meu mostro de estimação - dick king smith

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Apresenta:

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CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de

Livros, RJ.

King-Smith, Dick

K64m Meu monstro de estimação / Dick King-Smith; tradução de 2* ed. Ryta Vinagre. - 2ª ed. - Rio

de Janeiro: Galera Record, 2008.

Tradução de: The water horse ISBN 978-85-01-07933-6

1. Monstros marinhos - Literatura juvenil. 2. Novela juvenil inglesa. I. Vinagre, Ryta. II.

Título.

CDD - 028.5

07-4112 CDU- 087.5

Título original inglês: THE WATER HORSE

Copyright © 1990 by Fox Busters Ltd.

Motion Picture Photography © 2007 Revolution Studios Distribution Company, LLC,

Waiden Media, LLC and Holding Pictures Distribution Co., LLC. Motion Picture

Artwork © 2007 Columbia Picture Industries, Inc. All Rights Reserved.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte,

através de quaisquer meios.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil

adquiridos pela EDITORA RECORD LTDA.

Rua Argentina 171 - Rio de Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000 que se reserva a

propriedade literária desta tradução

Impresso no Brasil ISBN 978-85-01-07933-6

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL

Caixa Postal 23.052

Rio de Janeiro, RJ - 20922-970

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S U M Á R I O

Um ovo velho de peixe ............................................................................................... 5

É um monstro ............................................................................................................ 10

Crusoé ......................................................................................................................... 14

A última sardinha ...................................................................................................... 18

No meio de inimigos ................................................................................................. 22

Bem-vindo ao lar, marujo ......................................................................................... 27

Meio domesticado demais ........................................................................................ 32

O primeiro aniversário ............................................................................................. 35

Um plano temerário ................................................................................................. 42

Um passeio de caminhão .......................................................................................... 45

De um jornal da cidade ............................................................................................ 50

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1

Um ovo velho de peixe

FOI KIRSTIE que encontrou. Estava logo acima da linha da maré alta, um objeto

no formato de um pacote meio quadrado, cor de alga-marinha e um filete longo

saindo de cada um dos quatro cantos.

Na verdade, tinha exatamente o formato de um ovo de arraia, ou de uma

pequena cápsula calosa de ovo de cação que em geral iam parar na praia. Mas esta

era do tamanho de uma lata grande de biscoito!

— Olha o que eu achei! — gritou Kirstie. — Rápido, venham ver!

Nas primeiras horas da madrugada de 26 de março de 1930, uma forte tempestade

atingiu a costa oeste da Escócia. A enorme massa de água chicoteou o sopé do

penhasco e a tempestade feroz castigou sua face, pegando em suas mandíbulas

uma casinha branca que ficava no alto.

A casa tremeu e sacudiu nas presas do vento e Kirstie, acordando com um

medo repentino, teve certeza de que o telhado ia voar.

O barulho da tempestade era medonho. Angus deve estar apavorado, pensou

Kirstie, e pulou da cama, correndo para o quarto do irmão mais novo, ao lado do

dela. A mãe chegou no mesmo momento levando uma lamparina e, em sua luz,

elas puderam ver que Angus dormia tranqüilamente, como o bebê que tinha sido

alguns anos antes. Do lado de fora, o trovão golpeava e os relâmpagos faiscavam,

o vento rugia e a chuva se derramava. Angus ressonava.

— Volte para a cama, Kirstie — disse a mãe. — Vou ficar aqui um tempo,

caso ele acorde.

— E o Resmunga? — disse Kirstie. — Ele está bem? Resmunga era o pai da

mãe dela, que morava

com eles. Quando era muito pequena, Kirstie um dia ouviu a mãe dizer a ele com

raiva: "O tempo todo você só resmunga, resmunga", então ela pensou que esse era

o nome dele. Combinava bem com o avô. Ele apareceu pisando duro pelo

corredor, um velho grandalhão com um bigode grosso e caído.

— Não consegui pregar olho! — grunhiu Resmunga para a filha e a neta,

como se fosse culpa delas. — Que clima terrível! Que Deus ajude os marinheiros

numa noite dessas!

Kirstie e a mãe sorriram uma para a outra porque o pai de Kirstie era

marinheiro, da Marinha Mercante. Mas elas sabiam que naquele momento seu

navio estava em águas tropicais e tranqüilas, bem longe da tempestade frenética

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que atingia o Atlântico naquela noite. Ouviu-se um estalo de trovão tão alto e tão

perto que Angus acordou e se sentou na cama.

— Eu ouvi um barulho — disse ele num tom de voz inalterado.

