo para a
Revista de Cultura Vozes, diferenciou a obra cômica da obra humorística, a ponto
de sugerir a criação do neologismo “risista” para denominar o artista que apenas
faz rir (um contador de piadas no teatro, por exemplo), diferenciando-o do
“humorista” que nem sempre faz rir, mas cria humor. Este último teria parentesco
com o equilíbrio e a perspicácia intelectual: “O Humor é uma forma não-linear de
144
se descer ao fundo das coisas, de buscar e entender sua essência e revelá-la de
maneira não-convencional. [...] Não há humor sem invenção!” (ZIRALDO, 1970,
p.194). O cartunista, que classificou a si mesmo como humorista que, quase
sempre, faz rir, aponta a característica rara do humor:
Há uma maneira prática de você testar se uma coisa que o faz rir é humorística. Toda vez que você ouvir uma história, parar e pensar assim: "Ué, gente. Não é que é isto mesmo?...", pode estar certo de que é a revelação que o humor contém que te faz exclamar assim. O Humor tem sempre uma verdade dentro (ZIRALDO, 1970, p.197-198). Como ninguém paga a outros para dizer verdades, nem para virar “o olho
do homem para dentro dele mesmo”, mas paga para se fazer rir, o humorista não
sobrevive de seu trabalho se não souber fazer rir. Daí a confusão entre os dois
tipos de obra. Segundo Ziraldo:
Quem somente faz rir não está defendendo teses ou ideias e o Humor é quase uma defesa de tese. Ninguém faz Humor em cima de uma coisa que ele crê como verdadeira e ninguém ri de uma coisa humorística se ela vai de encontro a uma verdade que ele respeita (ZIRALDO, 1970, p. 203). Sobre o trabalho em cartilhas, Ziraldo disse, em seu depoimento, que “a
cartilha não tem Humor; tem bom humor”. Com isso, quer dizer que os desenhos
podem ser engraçados, mas não contêm verdades profundas nem invenção. Isso é
coerente com o propósito da cartilha, que é transmitir a mensagem da organização
que a patrocina, não a do autor. Sob esse ponto de vista, as ilustrações cartunescas
seriam apenas “lúdicas” no sentido de que sugerem uma “brincadeira” com o
conteúdo pedagógico. Não é, no entanto, uma conclusão geral para qualquer
cartilha. O cartunista Bira Dantas, que costuma escrever e desenhar cartilhas
políticas, diz, em seu depoimento, que pretende causar o efeito do Humor descrito
acima:
Eu acho que a cartilha, principalmente essa que é mais revoltada, ela tenta chacoalhar o leitor, a gente espera que o leitor tenha essa predisposição a ser chacoalhado e se envolva com aquilo que a gente tá falando. É claro que uma cartilha que você vai fazer pra população em geral, você não vai usar uma linguagem difícil, porque uma parte pode entender, outra parte não. Mas eu acho que, mesmo você simplificando sua forma de falar, você consegue falar esses assuntos com uma poesia, um grau de profundidade que o jornalismo da televisão não se interessa em fazer. Ainda assim, a intenção de “chacoalhar o leitor” apontando uma verdade
pode ser descrita como o riso censurador conceituado por Bergson e condenado
por Bakhtin. Neste caso, o cartunista aponta um comportamento condenável na
145
sociedade e, sem diretamente incluir nem a si nem ao leitor entre os implicados,
incita o leitor a combater tal erro. A nuança é que isso pode ser feito com
ridicularização, mas também, como sugeriu Bira, com poesia, o que seria mais
inventivo e, portanto, mais humorístico.
A terceira hipótese sobre o papel dos cartunistas diz respeito à maior
adesão que o público tem a uma campanha se a cartilha é ilustrada por um artista.
Se o artista já tem fama e é conhecido pelo público como Monteiro Lobato,
Ziraldo e Maurício de Sousa, o fato de a cartilha ser assinada já eleva o apelo
ético, da autoridade que chancela a mensagem. Maurício de Sousa reconhece a
situação: “Eu avalizei. Eu sou corresponsável. Mas a autoria do negócio lá,
filosoficamente, é do cliente mesmo; [o autor] da mensagem, é o cliente mesmo”.
Esse não é, no entanto, o caso em todas as cartilhas, que podem ser assinadas por
cartunistas de menor fama, ou executadas por cartunistas não identificados, ou
mesmo por amadores (conforme observado na introdução). A característica das
cartilhas ilustradas – especialmente as de história em quadrinhos – que pode
contribuir para aumentar o interesse do leitor e, consequentemente, a percepção e
memorização da mensagem, é a de que os desenhos cartunescos ou caricaturais
facilitam a dinâmica de projeção/identificação do leitor.
Em estudo sobre a “magia” do cinema, Edgar Morin conceituou dois
processos que ocorrem de maneira complementar na relação do espectador com a
obra: a projeção e a identificação. A projeção corresponde a um antropomorfismo,
ou seja, “as nossas necessidades, aspirações, desejos, obsessões, receios projetam-
se [...] sobre todas as coisas e todos os seres”. A identificação corresponde a um
cosmomorfismo, ou seja, “o sujeito, em vez de se projetar no mundo, absorve-o”.
Trata-se de um complexo interligado: “A mais banal projeção sobre outrem – o
‘eu ponho-me no seu lugar’ – já é uma identificação de mim com o outro,
identificação essa que facilita e convida a uma identificação do outro comigo [...]”
