mÃos negras: saberes e sabores afro-brasileiros ana...

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MÃOS NEGRAS: SABERES E SABORES AFRO-BRASILEIROS Ana Cláudia dos Santos Januário Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação Stricto Sensu de Relações Étnico-Raciais, do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Relações Étnico-Raciais. Orientadora: Maria Renilda Nery Barreto Coorientador: Luis Felipe dos Santos Carvalho Rio de Janeiro Fevereiro/2018

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MÃOS NEGRAS: SABERES E SABORES AFRO-BRASILEIROS

Ana Cláudia dos Santos Januário

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação Stricto Sensu de Relações Étnico-Raciais,

do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso

Suckow da Fonseca, CEFET/RJ, como parte dos

requisitos necessários à obtenção do título de Mestre

em Relações Étnico-Raciais.

Orientadora: Maria Renilda Nery Barreto

Coorientador: Luis Felipe dos Santos Carvalho

Rio de Janeiro

Fevereiro/2018

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MÃOS NEGRAS: SABERES E SABORES AFRO-BRASILEIROS

Dissertação apresentada ao Programa Pós-Graduação em Relações Étnico-

Raciais, do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca,

CEFET/RJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de grau de

Mestre em Relações Étnico-Raciais.

Ana Cláudia dos Santos Januário

Banca Examinadora:

____________________________________________________________________

Presidente, Professora Dra. Maria Renilda Nery Barreto (CEFET/RJ) (Orientadora)

____________________________________________________________________

Professor Dr. Luis Felipe dos Santos Carvalho (CEFET/RJ) (Coorientador)

____________________________________________________________________

Professora Dra. Maria Teresa Salgado (UFRJ/PPRER)

____________________________________________________________________

Professora Dra. Sônia Beatriz dos Santos (UERJ)

SUPLENTES

____________________________________________________________________

Professora Dra. Elisângela de Jesus Santos (CEFET/RJ)

____________________________________________________________________

Professora Dra. Marília Rothier Cardoso (PUC-RJ)

Rio de Janeiro

Fevereiro/2018

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J35 Januário, Ana Cláudia dos Santos Mãos negras : saberes e sabores afro-brasileiros / Ana Cláudia

dos Santos Januário.—2018. 68f. + anexo : il.color. ; enc.

Dissertação (Mestrado) Centro Federal de Educação

Tecnológica Celso Suckow da Fonseca , 2018. Bibliografia : f. 64-68 Orientadora : Maria Renilda Nery Barreto Coorientador : Luis Felipe dos Santos Carvalho

1. Culinária brasileira – Influências africanas. 2. Culinária africana. 3. Negros. I. Barreto, Maria Renilda Nery (Orient.). II. Carvalho, Luis Felipe dos Santos (Coorient.). III. Título.

CDD 641.596

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do CEFET/RJ

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A todas as mãos negras de mulheres negras do Brasil, que

aqueceram o coração dos pequenos, batalharam pelo alimento e

trabalharam muito para que suas filhas e filhos não morressem

de fome e de amor. A todas as yabás, com muito respeito e

carinho. Ao doce vento de minha mãe Maria José e minha avó

Alice. Honro a existência dessas senhoras em minha vida para

promover resistências.

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AGRADECIMENTOS

Aos que pensaram/pensam numa dissertação feita com apenas duas mãos num

teclado, com cheiro de café para ficar horas acordada, a fim de realizar o mestrado de

relações Étnico- Raciais do CEFET/RJ. Senhoras e senhores, eis aí puro engano

acadêmico. Esta dissertação tem tantas mãos nela que o ditado popular “Panela que

muita gente mexe, desanda”, caiu por terra, feito manga no verão. Ora, muitas mãos

invisíveis e visíveis estão aqui. É hora de abraçar e agradecer.

Agradecer, em primeiro lugar, aos Orixás que me acompanharam durante esta

batalha de 2 anos firmes ao meu lado: Exu, Iemanjá, Xangô, Ogum e, especialmente,

Oxum, a senhora que me ensina a olhar para mim feito um belo rio em dias de sol. À

Umbanda, que me guia com a força dos ancestrais para ter fé na vida, ter sabedoria para

lutar, dançar para alegrar o corpo e aprender a sentir a proteção da natureza presente em

cada grão de areia.

À minha mãe, Maria José, in memoria, por me fazer rir uma vez quando disse que

meu chuchu cozido era o melhor que ela já tinha comido. Te abraço todas as vezes que

mexo uma colher de pau no fogo. Caso exista algum segredo no meu tempero, ele é o

meu amor por você. À minha avó Alice Silva dos Santos, com suas mãos já finas de

quase 90 anos que me ensinou a fazer angu e a usar o pilão para fazer paçoca com fubá,

amendoim, farinha e açúcar. Apesar da distância, peço sua benção sempre. À minha tia-

mãe Lindaura da Silva Carvalho, sempre me chamando pelo apelido de criança

“Nigrinha, Nigrinha”, pela sua batalha de 2017 para superar problemas de saúde e por

sempre no seu abraço-palavra dizer tudo o que sente por mim. Mulheres negras que me

formaram na luta e na cozinha.

À Família Dida, que me acolheu e possibilitou a pesquisa dentro de sua segunda

casa, ou melhor, da extensão de sua casa, Dida Bar e Restaurante. Primeiro, à

matriarca, Dida Nascimento, por me oferecer sempre um abraço na chegada em sua

casa, aos seus filhxs, Stefani Nascimento, Kanu Nascimento, Matheus Nascimento,

sobrinhas-filhas Elu e Mariama. A Maria, Zé, Jefferson, Yuri, garçons e garçonetes

simpáticos e atenciosos comigo. A todos os funcionários e clientes que dividiram um

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pouco de seu tempo de trabalho ou diversão para conversar comigo. A Ernani e Elodie,

por me apresentarem os sabores e saberes de Cabo Verde e Benim. Não tem ponto final

essa família Nascimento, que ultrapassa a linha dos sobrenomes e recebe todos no seu

bar com muito afeto e abraços, e acabamos nos apaixonando pela energia explosiva dos

sons e temperos secretos da cozinha da matriarca. Foi uma honra ter participado de

momentos importantes da vida de vocês no ano de 2017. Obrigada!

Às lindas e poderosas amigas do PPRER, gostaria de descrever a primeira vez que

comecei a falar com vocês, porque eu lembro sempre de tudo o que me toca minha pele,

para dizer o quanto são importantes na minha trajetória de vida: Andreia Coutinho,

Aline Nascimento, Priscilla Rosa, Karina, Laura Rose, Sandra Brandão, Simone Brás,

Carol Netto, Marina e Mariane Marçal, e Aleksandra, pelo apoio, afeto e abraços

aconchegantes. Obrigada, moças!

Aos professores do PPRER, Elisângela, Thalita, Mário Luiz, Maria Renilda e Luis

Felipe.

Ao passarinho brilhoso das manhãs de verão, Humberto Manoel Santana Jr.

Obrigada pelo auxílio na cozinha quando estava pegando fogo. Agradeço pelas palavras

de sustância e conforto. À encruzilhada dança-se bem, come-se com gosto e se solta

gargalhadas de alegria, nada é por acaso em caminhos com cheiro de guiné! Axé!

Aos orientadores de pesquisa Luis Felipe e Maria Renilda, pelo incentivo e pela

liberdade dados a mim, a fim de movimentar minha criatividade e autonomia de

pesquisadora. Em especial, ao professor Luis Felipe, por me apresentar a leitura

decolonial para ser o suporte teórico da pesquisa e por acreditar na minha história de

vida como valor motivacional de pesquisa.

Agradeço às professoras Sônia Beatriz dos Santos, Elisângela dos Santos, Maria

Teresa Salgado e Marília Rothier Cardoso, pela atenção com meu trabalho. Suas

contribuições são de grande zelo por mim.

À CAPES, por financiar a pesquisa do meu sonho.

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Aos amigxs “sequestradores” de dissertação, que me ouviram nos momentos de

aperto e falavam “vai dar tudo certo, calma Ana”: Samantha, Mari, Martinha, Gizele,

Karla, Suzana, Flávia, Cecília, Bia, Higson e Brayer.

À doçura das crianças com que aprendi mais do que dei aula durante dois anos em

Niterói. Queria aprender a dançar com os olhos de sabedoria, expressada toda vez que

eu explicava alguma curiosidade, contava uma história ou simplesmente remexia a terra

para plantar sementes de jabuticaba. Em seus rostos, a expressão de felicidade e a

descoberta preenchiam de vida o meu olhar de professora humana. Obrigada, pequenas

sementes, por me arrancarem sorrisos e despertarem minha criatividade todos os dias.

Duas frases até hoje guardo com muito amor. De olhos de jabuticabas me disse: “Você é

corajosa!”. De pés delicados: “Eu queria ser o rio, para nunca parar de correr”.

À minha linda e guerreira revisora, que jogou “no meu time”, e jogamos legal! Suas

palavras de alegria, segurança e paixão adoçaram o caminho final da dissertação.

Obrigada, Clara Marinho!

Obrigada, Thiago Braz, pelo lindo trabalho fotográfico para a dissertação. Axé!

Às minhas irmãs e ao meu irmão: Sabina, Maria Alice, Sulamita e Saullo, e à minha

sobrinha Kayllane. Obrigada pela paciência e pelo acolhimento em dias confusos.

Abraços de mãos negras e sabores afro-brasileiros.

Axé!

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“O papel, o vento leva e a chuva molha. O que Olorun põe na

nossa cabeça ninguém pode tirar”

Mãe Beata de Iemanjá (in memorian)

“O Tempo me temperou com Dendê.”

Roque Ferreira e Zé Paulo Becker

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RESUMO

Esta dissertação aborda a culinária afro-brasileira em seus aspectos históricos de

força e criatividade como uma das formas de repassar heranças identitárias do povo

negro às gerações seguintes. A união entre cozinha, afeto e identidade de uma família

negra, sob a liderança da matriarca, Dilma Nascimento, construiu o Dida Bar e

Restaurante, na Praça da Bandeira (RJ), com um cardápio de comidas africanas e afro-

brasileiras. Esse espaço de difusão da culinária africana também acolhe eventos

relacionados à música e à literatura, interagindo, assim, com essas formas de cultura.

Transforma-se, pois, num ponto de encontro das discussões atuais sobre práticas de

(re)existência/resistência. O suporte teórico para a análise foram os Estudos

Decoloniais. A proposta do discurso decolonial é romper com os espaços de fala do

colonizador e pôr à mesa toda a história ocorrida à margem do sistema colonial, que

passou firme pelas mudanças do tempo e que, hoje, está entre nós, nos sobreviventes,

através das ações de reinvenção. A etnografia e sua técnica de observação participante,

com entrevistas semiestruturadas, subsidiaram a metodologia da pesquisa. A

ressignificação, a partir da substituição criativa de ingredientes africanos por alimentos

da terra brasileira, fez nascer a culinária afro-brasileira: uma estratégia para manter

vivos os costumes da cultura africana. Essa culinária e a família Nascimento preservam

em sua trajetória de vida valores civilizatórios africanos. Assim, corporeidade,

circularidade, ludicidade, coletividade e oralidade são ingredientes observados na

dinâmica do bar. A circularidade traz a possibilidade de renovar energias e transmitir

sabedorias. A partir desta pesquisa, pode-se observar o Dida Bar e Restaurante como

um ponto de diálogo da intelectualidade decolonial.

Palavras-chave: Culinária Afro-brasileira; Decoloniais; (Re)existência; Criatividade;

Resistência.

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ABSTRACT

This dissertation addresses Afro-Brazilian cuisine, with regard to its historical

aspects that include strength and creativity, as a way to pass down legacies of identity

about black people to future generations. It investigates the connections between

kitchen, affect, and identity of a black family led by its matriarch Dilma Nascimento,

who built the Dida Bar e Restaurante. The bar and restaurant is located in the Praça da

Bandeira neighborhood of Rio de Janeiro, and has a menu filled with African and Afro-

Brazilian food. The space, which serves African cuisine, also hosts music and literary

events and thus interacts with theses cultural manifestations. The bar and restaurant is

transformed into a gathering place for current discussions and practices of

(re)existence/resistance. The theoretical foundation for the research is based on

Decolonial Studies. The purpose of decolonial studies is to break apart the language and

space of the colonizer and centralize the history that occurred at the margins of the

colonial system, which has survived the changes of time, and which today, is among us,

the survivors, in our actions to reinvent it. The ethnography, grounded in participant

observation with semi-structured interviews served as the research methodology.

Crafting new meanings through the creative substitution of African ingredients for

Brazilian ones has given birth to Afro-Brazilian cuisine: a strategy to keep the customs

of African culture alive. This cuisine and the Nascimento family, throughout the

trajectory of their lives, preserve African values. As such, corporality, circularity,

playfulness, collectivity, orality are main ingredients observed in the dynamics of the

bar. Circularity allows for the possibility of renewing energies and exchanging

knowledge. From this research, the Dida Bar and Restaurant is recognized as a point of

dialogue for decolonial intellectuality.

Keywords: Afro-Brazilian cuisine; Creativity; (Re)existence; Resistance; Decolonial

Studies.

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SUMÁRIO

Introdução 12

1 Exu: a circulação de saberes da rua à cozinha 20

1.1 A cozinha /culinária criativa afro-brasileira 25

1.2 As negociações de sobrevivências de amanhã, ontem e hoje 27

1.3 Identidade em corpos e mãos negras 29

1.4 De bisavós, avós e mães: movimento de memórias, afetos e histórias 35

2 A receita: o processo etnográfico, a narrativa do bar e os decoloniais 38

2.1 O olhar sobre a trajetória do bar e os eventos recheados de saberes 41

2.2 “Aqui é a extensão da minha casa, aqui eu bebo, como e danço” 43

2.3 “A casa é pequena, mas o coração é grande” 46

2.4 Iniciação do pensamento decolonial em análise da culinária afro-brasileira 49

2.5 “Não dá pra fazer planos de negócios sem amor” 54

Considerações de uma receita 59

Referências 64

Anexo A - Entrevista com Dona Dida 68

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INTRODUÇÃO

Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens.

Provérbio Africano

Desde criança, com 5, 6 anos de idade, ficava dentro da cozinha observando

minha mãe preparar os alimentos para o café da manhã, o almoço e o jantar. E sempre

perguntando quando eu poderia pegar a faca para ajudá-la na função. Lembro-me de

que, aos 10 anos, ela liberou a faca para eu cortar a galinha abatida, criada no quintal

para alimentar a família. Até hoje guardo os sentimentos de alegria e liberdade daquele

dia. Eu aprendi muito “olhando” o que minha mãe fazia. Ela nem precisou ficar perto

para me ensinar o corte da galinha. Aprendi com o afeto dos olhos e o silêncio da

observação.

Tudo o que ela ensinava era explicado passo a passo, e, muitas vezes, os pratos

eram carregados de histórias. Lembro-me do dia de um quiabo com galinha em casa.

Nesse dia, ela relembrou que, quando eram crianças, minha avó fez meu tio comer uma

panelada cheia de quiabo com galinha e angu. Até ele ficar bem satisfeito, pois havia

reclamado da pouca quantidade de comida colocada em seu prato.

Eles moravam na roça, e a comida era reduzida, devido ao pouco orçamento da

família, logo, tudo era feito com cuidado para dar para todos. E não podia ter

desperdício. Minha avó deu uma lição no meu tio por ter reclamado, e minha mãe

contou essa história para que ninguém cometesse o mesmo deslize, pois já sabíamos as

medidas que ela tomaria.

A cozinha é, para mim, e era, para ela, um lugar especial, já que reunia suas

memórias de infância e as receitas que aprendeu com sua mãe. A saudade de sua mãe

sempre vinha ao fazer pé de moleque na semana santa. O espaço da cozinha era e é

sentido como fonte de conhecimento e como transmissor de heranças das experiências

de vida narradas ao calor do fogão.

A memória afetiva de minha mãe ao contar histórias durante o preparo dos

alimentos e suas invenções dentro da cozinha (por exemplo, transformar o socador sujo

de feijão em picolé) são elementos reunidos em minhas mãos negras, que vieram de

mãos negras para gerar a construção da presente dissertação, intitulada “Mãos negras:

saberes e sabores da culinária afro-brasileira”.

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Alimentação é vida. Os grãos, as sementes e as folhas circulam como pessoas no

mundo. Nosso objeto de estudo é vivo, colorido, às vezes amargo, doce, salgado, azedo.

Bem parecido com os humores e sentimentos do corpo. A gastronomia é a arte de

cozinhar com técnica, conhecimento, ingredientes e Identidade. Neste trabalho, tivemos

a missão de apresentar a culinária afro-brasileira em seus aspectos históricos de força e

criatividade como uma das formas de repassar heranças sobre a identidade do povo

negro no Brasil.

Entre os séculos XVI e XIX, era intenso o movimento de pessoas entre África e

Brasil no oceano Atlântico, devido ao comércio de escravizados. Diversas ervas,

temperos e leguminosas também faziam parte desse mercado de compra e venda.

Os alimentos africanos, como dendê, inhame e quiabo são apresentados na

maioria dos discursos de Vivaldo da Costa Lima (2010), Manuel Querino (2011) e Raul

Lody (2012, 2013) como ingredientes presentes na cozinha afro-brasileira. Os autores

afirmam, em conjunto, que a inserção desses alimentos foi feita pelo africano através

das casas de terreiro.

Pode-se caracterizar a culinária/cozinha de presença e de matriz

africana no Brasil como adaptativa, criativa e legitimadora de muitos

produtos/ingredientes africanos e não africanos, que foram incluídos

tanto nos diversos cardápios regionais quanto em outros, de presença

colonial. O paladar, as receitas, os temperos, as maneiras de fazer e de

servir da predominante população afrodescendente são construídas em

um longo processo histórico, econômico, social e cultural. (LODY,

2013, p. 91)

A dimensão espiritual em relação à comida e ao ato de cozinhar não pode ser

esquecida. As religiões de matrizes africanas se baseiam na feitura dos alimentos

votivos, na estética dos alimentos, na alimentação e na degustação. Cozinhar é misturar

os elementos da natureza, é reunir os Orixás na panela para fazer o axé circular.

A ressignificação, através da substituição criativa de ingredientes africanos por

alimentos da terra brasileira, fez nascer a culinária afro-brasileira: uma estratégia para

manter vivos os costumes da cultura africana. É o que mantém a cultura viva, não

importa o modelo, mas a existência. A natureza nos mostra que o princípio primeiro é a

existência, a vida e, dessa forma, ela não se adapta como reação, mas como ação

primeira da vida (AKBAR, 1984).

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Quando os escravos chegaram aqui, não trouxeram panelas, não

trouxeram ingredientes, não trouxeram nada. Foram eles que

adaptaram o paladar deles aos ingredientes que estavam aqui. E aí

chegavam a algumas coisas. Eles incrementaram, só que alguns pratos

tinham semelhanças, mas algumas coisas poderiam ser um pouco

diferentes, porque... afro-brasileira... os escravos que teriam que

reproduzir de acordo com o país deles, com os ingredientes que

achavam aqui. (informação verbal)1

Chegados aqui destituídos de qualquer bem material de sua terra, tinham o corpo

como único território e arquivo de suas heranças de África. A culinária afro-brasileira,

bem como a música reelaborada no Brasil, também é fruto da Diáspora2 Negra e carrega

esses aspectos de recriação como estratégia de preservação de saberes.

Então, os alimentos priorizados na mesa eram estabelecidos de acordo com sua

construção de identidade e memória. Nossa escolha pela pesquisa acerca da culinária

afro-brasileira foi fortemente motivada pelos hábitos alimentares incentivados na

infância e pela memória familiar da ancestralidade.

O corpo era o vínculo com os demais, o meio de comunicação, através de gestos

não verbais, como a capoeira, e, ao mesmo tempo, era o protetor dos saberes africanos –

pela memória – a serem transmitidos aos próximos pela oralidade. Essa foi uma das

formas de comunicação e preservação de identidade encontradas pelos escravizados,

pois existem outras (TAVARES, 2012).