— É um temporal, Angus — disse Kirstie. — E dos grandes.

— Vai derrubar a casa daqui a um minuto, não duvido nada — disse

Resmunga.

Por um breve instante, o vento diminuiu um pouco e todos puderam ouvir

com clareza o bater das ondas na praia logo abaixo. O que o mar estava

trazendo?, perguntou-se Kirstie. O que encontrariam na praia no dia seguinte?

Todos eles adoravam catar coisas na praia, até o Resmunga, embora fingisse não

gostar, e uma tempestade dessas traria um monte de madeira para eles

recolherem.

— Voltem a dormir, todos vocês — disse a mãe

— e de manhã todos vamos descer para ver o que podemos encontrar.

— O que quer dizer... de manhã? — disse Resmunga. — Já é de manhã. Eu

não vou conseguir apagar de novo, pode ter certeza.

— Devia contar uns carneirinhos, Resmunga

— disse Angus. — É o que eu faço.

— Você só sabe contar até dez — disse Kirstie.

— Eu sei. Quando chego a dez, começo tudo de novo — disse Angus com

segurança, deitando-se e fechando os olhos.

De volta à cama, Kirstie ficou deitada ouvindo o rugido da tempestade. Sentia

que estava tão acordada quanto podia estar. E depois — muito de repente, ao que

parecia — era plena luz do dia.

Kirstie estava empolgada demais para comer muita coisa no café-da-manhã. O

pior da tempestade já havia passado, o vento diminuíra um pouco e a mãe havia

prometido que eles desceriam até a praia assim que terminassem de tomar o café

e lavassem a louça. A idéia do que poderia ter sido lançado na praia empolgava

Kirstie. Catar coisas na praia era tão divertido. Nunca se sabia o que se poderia

encontrar. Sempre havia muitas algas e criaturas como estrelas-do-mar, medusas

e ouriços-do-mar, e um monte de conchas — búzios, moluscos, cauri e

lingüeirão. E havia lixo também, como garrafas vazias (talvez uma delas

contivesse a mensagem de um náufrago), e é claro que havia madeira: caixas e en-

gradados, tábuas e mastros (certa vez, até um par de remos), e os formatos

estranhos e retorcidos de galhos e às vezes grandes troncos de árvores, gastos e

macios da longa viagem que fizeram, vindos de Deus sabe onde. Com uma

tempestade como a da noite passada, quem sabe o que poderiam encontrar!

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— Coma, Kirstie — pediu a mãe.

Angus nunca precisava ouvir essa ordem. Para ele, a hora das refeições era

hora de comer, e não de falar. Desde o momento em que se sentava à mesa até

levantar-se de novo, ele só abria a boca para entupi-la de comida.

— O que acha que vamos encontrar, Angus? — perguntou Kirstie. Angus

encarou-a, as mandíbulas mastigando ritmadamente. E não respondeu.

— Não está animado? — perguntou Kirstie. Angus assentiu placidamente.

— Meu ovo não está cozido direito — disse Resmunga.

Por fim, desceram a trilha do penhasco, Kirstie na frente, levando um pequeno

saco para colocar as coisas, a mãe atrás, segurando a mão de Angus, e Resmunga

pisando duro atrás deles com um grande saco e um pedaço de corda para prender

feixes de madeira. O mar ainda estava revolto e as ondas na arrebentação eram

enormes, mas agora estavam distantes, pois a maré tinha baixado. Como sempre,

a praia de seixos estava vazia. As únicas criaturas vivas ali eram duas gaivotas que

pegavam alguma coisa que encalhara um pouco acima da linha da maré alta. Elas

voaram quando Kirstie correu até lá.

— Vem ver! — gritou ela. — Rápido!

— O que é? — gritou a mãe.

— Não sei. Parece um ovo de arraia gigante! Angus correu o mais rápido que

suas pernas curtas permitiam. Olhou criticamente para o objeto.

As gaivotas não devem ter ficado muito tempo por ali, porque não parecia

danificado.

— Não sabia que existiam arraias gigantes — disse Angus.

— Nenhum cação poderia produzir uma coisa assim — disse a mãe quando

ela e Resmunga chegaram. — E deve ter 20 vezes o tamanho de um ovo de arraia

comum. O que acha, pai? Será que veio de uma criatura enorme, como um

tubarão gigante?

— Não pergunte a mim — disse Resmunga. — Estamos aqui para recolher

lenha, então vamos acabar com isso. Esse vento frio está penetrando por meus

ossos. — Ele cutucou a coisa com o pé. — O que quer que seja, não tem utilidade

para nós — disse e se afastou, com a mãe atrás.