(MORIN, 1970, p. 105-107). Quando um leitor se identifica com o personagem
apresentado numa cartilha (ou quando se projeta nele), aumenta seu interesse na
narrativa e aumenta a possibilidade de associar o que acontece com o personagem
e o que acontece com sua vida real. Assim, a mensagem pedagógica da cartilha
alcança um nível muito maior de adesão e a mudança de comportamento é mais
provável. Porém, para que a projeção/identificação seja bem-sucedida, o
personagem não pode ser tão particular ou tão distante da realidade que o leitor
146
não encontre pontos em comum consigo. Morin observa que, nas obras da
indústria cultural, as celebridades (que ele chama de olimpianos) têm as
qualidades para funcionar como objeto do processo. As estrelas de cinema, por
exemplo, de um lado são distantes, têm qualidades extraordinárias e os
espectadores apreciam se projetar nelas, para viverem, em sonho, aquelas vidas
fora do comum; de outro lado, as estrelas são mostradas em sua vida cotidiana, de
pais, mães e donas-de-casa, a ponto de os espectadores poderem facilmente se
identificar com elas. Assim, os olimpianos tornam-se “modelos de cultura no
sentido etnográfico do termo, isto é, modelos de vida” (MORIN, 2011, p.101).
Não se pode, porém, saber tão a fundo sobre a vida dos olimpianos a ponto de vê-
los como pessoas tão reais quanto nós, com falhas, incoerências e singularidade.
De maneira análoga, o personagem de uma cartilha, que se apresenta
representado por um “boneco” desenhado pelo cartunista (uma representação
caricaturada), deve possibilitar uma fácil identificação do leitor com tal figura. A
característica do desenho caricato ou cartunesco é facilitar o processo. Scott
McCloud pondera que se amplia o alcance da narrativa através da simplificação.
A caricatura ou cartum nos faz concentrar em poucos detalhes específicos:
"A capacidade que o cartum tem de concentrar nossa atenção numa ideia é parte importante de seu poder especial, tanto nos quadrinhos como no desenho em geral. Outra coisa é a universalidade de imagem do cartum. Quanto mais cartunizado é um rosto, mais pessoas ele pode descrever, dizem" (McCLOUD, 2005, p.31). Para McCloud, enquanto o rosto “realista” de um personagem ricamente
detalhado no sentido “fotográfico” nos afasta e nos desconcentra da narrativa
(perdemos tempo decifrando a riqueza de detalhes da representação), um rosto
caricaturado ou “cartunizado” nos aproxima, pois preenchemos mentalmente os
detalhes suprimidos com nossas próprias características (e passamos com fluência
pela representação, como uma leitura de signos deve ser). Em outras palavras,
podemos nos identificar mais facilmente com um cartum do que com uma pessoa
singular. Aquele “boneco” caricaturado, simplificado até certo nível, pode mais
facilmente nos representar dentro da narrativa. O leitor, um ser complexo e único,
pode encontrar relações entre o que pensa que o personagem “cartunizado” é e o
que pensa de si mesmo. O leitor completa as informações faltantes com suas
características pessoais, sendo capaz, quando a obra é bem-sucedida, de se ver um
tanto representado dentro da narrativa, na pele do “herói de quadrinhos”.
147
Além disso, no caso de Maurício de Sousa, que sempre produz cartilhas na
forma de gibis especiais com aventuras dos seus personagens infantis (por
exemplo, a cartilha sobre energia elétrica comentada acima), tais personagens
funcionam exatamente como os “olimpianos” de Morin. Há quatro décadas a
Turma da Mônica aparece regularmente em gibis e desenhos animados, a ponto de
ganharem um status de “atores” que existem independentemente das obras.
Maurício se refere a eles como seus “filhos” que ele empresta à comunicação via
cartilhas. Segundo ele, “Os personagens têm apelo, também. O carisma dos
personagens funciona bem. Isso é um bom vendedor. Eles são bons vendedores”.
Com isso, o cartunista está apontando que o leitor adere melhor a uma proposta de
mudança de comportamento se, acompanhando uma narrativa, vê personagens
famosos que já conhece e com os quais se identifica receberem informações e
mudarem seus comportamentos também.
A quarta hipótese levantada para o papel dos cartunistas na produção de
cartilhas é que seu trabalho é resumir a forma extensa e “bruta” da mensagem
num texto menor e mais simples. Alguns entrevistados abordaram essa ideia.
Pedro de Luna, tentando caracterizar o formato da cartilha, disse:
Acho que, principalmente, cartilha subentende resumo. Resumir uma quantidade xis de informação de uma forma mais rápida e, se possível, de fácil assimilação, porque aí entra a parte, também de ilustração e recursos visuais, mas, principalmente, um grande conteúdo que você precisa resumir, explicar de uma forma simples: “pegou fogo, aperte o botão vermelho na parede” e pronto. No entanto, o trabalho de resumir informação complexa e entregá-la
simplificada para um público amplo é típico do comunicador ou jornalista, mas
não distingue o trabalho do cartunista. É noção popular que “uma imagem vale
mais do que mil palavras”, mas o quadro que os entrevistados expressam aponta
que o processo é mais complicado do que isso. Um trecho da entrevista com o
cartunista Miguel Paiva sugere que o papel do cartunista não é apenas resumir:
Eu acho que sim, que ele é um tradutor, ele é um adaptador. Ele traduz e adapta. Porque, às vezes, você resume três parágrafos num desenho com um gesto. Embora o texto resultante seja menor em relação aos textos que
municiaram a criação da cartilha, não se trata apenas de resumir. O cartunista