A escravidão foi um processo longo e atingiu diversas esferas da sociedade, já

que o escravizado fazia parte da sociedade colonial no cotidiano, na rua, na casa, no

trabalho, no lazer, sabido pelos relatos ou pinturas de época que certificam sua presença

nesses espaços. Suas mãos participaram intensamente das criações de pratos e quitutes

na cozinha do Brasil.

Nossa proposta foi entrar em contato com um espaço físico e fixo que

apresentasse a seguinte característica básica: a relação da culinária afro-brasileira com a

trajetória de vida de seus idealizadores. Dilma Nascimento, proprietária do Dida Bar e

Restaurante, e sua família acolheram nossos intuitos.

O campo de pesquisa está localizado na Rua Barão de Iguatemi, 408, Praça da

1 Entrevista concedida por Ernani Moraes, aluno de Gastronomia da UFRJ, cabo-verdiano, que participou

do Dida Afro (evento mensal do Dida Bar e Restaurante – nosso campo de pesquisa). 2 Compreendemos Diáspora como a remoção coercitiva dos africanos durante o comércio de escravizados

para as Américas entre os séculos XVI e XIX.

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Bandeira, Rio de Janeiro. Local escolhido pela família Nascimento para unir afetividade

familiar e negócios, a fim de resgatar/reafirmar a cultura negra a partir da culinária e da

musicalidade.

A cultura negra pode ser vista como uma particularidade cultural

constituída historicamente por um grupo étnico/racial específico, não

de maneira isolada, mas no contato com outros grupos e povos. Essa

cultura faz-se presente no modo de vida do brasileiro, seja qual for o

seu pertencimento étnico. Todavia, a sua predominância se dá entre os

descendentes de africanos escravizados no Brasil, ou seja, o segmento

negro da população. (GOMES, 2003, p. 77)

Observamos essa característica do povo negro de manter uma união com outros

povos e etnias como um modo de ação pela sobrevivência de suas tradições. Já que uma

diversidade de etnias foi trazida à força de África para o Brasil, sendo constituída,

assim, uma cultura negra com hábitos de africanos de toda parte.

O modo de vida do africano está presente nos costumes culturais e sociais do

brasileiro, devido à sua intensa participação na formação do nosso país. Trabalhar com

essa definição de cultura negra direcionada à culinária afro-brasileira é afirmar

justamente a participação da variedade étnica africana na cozinha. As mãos dos bantos

(África Austral), dos iorubás (África Ocidental) e dos sudaneses, por exemplo, estão

presentes na culinária afro-brasileira (LOPES, 2011).

Nos espaços com cultura negra, percebem-se a valorização e o respeito pelos

ancestrais em diálogo com o presente. A população negra, a partir da experiência

histórica e coletiva da Diáspora e do trauma da Escravidão, viu sua identidade negra

transformada, sem fronteiras rígidas. Somos e fomos atravessados por uma diversidade

de culturas (africana, indígena, asiática, europeia) que foram incluídas com negociações

no interior de nossas experiências com as etnias e os povos citados acima.

Dona Dida visita o passado e ressignifica a comida no presente. No cardápio de

um de seus eventos, a prioridade é levar ao público a culinária africana, apresentando, a

cada mês, um prato típico de um ou dois países africanos, acompanhado da descrição

dos ingredientes usados na receita. Ela faz, em primeiro lugar, um estudo sobre a

culinária e a história do país escolhido e, depois, as adaptações criativas quando não tem

algum ingrediente aqui.

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Resumindo, no DBR3, observamos a união entre conhecimento, cozinha,

ingredientes e técnicas. Com isso, o bar e restaurante conta histórias de sabores e

saberes afro-brasileiros, utilizando a arte culinária como principal movimento. Trata-se

de uma herança familiar, pois a mãe, o pai e o irmão de Dona Dida já faziam esse

movimento: uniam culinária, samba, afeto e conhecimento sobre África num mesmo

espaço. A fim de imprimir cada vez mais sua identidade negra nos espaços de

sociabilidade e comensalidade (ato de comer em reunião).

Delimitamos nossa pesquisa acerca da culinária afro-brasileira, desenvolvendo-a

num espaço de cultura negra, o DBR, cuja perspectiva particular está em pesquisar e

servir a culinária africana bem como a afro-brasileira. A cozinha africana adentrou aqui

por meio do quantitativo de africanos escravizados no Brasil.

Como vimos, diversas etnias foram escravizadas no território, logo, as

influências vêm de diferentes regiões da África. Essa mesma diversidade formou a

fisionomia racial e cultural do Brasil, incluindo as reinvenções criativas dentro da

cozinha. A culinária afro-brasileira nasceu na junção dos saberes trazidos pelo corpo

negro, adicionando ingredientes de África (na medida em que chegavam ao Brasil) e

alimentos cultivados por povos originários daqui (LIMA, 2010).

Nosso objetivo específico é, portanto, investigar, à luz das teorias da

decolonialidade4, principalmente com perspectiva negra, a culinária afro-brasileira

como ação de (re)existência e resistência junto à memória da população negra em

espaços públicos de sociabilidade. O principal, aqui, é marcar que estamos associando o

pensamento decolonial à escrita sobre culinária afro-brasileira e, em consequência,

contribuindo para a história do negro no Brasil, porque a população negra deste país

também é fruto dessa diferença colonial estabelecida pela colonialidade do poder,

devido ao processo de escravização africana entre os séculos XVI e XIX.

Essa diáspora negra no Brasil produziu uma diversidade de conhecimentos no

limiar da fronteira colonial, a qual chamamos de prática de (re)existência e resistência.

Trata-se, pois, de estratégias de ações criativas para combater as epistemologias

ocidentais e a colonialidade do poder (Mignolo, 2003).

3 Dida Bar e Restaurante. Para maior fluidez na leitura, utilizaremos bastante essa sigla.

4 A decolonialidade é o rompimento com a história única do conhecimento que o colonialismo impôs às

colônias dos continentes americano, africano e asiático. Os decoloniais expõem a ferida colonial deixada

nas sociedades dos colonizados e valorizam as diversidades dos saberes presentes na modernidade.

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A metodologia aplicada na pesquisa foi a etnografia do espaço, com sua técnica

de observação participante5. Com um aprendizado levado de casa, utilizamos todos os

sentidos para compreender o local e as pessoas, foi uma experiência multissensorial, ou

seja, abrimos todos os sentidos a fim de capturar a experiência do trabalho de campo.

Como forma de registro da pesquisa, tivemos entrevistas semiestruturadas,

principalmente com Dona Dida, com um roteiro aberto, não houve perguntas fechadas.

Contudo, as entrevistas estavam baseadas na temática: culinária africana e afro-

brasileira, trajetória da família e do bar e cultura negra.

Escolhemos uma das entrevistas com a matriarca para compor o texto, encontra-

se no Anexo A. Todas as entrevistas foram autorizadas pela família com o termo de

livre consentimento esclarecido e o termo de uso de imagem e depoimentos somente

para o âmbito desta pesquisa de mestrado.

A partir da narrativa dos sujeitos de pesquisa, destacando a de Dona Dida,

observamos os seguintes elementos: a origem do projeto do bar e da família; o motivo

da escolha do cardápio africano, todos da família estão envolvidos no projeto; os

alimentos de origem africana são adaptados em pratos de acordo com a ausência de

ingredientes dos mercados; a presença de músicas e danças de origem afro-brasileira,

como pagode, samba e jongo. Conforme descrevemos, o roteiro temático, em vez de

perguntas fechadas, trouxe-nos conhecimentos sobre o repertório de vida de todos, a

história do bar e sua construção de projeto relacionado à culinária africana.

No diário de campo, foram anotadas as descrições dos eventos: as modificações

do espaço de acordo com o evento, os participantes e a temática de cada evento. E,

também, as características do bar no que concerne às escolhas de decoração do espaço.

A etnografia do bar consistiu em uma escrita sobre o espaço físico e os cardápios,

desenvolvida gradativamente. As entrevistas gravadas tiveram um tempo médio de 30

minutos cada. Como a preferência de Dona Dida para o local das entrevistas era o

próprio bar, o som do ambiente de comensalidade está presente na gravação.

Nossa trajetória de escolha por esse objeto de estudo e essa metodologia iniciou-

se durante o primeiro trimestre de aulas no Programa de Pós-Graduação em Relações

Étnico-Raciais (PPRER), na disciplina Releituras da Vida Selvagem – estratégias

5 “A observação participante inscreve-se numa abordagem de observação etnográfica na qual o

observador participa ativamente nas atividades de recolha de dados, sendo requerida a capacidade do investigador se adaptar à situação” (MÓNICO et al., 2017, p. 724).

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decoloniais, organizada e dirigida pelo professor Luis Felipe dos Santos Carvalho.

Durante as aulas, as reflexões da bibliografia do curso despertaram uma antiga vontade

de pesquisar sobre a culinária afro-brasileira. Devido, justamente, ao afeto pela cozinha

e à experiência familiar – com as histórias contadas próximo ao calor do fogão –,

apresentada no início desta introdução.

Ao fim da disciplina, compusemos um texto relacionado à culinária afro-

brasileira, ao afeto e à leitura decolonial. Naquele momento, nosso tema inicial,

“população negra no pós-abolição”, migrou para “culinária afro-brasileira”. Iniciamos,

então, um novo processo de pesquisa bibliográfica e de lugares possíveis de ser

analisados com as ferramentas decoloniais.

Primeiramente, pensamos nos locais em que havia culinária afro-brasileira e, de

imediato, lembramo-nos dos sabores da Feira das Yabás6, a qual percorremos duas

vezes no ano de 2015. Localizado na Praça Paulo da Portela, entre os bairros Oswaldo

Cruz e Madureira, o projeto idealizado pelo sambista, cantor e compositor Marquinhos

de Oswaldo Cruz tem como objetivo resgatar as tradicionais rodas de samba com

comida em que as mulheres comandavam a cozinha nas casas e no quintal ao som do

samba.

A fim de não deixar essa tradição cair no esquecimento, 16 barracas foram

montadas na praça em 2009. Entretanto, em 2016, a Feira das Yabás já não estava

ocorrendo com a regularidade anterior: todo segundo domingo do mês. Descartamos,

então, a hipótese de a pesquisa ser realizada em Madureira.

Passeamos por feiras itinerantes em que havia a presença da culinária afro-

brasileira, no centro do Rio e na Zona Norte da cidade, mas não obtivemos sucesso,

devido à instabilidade desses eventos. Até que, um dia, alunos do CEFET indicaram um

bar que vendia comida africana na Praça da Bandeira.

Chegando ao endereço do bar, fomos recebidos por Dona Dida. Sentamos e

conversamos sobre a pesquisa. Chegaram, depois, Kanu e Matheus, seus filhos, que

escutaram a proposta de estudar a trajetória de vida deles relacionada à culinária afro-

brasileira. A reunião não pôde ser feita com todos, porque é a família que compõe boa

parte das funções do bar: recepção, recebimento de pedidos para cozinhar, caixa,

arrumação do salão. Por isso, aconteceu um rodízio durante o dia, para todos ouvirem

6 Iabá, Yabá ou Iyabá: orixás femininos.

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sobre o projeto de mestrado. Por último, sua filha Stefani sentou para ouvir.

Foram atenciosos e ficaram lisonjeados com a escolha de seu bar. Dona Dida

aceitou o convite de imediato. Tudo foi explicado à família: como seria o procedimento

metodológico, com as observações participantes no local em dias de evento, e as

entrevistas. Os quatro concordaram. Seriam os sujeitos da pesquisa: Dida, Stefani,

Matheus e Kanu.

Os primeiros meses foram de observação da dinâmica dos eventos e do

funcionamento do DBR. Íamos lá pelo menos duas vezes ao mês, em eventos pontuais:

o Pagode da Dida e o Dida Afro. Durante esse período, muitas entrevistas informais

aconteceram. Os eventos se multiplicaram ao longo dos meses, pois, além de música e

gastronomia, a literatura foi incorporando a agenda cultural do bar.

O tema da pesquisa tem sua relevância no âmbito dos estudos das Relações

Étnico-Raciais por abordar a culinária afro-brasileira e sua relação com os Estudos

Decoloniais. Ao elegermos como campo de estudo o Dida Bar e Restaurante e seu

cardápio de comidas africanas e afro-brasileiras, assim como sua interação com a

música e a literatura, buscamos discutir as estratégias de (re)existência e resistência das

práticas culturais trazidas pelos negros africanos da diáspora dos séculos XVI-XIX.

Fato é que esse encontro entre culinária, música e literatura transforma o Dida

num polo gastronômico e de rememorizacão entre representantes da cultura negra da

atualidade e as memórias despertadas pelos cheiros, temperos, sabores, acordes e letras

oriundas dos valores civilizatórios trazidos por nossos ancestrais.

Dividimos esta dissertação em dois capítulos. O primeiro aborda as discussões

sobre o que é culinária afro-brasileira, valores civilizatórios africanos e identidade. E o

segundo cuida da descrição do campo, incluindo a etnografia e a análise dos dados

coletados nas entrevistas, relacionando-os com a teoria da decolonialidade.

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1. EXU: A CIRCULAÇÃO DE SABERES DA RUA À COZINHA

Exu come tudo e ganha o privilégio de comer primeiro

Exu era o filho caçula de Iemanjá e Orunmilá,

irmão de Ogum, Xangô e Oxóssi.

Exu comia de tudo

e sua fome era incontrolável.

Comeu todos os animais da aldeia em que vivia.

Comeu os de quatro pés e comeu os de pena.

Comeu os cereais, as frutas, os inhames, as pimentas.

Bebeu toda a cerveja, toda a aguardente, todo o vinho.

Ingeriu todo o azeite de dendê e todos os obis7.

Quanto mais comia, mais fome Exu sentia.

Primeiro comeu tudo de que mais gostava,

depois começou a devorar as árvores,

os pastos, e já ameaçava engolir o mar.

Furioso, Orunmilá compreendeu que Exu não pararia

e acabaria por comer até mesmo o Céu.

Orunmilá pediu a Ogum

que detivesse o irmão a todo custo.

Para preservar a Terra e os seres humanos e os próprios orixás,

Ogum teve que matar o próprio irmão.

A morte, entretanto, não aplacou a fome de Exu.

Mesmo depois de morto,

podia-se sentir sua presença devoradora,

sua fome sem tamanho.

Os pastos, os mares, os poucos animais que restaram,

todas as colheitas, até os peixes iam sendo consumidos.

Os homens não tinham mais o que comer

e todos os habitantes da aldeia adoeceram

e de fome, um a um, foram morrendo.

Um sacerdote da aldeia consultou o oráculo de Ifá

e alertou Orunmilá quanto ao maior dos riscos:

Exu, mesmo em espírito, estava pedindo atenção.

Era preciso aplacar a fome de Exu.

Exu queria comer.

Orunmilá obedeceu ao oráculo e ordenou:

“Doravante, para que Exu não provoque mais catástrofes,

sempre que fizerem oferendas aos orixás

deverão em primeiro lugar servir comida a ele”.

Para haver paz e tranquilidade entre os homens,

é preciso dar de comer a Exu,

em primeiro Lugar.

(PRANDI, 2001, p. 45-46, grifos nossos)

Abrimos este capítulo com as bênçãos e estripulias de Exu para aproximar cara ou caro

leitora ou leitor da localidade da pesquisa de estudo: a Rua Barão de Iguatemi, na Praça da

Bandeira, Rio de Janeiro. A rua, como espaço de qualquer e todas as possibilidades, possui um

fluxo de circulação de pessoas à procura de caminhos, partidas e chegadas. Tem como seu guardião,

dentro das religiões de matrizes africanas, Exu. O mensageiro entre o Orun e o Aiyê8, “sem ele,

7 Noz-de-cola, fruto africano aclimatado no Brasil.

8 Orun: mundo espiritual. Aiyê: mundo físico.

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orixás e humanos não podem se comunicar [...] sem sua participação não existe movimento,

mudança ou reprodução, nem trocas mercantis, nem fecundação biológica” (PRANDI, 2001, p. 20-

21).

Conforme nosso Itan9, Exu apresentou um problema de fome e de sede devido à sua

insatisfação tanto com os orixás quanto com os humanos, o que foi resolvido com o intermédio da

comida. Nesse sentido, a transferência de energia contida no alimento destinado a agradar Exu

carregou aspectos de mudança de comportamento. Por causa disso não há nenhum alimento que não

tenha que passar pela estrada, pela rua, em carros e caminhões, até chegar à vossa mesa.

Por isso a escolha por iniciar o capítulo com esse Itan. A culinária traz consigo essa

característica de movimentar-se para misturar os ingredientes para se criar um quitute. Sem

movimento, não há Caruru, Vatapá, Feijoada, Angu, Pirão e tantos outros pratos feitos por mãos

negras no Brasil.

Nosso local de pesquisa mantém um diálogo com a rua, por se tratar de um bar e restaurante

que fica de frente para a rua. E por, no passado, sua região, da Praça da Bandeira, ter sido morada

de boêmios, prostitutas, quitandeiros, carroceiros e cozinheiros, muitos trabalhos relacionados com

a venda e a compra de produtos alimentícios. Trata-se da região responsável pelo Matadouro

Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, no século XIX.

A circulação de escravizadas e escravizados era inevitável, uma vez que suas mãos foram

responsáveis por quase quatro séculos de serviços urbanos e rurais no Brasil. Essa localidade está

permeada, tanto no passado quanto no presente, de muita gente com fome de alforria, de liberdade,

de oportunidade. Gente que passa apressada, carregando quilos de legumes e verduras sem fixar o

olhar em nada, e que espera salivando um prato para saciar o estômago no período do almoço.

A presença de corpos negros em todo esse espaço gerou hábitos de vender e comprar

produtos alimentícios secos e molhados próprios de algumas nações, por exemplo, os preto-minas,

escravizados oriundos dos países referentes, na atualidade, à África Ocidental: Níger, Nigéria,

Senegal, Costa do Marfim e Benim (FARIAS, 2015), que dominavam o comércio de bancas no

centro do Rio de Janeiro no século XIX.

E, em destaque, as mulheres donas dessas bancas de venda de legumes e temperos. A

quitanda, palavra de origem do quimbundo10

kitanda, seguiu uma derivação para “quitutes”, que são

os bolinhos salgados e doces criados por mãos negras e vendidos na rua por escravizadas negras que

circulavam nos lugares de grande movimento diário da cidade.

Trazemos aqui toda essa dinâmica da rua, das quituteiras e quitandeiras, território da

criatividade e da sobrevivência dentro da diáspora do Atlântico Negro. Nossa intenção é celebrar as

9 Itan: história em iorubá; são as histórias contadas sobre a vida dos orixás.

10 Língua do país Angola.

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ações de (re)existência e resistência promovidas pela população negra.

A rede que a análise da diáspora nos ajuda a fazer pode estabelecer novas

compreensões sobre o self, a semelhança e a solidariedade. [...] Eles sugerem um

modo diferente de ser, entre as formas de agenciamento micropolítico, exercitado

nas culturas e movimentos de resistência e de transformação e outros processos

políticos que são visíveis em escala maior. Juntas, sua pluralidade, regionalidade e

ligação transversa promovem algo mais que uma condição adiada de lamentação

social diante de rupturas do exílio, da perda, da brutalidade, do stress e da

separação forçada. Elas iluminam um clima mais indeterminado, e alguns diriam,

mais modernista, no qual a alienação natal e o estranhamento cultural são capazes

de conferir criatividade e de gerar prazer, assim como de acabar com a ansiedade

em relação à coerência da raça ou na nação e à estabilidade de uma imaginária base

étnica. (GILROY, 2001, p. 20, grifo nosso)

A diáspora é demonstrada com aspectos de criatividade e de prazer, pois, apesar de toda

violência, como descreve Paul Gilroy acima, os escravizados e escravizadas conseguiram

(re)inventar seu modo de ser aqui. Nossa perspectiva é alinhar a culinária afro-brasileira nesse

formato de ressignificação, em que quituteiras, cozinheiras do período colonial, souberam repassar

à sua família posterior receitas de composição e temperos nativos.

