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MICROPOLÍTICA DE AFETOS ENTRE MULHERES NO ASSENTAMENTO CONQUISTA DA FRONTEIRA Clarice Gomes de Almeida (Universidade Federal do Pampa) Dulce Mari da Silva Voss (Universidade Federal do Pampa) [email protected] Resumo Nessa escrita apresento a composição de paisagens existenciais criadas por laços de afeto entre mulheres que habitam o Assentamento Conquista da Fronteira em Hulha Negra (RS). Aliada à Filosofia da Diferença de Foucault, Deleuze e Guattari, opero um pensamento rizomático ao produzir a cartografia micropolítica de subjetivações da vida de mulheres no cotidiano do Assentamento. Assim, se entrelaçam experiências e memórias de tempos passados e presentes. Tempos em que construo memórias da docência na Escola Quinze de Junho. Desenham-se devires minoritários. Mulheres que, em meio às lutas pelo direito à vida e a terra, forjam linhas de afeto que atravessam vidas e estetizam existências. Palavras-chave: Mulheres; Assentamento; Estética da Existência; Devires. Introdução Esse texto é inspirado em relações de afeto experimentadas na convivência entre mulheres no Assentamento Conquista da Fronteira, Hulha Negra (RS). Lugar da pesquisa cartográfica que desenvolvo no Mestrado Acadêmico em Ensino, na qual constituo territórios e paisagens existenciais, movida pelo desejo de produzir memórias de tempos em que lá já estive atuando na Pastoral da Juventude nas lutas do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e, anos mais tarde, como docente na Escola Estadual Quinze de Junho.

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Page 1: MICROPOLÍTICA DE AFETOS ENTRE MULHERES NO … · como jogo de poder (FOUCAULT apud CASTRO, 2016, p.150-151). Mulheres silenciosas que produzem diferentes histórias no seio dos seus

MICROPOLÍTICA DE AFETOS ENTRE MULHERES NO ASSENTAMENTO CONQUISTA DA FRONTEIRA

Clarice Gomes de Almeida (Universidade Federal do Pampa)

Dulce Mari da Silva Voss (Universidade Federal do Pampa)

[email protected]

Resumo Nessa escrita apresento a composição de paisagens existenciais criadas por laços de afeto entre mulheres que habitam o Assentamento Conquista da Fronteira em Hulha Negra (RS). Aliada à Filosofia da Diferença de Foucault, Deleuze e Guattari, opero um pensamento rizomático ao produzir a cartografia micropolítica de subjetivações da vida de mulheres no cotidiano do Assentamento. Assim, se entrelaçam experiências e memórias de tempos passados e presentes. Tempos em que construo memórias da docência na Escola Quinze de Junho. Desenham-se devires minoritários. Mulheres que, em meio às lutas pelo direito à vida e a terra, forjam linhas de afeto que atravessam vidas e estetizam existências. Palavras-chave: Mulheres; Assentamento; Estética da Existência; Devires.

Introdução

Esse texto é inspirado em relações de afeto experimentadas na convivência

entre mulheres no Assentamento Conquista da Fronteira, Hulha Negra (RS). Lugar

da pesquisa cartográfica que desenvolvo no Mestrado Acadêmico em Ensino, na

qual constituo territórios e paisagens existenciais, movida pelo desejo de produzir

memórias de tempos em que lá já estive atuando na Pastoral da Juventude nas lutas

do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e, anos mais tarde, como

docente na Escola Estadual Quinze de Junho.

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Através das memórias torno as experiências vividas acontecimentos que

enredam e produzem os sujeitos e os territórios habitados sempre em vias de se

desterritorializar e reterritorializar pelos diferentes retornos produzidos em que

encontro os sujeitos que ali ainda vivem ou que, como eu, se lançaram a outros

lugares, outras vidas.

Como esclarece Hur (2012, p. 181), na concepção de Deleuze: [...] a memória não se restringe a uma versão única e linear sobre os fatos, e sim possui um caráter múltiplo, difuso, caótico, em que se ramifica e se desdobra de uma maneira magmática, a partir de uma interconexão de múltiplos planos temporais, que inclusive podem contradizer-se um com o outro.

Assim, desenho uma micropolítica de subjetivações como efeito de memórias

criadas em torno das experiências de educação comunitária e escolar, passadas e

presentes, que acontecem na convivência entre mulheres e em seus fazeres

cotidianos no Assentamento.

Devires mulheres minoritários

Ao traçar territórios existenciais das relações entre o lugar e os sujeitos que

os habitam, meu olhar de pesquisadora está imerso nessa criação desde dentro,

misturo-me a essas histórias, deixo deslizar as emoções que me afetam,

experimento sabores, aromas, imagens, canções que atravessam meus sentidos.

E, percebo linhas de fuga por onde escapam devires mulher minoritários, pois Só há sujeito devir como variável desterritorializada da maioria, e só há termo médium do devir como variável desterritorializante de uma minoria. O que nos precipita num devir pode ser qualquer coisa, a mais inesperada, a mais insignificante. Você não se desvia da maioria sem um pequeno detalhe que vai se pôr a estufar, e que lhe arrasa (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 93).

