meus artigos polÍticos

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1 A A u u g g u u s s t t o o d d e e F F r r a a n n c c o o M M E E U U S S A A R R T T I I G G O O S S P P O O L L Í Í T T I I C C O O S S No jornal Folha de São Paulo (2005-2009) Inclui um único artigo não publicado de 2010

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Coletânea de 17 artigos publicados na página 3 da Folha de São Paulo entre 2005 e 2009

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AAuugguussttoo ddee FFrraannccoo

MMEEUUSS AARRTTIIGGOOSS PPOOLLÍÍTTIICCOOSS No jornal Folha de São Paulo (2005-2009)

Inclui um único artigo não publicado de 2010

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AApprreesseennttaaççããoo Segue a relação dos dezessete artigos políticos que publiquei na seção Tendência & Debates da famosa Página 3 da Folha de São Paulo entre 2005 e 2009. Acrescentei ao conjunto um único artigo não publicado, de setembro de 2010. Comecei publicando um artigo por mês e fui descontinuando até chegar a um artigo por ano. Como se pode ver sem dificuldade, os artigos são políticos, mas não partidários. São textos de defesa da democracia e de forte crítica à situação (que atropelou o Estado de direito) e à oposição (que não cumpriu o seu papel). Não sou admirador, filiado ou militante de algum partido de oposição, nunca fui subordinado aos seus chefes ou líderes e jamais trabalhei ou prestei serviços ao Estado ou a qualquer governo. Aliás, nos últimos 20 anos, não fiz campanha e não votei em nenhum candidato, da situação ou da oposição, nem mesmo para presidente da República. Não acredito em partidos e, a rigor, acho que a anacrônica forma Estado-nação é a principal fonte de autocratização que remanesce na contemporaneidade. Para conhecer minhas visões atuais sobre o Estado-nação e sobre a democracia, por favor, acesse os links seguintes: http://www.slideshare.net/augustodefranco/a-independncia-das-cidades http://www.slideshare.net/augustodefranco/pilulas-democrticas-apresentao Conquanto nas últimas duas décadas não tenha mais me envolvido com política partidária ou eleitoral, não me peçam para ficar em silêncio diante dos ataques à democracia, venham de onde vierem. Não fico. E não abaixo a cabeça. Nem curvo a espinha. São Paulo, 04 de setembro de 2010.

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SSuummáárriioo 1 - Em 2 de junho de 2005 (antes, portanto, da célebre entrevista de Roberto Jefferson), no artigo “O governo será como um náufrago”, disse que o governo ia naufragar e que a Lula não restava mais nada a fazer senão continuar nadando para tentar agarrar a tábua de salvação do palanque de 2006. 2 - Em 11 de agosto de 2005, no artigo “Salvando o governo do naufrágio”, mostrei que as únicas forças que poderiam salvar Lula do naufrágio eram o PSDB e o PFL. 3 - Em 4 de outubro de 2005, no artigo “O problema é o caixa 3”, adverti que as oposições tinham deixado passar batido o depoimento de Duda, que incriminava diretamente o presidente, chamando a atenção para os riscos da tática oposicionista de sustentar Lula até o fim do seu mandato. 4 - Em 16 de dezembro de 2005, no artigo “O falso dilema do impeachment”, mostrei que as oposições usaram indevidamente uma suposta impossibilidade do impeachment para legitimar sua decisão – já tomada – de sustentar Lula, advertindo para os perigos da estratégia de abandonar a política em troca da aposta, para lá de incerta, na loteria do calculismo eleitoreiro. 5 - Em 23 de fevereiro de 2006, no artigo “O iminente suicídio do PSDB”, constatei o desastre que está resultando dessa trajetória insana das oposições, sobretudo do PSDB. 6 - Em 13 de abril de 2006, no artigo “O impeachment necessário”, mostrei que não bastava vencer Lula eleitoralmente, sendo necessário também derrotá-lo politicamente, quer dizer, derrotar as concepções e as práticas que refletem o seu projeto de poder. E que só um movimento pelo impeachment teria força simbólica para sinalizar, para o conjunto da população, que o país mudou. Ocorreria algo semelhante àquele alto-astral que sucedeu ao impeachment de

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Collor, quando as pessoas começaram de novo a acreditar no Brasil, lavando a alma ao limpar o país da lama collorida. 7 - Em 20 de junho de 2006, no artigo “Responsabilidade política”, afirmei que caminhávamos cabisbaixos, para o matadouro eleitoral, correndo o risco de ver consagrada a impunidade dos delinqüentes. Constatei, mais uma vez, que sem oposição política e sem mobilização da sociedade, sobraram apenas aqueles setores empreendedores que têm motivos diretos para defender a liberdade de iniciativa e para se preocupar com a democracia e com o desenvolvimento. E que se esses setores não começassem a exercer a sua responsabilidade política, depois seria muito tarde. 8 - Em 24 de agosto de 2006, no artigo “A fórmula antidemocrática de Lula”, revelei que a estratégia lulopetista não era atacar as instituições de fora e sim conquistá-las por dentro. Afirmei também que, se a reeleição viesse, ela não seria o ocaso da carreira de Lula, e sim o passo inicial para uma tentativa de mudança autoritária das regras do jogo político que tem como objetivo lançar, sobre o terreno que foi preparado com a complacência das oposições, as bases de uma hegemonia neopopulista de longa duração no país. 9 - Em 10 de outubro de 2006, no artigo “Decodificando Lula: basta inverter o sinal”, constatei que a estratégia da “revolução pela corrupção” colocou Lula e PT fora do campo da lei, observando que esses atores, embora ainda tivessem popularidade, não tinham mais qualquer legitimidade. E evidenciei, três lições do primeiro turno do processo eleitoral de 2006: 1) Não há congruência entre resultado eleitoral e justiça: ou seja, as urnas não podem distribuir justiça, não podem sancionar o mau comportamento, não podem zelar pela ética na política; 2) Uma força política não se desmancha por si mesma. Se estiver no poder, não se suicida. Se for uma quadrilha, não se desarticula na ausência de uma força que a desbarate; e 3) Lula é o PT: não há nenhuma diferença entre essas duas "entidades", estando, ambas, por serem uma só, envolvidas nos maiores escândalos da República. 10 - Em 4 de janeiro de 2007, no artigo “Os parceiros simbiônticos”, constatei que iniciávamos o quinto ano da ‘Era Lula’ sem oposição partidária no Brasil e que, apostando todas as fichas na loteria do

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calculismo eleitoreiro, a oposição colheu o óbvio: consagrou a impunidade dos malfeitores e a continuidade da "sofisticada organização criminosa" que se instalou no Planalto. E, ainda, que só foi possível a eclosão do fenômeno político inédito que estamos vivendo no Brasil desde 2003, com Lula e o PT no poder, devido à existência de um partido com as características do PSDB – o qual, mutatis mutandis, havia cumprindo o papel de “Kerenski brasileiro”. 11 - Em 3 de maio de 2007, no artigo “Confiança zero”, escrevi que, se a imprensa permanecer livre, o atual governo teria grandes chances de acabar mal. Ainda que as oposições tentem, mais uma vez, salvá-lo da ruína, os aliados fisiológicos de Lula se encarregarão (em parte involuntariamente, por razões de sobrevivência) da tarefa de corroê-lo. E previ que bastava que o (falso) governo de coalizão deste segundo mandato começasse a funcionar para que aparecessem novos sintomas de putrefação. 12 - Em 6 de agosto de 2007, no artigo “Um governo sem muito futuro”, constatei que o país está nas mãos de bandidos e se multiplicam episódios de falta de controle e de acobertamento oficial dos mais variados crimes e irregularidades, chamando a atenção para a evidência de que a afronta de Renan à democracia e o apagão aéreo (então com mais duas centenas de vítimas) eram sintomas da mesma doença. E que o governo não conseguiria resistir muito tempo à exposição de suas mazelas pela mídia. De sorte que, se Lula não conseguir capturar ou amordaçar os meios de comunicação (como fez o aliado Chávez), tudo indica que seu governo não terá muito futuro. 13 - Em 27 de setembro de 2007, no artigo “A farsa do mensalão mineiro”, mostrei que há um erro de projeto no lulopetismo. A alternativa de usar a democracia contra a democracia leva necessariamente à ditadura. Usar a alta popularidade de um líder populista para mudar "democraticamente" as regras do jogo seria exeqüível se não obrigasse, antes, a violar as regras do jogo (fazendo coisas como o mensalão ou caixa três). Ora, num país de imprensa livre, tal violação não pode passar despercebida. Logo, para isso dar certo, seria preciso restringir essa liberdade (como fez Chávez). Mas, se aqui não há condições de fazê-lo, então, mais cedo ou mais tarde, a operação toda desmorona (mas deixando implícita uma dúvida: e se houver?).

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14 - Em 18 de janeiro de 2008, no artigo “Lula, o venezuelano", mostrei que são os bolsões de pobreza que garantem a eleição de populistas e que Lula, na verdade, não quer acabar com a pobreza, senão mantê-la e administrá-la, gerando uma imensa clientela de pré-cidadãos Estado-dependentes. Mostrei ainda que Lula é um "venezuelano" que quer, mas não pode se comportar como Chávez. Se tentasse "chavecar" por aqui, o problema estaria resolvido. Nossa sociedade, bem mais complexa, rejeitaria de pronto o tiranete. Lula é o Chávez possível nas condições do Brasil. 15 - Em 4 de abril de 2008, no artigo “Esses caras são bandidos?”, mostrei que há um padrão na atuação do PT no governo e que esse padrão não pode ser outro senão o do bando que não respeita limites quando estão em jogo seus interesses. As oposições permitiram que chegássemos a esse ponto e que se instalasse o banditismo de Estado no Brasil. Foram deixando a coisa avançar, imaginando que os caras eram "players" normais do jogo político. 16 - Em 26 de junho de 2008, no artigo “Ruth”, lamentei a morte de Ruth Cardoso: “Pobres de nós, que teremos de agüentar sozinhos, por muito tempo ainda, todos os efeitos associados à volta regressiva de um passado do qual ela quis se desvencilhar”. 17 - Em 13 de agosto de 2009, no artigo “O buraco negro da manipuladura”, tentei mostrar que as ameaças à democracia não vêm mais das ditaduras clássicas, em que grupos autoritários empalmavam o poder por golpes de força e sim de governos eleitos por larga maioria que, depois, ocupam e pervertem as instituições da democracia para controlá-las. Neste mesmo artigo antecipei o apoio de Lula ao caudilho Zelaya de Honduras. 18 – Em 11 de setembro de 2010, no artigo que não foi publicado “O banditismo de Estado e as oposições, mostrei que os ditadores atuais, em sua imensa maioria, são campeões de popularidade e seriam eleitos ou reeleitos sem dificuldade. Mostrei também que o PSDB foi a escada que o PT precisava para pular o muro do Estado de direito, parasitando a democracia para se perpetuar no poder.