Claudius, falando do seu processo de trabalho, explicou que, dependendo do tema
da cartilha, ouvirá um jurista, um ambientalista, um psiquiatra, um psicólogo, um
sociólogo, um antropólogo, e esses especialistas fornecerão informações
148
complexas. Serão coautores das cartilhas, mas o cartunista entra para resumir e
“traduzir” a mensagem técnica. Nas palavras dele:
Em alguns casos, você tá trabalhando uma questão que é complexa, específica, digamos, prevenção de gravidez. O que vai acontecer? Vai ter uma especialista que vai me dar o texto que ela escreveu sobre isso. Aí eu vou ler, e o texto é impublicável, ninguém vai entender, a não ser que seja médico. Aí eu digo: olha, não dá. Isso aqui não dá. Tá chamando de cefalalgia? Tem que chamar de dor de cabeça. Não. Vamos baixar essa bola, vamos reescrever isso, etc. Eu posso reescrever esse texto, fazer desse texto alguma coisa inteligível, mas continua sendo dela. Eu fiz uma edição. Eu reescrevi, mas do conteúdo, eu dou o crédito. É possível fazer um exercício para perceber até que ponto a criação de
uma cartilha demanda um resumo. Na coleta do material para esta pesquisa, foi
possível obter a forma técnico-científica da mensagem que deu origem a uma
cartilha da área de saúde. Houve um trabalho de que participei, em 2014, em que a
criação da cartilha deveria se basear num folheto de campanha que já existia e
cujo público-alvo eram os médicos clínicos. A ideia é comparar o texto extenso,
do folheto para médicos, com um resumo do mesmo e com a solução que foi
aprovada para a cartilha. O início do texto para médicos era este:
Pela primeira vez na história da humanidade, há mais pessoas no mundo vivendo em cidades que na zona rural. Em meados do século XXI, espera-se que sete em cada dez pessoas viverão nas cidades (UNRIC, 2010). No Brasil, 84% da população já vivem em zonas urbanas. (IBGE, 2010) A urbanização, termo que conhecemos e relacionamos a essa movimentação das pessoas da zona rural para as cidades, é um fenômeno real e bem estabelecido, cujas consequências sobre a saúde humana devem ser compreendidas e divulgadas, para que seja possível o planejamento e desenvolvimento de ações preventivas. Como veremos a seguir, a urbanização gera uma série de mudanças no estilo de vida das pessoas, criando hábitos que modificam drasticamente o ambiente. As alterações do ambiente, por sua vez, desencadeiam impactos sobre a saúde em todos os seus aspectos: físicos e psíquicos, global ou individualmente. Um resumo do texto acima, escrito por qualquer bom redator, profissional
ou não, poderia ser este:
Há cada vez mais pessoas vivendo em áreas urbanas do que rurais, no mundo todo. No Brasil isso não é diferente. A vida nas cidades gera uma série de mudanças no estilo de vida das pessoas, modificando seus hábitos e alterando as condições ambientais. Essas mudanças drásticas causam problemas de saúde que exigem ações preventivas. A extensão do texto é menor do que metade do texto original. Para tanto, é
desnecessário o trabalho de um cartunista ou mesmo da técnica do cartunista. Mas
o trecho com que se inicia a mensagem da cartilha encomendada para ter o mesmo
conteúdo (mas endereçar-se ao público geral) ficou muito diferente. O cartunista
desenhou uma sequência de cenas representando caricaturalmente um “homem
das
histó
ilustr
antec
foi u
conte
assoc
imag
Mun
colhi
quan
mais
híbri
funda
depo
com
você
que
repro
FiguraFonte
cavernas”
óricas marc
rações “cart
ComeçouaumentouNovo Mu A quanti
cipa o foco
uma adaptaç
eúdo léxico
ciadas ao d
gem do “hom
ndo” do trech
O que es
idos. Os ca
nto nas imag
clarament
ida. Os artis
amental, m
oimento, op
mais facili
, além da m
afirmava, a
oduzido aba
a 48. Ilustraçãe: Coleção J. A
que espirra
antes, com
tunescas”, a
u o homemu. A fumaça undo.
idade de tex
da mensage
ção do text
o simplific
desenvolvim
mem das ca
ho é represe
ssa experiên
artunistas en
gens das ca
te, os próp
stas não têm
mas se pre
inou que “O
idade. É m
mensagem, t
apontou um
aixo.
ão em O poderA. Buhrer
a com a f
mo a Roma
apenas estas
, começou das queimad
xto é ainda
em, que é a
to original.
cado e, ac
mento histó
avernas” co
entação que
ncia eviden
ntrevistados
artilhas. No
prios narrad
m dúvida d
eocupam ta
O humor é
muito mais p
tem uma ou
m dos desen
r do seu voto
fumaça da
a Antiga e
s linhas:
a poluição. das, a sujeira
menor do q
a poluição d
A adaptaç
cima de tu
órico em qu
omo marco
e entra em r
ncia pode se
s relatam in
caso das c
dores da h
de que os de
ambém com
uma forma
prazeroso v
utra mensag
nhos de sua
(1986) por C
fogueira e
a Idade M
E, daí praa das cidades
que no resu
do ar. Muito
ção levava
udo, repres
ue nossa so
inicial da h
eferência ao
er confirmad
nterferir tan
artilhas em
história, usa
esenhos des
m o texto
a de você p
você pegar
em visual”
a cartilha O
Claudius.
e, em segu
Média. Além
frente, a ps... E ela logo
umo acima,
o além de u
em conta u
entações c
ociedade se
humanidade
o território b
do pelos de
nto nos text
quadrinhos
ando uma
sempenham
o. Claudius
passar uma
uma cartilh
e, para exem
O poder do
149
uida, cenas
m de sete
poluição só o chegou ao
mas ele já
um resumo,
utilizar um
comumente
e insere: a
e. O “Novo
brasileiro.
epoimentos
tos escritos
s, eles são,
linguagem
m um papel
s, em seu
mensagem
ha em que
mplificar o
o seu voto,
150
O cartunista mostrou que ali estava “falando dos picaretas” e que avisava o
eleitor a ter “cuidado como você vai escalar a sua equipe”; apontou também o
personagem do árbitro de futebol que já estaria “puxando o cartão vermelho”.
