microfísica do poder

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MICHEL FOUCAULT E A “MICROFÍSICA DO PODER” 1. O poder O poder deve ser analisado como algo que circula, que funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como riqueza ou bem. O poder funciona e se exerce em rede. Os indivíduos, em suas malhas, exercem o poder e sofrem sua ação. Cada um de nós é, no fundo, titular de um certo poder e, por isso, veicula o poder. Os poderes periféricos e moleculares não foram confiscados e absorvidos pelo Estado; não são necessariamente criados pelo Estado. (Poderes periféricos e moleculares: poder exercido por indivíduos, grupos, empresas, cientistas, comunicadores, etc...). Os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e neste complexo os micro- poderes existem integrados ou não ao Estado. É preciso dar conta deste nível molecular de exercício do poder sem partir do centro para a periferia, do macro para o micro. 1.1- Relações de poder Os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos (tecnologia do corpo, olhar, disciplina) que nada ou ninguém escapa. O poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele apartados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona. O poder não é substancialmente identificado com um indivíduo que o possuiria; ele torna-se uma maquinaria de que ninguém é titular. Logicamente nesta máquina ninguém ocupa o mesmo lugar; alguns lugares são preponderantes e permitem produzir efeitos de supremacia. De modo que eles, podem assegurar uma dominação de classe, na medida em que dissociam o poder do domínio individual. 1.2- O poder exercido como disputa e luta Onde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social. A guerra é luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica. Não

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Microfísica do Poder - M. Foucault

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Page 1: MICROFÍSICA DO PODER

MICHEL FOUCAULT E A “MICROFÍSICA DO PODER”

1. O poder O poder deve ser analisado como algo que circula, que funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como riqueza ou bem. O poder funciona e se exerce em rede. Os indivíduos, em suas malhas, exercem o poder e sofrem sua ação. Cada um de nós é, no fundo, titular de um certo poder e, por isso, veicula o poder.Os poderes periféricos e moleculares não foram confiscados e absorvidos pelo Estado; não são necessariamente criados pelo Estado. (Poderes periféricos e moleculares: poder exercido por indivíduos, grupos, empresas, cientistas, comunicadores, etc...). Os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social e neste complexo os micro-poderes existem integrados ou não ao Estado.É preciso dar conta deste nível molecular de exercício do poder sem partir do centro para a periferia, do macro para o micro.

1.1- Relações de poderOs poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos (tecnologia do corpo, olhar, disciplina) que nada ou ninguém escapa.O poder não é algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade, que se possui ou não. Não existe de um lado os que têm o poder e de outro aqueles que se encontram dele apartados. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem sim práticas ou relações de poder. O poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona.O poder não é substancialmente identificado com um indivíduo que o possuiria; ele torna-se uma maquinaria de que ninguém é titular.Logicamente nesta máquina ninguém ocupa o mesmo lugar; alguns lugares são preponderantes e permitem produzir efeitos de supremacia. De modo que eles, podem assegurar uma dominação de classe, na medida em que dissociam o poder do domínio individual.

1.2- O poder exercido como disputa e lutaOnde há poder há resistência, não existe propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a estrutura social.A guerra é luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica. Não é um lugar que se ocupa, nem um objeto que se possui. Ele se exerce, se disputa. Nessa disputa ou se ganha ou se perde.

1.3- Concepções negativas e positivas do poderConcepção negativa do poder: vinculado ao Estado como aparelho repressivo que castiga para dominar.Concepção positiva do poder: direciona a vontade para a satisfação de desejos e prazeres. O capitalismo não se manteria se fosse exclusivamente baseada na repressão.

1.4- Objeto do poder: o corpoO poder atinge a realidade concreta dos indivíduos: o corpo.Os procedimentos técnicos do poder sobre o corpo são: controle detalhado e minucioso de gestos, atitudes, comportamentos, hábitos e discursos.É preciso parar de sempre descrever os efeitos do poder em termos negativos: ele exclui, ele reprime, ele recalca, ele censura, etc. O poder, em sua positividade, tem como alvo o corpo humano não para supliciá-

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lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo.O corpo só se torna força de trabalho quando trabalhado pelo sistema político de dominação característico do poder disciplinar.

2. A disciplinaA disciplina visa gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades.Objetivo econômico e político: aumento do efeito de seu trabalho, isto é, tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos efeitos de contra-poder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente.

2.1- As quatro fases da disciplinaa) Organização do espaço: é uma técnica de distribuição dos indivíduos através da inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório. Isola em um espaço fechado, esquadrinhado, hierarquizado, capaz de desempenhar funções diferentes segundo o objetivo específico que dele se exige.b) Controle do tempo: estabelece uma sujeição do corpo ao tempo, com o objetivo de produzir o máximo de rapidez e o máximo de eficácia.c) Vigilância: é um de seus principais instrumentos de controle; o olhar que observa para controlar.d)Registro contínuo de conhecimento: anota e transfere informações, - à partir de observações sobre os indivíduos em suas atitudes, ações, falas, etc. - para os pontos mais altos da hierarquia do poder. Nenhum detalhe, acontecimento ou elemento disciplinar escapa a esse saber.