A presença das escravizadas e dos escravizados no âmbito da cozinha é explorada pelo

vocabulário coloquial de Gilberto Freyre (2003) em Casa Grande & Senzala. O autor ressalta a

importância dos africanos como “os grandes mestres da cozinha colonial; [que] continuariam a ser

os da moderna cozinha brasileira” (FREYRE, 2003, p. 287).

Os negros eram considerados os grandes dominadores da cozinha, (FREYRE, 2003) e, após

a transição forçada para a América, conseguiram modificar hábitos de servir e inserir os de sua

origem africana. Incluíram legumes e verduras na dieta do colonizador, apesar de sua nutrição

diária, dos escravizados, estar baseada em feijão, farinha e carne-seca (SILVA, 2005).

Eles foram responsáveis pela introdução do azeite de dendê, das frutas, do leite de coco,

entre outros ingredientes para a criação de diversos pratos dentro na cozinha. O que rendeu, a

muitos escravizados, a liberdade e até concessões de herança de testamento (QUERINO, 2011).

Então, pode-se perceber a experiência e a vivência do corpo negro dentro das cozinhas, tanto

nas casas dos colonizadores como dentro das senzalas, local em que era mantido sempre um fogo

acesso com “a possibilidade de estabelecer a maior comunicação entre todas: a comunicação com

todos os outros que viveram antes e que são os ancestrais” (BARBOSA, 2016, p. 67).

Interessante notar a potencialidade da culinária de reativar suas propriedades de energia –

leia-se “de vida” – através do fogo, pois os pedaços de animais mortos são transformados, em

conjunto com temperos, para “reanimá-los”, a fim de tornar esse prato uma experiência de

preservação de sentimentos, identidade e ancestralidade.

O corpo negro constituiu-se de múltiplas vivências e sobrevivências durante o período

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escravocrata. Desde o desterro de sua terra natal até as inúmeras formas de violência física e mental

impostas aos indivíduos escravizados. O corpo era visto como local de ataque do colonialismo, para

que ficasse marcado em sua aparência o que era, colaborando para uma construção de não

existência de si (COSTA; GROSFOGUEL, 2016). No entanto, estratégias de preservação de

memória foram sendo (re)construídas por esses sujeitos para que suas tradições sobrevivessem.

Falamos de corpo para tratar da dimensão do silenciamento imposto com os discursos

coloniais sobre o corpo negro. Havia um limite para o que ele podia fazer e falar, mas o próprio

corpo transformou-se num corpo-território (SODRÉ, 2002), onde guardava seus valores

civilizatórios: a oralidade, a ludicidade, a corporeidade, a coletividade e a circularidade

(TRINDADE, 2005).

Lançaremos, aqui, a circularidade, que tem a roda como símbolo e que também está no

formato da panela, para pensarmos no movimento circular de renovação que esse valor civilizatório

carrega (SANTANA JÚNIOR, 2017, p. 25-26). Aproximando, ainda, outros elementos de práticas

culturais da população negra que utilizam o mesmo formato de círculo para promover os encontros

de vivência, como a Capoeira, a roda de Samba. As reuniões são feitas com instrumentos musicais,

e a roda é a configuração estabelecida para iniciar a cantoria e o jogo dos corpos, proporcionando

uma “linguagem da recuperação das formulações de energia” (TAVARES, 2012, p. 96).

No espaço circular denominado de Roda, temos, portanto, uma redução do mundo

cósmico e, dentro dela, poderíamos implementar todo nosso potencial, de maneira

que pudéssemos reconstruir nossas baterias energéticas em um entrelaçamento com

a ancestralidade geradora da prática e da cultura. (TAVARES, 2012, p. 95, grifo

nosso)

Amassar os grãos do feijão e depois misturá-los aos demais ingredientes (pé, orelha,

garganta, linguiça, rabo de porco) e começar girar na panela: assim as substâncias são reunidas no

ato de rodar para alcançar seu potencial juntas. Colocar tudo em uma única panela e misturar para

encontrar o ponto do sabor do sal que seja agradável ao paladar traz consigo um saber/fazer de

estratégias de esperar o cozimento de alimentos “desconhecidos” a fim de transformá-los em outra

coisa que não eram antes.

Mas esses alimentos são apreciados justamente pelo tempero da inovação, pois, ao longo de

séculos, muitos ingredientes foram substituídos ou misturados a outros. Dessa maneira, estamos

pensando na diáspora e na identidade negra. O corpo-território teve que renovar suas energias a

partir de seus princípios de ancestralidade, com pitadas de criatividade, pensando na especificidade

da culinária afro-brasileira.

A culinária afro-brasileira que pretendemos apresentar neste texto através do tempero da

etnografia do DBR (Dida Bar e Restaurante) transporta pitadas do tradicional, no sentido de buscar

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suas raízes, dos seus antepassados, e adiciona ingredientes da atualidade, ou seja, mantém o diálogo

com o presente para continuar sua (re)existência e resistência diante dos ataques de intolerância de

que a população negra ainda é alvo em pleno século XXI. A cozinha afro-brasileira pretende se

colocar à mesa como um dos elementos de ressignificação da cultura negra empregada para o

fortalecimento contra o racismo.

Diz a lenda que Exu foi cozinheiro dos orixás, e que principalmente Ogum e

Xangô, por serem muito exigentes, só comiam com muita pimenta e molhos

especialmente preparados pelo mestre dos temperos dos deuses. Um dia, os orixás

estavam com muita fome e pediam insistentemente que Exu trouxesse a grande

panela que habitualmente seria o repasto. Nisso, Exu esquece a pimenta, porque

não teve tempo de ir até o mercado para a compra, por isso recebe reclamação,

especialmente de Xangô, dizendo:

– Exu, pegue o meu cavalo e vá providenciar a pimenta, pois, assim, sem molho,

eu não como –, Exu sai correndo à busca de pimenta, para atender à vontade do seu

companheiro Xangô.

Enquanto Exu saía, preocupado, para buscar o tempero, todos os orixás começaram

a se servir da gostosa comida, então Xangô sugeriu que, após a alimentação, a

grande panela fosse preenchida com água e que nada fosse relatado, fazendo com

que Exu ficasse pensando que os orixás ainda estavam com fome, aguardando a

pimenta.

Chega Exu, trazendo a pimenta, e vai até a cozinha para preparar o molho tão

desejado por Xangô. Volta e encontra a grande panela cheia de água, e constata

que os orixás já haviam comido. Exu fica indignado jogando tudo no chão, e

sentencia: a partir daquele momento, ele, Exu, seria o primeiro orixá a comer,

e sem a comida de Exu nada poderia acontecer no plano dos deuses e no plano

dos homens. Por isso, todas as cerimônias dos Candomblés e Xangôs são iniciadas

com o padê de Exu, que consta de farofa-de-dendê, farofa com água, acaçá e de

uma quartinha contendo água. (LODY, 2012, p. 21, grifo nosso)

Segundo Raul Lody, ele foi o cozinheiro dos orixás. E, para agradar a todos, manteve um

tempero essencial na comida a fim de satisfazer o paladar dos orixás. O condimento tão exaltado

por Xangô, a pimenta, é pequenina, porém, infesta o calor dentro da boca de todos que a provam.

Exu é o primeiro a comer no Aiyê. Senhor dos caminhos, da rua e também dos mercados.

Mercados dominados pelos escravizados durante o período de escravidão brasileira (do século XVI

ao XIX), onde se vendiam quitutes com cores e sabores diversos. Nesses locais, passa todo tipo de

gente a fim de comprar, alimentar o corpo e repor energias.

Exu é o Orixá responsável pela negociação e pela comunicação entre os seres que habitam a

terra e os Orixás. Trazemos a dimensão dos Itans sobre o orixá Exu para desmitificar a ideia

associada ao demônio, da maldade, ou seja, a demonização que é imposta, injustamente, aos orixás,

inquices e entidades das religiões de matrizes africanas.

Então, quem vende na rua e o considera seu aliado, seu parceiro, oferece os primeiros

quitutes para Exu (ou lhe dando de comer) conforme os praticantes da tradição nas religiões de

matrizes africanas. Por isso, como estamos inseridos nos territórios que Exu protege, a rua e a

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cozinha, ambos lugares de comunicação, abrimos duplamente o capítulo com Itans de Exu.

E também para experimentarmos uma prática decolonial, de contar histórias a partir de nós.

1.1 A cozinha/culinária criativa afro-brasileira

O território de nossa pesquisa está na Rua Barão de Iguatemi, Praça da Bandeira. Abrigou,

entre 1853 e 1881, o matadouro público da cidade do Rio de Janeiro. Considerado, nessa época, o

final da cidade imperial. As condições insalubres apresentadas no matadouro da Rua de Santa Luzia

(centro da cidade), a falta de higiene e as transformações urbanísticas advindas após a chegada da

Família Real Portuguesa (1808) modificaram até os hábitos alimentares da capital do Brasil e os

locais oficiais de abatimentos de animais (EL-KAREH, 2012).

O matadouro é um exemplo de espaço encarregado de abater os animais – porcos, bois,

carneiros – para alimentar a população da capital e das redondezas. Por isso a importância de o

abatedouro permanecer próximo da cidade.

A função de contextualizar o território de pesquisa é dupla. Trata-se da demonstração do

quanto essa localidade estava ocupada por africanos, libertos ou escravizados, desde o século XIX,

como toda a cidade do Rio de Janeiro. E também da abertura de novos espaços de serviços públicos,

que acarretou a concentração de outros serviços, como a venda de produtos alimentícios através dos

mercados de rua, com suas quituteiras e vendedores ambulantes – tudo feito pela mão negra

escravizada e, no período pós-emancipação, pelos libertos. Com isso, a Praça da Bandeira é um

reduto de (re)existência da população negra das diversas pequenas áfricas do Rio de Janeiro desde o

século XIX (SIMAS, 2016).

O termo empenhado aqui como População Negra, no sentido político-ideológico, tem

referência em Kabenguele Munanga:

Em meus trabalhos, utilizo geralmente no lugar dos conceitos de “raça negra” e

“raça branca”, os conceitos de “negros” e “brancos” no sentido político-ideológico

[...] ou os conceitos de “população negra” e “população branca”, emprestados do

biólogo e geneticista Jean Hiernaux, que entende por população um conjunto de

indivíduos que participam de um mesmo círculo de união ou de casamento e que,

ipso facto, conservam em comum alguns traços do patrimônio genético hereditário.

(MUNANGA, 2004, p. 30)

O autor o empregou para se referir aos negros descendentes da diáspora negra no Brasil,

independentemente da classe social, financeira e da tonalidade de pele (pretos e pardos). Na

diversidade de produção de cultura criada na diáspora, percebe-se o caráter de autopreservação

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praticado a fim de manter vivas as tradições e, no nosso caso, os sabores.

A produção cultural negra teve como pressuposto a existência dos sujeitos, para que

pudessem resistir. Porque primeiro vem a existência. E, depois, a necessidade de produzir,

transformando esse ato em cultura de resistência. Pelo óbvio contato com uma diversidade de

culturas, despontou ali uma característica de negociação com elas, a fim de sobreviverem. Uma

negociação com o objetivo de preservar seus saberes.

As múltiplas configurações que a cultura africana negra toma quando fora do

continente africano são importantes, pois asseveram que as pessoas, ao serem

deslocadas das Áfricas e ao entrarem em contato com o outro sujeito social – as

culturas asiáticas e europeias –, são impelidas a lidar com estranhas e aviltantes

realidades, e, diante disso, obrigadas a criar um conjunto de artifícios com vistas de

sustentar a vida na dinâmica cotidiana. Ao longo do tempo, as produções culturais

negras, “culturas de resistências”, antes de serem entendidas em sua “pureza”,

como manutenção ou retorno às tradições ou legados da “África”, são produções

híbridas, nascidas nos intercruzamentos de culturas, como combinações de

transgressões, submissões, negociações, interdições, trocas, rupturas e subversões.

(SOUZA, 2011, p. 41, grifo nosso)

Procuraremos estabelecer, neste primeiro capítulo, o pressuposto de que a Culinária Afro-

Brasileira designa uma cozinha de culinária criativa, com a (re)invenção e a (re)criação de quitutes,

pratos salgados, doces preparados com alimentos de origem africana ou não. É considerada um

legado da diáspora africana no Brasil.

Muitos pratos são sobreviventes devido ao seu vínculo com as religiões de matrizes

africanas. E, atualmente, espaços de sociabilidade incorporaram em seu cardápio comidas da

culinária afro-brasileira, ou seja, é uma fusão de várias culturas africanas feitas por afro-brasileiros.

Nossa apresentação dos traços da culinária afro-brasileira foi feita a partir das leituras de autores

brasileiros sobre tema: Raul Lody (2012, 2013), Vivaldo da Costa Lima (2010) e Manuel Querino

(2011).

Esses mesmos autores tecem sobre a culinária baiana mais especificamente. Contudo,

optamos por concentrar a pesquisa na abrangência da culinária afro-brasileira. Assim, priorizamos

nosso objeto de pesquisa e, de qualquer forma, já estaremos inseridos na culinária baiana, pois é

uma cozinha que conta com as mãos dos africanos no Brasil. Justamente pelo quantitativo de

indivíduos de uma diversidade de etnias desembarcados aqui, que construíram música, arte,

religiões, lutas a partir da dispersão africana no continente americano.

Apenas não nos aprofundaremos na discussão do que é a culinária baiana, a culinária de

terreiro e a culinária africana por compreendermos que todas elas são elementos da herança da

criatividade dos africanos na diáspora, só que fragmentada de acordo com uma suposição de leitura

separatista.

Compreendemos que todas estão, de certa forma, em qualidade e quantidade, envolvidas na

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identidade negra viva dentro da diáspora africana. Sobre identidade, falaremos mais à frente, com a

contribuição de Stuart Hall. E, por último, trataremos da memória como instrumento de selecionar

conhecimentos para a consciência coletiva de uma identidade.

1.2 As negociações de sobrevivência de amanhã, ontem e hoje

O verbete “culinária afro-brasileira” de Nei Lopes na Enciclopédia Brasileira da Diáspora

Africana destaca três povos: o banto (África Austral), o iorubá (África Ocidental) e o sudanês como

influenciadores da culinária no Brasil.

A influência negro-africana na culinária brasileira foi fundamental, talvez mais que

a indígena. Tanto que Artur Ramos não hesitou em afirmar que “foi pela cozinha

que o africano penetrou de modo decisivo na vida social e de família no

Brasil”. Responsável pela introdução, na culinária brasileira, de ingredientes como

o azeite de dendê, o camarão seco, a pimenta-malagueta, o inhame, bem como

folhas diversas, utilizadas no preparo de iguarias, molhos e condimentos, o

africano negro não só trouxe para o Brasil pratos de sua tradição como

introduziu novos e saborosos elementos nas cozinhas nativa e portuguesa. Nos

pratos, por exemplo, em que o português usava azeite de oliveira, o negro

empregou o dendê e, a outros, acrescentou o leite de coco, o amendoim e a

castanha de caju. A tradição culinária africana mais influente no Brasil tem suas

origens na região do Golfo do Benim (Nigéria, Benim etc.) e se faz

acentuadamente presente no litoral nordestino, sobretudo na Bahia – fato

comprovado pelo nome da maioria dos pratos, quase todos originários de iorubá ou

de fongbé. A entrada da culinária negra no Brasil se fez principalmente pelo

intermédio dos alimentos votivos da tradição dos orixás e voduns. Depois, a

cozinha sudanesa ganhou as casas das famílias abastadas, chegou nas ruas

como as baianas vendedoras de acarajé e doces, atingindo por fim os

restaurantes especializados nas chamadas “comidas típicas”. Ao lado dessa

cozinha, entretanto, no Sudeste brasileiro, alguns preparos, criollos ou não,

como a feijoada, o angu à baiana, a couve à mineira, o mungunzá, o aluá, a

jacuba etc. parecem revelar traços de costumes de povos bantos da África

Austral. (LOPES, 2011, p. 220-221, grifos nossos)

O DBR fez dois anos de existência em 05 de dezembro de 2017 na Rua Barão de Iguatemi,

localidade oficialmente chamada de Praça da Bandeira, mais um “bocadinho”, já é Tijuca. Como

dona Dida disse “a Praça da Bandeira é um lugar de passagem”. E foi por acaso ela ter escolhido o

bairro para construir seu sonho de ter um bar.

A comida africana preparada por ela “penetrou” feito as primeiras africanas e africanos na

vida social, na cozinha da casa grande ou nas ruas, como nos diz Nei Lopes. É o único restaurante

com quitutes afro-brasileiros e africanos diante de diversos bares e restaurantes já estabelecidos no

circuito gastronômico da Praça da Bandeira.

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O bar oferece pagode às terças, jazz aos sábados e outras atrações musicais durante o mês.

Devido a sua vizinhança ser majoritariamente residencial, precisou estabelecer um horário de

funcionamento à noite, principalmente no dia do pagode. Os clientes não gostaram muito da ideia

de o pagode acabar logo às 22:00. Mas a dona do estabelecimento decidiu priorizar a lei do silêncio

para manter os laços de boa convivência.

A presença dos africanos na cozinha das casas dos senhores, muito bem apresentada por Nei

Lopes, afirma como sua sabedoria era aproveitada nos hábitos alimentares da casa e que foi aceita

posteriormente até na rua, como já sabemos das vendas de quitutes feitos pelos escravizados. O

destaque fica para os temperos dos iorubás, por sua inserção nos pratos da Região Nordeste.

O autor mostra as mudanças de sabores feitas com os produtos alimentícios africanos

trazidos pelos escravizados ao Brasil. Como muitos alimentos para compor a receita não foram

encontrados no país, eles foram substituídos por alimentos nativos, como Nei Lopes diz, o azeite de

oliva pelo azeite de dendê. E o mais importante é que a culinária afro foi introduzida pelas religiões

de matrizes africanas e, depois, passou a ser comida de rua (pela mão sudanesa).

A substituição até hoje é feita na cozinha no momento do preparo de comidas africanas,

como nos disse Dona Dida:

Porque nem tudo que eles usam lá eu consigo aqui. Eu sou louca pra fazer o FuFu.

O FuFu, o dia que eu fizer o FuFu aqui, eu vou ficar realizada. Eu vou comer até de

manhã. Mas eu não consigo achar a farinha do FuFu... e lá... o FuFu... quase todos

os países na África fazem o FuFu. Entendeu?! É uma massa branca... pode fazer de

farinha de mandioca ou farinha de milho. Entendeu? Fica muito bom! É uma coisa

que faz parte da cultura africana, mas não consigo fazer aqui porque não consigo a

farinha, né? De repente, até... fazer afro-brasileiro. É farinha de mandioca, só que é

diferente da nossa.11

No DBR, a matriarca revela um sonho de preparar o FuFu com os mesmos ingredientes.

Entretanto, não é possível pela ausência do ingrediente principal nos mercados daqui. Isso desperta

a criatividade da economista aposentada e cozinheira Dilma Nascimento (Dida), ao ter que refazer a

receita com um ingrediente semelhante para que se aproxime do sabor e da textura do prato

original.

Notamos que a (re)invenção preserva uma artimanha, no sentido positivo de montar uma

estratégia de preservação de um prato que é “desconhecido” popularmente para que seja

reconhecido e experimentado dentro do projeto do bar. É uma maneira de resgate e amplificação da

cultura negra.

Seguindo o mesmo ritmo, muitos quitutes africanos foram reinventados no Brasil, e outros

alimentos foram incorporados ao cardápio brasileiro. Com a ausência de ingredientes, a dona do bar

11

Entrevista concedida por Dilma Nascimento no dia 21/06/2017.

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lançou mão de estratégias criativas de sobrevivência de receitas, incluindo a substituição deles por

alimentos nativos, similares aos dos pratos africanos.