Contextualizando: tal cartilha foi lançada em 1986, por ocasião da abertura
democrática, a propósito de aconselhar os cidadãos sobre como participar das
eleições. O texto a que o desenho se refere produz analogias para explicar como se
dá o processo eleitoral. Daí vem a representação de um jogo de futebol em que a
equipe representa o Congresso Nacional e o treinador representa o eleitor, que
escolhe os parlamentares para o “jogo”. No cartum, o atleta que entra em campo
com uma picareta no lugar da cabeça faz alusão à gíria “picareta” para denominar
uma pessoa desonesta e dissimulada, que só participaria do “jogo” para obter
vantagens pessoais. Na cena, o árbitro já olha desconfiado para o jogador, e
desconfiar é a atitude que o autor sugere aos cidadãos que lerão a cartilha.
Com ou sem ilustração, o texto da cartilha passará a mensagem com
simplicidade, como convém a uma publicação para grande público. A diferença é
que, o cartum, de fato, complementa o significado e acrescenta um comentário do
artista ao texto da cartilha. É o que Miguel Paiva tentou expressar neste trecho de
seu depoimento:
Se você tem um desenho pouco criativo, um desenho que não contribui, não fornece nada a mais praquele texto, você simplesmente vai estar registrando o texto e não vai estar traduzindo... [...] Aí é que entra a diferença entre o mero ilustrador e o desenhista de humor. Porque o desenhista de humor sempre vai dar uma contribuição. Ele vai sempre ter uma visão diferenciada como cartunista, que sabe como transformar aquela informação em algo mais, como surpreender o leitor, como facilitar com que aquela informação chegue ao leitor e bata, e fique. Claudius reafirma essa opinião. Perguntado se o trabalho do cartunista era
buscar, entre as histórias e personagens compartilhados dentro da cultura, uma
que servisse de analogia visual para traduzir a mensagem (tal como a analogia
com jogo de futebol), respondeu:
Você trabalha questões que são questões da cultura em que você vive, entende? Do modo de ser, das vivências. E, em cima disso, você tem um filtro. Você tem um filtro ético, do que você pensa politicamente. Tais opiniões sugerem que, mais do que resumir ou mesmo traduzir, o
papel do cartunista na criação de cartilhas é mediar. Sua posição é intermediária
entre o plano do conhecimento técnico-científico, o qual gera a mensagem da
cartilha, e o conhecimento do cotidiano, o qual corresponde ao plano do grande
151
público leitor. Conhecimento do cotidiano, aqui, é uma maneira de chamar o que
Serge Moscovici chama de “senso comum” e cujos elementos são as
“representações sociais”. Para ele, o senso comum não é universal nem deriva da
natureza, é um conhecimento construído pela sociedade e está sempre em
transformação. Existiria ciência popular, economia popular, psicologia popular e
assim por diante, pois todos nós temos conceitos que utilizamos para lidar com
fenômenos e práticas da vida cotidiana. São conceitos funcionais; são transmitidos
e aperfeiçoados socialmente, embora não sejam aceitos como ciência disciplinada.
Mesmo técnicos, quando se expressam, têm dificuldade de manter um discurso
apenas com conceitos científicos e se apoiam nos conceitos da “ciência popular”
para se explicarem. Transmitir e colocar em luta as representações sociais é papel
dos “pedagogos, ideólogos, popularizadores da ciência ou sacerdotes”
(MOSCOVICI, 2003), grupo de profissionais ao que esta pesquisa sugere
acrescentar os “tradutores” tais como jornalistas, publicitários e cartunistas.
A concepção de que existe uma “ciência do concreto” foi abordada
anteriormente, de outra forma, por Lévi-Strauss em sua obra O pensamento
selvagem, onde descreve a atividade da bricolage como analogia para a prática
artística. Mais tarde tal modelo foi associado ao trabalho dos redatores
publicitários (ROCHA, 1995; McCRACKEN, 2007). Pode ser, também, aplicado
aos cartunistas para explicar em que, fundamentalmente, contribuem na criação de
cartilhas. A argumentação de Lévi-Strauss (2012, p.29-39) é de que a atividade do
bricolage serve de analogia, no plano prático, dos objetos materiais, ao modo
como o pensamento “em estado selvagem” produz conhecimento, sendo que tal
conhecimento é descrito pela etnografia tradicional como “magia”. O processo do
bricoleur é, a partir de um problema colocado a ele (“conserte este objeto”, “cure
este mal”), fazer um inventário dos recursos de que dispõe, todos coletados na sua
vivência e já classificados por ele em categorias que limitam previamente, até
certo ponto, os casos em que podem ser utilizados. Toda peça colecionada pelo
bricoleur é, de modo geral, polivalente. Ele não sabe exatamente em que ela vai
servir; o significado dela está em aberto. As peças ganharão significado para ele
quando formarem um conjunto que resolve o problema (ou “conserta o objeto”).
O bricoleur, no entanto, não cria novas peças de propósito para resolver o
problema; ele só pode usar o que já está à disposição.
152
A analogia com o trabalho do cartunista é a seguinte: primeiro, ele recebe
um problema. No caso desta pesquisa, é a encomenda de uma cartilha. O briefing
do trabalho determina qual mensagem técnico-científica deve ser transmitida com
facilidade para qual público. O primeiro passo após entender o problema é se
voltar para a coleção de representações sociais, princípios e conceitos
compartilhados pelo maior número de pessoas dentro da cultura, num dado local e
dada época. Os cartunistas costumam ser lidos e cultos; sua memória se reporta às
leituras infantis, às experiências escolares, aos silogismos aprendidos, além de
todas as piadas, canções, anedotas, slogans e ditados que já ouviram e circulam na
cultura popular. Até certo ponto, são herdeiros de Rabelais na observação dos
elementos do riso popular e grotesco. Percorrem todas as categorias de
representações, tipos e mesmo estereótipos de que têm conhecimento. Procuram
aqueles elementos da cultura que podem, em conjunto, traduzir a mensagem que
receberam na encomenda. O resultado é uma narrativa cômica ou espirituosa, um
cartum, uma colagem, uma metáfora visual, qualquer criação artística que seja
entendida pelos leitores que compartilham daquela mesma coleção cultural. Esse
processo, mais ou menos consciente, é o que o cartunista Miguel Paiva descrevia
quando falou da criação da cartilha O Gatão e seus amigos: “a maior dificuldade
que eu senti foi de sintetizar todas essas coisas”. O processo é simplificado por
Ziraldo: “Mas eu acho é assim: o cara diz ‘olha o que eu quero dizer pro meu
público’ e a gente diz ‘olha como você vai dizer isso pro público”.