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OO ggoovveerrnnoo sseerráá ccoommoo uumm nnááuuffrraaggoo

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (02/06/05) O PT conseguiu fazer a única coisa que sabia fazer. Politizou completamente a vida institucional. Politizou-a, entretanto, não no sentido da política democrática, porém no sentido, inverso e degenerado, do realismo político e da política como "arte da guerra". Tudo agora é uma luta. Nada acontece no Brasil de hoje que não possa ser interpretado como resultado de uma luta de grupos pelo poder. Se alguém é acusado de corrupção, o que importa não é apurar se houve ou não houve o delito, mas sim classificar o evento como conseqüência de uma guerra pelo poder, uma antecipação indevida da campanha eleitoral. Se alguém é filmado com a boca na botija, cometendo um crime, a preocupação maior é saber quem filmou e por que filmou, e não investigar o ato criminoso e punir o culpado. Esse tipo de politização da vida institucional brasileira é uma perversão da política. Se for mantido por muito tempo vai esfarinhar as nossas instituições democráticas. A baixa política, vista assim como uma guerra, inexorável e onipresente, não se resume a um confronto entre quem está do lado do governo e quem está contra o governo. Ela se infiltra e se instala em todos os terrenos. Dentro do governo. Dentro do partido do governo. E, sobretudo, entre o governo e sua base aliada. Os golpes que podem ser realmente letais para o governo não vêm do PSDB ou do PFL, mas da sua própria base aliada. Ou da parte dela que conta de fato, em termos de correlação de forças. Aqueles que podem dar maioria congressual ao governo são, exatamente, os que podem arruiná-lo. Entre os que estão do lado do governo, tudo agora também é uma luta, mas não uma luta por alternativas, uma luta programática. É

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apenas uma luta por sobrevivência política e por vantagens, cargos e privilégios. Mas foi o próprio governo que estimulou isso. O governo luta para manter o controle da agenda política nacional e a sua própria governabilidade. Mas, como não sabe fazer a alta política, exercer o macrocontrole -pois isso exige um projeto maior que Lula não tem e uma arte que ele e o PT não dominam-, foi cedendo aqui e ali, concedendo no varejo alguns favores, na esperança de que, assim, conseguiria manter o controle da situação. Como percebeu que isso era insuficiente, decidiu aumentar a dose, inaugurando o fisiologismo no atacado. Tudo para realizar o seu único projeto político declarável: a reeleição de Lula. Mesmo assim, não bastou. La nave va, mas fazendo água e meio ao léu, com os tripulantes tapando os buracos no casco e improvisando na pilotagem. Os aliados programáticos do governo desapareceram da cena política. PSB e PC do B, como já estão do lado do governo, não são atores a considerar. Na mentalidade deformada pela realpolitik dos dirigentes petistas, são forças já incorporadas. Pura burrice. PPS, PDT e PV também eram tratados assim e já desembarcaram. No cenário atual, só contam mesmo, para o governo, o PMDB, o PTB, o PP e o PL. Mas contam negativamente, em virtude da guerra interna, dissimulada, em que se transformou a sua relação com o PT. Para sobreviverem como atores políticos relevantes, passaram a atuar como "chantagistas oficiais" do governo. "Oficiais" porque, incrível, são reconhecidos e aceitos como tais pelo próprio governo, sempre disposto a fazer qualquer negócio com eles (até mesmo, vergonhosamente, defender e elogiar Roberto Jefferson) para conseguir a reeleição. Os estrategistas do governo devem ser muito tacanhos para não perceber que não há como administrar um presidencialismo de coalizão nessas circunstâncias. É crise na certa. E crise potencialmente terminal. Se não agora, daqui a pouco. Pois é óbvio que esses aliados instrumentais do governo não vão se tornar mais colaborativos. Pelo contrário, sabendo-se usados, vão

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usar o governo. À medida que o tempo passa, vão dobrar o preço e aumentar as exigências. Se a situação degenerar mais um pouco, vão abandonar o barco e, ainda, fazendo o discurso de que não dá para ficar em um governo incompetente e que traiu seus compromissos de campanha. Não precisava ser assim. Foi o PT que abriu essa caixa de Pandora ao achar que todos os políticos, fora da esquerda, eram farinha do mesmo saco e ao praticar o fisiologismo no atacado, certo de que esse era o caminho para calar a boca dos "trezentos picaretas" enquanto trabalhava para implantar a sua única proposta estratégica: reter o poder pelo maior tempo possível. Tanto realismo deu nisso. Agora é tarde. O barco adernou e está afundando. Daqui a pouco, o governo não vai mais tentar pilotar. Toda a sua luta será para conseguir chegar até o início da campanha, para agarrar a tábua de salvação que constitui o palanque de 2006. Sim, porque, logo, logo, o governo será como um náufrago, em virtude de seus próprios desacertos políticos, sempre mais capitais do que a inépcia administrativa de que é acusado pela oposição e pelos próprios aliados. Continuará vivo enquanto permanecer nadando. Poderá ainda se salvar. Mas, a cada dia, aumentarão as suas chances de morrer na praia.

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SSaallvvaannddoo oo ggoovveerrnnoo ddoo nnaauuffrráággiioo

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (11/08/05) No início de junho, publiquei um artigo nesta Folha de S.Paulo intitulado "O governo será como um náufrago". Dizia naquela ocasião: "Os golpes que podem ser realmente letais para o governo não vêm do PSDB ou do PFL, mas da própria base aliada". Dois dias depois, os fatos vieram confirmar a previsão. Sem entrar no mérito das denúncias, a entrevista de Roberto Jefferson à jornalista Renata Lo Prete, da Folha, comprovaram o que foi dito. Não tenho nenhuma bola de cristal. Nem tive qualquer informação privilegiada. Tratou-se de pura análise política. A mesma análise política revela agora que a situação se inverte. As únicas forças que podem salvar Lula do naufrágio não estão no PT nem na base aliada, senão no PSDB e no PFL. Estejam ou não esses partidos querendo fazer isso, parece óbvio que admitir a possibilidade de Lula continuar agindo como está, por mais um ano, sem corrigir os erros que cometeu, significa, objetivamente, ajudá-lo a abafar a crise. É preciso ver que Lula só se salva do naufrágio com tal ajuda. Tendo aberto mão de tentar governar para se concentrar na própria salvação a qualquer custo, o governo está se esforçando para abafar a crise por meio de cinco artifícios. Primeiro, vender a idéia de que os partidos e atores políticos são todos iguais, todos roubam ou, como sentenciou o próprio Lula, todos fazem a mesma coisa quando se trata de conseguir recursos para campanhas eleitorais. Segundo, passar a idéia de que caixa dois de campanha e "mensalão" são a mesma coisa. Terceiro, divulgar a interpretação de que, se é assim, o PSDB e o PFL são tão culpados quanto o PT, aliás, mais culpados ainda, porquanto já faziam isso há muitos anos, enquanto o PT foi colhido por

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ingenuidade ou fraqueza de alguns poucos dirigentes, resultantes da pouca convivência com o jogo duro do poder. Quarto, disseminar a visão de que existem forças ("elites", conservadores, a direita, a imprensa) querendo desestabilizar o governo e reduzir o mandato de Lula por meio de um golpe (antecipação das eleições ou impeachment). Quinto, difundir a ameaça de que, se isso vier a acontecer, a economia vai por água abaixo e haverá grave risco de instabilidade institucional (é a tese do "sem nós, o dilúvio", ou "Lula ou o caos"). Resultado: por meio desses embustes, o náufrago tenta passar à ofensiva. E a oposição, que nada tinha a ver com a imperícia do piloto nem com os atos ilegais ou ilegítimos cometidos, em um primeiro momento passou à defensiva. Ao se posicionar açodadamente contra o impeachment, essa oposição botou um pé na armadilha. Pois todo mundo sabe que não é disso que se trata e sim de impedir que Lula permaneça agindo como está, ou seja, dificultando as apurações e vendendo versões falsas à opinião pública para conseguir chegar até o início da campanha eleitoral e dar continuidade ao seu único projeto estratégico: a reeleição. A possibilidade do impeachment é o único argumento capaz de fazê-lo mudar de comportamento. Se for descartada, em princípio, desarma a oposição e deixa o presidente livre para continuar no mesmo caminho irresponsável que trilhou até aqui. Ademais, essa oposição esqueceu de esclarecer à nação que as evidências já são suficientes, como se disse, para uma parada total dos reatores. Ou seja, o governo atual não pode continuar se não desmontar o esquema, inédito pelo tamanho e pela ousadia, de aparelhamento do governo a serviço de um projeto de retenção do poder, financiado por uma verdadeira quadrilha encarregada de captar recursos pelos meios ilícitos da lavagem de dinheiro, do desvio de recursos públicos, da manipulação de licitações e da cobrança de propina. E encarregada de comprar aliados em todos os níveis, e não apenas no Parlamento: sim, é o tal "mensalão", porém mais ampliado que se denunciou - algo de qualidade substantivamente diversa do

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crime eleitoral costumeiro, de receber dinheiro "não-contabilizado" para uma campanhazinha aqui, outra acolá. Que o dinheiro não era usado apenas para campanhas ficou mais do que provado na semana passada, entre outras coisas, com as evidências de pagamento a advogados para cuidar da "imagem do partido" no escabroso caso Santo André. Mesmo assim, as elites, as verdadeiras elites políticas e econômicas - aquelas que conspiram, sim, mas a favor de Lula - insistem na tática de continuar fingindo que acreditam que o chefe de governo não tem nada a ver com o que faz o governo que ele chefia. Ao dar a mão a Lula para salvá-lo do naufrágio, seja em nome da blindagem da economia, da estabilidade institucional, da governabilidade ou de qualquer outra tolice semelhante e a despeito das possíveis responsabilidades do presidente, PSDB e PFL estarão abrindo mão de ser oposição. Ora, com um PPS, um PDT e um PV ainda tímidos, um PSOL e um PSTU muito pequenos e meio irresponsáveis, se PSDB e PFL abrirem mão de ser oposição, restará apenas à imprensa e à opinião pública a tarefa de tentar garantir que tudo não termine em pizza, quer dizer, não seja "resolvido" apenas com uma dezena (ou duas, que seja) de renúncias expiatórias. Na última semana, alguns dirigentes tucanos e pefelistas tentaram retocar a imagem arranhada pelas vacilações dos dias anteriores. Resolveram desmentir o envolvimento de seus partidos em um acordo para salvar Lula. Ótimo que rejeitem o papel de pizzaioli. Mas a questão não está mais no plano das intenções ou declarações. O processo é mais tácito que explícito. Se Lula permanecer do jeito que está, é sinal de que houve algum tipo de acordo, que se dará mais por omissão que por ação.

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OO pprroobblleemmaa éé oo ccaaiixxaa 33

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (04/10/05) De tanto repetir a mesma coisa, o governo está conseguindo sulcar uma versão: a de que todo o problema se resume a caixa dois de campanha, expediente comum às velhas práticas da política brasileira. Mas o problema maior que está em tela no momento não é o caixa dois, e sim o caixa três. Caixa dois é o nome do esquema paralelo de "fundraising" que tenta captar recursos não-contabilizados para despesas de campanha eleitoral. Todos os partidos (ou quase todos) - não há por que negar- o usaram em algum momento, em maior ou menor escala. É condenável, todos admitem. Mas se diz que é uma conseqüência imposta pelo nosso imperfeito sistema de financiamento de campanhas. E, assim, não se trataria de escolher agora alguém para pato, de punir o PT por, confessadamente, ter praticado tal esquema, poupando injustamente os demais que também o utilizaram. Tratar-se-ia, pelo contrário, de fazer uma reforma política para coibir esse tipo de prática. O argumento não deixa de ter sua justeza. É uma tese importante de defesa e assim deve ser aceita. O que não se pode aceitar -a menos que queiramos passar por idiotas- é que todos os malfeitos do atual governo e do seu partido se resumam ao fato de terem recaído no velho esquema de caixa dois. O PT fez caixa dois. Mas fez mais do que isso. Ocupando o governo, começou a engordar um inédito caixa três. Sim, caixa dois é comum, mas caixa três é uma novidade. Parecem a mesma coisa, mas não são. Caixa dois tem objetivos eleitorais. Caixa três também tem. Mas não como o caixa dois, que visa a ganhar uma eleição determinada e que, portanto, se faz e se desfaz de acordo com o calendário institucional. Caixa três, pelo contrário, é

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permanente porque visa ganhar não uma eleição, mas controlar os meios eleitorais tentando garantir a vitória em futuros pleitos (no plural mesmo, à mexicana). Caixa dois é usado de quatro em quatro anos e se destina à vitória episódica. Caixa três é usado continuamente e pretende estabelecer uma hegemonia de longa duração. O chamado valerioduto alimentava, fundamentalmente, o caixa três. O grosso dos recursos que trafegaram por esse duto foi mobilizado em 2003, depois do período de campanha, já com Lula no governo. A desculpa dos empréstimos bancários de um abnegado Valério é tão ridícula quanto a das hipotéticas operações colloridas no Uruguai. O "mensalão" não tem necessariamente a ver com caixa dois. Mensalão faz parte do caixa três. Mas caixa três também não é sinônimo de mensalão, pois não é um fundo constituído apenas para dar mesadas a parlamentares. O caixa dois praticado pelo PT está provado, porque houve confissão do tesoureiro do partido e, inclusive pasmem! do presidente da República. Mas o caixa três praticado pelo PT no governo também está provado na medida em que o dinheiro do valerioduto foi usado, como noticiou a imprensa, fora de períodos e objetivos eleitorais, até para pagar advogados para limpar a imagem do PT em Santo André. Ou seja, está provado que havia um caixa três para pagar tudo o que fosse necessário para garantir a hegemonia do governo do PT e não apenas no parlamento, de vez que inclusive o Fórum Social Mundial recebeu recursos das contas valerianas. Agora vêm Lula e o PT dizerem que o caixa três é o mesmo caixa dois. Pode até ser. Mas, se for, é ainda mais grave. Significa, ao contrário do que inventaram para nos enganar, não que só houvesse caixa dois e, sim, que só havia caixa três e que o dinheiro criminoso para financiar ou pagar dívidas de campanhas foi um desvio interno de recursos do caixa três. Nesse caso, a dose de dolo seria maior. Antes mesmo de ganhar as eleições, o PT já imaginava montar um fundo ilegal para falsificar a democracia, comprando com dinheiro vivo apoios para fazer maiorias em todas as instituições nos

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parlamentos, nas organizações da sociedade civil etc. visando controlá-las por meios ilícitos. Caixa dois é um problema. Mas o problema maior é o caixa três. Enquanto o caixa dois é como um tiro de pistola na democracia, o caixa três transforma o regime democrático em alvo de uma saraivada de obuzes de grosso calibre. Lula pode dizer que não é responsável pelo caixa dois, embora dele tenha se beneficiado, como já ficou evidente no depoimento de Duda (e isso passou batido diante dos olhos de nossa anêmica oposição). Mas, se é responsável pelo caixa três, então não poderia continuar, nem mais um dia sequer, na chefia do governo e do Estado. Para continuar no governo com legitimidade, Lula tem de dizer à nação se quem o traiu, para além de fazer caixa dois, fez também caixa três (ou se só fez caixa três, o que é ainda mais grave). Enquanto não diz e não toma providências para processar tais antidemocráticos meliantes abrigados em seu governo ou em seu partido, está incorrendo em crime de responsabilidade. Antes de decidirem sustentar Lula até o fim de seu mandato, as oposições deveriam verificar não apenas se será usado novamente o caixa dois em 2006, mas se nesses doze meses que nos separam do pleito continuará também sendo usado o caixa três.