Trata-se de uma potencialidade da criatividade do povo negro que foi escravizado, mas que

soube utilizar seu corpo para criar um “arquivo” de conhecimentos a ser transmitido às gerações

posteriores. Um exemplo dessa herança: Dona Dida teve sua primeira experiência de bar com sua

mãe. Era uma barraca, mas a ideia permaneceu, evoluiu e, assim, vemos um diálogo constante entre

presente e passado para se manter viva a tradição.

Raul Lody fornece a importância da inserção dos alimentos africanos na culinária e mostra

como foi um longo processo, atingindo diversas esferas da sociedade, já que o escravizado também

estava presente no cotidiano, na rua, na casa, no trabalho, no lazer.

Desde a venda de comida nas ruas pelos escravizados de ganho até as comidas votivas (para

orixás e voduns) – que depois iriam ganhar as ruas também (o mais popular é o acarajé), como nos

falou Nei Lopes, – a culinária afro-brasileira ativou sabores e temperos em diferentes espaços.

Apresentando ações criativas para transformar os alimentos que eles próprios dominavam (dendê,

inhame, quiabo), já usados na cozinha da senzala, para serem “aceitos” na cozinha da casa grande.

Nesse paralelo entre o resumo da história da culinária afro-brasileira, feito por Nei Lopes, e

o DBR, nota-se que o prato principal é a genialidade de preservar uma memória cultural com

ingredientes já dominados, seja pelos escravizados, seja pela cozinheira na atualidade.

Nós, afro-brasileiros, buscamos nossa identidade negra em elementos diaspóricos que nos

conduzam ao sentimento de pertencimento social e cultural. A culinária afro-brasileira pode

funcionar, na prática, como um representante de pensamento da memória e da identidade,

juntamente com materiais elaborados com a criatividade da cultura negra.

1.3 Identidade em corpos e mãos negras

A diáspora africana foi o fluxo migratório forçado de diversas etnias africanas para o

continente americano durante os séculos XV-XIX. A dispersão do qualitativo de seres humanos

transformou as sociedades e os sujeitos, o que nos remete a dizer sobre o significado de mercadoria,

pois o corpo negro foi desumanizado, com objetivos de torna-se um objeto de valor dentro da

economia escravagista. Por isso, sua identidade foi totalmente dilacerada. Dentre as mudanças

ocorridas, iremos nos debruçar sobre a (re)construção da concepção de identidade negra de acordo

com seu território de nascimento ou de renascimento.

Nossa pretensão é caminhar com Stuart Hall sobre o pensamento de como os corpos negros

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forjaram sua identidade negra em um país como o nosso, alterado culturalmente com a dominação

colonial. A supressão de culturas nativas obteve sucesso a partir da hegemonia da cultura do

colonizador (europeu). Entretanto, a diáspora negra no Brasil articulou formas de arquivar seus

costumes para dar continuidade às suas tradições, reelaborando sua existência neste território. O

aspecto culinário está atrelado a um fator identitário de pertencimento à cultura negra.

A herança tem a finalidade de percorrer todas as gerações familiares para não se perder a

tradição, seja essa herança um patrimônio material ou imaterial. Seja ela transmitida oralmente ou

pela escrita.

A sabedoria do povo negro conta, conforme a historiografia já investigou, que nós tivemos

uma experiência coletiva dentro da escravidão, mas muitas das práticas de (re)existências não foram

registradas oficialmente. Porém, também já sabemos que o corpo foi o arquivo/arma para

salvaguardar a memória comunitária da população negra (TAVARES, 2012) diante da dificuldade

imposta na condição de escravizado. O corpo acumula heranças da identidade negra, ou seja, o

corpo é compreendido “como um dispositivo de poder, de identidade e de pertinência a um ou a

outro grupo” (TAVARES, 2012, p. 84).

Relembrando uma parcela da trajetória da população negra no Brasil, é possível concordar

com o fato de que nossas linhagens de parentesco foram todas (re)construídas a partir de novas

maneiras de existir para que o cultivo de nossos ancestrais permanecessem vivos em nossas

identidades. A cultura negra teve, assim, por excelência, que adicionar os sabores de temperos daqui

aos seus, a fim de dar continuidade a sua existência. Essa presença se faz nos atravessamentos dos

corpos negros que zelam pelo costume, por exemplo, de comer Caruru na Bahia em dia de São

Cosme e Damião (LODY, 2013):

200 quiabos

½ kg de camarão seco

1 colher de (sopa) de gengibre ralado

250g de amendoim torrado sem pele

250g de castanha de caju torrada

Azeite de dendê a gosto

Sal e pimenta do reino a gosto.

(FREGONEZE; COSTA; SOUZA, 2015, p. 22)

Nesse sentido, uma identidade cultural em sociedades diaspóricas na pós-modernidade não

está baseada em elementos tradicionais convocados, geralmente, para comprovar sua origem. Mas

sim no que a reestrutura, sendo essa a própria garantia de existência. Percebe-se que o ato de

cozinhar um prato em “dias santos” ultrapassa a experiência da gastronomia, pois, aqui, ele tem o

compromisso de exercer um significado de preservação de memória e de pertencimento à

identidade da culinária afro-brasileira. A tradição modela nosso imaginário com a ação de

potencializar a representação das raízes de matrizes africanas.

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Possuir uma identidade cultural nesse sentido é estar primordialmente em contato

com um núcleo imutável e atemporal, ligando ao passado o futuro e o presente

numa linha ininterrupta. Esse cordão umbilical é o que chamamos de “tradição”,

cujo teste é o de sua fidelidade às origens, sua presença consciente diante de si

mesma, sua “autenticidade”. É claro, um mito – com todo o potencial real dos

nossos mitos dominantes de moldar nossos imaginários, influenciar nossas ações,

conferir significado às nossas vidas e dar sentido à nossa história. (HALL, 2013, p.

32)

Nosso passado dentro do registro oficial, em parte, foi silenciado pela história do

colonizador, cuja visão eurocêntrica de nós sobressai. O “cordão umbilical” citado por Hall foi

corrompido, ou seja, mesmo nossos ancestrais que viveram em África e depois sobreviveram e

formaram famílias aqui no Brasil, traçando uma renovação no modo de (re)existir, não puderam

retornar ao seu local de origem, mas isso não os impediu de ressignificar seus saberes neste

território.

Aconteceram modificações, (re)invenções em diálogo relacional com as tradições a fim de

preservar as nossas origens. E a culinária afro-brasileira se ressignifica na atualidade, justamente

alimentando um cardápio com refeições que trazem uma relação de memória e identidade.

A tradição pode ser sentida em diversos momentos no Dida Bar e Restaurante. Destacamos,

então, algo que fica diante dos olhos de todos os clientes já no instante em eles que entram no bar,

um objeto simples e pequenino. No alto do teto, colheres de pau penduradas com fios balançam ao

tocar de qualquer vento ou som de caixas e atabaques em dia de samba e Awuré12

:

Figura 1: Colheres de pau no alto. Foto: Thiago Braz.

12

“O termo AWURE faz parte do grande acervo de palavras do povo Yorubá. O termo atravessou o tempo e é, até hoje,

falado, ao lado de outros idiomas, na parte oeste da África, principalmente Nigéria, Benin, Togo e Serra Leoa. Em

grande parte dos cânticos sagrados em reverência aos deuses africanos, o termo AWURE aparece fazendo menção a um

desejo de boa sorte, bênçãos, prosperidade, boas coisas de uma forma em geral” (descrição do evento “Awure e Caruru

da Dida” na página do Dida Bar e Restaurante no Facebook. Publicado em: 12 out. 2017). Disponível em:

<https://www.facebook.com/events/1446573505433328/>. Acesso em: 21 jan. 2018.

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O utensílio também está presente no logotipo do bar: numa extremidade, é colher de pau,

noutra, a mão de um cavaquinho:

Figura 2: logomarca do Dida Bar e Restaurante13

.

Veja o quanto é significativa a união da musicalidade com a culinária. Mesmo sendo

proibida pela vigilância sanitária, devido ao seu grau de contaminação por ser um instrumento feito

com material natural – madeira –, vemos a colher de pau como símbolo de uma tradição viva que,

para sobreviver, necessita dialogar, negociar com o presente para dizer que ainda existe e resiste.

“Nesse processo, ela, a tradição, reinscreve-se, fazendo da sua existência uma troca constante,

fazendo a sua existência reexistir e permanecer viva” (SANTANA JÚNIOR, 2017, p. 13).

O tempo todo existe um circuito de transformações dos significados transitórios imaginados

sobre o que é afro-brasileiro. A história dos antepassados nos conduz às memórias dos traumas,

inclusive “nossa modernidade é marcada pela conquista, expropriação, genocídio, escravidão, pelo

sistema de engenho e pela longa tutela da dependência colonial” (HALL, 2013, p. 33). Como

reconstruir uma identidade quando a sociedade colonizadora impôs violentas formas de ser aos

africanos? Aqui, a diferença será o ingrediente especial para pensarmos a identidade.

A diversidade das etnias responsáveis pela formação do povo negro construiu uma noção

sem binarismos – fator valorizado no modelo europeu –, a diferença, então, funciona como lugar de

passagem (HALL, 2013). Isso significa dizer que as trocas culturais não foram excluídas durante o

contato com outras culturas. Quando pesquisamos receitas de Vatapá, o ingrediente principal (a

massa) varia de acordo com a região ou o estado do Brasil, por exemplo: farinha de trigo ou de

mandioca, fruta-pão ou pão amanhecido. E Dorival Caymmi sugere até o fubá e sua canção

“Vatapá”.

13

Fotografia retirada da página do Dida Bar e Restaurante no Facebook. Disponível em:

<https://www.facebook.com/didabarerestaurante/photos/a.187392964735686.48297.161167240691592/649258705215

774/?type=3&theater>. Acesso em: 21 jan. 2018.

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33

Mas então porque se mantém o mesmo nome do prato mesmo com uma variação tão grande

de ingredientes? Porque o principal mesmo é não deixar de mexer e não embolar, feito angu. Se

tiver caroço não é vatapá e muito menos angu.

Utilizar palavras do campo da cozinha para exemplificar a estrutura da identidade cultural

relacional de Stuart Hall serve para encaminhar nosso objeto de modo associativo à definição de

identidade feita pelo autor. A população negra apresenta características de uma identidade sem

fronteiras rígidas, dentro da Diáspora Negra.

Na receita do Vatapá, os ingredientes são modificados de maneira criativa. O prato é feito

com o que se tem na terra, de acordo com a região e estado do Brasil. E nenhuma das substituições

fez com que o nome do prato fosse modificado. A autopreservação como princípio da vida está

inserida nessa lógica da identidade, pois é melhor a associação com o Outro para que eu sobreviva

do que a Morte repentina sem luta.

Nosso esforço aqui é para exaltar as tantas etnias que adentraram este território com seus

costumes culturais e tiveram a sagacidade de proteger sua identidade, estruturadas num princípio

básico da Natureza: a autopreservação (AKBAR, 1984). Assim, no que diz respeito à alimentação

ou, do ponto de vista da arte, à culinária, foi necessário manter uma identidade relacional com as

demais identidades. Dessa forma, poderiam conduzir a cultura negra às outras gerações, mesmo

com essas transformações – necessárias para a sobrevivência – que, do ponto de vista africano, não

são sentidas como perda de essência de identidade, mas como ato de sobrevivência coletiva.

E, o mais importante a destacar, sem destruir outras culturas para dizer que a sua é superior.

Há um permuta para o grupo sobreviver. O princípio primeiro da Natureza é a vida, a

autopreservação (AKBAR, 1984), então, a tradição é manter o costume vivo com as opções

existentes no território.

Pensar maneiras de decolonizar o pensamento é uma estratégia do colonizado de “colocar

para fora” sua história sob sua própria perspectiva. É registrar uma história de existência de

conhecimentos a partir de mãos negras dentro do presente, retirando o discurso da colonialidade de

poder (BALLESTRINI, 2013).

Dessa forma, colocamos à mesa o projeto central da decolonialidade, pois foram

pluralidades de ações de negras e negros com organizações coletivas (Quilombo) ou individuais (as

quituteiras), a uma pitada de exemplo, que selaram seu modo de existir dentro da diáspora e que

revelam, nas gerações de agora, um novo momento, novas formas de negociação baseadas na

herança do passado (tradição), a fim de que continuem sobrevivendo com suas criações e

recriações.

Central ao projeto político-acadêmico da decolonialidade é o reconhecimento de

múltiplas e heterogêneas diferenças coloniais assim como as múltiplas e

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heterogêneas diferentes reações das populações e sujeitos subalternizados à

colonialidade do poder. (COSTA; GROSFOGUEL, 2016, p. 21, grifo nosso)

Pensamos que a culinária seja uma representante da criatividade híbrida, transcultural da

presença da reunião da gama de elementos das diversas culturas africanas. Como apresentamos no

exemplo da receita do Vatapá, temos também a Moqueca. Existem famílias que fazem com dendê,

outras sem dendê.

O modo de servir o prato é diferente em cada estado, uns com panela de barro, outros sem.

No Espírito Santo, é feito sem dendê, na Bahia não pode faltar dendê nem leite de coco. Mas a

origem do nome do prato é tupi “moquém”, que significa “secar ou toscar a carne” (SILVA, 2015).

Observe a fusão de técnicas de culinárias diferentes nessa deliciosa receita:

Moqueca

Ingredientes:

1kg de peixe cortado em postas

6 tomates

3 cebolas

2 pimentões

1 coco seco

1 maço de coentro

1 maço de cebolinha

Azeite de dendê a gosto

Sal e pimenta a gosto

(FREGONEZE; COSTA; SOUZA, 2015, p. 86)

Demonstra o que explicamos acima sobre o que a cultura negra faz para sobreviver às

adversidades das estruturas do poder hegemônico colonial. A estratégia de união criativa com outras

culturas étnicas representa o seu caráter híbrido e sua autopreservação. Toda essa ação presente no

pensamento afro alia-se à leitura de perspectiva decolonial, que será adicionada no segundo capítulo

dessa dissertação. Trata-se do trabalho de campo feito no Dida Bar e Restaurante.

A identidade da culinária afro-brasileira conduz o saber/fazer da diferença dentro de arranjos

de identidade cultural de relacionamentos híbridos. O DBR é uma “extensão da minha casa”, como

diz Dona Dida, com o cardápio recheado de quitutes e pratos africanos e afro-brasileiros. O bar

consagra-se por ser mais um expoente da culinária afro-brasileira no Rio de Janeiro.

A Casa Omolokum14

direciona sua cozinha para a culinária de terreiro; o Wendaval da

Lapa15

, para a comida baiana e a nordestina; e o projeto Afro Gourmet16

tem como personal chef

Dandara Batista. Todos são espaços da expressão da culinária afro-brasileira, bem como as feiras

gastronômicas das Praças Mauá e Tiradentes, onde encontramos diversos quitutes, cada qual com

um tempero diferente, mas todos têm uma relação com as culturas africana e afro-brasileira.

14

Rua do Jogo da Bola, 102 – Saúde, Rio de Janeiro. 15

Av. Gomes Freire, 663 – Centro, Rio de Janeiro. 16

Da Lapa Designer Hotel, Rua do Lavradio, 200, Lapa, Rio de Janeiro.

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35

Aqui, justificamos a aproximação do conceito de identidade cultural de Hall com a culinária

afro-brasileira. A identidade negra nesses restaurantes, bares ou feiras mantém-se fortalecida e

relacionada com a diferença e não com a exclusão do Outro. A autenticidade de origem – o que é

“verdadeiro é o melhor”, “o melhor bolinho” – é um aspecto da identidade do colonizador,

fortalecida através da afirmação da inferioridade do Outro. As nações ocidentais exercem poder

hegemônico destruindo símbolos e saberes dos povos colonizados.

A identidade negra inverte essa lógica de destruição, os sujeitos diaspóricos se

estabeleceram através da diferença e da fronteira do que é do colonizador e do que é seu. Em outras

palavras, os afrodescendentes negociaram uma forma criativa de ação para existirem como sujeitos

a fim de sobreviver nos territórios da Diáspora. A busca de alimentos substituintes aqui é uma

forma de manter as receitas vivas na memória.

1.4 De bisavós, avós e mães: movimento de memórias, afetos e histórias

A memória coletiva ou individual dos negros no Brasil foi corrompida pelo discurso do

colonizador mesmo após a sua emancipação. A estratégia do Estado era/é manter o passado dos

grupos de minorias silenciado. Sua cultura dominante sobressai através de uma imposição violenta,

subjugando e apagando as demais culturas. Os que não são relembrados, os que não são incluídos

nessa memória oficial possuem uma memória subterrânea (POLLAACK, 1989, p. 3).

Essa memória, apesar de não ser oficial aos registros de época, sobrevive dentro dos corpos-

arquivo (TAVARES, 2012). Comparando essas memórias às raízes de mandiocas e inhames,

dizemos que estão embaixo da terra (são subterrâneas), pois, por fora, não enxergamos nenhum

fruto, mas, quando arrancadas, vemos a qualidade da raiz.

A memória sobrevive a partir das negociações e da autopreservação dos sujeitos negros,

alimentada com a memória ativa de mulheres negras que eram responsáveis pela cozinha tanto da

casa grande como da senzala. Apesar de seus corpos estarem sob o domínio do sistema colonizador,

souberam utilizar estratégias de sobrevivência com pitadas de criatividade a fim de adaptar seus

saberes ao novo território, mas sem perder o sabor da terra materna.

A memória dos seus hábitos alimentares, podemos dizer, foi colonizada com pressupostos

da colonialidade. Entretanto, houve criações de receitas que conquistaram a mesa do senhor da casa

grande. A maior prova disso é a Feijoada, uma vez que dos restos do porco fez-se o prato mais

conhecido nacional e internacionalmente.

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No discurso colonial, o corpo colonizado foi visto como corpo destituído de vontade,

subjetividade, pronto para servir e destituído de voz. Corpos destituídos de alma, em

que o homem colonizado foi reduzido à mão de obra, enquanto a mulher colonizada

tornou-se objeto de uma economia de prazer e desejo. Mediante a razão colonial, o

corpo do sujeito colonizado foi fixado em certas identidades. Diante disso, a trajetória

individual e coletiva dos sujeitos subalternos (especialmente das mulheres negras) é

vista como um privilégio epistemológico de onde se elabora também um pensamento

de fronteira a partir de uma perspectiva subalterna. (COSTA; GROSFOGUEL, 2016,

p. 19-20)

Espaços públicos de sociabilidade reativam essa memória subterrânea – o “não dito” que foi

silenciado no registro oficial – ao investirem em elementos da cultura negra no âmbito da música,

da decoração e, principalmente, da culinária. A partir daí, possibilitam a (re)existência das

memórias de sabores e afetos contidos no espaço da cozinha, mas que foram silenciados em espaços

oficiais.

Dessa forma, reafirmam e confirmam o poder do protagonismo de negras e cozinheiras

como guardiãs da memória da culinária afro-brasileira. E isso pôde ser observado dentro da história

de Dona Dida, ao seguir os passos de sua mãe, Tia Maria, que montou uma barraca na Pavuna para

complementar a renda da família. Lá, sambistas passaram e rodas de capoeira foram organizadas

pelo irmão de Dida. O efeito dessa iniciativa foi que Dona Dida, filha, acompanhou sua mãe nessa

experiência, adquirindo sabedoria relacionada ao comércio de rua e à culinária.

É inevitável retroceder ao passado para articular essa sabedoria às das nossas mais velhas,

que são as escravizadas de ganho, as quituteiras e as donas de barracas de verduras e legumes no

período colonial brasileiro (FARIAS, 2015). E chegar aos fins do século XIX e início do XX, com

as tias baianas, que abriam sua própria casa, ponto de integração que uniu a população negra

naquele momento em que nenhuma ação pública a amparava.

As mulheres compartilhavam as receitas nas casas das tias para todas aprenderem a ganhar a

vida. Por isso o espaço das casas servia para circular os anseios do tempo presente, permeado de

aprendizados, lutas, música, festas, trabalho. Elas acolhiam com afeto a construção do samba. As

tias baianas, com seus quitutes, tinham uma maior locomoção na cidade, seus corpos circulavam

com mais facilidade, fazendo com que a comunicação fosse mais fluida entre a casa e a rua

(NOGUEIRA; SILVA, 2015).