— Ele se mexeu! — disse Kirstie.

— É claro que sim — disse Angus. — O Resmunga chutou.

— Não, quero dizer, depois que ele chutou... Eu vi a parte de fora, a pele dele

se mexeu, tenho quase certeza disso. Meio que tremeu.

Angus espiou o ovo de arraia gigante.

— Agora não está tremendo — disse ele. — Deve estar morto. Ele deve ter

matado. — Olhou para a irmã e viu que ela ficou triste com essa idéia. — É só um

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ovo velho de peixe — continuou. — Ovos não sentem nada. Que nem aqueles

que a mamãe cozinha para o café-da-manhã, eles não sentem coisa alguma.

— Eles não sentem coisa nenhuma — disse Kirstie.

Angus suspirou.

— Foi o que eu disse — respondeu ele. — Às vezes eu me sinto muito mais

velho que você.

— Bom, você não é — disse Kirstie com aspereza. — Você é três anos mais

novo. Segura minha sacola aberta para mim. — Ela se abaixou e pegou a coisa.

Era bem pesada, como uma grande lata cheia de biscoitos.

— Vai levar isso para casa? — disse Angus.

— Vou.

— Onde vai colocar?

— Num balde com água. Só para o caso de estar vivo. Pode chocar... nunca se

sabe.

— A mamãe não vai gostar.

— A mamãe não vai saber.

— Ela vai perguntar o que está na sua sacola. Kirstie pensou rapidamente.

— Algas marinhas — disse ela. — O Resmunga coloca na horta para adubar.

— E por cima da coisa ela colocou alguns ramos de algas.

Depois de todos voltarem subindo a trilha do penhasco — Resmunga

reclamando em voz alta do peso do feixe de madeira que carregava —, as crianças

foram juntas para a horta, um pequeno terreno no lado protegido da casinha

branca que ficava no alto do penhasco. Ali seu avô cultivava vegetais,

resmungando interminavelmente sobre a pobreza do solo, a dureza do clima e os

danos provocados a suas plantas por aves, lesmas e lagartas.

Kirstie pôs a alga marinha na composteira, encheu de água um balde grande e

colocou o ovo de arraia gigante dentro dele. Era grande demais para afundar e

dois de seus quatro filetes apontaram miseravelmente acima da superfície.

— É grande demais — disse Angus.

— Estou vendo, seu bobo — disse Kirstie. — Mas pelo menos vai evitar que

seque.

— E daí se secar?

— A gente não sabe se está morto.

— Bom, logo vai estar.

— Por quê? Angus suspirou.

— Veio do mar, não veio? Essa água é da torneira. Precisa de água salgada.

— Angus! — gritou Kirstie. Ela lhe deu um abraço. — Você é um gênio! —

disse ela.

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— Eu sei.

Certificando-se que a mãe estava em outro lugar, Kirstie pegou o pote de sal

da despensa e colocou uma porção generosa no balde. Olhou cuidadosamente

para os filetes esticados para fora, mas eles não se mexeram.

— Precisa de um lugar maior — disse ela. — Já sei! A banheira!

O resto do dia se arrastou, mas no final a sorte estava ao lado dos dois. A mãe já

havia tomado um banho depois de seu trabalho da manhã. Resmunga, ao ser

indagado, disse que não, ele não ia tomar banho, pois banho demais era ruim

para a pele dele e de qualquer forma a água sempre estava quente demais ou fria

demais. Então só restavam as crianças. A mãe deu um banho em Angus na hora

de dormir e deixou a água para Kirstie.

— Ele não estava muito sujo — disse ela, e levou Angus para baixo para secá-

lo perto da lareira, onde

Resmunga estava sentado ouvindo o rádio (ligado no volume máximo, porque ele

era bem surdo), resmungando que o programa era uma porcaria.

Kirstie agiu com rapidez.

Primeiro se livrou da água do banho de Angus. Depois colocou o tampão no

ralo de novo, abriu a água fria, desceu na ponta dos pés e foi até o jardim. Alguns

minutos depois estava de volta ao banheiro, o ovo de arraia gigante nas mãos, o

pote de sal enfiado debaixo do braço. Baixou a carga delicadamente na água,

acrescentou um pouco de água quente para dar sorte, colocou todo o conteúdo

do pote de sal, fechou as torneiras e saiu do banheiro, fechando a porta.

Kirstie acordou uma vez no meio da noite e não pôde deixar de abrir a porta

do banheiro e dar uma espiada, mas a coisa só estava flutuando, imóvel.