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OO ffaallssoo ddiilleemmaa ddoo iimmppeeaacchhmmeenntt

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (16/12/05) O fato é que a oposição ficou com medo: medo de criar um mártir, medo de uma reação das massas ao estilo venezuelano, medo (inútil, como agora se vê) de ser acusada de golpista e, por último, medo do uso político que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva faria de sua vitimização. Assim, argumentando que não havia condições políticas para o impeachment, deixou de confrontar Lula por meio de tantos outros expedientes legais e legítimos disponíveis na nossa prateleira de salvaguardas democráticas e republicanas. Na verdade, como qualquer pessoa inteligente pode perceber, a impossibilidade do impeachment (propalada, não por acaso, mais pela oposição do que pelo próprio governo) foi um álibi, um pretexto para não radicalizar o processo político, porque, por trás de todos os medos mencionados acima, mais ou menos assumidos ou declarados, havia - e há - um outro medo, revelador dos reais motivos da leniência tucano-pefelista: o medo de que uma mexida muito brusca nas regras do jogo acabasse saindo do controle e, assim, a insatisfação popular com o governo corrupto desse para transbordar na forma de uma recusa também aos que o confrontaram, considerados de roldão como "farinha do mesmo saco". Resultado: chegamos até aqui sem que o maior esquema de aparelhamento do governo e de privatização partidária do Estado de que se tem notícia no Brasil fosse desmontado. E é esta a situação em que nos encontramos hoje: mesmo que apareça nos jardins do Alvorada uma frota inteira de Fiat Elba, nada poderá ser feito. Está decidido. A determinação de aplicar a lei já foi trocada pela aposta na loteria do calculismo eleitoreiro. Não afirmo que o impeachment fosse uma solução possível. Talvez sim, talvez não. Digo que a oposição, para se esquivar do confronto com o presidente Lula, fez uso político indevido dessa possível impossibilidade.

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O impeachment deixou de ser um dispositivo constitucional válido de nossa vida democrática. São os próprios líderes oposicionistas que agora o comparam a um golpe. Diante da acusação, feita pelo presidente da República, de que a oposição brasileira é golpista, o líder do PFL declarou que "se houvesse golpismo por parte da oposição, ele [Lula] já teria sofrido processo de impeachment". Na mesma tônica reagiram os líderes tucanos. O líder do PSDB no Senado Federal disparou: "Que golpismo é esse? Nem sequer impeachment do presidente a oposição pediu". E o líder tucano na Câmara dos Deputados arrematou: "Aqui, nunca fizemos nenhum movimento para tirar o presidente Lula do poder. E ele bem que merecia. Mas achamos melhor esperar pela eleição do ano que vem, quando vamos afastá-lo em definitivo e democraticamente". Isso quer dizer que, ao optarem por manter Lula - apesar de todas as evidências dos crimes cometidos por seu governo corrupto -, o fizeram conscientemente. O que - é claro - explica muita coisa. Vejam o absurdo dessa idéia. Por um lado, ela desqualifica o impeachment, caracterizando-o como saída não democrática (e coloca a nação em dívida com Fernando Collor de Mello). Por outro lado, ela contribui para desconstituir o Estado de Direito ao subordiná-lo à correlação de forças, critério válido na luta política, mas incapaz de concorrer para a vigência do império da lei. Pois se Lula "merecia" o impeachment, foi porque violou a legalidade vigente e, assim, deve-se inferir que providências não foram tomadas por uma opção de não seguir a lei. "Achar melhor" não seguir a lei, quando se sabe que a lei foi infringida, não é um comportamento compatível com a missão pública de salvaguardar a legalidade. No limite, adota-se um novo princípio que espanca o direito: o princípio de que as leis serão aplicadas dependendo da correlação de forças ou das conveniências políticas.

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O impeachment instrumentalizado pela oposição estabeleceu uma enganosa disjuntiva. Se não há condições para aplicá-lo, então tudo o que resta é poupar Lula, sustentando o seu mandato até as eleições. Falso dilema: se as condições políticas para o impeachment não estão reunidas, isso não significa que devamos "blindar" o presidente. Ele pode ser interpelado de várias outras formas. Existem, repito, numerosos mecanismos legais e parlamentares para obrigá-lo a dar explicações à nação. O "tudo ou nada" é equivalente a nada. Contribui para dar mais tempo de recuperação ao governo corrupto. E não concorre para que Lula seja constrangido democraticamente a mudar de comportamento. Pelo contrário, assegura que ele - o inegável chefe, responsável pelo esquema - permaneça livre para prosseguir nos seus desatinos e, mal-agradecido, ainda calunie a oposição, chamando-a de golpista. E permite, ademais, como escreveu o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que continue em marcha "o maior processo de destruição de valores republicanos já havido em nossa história". Ora, se é assim, então estamos diante de fato gravíssimo, cuja correção não pode esperar um tempo tão longo a ponto de permitir, como dizem os juristas, que o bom direito se esfume. E nunca deveria ser transformada em aposta numa vitória eleitoral para lá de incerta.

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OO iimmiinneennttee ssuuiiccííddiioo ddoo PPSSDDBB

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (23/02/06) O fato é que o PT, ajudado pelas oposições, recuperou a ofensiva. Até o Berzoini, aquele que ganhou o troféu da crueldade por ter colocado os aposentados idosos na fila, já ridiculariza abertamente os pré-candidatos Alckmin e Serra, chamando-os de "chuchu" e "ex-ministro da Dengue". Processa Fernando Henrique e ameaça levar o presidente do PSDB, Tasso Jereissati, às barras dos tribunais. Proclama, com arrogância, que o PT merece respeito. E não encontra resposta à altura. Daqui a pouco, pessoas como eu ficarão com medo de escrever artigos como este. Enquanto isso, Lula continua fazendo campanha, usando a máquina pública descaradamente. E também não recebe resposta à altura. Coisa espantosa: as oposições não são capazes de dar uma única resposta adequada à conjuntura. Tucanos e pefelistas deveriam estar preocupadíssimos, mas não esquentam muito. Ao contrário de alguns de nós, que estamos vendo o perigo, não se desesperam. Acham que estão num jogo de salão, num clube de elite, numa bela tarde de sábado, pensando no que farão logo mais, se vão ao show dos Rolling Stones ou do Bono. Imaginam que dispõem de todo o tempo do mundo para virar o jogo eleitoralmente. Não dispõem. Segundo o Datafolha de ontem, Lula já conseguiu dobrar a sua votação entre os que ganham mais de dez salários mínimos. O tempo está se esgotando e, se não mudarem de comportamento ainda em fevereiro ou no início de março e se não aparecer no Brasil um movimento de opinião insurgente que resolva dar um basta em Lula e sua turma, as oposições fracassarão. O que era erro agora é simples burrice. Burrice é a melhor das hipóteses. A menos ofensiva para as oposições. Pois, convenhamos, como pode se justificar alguém que, tendo a faca e o queijo nas

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mãos, resolve jogar tudo fora, assim, de graça? Se não for burrice, é o quê? (Um observador menos generoso poderia pensar que eles não querem realmente ganhar, que querem nos trair, competindo para perder e para acumular forças para 2010). Alguns se consolam dizendo que a vida é assim. Mas o que está acontecendo com o PSDB não é fruto do acaso ou contingência imposta pelas limitações de um partido convencional. É resultado, em parte, da sua particularíssima e inconsistente formação como frente de personalidades e, em parte, conseqüência de seus erros passados, sobretudo do erro – crasso - de ter apostado estrategicamente numa sanção eleitoral (no futuro) para os crimes do governo, ficando sem tática (no presente). Sim, PSDB e PFL são responsáveis pelo fato de Lula ter se mantido até aqui. E são responsáveis pela sua recuperação. E serão os grandes responsáveis por sua reeleição. Ou seja, se não mudarem de comportamento e se não virarem o jogo contando com a ajuda de uma opinião pública insurgente, passarão à história como os grandes (ir)responsáveis. A não ser que aconteça um milagre, vão ter que responder, durante anos a fio, pela enrascada em que meteram o país. Sustentaram Lula todo esse tempo, apesar da avalanche de evidências que autorizariam a sua remoção institucional - ou, pelo menos, a imposição de um constrangimento forte que obrigasse o presidente a uma mudança de comportamento -, sem nenhuma estratégia política, a não ser derrotá-lo eleitoralmente, fazendo a aposta, pra lá de temerária, na manutenção do seu desgaste por 15 meses depois dos escândalos! Foi assim que trocaram a política pela loteria do calculismo eleitoreiro. Não sou eu que estou dizendo. Ressaltando o papel da oposição para assegurar a governabilidade do país, o presidente nacional do PSDB declarou na semana passada que, "se fôssemos irresponsáveis como eles [petistas] foram, teríamos paralisado o governo desde o ano passado". Pois é, não paralisaram mesmo. Foi uma opção consciente. Não queriam derrotar Lula. Queriam que ele se suicidasse.

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Para não sair mal na foto, por puro bom-mocismo, nem mesmo tomaram, num primeiro momento, qualquer iniciativa para expor à nação as evidências de crimes cometidos pelo presidente da República e pelo seu partido. Pegaram carona na imprensa e quiseram surfar a onda numa boa. Para lucrar com o esforço alheio. Para tirar as castanhas do fogo com as mãos dos outros. Para levar vantagem sem se sujar. Tudo muito ruim. Como prova de caráter partidário, tal comportamento evidencia, digamos, alguma coisa que não se deve imitar. "Tirem as crianças da sala!", diria um pai zeloso diante desse péssimo exemplo, de oportunismo vulgar. Agora, porém, com a campanha lulista em pleno andamento - na única hora em que teriam, segundo sua própria estratégia furada, de ganhar as ruas -, os tucanos resolveram amarrar os pés na mesa da sala para não sair de casa, enquanto não conseguem resolver essa ridícula disputa interna Alckmin versus Serra. Uma disputa de vaidades, motivada por pretensões pessoais colocadas acima de qualquer projeto coletivo. E Lula já comprou o camarote para assistir, sorrindo, ao suicídio daqueles que queriam que ele se suicidasse.