As tias baianas que eram os grandes esteios da comunidade negra, responsáveis

pela nova geração que nascia carioca, pelas frentes do trabalho comunal, pela

religião, rainhas negras de um Rio de Janeiro chamado por Heitor dos Prazeres17

de

“Pequena África”, que se estendia da zona do cais do porto até a Cidade Nova,

tendo como capital a Praça Onze. (MOURA, 1995, p. 131)

Por tudo isso, observado na história de vida de Dona Dida e na do comércio de rua feito por

17

Heitor dos Prazeres, grande pintor, cantor e compositor negro brasileiro do século XX.

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mulheres negras, ressaltamos a importância de evocar a mulher negra como articuladora de rede de

solidariedade. Vemos, no bar, dois elementos que atravessaram o tempo e que são símbolos da

herança africana na cultura dos afrodescendentes: a culinária como ferramenta de trabalho e a

solidariedade através da coletividade. Vê-se retomada uma estratégia de suas bisavós para que aja

um movimento de resistência ativa no presente, criando elos de afetividade e de sobrevivência

(NOGUEIRA; SILVA, 2015).

O que queremos elucidar é uma das formas de criatividade de (re)existência da memória dos

saberes culinários dessas mulheres negras, o quanto a memória conseguiu uma flexibilidade para

servir tanto os patrões quanto seus familiares e repassar as receitas para outras gerações.

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do

passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou

menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e

fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos,

sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao

passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem

uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas

também as oposições irredutíveis. (POLLACK, 1989, p. 7, grifo nosso)

Porém, concomitantemente a esse movimento opressor, existe a resistência das quituteiras

do período da colonização em circular pela cidade com seus tabuleiros e repassar suas receitas à

família. Vale valorizar a história de Luiza Mahin, quituteira que distribuía panfletos dos Malês em

Salvador no ano de 1835. Em seu espaço de trabalho, ela era a ponte de divulgação da Revolta dos

Malês18

. Então, esse fato nos ajuda a reforçar que a comida vendida na rua, nos tabuleiros, pelas

trabalhadoras ou trabalhadores de ganho era fonte de compra de liberdade, herança cultural e luta

pela liberdade.

Já na atualidade, trazemos como espaço de sociabilidade e comensalidade o DBR, local que

estabelece sentimento de pertencimento à memória da identidade negra. A escolha do local se deu

pela indicação de alunos do Mestrado em Relações Étnico-Raciais, CEFET/RJ. Quando souberam

do nosso tema, logo disseram que lá seria o local propício para a pesquisa.

Nosso contato com a administração foi feito via internet e marcamos um encontro para

explicarmos o projeto e convidá-los a participar da pesquisa. A resposta foi positiva. E, conforme os

participantes iam contribuindo com suas observações, que acontecerem nos eventos mensais do bar,

ia marinando, aos poucos, entre as entrevistas formais e informais, a história da família Nascimento

18

Revolta dos Malês: importante insurreição urbana contra a escravidão negra no Brasil, no ano de 1835, em Salvador,

Bahia. A revolta foi formada por libertos e escravizados africanos das etnias nagô, hauçá e malê. “Malê: corruptela de

imole, que em iorubá significa muçulmano, ou preto islamizado, o muçurummim” (GONÇALVES, 2013, p. 416). Em

sua maioria, negros e negras de ganho, escravizados autorizados a circular na cidade para trabalhar. Desempenhavam

atividades como alfaiates, pequenos comerciantes, artesãos e carpinteiros, quituteiras (vendedoras de doces e salgados)

etc. Entre os participantes, estava Luisa Mahin, mulher negra escravizada, quituteira, mãe do futuro abolicionista Luís

Gama. A história de Luisa está no romance escrito por Ana Maria Gonçalves Um defeito de cor (GONÇALVES, 2013).

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durante quase um ano. Isso foi dando um sabor refrescante à pesquisa.

A existência do bar nos encaminhou a pensamentos reflexivos, já explanados acima, sobre

memória, identidade e culinária afro-brasileira. A (re)existência abriga uma reação à colonialidade

do poder. Toda forma de recusar as práticas coloniais é uma forma decolonial. O corpo é o principal

elemento das ações decoloniais, ou seja, quem leva seu corpo para lugares com comidas africanas

está praticando uma ação decolonial e ativando sua identidade e sua herança ancestral negra.

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2. A RECEITA: O PROCESSO ETNOGRÁFICO, A NARRATIVA DO BAR E

OS DECOLONIAIS

Praça da Bandeira, bairro da cidade do Rio de Janeiro, está situada entre o centro e a Zona

Norte. Descendo ali de trem ou de ônibus, deparamo-nos, os transeuntes, com um pórtico antigo:

símbolo do resquício da construção do matadouro da cidade em 1853, que já se chamou Largo do

Matadouro, no século XIX.

Atravessando a passarela, podemos ver pessoas esperando ônibus na calçada, bares,

restaurantes, prédios antigos e supermercados. Adentramos a Rua do Matoso, dobramos à direita

para a Barão de Iguatemi, visualizando uma rua arborizada e, ao mesmo tempo, com os sons das

buzinas, dos carrinhos de mochila das crianças, e um cheiro de churrasquinho.

No final do dia, por volta das 17h, o burburinho dos pratos e talheres toma conta da rua,

que desfruta de um rico polo gastronômico com uma diversidade de bares e restaurantes. Já quase

no final da Barão de Iguatemi, debaixo da frondosa e alta monguba19

, com espadas de Ogum ao pé

da árvore, está o Dida Bar e Restaurante, com suas janelas altas, sem vidro, contornadas de verde

e abertas. Dá para ver todo o bar.

Sua parede do lado de fora estampa um amarelo forte. Dentro do bar, há 40 cadeiras e 10

mesas marrons, cobertas com um papel marrom clarinho com a logomarca e o endereço do bar e

restaurante. No centro da mesa, ficam o guardanapo em canecas maiores esmaltadas, canequinhas

com açúcar, sal e palitinhos, vidros transparentes de pimenta e garrafas de azeite:

Figura 3: Utensílios de mesa.

Dentro do bar, as paredes são recheadas de decoração e de eletrodomésticos de uso do bar.

Na parede à direita de quem entra, estão quatro freezers horizontais, no final, estão os banheiros

19

Árvore com os frutos semelhantes ao cacau; é conhecida também pelo nome castanhola ou castanha-maranhão.

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feminino e masculino. Entre eles, uma pia e, acima dela, muitos espelhos pequenos com borda

laranja que, juntos, formam um grande espelho:

Figura 4: Espelhos.

Continuando o passeio visual dentro do bar, vemos o balcão de atendimento, alto e feito de

mármore, onde são recebidos e entregues os pedidos de quitutes, bebidas e pratos de comida

africana e afro-brasileira. Do lado de dentro do balcão, uma pia para lavar os copos e, depois, a

cozinha, que não dá para ver dali.

Próximo ao balcão, um espaço com uma espécie de “palquinho” – o piso ali é mais alto que

o do restante do bar –, com uma televisão de plasma acima e, do outro lado, um suporte para caixa

de som. Na parede verde, médios e pequenos retratos de artistas negros do samba carioca: Cartola,

Pixinguinha, Clementina de Jesus, Bezerra da Silva. Vemos, ainda, outros objetos: cabaças nas

cores amarelo, azul, vermelho e verde, uma gamela pintada com traços pretos, um violão, uma

girafa, talheres longos amarelos e instrumentos musicais:

Figura 5: Parede do Fundo com celebridades do samba e instrumentos musicais. Foto: Thiago Braz.

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Numa parede menor, fica a dispensa com uma porta branca de correr. Em seguida, a última

parede, sem tinta, descascada, com os tijolos à mostra. Ali, estão dispostos oito quadros, na sua

maioria de mulheres negras. O segundo quadro da primeira linha expõe o retrato da Ialorixá Mãe

Beata de Iemanjá:

Figura 6: Quadros das mulheres negras e da Mãe Beata de Iemanjá.

Beatriz Moreira da Costa, falecida em 27 de maio de 2017, aos 86 anos, era uma mulher

negra, ativista dos direitos humanos e do meio ambiente; lutou contra a intolerância religiosa e a

violência contra as mulheres. Recebeu o prêmio de patrimônio cultural do Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 2015, pelo seu trabalho em prol da preservação da

cultura africana. O quadro inserido após seu falecimento seguiu-se da criação de um prato em sua

homenagem, o “Peixe à Mãe Beata de Iemanjá”. Mais à frente, falaremos sobre ele.

2.1 O olhar sobre a trajetória do bar e os eventos recheados de saberes

Dona Dida classificou a Praça da Bandeira com um “lugar de passagem”, escolhido por

acaso para o desenvolvimento do empreendedorismo da família. Nota-se, e foi informado pela

própria Dona Dida, que o espaço passou por reformas para comportar o projeto em março de 2015.

No local, já funcionava o bar “Tempero da Praça”, com oferta de quitutes, cerveja e música

aos finais de semana. Ao longo de 2015, o espaço foi reformulado com a ajuda de amigos e

vizinhos. O bar não tinha muito movimento, segundo nossa entrevistada, e ela, visionária, pensou

em transformar o espaço numa “pequena Lapa20

”, com o objetivo de oferecer diversão, cultura e

20

Lapa, bairro da cidade do Rio de Janeiro, com um espaço cultural de grande expressão musical e concentração de

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culinária no mesmo lugar.

Terminada a reforma em dezembro de 2015, o bar precisava ser batizado. A escolha

terminou com o apelido da matriarca da família, Dida, de Dilma Nascimento. Agora, seu apelido é

conhecido por todos os frequentadores da região e adjacências, e também por Celeste Estrela21

,

Ana Maria Gonçalves22

e Conceição Evaristo23

, que já participaram de eventos relacionados às

questões da mulher negra e da literatura afro-brasileira24

.

O Dida Bar e Restaurante acolheu eventos de literatura afro-brasileira. O primeiro que

registramos foi a Roda de Conversa com Celeste Estrela e Conceição Evaristo, ocorrido no mês de

outubro de 2017, com o apoio da Cervejaria Feminista, que produz cerveja artesanal com rótulos

que homenageiam mulheres com a trajetória de vida atrelada à luta pelos direitos femininos e que

rompem com os padrões de que o consumo de cerveja é apenas para o público masculino.

A representante da Cervejaria Feminista destacou o fato de o DBR ser um ponto de

narrativa de resistência negra e a importância de espaços para discutir a condição da mulher na

atualidade. Conceição conversou com o público, majoritariamente feminino nesse dia, sobre a

questão de a mulher negra apropriar-se da escrita como ferramenta de luta. A noite começou com

um recital de poemas de autoria de Celeste Estrela, tendo, ao seu lado, Conceição Evaristo e Dida:

Figura 6: Roda de conversa com Celeste Estrela e Conceição Evaristo.

Logo após a roda de conversa, tivemos a apresentação da cantora Ana Bispo. Suas

participações no bar começaram desde a Primeira Festa Africana e, até hoje, a cantora mantém

essa parceria com o DBR. O dia só acabou com a exibição do programa “Que Maravilha” do canal

bares e restaurantes. 21

Celeste Estrela: escritora, atriz e poetisa. 22

Ana Maria Gonçalves: escritora do livro Um defeito de cor (GONÇALVES, 2013). 23

Conceição Evaristo: escritora de diversos livros da Literatura Afro-Brasileira: Olhos d’ água (2016), Ponciá Viêncio

(2003), Insubmissas lágrimas de mulheres (2011), Histórias de leves enganos e parecenças (2016) etc. 24

A Literatura Afro-Brasileira diz respeito aos escritores negros que trabalham com a temática da história da diáspora

negra no Brasil.

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GNT, do chef de cozinha francês Claude Troisgros, em que Dida e a família abriram as portas da

casa residencial para contar a trajetória de vida da matriarca e participar do quadro principal do

programa: desafiar o chef francês a fazer um prato. Como o tema do episódio era a culinária

africana, Troisgros teve a missão de preparar o prato símbolo da família Nascimento, o “Carril de

Camarão”.

No segundo evento fotografado, em agosto de 2017, o bar recebeu Ana Maria Gonçalves

para uma comemoração pelos dez anos de lançamento do livro Um defeito de cor (GONÇALVES,

2013). O romance é inspirado na história de vida de Luisa Mahim, que foi capturada em Daóme

(Benim), e de Kehinde, escravizada no Brasil que retornou livre à África.

Figura 7: Evento para comemorar o lançamento de 10 anos de Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves.

Esse evento foi uma iniciativa do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras (GIN –

UFRJ)25

e do Blog Conversa de Historiadoras26

, em parceria com o DBR. Tivemos “Papo de Bar”

com diversas historiadoras e escritoras e um encerramento feito com uma performance negra.

2.2 “Aqui é a extensão da minha casa, aqui eu bebo, como e danço”

Após um passeio visual pelo concreto do bar, passemos ao cardápio da “casa” de Dona

Dida. O horário do almoço e do jantar é garantido durante toda a semana para os que desejam

25

“O Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras foi criado em 2014 por Giovana Xavier e surgiu do desejo de

congregar mulheres negras de diferentes áreas para construção de uma rede feminista negra engajada na produção de

conhecimentos e promoção de ações com foco em comunidades negras, suas experiências e histórias.” Disponível em:

<https://www.intelectuaisnegras.com>. Acesso em: 21 jan. 2018. 26

“Hebe Mattos e Martha Abreu criaram o blog conversa de historiadoras em março de 2014. Durante dois anos, o blog

teve todos os seus textos assinados por ambas, em coautoria. Em 2016, o blog se expande, incorporando novas

colaborações e artigos individuais, mas os textos em coautoria das duas historiadoras continuarão presentes.”

Disponível em: <https://conversadehistoriadoras.com/quem-somos/>. Acesso em: 21 jan. 2018.

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degustar e conhecer o menu de comida africana. O funcionamento do bar e restaurante é de terça a

domingo, geralmente de 12:00 às 23:00.

Existe uma diversidade de cardápios dentro da casa. Apresentaremos os mais destacados na

observação de campo, feita no período de fevereiro a novembro de 2017. O menu executivo é

oferecido na hora do almoço de terça à sexta. O cliente escolhe sua proteína com os

acompanhamentos oferecidos no cardápio.

Desde maio de 2017, no terceiro final de semana de cada mês, acontece o Dida Afro. O que

é o Dida Afro? É um evento em que são servidos pratos de origem africana. A cada mês, um país

da África é escolhido para ter um de seus pratos típicos como prato principal à mesa do Bar.

A partir das pesquisas feitas pela matriarca do bar, Dona Dida, são escolhidos um ou dois

países para ter suas delícias vendidas durante o sábado e o domingo. Existe o cardápio do Dida

Afro e o cardápio permanente, que já contém pratos de edições anteriores do evento, bem como os

quitutes e tira-gostos da casa.

O cardápio do final de semana “Dida Afro” contém os pratos africanos com a descrição dos

ingredientes principais. E, também, sugestões de acarajé e batidas alcoólicas. No mês de setembro,

tinha: Carril de Camarão (Moçambique), prato que apresentaremos mais à frente; Muamba de

Galinha (Angola); Galinha de Piri-piri (Moçambique) e Peixe à Mãe Beata. “O prato foi criado

para homenagear a matriarca de várias famílias, Sra. Beatriz Moreira Costa, mais conhecida como

Mãe Beata”27

.

Abaixo, apresentamos a Galinha de Piri-piri:

De origem Moçambicana, “Piri-piri” significa pimenta do diabo africano. São

sobrecoxas de frango marinadas em molho feito de pimenta malagueta, páprica,

suco de limão e leite de coco. Assadas e servidas com arroz branco, banana frita e o

molho de Piri-piri.28

Figura 9: Galinha de Piri-piri.

27

Descrição do prato encontrada no cardápio do DBR. 28

Descrição do prato encontrada no cardápio do DBR.

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“Com origem na Angola, a Muamba de Galinha acompanha molho de amendoim. O seu

preparo envolve galinha, amendoim, óleo de palma, quiabos e guindungo29

”30

:

Figura 10: Muamba de Galinha31

.

Destaque para o Peixe à Mãe Beata, que é uma homenagem à Ialorixá Mãe Beata de

Iemanjá, falecida em 27 de maio de 2017. Foi lançado no dia 27 de julho do mesmo ano, dia

Internacional da Mulher Latino-Americana e Caribenha. “O Peixe é assado com camarões, o toque

especial de sabor fica por conta do molho e frutos do mar e a deliciosa farofa de coco. O prato será

servido com arroz branco”32

:

Figura 11: Peixe à Mãe Beata33

.

29

Guindungo: na língua da família banta falada em Angola, significa pimenta. 30

Descrição do prato encontrada no cardápio do DBR. 31

Fotografia retirada da página do Dida Bar e Restaurante no Facebook. Disponível em:

<https://www.facebook.com/didabarerestaurante/photos/a.200431443431838.50332.161167240691592/102132188800

9452/?type=3&theater>. Acesso em: 21 jan. 2018. 32

Descrição do prato encontrada no cardápio do DBR. 33

Fotografia retirada da página do Dida Bar e Restaurante no Facebook. Disponível em:

<https://www.facebook.com/didabarerestaurante/photos/a.200431443431838.50332.161167240691592/102133070467

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Como vimos, o retrato da ativista está visível aos olhos de quem observa o espaço físico do

bar e restaurante num conjunto de quadros de mulheres negras na mesma parede do lado esquerdo

do bar. Sinalizando, na visão, no olfato e no paladar, todo o respeito pela ativista, escritora e

Ialorixá Mãe Beata de Iemanjá.

Oferecemos uma descrição etnográfica do espaço físico do DBR, até o momento, com a

decoração e os cardápios, para inseri-los nas características físicas do bar, com o objetivo de

apresentar a “casa” de dona Dida.

2.3 “A casa é pequena, mas o coração é grande”

A presença da matriarca da família é constante no bar. Ela chega por volta das 9h e fica até

o último cliente sair. Geralmente, em dia de evento de roda de samba e do Dida Afro, suas

atividades são diferentes. Na roda de Samba, ela permanece à esquerda do bar, no caixa, vendendo

os tickets de pratos, petiscos e cerveja. Conversando e abraçando os clientes também.

“Pagode da Dida” é o nome da roda de samba, com músicos convidados pela casa que, até

julho de 2017, tocavam uma vez ao mês às terças-feiras. A partir de agosto, a roda de samba

passou para duas vezes ao mês no mesmo dia da semana. O nome da roda de samba foi

modificado para “Bloco da Dida”, com a participação de outros músicos convidados. O evento se

destaca pelo quantitativo enorme de pessoas, está sempre lotado.

E, aqui, pontuamos o evento mais “famoso” da casa de dona Dida, que é o Dida Afro.

Especificamos, mais acima, apenas o do mês de setembro, a fim de demonstrar aos leitores o sabor

africano servido no bar durante o terceiro final de semana desse mês. Nesse evento, em grande

parte do tempo, Dona Dida fica no salão, recepcionando os clientes e conversando sobre os pratos.

Os funcionários também sempre explicam aos que desejarem como é composto o prato africano do

dia.

A diversidade de eventos oferecidos dentro do bar, por consequência, modificou a

dinâmica do espaço. Nos dias de “restaurante”, as mesas são dispostas no salão com as cadeiras

acompanhando. Quando a roda de samba entra no bar, afastam-se as cadeiras para os músicos e

instrumentos começarem o som. E, nos eventos relacionados à literatura, as convidadas, pois todas

que observamos esse ano foram mulheres, ficam ao centro do bar, e o salão é arrumado com

poucas mesas.

5237/?type=3&theater>. Acesso em: 21 jan. 2018.

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Figura 12: Arrumação no dia de Pagode da Dida.

As mudanças na configuração do ambiente são para favorecer a especificidade de cada

evento. Existe a reconfiguração do espaço com os mesmos objetos (cadeiras e mesas) e também

com objetivos diferentes. O que nos conduz ao pensamento da constante movimentação no espaço

para abrigar a diversidade de dispositivos da cultura negra. Seja a música, a culinária ou a

literatura, o espaço negocia formas criativas de acolher o evento. “A casa é pequena, mas o

coração é grande”.