Assim podem ser encaradas todas as intervenções dos cartunistas nas
cartilhas (em algumas cartilhas, como a de Monteiro Lobato, as intervenções
literárias também). No caso da ilustração do “picareta”, de Claudius, mostrada
acima, por exemplo, o artista buscou, na cultura, a gíria que denuncia um corrupto
e que podia ser representada pelo desenho de um objeto facilmente identificável.
Antes disso, buscou no jogo de futebol, muito popular e rico em anedotas, uma
metáfora para o jogo político-eleitoral. O jogo serviu de metáfora porque, na
cultura brasileira, está carregado de significados que podem ser associados
também à vida política. No caso da cartilha em quadrinhos sobre a economia e
energia elétrica, por exemplo, a equipe de Maurício de Sousa buscou, entre todas
as narrativas que encantam os leitores, uma que ajudasse a transmitir os
conhecimentos técnicos existentes no briefing. Encontraram o tema da “viagem
fantástica”, jogando a Turma da Mônica numa viagem por dentro dos cabos
153
elétricos. No caso da cartilha de prevenção do câncer, no trecho em que se
denuncia a influência da publicidade de tabaco sobre os jovens, a equipe de
Ziraldo buscou, na cultura, o conceito do “macaco de imitação” e associou-o à
popular história cinematográfica do King Kong, tudo numa colagem que
representa a dinâmica entre as campanhas publicitárias de cigarro e os jovens
consumidores. Outros exemplos poderiam se seguir.
Em conclusão, duas respostas para a questão colocada neste capítulo se
projetam à frente das outras hipóteses avaliadas: aquela que se refere à origem dos
cartunistas ao redor das publicações da virada do século XIX para XX e aquela
que se refere ao modelo da bricolage como uma forma de produção intelectual
que caracteriza o trabalho dos cartunistas e justifica a escalação desses para a
criação de cartilhas. Ambas as respostas apontam para uma relação de mediação
entre polos da cultura: ciência e cotidiano, modernidade e tradição, elitismo e
popularidade. Uma vez que caricaturistas, cartunistas e autores de histórias em
quadrinhos começam a se desenvolver junto com a moderna indústria editorial e
jornalística, encontraram-se engajados no processo civilizador, principalmente por
meio da sátira, e fazendo uma ponte entre as novidades técnicas, as modas, os
conceitos sofisticados e as realidades do cotidiano popular.
O gênero de publicação que se apoia mais fortemente em um discurso
disciplinador ficou, desde então, associado ao desenho de humor. Como, na
sociedade, existem “discursos que estão na origem de certo número de atos novos
de fala que os retomam, os transformam e falam deles [...]” (FOUCAULT, 1999,
p.22) uma cartilha não pode deixar de se referir às cartilhas que a precederam, e
tenderá a empregar cartunistas para satisfazer as condições da sua ordem de
discurso. A opção é reafirmada a cada nova publicação, porque os patrocinadores
de cartilhas avaliam que, com o trabalho dos artistas, a mensagem atinge mais
pessoas, mais fundo. Analogamente à descrição que Lévi-Strauss fez da prática
artística, é um meio-termo entre um raciocínio técnico (porque tem condições
concretas de se realizar, em função do tema, do material da obra e do público-
alvo) e uma operação de bricolage, de associação “mágica”, nunca pré-definida,
de “peças” recolhidas na própria cultura. É apenas nesse sentido que o cartunista é
um “tradutor” ou faz um “resumo” com qualidades “lúdicas”.
154
5. Considerações finais
Esta pesquisa se iniciou com a proposta de investigar uma produção do
campo da comunicação social que, apesar de ter já uma história de décadas, passa
despercebida aos olhos dos pesquisadores. Na minha experiência profissional, no
entanto, a produção de cartilhas era uma constante. Com o tempo comecei a me
questionar sobre o significado desse trabalho; o “familiar” começou a me parecer
“exótico”. Percebi que poderia ser feito um trabalho de classificação,
documentação e estudo sobre essas publicações, e que esse estudo poderia
identificar padrões no “modo de fazer” dessa atividade.
Ao passo em que encontrava publicações de outros cartunistas – o que
aconteceu com frequência cada vez maior após o início da pesquisa – percebia que
o padrão começava a ficar evidente. Antes de começar o mestrado, a intenção era
descrever a normatividade dessa prática e determinar como ela poderia ser bem-
sucedida. Com o início dos estudos, no entanto, a proposta passou a ser investigar
qual o significado de tantas pessoas se empenharem nesse tipo de produção, sem
preocupação com a eficácia dessas publicações. De fato, uma das características
do trabalho em cartilhas é que os criadores e patrocinadores têm uma noção muito
incompleta da eficácia de suas publicações em relação às suas intenções
(persuadir os leitores a mudarem seus comportamentos). A falta de dados
numéricos e as referências puramente subjetivas quanto ao sucesso das
campanhas, apuradas em entrevistas, levam à conclusão de que o significado das
cartilhas não remonta sobre os resultados sociais das campanhas, mas sobre a
própria prática de sua produção.