Forças femininas que foram e são silenciadas nas lutas em defesa do direito a

vida e a terra, como Margarida, Rose e tantas outras. Histórias que fazem brotar

outras vidas, como Nilva, Neuza, Neuzele, Jose, Ely, Olga, mulheres guerreiras que

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com seus fazeres, perfumes e sabores, estetizam existências cotidianas, uma vez

que: Por estética da existência, há que se entender uma maneira de viver em que o valor moral não provém da conformidade com um código de comportamentos, nem com um trabalho de purificação, mas de certos princípios formais gerais no uso dos prazeres, na distribuição que se faz deles, nos limites que se observa, na hierarquia que se respeita [...] A estética da existência é uma arte, reflexo de uma liberdade percebida como jogo de poder (FOUCAULT apud CASTRO, 2016, p.150-151).

Mulheres silenciosas que produzem diferentes histórias no seio dos seus

lares. Semeiam e cultivam seus jardins e pomares, fazem pão e sabão no cotidiano

de suas vivências, cuidam dos filhos, da terra, tiram leite e apascentam o gado.

Mesmo na dureza do cotidiano não perdem o brilho no olhar, brilho da esperança de

quem semeia e acredita nas alvoradas.

Os cantos entoados em diferentes jornadas de luta me fazem lembrar e

pensar o quanto mulheres e terra estão ligadas a geração da vida. Em meio às

agruras das lutas cotidianas, mulheres carregam no ventre e no olhar dores e

alegrias. Entre o plantar e colher, o tempo de espera gestacional silencioso que

requer paciência, perseverança e resistência. Encontro beleza singular em cada

rosto, em cada sorriso, de quem caminhou por estradas empoeiradas embaixo do

sol e amassando barro nos invernos rigorosos.

Nesses retornos, também recrio memórias da minha experiência na Escola

Quinze de Junho. Tempos em que tinha algumas coisas para ensinar e muito a

aprender. Lembro que, logo que lá cheguei, tratei de ler os Cadernos de Educação

do Movimento Sem Terra (MST). Começava os dias de encontro na Escola cantando

com as crianças: “Vem lutemos, punho erguido, nossa força nos leva edificar nossa

pátria livre e forte construída pelo poder popular”.

A mesma canção que ecoava pelas ruas junto ao mutirão de trabalhadores

na luta por escola nos acampamentos e assentamentos, era a trilha sonora do meu

fazer pedagógico naquele lugar: “Tem que estar fora de moda criança fora da

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escola/ Pois há tempo não vigora o direito de aprender/Criança e adolescente e uma

educação decente/ Para um novo jeito de ser”.

Assim, procurava trabalhar com as vivências comunitárias das crianças e, por

isso trazia para a sala de aula elementos que fossem do seu cotidiano. Esse

processo durou dois anos. Tempo que foi possível construir mais do que um ensinar

e aprender, um entrelaçar de vidas que desenham até hoje territórios de afetos.

Construí minha história no cotidiano da escola do Assentamento, sem perder

a ternura e nem o embelezamento do espaço da sala de aula, território de múltiplos

aprendizados aos quais retorno pelos reencontros com aqueles/as que lá estudaram

e as mulheres mães que ainda lá permanecem.

Mulheres, esposas, mães, filhas, irmãs, professoras que escrevem no

cotidiano as suas histórias, e produzem diferentes subjetividades, recriando vidas.

São belas por si só, parecem renascer a cada dia, pois não param de sonhar e crer

em dias melhores para si, para seus companheiros e filhos/as.

Considerações finais

Ao entender que os discursos são estratégias de luta que produzem os

sujeitos de que falam (FOUCAULT, 1996), procurei nessa escrita desviar-me de

certos discursos majoritários fabricados pelos campos científicos modernos e

mesmo por movimentos sociais que engendram saberes e poderes em torno de uma

subjetividade de gênero unitária. Esses discursos não dão conta da multiplicidade de

existências que constitui subjetividades singulares.

Por isso, falei aqui de uma micropolítica de subjetivações experimentadas por

sujeitos mulheres, incluindo a mim mesma, que com seus fazeres e vivências

constituem territórios existências férteis de devires, forças que pulsam numa

semeadura da vida.

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Penso as mulheres do Assentamento como devires flores e frutos que brotam

da terra, composição de diferentes estratos abertos aos intensos fluxos que

penetram e transformam constantemente vidas.

Referências

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault: um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. 2ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, FéLix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. 2ª ed., vol. 4. Tradução: Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: editora 34, 2012.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France (02/12/1970). 2º Ed., São Paulo: Loyola, 1996. HUR, Domenico U. Memória e tempo em Deleuze: multiplicidade e produção. Athenea Digital, n.13 (2), julho 2013, p. 179-190. Disponível em: http://psicologiasocial.uab.es/athenea/index.php/atheneaDigital/article/view/Hur Acesso em: 02/04/2019.