Existe, pois, uma mexida constante no espaço para agregar, incluir as práticas culturais da

população negra. O ambiente apega-se a valores civilizatórios afro-brasileiros, fruto da diáspora

negra. Formas de existência imprimidas pelos africanos no modo intelectual, espiritual e material,

apresentadas no plano da música, da arquitetura e da gastronomia (TRINDADE, 2005).

A circularidade é um dos valores civilizatórios de origem africana, seu conceito trata do

quanto esse movimento em círculo marca diversas criações da cultura negra. Em se tratando do

nosso campo de pesquisa, a roda de samba e as constantes mudanças na configuração do espaço do

bar para atender à diversidade de eventos acolhidos são movimentos que nos fazem pensar no

mesmo trabalho exercido pela cozinheira na panela.

Observamos o quanto do empreendedorismo criativo da família está baseado nas tradições

e culturas africanas e afro-brasileiras e emergido de dentro deste valor civilizatório africano: a

circularidade. Percebida pelo movimento constante de modificações para acolher os eventos da

casa.

Há a necessidade de sempre movimentar o óleo com o alho e a cebola, para dourar e depois

colocar os pedaços de galinha. Há movimento no ato de cozer, não só na culinária afro-brasileira,

mas em outras também. Pressupomos que a sobrevivência adquire forma no ato de conexão com a

ancestralidade negra em movimentos carregados de circularidade. A circularidade desloca o

pensamento para mobilizá-lo, a fim de ressignificar os espaços, os sabores, os sons.

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Então, o que sobressai dessa análise sobre a mutação constante do espaço do bar é que

existe a presença de um valor civilizatório circulando o projeto. Significando que o ato de

imprimir sua identidade negra está aliado aos valores de seus ancestrais, ou seja, afastando-se das

epistemologias ocidentais.

A circularidade, a corporeidade, a ludicidade, a cooperatividade e a oralidade, formam esse

conjunto de valores civilizatórios de origem africana distribuídos nas esferas sociais e culturais da

população negra, que tem como característica vital a afirmação da vida.

O próprio ato das entrevistas traz a oralidade. Os eventos musicais durante todo mês trazem

a ludicidade, e o fato de a família toda trabalhar no bar traz a cooperatividade. A corporeidade é

vista na valorização do corpo como arquivo de conhecimentos e, como Kanu Nascimento disse: “o

Dida, ele acabou sendo uma convergência de várias questões, na realidade, é. Foi uma

possibilidade de a gente colocar pra fora o que teve dentro da gente, né? Eu falo a gente como

população negra, como um todo”.

Através de objetos materiais ou imateriais, como pudemos observar no bar, com a

transformação do ambiente para incluir uma diversidade de eventos, vemos que sem movimento

não há transformação. Para acontecer qualquer mudança, a ação foi essencial para modificar a

existência.

Há um respeito aos mais velhos. A matriarca da família, Dona Dida Nascimento, alcança

os objetivos do seu projeto culinário africano com o auxílio dos filhos, afilhados e amigos. A

maioria das criações do bar (a decoração, as pesquisas sobre os pratos africanos) são ingredientes

trazidos pelas diversas pessoas que circulam ou circularam sua vida.

Desde o pai, que pesquisava sobre África – lembra ela de sua infância, durante a entrevista

–, até uma sobrinha que precisava comemorar sua formatura. O que inspirou Dona Dida a fazer

uma festa africana em sua casa, dando início ou retomada ao seu projeto familiar de louvar sua

ancestralidade através da culinária africana.

Podemos ajustar a existência de negociações de saberes e sabores durante esse constante

movimento de ir ao passado e estar no presente para ressignificar a existência de corpos negros

dentro da música e da culinária, heranças sobreviventes da Diáspora (SANTANA JÚNIOR, 2017).

Nada se perdeu durante a mistura do tempo, e há uma renovação constante para continuar a

ocupação de espaços na cultura. Precisamos descansar feito Obatalá34

, mas não deixamos queimar

os quitutes tão deliciosos de nossos ancestrais.

34

Obatalá é o rei do branco. Obá: rei; talá: branco.

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49

2.4 Iniciação do pensamento decolonial em análise da culinária afro-brasileira

Inspiramo-nos no modelo de descrição etnográfica que José Jorge de Carvalho realizou

com a música contemporânea em seu ensaio Transformações da sensibilidade musical

contemporânea. Ele nos diz: “a ideia de uma descrição densa implica um certo fechamento ou uma

delimitação do universo observado” (CARVALHO, 1999, p. 55). No mais de seu texto, a sugestão

de Carvalho é de uma descrição leve, a fim de que se possa abrir caminhos de (re)leitura e

(re)observação do espaço contemplado.

Assim fizemos com a descrição dos pratos sobre sabores, texturas e gosto. Estes não foram

tão detalhados. Para que sejam provados algum dia ou, ao menos, imaginados por nossos leitores.

Outro fator que colaborou para a utilização desse método foi a questão da existência. O bar está

vivo, no presente do tempo e, principalmente, aberto para qualquer um degustar seus petiscos e

refeições e conversar com Dona Dida e sua família. Isso amplifica a possibilidade de deixar a

etnografia em “regime semiaberto”.

É mais expansivo do que servir a culinária de um bar aos olhos de quem nos lê, estamos

descrevendo um local de reafirmação da identidade negra, que percorre o passado da história de

seus familiares para construir, na coletividade, o presente de resistência negra no agora do nosso

tempo. Esse é um espaço comum para as diversas formas de família negra.

Em O olhar etnográfico e a voz subalterna, de José Jorge de Carvalho (2001), o autor se

refere ao fazer etnográfico nos países do continente americano colonizados pelos europeus há

séculos (XV-XVIII). A antropologia tem origem como ciência no continente europeu, sendo

assim, seu método está carregado de pressupostos de alteridade, como a maioria das ciências

existentes no Ocidente e organizadas pelo homem branco europeu.

Após as lutas de independências dos países latinos durante os séculos XVIII e XIX, eles se

tornaram libertos da organização política dos países colonizadores. Entretanto, tudo o que Espanha,

Portugal e Inglaterra inseriram, à base de coerção na América, em matéria de cultura, arte, política,

modo de trabalho e até simples hábitos de fazer uma refeição, permaneceu e continua no modo de

ser das sociedades latino-americanas (EL-KAREH, 2012, p. 43).

Pensando no caso da etnografia e da Antropologia, a possibilidade de diálogo com Eduardo

Viveiros de Castro colabora com essa virada de pensamento em que o nativo é o próprio

pesquisador do seu local de cultura, enquanto sujeito, que sempre foi, pensante. Sua escrita tem o

próprio sabor do que ele é, ou seja, sua experiência, sua vivência e seu olhar não estão distanciados,

não são “diferentes”.

O nativo é, sem dúvida, um objeto especial, um objeto pensante ou um sujeito. Mas

se ele é objetivamente um sujeito, então o que ele pensa é um pensamento objetivo,

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50

a expressão de um mundo possível, ao mesmo título que o pensa o antropólogo [...]

Tal problema não é cognitivo, ou seja, psicológico; não concerne à possibilidade

empírica do conhecimento de uma outra cultura. Ele é epistemológico, isto é,

político. (CASTRO, 2002, p. 119)

As pluralidades de gnoses (saberes) dos africanos, amplificadas no pensamento fronteiriço

da colonialidade do saber (MIGNOLO, 2003), são evidências do afastamento que fizeram das

epistemologias ocidentais, que são rígidas e tratadas como a única história para ser considerada

científica. O que os autores decoloniais projetam em sua escrita são movimentos que rompem com

esse tipo de pensamento, a ideia é contar a história pela nossa perspectiva, com nossos saberes

criados e reiventados.

De que forma seria essa prática de reconhecer o “nativo” como sujeito nas pesquisas

etnográficas? Os estudos pós-coloniais justamente rompem com o discurso de que ele não pode ser

autor de seu próprio locus de enunciação. O nativo se torna o pesquisador/etnógrafo. Ele já não é o

observado, mas sim o observador (vivente) da dinâmica social, cultural em que está inserido no

presente.

a voz do nativo ainda não é vista como voz subalterna. Na perspectiva pós-

colonial, a questão já não é apenas a voz nativa, como a do outro diferente, mas o

reconhecimento das condições históricas e políticas de construção de alteridades,

submetidas a um regime colonial de subalternidade. [...] trata-se de deslindar os

mecanismos de articulação do nativo (o objeto etnográfico) junto com o etnógrafo

(e sobretudo o etnógrafo do país periférico), ambos, na verdade, enquanto sujeitos

coloniais (ou neocoloniais). (CARVALHO, 2001, p. 128, grifo nosso)

Submetemos as construções históricas e sociais do campo de pesquisa a esse método de

respeito. Dessa forma, a relação de alteridade é rompida, pois quem pesquisa é também fruto da

colonialidade e, neste momento, tem a “tarefa de decolonização das paisagens mentais”

(CARVALHO, 2001, p. 111) que foram impostas e pode fazer um trabalho decolonial.

Modificamos o locus de enunciação, como diz Walter Mignolo (2003). Agora, nossa tarefa é

esmiuçar os argumentos centrais do pensamento decolonial.

Existe um legado de séculos de colonização territorial e, além do mais, da forma de

colonização coercitiva: para que sua supremacia de poder fosse aprovada como a superior, foi

necessário apagar, silenciar todas as culturas locais já existentes antes de 149235

.

A partir dos séculos posteriores, estruturaram-se relações de colonialidade de controle

econômico, político, da natureza, dos recursos naturais e da subjetividade nas colônias e nos corpos

dos colonizados. Ou seja, o colonialismo e o colonizador, com a colonialidade do poder, do saber e

do ser, exerceram domínio sobre o território físico, sobre os corpos, o consumo, o conhecimento e o

imaginário dos colonizados. Destacando-se que a modernidade nasceu justamente com essas

35

1492: ano do “Descobrimento da América”.

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relações desiguais e hierarquizadas de trabalho, raça e gênero impostas pela colonialidade

(BALLESTRINI, 2013).

Estamos trazendo à mesa os conceitos de Anibal Quijano e Walter Mignolo pela

compreensão de Luciana Ballestrini para elucidar o quanto a experiência colonial causou

consequências na América, não somente aos povos indígenas, mas aos africanos escravizados. O

povo negro está intrinsecamente ligado a essa ferida colonial, devido ao genocídio, à

marginalização e ao racismo que foram construídos desde a criação da divisão de trabalho de

acordo com a cor de pele.

A colaboração da leitura decolonial é uma forma de combater a colonialidade, junto com a

população negra e de analisar as estratégias de existência e de resistência construídas a partir da

ferida colonial. Por isso utilizamos esse referencial teórico. Antes, para entendermos a colonialidade

do poder, precisamos nos remeter ao colonialismo e, depois, às formas de dominação política, social

e cultural sobre os dominados no período colonial.

[…] fue establecida una relación de dominación directa, política, social y cultural

de los europeos sobre los conquistados de todos los continentes [América, África,

Asia]. Esa dominación se conoce como colonialismo. [...] no obstante que el

colonialismo político fue eliminado, la relación entre cultura europea, llamada,

también, ‘occidental’, y las otras sigue siendo una relación de dominación colonial.

No se trata solamente de una subordinación de las otras culturas respecto de la

europea, de una relación exterior. [...] Consiste, en primer término, en una

colonización del imaginario de los dominados. [...] La colonialidad, en

consecuencia, es, aún, el modo más general de dominación en el mundo actual, una

vez que el colonialismo como orden político explícito fue destruido. Ella no agota,

obviamente, las condiciones ni las formas de explotación y de dominación

existentes entre la gente. (QUIJANO, 1992, p. 11-12, 14)36

Após as lutas de independência, com a retirada do domínio europeu na América Latina, caiu

o poder político europeu sobre o território das Américas. Entretanto, a cultura europeia, considerada

também como ocidental, permanece nas relações de mercado, de compra e venda de produtos; são

valorizados aqueles de origem ocidental. Os produtos importados são considerados “melhores” do

que os nacionais. É dessa forma que Quijano demonstra como a colonialidade do poder e do ser

permanecem no imaginário nos colonizados.

Podemos pensar, juntamente com as palavras de Dona Dida, sobre “porque” eles conhecem

e nós “não conhecemos” nossa própria cultura:

36

Em português: “[…] estabeleceu-se uma relação de dominação direta, política, social e cultural dos europeus sobre os

conquistados de todos os continentes [América, África, Ásia]. Essa dominação é conhecida como colonialismo. [...]

embora o colonialismo político tenha sido eliminado, a relação entre cultura europeia, também chamada de ‘ocidental’,

e as outras continua sendo uma relação de dominação colonial. Não se trata só de uma subordinação das outras culturas

à europeia, de uma relação exterior. [...] Consiste, primeiramente, em uma colonização do imaginário dos dominados.

[...] Consequentemente, a colonialidade é, ainda, o modo mais geral de dominação no mundo atual, uma vez que o

colonialismo como ordem política explícita foi destruído. Ela não esgota, obviamente, as condições nem as formas de

exploração e de dominação existentes entre as pessoas” (QUIJANO, 1992, p. 11-12, 14, tradução nossa).

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nossos ancestrais, como eram? Como viviam? Porque, por exemplo, você vê o

italiano... o italiano sabe lá da raiz dele da mama de mil novecentos e tal e das

tradições dele. É isso aí que eu vejo... as outras pessoas, os outros povos... eles,

gente, não conhecem tanto nossas tradições, não é? Uma coisa que eu faço e

parece quase impossível... de saber as coisas lá dos seus avós e bisavós... de onde

eles vieram? Quais as tradições deles? Porque vieram muitos... muitos “príncipes”

e “princesas” vieram... chegando aqui no Brasil... aqueles... os mais fortes, e os

mais fracos ficaram no oceano, faleceram... aquela coisa toda. Então vieram os

mais fortes. Então nós somos descendentes de pessoas fortes. Eu acho legal a

gente saber nossas histórias de uma forma ou de outra. Somos todos... quase

120 anos de Abolição, então, de Escravatura muito mais. É... da gente saber,

houve uma evolução. Eu quero também uma evolução, eu não quero falar

muito na tristeza da Escravidão, vamos... vamos ver como estão os países

hoje? O que está acontecendo, né? Principalmente através da culinária, que eu

gosto.37

Vejamos a quantidade de indagações feitas por Dona Dida sobre por que as tradições dos

“outros” são valorizadas e a cultura negra não. O saber é ressaltado para potencializar o presente e,

quiçá, o futuro. A origem de nossos antepassados é considerada primordial para termos

conhecimento “de quem fomos e de quem somos” na atualidade. Percebemos pelas suas palavras, a

vontade de (re)construir a história da sua própria família negra, dando margem ao pensamento de

que será uma contribuição para formar outras famílias negras e para que elas também conheçam sua

própria história.

Santana Júnior ressalta para nós como se deram as formações e os laços familiares no tempo

passado a que Dona Dida se refere:

No contexto do intenso processo de escravização dos povos africanos, as relações

que deram origem à formação da família negra, na América Portuguesa, foram

iniciadas ainda nas embarcações que eram utilizadas para o tráfico dos negros,

saindo do Continente Africano. A partir da chegada dos negros à América

Portuguesa, a senzala constituiu-se enquanto território de grande interação dos

indivíduos que vieram de diversas localidades, com seus costumes e línguas.

Chegando às fazendas, os negros africanos escravizados – que foram retirados de

suas famílias e de seu território de origem – deram continuidade aos laços que

começaram nas embarcações, assim como criaram novos laços nesse novo local,

onde o caráter consanguíneo não era o elo, mas sim as semelhanças e diferenças.

Assim, a família negra começa a ser formada na América Portuguesa, em meio ao

regime escravocrata, como forma de existir dentro de um regime que os

coisificavam, desumanizaram esses indivíduos. (SANTANA JÚNIOR, 2017, p. 24)

Ela descreve, ainda, os escravizados que chegaram aqui como “príncipes e princesas” fortes,

enaltecendo a importância de humanizar seus antepassados e apontar o quanto elas e eles eram

pessoas importantes dentro dos locais de que foram arrancados à força a fim de serem inseridos no

sistema escravocrata do Brasil.

37

Entrevista concedida por Dilma Nascimento no dia 21/06/2017.

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O tempo presente é valorizado na fala de Dona Dida. Ela fala do passado, mas o presente

está lá como “evolução”. Esse movimento de procurar saber da sua história e de ressignificá-la com

elementos do passado para valorizar sua identidade no agora é um movimento de existir e resistir.

Ela diz da Escravidão, mas não quer saber apenas desse período de mazelas. Existiu toda a

violência e o silenciamento sobre a memória, a cultura, o conhecimento da cultura negra, porém, ela

incorpora o sentido de redobrar a atenção para as heranças recebidas hoje, que foram formas de

existir e resistir no passado. Quer mostrar as transformações, as modificações que foram repassadas

às gerações com o ingrediente principal dito por ela, a culinária.

Aqui, mistura-se o refogado: Dona Dida, matriarca do seu bar, pesquisa sobre os países

africanos e sua culinária para servi-la no cardápio enquanto busca contar sua própria história, como

fazem “os italianos”. E, ao mesmo tempo, serve na bandeja a valorização da história do negro no

Brasil, na perspectiva humanizada e com o compromisso de contar essa história com elementos

potencializados, no caso, o fato de serem seres humanos que tinham profissões qualificadas, títulos

de nobreza do território africano antes do deporto aqui no Brasil. Quando desliga o fogo para ver se

já está pronto esse feijão, percebe, entre a fumaça e o cheiro dos temperos, as características do

projeto decolonial.

A proposta do discurso decolonial é romper com os espaços de fala do colonizador e pôr à

mesa toda a história que aconteceu à margem do sistema colonial, que sobreviveu às mudanças do

tempo e que, hoje, está entre nós, nos sobreviventes, através das ações de reinvenção.

A experiência dos escravizados deve ser destacada com os seus modos de existência no

período colonial. Apesar de toda violência, havia formas de existir que, hoje (e ontem), são

consideradas formas de resistir.

Aqui reside uma importante diferença entre o projeto decolonial e as teorias pós-

coloniais. Essas tematizam a fronteira ou o entrelugar como espaço que rompe o

binarismo, isto é, onde se percebe os limites das ideias que pressupõem essências

pré-estabelecidas e fixas. Na perspectiva do projeto decolonial, as fronteiras

não são somente este espaço onde as diferenças são reinventadas, são também

loci enunciativos de onde são formulados conhecimentos a partir das

perspectivas, cosmovisões ou experiência dos sujeitos subalternos. O que está

implícito nessa afirmação é uma conexão entre o lugar e o pensamento.

(COSTA; GROSFOGUEL, 2016, p. 19, grifos nossos)

Os laços de existência são colhidos no entrelugar e na fronteira onde foram abertos espaços

de criação de saberes e conhecimento durante a experiência de escravização. As teorias pós-

coloniais pressionam um retorno do que “eram antes” da experiência de escravizados. Já a

decolonial expõe o que foi feito durante o período de “fronteira” vivenciado por negras e negros, no

caso, aqui no Brasil. O que (re)construímos dentro do território em aspectos sociais e culturais.

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Neste momento, está nítida a nossa filiação com o projeto decolonial, pois, apesar de haver

uma necessidade de conhecimento sobre quem são nossos antepassados, existe a chance de

potencializar o que foram essas heranças de sobrevivência (re)inventadas, que são até hoje

cultivadas no seio de famílias negras. A possibilidade de observar o bar com uma perspectiva

decolonial advém da própria dinâmica de experiência experimentada durante os eventos

organizados pela família Dida.

2.5 “Não dá pra fazer planos de negócios sem amor”

A parceria entre estudantes africanos da UFRJ e o bar rendeu um caldo. No final de semana

dos dias 17 e 18 de junho de 2017, o Dida Afro recebeu o estudante de Gastronomia Ernani Lima

Moraes, do Cabo Verde, e a estudante de Enfermagem Elodie Camelle Lokossou, do Benim.