— Sua idiota — disse a si mesma enquanto voltava para dormir. — Deve ser

só um pedaço de alga marinha, só isso. A primeira coisa que vou fazer de manhã,

antes de todo mundo acordar, é levar esse negócio lá para fora e jogar na

composteira do Resmunga.

De manhã bem cedo, Kirstie foi em silêncio até o banheiro. Tinha acabado de

tocar na maçaneta quando pensou ter ouvido um barulho. Ela se abaixou e colou

a orelha no buraco da fechadura. Por ali pôde ouvir um pequeno espadanar,

como o de um peixinho rompendo a superfície de um regato, e depois um

barulhinho feito um guincho, uma espécie de cricrilar, como o que um

passarinho faz quando quebra a casca de seu ovo.

Kirstie abriu a porta do banheiro.

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É um monstro

BASTOU UMA OLHADA na banheira para que ela fosse correndo procurar por

Angus. Como sempre, ele acordou do mais profundo dos sonos com a mente

imediatamente sintonizada em seu maior prazer na vida.

— Estou com fome — disse Angus. — O café-da-manhã está pronto?

— Shhhhh! — disse Kirstie. — Não fale tão alto. A gente não deve acordar a

mamãe nem o Resmunga.

— E por que não?

— Porque ele chocou. A coisa. Na banheira.

— Ventos me levem! — disse Angus.

Angus gostava de usar o que pensava serem palavrões horríveis, que o pai,

antes de sua última partida, ensinara-lhe como sendo uma seleção cuidadosa de

pragas de marinheiro.

Eles se esgueiraram até o banheiro e ficaram parados um ao lado do outro,

olhando a água.

— Olha! — disse Kirstie.

— Que tremam minhas bases! — disse Angus. O ovo de arraia gigante estava

no fundo, perto

do buraco do ralo, como um destroço afundado de navio, com um buraco aberto

em um lado, de onde algo havia saído. Na outra ponta da banheira nadava uma

coisa.

Quando Kirstie fosse uma mulher adulta com a sua família, de vez em quando

seus filhos pediriam para ela descrever o que viu na banheira naquela manhã de

março, quando tinha 8 anos de idade.

"Era um bichinho", diria ela, "como eu e seu tio Angus nunca tínhamos visto

na vida. Como ninguém no mundo tinha visto antes, na verdade. Era do tamanho

de um gatinho recém-nascido, mas com um formato um tanto diferente. A

primeira coisa que se percebia nele era a cabeça, que apontava para fora da água

no final de um pescoço bem comprido. Mais do que qualquer coisa, parecia a

cabeça de um cavalo, com ventas largas como as de um cavalo e até algo parecido

com orelhas. Mas seu corpo era mais parecido com o de uma tartaruga-marinha.

Não tinha casco — apenas uma espécie de pele cheia de verrugas como a de um

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sapo, de cor cinza-esverdeada —, mas tinha quatro nadadeiras como uma

tartaruga. E tinha também um rabo como o de um crocodilo. Mas da mesma for-

ma que você em geral olha o rosto das pessoas antes de perceber mais alguma

coisa nelas, a primeira coisa que chamou nossa atenção foi a cabeça. Não

pensamos em um crocodilo nem em um sapo, nem em uma tartaruga. Pensamos

em um cavalinho."

Agora, enquanto Kirstie e Angus observavam, a criatura, que ficara olhando os

dois em silêncio, mergulhou com um "plop", nadou sob a água com golpes fortes

de suas pequenas nadadeiras e voltou à superfície bem diante deles. Olhou para

eles e cricrilou.

— O que ele quer? — perguntou Kirstie. A resposta a essa pergunta era óbvia

para alguém como Angus.

— Comida, é claro — respondeu ele. — Está com fome, como eu.

— O que a gente vai dar para ele? O que você acha que ele vai comer? Nem

sabemos que tipo de animal é esse.

— É um monstro — disse Angus, cheio de confiança. Ele tinha vários livros

ilustrados sobre monstros e, obviamente, esse era um deles.

— Mas os monstros são grandes — argumentou Kirstie.

Angus suspirou.

— Ele não é um monstro monstro — disse ele. — É um bebê.

— Um bebê de monstro marinho! — exclamou Kirstie. — Bom, então, deve

comer peixe, não é? Vamos ter de pescar um para ele.

Um sorriso de felicidade iluminou a cara redonda de Angus.

— Não precisamos — disse ele. — Tem umas sardinhas na despensa. Eu gosto

de sardinha.