3. O olho do poder A disciplina é uma técnica de poder que implica uma vigilância perpétua e constante dos indivíduos. Não basta olhá-los às vezes ou ver se o que fizeram é conforme à regra. É preciso vigiá-los durante todo o tempo da atividade e submetê-los a uma perpétua pirâmide (hierarquia) de olhares.É assim que no exército aparecem sistemas de graus que vão, sem interrupção do general-chefe até o ínfimo soldado, como também os sistemas de inspeção, revista, paradas, desfiles, etc., que permitem que cada indivíduo seja observando permanentemente.

4. A construção da verdade pelo poder

4.1 - O poder é produtor de individualizaçãoO poder disciplinar não destrói o indivíduo; ao contrário, ele o fabrica. O indivíduo não é outro do poder, realidade exterior, que é por ele anulado; é um de seus mais importantes efeitos.A ação sobre o corpo, o adestramento do gesto, a regulação do comportamento, a normalização do prazer, a interpretação do discurso (fala), com o objetivo de separar, comparar, distribuir, avaliar, hierarquizar, tudo isso faz com que apareça o homem individualizado como produção do poder e objeto de saber das ciências humanas.O poder é produtor de individualidade. O indivíduo é uma produção do poder e do saber. Não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder.

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4.2- Exemplos concretosa) Século XVIII → nasce a prisão – isolamento celular – total ou parcial. b) Hospício → produz o louco como doente mental, personagem individualizado a partir da instauração de relações disciplinares de poder.c) Século XIX → organização de paróquias → institucionaliza o exame de consciência e da direção espiritual e a reorganização do sacramento da confissão, desde o século XVI, aparecem como importantes dispositivos de individualização.

4.3 A verdade sobre o indivíduo produzido pelo poderA disciplina é o conjunto de técnicas pelas quais os sistemas de poder vão ter por alvo e resultado os indivíduos em sua singularidade. Para individualizar a pessoa, utiliza-se do exame, que é a vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los para utilizá-los ao máximo.Tudo o que se refere à própria pessoa é a hierarquia do poder que constrói a verdade sobre o indivíduo, o qual não tem participação na construção da verdade sobre si mesmo. Jamais é consultado, interrogado para dizer sobre si mesmo.Às portas fechadas, entre quatro paredes, aqueles que detêm o poder definem quem é o indivíduo através de julgamentos, classificações, medições a fim de individualizá-lo e assim direcionar sua convicção mental a realizar ações, assumir atitudes e padrões mentais de pensamentos para que seja utilizado ao máximo pela máquina do poder.

BIBLIOGRAFIA FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 11a ed., Rio de Janeiro: Graal, 1997. MICHEL FOUCAULT E A “MICROFÍSICA DO PODER

Michel Foucault nasceu em Poitiers, França em 15 de outubro de 1926, e faleceu em Paris em 26 de junho de 1984. Foi filósofo e professor da cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de Francedesde 1970 a 1984. Seus primeiros trabalhos foram: História da Loucura, O Nascimento da Clínica, As Palavras e as Coisas, A Arqueologia do Saber, além dessas obras que seguia uma linha estruturalista, tiveram também Vigiar e Punir e História da Sexualidade que não o impediu de ser considerado pós-estruturalista.

O livro Microfísica do Poder de Michel Foucault organizado por Roberto Machado (Doutor em filosofia pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica e estagiário do "Collège de France", sob a orientação de Michel Foucault, entre 1973 e 1980), contém transcrições dos cursos ministrados no Collège de France, artigos, debates e várias entrevistas que auxiliam na introdução ao pensamento de Foucault.Esta obra explicita como os mecanismos de poder são exercidos fora, abaixo e ao lado do aparelho de Estado. Assim como, mostra-nos a relação de poder e saber nas sociedades modernas com objetivo de produzir “verdades” cujo interesse essencial é a dominação do homem através de praticas políticas e econômicas de uma sociedade capitalista.