Para alcançar o objetivo da pesquisa, a primeira tarefa foi caracterizar o
modelo da cartilha de propaganda e campanhas públicas, delimitando, assim, os
contornos do objeto de estudo. Nos primeiros meses da pesquisa, percebi que
havia, entre todos, eu incluído, uma dúvida sobre que publicações poderiam ser
chamadas de cartilha e uma confusão em torno dos nomes com que diferentes
publicações eram chamadas (manual, guia, caderno?). A palavra “cartilha” é um
termo polissêmico, mas foi adotada na pesquisa porque tinha o maior peso
semântico. Se, etimologicamente, a palavra designava apenas um formato gráfico,
ganhou proeminência quando assumiu também o sentido de “publicação que
155
educa” e, assim, dividir opiniões: é benefício social ou imposição? Alguns
profissionais adotam a palavra; outros a evitam.
As observações mais recentes da pesquisa levam à conclusão de que o
termo “cartilha” é cada vez mais usado para chamar listas de procedimentos que
órgãos públicos divulgam para orientar os usuários de seus serviços ou
beneficiários de direitos. Nesse sentido, porém, a produção perde muitas
características desenvolvidas ao longo do tempo e essas listas não foram
consideradas como objeto de estudo, apesar de estarem sendo chamadas de
cartilhas.
A partir da coleta e análise de 300 publicações, dos depoimentos ouvidos e
da própria experiência profissional, balizada pelas teorias de comunicação,
chegou-se a uma definição coerente do que seja uma cartilha, conforme as
características fundamentais:
a) É uma publicação em formato de livreto, ou seja, médias a pequenas
dimensões gráficas, que possam ser facilmente transportadas, guardadas e
manipuladas durante a leitura. Normalmente é dividida em páginas e é impressa.
Mesmo quando é distribuída na forma de arquivo, pela rede, mantém-se a forma
da leitura dividida em páginas.
b) É uma publicação pouco extensa. Para efeito da seleção do corpus,
foram avaliadas publicações com, no máximo, 64 páginas. A característica da
pequena extensão se traduz no número de páginas e também na rarefação de texto
por página. As cartilhas, normalmente, apresentam muito menos texto por página
do que um livro comum.
c) É publicação de responsabilidade de uma organização. Indivíduos não
são autores de cartilhas e elas não podem ser consideradas obras literárias. Mesmo
quando um artista assina a cartilha, ele o faz sob contrato de uma organização.
Normalmente as cartilhas são publicadas por órgãos públicos (ministérios,
secretarias, autarquias, agências, etc.); muitas vezes, por ONGs (institutos,
fundações, etc.), sindicatos e também por grandes companhias privadas.
d) O propósito da publicação é informar públicos amplos sobre assuntos de
relevância social ou de interesse mútuo entre a organização e o público.
Normalmente não se delimita a localização nem o nível social do público; a
cartilha é distribuída para o máximo de pessoas possível. Nem mesmo o momento
em que a cartilha encontra o leitor é delimitado. A publicação, normalmente,
156
circula sem “prazo de validade”. Dentro desse público amplo supõe-se que a
maioria não tem hábito de leitura frequente. Quem avalia que o conteúdo da
cartilha é de interesse social é a organização que publicou. Normalmente ela não
parte do interesse do público e os leitores são passivos; não buscam
voluntariamente a publicação. Essa é a razão para as duas características
seguintes:
e) É uma publicação distribuída gratuitamente. Há várias maneiras de
distribuir, dependendo do alcance desejado e dos recursos da campanha.
f) A publicação se utiliza de recursos persuasivos, similares aos da
atividade publicitária, para conquistar a adesão do leitor, primeiro, para a própria
leitura do conteúdo; segundo, para a mudança de comportamento a que a
campanha almeja.
g) A publicação supõe uma estratégia de propagação da mensagem. O
leitor é estimulado a multiplicar o entendimento a que chegou com a leitura,
principalmente dentro de sua família. É comum a cartilha ser escrita para
estudantes do ensino fundamental e o público adulto recebe a mensagem de
“segunda mão”.
Essas são as constantes do formato de publicação que, nesta pesquisa, se
chama cartilha. Se ela apresenta desenhos humorísticos, fotos, gráficos,
depoimentos reais, histórias em quadrinhos, formulários, etc., são variáveis que
não importam na definição. Se a publicação tem mais texto do que imagens, ou se
aparenta ser um livro infantil, se o formato do papel é quadrado ou retangular, se
foi impressa a cores ou em preto e branco, não importa para a definição. Se o
título da publicação é “manual”, “guia” ou “livro”, não importa; o termo utilizado
não define a cartilha.
Essas definições foram possíveis porque a pesquisa mostrou que existe
uma comunidade de criadores de cartilhas que, mesmo sem se conhecerem,
compartilham de um “modo de fazer” coletivo, como já sugeriu Becker (1977).
Se, no início do trabalho, eu conhecia praticamente apenas os trabalhos de Ziraldo
e Maurício de Sousa, durante a pesquisa de campo me surpreendi com a riqueza
de publicações circulantes, e com a descoberta de muitos outros cartunistas que
têm a carreira entremeada de trabalhos do gênero. Ainda que tenhamos
desenvolvido trabalhos em separado, os problemas, soluções e opiniões sobre o
assunto são muito semelhantes. A pesquisa na rede ampliou ainda mais os
157
horizontes e sugeriu que tal prática (e tal conhecimento compartilhado) se
expande e se multiplica a ponto de representar uma “cartilhosfera” ou uma
“nuvem” de publicações desse gênero, muito difícil de ser apreendida por inteira.