Foi difícil abrir a lata de sardinhas, mas Kirstie conseguiu girar o abridor o

suficiente para tirar uma e eles subiram na ponta dos pés de novo, levando-a em

um pires.

— Não dê tudo a ele. Ele pode não gostar — disse Angus com esperança, mas,

quando Kirstie pegou um pedaço de sardinha com os dedos e colocou na

banheira, o animalzinho pegou, engoliu e cricrilou alto, pedindo mais.

— Ele gostou — disse Angus com tristeza. Cortou outro pedaço do peixe, a

mão se movendo automaticamente para a boca, mas Kirstie disse asperamente,

"Angus!", então ele largou o pedaço da sardinha na banheira, contentando-se em

lamber o óleo dos dedos. E, um pedaço depois de outro, eles alimentaram a

criatura com o resto da sardinha. Depois desceram para a despensa novamente

para ver se conseguiam tirar outra da lata.

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Com grande esforço, porque o abridor era muito duro de girar, Kirstie

finalmente conseguira abrir a lata toda quando, de repente, eles ouviram passos

na escada e a mãe entrou na cozinha.

— Kirstie! — disse ela. — O que você está aprontando? Quem disse que podia

se servir de sardinha... E muito antes do café-da-manhã?

— É para o nosso monstro marinho — disse Angus.

— Não seja bobo, Angus! — disse a mãe, num tom rude. — Olha só os seus

dedos, cheios de óleo, seu garotinho guloso! E você, Kirstie tem idade suficiente

para saber que não deve fazer isso!

— A gente não comeu nada, mãe, eu juro — disse Kirstie. — E nós temos

mesmo um monstro marinho, de verdade.

— Agora olhe aqui, Kirstie — disse a mãe.

— O que quer que vocês dois tenham trazido para casa... Uma lagosta, um

caranguejo, o que quer que esteja comendo minhas sardinhas caras... Você vai

levar de volta já, entendeu?

— Ah, não, mãe! — gemeu Kirstie. — Por favor, não.

— Assim que você tomar o café-da-manhã, ele vai voltar para a praia — disse

a mãe com firmeza.

— Aliás onde está?

— Na banheira — disse Angus.

— Na banheira! — gritou a mãe. — Ah, não!

— Ele está feliz lá — disse Angus.

— Bem, o seu avô não vai ficar nem um pouco feliz. Quando desci, vi que ele

andava pelo corredor com a toalha e o kit de barbear. Ele vai ter um ataque!

— Ainda mais se a coisa estiver com fome — disse Angus.

Mas, quando os três chegaram ao banheiro, a porta estava aberta e Resmunga

estava ajoelhado junto à banheira. Com a cabeça careca e o bigode caído, ele

parecia uma morsa prestes a dar um mergulho. Olhava em silêncio o animalzinho

que nadava de um lado para o outro na água, agora brilhante de óleo de sardinha.

Para surpresa de todos, eles viram que Resmunga estava com um sorriso largo na

cara. O Resmunga sorrindo!

— Foi isso que você achou na praia depois da tempestade, não foi, Kirstie?

— Foi, Resmunga. Chocou durante a noite.

— Eu disse a ela para botar sal na água — disse Angus.

— Duvido que vocês precisem se incomodar com isso — disse Resmunga. —

É um bicho que respira ar, estão vendo, como uma foca. Água doce ou salgada,

duvido que isso importe, desde que tenha muito peixe para comer.

— A gente deu uma sardinha a ele — disse Kirstie.

Resmunga ficou de pé.

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— Você tem duas crianças inteligentes aqui — disse ele à mãe. — Como eu

queria ter encontrado uma coisa dessas quando tinha a idade deles. Na época,

havia muitas histórias sobre essa criatura e eu acreditava em todas, mas nunca

pensei que um dia veria uma.

— Você fala como se soubesse o que é — disse a mãe.

— Tenho de saber — disse Resmunga. — Eu não nasci e fui criado na

margem do lago Morar? E não era ali que devia viver uma dessas coisas, naquele

mesmo lago?

— O que ele é, Resmunga? — perguntou Kirstie.

— Antes de eu contar — disse Resmunga —, vocês devem prometer de

coração não contar a ninguém de fora da família. Nem uma palavra a nenhum de

seus amigos da escola. Entenderam?

— Ah, sim — disse Kirstie. — Eu prometo. — Ela levou a mão ao coração.

Angus pôs a mão na altura do estômago, talvez por engano, mas possivelmente

porque era o órgão mais importante para ele.