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OO iimmppeeaacchhmmeenntt nneecceessssáárriioo

Augusto de Franco, Folha de S. Paulo (13/04/06) As oposições não querem. Antes, também não queriam. Agora, porque está muito perto das eleições. Antes, porque estava muito longe. Estão doidas para fazer campanha e avaliam que esse tema pode até atrapalhar os preparativos e a arrumação dos palanques. Tudo desculpa: é puro medo (de serem acusadas de golpismo), eleitoralismo (que confunde a popularidade de Lula com a sua legitimidade) e, no fundo, falta de compreensão do valor estratégico da democracia. Eu sei. Nós sabemos. Mas, a rigor, não há como não iniciar um movimento pelo impeachment de Lula. Por quê? Por um simples motivo: porque Lula é o responsável pelo que está acontecendo, na medida em que nada fez para apurar os crimes de seus subordinados e punir os culpados. Deixou correr solta a bandidagem, banalizando o mal cometido por uma verdadeira quadrilha formada dentro do seu governo. E a coisa chegou a tal ponto que está desconstituindo as instituições republicanas. Mesmo que Alckmin vença o pleito -o que é muito incerto-, mesmo assim, o prejuízo será irrecuperável no curto e no médio prazos. Se forem dados a este governo mais nove meses de vida sem contestação ético-política da sua legitimidade, mesmo que Lula naufrague nas urnas, o processo corrosivo avançará. Os oposicionistas que jogam água fria na conversa do impeachment dizem que a vida é assim mesmo, usando, por um lado, argumentos de sociologia política (baseados na análise das tais condições desfavoráveis, como se isso fosse ciência), e, por outro lado, aforismos retirados do livro bíblico da sabedoria: tudo passa, isso também passará. Com um novo presidente, teríamos novo céu e nova terra, e se recomporia rapidamente o tecido institucional (quer

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dizer, como num passe de mágica, o Congresso readquiriria sentido público, os tribunais superiores deixariam de ser defensorias do poder e a máquina administrativa, hoje inteiramente aparelhada, renasceria íntegra das cinzas). Ora, quatro anos de infestação partidária, de alteração degenerativa do corpo e do metabolismo das instituições públicas e de perversão da política não podem ser consertados em pouco tempo, a não ser que haja uma ruptura contundente com as práticas anteriores, simbolizada pela punição e execração pública dos culpados por tantos delitos. Ou seja, o ganhador da loteria eleitoral, mesmo que seja Alckmin, sobretudo depois de ter sobrevivido a mil e uma denúncias do PT (e elas virão como avalanche, aguardem), não poderá contar com alta dose de confiança. A credibilidade da "classe política" foi derruída a um ponto tal - pelas práticas lulo-petistas e pela sua linha tática de defesa, ao disseminar a idéia de que todos são iguais no crime - que não há volta fácil. Não será trivial fazer o povo confiar novamente nas instituições da nossa democracia representativa. Ademais, permanecendo impune, a quadrilha que se organizou no governo para assaltar o Estado brasileiro e falsificar o processo democrático continuará atuando (nos Estados e prefeituras eventualmente conquistados, nas organizações da sociedade aparelhadas, nos sindicatos e movimentos sociais que funcionam como linha auxiliar do partido) e infernizando a vida do vencedor. Darão o troco, fazendo aquilo que a oposição atual - tendo a lei do seu lado - não quis fazer por falta de coragem e de visão. Ou seja, arrumarão falsos pretextos para desestabilizar o novo governo. Esse é o motivo pelo qual não basta vencer Lula eleitoralmente. É necessário derrotá-lo politicamente, quer dizer, derrotar as concepções e as práticas que refletem o seu projeto de poder. Só um movimento pelo impeachment teria força simbólica para sinalizar, para o conjunto da população, que o país mudou. Ocorreria algo semelhante àquele alto-astral que sucedeu ao impeachment de Collor, quando as pessoas começaram de novo a acreditar no Brasil, lavando a alma ao limpar o país da lama collorida.

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O impeachment seria a melhor solução democrática, inclusive porque a menos traumática no médio prazo. Não havendo o impeachment - ou, que seja, ao menos um movimento pelo impeachment capaz de suscitar a emergência de uma opinião pública insurgente - e não havendo punição exemplar para os envolvidos, com a total defenestração dos aparelhadores do Estado, o próximo governo carregará, aí sim, uma herança maldita (porque autocrática) de proporções incalculáveis. Isso, é claro, para não falar dos riscos da reeleição de um governante que, conquanto ainda tenha popularidade, não tem mais legitimidade. Deixá-lo concorrer nestas circunstâncias, promovê-lo a competidor legítimo depois de tê-lo poupado e mantido contra a lei e os bons costumes é um erro cuja conseqüência se abaterá sobre nós como uma bomba se, por acaso - o que não é difícil -, Lula tirar a sorte grande na loteria eleitoral que se avizinha.

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RReessppoonnssaabbiilliiddaaddee ppoollííttiiccaa

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (20/06/06) Afinal ficou claro que o verdadeiro projeto lulo-petista para o Brasil era arrecadar ilegalmente os recursos necessários para ficar 20 anos no poder. As pessoas se escandalizam com a primeira parte desse projeto; o que me apavora é a segunda. Depois do que veio à tona, talvez o "governo-partido" no poder não consiga mais roubar tanto (e talvez nem precise, já que deu para usar os recursos públicos). Mas, se alguma coisa mudou, foi apenas a meta financeira. O objetivo continua. E os meios - a formação de quadrilhas nos aparelhos estatais conquistados - também. Quer dizer: o projeto está de pé, simplesmente porque não foi desconstituído. Uma estrutura de poder como a que o PT montou nos últimos dez anos no país não cai por si mesma. Tem de ser desbaratada. Não havendo quem se disponha a fazê-lo, ela continuará atuando. O projeto de poder de Lula e do PT não trabalha por fora das instituições e sim por dentro. É um parasitismo da democracia. Enganam-se os que acham que vão surpreendê-los mais adiante numa tentativa de golpe de Estado. Sua via principal é a eleitoral. Tudo o que Lula e o PT fizeram tinha (e tem) como objetivo continuar ganhando as eleições, sucessivamente: por um lado, palanquismo-messiânico (do líder que se diz predestinado a salvar os pobres) regado com assistencialismo-clientelista e, de outro, conquista dos meios institucionais pela privatização partidária da esfera pública e pela alteração da lógica de funcionamento das instituições. Essa é a fórmula do neopopulismo lulista. Como a oposição não se dispõe a interromper democraticamente a trajetória do governo corrupto, lançando mão dos mecanismos previstos na Constituição para situações como essas, terá de enfrentar o lulo-petismo em condições adversas: uma arena eleitoral

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viciada pela manipulação das massas e pela compra ilegal, direta e indireta, em grande escala, de cabos eleitorais e eleitores. A manipulação vem sendo feita pelo eterno-candidato desde que assumiu o poder. Bilhões de reais do dinheiro público vêm sendo distribuídos aos mais pobres, sem exigência real de contrapartidas, numa versão moderna de clientelismo em que no lugar do coronel local figura o líder nacional, o companheiro-presidente. Já a compra de apoios e aliados vem se processando por meio dos vários tipos de mensalões. Só uma pequena parte desse esquema foi descoberta. É claro que nada disso poderia ter sido feito sem as vistas grossas das oposições. Mas se, por um lado, as oposições são lenientes, por outro, também não se pode contar com a mobilização da sociedade em termos tradicionais. As novas formas de expressão dos cidadãos, as maneiras pelas quais a nova sociedade civil se organiza na contemporaneidade, não são aquelas que conhecíamos: corporativas, reivindicativas e, não raro, aparelhadas para servir de correias de transmissão de grupos e partidos políticos. Eis então o dilema: os velhos agentes militantes não querem, e inclusive já não podem mais, defender a democratização do Estado e da sociedade; os novos agentes não são propriamente militantes a serviço de um grupo ou seguidores de um líder, senão participantes voluntários, que se mobilizam em torno de uma causa. Não são manipuláveis e não podem ser comprados com mensalões nem com cargos ou candidaturas. Constituem a nossa melhor promessa de futuro, mas não podem ser usados para limpar a sujeira do passado. Caminhamos assim, cabisbaixos, para o matadouro eleitoral, correndo o risco de ver consagrada a impunidade dos delinqüentes, o que aumentará a insegurança jurídica e jogará o país em uma crise institucional sem precedentes. Sem oposição política e sem mobilização da sociedade, sobraram apenas aqueles setores empreendedores que têm motivos diretos para defender a liberdade de iniciativa e para se preocupar com a democracia e com o desenvolvimento. Se esses não começarem

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agora a exercer a sua responsabilidade política, depois tudo indica será muito tarde. Recente pesquisa do Instituto Internacional de Desenvolvimento Empresarial (IMD) revela que sob o governo Lula o Brasil já despencou da 37ª para a 52ª posição no ranking das economias mais competitivas do mundo, está entre os países em que o governo mais atrapalha a atividade empresarial e em último lugar em relação à estrutura institucional, critério que mede a capacidade de gestão da máquina pública. Imaginem aonde iremos parar com mais quatro anos de neopopulismo lulista.

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AA ffóórrmmuullaa aannttiiddeemmooccrrááttiiccaa ddee LLuullaa

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (24/08/06) SE A REELEIÇÃO vier, ela não será o ocaso da carreira de Lula, e sim o passo inicial para uma tentativa de mudança autoritária das regras do jogo político que tem como objetivo lançar sobre o terreno que foi preparado com a complacência das oposições as bases de uma hegemonia neopopulista de longa duração no país. Isso tudo pode ocorrer sem que se quebre a liturgia formal das instituições do sistema representativo e, assim, não caberá nenhuma acusação de golpismo. É claro que algumas coisas "extraordinárias" deverão acontecer. Com 50 a 70 deputados petistas eleitos em 2006, Lula não teria força para tanto. Todavia, se consagrado pelas urnas com votação expressiva, Lula e sua tropa atropelarão aliados, adversários e instituições, falando diretamente para as massas. Os aliados fisiológicos do governo também não terão coragem para se opor às iniciativas daquele que, além de batizado, foi crismado pelas urnas. Os adversários recém-derrotados não terão muito ânimo para travar uma batalha cruenta em defesa de princípios. A descoberta de corrupção em larga escala nos Parlamentos e as ações terroristas praticadas pelo PCC servem como exemplos desses fatos extraordinários que deverão ser "produzidos" para causar uma certa comoção na opinião pública, manipulando-a para levá-la a aceitar a adoção daquelas medidas regressivas capazes de permitir a implantação da fórmula lulista. Como os Parlamentos estão desmoralizados, é preciso reduzir as proteções legais dos seus titulares e restringir o poder das CPIs, que servem só para criar caso, não deixando o presidente trabalhar. O argumento é chulo, mas condiz com o estilo do líder: que moral teriam deputados e senadores corruptos para fiscalizar o

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comportamento de um governante que foi eleito com mais de 50 milhões de votos? Além disso, como a corrupção é generalizada, é preferível manter a centralização dos processos administrativos, reforçando o protagonismo presidencial. Isso abre caminho para ampliar políticas assistencialistas e clientelistas, realçando o papel do grande líder popular, colocado agora no lugar daqueles coronéis da velha elite corrupta. Para superar as resistências a tais medidas moralizantes, será necessário encontrar um jeito de garantir maioria governista nos tribunais superiores, na burocracia estatal e na mídia. Isso abre caminho para ampliar o aparelhamento do Estado e para retomar propostas autoritárias de controle estatista-corporativo da atividade audiovisual e jornalística. Ao mesmo tempo, para corrigir as deformações promovidas por veículos não-alinhados, será preciso manter o controle centralizado sobre as verbas de publicidade das grandes empresas estatais, além de investir pesadamente em propaganda oficial, com o fito de dissuadir um comportamento muito independente dos grandes meios de comunicação. Como é o sistema todo que está podre, é urgente fazer uma reforma política, mas sem muita política (sob o pretexto de reduzir a participação de contumazes corruptos). O destaque deve ser dado à mudança das regras eleitorais (com a introdução do voto em lista), mas sem uma reforma partidária (a não ser no que tange à adoção da fidelidade), conferindo, na prática, aos chefes de partidos poder de vida ou morte sobre seus correligionários. Depois será mais fácil reunir esses chefes em uma espécie de comando de oligopólio, para coibir espertezas de aventureiros individuais. Diante da crescente ousadia política do crime organizado, nada, senão manter ou ampliar as demonstrações espetaculares da Polícia Federal, passando para a opinião pública a impressão de que, ao contrário do que ocorre nas unidades da Federação controladas pela oposição, temos um governo federal forte e eficaz, e induzindo as

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populações a se desfazer daqueles partidos que só pensam em objetivos eleitoreiros, descuidando das suas responsabilidades pela segurança dos cidadãos. A despeito do fato de essa fórmula já estar sendo parcialmente implementada, transformando 2006 em uma ante-sala de 2010 (o que, no Brasil, já é longo prazo), é claro que ela pode não dar certo, sobretudo se encontrar resistência. Mas a insistência em aplicá-la levará o Brasil a uma crise institucional sem precedentes.