Ambos universitários da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A convite de Dona Dida, eles participaram do final de semana com culinária africana,

referente aos seus países de origem. Dona Dida os conheceu no “I Encontro Celebrando a África e

comendo Cultura”, ocorrido no dia 24 de maio de 2017, dia de África. O idealizador do evento

havia sido o próprio Ernani. O encontro teve o objetivo de explanar e difundir a cultura alimentar

africana, com a participação de alunos africanos, que palestraram sobre cultura, culinária e África.

Figura 13: Flyer do evento: “I Encontro Celebrando a África comendo Cultura”.

Esse evento proporcionou a aproximação entre os estudantes e Dona Dida, causando o

convite para adentrar sua cozinha e homenagear a história de Cabo Verde e do Benim com a

culinária dos respectivos países, o primeiro no sábado e o segundo no domingo.

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Na entrevista feita após alguns dias do final de semana Dida Afro de junho, Dona Dida

expressou sua satisfação em trabalhar em conjunto com Elodie e Ernani. Ela nos contou sobre o

quanto gostou de que eles contassem as histórias da cultura alimentar de seus respectivos países,

Benim e Cabo Verde, aos clientes que chegavam para almoçar no restaurante interessados nas

histórias dos pratos cozidos pelos estudantes:

Quando você sai do seu núcleo, você começa a pegar um monte de informações. E

o que acontecia comigo talvez seja porque eu tenho tanta coisa, tanta tarefa aqui.

Eu não estava conseguindo enxergar isso... eu estava falando, mas não estava

enxergando, entendeu? Eu não estava enxergando... estava falando... eu sabia o que

queria, mas não estava encontrando. E eu acho que encontrei agora. São as coisas

que acontecem... eu acho que encontrei... tem é um trabalho de pesquisa, de chamar

pessoas, de convidar... Fiquei muito feliz que o cônsul esteve aqui... de Cabo

Verde... no sábado. Esteve aqui, entendeu? Eu acho que estou conseguindo essa

parte que eu falo da História. De procurar histórias que realmente... Histórias

que deverão ser contadas pela gente AQUI, entendeu? Eu achei assim um

máximo, eu adorei! (grifos nossos)38

Organizar um evento com a participação de africanos para contar suas histórias rompe com a

hegemonia do pensamento ocidental. A presença de pessoas com importância política, social e

internacional: o cônsul de Cabo Verde, por exemplo, também é outro ingrediente do projeto do bar

em diálogo com a teoria decolonial.

A preparação dos pratos desse final de semana deu a conhecer a culinária africana e, em

consequência, a história da família dos próprios convidados (Elodie e Ernani). A partir desse

entrosamento de histórias culinárias de lá (África) e de cá (Brasil), pensamos em fazer uma escrita

gastronômica cultural sobre o Dida Bar e Restaurante.

Durante a entrevista, Elodie Camelle Lokossou, que cozinhou o Aiwó no dia do Dida Afro,

falou do significado afetuoso e político do prato em sua família no Benim:

Essa comida, Aiwó, é... na minha casa, quando eu estava no meu país... é uma

comida que a gente fazia todos os primeiros dias do mês de agosto. Porque é um...

esse dia é o dia da Independência do país, então já estamos acostumados a fazer

essa comida, principalmente nesse dia. Mesmo se minhas irmãs mais velhas...

quando elas se casaram, saíram de casa... nesse dia, todo mundo pensa nessa

comida. Até tem uma irmã mais velha, ela estava na casa dela só que ela ligou e

falou: “Mãe, tô chegando, tá? Não come tudo!”. Nossa mãe falou: “Mas como você

sabe que é essa comida?”. É sempre essa. Que a gente já acostuma. É... realmente,

nesse dia, era essa a comida que a gente fez em casa. (grifo nosso)39

38

Entrevista concedida por Dilma Nascimento no dia 21/06/2017. 39

Entrevista concedida por Elodie Camelle Lokossou, aluna de Enfermagem da UFRJ, beninense, que participou do

Dida Afro (evento mensal do Dida Bar e Restaurante – nosso campo de pesquisa).

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Figura 14: Aiwó

40.

O entrosamento da culinária com a comemoração da independência do Benim aproxima-se a

uma característica da decolonialidade, já que potencializa a culinária local dentro de um dia que

simboliza a liberdade da ação colonial sobre o país. Essa estratégia amplifica as ações de

valorização do que pertence à cultura do Benim e é uma partícula de análise sobre como estratégias

decoloniais dentro do seio familiar podem atingir ou transformar outras famílias.

Momentos importantes na vida são comemorados com muita festa, música e, claro, muitas

comidas. Estes são elementos da herança dos africanos que aqui chegaram no século XVI e

acompanham, até hoje, as festividades dentro das casas da população (SANTANA JÚNIOR, 2017).

O evento traz o significado de renovação de energia, pressuposto básico também da

culinária afro-brasileira, pois alimentar-se é ingerir nutrientes, vitaminas e minerais para repor as

energias perdidas durante um esforço físico ou qualquer atividade diária. Essa tríade de festa,

música e culinária é permanente no âmbito das atividades do DBR desde sua primeira Festa

Africana.

Para comemorar a formatura de quatro membros da Família Black41

(Renatinha, Monique,

Juno e Kanu), em outubro de 2010, aconteceu a primeira Festa Africana da Família Dida. Durante o

dia, tiveram apresentações de dança afro, capoeira, samba de roda, Jongo e almoço com

“paneladas”42

trazidas pelos familiares dos integrantes da Família Black para a casa de Dona Dida

no Méier.

O prato principal ficou a cargo de Dona Dida, para “abençoar os tambores e chamar nossos

ancestrais”. O Carril de Camarão é oriundo de Moçambique, “a iguaria é preparada com camarão,

vem em molho espesso de tonalidade amarelada, com toques de açafrão, cominho, coentro e curry.

40

Aiwó (Aiw: óleo; ó: massa) é “um prato de farinha de milho, só que a diferença é a cor vermelha e também se

cozinha com um pouquinho de óleo” (Elodie Camelle Lokossou). 41

Círculo de amizade composto de amigos e familiares da Dona Dida que faziam churrasco na casa dela e juntavam

dinheiro durante o ano para promover viagens da Família Black. 42

Expressão de domínio popular que significa “panela grande com comida em grande quantidade”.

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Para tornar mais saboroso é servido no abacaxi.”43

Lá, cada família tem seu curry (mistura de

diversos temperos), e Dona Dida também fez o seu aqui.

Figura 15: À direita, Carril de Camarão acompanhado de arroz e farofa de dendê.

A partir dessa primeira festa, veio a vontade de fazer outras comemorações e de construir

um bar. A segunda Festa Africana aconteceu com a formatura de sua filha Stefanie e de Luana

(amiga de Salvador-Bahia). Como a festa e a família cresceram, tiveram outro espaço para

comemorar as formaturas: o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN). Lá, realizaram a

“Festa da Família Preta”, em 2013, com diversas atrações musicais e artísticas:

Figura 16: Flyer da Festa Africana organizada por Dona Dida em 2013.

44

Acompanhamos a trajetória da família por sua história de realizar o sonho da matriarca,

Dida, de dar continuidade ao legado de sua família: o bar, fazer música e cozinhar com perspectivas

43

Descrição do prato encontrada no cardápio do DBR. 44

Disponível em: <http://recuperacaodoipcn.blogspot.com.br/2013/>. Acesso em: 21 jan. 2018.

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afro-brasileiras. Sua mãe e seu pai já desenvolviam projetos na Pavuna e no Méier, relacionados

com identidade, cultura e culinária afro.

Então, Dida deu continuidade à herança familiar, vitalizando-a com elementos do seu

presente, como a divulgação. O marketing do projeto é feito por uma especialista na área. Mas, na

essência, as articulações de conhecimento e os laços familiares foram construídos há décadas, desde

sua mãe, por isso eles conhecem muitas personalidades do samba. E isso aumenta a sua rede de

amigos que fortalecem o projeto dentro do bar.

Percebe-se que a união entre os valores afro-brasileiros, a circularidade e a família negra são

elementos ativos para se considerar que um bar pode ser decolonial: é justamente quando a força

dele está nas raízes da ancestralidade.

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CONSIDERAÇÕES DE UMA RECEITA

Após horas de árduo trabalho na cozinha preparando os quitutes, está na hora de conferir o

resultado da receita. Está na hora de servi-los e alimentá-los para que a energia seja renovada em

vossos corpos.

O corpo é um território (SODRÉ, 2002) guardião de valores civilizatórios afro-brasileiros

com seu modo de ser baseado na diversidade das culturas africanas. “É através do corpo que

vivemos e existimos no mundo e, assim, este é valorizado por uma população que foi retirada do

seu território de origem e trazida para o Brasil somente com seu corpo” (SANTANA JÚNIOR,

2017, p. 26). O escravizado foi arrancado de sua terra natal e de sua família, foram retirados todos

os seus bens materiais, rompendo-se, portanto, sua linhagem familiar e cultural.

O corpo torna-se um instrumento importante para salvaguardar suas memórias, saberes e

valores. A diáspora negra em território brasileiro começa a produzir uma cultura fundada em

valores civilizatórios africanos: oralidade, coletividade, corporeidade, ludicidade e circularidade são

dispositivos de cultivo da ancestralidade vivenciados no presente.

Trouxemos a circularidade como símbolo principal experimentado nas rodas de samba e nas

rodas de conversas relacionadas à literatura afro-brasileira do Dida Bar e Restaurante. E, também, o

ato de fazer na culinária afro-brasileira, envolvendo a prática de movimentar as mãos para misturar

os ingredientes, as substituições de ingredientes (a troca do azeite de oliva pelo azeite de palma, por

exemplo) na cozinha.

Nós nos ressignificamos pelo modo de ser cíclico e não linear. A circularidade tem a

possibilidade de renovar energias, transmitir sabedorias, transformar os sabores quando se misturam

vários ingredientes até alcançar o sabor desejado.

A culinária afro-brasileira foi explorada nesta dissertação como uma maneira de conexão

com a ancestralidade, referente à identidade negra através da cozinha, lugar onde os laços de

herança matriarcais são potencializados nas lembranças dos sujeitos da pesquisa. Sendo essa a

grande motivação para produzir um projeto de um bar com o cardápio de comidas africanas e afro-

brasileiras. Elementos apresentados no discurso dos sujeitos nas entrevistas livres no decorrer da

pesquisa.

As africanas e os africanos retirados de seu território à força, de África para o continente

americano, fizeram do seu corpo reduto de memórias sobre o conhecimento de seus ancestrais. Seu

corpo-território tornou-se o principal agente de arquivamento de seus saberes, que são, aqui,

reinventados com estratégias de criatividade. Os seus valores civilizatórios, como a circularidade,

são reorganizados em dispositivos marcados por símbolos, por exemplo, a roda. Presente na

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capoeira, no jongo, na roda de samba.

Marcamos a culinária afro-brasileira também como um dispositivo em que está presente esse

valor, no uso de ferramentas mais naturais na cozinha, como a colher de pau para girar a comida na

panela. Destacamos a autopreservação como um saber, uma estratégia, feito a que a natureza faz, de

permanecer ativa, viva (AKBAR, 1984).

A preservação de um prato se faz com negociações constantes, como podemos observar

quando não se tem a farinha de fazer o fufu e esta é substituída com criatividade por outra farinha

de mandioca. Percebemos, aqui, uma permuta de ingredientes com o objetivo de não deixar de fazer

a comida africana no dia do Dida Afro.

Essa é uma estratégia de continuar sua existência e, cada vez mais, amplificar sua cultura

através do ato de alimentar-se com pratos de reinvenções criativas feitos pelos seus antepassados e

que continuam em nós, porque a terra pode nos fornecer a vida. Nesse caso, a natureza é

extremamente importante para não deixar uma herança imaterial falecer.

Por isso, devemos ter respeito e cultivar cada vez mais os bons frutos, nomeados por Raul

Lody originais de África: inhame, quiabo, dendê e jiló. A fim de potencializar o valor da identidade

negra presente nos pratos com esses legumes, que o bar oferece no cardápio: Mufete, Caruru,

Acarajé, Jiló recheado. Portanto, o bar faz esse exercício de pertencimento através da experiência

gastronômica de sabores africanos para reafirmar a identidade negra.

Num mesmo espaço, percebemos a diversidade das criatividades e reinvenções feitas pela

diáspora Negra no Brasil: a culinária, a música e a literatura. Apresentamos esses ingredientes como

estratégias de resistência às epistemologias ocidentais a partir dos saberes transmitidos entre as

gerações na família Dida.

Os pais da Dona Dida são apresentados por ela como os primeiros com quem teve a

“experiência” de montar uma barraca, pesquisar sobre a cultura e a história da África e promover

festas em família com elementos da cultura negra. Movimentando, assim, práticas de resistência

relacionadas à culinária e à música.

Deles também vem o incentivo para a qualificação profissional a fim de ocupar os espaços

de trabalho negados no passado, ou seja, a importância da instrução da população negra para

enfrentar a sociedade excludente e racista que ainda não promove políticas permanentes à ascensão

da população negra na sociedade, apesar da evolução na legislação.

Esse valor também está entre os objetivos de Dida para com os filhos. Tanto que

observamos que tudo começa com uma festa africana para comemorar as formaturas dos mais

jovens da família Nascimento. Portanto, a origem identitária e os valores da educação são essenciais

para combater o racismo.

A casa é o espaço de receber as festas, recepcionar os amigos e criar os laços de

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solidariedade, apontados por Dona Dida como o princípio do projeto, “como tudo começou”. Por

isso, o lar é apresentado como o reduto de fortalecimento, com práticas artísticas e gastronômicas.

Existem aprendizagens multissensoriais na prática de ouvir músicas relacionadas com sua

origem, como o samba, por exemplo. Escutar as criações artísticas de cantoras e cantores negros

durante esses encontros promovidos nas primeiras festas africanas da família “Black”, escolher um

prato de Moçambique (Carril de Camarão) correspondendo à comemoração das formaturas das

negras e negros da família. Tudo isso são formas de aprender sobre a identidade e a cultura negra

experimentando-as. Formas de “aprender fazendo”.

O bar reformado acolhe os mesmos pressupostos da casa, com as festas e a culinária. As

atividades continuam sendo construídas na coletividade. O bar é dito como a extensão da casa:

“aqui eu bebo, como e me divirto”, são as palavras de Dona Dida abrindo o evento de roda de

conversa com Conceição Evaristo.

O bar/casa casa/bar é, pelo que pudemos observar com a pesquisa, um estabelecimento

comercial baseado nos princípios da família negra Nascimento, e com muito afeto. No salão,

acontecem trocas simbólicas materiais e imateriais atravessadas justamente por elementos já ditos

aqui: música e culinária.

O que nos foi retirado de primeiro na travessia do Atlântico? O afeto. E o afeto atravessa as

relações dentro do bar. Iniciando pela matriarca, que recepciona todos os clientes com carinho e

atenção. Característica retirada do seio da família e levada aos seus clientes, tratando, assim, todos

como parte dessa família. O amor é o prato principal. O seu amor pelo ato de cozinhar não é levado

apenas à cozinha, mas aos negócios e à clientela do bar.

Com as leituras decoloniais, vinculadas à etnografia do bar e à trajetória da família de Dilma

Nascimento, a dona Dida, fomos, aos poucos, observando que suas ações são recheadas de

decolonialidade (WASH, 2009). Isso é perceptível a partir do momento em que ela transforma a

ferida colonial em criatividade dentro do território do bar. E também no ato de fazer pesquisas sobre

a culinária africana, e de trazer as receitas para sua cozinha, substituindo ingredientes que não são

encontrados no Brasil.

Essa é uma característica de quem desenvolve um conhecimento em oposição às

epistemologias ocidentais (MIGNOLO, 2003). Ela acessa conhecimentos através de sua linhagem

de parentesco, sua mãe e seu pai, que lhe ensinaram o cultivo de procurar a origem de seus

antepassados e de fazer reuniões com o propósito de festejar, mas também de batalhar para que

mais pessoas negras tivessem acesso a esse conhecimento, usando representantes do pensamento da

cultura negra, na música ou na culinária.

Ao oferecer um cardápio uma vez ao mês com bandeiras de diferentes países africanos,

buscando contatos com africanos residentes no Brasil para cozinhar em sua cozinha, como vimos na

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análise do Dida Afro de junho, com Benim (representado por Elodie) e Cabo Verde (por Ernani),

Dona Dida nos ajuda a dizer que esse evento tem perspectiva de prática decolonial, por se afastar da

história única, universal, promovida pelos ocidentais. O bar mostra seu objetivo de apresentar aos

clientes uma diversidade de histórias africanas e suas culturas gastronômicas.

Seu histórico familiar e suas ações de (re)existência e resistência são importantes dentro do

espaço da gastronomia brasileira e do polo gastronômico da Praça da Bandeira, no Rio de Janeiro,

com a comida africana e/ou afro-brasileira e a musicalidade negra. Assim, ela tempera sua luta com

características decoloniais. Portanto, a partir da pesquisa, percebemos o Dida Bar e Restaurante

como um ponto de diálogo da intelectualidade decolonial.

Essas foram nossas possibilidades de leitura na duração do mestrado. O campo continua

aberto para uma pesquisa de doutorado a fim de esticar cada vez mais os saberes e sabores das

pesquisas sobre as práticas de resistências e (re)existências criadas pela população negra na

Diáspora no Brasil. No futuro, pretendemos ampliar a dissertação com uma discussão sobre gênero,

por se tratar de um bar liderado por uma mulher negra.

Que a escrita gastronômica utilizada com pressupostos decoloniais contamine os sentidos de

mais estudiosos negros e negras. E que mais famílias negras sejam pesquisadas, potencializadas e

acolhidas no âmbito da pesquisa acadêmica no Brasil.

Alimentação é vida. E manter a vida foi a prioridade de nossos ancestrais, por isso, em nosso

corpo, há vestígio de força, fome e luta. O corpo não podia apresentar afeto, o corpo era um objeto

material de uso exclusivo do trabalho braçal. Mas toda essa carga afetiva reprimida podia ser

conduzida à criatividade de escolher os alimentos e tratá-los com cuidado e carinho. Então, durante

o preparo dos pratos era possível depositar sentimentos afetivos.

Será que por isso o ato de cozinhar é tantas vezes comparado ao amor? Na cozinha é tudo

quente, cheiroso, sempre há possibilidade de fazer mais e mais comida e de inventar delícias doces

ou salgadas para agradar a todos. Principalmente para quem se coloca lá de corpo e alma,

aproveitando cada herança adquirida ao fogo das panelas.

Talvez até mesmo a dor dos escravizados tenha sido transformada em um modelo de

cozinhar brasileiro, com amor, que é tão elogiado internacionalmente. Percebemos a importância de

pesquisar as origens de nossa história afro-brasileira e da história do negro no âmbito da culinária,

para que nós tenhamos respeito por nossas criações e possamos honrar nossos ancestrais.

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Figura 17: Dida, Stefani, Kanu e Matheus Nascimento. Foto: Thiago Braz.

Ninguém amarga nosso paladar!

Axé!

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ANEXO A - Entrevista com Dona Dida

Nome: Dilma Nascimento

“Então eu tive a experiência de ficar com a minha mãe que ela tinha um butequinho, uma

barraca, a gente até chamava de barraca né ela parou de trabalhar né ela era cozinheira de bar,

botequim. Ai, ela parou de trabalhar e começou fazer alguma coisa em casa ai começou com

empadinha começou com um monte de coisinhas assim pequeninhas.

E a gente também tinha o hábito mesmo ela trabalhando fora, de fazer comida para pessoas nos

finais de semana nas casas das pessoas.

Hoje o negócio está mais chique e que você fala que vai contratar um chef de cozinha que vai

fazer uma comida tal para você, aquela coisa toda no final de semana para você receber os amigos.