— Muito bem — disse Resmunga. — Então vou contar a vocês. E um

monstro.

— Eu te disse — falou Angus.

— Sempre houve histórias de gente que viu um bicho desses, às vezes no mar,

com mais freqüência em um lago — disse Resmunga. — Ah, quando eu era

menino, como eu queria ver o kelpie.

— É assim que ele se chama? — disse Kirstie.

— É um dos nomes dele — disse Resmunga —, mas o outro nome é o meu

preferido. A maioria das pessoas o chama de cavalo-do-lago.

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Crusoé

— O CAVALO-DO-LAGO — sussurrou Kirstie.

— Bom, borrascas me afundem! — disse Angus.

— Não me importa o que é — disse a mãe. — Não vai ficar na minha

banheira. Vou preparar o café-da-manhã agora e, depois que vocês comerem, essa

coisa vai embora... Para longe da banheira, para longe desta casa, não me importa

o que vão fazer com ela. Está entendido? — E ela saiu. Kirstie e Angus ficaram tão

desolados que Resmunga pôs um braço em volta de cada um deles.

— Animem-se — disse ele. — Vamos pensar em uma forma de garantir que

ele fique bem.

— Como sabe que é macho? — disse Kirstie.

— Pode ser fêmea.

— É verdade — disse Resmunga. — Não sei como posso dizer. Mas vamos ter

de decidir, de uma forma ou de outra.

— Por quê? — disse Angus.

— Assim podemos dar um nome a ele. Deve ter um nome, se vamos ficar com

ele.

— Ficar com ele? — gritaram as crianças.

— Mas a mamãe acabou de dizer...

— Sua mãe só disse que ele deve sair da casa. "Não me importa o que vão

fazer com ele", foi isso que ela disse. Então, vamos decidir o que queremos fazer e

pronto. Agora vá até meu quarto, Kirstie, e verá uns trocados em cima da

cômoda. Me traga uma moeda... Qualquer moeda serve.

Quando Kirstie voltou com uma moedinha de meio xelim, Resmunga

balançou a moeda no polegar.

— Agora — disse ele —, cara é menino, coroa é menina. Tudo bem? —

Quando as crianças assentiram, ele girou a moeda bem alto no ar. Ela caiu de pé e

rolou para baixo dos pés da banheira. Angus, o menor, arrastou-se de barriga para

pegá-la.

— O que deu? — perguntou Kirstie.

— É menino! — gritou Angus, triunfante.

— Como vamos chamá-lo, então? — perguntou Resmunga.

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Nos minutos seguintes, eles conseguiram sugerir muitos nomes, mas nenhum

teve a aprovação dos outros. Kirstie gostava do tipo de nome que combinaria com

um cavalo ou um pônei de verdade — Estrela, Bonitão, Pé-firme, Fiel e Trovão.

Resmunga preferia nomes de boas famílias escocesas, como Stuart ou Sinclair,

Mackenzie, McGregor e Tullibane. Angus escolheu nomes ferozes e agressivos,

adequados ao monstro enorme que ele pensava que um dia a criatura seria,

nomes como Esmaga-crânio, Superqueixada, Quebra-lombo, Mata-touro e

Sanguinário. Mas eles não entraram em acordo e, quando a mãe gritou que o

café-da-manhã estava pronto, todos se vestiram, deixando o bebê cavalo-do-lago

nadando sem nome na banheira.

O café-da-manhã, no início, foi uma refeição incomumente silenciosa.

Resmunga, Kirstie e Angus estavam ocupados tentando pensar em um nome. A

mãe se sentia meio culpada por ter reagido de forma tão rude ao ordenar a

expulsão imediata do animal. Afinal, o que quer que fosse, certamente era

extraordinário. E as crianças estavam tão emocionadas com ele, e seu pai

também; ela não o via feliz desse jeito há anos. Ali estava ele agora, tomando o

café-da-manhã sem pronunciar uma única queixa. Em geral, o mingau estava sem

sal ou o ovo estava cru, a torrada estava clara ou escura demais ou o chá estava

fraco ou forte demais. Ela o olhou nos olhos e ele piscou para ela.

— Muito bem — disse a mãe. — Mudei de idéia. Vocês podem usar o resto do

dia para decidir o que vão fazer com a criatura. Mas quero que ela saia desta casa

até a noitinha. E esta é minha última palavra.

— Uma boa decisão — disse Resmunga.

As crianças vibraram. Isso encorajou ainda mais a mãe.

— E vocês podem alimentá-la com o resto da lata de sardinhas — disse ela.