No capítulo Verdade e Poder Foucault explica que a verdade é produto de várias coerções causadoras de efeitos regulamentados de poder. “Parece-me que o que deve se levar em consideração no intelectual não é, portanto, ‘o portador de valores universais’, ele é alguém que ocupa uma posição específica, mas cuja especificidade está ligada às funções gerais do dispositivo de verdades em nossa sociedade” (Foucault:

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13). Ou seja, ele coloca a questão do papel do intelectual na sociedade como sendo uma espécie de produtor das “verdades”, dos discursos vindo de uma classe burguesa a serviço do capitalismo, que persuade uma sociedade alienada pelo domínio surgido de uma condição de vida estruturada a qual lhes davam total respaldo para o exercício de poder.Como exemplo de instituições que a princípio foram construídas com o objetivo de excluir uma parte da sociedade no século XVII, Foucault utiliza o hospital, lugar que ao invés de ser aproveitado para a prática de cura das doenças, eram depositados os pobres doentes, prostitutas, os loucos e todos que representavam ameaça para a sociedade burguesa. Quem detinha o poder dessas instituições eram os religiosos e leigos em medicina que ficavam no hospital para fazer caridade e garantir a salvação eterna aos indivíduos lá depositados.Até o século XVIII, as visitas médicas hospitalares eram feitas de forma irregular, pois, os religiosos concebiam o espaço para impor somente a ordem religiosa e não como um espaço para a cura das enfermidades, o médico nada podia fazer para ajudar essas pessoas, eles também estavam sob a dependência do pessoal religioso, e podiam ser despedidos caso descumprissem a ordem.Nas análises sobre as questões relacionadas à psiquiatria Foucault relata como as instituições a princípio foram locais reservados para a diminuição do poder dos indivíduos capazes de enxergar o que acontecia com relação à dominação da prática da psiquiatria e de outras instituições e mecanismos do saber, onde pessoas eram praticamente abandonadas em um determinado local à arbitrariedade dos médicos e enfermeiros, os quais podiam fazer delas o que bem entendesse, sem que houvesse a possibilidade de apelo. Neste capítulo o leitor que teve o prazer de ler O Alienista de Machado de Assis, pode comparar as varias semelhanças de uma obra fictícia de uma obra com análises da realidade como Microfísica do Poder. Em O Alienista, Machado de Assis traz como tema a “loucura”, enfocada de uma forma que acaba por dissuadir todas as consciências consideradas normais e por questionar a própria condição humana. Machado procura apontar como as pessoas consideradas “anormais” por uma parte da sociedade, eram colocadas em um asilo para loucos onde os personagens se tornavam objetos de experiência científica.“A característica dessas instituições é uma separação decidida entre aqueles que têm o poder e aqueles que não o têm” (Foucault: 124). A importância de uma transformação na reorganização arquitetônica dessas instituições hospitalares no século XVIII, de acordo com Foucault, só houve devido às questões políticas e econômicas que circundavam a sociedade francesa e europeia. Essa reorganização se situou em torno das relações de poder, ou seja, os médicos passaram a exercer o poder dentro da instituição e fora dela. Como produtor da verdade, passavam a persuadir as pessoas no intuito de controlá-las e neutralizá-las para exercer poder sobre a sociedade.Da mesma forma que as instituições hospitalares, a prisão deveria ser construída para servir de instrumento de transformação do indivíduo, mas não foi o que aconteceu. Foucault explica que a prisão passou ser um local de fabricação de mais criminosos, utilizada como estratégia também de domínio econômico. Para ele esse poder que era exercido nas instituições, era um feixe de relações mais ou menos organizadas, mais ou menos piramidalizadas, mais ou menos coordenadas. Que arriscavam dirigir a consciência e tentavam injetar na sociedade discursos persuasivos que indicavam quem exercia o poder e quem o acatava. Existia uma pirâmide do sistema que se fazia construir a possibilidade de manter esta relação de poder.Além das instituições, existia um local todo gradeado e aberto aos olhos de somente um indivíduo, onde a sociedade era posta para exercer suas atividades como trabalhar, estudar e manter suas relações pessoais em grupo, sem que as instituições mantenedoras do poder não deixasse de saber o que estava

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acontecendo com cada indivíduo, tentando convencer a sociedade de que esta prisão era somente para resolver os problemas de vigilância e manter todos seguros.Esta obra de Foucault possibilita que o leitor faça uma análise do que ocorreu e continua ocorrendo em nossa nação, cujo poder continua centralizado nas mãos de uma pequena parte da sociedade, que se utiliza de instituições e organismos para manipular, persuadir e neutralizar a grande massa para a manutenção de mecanismos que impossibilite a sua ascensão social. Para ficar mais clara a comparação sobre a sociedade que Foucault expõe em Microfísica do Poder e a sociedade atual, basta o leitor ler o livro de Néstor García Canclini, Latino-americanos à procura de um lugar neste século, que fala sobre como os EUA através da globalização, vem exercendo um poder dominador, bloqueando o acesso ao desenvolvimento dos países latino-americanos, aumentando ainda mais as mazelas existentes no mundo de forma geral.No decorrer de cada capítulo Foucault cita alguns pensadores como Freud, Nietzsche e Marx e algumas de suas obras como Vigiar e Punir, As Palavras e as Coisas, Arqueologia do Saber, A Vontade de Saber, que acaba estimulando o leitor a conhecer um pouco mais sobre o que está escrito em cada livro e sobre cada pensamento articulado que complementa a obra.