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DDeeccooddiiffiiccaannddoo LLuullaa:: bbaassttaa iinnvveerrtteerr oo ssiinnaall

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (10/10/06) DAQUI PARA a frente é o vale-tudo? Não tem mais lei, não tem mais costume republicano, não tem mais nada? Sim, porque os ministros de Lula se transformaram em cabos eleitorais e usam vergonhosamente o governo para fazer campanha declarada e para atacar a oposição. Enquanto isso, o presidente-candidato vai tentando nos iludir com seu ardil preferido: declarar exatamente o contrário do que está fazendo. Se ele diz que não atacará o adversário, é sinal de que atacará. Se ele diz que quer apurar o crime do falso dossiê, é sinal de que colocará todos os obstáculos para que se chegue a desvendar a origem do dinheiro e da trama na qual estão envolvidos seus homens. Se ele diz que punirá rigorosamente os culpados (por quaisquer dos seguidos escândalos que seu governo patrocinou), é sinal de que já arrumou um jeito de não punir ninguém. Tudo o que ele diz, vale, sim, porém com o sinal trocado. Para decodificar Lula, é simples: basta inverter o sinal. O jornalismo ainda não descobriu o código. E a oposição acha que pode conversar e fazer acordos procedimentais com o PT. Mas isso é impossível, pois o interlocutor, no caso, não merece confiança. A estratégia da "revolução pela corrupção" colocou Lula e o PT fora do campo da lei. Conquanto ainda tenham popularidade, não têm mais legitimidade. As declarações de Garcia às vésperas do primeiro turno - alegando que o golpe mais grave no processo eleitoral foi o vazamento das fotos da dinheirama ilegal do PT (para esconder o verdadeiro golpe do falso dossiê e desviar a atenção sobre a origem dos recursos e sobre o crime) - são uma prova de que esses caras não conhecem limites. Vale tudo para permanecer no poder: distorcer, mentir, urdir versões fantasiosas...

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Os recentes pronunciamentos do ministro Genro, no sentido de que Lula quer o debate ético, já que, ao contrário da oposição, concordou com as CPIs e puniu todos os seus decaídos, ultrapassam a simples desfaçatez. Todos sabem que Lula e o PT moveram mundos e fundos para impedir a instalação da CPMI dos Correios, sabotaram e bombardearam a CPI do Mensalão até o fim e só admitiram as comissões quando não havia mais condições políticas de evitá-las. Entendam que, aqui, já não estamos mais no terreno da democracia nem sequer no da política. O caso é de polícia, mesmo. Para desconstituir essa ameaça, devemos, entretanto, aprender as lições do processo político em curso. A primeira lição: não há congruência entre resultado eleitoral e justiça. Ou seja, as urnas não podem distribuir justiça, não podem sancionar o mau comportamento, não podem zelar pela ética na política. Dos 11 mensaleiros que concorreram, oito foram reeleitos. Para não falar do PT, partido do Waldomiro, de Santo André, do mensalão, da violação do sigilo de Francenildo, das tentativas de controlar a TV e a imprensa, dos sanguessugas, das cartilhas pagas com dinheiro público (que foram parar em uma certa organização privada) e do falso dossiê: mesmo assim, elegeu quatro governadores, disputa em mais dois Estados e ainda fez a segunda bancada na Câmara dos Deputados. No dia em que deixarmos que se legitime a falsa teoria de que as urnas são capazes de absolver ou punir, então será o fim da possibilidade de democracia e de Estado de Direito. A segunda lição que se deve reter é a de que uma força política não se desmancha por si mesma. Se estiver no poder, não se suicida. Se for uma quadrilha, não se desarticula na ausência de uma força que a desbarate. A terceira é a de que Lula é o PT: não há nenhuma diferença entre essas duas "entidades". Repetir que o PT atrapalhou Lula, que a armação do falso dossiê foi feita contra ele, é fazer o seu jogo. Aliás, a denominação jocosa de "Operação Tabajara" foi urdida, como despiste, no alto comando do Planalto e "comprada" acriticamente por muita gente que ainda se julga perspicaz... Ora, ora: Lula é o chefe. Chefe de quem? É claro que só há uma resposta: chefe do PT,

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inclusive da parte mais secreta (até para a maioria dos petistas), que tem uma estratégia definida de perpetuação no poder a qualquer preço. Se ele, como sempre, de nada sabia antes, depois não teria nenhuma dificuldade de saber. Vamos ver se a oposição aprende essas lições e não cai mais uma vez na conversa, aceitando ir para o segundo turno sem cobrar diariamente o esclarecimento sobre a origem dos recursos e sobre o envolvimento dos homens do "entourage" pessoal de Lula no golpe do falso dossiê.

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OOss ppaarrcceeiirrooss ssiimmbbiiôônnttiiccooss

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (04/01/07) O FATO é que começamos o ano 5º da "Era Lula" sem oposição no país. Tal como o governo, a oposição partidária no Brasil também constitui fenômeno inédito. Segundo ela, a vitória eleitoral terá sido uma espécie de anistia para os crimes do governo corrupto de Lula da Silva. Assim, vamos esquecer tudo. Vamos parar de ficar cobrando de onde veio o dinheiro do mensalão e do falso dossiê e o que faziam os homens de confiança de Lula na trama, quem traiu o presidente, como foram usados os cartões corporativos da Presidência, onde foram parar aquelas cartilhas... Apostando todas as fichas na loteria do calculismo eleitoreiro, a oposição colheu o óbvio: consagrou a impunidade dos malfeitores e a continuidade da "sofisticada organização criminosa" que se instalou no Planalto. Tenho uma tese a esse respeito: só foi possível a eclosão do fenômeno político inédito que estamos vivendo no Brasil desde 2003, com Lula e o PT no poder, devido à existência de um partido com as características do PSDB. Eles, PT e PSDB, dão a impressão de parceiros simbiônticos. Uma crítica mais ácida diria que o PSDB fez o papel de "Kerenski brasileiro". Mas essa foi uma conseqüência objetiva do seu comportamento fora do poder, sem nenhum desdouro para a gestão e as intenções democráticas do estadista Fernando Henrique Cardoso. Ademais, o colaboracionismo oposicionista foi o resultado do comportamento adotado pelos dois principais partidos de oposição, e não uma orientação dessas agremiações. Tal comportamento evoluiu, manifestando-se como renúncia de ser e fazer oposição (2003, ano em que os tucanos foram atacados pela "síndrome da oposição responsável"), passando pela vacilação e pela leniência tática (2004 e parte de 2005), avançando para características menos colaborativas (2005, no auge do escândalo do mensalão), mas recuando

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novamente para formas implícitas ou explícitas de conivência (a partir de agosto de 2005 até o início formal da campanha eleitoral em agosto de 2006). Lula não deveria ser mal-agradecido. Ele deve tudo às oposições, sobretudo aos tucanos. Ele jamais foi abalado pelo PSDB e, sim, por suas próprias trapalhadas e as dos seus auxiliares que, uma vez descobertas, não poderiam deixar de ser denunciadas pela imprensa. Pelo contrário, Lula sempre foi ajudado por uma oposição que se esmerou em poupá-lo e blindá-lo e, de agosto de 2005 até o final daquele ano, construiu uma operação de resgate do presidente, estendendo-lhe a tábua de salvação do palanque de 2006 para livrá-lo do naufrágio. Deu no que deu. Não contente com isso, a oposição ainda lhe fez o favor de não travar a decisiva pré-campanha, de janeiro a agosto de 2006. Enquanto o PSDB aguardava, apalermado, o início do horário eleitoral, durante oito meses, Lula, disputando sozinho, praticamente dobrou as suas intenções de voto, pulando, segundo o Datafolha, de um patamar de 33% (no início do ano passado), para 41% (em março), para 43% (em maio), para 46% (em junho) e para 49% (em agosto). Deu no que só poderia dar mesmo. Eis-nos, agora, novamente na tempestade. Lula recuperou a sua nau, mas a nossa está à deriva. Nossos pilotos abandonaram o barco, pressurosos como sempre, para cuidar de seus próprios interesses. Quando tudo isso passar, será que eles não terão vergonha de contar para seus filhos e netos o ridículo papel que desempenharam nesta história? Eu teria. Quando tudo isso passar. Mas... e se não passar assim tão rapidamente? E se estivermos apenas no início de um período regressivo de longa duração? Quem vai reagir? Quem vai resistir? Se você é um democrata, deve estar indignado. Mas como você foi abandonado, é possível que tenha feito um propósito nesta entrada de 2007: imitar as oposições e dizer que a vida é assim mesmo. Não importa se Lula continuar avacalhando o Brasil e urdindo uma maneira de não sair (de fato) do poder: você dirá que não tem nada com isso. Pior: você pode, imitando mais uma vez as oposições, só se

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mexer se surgir um movimento oposicionista (de fato), propondo retirar Lula do poder. Aí, sim, você marchará ombro a ombro com os bravos tucanos para defender a governabilidade. Sorte sua se, como ocorre com esses propósitos que fazemos no início de cada ano, você não cumprir o prometido. Nem que seja pela falta de virtude, desejo que você seja poupado da vergonha de ter que explicar para os seus filhos e netos as razões pelas quais resolveu dobrar a espinha. São os meus votos de Ano Novo.

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CCoonnffiiaannççaa zzeerroo

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (03/05/07) EM ARTIGO publicado nesta Folha dias antes da famosa entrevista do ex-deputado Roberto Jefferson sobre o mensalão (2/6/2005 e 6/6/2005, respectivamente), vaticinei que o governo Lula naufragaria por obra de seus próprios aliados. Cerca de dois meses depois, em outro artigo neste mesmo jornal, acrescentei que o governo só conseguiria se salvar com a ajuda das oposições. Quase ninguém estava vendo as coisas assim. Mas foi o que aconteceu. Entretanto, os fatores desestabilizadores que levaram ao primeiro naufrágio não foram afastados. Pelo contrário, se ampliaram. Então vai aqui a terceira previsão, da qual, novamente, a maioria dos analistas discordará: este governo tem tudo para não acabar bem. Não que a "oposição" - que o salvou do naufrágio da primeira vez - vá agora criar-lhe dificuldades. Desse susto, Lula não morre. Aliás, ocorre hoje um fenômeno que ainda será tema de muitas teses de doutorado: os tucanos estão neste momento travando uma disputa interna para ver quem pode servir melhor ao governo, quem consegue ser mais claudicante, mais adesista, mais desfibrado, mais esquecido de seus deveres oposicionistas, mais capaz de trair a vontade dos 37 milhões de brasileiros que depositaram sua confiança no partido em 2006. Mas a diferença da situação de 2005 para a de hoje é que o PSDB e os "neo-DEM" não podem mais sustentar o governo como faziam. A coisa está se complicando para os amigos, para os correligionários e para os aliados de Lula, porquanto a ausência de oposição está também inviabilizando o emprego da desculpa pré-fabricada de que os culpados por tudo são os neoliberais ou FHC. A "herança maldita" já é passado. Aécio sempre foi aliado de Lula. Tasso parece ter entrado para o time do mineiro. E Serra, para bem administrar São Paulo, não quer criar problemas. Na ausência de inimigos, as culpas

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pela incapacidade de governar de Lula vão começar a recair sobre quem, senão sobre os amigos? A julgar pelo histórico mais recente - cujas vítimas foram Aldo, Jobim, o ministro da Aeronáutica, os controladores de vôo e seu próprio companheiro Bernardo -, poder-se-ia dizer que a capacidade de Lula de trair os amigos é inesgotável; sim, mas a capacidade desses amigos de se deixarem trair tem limite. Os mais espertos já perceberam que, ficando nas mãos de Lula, tendem a ser descartados como bagaços chupados de laranja. As velhas raposas do PMDB, por exemplo, já anteviram que é grande o risco de terminar na sarjeta e refazem seus cálculos. É natural que, diante de tantos precedentes, os aliados se tornem ressabiados, cínicos e predadores. Fingindo que acreditam na palavra de Lula, vão exigir garantias sempre maiores, tentando tirar o máximo que puderem do governo para compensar, antecipadamente, os prejuízos que terão mais adiante. A capacidade de traição de Lula insufla a desconfiança dos seus aliados, e tudo isso alimenta um círculo vicioso ou uma espécie de espiral da inconfiabilidade. Ora, tal situação não é sustentável. Nenhum grupo, nenhuma configuração política - nem mesmo um bando ou uma gangue - consegue subsistir sem um mínimo de confiança, sem uma "cola", sem uma "alma" que lhe dê organicidade. Para manter uma coalizão de governo, não basta comprar - com dinheiro, cargos ou outras prebendas - grupos ou pessoas. Mesmo quando estão dispostas a vender suas consciências, mesmo recebendo propinas, as pessoas querem ter a segurança de algum futuro pela frente, de que não serão traídas na próxima esquina. Mas os aliados instrumentais de Lula já viram que isso não terão neste governo de "confiança zero". Se a imprensa permanecer livre, o atual governo tem grandes chances de acabar mal. Ainda que as oposições tentem, mais uma vez, salvá-lo da ruína, os aliados fisiológicos de Lula se encarregarão (em parte involuntariamente, por razões de sobrevivência) da tarefa de corroê-lo.