As noções de que tais publicações fazem parte dos dispositivos de
construção da verdade e de que também são marcas que apontam o curso do
processo civilizador foram mais bem fundamentadas com o estudo de coleções de
cartilhas dedicadas aos temas de saúde e de consumo. Se as intenções originais
das organizações e profissionais que produziram tais cartilhas eram outras, o fato
é que sua produção faz todo sentido como parte dos múltiplos instrumentos com
que a sociedade constrói sujeitos e padrões de normalidade. Uma questão foi
gerada pelo quadro descrito acima: podemos reconhecer a sociedade brasileira
como uma sociedade que tem muita vontade de disciplinar e civilizar? Temos essa
inclinação a seriamente nos “incumbir da vida dos outros”? A “cartilhosfera”
descrita acima parece resultado de um desejo de fazer circular, nesta sociedade,
preceitos sobre “tudo o que o cidadão deve saber”, em todos os campos, para se
adequar a padrões e normas. O projeto de pesquisa se iniciou focando na
linguagem das cartilhas, mas percebeu-se, no decorrer do estudo, que nada do que
uma cartilha divulga importa tanto assim. O que se deve compreender é o que o
conjunto das cartilhas quer dizer sobre a sociedade.
Entre as características que definem o gênero seria aceitável alinhar mais
uma: a de que cartilhas normalmente são criadas com a participação de
desenhistas de humor ou cartunistas. Não é necessário que esses profissionais
sejam convocados; há casos em que ilustradores e designers fazem o papel dos
desenhistas de humor. No entanto, as publicações mais significativas, que podem
melhor representar o gênero, têm a participação de artistas. Aos cartunistas, como
exceções, podem se juntar escritores, como o caso de Monteiro Lobato. Uma das
propostas desta pesquisa era investigar o significado desse fato. Ao fim do estudo,
que se valeu de entrevistas com vários artistas envolvidos, bem como alguns de
seus clientes, o papel dos cartunistas foi descritivamente aprofundado e tentou-se
alcançar a densidade do processo a partir da interpretação dos significados dos
seus discursos.
Como qualquer trabalho de pesquisa, estou ciente de que não cobri todas
as discussões possíveis. Além disso, o material empírico coletado tem potencial
158
para muitas análises. Entre as alternativas de desdobramento, que não pude
aprofundar nesta dissertação, estão:
a) Estudo das cartilhas produzidas durante o período do Estado Novo,
quando o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) difundia o culto cívico à
Nação e ao líder Getulio Vargas. Elas foram analisadas durante esta pesquisa,
formam um corpus muito interessante, mas, até hoje, foram estudadas sem foco
nas questões de Comunicação Social.
b) Estudo das cartilhas classificadas na categoria de cidadania e direitos.
Embora as cartilhas com esses temas sejam as mais numerosas dentro da nossa
coleção, sua análise demandaria uma dissertação de mestrado somente com esse
recorte, com instrumental teórico adequado.
c) Estudo comparativo das representações nas cartilhas sobre segurança no
trânsito antigas e recentes. Parte-se da noção de que, conforme se desenrola o
processo civilizador, lições mais antigas vão se naturalizando ao passo que
surgem novas demandas de ajuste dos comportamentos ao padrão dito
“civilizado”. Assim, cartilhas mais antigas parecem dar conselhos desnecessários
do ponto de vista do leitor atual. Por outro lado, lições que constam nas cartilhas
mais novas não existem nas cartilhas antigas. A pesquisa do tema do trânsito,
apesar de ser relativamente novo, é a mais promissora para apontar como se
desenrola o processo.
d) Estudo comparativo entre cartilhas sobre serviços e produtos antigas e
recentes, para apontar as transformações relacionadas ao processo civilizador. Por
exemplo: como se ensinava a etiqueta da comunicação por telefone celular nos
tempos de sua introdução e como é ensinada hoje.
Esses desdobramentos decorrem da noção de que a produção e circulação
de publicações (entre as quais se inclui o gênero da cartilha) produz narrativas que
nos ajudam a compreender as transformações que as sociedades atravessam na
experiência de um processo que já atravessa alguns séculos que se convencionou
chamar de construção da modernidade.
159
6. Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. Retórica. Lisboa: Imprensa Nacional. Casa da Moeda, 2005. Disponível em: <http://www.obrasdearistoteles.net/files/volumes/0000000030.PDF> Acesso: 10 set. 2015. BAKHTIN, Mikhail M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UNB, 1987. ________. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992 BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Campinas: Papirus, 1991. ________. A sociedade do consumo. Lisboa: Edições 70, 2011. BECKER, Howard S. Falando da Sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. ________. Arte como ação coletiva. In: BECKER, Howard S. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro, Zahar, 1977. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Eve. O novo espírito do capitalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2013 CAMPBELL, Colin. “Eu compro, logo, sei que eu existo: as bases metafísicas do consumo moderno”. In: BARBOSA, Lívia e CAMPBELL, Colin (orgs). Cultura, Consumo e Identidade. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006. CAROLA, Carlos Renato. Jeca Tatu e o processo civilizador da família rural brasileira. Anais do VIII Simpósio Internacional Processo Civilizador, História e Educação. Universidade Federal da Paraiba, 2004. Disponível em: <http://www.uel.br/grupo-estudo/processoscivilizadores/portugues/sitesanais/anas8/artigos/CarlosRenatoCarola.pdf> CARRASCOZA, João A. A evolução do texto publicitário: a associação de palavras como elemento de sedução na publicidade. São Paulo: Futura, 1999. _____________. Razão e sensibilidade no texto publicitário. São Paulo: Futura, 2004. CARVALHO, M. M. C. Sampaio Dória. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/ Editora Massangana, 2010.