— Não posso ficar com elas? — perguntou Angus.

— Não.

— Uma boa decisão — disse Kirstie.

— Estamos pensando em um nome para ele — disse Resmunga.

— É menino — disse Angus, novamente, com satisfação.

— Mas a gente não consegue chegar a um acordo — disse Kirstie.

— Tem alguma idéia? — perguntou Resmunga à mãe.

A mãe pensou por um minuto.

— Bem, ele apareceu na praia, não foi? — perguntou ela. — Era um náufrago.

E o livro de náufrago mais famoso de que me lembro é Robinson Crusoé. Que tal

esse?

— Aí está uma grande idéia! — disse Resmunga às crianças. — Essa história é

baseada em um náufrago de verdade, ele se chamava Alexander Selkirk e era

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escocês! E seja lá o que for o cavalo-do-lago, não há duvida de uma coisa. É um

bicho escocês!

— Robinson Crusoé — disse Kirstie, em dúvida. — É meio comprido, não é?

— Então só Crusoé — sugeriu Angus. Resmunga e Kirstie se olharam e

assentiram.

— Uma boa decisão — disseram eles.

Mas a decisão que tinham de tomar depois do café-da-manhã não era fácil.

Era, evidentemente, o que fazer com o recém-batizado Crusoé. Ficaram parados

olhando enquanto ele nadava pela banheira, cricrilando alto, pedindo comida.

— Estou pensando numa coisa — disse Resmunga. — Primeiro, vocês acham

que devemos simplesmente devolvê-lo ao mar? Era lá que o ovo teria chocado se

a tempestade não o tivesse mandado para a praia.

— Ah, não! — reclamou Kirstie. — Nunca mais íamos vê-lo de novo. Não

podíamos achar uma piscina de pedra grande e mantê-lo ali?

— Podíamos. Mas a maré alta pode levá-lo embora. De qualquer forma, será

uma empreitada terrível alimentá-lo, subindo e descendo a trilha do penhasco

meia dúzia de vezes por dia.

— Será que podemos colocar Crusoé no laguinho, Resmunga? — perguntou

Angus. O laguinho era pequeno, mais ou menos do tamanho de dois campos de

futebol e ficava na ravina abaixo da casa.

— Podíamos, Angus, e é para lá que ele terá de ir quando ficar muito maior.

Mas ele não ia durar muito lá neste momento. Existem peixes ali grandes o

bastante para engoli-lo por inteiro — disse Resmunga, pegando uma sardinha

pela cauda e largando-a na banheira. Com um redemoinho de água, Crusoé

partiu para ela, disparando como um tubarão.

— Precisamos esperar até que ele tenha tamanho para tratar os peixes como

isso aí — disse Resmunga.

— Mas onde podemos criá-lo? — perguntou Kirstie.

— Já sei! — disse Resmunga. — No espelho d'água do peixinho dourado, é

claro. Não sei por que não pensei nisso antes.

No gramado em um dos lados da casa branca, havia um espelho d'água de

concreto oblongo do tamanho de uma mesa de sinuca. Nele, moravam dois

peixinhos dourados de nome Janet e John, que Kirstie ganhara em uma feira

quando tinha a idade de Angus. Desde então, ela na realidade nem dava pela

existência deles, mas agora, vendo Crusoé dilacerando pedaços de uma sardinha,

seu sangue gelou.

— Ah, não! — gritou ela. — E Janet e John?

— Almoço e jantar — disse Angus secamente.

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— Não, não — disse Resmunga. — Não podemos fazer isso. Vamos montar

uma operação de resgate. Vamos pescá-los com o puçá. Tem um aquário velho no

depósito do jardim. Eles podem morar lá até que Crusoé tenha tamanho para se

mudar para o laguinho. Agora, um de vocês venha me ajudar a pegá-los e o outro

pode alimentar o companheirinho com o resto da sardinha.

Kirstie olhou para o irmão mais novo. Os olhos dele estavam colados no que

restava da sardinha.

— Eu vou ficar aqui — disse ela rapidamente. Quando os outros partiram, ela

se ajoelhou ao lado da banheira, equilibrando a lata de sardinhas na borda, e

começou a alimentar o cavalo-do-lago. Ela o alimentou com pedaços bem

pequenos de peixe.

— Engolir a comida inteira vai fazer mal a você — disse ela. — O Resmunga

não devia ter te dado uma inteira daquele jeito. — Crusoé olhava diretamente

para ela. Os olhos dele, como percebeu Kirstie, tinham a forma de losango, eram

muito escuros e brilhavam com um toque de inteligência. Ele parecia estar

ouvindo o que ela dizia.