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Ontem foi o "banditismo (e a corrupção) de Estado" que veio à tona com Waldomiro-Dirceu e o mensalão. Amanhã, a natureza degenerada do governo se manifestará em outras coisas. Tanto faz. A política não é feita de coisas, mas de relações de forças. Construído sobre o discurso inverídico e inteiramente baseado na popularidade de um líder incapaz de investir no sucesso alheio, o governo Lula ainda não tem força própria para se sustentar nem capital social suficiente para aglutinar forças externas de modo duradouro. Não precisaremos esperar muito. Basta que o (falso) governo de coalizão deste segundo mandato comece a funcionar para que apareçam os sintomas de putrefação.

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UUmm ggoovveerrnnoo sseemm mmuuiittoo ffuuttuurroo

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (06/08/07) MESMO DEPOIS do caos aéreo e do acidente em Congonhas, a popularidade de Lula não caiu. E daí? Fujimori - aquele bandido que governou o Peru na década de 1990 - tinha 70% de aprovação no seu período áureo, quando violava direitos humanos e assaltava os cofres públicos. Esses números são sempre supervalorizados, em especial pelos tolos, pelos não-convertidos à democracia e pelos bandidos. Entre os tolos que ficam embasbacados com a resiliência da popularidade do nosso chefe populista (como se alguém pudesse sê-lo sem tê-la) estão, é claro, os tucanos. Foram eles os que mais contribuíram para que Lula desse a volta por cima no final de 2005. Se depender deles, nosso líder vai crescer de novo e ainda mais no final de 2007. Cada resultado de pesquisa favorável a Lula funciona como um reforço negativo para o PSDB. Reforça o eleitoralismo (segundo o qual tudo se decide pela popularidade). Reforça, é inevitável reconhecer, uma certa covardia (segundo a qual não se deve afrontar alguém com tão alto índice de audiência). E reforça uma incompreensão da democracia (segundo a qual quem tem maioria tem sempre legitimidade). Hitler e Mussolini também tinham altíssimos índices de popularidade, assim como Chávez. Mas os tucanos têm uma dificuldade crônica de perceber padrões. Entre os não-convertidos à democracia estão os nossos atuais governantes e seus aliados. Entre os bandidos está, infelizmente, boa parte do sistema político: os partidos, verdadeiros domínios - no sentido feudal - dos caciques (e que atuam, não raro, como gangues políticas) e os agentes governamentais e parlamentares (que funcionam em geral como despachantes de recursos públicos para fins privados).

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É verdade que, com a ajuda dessa gente, Lula poderia facilmente se recuperar do tropeço atual. Sobretudo porque continua blindado. Sua inimputabilidade autocrática, baseada em índices fujimorianos de popularidade, funciona como guarda-chuva para a impunidade de seus colaboradores. Fujimori chegou a ser preso (no Chile), mas, como se sabe, até agora não foi punido nenhum membro da quadrilha petista que ocupou o Planalto. Alguém acredita que os tucanos cobrarão providências? Lula só não se recuperará se uma opinião pública vigorosa disser: "Basta, cansei!". É o que está para ocorrer. Pois, passados 55 meses de desgoverno do PT, já se pode ver por que a "fórmula neopopululista" não funcionou. Em primeiro lugar, porque o governo não tem visão, não tem proposta e não é capaz de inspirar confiança. Na ausência desses fatores, aglutinantes indispensáveis de qualquer coalizão minimamente estável de governo, o PT foi obrigado a comprar uma base de apoio com dinheiro (às vezes de forma criminosa, como no mensalão), cargos e outras prebendas, ficando nas mãos de todo tipo de oportunista, predador, corrupto e meliante que veio à política para fazer negócios. Uma base assim conformada é um problema, não uma solução. Em segundo lugar, porque a governabilidade hoje não depende dessa base de apoio do governo, e sim da oposição. Embora tenha nos ameaçado com uma venezuelização, Lula sabe que só ficará no governo, diante dos atuais questionamentos da sociedade - que tendem a aumentar -, se continuar contando com essa estratégica quinta coluna. Mas, convenhamos, um governo que precisa da oposição para se manter não tem propriamente condições de governabilidade. Em terceiro lugar, porque, tirando os dois únicos "ativos" do governo - os bons ventos da economia mundial e os altos índices de popularidade do presidente -, todo o resto é uma calamidade. A inépcia e a irresponsabilidade administrativas, acarretadas pelo aparelhamento e pela corrupção de Estado, gerou uma incapacidade

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sistêmica de governar. É assim que, para onde se olha, há má gestão, roubo e formação de quadrilha. O país está nas mãos de bandidos e se multiplicam episódios de falta de controle e de acobertamento oficial dos mais variados crimes e irregularidades. Sim, a afronta de Renan à democracia e o apagão aéreo (agora com mais duas centenas de vítimas) são sintomas da mesma doença. Em quarto lugar, porque a conjunção desses fatores não conseguirá resistir muito tempo à exposição de suas mazelas pela mídia. De sorte que, se Lula não conseguir capturar ou amordaçar os meios de comunicação (como fez o aliado Chávez), tudo indica que seu governo não terá muito futuro.

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AA ffaarrssaa ddoo mmeennssaallããoo mmiinneeiirroo

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (27/09/07) NÃO HOUVE mensalão em Minas, pois não houve compra de parlamentares e partidos para votar com o governo. O que houve em Minas, ao que tudo indica, foi um embrião do chamado valerioduto, voltado para abastecer caixa dois. Azeredo, Mares Guia e o PT estão envolvidos no crime mineiro? Então devem ser punidos. Azeredo não sabia de nada? Deve ser punido assim mesmo. Assim como Lula -que também não sabia de nada- deveria sê-lo. A responsabilidade de Lula é, porém, muito maior. Azeredo se beneficiou de caixa dois. Lula se beneficiou de caixa dois (como confessou Duda Mendonça em 2005) e de caixa três (como está mostrando o atual processo no STF contra seus mensaleiros). Ora, se para Lula vale o argumento de que ele não sabia o que faziam seus mais íntimos auxiliares, por que não deveria valer para Azeredo? Onde está a farsa? Em primeiro lugar, a farsa é querer dizer que todo mundo faz igual. Mas, se for assim, Azeredo está blindado pela "jurisprudência" que assegurou a inimputabilidade de Lula, não? Segundo, a farsa é querer dizer que o PSDB age igual ao PT, tentando confundir caixa dois com caixa três. Os tucanos, o Brasil todo já viu, são muito ruins fora do governo. No entanto, dentre seus numerosos defeitos, não se pode encontrar aquele que caracteriza o lulopetismo e que define a natureza mesma do atual governo. Não consta que o PSDB tenha comprado apoio político para montar um Estado paralelo no país a partir da ocupação organizada da administração federal, das estatais e paraestatais e dos fundos de pensão, com o objetivo precípuo de falsificar a rotatividade democrática, retendo o poder nas mãos de um mesmo grupo privado

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pelo maior tempo possível. Essa é a origem e a razão do mensalão, quer dizer, do caixa três, não do caixa dois. Vejam só como é a vida. Os tucanos salvaram Lula do naufrágio. E Lula, numa demonstração de gratidão, vai usar o falso mensalão mineiro para matar dois coelhos com uma só cajadada: mostrar que todo mundo faz a mesma coisa e "lavar" o caixa três, dizendo que não passou de caixa dois. O caixa três, todavia, conquanto essencial ao projeto do lulopetismo, constitui um instrumento de difícil manejo. Primeiro, porque quem compra aliados uma vez para fazer maioria fica obrigado a comprar sempre. E o preço sobe. Vejam como a base fisiológica do governo está cobrando caro para aprovar as medidas que lhe interessam, como a CPMF. Em segundo lugar, deixa o governo nas mãos dos que a ele se associaram para delinqüir. A salvação de Renan no primeiro round foi um pagamento pelo seu silêncio. Mas tudo tem um preço. E o mercado da chantagem também tende à inflação. É possível manter essa situação por algum tempo. Mas não por muito tempo. É uma corrida contra o tempo. Lula está obrigado a pagar hoje por mais um dia de vida amanhã. A resiliência de Renan - que se transformou numa afronta à democracia brasileira - tem uma única explicação: é conseqüência do esquema de poder montado por Lula e pelo PT. Mas tal esquema é insustentável. Coloca a cada dia um novo dilema. Vejam agora. Se Lula não salvar Renan, abre um precedente perigoso (pois os outros participantes da aliança bandida vão cobrar mais caro ante o aumento do risco). Se salvar Renan, também abre um precedente perigoso (pois aumentará a sensação de inimputabilidade - condição que Lula deve reservar apenas para si -, incentivando o crescimento em escala do assalto aos recursos públicos e de todo tipo de crime). Além, é claro, de ficar mal com a opinião pública.

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Para impasses como esse, toda solução é subótima. Na verdade, a única saída é empurrar com a barriga. A produção de farsas como a do mensalão mineiro é apenas mais uma tentativa de ganhar tempo. Querem saber por quê? Porque há um erro de projeto no lulopetismo.A alternativa de usar a democracia contra a democracia leva necessariamente à ditadura. Usar a alta popularidade de um líder populista para mudar "democraticamente" as regras do jogo seria exeqüível se não obrigasse, antes, a violar as regras do jogo (fazendo coisas como o mensalão ou caixa três). Ora, num país de imprensa livre, tal violação não pode passar despercebida. Logo, para isso dar certo, seria preciso restringir essa liberdade (como fez Chávez). Mas, se aqui não há condições de fazê-lo, então, mais cedo ou mais tarde, a operação toda desmorona. Ainda não sei bem se tranqüilizei ou aumentei a preocupação dos democratas.

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LLuullaa,, oo ""vveenneezzuueellaannoo""

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (08/01/08) SE NOSSO IDH fosse mais próximo de 0,9 (em vez de 0,8), Lula jamais governaria o Brasil. Quem garante seus votos e liderança é a pobreza. É por isso que Lula não ganha eleição para prefeito de São Bernardo. É por isso que não ganha para governador de São Paulo nem de qualquer Estado do Sul (talvez com exceção do Paraná, que só é governado pelo chavista Requião por concentrar a maior pobreza da região). São os bolsões de pobreza que garantem a eleição de populistas. Lula quer acabar com a pobreza? Não, o que quer é mantê-la, transformando as populações pobres em beneficiárias passivas e permanentes dos programas assistenciais. Ele gosta, sim, do povo, mas como massa informe de pré-cidadãos Estado-dependentes. Façam uma análise dos levantamentos existentes, resultantes da aplicação de vários indicadores de desenvolvimento. A votação de Lula aumenta nos lugares em que esses indicadores (inclusive o IDH) diminuem. Isso não pode ser por acaso, pode? Só acontece porque Lula é um "venezuelano". Em Caracas, nosso presidente viveria feliz como pinto no lixo. O PIB da Venezuela vem crescendo a taxas próximas de 10% nos últimos anos. Apesar disso, a Venezuela tem muitos pobres. Seu IDH é 0,784 (72º lugar no ranking mundial). Com o dinheiro do petróleo, Lula poderia fazer um super "bolsa-esmola" para economista-áulico nenhum botar defeito. A noção de democracia de Lula casa perfeitamente com o regime político venezuelano. Lá, não vigora mais essa besteira de rotatividade (ou alternância) democrática. Autorizado, como Chávez, por uma "lei habilitante" (muito melhor do que medida provisória), Lula poderia criar, numa penada, não uma, mas meia dúzia de TVs

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governamentais. Poderia tirar a Globo do ar e empastelar a revista "Veja". E, sobretudo, poderia continuar no poder indefinidamente, convocando plebiscitos e referendos para dizer que não está fazendo nada mais do que obedecer à vontade da maioria. Lula, o "venezuelano", acha que democracia é o regime da maioria (e não o das múltiplas minorias). Não sou eu que estou dizendo. No dia 20/4/2005, Lula discursou em um congresso de trabalhadores: "É importante saber o que nós éramos há três anos e o que nós somos agora... O que aconteceu no Brasil... o que aconteceu no Equador, o que aconteceu na Venezuela, que foi já um pouco mais para frente (sic), e o que pode acontecer na evolução política de outros países do continente...". No dia 29/9/2005, em outro discurso, este no Palácio do Planalto, disparou: "Eu não sei se a América Latina teve um presidente com as experiências democráticas colocadas em prática na Venezuela. Um presidente que ganha as eleições, faz uma Constituição e propõe um referendo para ele mesmo; faz um referendo e ganha as eleições outra vez. Ninguém pode acusar aquele país de não ter democracia. Poder-se-ia até dizer que tem excesso". No dia 7/6/2007, numa entrevista a esta Folha, na embaixada do Brasil em Berlim, Lula disse: "O fato de ele (Chávez) não renovar a concessão (da RCTV) é tão democrático quanto dar. Não sei por que a diferença entre dois atos democráticos". E no dia 14/11/2007, em outra entrevista, no Itamaraty, ele reafirmou: "Podem criticar o Chávez por qualquer outra coisa. Inventem uma coisa para criticar. Agora, por falta de democracia na Venezuela, não é". Seria preciso dizer mais? Muita atenção, porém: Lula é um "venezuelano" que quer, mas não pode se comportar como Chávez. Se tentasse "chavecar" por aqui, o problema estaria resolvido. Nossa sociedade, bem mais complexa, rejeitaria de pronto o tiranete. Lula é o Chávez possível nas condições do Brasil.