160
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 2002. COSTA, Jurandir F. Ordem médica, norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 2004. COHEN, Margaret. A literatura panorâmica e a invenção dos gêneros cotidianos. In: CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.) O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004. CROW, Thomas. El arte moderno em la cultura de lo cotidiano. Madri: Akal Ediciones, 2002. DAMATTA, Roberto. Tem pente aí?: reflexões sobre a identidade masculina. Revista Enfoques: revista semestral eletrônica dos alunos do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.134-151, agosto 2010. Em: http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br. ELIAS, Norbert. O processo civilizador Vol.1: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. FONSECA, Joaquim da. Caricatura: a imagem gráfica do humor. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990. _________. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1999. _________. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2013. _________. O nascimento da clínica. 7ª. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013. _________. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2014. GOMBRICH, E. H. História da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. HASWANI, Mariângela F. Comunicação Pública: bases e abrangências. São Paulo: Saraiva, 2013. HENFIL. Diário de um cucaracha. Rio de Janeiro: Record, 1983. HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2014. IANNI, Octavio. Tipos e mitos do pensamento brasileiro. Sociologias, Porto Alegre, ano 4, nº 7, p.176 – 187, jan/jun 2002. KELLER, Alexandra. Disseminações da modernidade: representação e desejo do consumidor nos primeiros catálogos de venda por correspondência. In: CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004. LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 2012.
161
LOPES, Fernanda L. Contribuições da Retórica para o campo da comunicação e para os estudos de mídia. Revista Interin. Curitiva, v. 14, n. 2, p. 18-30, jul/dez. 2012. LOREDANO, Cassio. Fortuna: o cartunista dos cartunistas. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2014. LUPTON, Deborah. The imperative of health: public health and the regulated body. Londres: SAGE, 1995. McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995. McCRACKEN, G. Cultura e consumo: uma explicação teórica da estrutura e do movimento do significado cultural dos bens de consumo. RAE-Revista de Administração de Empresas. vol. 47 , n.1 , p. 99 – 115, jan-mar 2007. MENDONÇA, Márcia R. de S. Ciência em quadrinhos: recurso didático em cartilhas educativas. Tese de Doutorado – Área de Linguística. CAC-UFPE, Recife, 2008. MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2003. MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário: ensaio de antropologia. Lisboa: Moraes editores, 1970. ________. Cultura de massas no século XX: espírito do tempo 1: neurose. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. MOYA, Álvaro de. Shazam! São Paulo: Perspectiva, 1972. MOZDZENSKI, Leonardo P. A cartilha jurídica: aspectos sócio-históricos, discursivos e multimodais. Dissertação de Mestrado - Área de Lingúistica. CAC-UFPE, Recife, 2006. NEIVA, Eduardo. Dicionário Houaiss de Comunicação e Multimídia. São Paulo: Publifolha, 2013. ORTIZ, Renato. Os dois séculos XIX. In: Modernidade e cultura: a França no século XIX. São Paulo, Brasiliense, 1991. RABAÇA, Carlos A. & BARBOSA, Gustavo G. Dicionário de Comunicação. Rio de Janeiro: Codecri, 1978. RAPPAPORT, Erika D. “Uma nova era de compras”: a promoção do prazer feminino no West End londrino, 1909-1914. In: CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004. REIS, Devani S. de M. Comunicação pública dos serviços de saúde para o idoso: análise da produção e percepção da cartilha “viver mais e melhor”. Tese de Doutorado – Área de Propaganda. ECA-USP, São Paulo, 2005. ROCHA, Everardo. Magia e capitalismo. São Paulo, Brasiliense, 1995. _______. As representações do consumo. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio : Mauad X, 2006. _______. Coisas estranhas, coisas banais: notas para uma reflexão sobre o
162
consumo. In: ROCHA, Everardo. ALMEIDA, Maria Isabel M. de. EUGENIO, Fernanda (orgs). Comunicação, Consumo e Espaço Urbano: novas sensibilidades nas culturas jovens. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio e Mauad Editora, 2006. ROCHA, Everardo, FRID, Marina & CORBO, William. Negócios e magias: Émile Zola, Au Bonheur des Dames e o consumo moderno. Revista Comunicação Mìdia e Consumo, v. 11, n. 32, 2014. RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. 3ª ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983. SACRAMENTO, Igor. A midiatização da retórica. Revista Fronteiras – Estudos midiáticos 11(2), p. 89-112, maio/agosto 2009. SALIBA, Elias T. Raízes do riso: a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. SANTOS, Roberto. E. Riso cotidiano: as estratégias de humor nas tiras cômicas norte-americanas. In: Humor e riso na cultura midiática: variações e permanências. São Paulo: Paulinas, 2012. _________. Reflexões teóricas sobre o humor e o riso na arte das mídias massivas. In: Humor e riso na cultura midiática: variações e permanências. São Paulo: Paulinas, 2012. SARRO, Ed Marcos. Estruturas icônicas nas cartilhas de treinamento quadrinizadas. Dissertação de Mestrado – Área de concentração: Design e Arquitetura. FAU-USP, São Paulo, 2009. SICILIANO, Tatiana O. O Rio de Janeiro de Artur Azevedo: cenas de um teatro urbano. Rio de Janeiro: Mauad X : Faperj, 2014. SIMMEL, Georg. As grandes cidades e a vida do espírito. Mana 11(2). 2005. SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2004. SLATER, Don. Cultura do consumo & modernidade. São Paulo: Nobel, 2002. SOUZA, Érica M. de. As práticas educativas em saúde: o Serviço Nacional de Educação Sanitária em estudo (1940-1970). Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH . São Paulo, 2011. VELHO, Gilberto. Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana. VIANNA, H.,KUSCHNIR, K., CASTRO, C. (orgs.).Rio de Janeiro: Zahar, 2013. ZIRALDO. Ninguém entende de humor. Revista de Cultura Vozes n.3. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 139-205. ZVELEBIL, Kamil. Tamil literature. Leiden u.a: Brill, 1975.