Então antigamente não era assim, a pessoa era, o que acontecia, não tinha antigamente era

cozinheira era como se fosse a empregada da casa que estava ali pra fazer comida. Hoje o negócio

está mais sofisticado.

Então ai eu comecei gostar de fazer comida né, porque eu também trabalhava, sempre trabalhei

e estudei. Então nunca me dediquei assim pra cozinhar. Depois casei, continuei a trabalhar e só

fazia comida no final de semana.

Mas minha mãe já tinha aberto a birosquinha dela foi na Pavuna, era na Pavuna. Foi numa

época que ela tinha separado do meu pai, e tudo. Então ela fazia alguma coisa para complementar a

casa. Ai começou fazer as comidas e meu irmão incentivou com o samba porque meu irmão

gostava muito de samba e capoeira.

Aí começa fazer roda de samba chamando as pessoas nessa é poxa eu já estava me casando, já

estava grávida. Foi minha mãe começou fazer as coisas foi no final de 70 inicio de 80. Me casei em

oitenta e pouco.

Aí quando a barraca já estava pegando fogo na época de pagode bom aquela coisa gostosa já

estava grávida pra ter filho e sempre ajudando ele sempre ajudando na barraca até que eu mudei pra

Pavuna porque eu trabalhava morava no Meier aí meu filhos, eu tinha meus filhos, meus dois filhos

lá no Meier. Então eu resolvi morar na Pavuna, porque não poderia olhar minhas crianças pra me

poder trabalhar. Foi ai que fui me tocando as coisas. Ai a gente ficou envolvido com a barraca,

envolvido com o no Centro. Porque além de ter a barraca, ela também era rezadeira. Até Achei unir

as coisas. Porque mesmo tempo que eu parecia uma pessoa que sentia mal, qualquer coisa lá no

pagode “Vem aqui meu filho vamô rezar, vamo atira essa dor não sei de onde”

E minha mãe, ela com até as pessoas antigamente conheciam muitas ervas, muitas ervas

mesmo. Então minha mãe. As vezes a pessoa chegava resfriada, minha mãe fazia um chá, as vezes

chegava com bronquite ela curava bronquite. Fazia simpatia de bronquite. Então tinha essa relação

de FAMÍLIA dentro do samba. Então era uma mistura muito boa. E a gente gostava muito daquilo.

E os filhos foram crescendo também, ouvindo aquilo. E minha mãe cansada né ela já não podia

mais ficar na barraca e eu tinha minha vida no meu trabalho.

Eu trabalhava numa empresa de energia em Niterói, que hoje é a AMPLA, antigamente era

CERJ. Eu era Economista da empresa. Fui economista durante muitos anos na empresa. Então eu

tinha que continuar com minha profissão ali dentro que graças a Deus eu estava indo e tudo eu

consegui chegar até o fundo de pensão em cargo de Diretoria e tudo. Mas nunca esqueci a barraca, o

samba, a comida, porque isso tá no sangue. Que quando eu me aposentar eu ia abrir um bar pra até

dar continuidade do que minha mãe fazia que a gente gostava. Porque nessa época eu estava

trabalhando, mas me envolvi com música, com banda, eu ia pra tudo quanto é lugar, me ajuda olhar

as crianças e então eu saia. Então eu gostei sempre gostei muito de samba.

Ai quando eu me aposentei né até me aposentar, mas continuei a trabalhar, mas uns três anos

atrás. Eu resolvi sair da empresa né eu acho que você tempo de vida laboral dentro daquela

empresa. Minha vida laboral na empresa, durou 35 anos. Foi 25 anos dentro da AMPLA e 10 anos

no fundo de pensão. Então eu acho que até passei do da idade de você estar ali dentro. Já tinha

acontecido tudo que tinha que acontecer. Eu achava ainda acho posso trabalhar, trabalhar bastante

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agora que tô vendo que estou trabalhando muito. Antigamente eu pensava que trabalhava. Mas

depois que você abre um bar e que você vê o que é trabalho mesmo. Isso tudo aconteceu comigo.

Ai, o Matheus já estava ligado a Gastronomia que ele já tinha feito curso de gastronomia.

Como eu gostava e queria continuar trabalhar. Ai a gente resolveu abrir um bar. O bar tem pouco

tempo. A gente tem muito trabalhado.

[Abertura do bar]

Foi dia 17 de março de 2015. Então a gente abriu neste dia. A gente assumiu, porque aqui já era

um bar, né. Então a gente pegou um ponto. A gente deu forma esse ponto. A gente botou nossa

identidade, a gente mexeu na comida, a gente usa alguns pratos que já tinha no bar que achava

interessante, outros pratos a gente começou colocar.

A música, o bar já tinha música. A gente começou colocar outros tipos de música né, estamos

até hoje.

Então essa é história do bar, chegar até aqui. Eu gosto.

Não só pra mim pra meus filhos aqui é como se fosse a nossa segunda casa eu pelo menos

passo mais tempo aqui do que, a minha casa né pra dedicação aqui tem que se dedicar.

Abre 12:00 mas você tem que estar aqui cedo. Quando você abre 12:00 para o público você já

com o almoço pronto você tem que estar com tudo.

Ai eu geralmente chego às nove horas não tem hora pra sair.

E mais os eventos. A gente tem que estar atento a todos os eventos e você tem que estar

alinhado a tudo. Então é muita dedicação. Mas como a gente por exemplo. Vim de uma área que

não vim do bar eu tinha a minha mãe tinha coisinha, a gente não tem experiência em bar e

restaurante. Então, a gente apanhou bastante, a gente ainda está apanhando pra alinhar as coisas,

não é. Então hoje eu já vejo, que a gente pode tá vendo outro lado do bar. A gente está juntando

experiência com conhecimento. Então agora a gente já tem o conhecimento, já tem uma certa

experiência, agora a gente vai estruturar as coisas. Pra ficar melhor, pro cliente e pra gente também.

Até agora a gente só apanhou né, foi bom. A gente já está com uma experiência, pra dar mais

um formato a vai entrar numa outra etapa.

Então é tudo que a gente gosta![risos]

Por que a gente já tinha, eu já fazia, na família reuniões com a família toda e amigos, pra fazer

festas. Eu gosto eu adoro fazer festas. Sempre gostei de festas então a gente, por exemplo, a última

festa que a gente fez a gente já fazia festa africana né, com tudo isso a gente vê aqui, a gente já tinha

o hábito de fazer. Então isso tudo também começou.

Deixa eu começar para você ter sequência...

A festa mesmo, a festa mesmo, a gente começou nessa nossa característica, na nossa linha,

nossa cara, começou com formatura. Porque tinha uma [....] Kanu[Thiago Nascimento] se formou,

ele fez Biologia isso já teve ter uns cinco, sete anos por aí ele fez Biologia, Ah... duas sobrinhas

minhas que são sobrinhas mas são amigas, mas eu chamo de sobrinhas. Formando em Jornalismo e

tinha o ex-namorado da minha filha da Elu, minha filha sobrinha que estava na Administração.

Então eu é queria valorizar isso, até mesmo porque o que aconteceu, a Renata. Tudo começou

por causa da Renata. A Renata tinha feito uma faculdade, Monique também fez faculdade particular

que tinha até existe sempre uma diferença, né. A formatura foi num lugar legal, aquela coisa toda.

Então tinha custo, não é pra você fazer uma formatura, geralmente, colégio particular. Você aluno

gasta dinheiro. Então aquele negócio. Então tinha um número limitado de convite. Então tinha um

custo pra isso. Como eu não podia levar, já essa turminha, que se reunia pra as festinhas eu resolvi

fazer uma festa, que chamassem essas pessoas, pra comemorar a formatura dos quatro, né. Que eu

achava que era uma coisa muito legal.

A gente negros é difícil estar chegando numa formatura. Eu já... eu já vi... já tive uma visão

porque o que aconteceu por meu pai, por exemplo. O meu pai, se fosse vivo hoje estaria com oitenta

e pouco anos, mais ele tinha 2ª grau completo. Então ele... Então não era só meu pai, minha mãe

também já tinha um pensamento voltado para estudos, então eu fui fazer minha faculdade né, eu fiz

minha faculdade, meus filhos fizeram faculdade. Bem, diferente de mim, porque eu fiz numa

faculdade particular, Então eu fiz investimento neles, mais eles passaram pra faculdade do Estado,

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né e da Federal também. Então eu achei assim a gente tinha que comemorar isso, né porque era

difícil você ver um negro se formando. Na minha época, por exemplo, na minha turma na minha

formatura de oitenta pessoas você podia contar uns quatro negros só.

Hoje graças a Deus não acontece mais isso, já tem bastante. Então eu achei assim que a gente

tinha que comemorar. Ai que veio a ideia de fazer a festa africana. Falei não, vamos fazer a Festa

Africana.

Vamos soar os tambores. Vamos chamar nossos ancestrais que eles vão ficar super felizes de

estar vendo isso, vendo nem sei como, iam ver mais as coisas iam acontecer, da gente pensar nos

avós e tudo e ver evolução.

Eram quatro pessoas se formando. No mesmo ano. O Kanu que se formou um semestre antes

ou um ano antes. Mas ele fez na UFRJ não teve formatura, só teve colação, não teve festa. Mas ai as

meninas não, já eram outra apegada, né aí pô no fim vamos fazer tudo junto. Então eram quatro

formaturas. Então eu resolvi chamar uma pessoa que era o paraninfo. Como se fosse o paraninfo

que o via o seguinte: que pra mim foi difícil lá quando eu me formei. Mas eu tive sorte. Tive um

professor da faculdade, que me ajudou muito né, não só a mim, mas também alguns negros, que

tinham dentro da faculdade, de tá encaminhando, orientando .

Eu não sabia se eles teriam isso né, é uma coisa muito difícil e também não queria que eles

desaminassem, porque você se formar é uma coisa difícil, às vezes você se forma e você pensa no

mercado de trabalho vai te abraçar aquela coisa toda e você vai ter muita dificuldade né, até para

conseguir um emprego. Você é... embora eles já falassem inglês, já tinham uma cultura toda, mas

tinha o preconceito, que é difícil você dar um emprego de nível emprego superior, pra um negro né,

ainda mais um tempo atrás. Agora com as cotas, isso tudo mudando bastante. Eu acho que as coisas

estão evoluindo muito, graças a Deus.

Então eu queria, a minha grande preocupação de passar pra eles, pra eles desaminarem nunca

né, que eles iam se formar, ia fazer festa, e eles iam é... eu era uma coroação e eles iam que tá

buscando o futuro, não desaminando aquela coisa.

Ai eu tinha como paraninfo, um negro que eu achava, tenho assim uma verdadeira admiração

por ele, que é o Prudente, Wilson Prudente, ele é promotor do trabalho, ele é uma pessoa que é

muito estudioso, isso me admirava muito, a dedicação dele, que era uma pessoa que passava em

concurso público, em vários concursos públicos, era uma pessoa muito estudiosa, é uma pessoa

estudiosa né. Então eu chamava ele, pra poder falar algumas coisas pra essas pessoas né. Então ele

fazia assim, chamava o Prudente, olha e falava: “Olha aquele cara ali conseguiu, então não é

impossível, não é”.

Eu graças a Deus me formei, no meu trabalho como Economista, não é impossível tem que ter

dedicação, ter disciplina, não é dizer que a disciplina que eu falo, também queria seja certinho

estudar vinte e quatro horas; porque eu não estudava vinte e quatro horas. Eu trabalhava, estudava,

ia pro meu pagode, mas sempre dentro dos meus horários né. Então, ai começou a Festa Africana.

Entendeu?

Começou a Festa Africana, começou as comemorações. E hoje a gente já vê as coisas de uma

outra forma, mas nunca esquecemos aquela base da Festa Africana. Que era o Jongo né, então, nesta

festa a fazia, era à reunião das famílias, das pessoas que estavam se formando. Ai na época eu fazia

o almoço, eu procurava, eu procurei o prato que fosse assim... eu usava camarão né, sempre usei

camarão, que para mim era assim suprassumo[risos]. Então fazia um prato de camarão que acho

caia bem pra festa africana, né, porque poxa, a gente estava comemorando uma coisa importante.

Aí tinha Capoeira, tinha Samba de roda, isso o dia inteiro, o dia inteiro, passava dia inteiro e

Pagode e Jongo. Eu chamava as pessoas, sempre chamando um monte de gente, eu conheço muitos

grupos e chamava um grupo, falava com meus filhos: “Ah, vamos fazer Jongo?” ”Vamos!”. Ai

arruma o pessoal do Jongo, daqui a pouquinho que eu via já estava lá em casa fazendo Jongo. “Ah

vamos fazer um samba”. Não sei o que e, a gente sempre fazendo alguma coisa.

Foi legal, isso tudo trazendo aqui pro bar, tudo que a gente fazia a gente está fazendo aqui no

bar. Algumas coisas, né. Eu ainda não fiz uma Festa Africana aqui no bar. Na realidade ainda não

fiz uma Festa Africana aqui no bar. Eu acho que nem vai dar, teria que ser em outro local. A Festa

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Africana é muito boa, é muito boa mesmo. Você fica ali o dia inteiro comendo, bebendo e

dançamos. E vendo tudo assim, tudo que se refere a Mamãe África a gente está trazendo[...] ai vai,

assim que veio a ideia de tá fazendo música com a comida, com as atrações, eu ainda não fiz, não

fiz, mas vou fazer.

[QUINTAL]

Eu nunca consegui fazer num quintal, mas eu acho que essa festa que eu gosto né, que eu faço,

ela teria que ser num quintal, quintal assim no chão mesmo, para o pessoal dançar e ficar bem à

vontade. Eu também fazia o que acontece agora, que se tá falando eu tô lembrando, das festas da

minha casa do meu pai.

Meu pai gostava de fazer, festa na família. Que minha avó morava num lugar. Até meu pai

separar da minha mãe.

Não isso era em outro lugar porque minha mãe quando se separou do meu pai que foi morar em

Pavuna, mas a gente morava no Cachambi, perto do Meier. Ai tinha um quintal né, com tipo era a

gente chamava. Eu vejo até vejo como mini Quilombo. Que era um quintal, que ia de uma rua à

outra e ali morava vários os filhos da minha avó morava quase todos ali. Eram nove filhos que ela

tinha e moravam quase todos os filhos ali. Então ficava a família toda naquele quintal e a gente

fazia festa. O meu pai fazia festa de final de ano, ai era samba o dia inteiro, samba. Minha avó era

evangélica, mas a gente fazia samba, o pessoal caia no samba, comia bebia o dia inteiro. Era muito

bom.

Isso tem muitas famílias que fazem isso.

Também tem isso. Mas não pode deixar não, que essa parte da família, é de estar junto, esta se

comemorando, se comunicando, é essencial pra você, pro crescimento de qualquer pessoa, sabia

depois quando você está na alegria ou na dor. Quando você ver claro que você tem amigos, que

você tem amigos que você pode contar, mais geralmente é a família esta ali...

É o berço, e o berço. Se você chega em casa chateado, e quando você está com seus pais, tem

irmão, se alguém te faz alguma coisa: “Poxa vida, tô chateada acho que eu vou comentar com meu

pai, com minha mãe, meu irmão, no final são essas pessoas que você pode até chegar e falar com

um amigo. Tudo bem! Mas na cabecinha vai passar a família, né. É isso. Nem sei se eu te respondi.

[SOBRE REGISTRAR AS RECEITAS]

Sabe que foi você comentou isso comigo? Ou uma outra pessoa comentou de colocar pratos. Eu

nunca pensei nisso, mas depois que a pessoa falou isso, eu pensei. Gente, eu acho que tenho que me

organizar a gente vai fazendo os pratos, pratos, pratos, pesquisa, pesquisa, pesquisa e eu tenho

mania de cada lugar, escrever num lugar e acabar deixando. É daqui a pouco escrevo em outro

lugar. A receita pesquisa e tenho que começa a juntar, quem sabe né.

Vai ser gostoso né...

É porque o que me fez pensar também que um dia desses eu estava juntando, porque eu perdi

as fotos dos pratos, aí eu fiquei cutucando, pra verse eu achava no face né, aquele negócio todo. Aí

quando eu joguei é: Comida Africana, eu verifiquei alguns pratos que a gente faz aqui, dentro do

Google, eu falei gente...

Não o site até daqui, mas quando eu jogo pra ver as imagens, pra ver se... eu vi pra ver se

achava alguma coisa minha mesmo, eu vi os pratos e achei interessante, aí falei assim, não vou ter

que me organizar mais. E agora também estou gostando mais dessa pegada da comida africana.

[...]

Eu sou apaixonada pela África. Eu tenho assim, ainda mais do lado do meu pai, do lado da

minha mãe. O agora do meu lado do meu pai fazia pesquisa sobre a África. Ele pesquisava tudo,

pesquisava principalmente a parte de Esportes. Porque os maiores corredores eram africanos. Então

ele pesquisa, porque na realidade ele fazia não só da África, ele fazia dos negros, ele verificava os

negros que mais destacava no mundo, Presidentes, aquele coisa toda, então ele via as guerras que

tinham na África ele comentava comigo, os povos, na parte de esportes também. Então eu sempre

fiquei ouvindo fala muito da África. Então aquilo me cultuava.

Mas eu ouvia talvez, porque eu estava em outra pegada trabalhando e estudando [espiro] e eu

não via como pudesse utilizar isso pra alguma coisa. Só a informação né, tinha muita informação,

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muita informação. Ele tinha quando ele faleceu ele tinha assim muito material, material mesmo

sobre a história da África, sobre tudo que se falou/falava sobre os negros. Ai eu fiquei com aquilo

na cabeça né. E o meu irmão também ela era assim, louco pela África, mesmo antes dessa moda do

ele já usava aquelas roupas, aquelas batas né, que ele gostava, ele jogava capoeira, embora não seja

da África, mas foi desenvolvida por todos aqueles que vieram pra cá. Tinham que se defender.

Então meu irmão, ele via muito a parte de música, ele gostava muito de ver as tribos. Ele tinha uma

paixão pelos Massais falava os caçadores de leões [...] ai [...] isso tudo ajudou muito, para eu criar

essa laço e estreitar mais hoje.

Estou muito feliz da comida africana, já esta pegando em outro formado. Não sei se você está

observando, mas agora com a entrada de africanos, vindo fazer comida. Eu acho que está dando

outro formado. E uma evolução então é aquela coisa às vezes a gente fala as coisas as coisas vão

acontecendo.

Quando eu falo que as pessoas. Eu até tenho uma fala que Thiago [Kanu] que uma vez nem

sabia que era falada, que comecei falar que eu vi o seguinte que as pessoas viam aqui atrás de

histórias. Histórias que deviam ser contadas. Então eu acho que essa história que eu também estava

meia perdida, eu não sabia essa conotação é o que está acontecendo agora com a entrada dos

africanos aqui no bar, né porque eles podem contar a história né, porque eles vieram de lá. Isso daí

me realizou. Eu consegui fecha uma coisa que estava dentro de mim, eu não sabia bem o que, que

era. Consegui encontrar isso. Entendeu?

Fica assim fico muito feliz desse mês, ter dois africanos aqui conversando bastante com eles

saber na realidade, uma coisa é você saber pela internet, outra coisa é saber os costumes das

pessoas. Eu achei muito engraçado eu não sei contigo, em relação ao Mufete. Adoro fazer Mufete,

mas além de ser peixe, que eu gosto e ter essa pegada simples que é batata, banana e fica uma coisa

bonita.

É escutei uma africana, a menina de Luanda, me contou a história do Mufete. Então não

conhecia, são essas histórias aí que a gente vem atrás. Ela me falou que o Mufete ele é consumido,

as pessoas começavam a comer às vinte e três horas, que ficava o dia inteiro, a noite toda, sentava

comia, batendo um papo, aquela coisa toda. Eu vejo assim como se fosse o churrasco nosso. Que a

gente faz o encontro né com as pessoas de até [a última carne] Eu acho que o Mufete é mais ou

menos isso. Nas família se reúnem aos sábados geralmente, aos sábados tem Mufete, em casamento

tem Mufete, em funeral, tem Mufete.”