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Dizendo de outro modo, o Brasil não é uma ditadura - nem mesmo uma protoditadura (como a Venezuela) -, mas uma democracia formal parasitada por um regime neopopulista manipulador, em que um grupo privado que ascendeu ao poder pelo voto, com base na alta popularidade de seu líder, tenta permanecer no poder sem violar abertamente a legalidade democrática, mas pervertendo a política e degenerando as instituições para manipular a opinião pública e as leis a seu favor. Não ter entendido a natureza desse governo e o caráter do seu líder foi a desgraça das nossas oposições. Até Fernando Henrique, o mais lúcido dos oposicionistas partidários, alimentou a estranha crença de que "o conteúdo simbólico da sua liderança (de Lula) é um patrimônio do país que não deve ser destruído". Pois é. Não destruíram mesmo. Preservaram, blindando Lula, infelizmente, contra a democracia.

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EEsssseess ccaarraass ssããoo bbaannddiiddooss??

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (04/04/08) A TRAMA se desenrola no meio político, dominado por uma turma da pesada, cujo chefe mafioso é muito bem-visto pela população em virtude de suas obras de caridade. Mas eis que um investigador de polícia descobre evidências de um crime cometido pelos poderosos. No início, ninguém acredita. Ele é até punido pelo chefe. Mas insiste em puxar o fio. A história vai parar nas mãos de um jornalista corajoso que publica a matéria. Então a coisa toda desmorona. E a população, afinal, enxerga a verdade: os caras eram bandidos. Há dezenas de filmes assim, exatamente com o mesmo argumento. São quase um lugar-comum em Hollywood. Mas não estamos assistindo a um desses batidos filmes policiais americanos. Estamos no Brasil de 2008, em plena "Era Lula", em que de nada adianta a publicação -nem de uma, nem de cem evidências- de crimes cometidos pelo governo. Todavia, aqui seria possível concluir que os caras são bandidos? No nosso mundo real, a turma da pesada é do PT. Mas, curiosamente, o PT tem menos bandidos -no sentido criminal do termo- do que a maioria dos outros partidos brasileiros. Entretanto, no sentido social da palavra -aquele sentido a que se referia Eric Hobsbawm no interessante ensaio que publicou no final dos anos 70 sobre os "Rebeldes Primitivos"-, não há como fazer nenhuma comparação: o PT é um partido de bandidos. Calma lá, litigantes de má-fé! Com isso não quero dizer que a maioria, uma parte ou todos os filiados e militantes do PT são bandidos (no sentido criminal do termo). Quero dizer que o PT é presidido por uma lógica ou uma racionalidade própria dos bandos. E que não é à toa que tenha se formado a partir do movimento sindical.

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Sim, o sindicalismo, sobretudo se partidarizado, é uma forma branda de banditismo: subordina o sentido público ao interesse particular de uma corporação e não mede conseqüências para prover a satisfação de um grupo privado em detrimento do bem-estar geral. É exatamente o que o PT, como bando, faz: privatiza partidariamente a esfera pública. Na nossa política, claro, há de tudo, inclusive bandidos comuns (embora sejam minoria), bandos locais ou regionais (ou "caciquias", às vezes coronelistas, montadas em torno de pessoas e famílias) e bandos políticos (formados com base em uma causa). Os dois primeiros tipos são endêmicos na velha política brasileira. O terceiro só emergiu, em toda sua plenitude, com a vitória eleitoral de Lula. A democracia convive com todas essas formas de banditismo, da criminal à social, ora fazendo valer a lei, ora gerando consensos sobre o que é ou não é socialmente aceitável. O problema existe quando as coisas se misturam e um bando social, chegando ao poder, se alia a bandidos comuns (no sentido criminal) e às "caciquias" tradicionais clientelistas, instaurando outro tipo de banditismo: o de Estado, que tanto pode cometer crimes no varejo (sob o perigosíssimo manto da impunidade) quanto perverter a política e degenerar as instituições no atacado. É a via Putin. Contra essa eventualidade, porém, a democracia não tem proteção eficaz. Não se retira o direito do PT de constituir-se como um bando social a partir de uma causa, mesmo que essa causa seja -na verdade- apenas ficar no poder o maior tempo possível. O problema é que, ao montar aparatos ilegais de poder na própria Presidência da República, esse pessoal "atravessou o corguinho" (como se diz lá no interior de Minas). Para ficar só nos megaescândalos, o caso Waldomiro-Dirceu foi a primeira evidência. O mensalão, a segunda. A quebra do sigilo do caseiro Francenildo, a terceira. A produção do falso dossiê contra Serra, urdida por homens da cozinha do presidente, a quarta. E agora

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veio a quinta: a investigação, sem nenhuma denúncia ou fato determinado, dos gastos oficiais com Ruth e Fernando Henrique Cardoso para produzir um novo dossiê com o qual o governo pretendia chantagear a oposição ou impedir que ela requeresse legalmente a investigação das -aqui, sim, fartas- evidências de uso criminoso dos cartões corporativos da Presidência por familiares ou auxiliares diretos de Lula. Há ou não há um padrão? E que padrão pode ser esse senão o do bando que não respeita limites quando estão em jogo seus interesses? As oposições permitiram que chegássemos a esse ponto e que se instalasse o banditismo de Estado no Brasil. Foram deixando a coisa avançar, imaginando que os caras eram "players" normais do jogo político. Como se vê, não são.

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RRuutthh

Augusto de Franco, Folha de São Paulo (26/06/08) A HISTÓRIA não anda para a frente. Aliás, ela não vai para lugar nenhum. Nós é que vamos. Ou não vamos. No final de 1999, o responsável pelas relações do Banco Mundial com a sociedade civil, freqüentador assíduo de nossas atividades, me dizia, num restaurante no aeroporto do Galeão, que Ruth fazia um trabalho extraordinário, mas não seria bem compreendida porque estava dez anos à frente da sua época. O que diria ele agora, quando depois de Ruth fomos parar em algum lugar do passado, 20 anos atrás? A morte não tem sentido. A menos aquele que os vivos lhe emprestamos. É uma característica dessa qualidade da alma que chamamos humanidade buscar na morte um sentido para a vida. Eis a origem do elogio fúnebre. No passamento de Ruth vejo o sentido daquelas coisas que não quero que passem: o apego à força da verdade e a rejeição a qualquer forma de manipulação do outro, sobretudo as formas hierárquicas de poder que exigem obediência. Em quase uma década de convivência, Ruth jamais nos disse, a nós, que trabalhávamos com ela como conselheiros da Comunidade Solidária, o que deveríamos fazer. Nunca tomou uma decisão em assuntos nos quais estivéssemos envolvidos sem antes nos consultar. Recusava o mando, o controle que transforma colaboradores em objetos ou em instrumentos de qualquer propósito pessoal ou coletivo de que não compartilhassem como pares, sempre como iguais. Curiosamente, era fácil irritá-la. Bastava elogiá-la para tentar captar-lhe a confiança com vistas a obter dela algum favor ou benefício. Bastava, aliás, chamá-la de primeira-dama. Se começasse assim, o interlocutor já podia desistir do seu intento. Nossa professora o desqualificaria antes mesmo da prova. Por sua banca pessoal não passavam os interesseiros.

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Ruth conseguia promover essa unidade, estranha para muitos nos tempos que correm, entre vida pessoal e vida política. Embora nunca tenha misturado a esfera privada com a pública, era sempre a mesma pessoa, estivesse numa recepção palaciana a um chefe de Estado, conversando com agricultores no São Francisco ou almoçando conosco, seus parceiros, em um restaurante em São Paulo. Mas tinha opinião, ah!, isso ela tinha. Não acreditava no velho sistema político que agora se derrama em exaltações póstumas. Durante os oito anos da Comunidade Solidária, jamais vi na sua agenda aqueles célebres atendimentos clientelistas a parlamentares, nem mesmo aos do partido do marido. Sei bem, pois minha sala ficava ao lado da sua. Seu comportamento inédito causava irritação, é óbvio, mas a serenidade e a firmeza moral que emanavam de seus gestos e atitudes desestimulavam qualquer protesto. E ela em privado ria à solta quando vinham lhe dizer que um deputado, senador ou dirigente partidário tentou apadrinhar ou aparelhar algumas das ações que promovíamos. Ruth era suave, tinha aquele poder "doce" que os velhos alquimistas percebiam na natureza, mas era também muito crítica, inclusive em relação ao governo Fernando Henrique, ao qual, aliás, nunca pertenceu formalmente. Quando dizíamos isso, as pessoas não acreditavam: mas como? Ela não é a mulher do presidente? Como se o fato de ser esposa do governante a tornasse também uma funcionária do governo: o que não era, nem nunca auferiu nenhuma remuneração por seu trabalho. Fosse diferente a relação que nossa cultura ocidental estabeleceu com a morte, seria melhor reconhecer que a experiência humana que presenciamos sob o nome de Ruth Corrêa Leite Cardoso foi uma vida realizada e emprestar-lhe um sentido para a caminhada que continuamos do que lamentar o seu desaparecimento. Claro, todos nós sentimos a perda, que, a mim, em particular, me afeta profundamente, depois de dez anos de trabalho conjunto, muitos diálogos e convivência praticamente cotidiana. Dez anos não

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são dez dias. A gente sofre porque é como se perdesse uma parte do próprio corpo. Mas Ruth cumpriu bem seu tempo nesta terra, com elegância e, mais do que isso, com sublimidade. Sofreu, sim, nos últimos anos, ao assistir ao derruimento sistemático das bases de um novo padrão de relação entre Estado e sociedade que tanto se esforçou por construir. Passou-se a tempo de não sofrer mais. Foi poupada do que ainda virá. Pobres de nós, que teremos de agüentar sozinhos, por muito tempo ainda, todos os efeitos associados à volta regressiva de um passado do qual ela quis se desvencilhar.

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LLuullaa--aaqquuii,, EEvvoo--aallii,, OObbaammaa--lláá

Augusto de Franco, Folha de S. Paulo (17/11/08) EM PARTE por concepção, em parte por esperteza, Lula resolveu contrair a obamania. Nas vésperas da eleição americana, ele declarou: "da mesma forma que o Brasil elegeu um metalúrgico, a Bolívia, um índio, a Venezuela, o Chávez, e o Paraguai, um bispo, seria um ganho extraordinário se a maior economia do mundo elegesse um negro". É ruim. Salva-se nessa lista de admirações só o próprio Obama. Os outros são ou serão protoditadores ou ditadores, com exceção de Lula, que é apenas um líder neopopulista manipulador. É ruim também. Mas é menos pior. A esperteza de Lula é usar a obamania para legitimar a lulomania. Ou a evomania. Ou a chavezmania. São manias de não gostar da democracia. Isso é tão óbvio que não pode estar em discussão. Se Lula gostasse de democracia, não teria declarado tantas vezes que Chávez "peca por excesso de democracia". Para entender, é preciso ver que Lula não quer ser chefe de governo. Nunca quis. Ele quer ser condutor de rebanhos, guia de povos. Quer palanques extraordinários, não a ordinária rotina das tarefas administrativas. Frans de Waal já nos cansa há anos com suposições sobre uma "Chimpanzee Politics". Ele está redondamente enganado, é claro. Mas suas hipóteses vêm a calhar para a comparação seguinte: quanto mais você se parece com um chimpanzé, mais precisa de líderes extraordinários, machos alfa e outros condutores de rebanho.

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Na democracia, cada um que pense com sua cabeça, faça suas escolhas e ande com as próprias pernas. Quem precisa ser conduzido como rebanho é gado, não gente. Quem gosta de conduzir o povo pela mão são os sociopatas (e genocidas, como Mao, o "guia genial dos povos") e os vigaristas (como certos pastores e palanqueiros). A democracia não precisa de líderes extraordinários, superhomens, caudilhos carismáticos que eletrizam as multidões e arrebatam as massas em nome de um porvir radiante. A democracia, como dizia John Dewey, é o regime das pessoas comuns; sim, das ordinárias, não das extraordinárias. Mas Lula, significativamente, tem especial predileção pela palavra: assim como a vitória de Obama seria "extraordinária", aquele seu primeiro ministério, detonado pelas suspeitas e acusações formais de crime, roubo e formação de quadrilha, ele também o qualificava como "extraordinário". Quem precisa de coisas extraordinárias, mitos fundantes (líderes ungidos, predestinados a cumprir um papel redentor), utopias fantásticas (reinos milenares de seres superiores ou regimes universais de abundância) são autocracias, não democracias. Quase dois terços dos americanos não foram votar no mulato Obama. Dos que foram votar, quase a metade preferiu o macho branco caucasiano McCain. Obama, com superávits de melanina em relação a McCain, não por isso vai conduzir as massas para qualquer paraíso. E nem vai governar o tempo todo lembrando a sua condição extraordinária de negro. Se fizesse isso, seria um negro de araque. Já Evo é um índio de araque, nesse particular, igualzinho a Lula, um metalúrgico de araque. Sim, ele o foi, mas não é mais. Há muito tempo. Aliás, já passou mais tempo como profissional do palanque, sustentado "sem produzir um botão" (a expressão é dele) por dinheiro partidário e de financiadores privados, do que como metalúrgico de chão de fábrica. Quem pode viver disso não é a política (democrática), mas aquela ideologia sociológica que pretendia encontrar na extração social

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alguma razão para explicar e legitimar o comportamento do agente. O lugar de onde ele fala não seria então o lugar que ocupa quando fala, senão um lugar pretérito, originário, abstrato, capaz de lhe condicionar a trajetória e absolvê-lo de todos os erros passados e futuros. A empulhação se generalizou, em parte baseada na visão equivocada de que a origem de classe ou de raça ou cor tem alguma coisa a ver com a democracia. Não tem, pelo contrário: o reforço dessas condições extrapolíticas, conquanto possa ter um efeito simbólico importante, conspira contra a política (democrática). Uma pessoa deve ser escolhida pelas suas opiniões, não por sua extração, origem, identificação antropológica. Lula-aqui, Evo-ali e Obama-lá são movimentos regressivos. Obama não tem culpa. Ao contrário de Lula e de Evo, ele está convertido à democracia. Mas a obamania, assim como a lulomania e a evomania, aborrece a democracia.

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OO bbuurraaccoo nneeggrroo ddaa mmaanniippuullaadduurraa

Augusto de Franco, Folha de S. Paulo (13/08/09) A DEMOCRACIA surgiu na velha Grécia como um movimento de desconstituição de autocracia. O motivo fundante foi evitar a volta de tiranias como a dos psistrátidas. Para tanto, foram criados procedimentos e mecanismos que, mal ou bem, cumpriram sua função nos cem primeiros anos da experiência. Reinventado pelos modernos, o software democrático manteve ativa tal funcionalidade. De sorte que, nos últimos dois séculos, as democracias floresceram, e as ditaduras feneceram. Péricles e seu "think tank" ateniense (o núcleo do "partido" democrático ao qual pertenciam Protágoras e Aspásia) já haviam se dado conta em meados do século 5º antes da era comum que a democracia nascia com um defeito genético: ela não tinha proteção eficaz contra o discurso inverídico. E ainda não tem: contra um Címon jactante ou contra um Sarney resiliente (na mentira), pouco podem as regras da democracia. Não se deram conta, porém, os fundadores, de que a democracia tinha outro gene defeituoso, que só foi ativado recentemente, após a última onda democratizante do século 20, que sepultou as ditaduras latino-americanas (com exceção de Cuba) e os regimes autocráticos da ex-URSS e do Leste Europeu. Esse gene recessivo revelou-se como um erro de projeto: a democracia também não tem proteção eficaz contra o uso de procedimentos democráticos (como as eleições) contra ela própria. O primeiro pensador democrático a antever os efeitos devastadores do uso da democracia contra a democracia foi John Dewey, que percebeu as armadilhas da sua instrumentalização a serviço da conquista do poder de Estado. E o último a teorizar sobre isso com consistência foi, sem dúvida, Ralf Dahrendorf, que constatou que

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apenas a eletividade não é um critério capaz de garantir a legitimidade dos regimes tidos por democráticos. O fato é que uma nova onda autocratizante começou a se avolumar após o breve sopro democrático dos anos 80 e 90. Agora as ameaças à democracia não vêm mais das ditaduras clássicas, em que grupos autoritários empalmavam o poder por golpes de força. Não, agora elas vêm de governos eleitos por larga maioria que, depois, ocupam e pervertem as instituições da democracia para controlá-las. São governos que foram, sim, eleitos democraticamente, mas para conseguir um aval para não governar democraticamente. Suas primeiras providências são perseguir os meios de comunicação e abolir a rotatividade democrática. São as protoditaduras, como as que se instalaram na Federação Russa, na Venezuela, na Bolívia, no Equador, na Nicarágua. E a inclusão virtual do Paraguai, de Honduras e de El Salvador nessa lista evoca o "efeito dominó". Pode-se dizer que, com exceção da Rússia, a grande "autocracia do petróleo e do gás", são, todos eles, Estados-nações inexpressivos. É verdade, mas o problema é que essas protoditaduras são apoiadas politicamente por uma retaguarda importante ("mais civilizada", nem que seja por força da maior complexidade das suas sociedades), composta por democracias formais parasitadas por governos neopopulistas manipuladores, como Brasil e Argentina. Estas representam um fenômeno lateral na nova onda autocratizante, para o qual a análise política ainda não cunhou um termo: na falta dele, caberia designá-las, com perdão do neologismo, de "manipuladuras". Menos mal para nós que Lula não seja um Putin (agente de um "partido" de assassinos, a KGB, sob o silêncio cúmplice do mundo) ou um Chávez (promotor de uma revolução bolivariana, inclusive financiador de ações de luta armada, também sob o silêncio irresponsável do mundo). Péssimo para nós que nosso presidente continue prestando apoio político aos próceres do bolivarianismo e a seus pupilos (como agora

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a esse caudilho Zelaya). Se os governantes de um país importante como o Brasil podem entrar na nova onda autocratizante, mesmo que na sua retaguarda política - e ninguém diz nada, porque, convenhamos, oposição de verdade não há por aqui -, estamos correndo sério risco: nós e as demais sociedades latino-americanas que ainda não tombaram nesse "efeito dominó". Será apenas uma questão de tempo a degeneração completa das nossas instituições - que, aliás, já começou. Hoje o Senado, a Petrobras e órgãos de Estado como as agências reguladoras e o Itamaraty, os fundos de pensão, parte das ONGs. Amanhã, quem sabe, outros níveis de governo, demais Legislativos, Ministério Público e Judiciário. Vai tudo ser engolido pelo buraco negro da manipuladura.

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Augusto de Franco, o único artigo não publicado (11/09/10) Consta que, em certa época, 99% dos albaneses achavam o governo do ditador Enver Hoxha ótimo ou bom. Saddam Hussein, nos seus tempos de glória, alcançou 96% de aprovação dos iraquianos. Diz-se que Fujimori, quando deu um golpe em 1992, dissolvendo o congresso e intervindo no judiciário, chegou a atingir 80% de popularidade no Peru. Na lista das duas dezenas de ditadores remanescentes, de Lukashenko (na Bielorrússia) a José Eduardo (em Angola), de Kim Jong Il (na Coréia) a Gaddafi (na Líbia), dos irmãos Castro (em Cuba) a Mugabe (no Zimbabué) passando por El Bashir (no Sudão), temos um verdadeiro festival de campeões de popularidade. Tenham ou não ascendido ao poder pelo voto, esses autocratas seriam reeleitos sem dificuldade. A conclusão é óbvia: democracia não é voto, nem índice de popularidade. Qualquer pessoa com dois neurônios percebe isso. Menos nossas oposições, é claro. Há exatos 5 anos, em setembro de 2005, a porcentagem dos que consideravam o governo Lula bom ou ótimo era de 35,8%. Ficara a todos evidente que o mensalão tinha sido tramado e operado a partir do Planalto. E todos sabiam que Lula era – sempre foi – o chefe dessa gente (ele veio com a desculpa de que foi traído, mas até hoje não pode nos dizer quem o “traiu”). Mas as oposições ficaram muito contrariadas com isso. Sobretudo as personalidades tucanas – sempre tão atentas às aparências – preocupadas em não passar uma péssima imagem do país no exterior, montaram uma formidável operação de resgate para salvá-lo do naufrágio. E conseguiram. Hoje Lula é aprovado por 80% da população brasileira. Querem saber como isso foi possível? É simples: os maiorais do PSDB aconselharam os oposicionistas a atuar como bombeiros. O erro foi

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fatal. Como diz o ditado, “o que não mata engorda”. Nosso supremo manipulador, dali para frente, não parou mais de estufar, a barriga e as pretensões despóticas. Operando a partir do Estado e abrigados sob as asas de um líder com estratosféricos índices de popularidade, proliferaram no Brasil lulista delinqüentes políticos de todo tipo, inclusive estes, agora na berlinda, que violam sigilos para fazer dossiês com o objetivo de desmoralizar seus adversários e prorrogar-se no poder. É uma pequena mostra do que virá. Daqui a pouco, o risco de escrever artigos como este poderá crescer a ponto de dissuadir qualquer oposição. E não haverá a quem apelar! Em breve Lula – agora conquistando seu terceiro mandato por interposta pessoa – terá nomeado a quase totalidade dos membros dos tribunais superiores, visando convertê-los em defensorias do aparato partidário-governamental. Já hoje o presidente da República, desonrando o cargo para o qual foi reeleito, abandona a sua posição de magistrado para se engajar na guerra eleitoral da forma mais rasteira e vil, transformando vítimas em culpados, levantando solertes suspeições, falsificando a opinião pública. E tão forte se sente que não está nem preocupado em aparentar compaixão pelas vítimas do esquema mafioso que se estruturou no seu governo. Como se fosse o chefe de uma gangue de rua trata os adversários com deboche e escárnio, espicaça, pisoteia e dança sobre os presuntivos cadáveres políticos oposicionistas. Nada disso, por certo, é novidade. Mas as oposições foram deixando, por omissão, leniência e conivência, que se configurasse um banditismo de Estado no Brasil. Agora não lhes resta senão colher a amarga lição da história. Sim, esta geração de oposicionistas de alma pequena passará como a dos interesseiros, dos arrivistas, dos que não têm vergonha de abaixar a cabeça e vergar a espinha para comer as migalhas que ainda caem das urnas. O eleitoralismo também pode ser uma droga pesada. Impregnados dela, os tucanos confundiram democracia com eleição e legitimidade com popularidade. Por isso blindaram Lula. Por isso abriram mão de lhe fazer oposição, com medo de desagradar seus milhões de eleitores. Ora, tal concepção vestiu como uma luva a manipuladura

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lulista. O PSDB foi a escada que o PT precisava para pular o muro do Estado de direito. E para implantar seu projeto de uma hegemonia de longa duração sobre a sociedade brasileira. A saída? Não há no curto prazo. Tem que começar tudo de novo, em outras bases. Até 2022. Augusto de Franco foi parceiro de Ruth Cardoso no Comitê Executivo

do Conselho da Comunidade Solidária de 1995 a 2002. Foi membro

da direção nacional do Partido dos Trabalhadores de 1982 a 1993 e

em 1994 abandonou a política partidária para sempre.