Quando terminou a terceira das quatro sardinhas, ele pareceu estar satisfeito,

pois mergulhou até o fundo da banheira e ficou ali por algum tempo. Depois,

flutuou como uma bolha que sobe em um refrigerante, colocou as ventas para

fora, pegou um pouco de ar e afundou novamente. Ele continuou a fazer isso, e

Kirstie cronometrou com o relógio.

Ela descobriu que ele era capaz de prender a respiração por quase um minuto

e as subidas em busca de ar pareciam automáticas, uma vez que os olhos estavam

fechados e ele parecia estar dormindo. Depois de 15 minutos assim, Crusoé veio à

superfície e olhou para Kirstie mais uma vez. Desta vez, porém, ele não cricrilou.

— Já está satisfeito, não é? — perguntou Kirstie.

— Vamos guardar a última sardinha para depois.

— Os dedos estavam oleosos e ela estava prestes a lavá-los na água quando

lhe ocorreu que Crusoé podia tratá-los como tratava o peixe.

— Não seja covarde, Kirstie — disse a si mesma. — Os dentes dele nem são

tão grandes assim, e depois não pode deixar ele pensar que tem medo dele. —

Então desceu sua mão devagar, dizendo o tempo todo numa voz baixinha: —

"Crusoé bonzinho, Crusoé bonzinho" — até que tocou o focinho dele com um

dedo.

Com muita delicadeza, ele o lambeu.

Page 18: Meu Mostro de Estimação -  Dick King Smith

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4

A última sardinha

NEM PASSOU PELA cabeça de Crusoé morder o dedo que foi estendido para ele. A

criatura gigante a quem pertencia o dedo era simplesmente, em sua cabeça,

provedora de comida e, portanto, uma boa amiga, assim como todas as outras.

Esta agora começava a lhe fazer cócegas enquanto ele boiava com as

nadadeiras estendidas na superfície. Delicadamente, os dedos desceram de sua

cabeça de cavalo, passaram pela pele de sapo de seu dorso de tartaruga e foram

até a cauda de crocodilo. A sensação era deliciosa e Crusoé se contorceu de

prazer, os olhos fechados de êxtase. Quando abriu os olhos novamente, viu que

os outros dois gigantes tinham voltado e mais uma vez todos começaram a fazer

sons estranhos um para o outro. Agora, o gigante menor assumiu as cócegas, de

uma forma mais rude, o que de certa forma aumentou o prazer de Crusoé. Ele

ziguezagueou tanto que pequenas ondas se espalharam e bateram nas laterais da

banheira.

Essa é a única queixa que eu tenho, disse Crusoé para si mesmo. A comida é

gostosa, as cócegas são ótimas e os gigantes obviamente são criaturas bem

decentes. Mas estou começando a me sentir espremido nesta prisão branca e

pequena. Gostaria que eles tivessem um lugar maior para me colocar. Neste exato

momento, o gigante maior — como se fosse telepata — se abaixou e tirou Crusoé

da banheira.

A maioria de nós pode se lembrar de algumas poucas coisas de nossa primeira

infância e, em toda a sua vida imensamente longa, o cavalo-do-lago nunca se

esqueceu do momento em que foi colocado no espelho d'água dos peixinhos

dourados.

É claro que ele não sabia o que era, só sabia que era dez vezes maior que o

lugar de onde veio, e era fundo, escuro e cheio de plantas. Animado, ele remou

por toda parte, depois mergulhou por baixo do tapete de ninféias e começou a

arranhar o lodo cm que estavam enraizadas. Esse ato perturbou um monte de

minúsculos habitantes do espelho d'água, camarões de água doce, besouros-

aquáticos e minhoquinhas que se retorciam, fugindo de Crusoé em disparada.

Com espaço para se mover, ele já estava mostrando uma boa velocidade, e pegou

e engoliu vários deles; mas a maioria era rápida demais e por fim ele veio à

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superfície, sem fôlego, vendo que o quarto gigante tinha se juntado aos outros

três para observá-lo.

O cavalo-do-lago cricrilou alto para eles. Era, na verdade, o único barulho que

era capaz de fazer até agora, e ele o fazia simplesmente porque se sentia feliz.

Mas seu efeito foi imediato, porque instantaneamente a última das sardinhas caiu

diante de seu focinho com um espadanar oleoso.

— É a última de minhas sardinhas que ele come disse a mãe. — Entenderam isso,

os três?

— A última para sempre? — disse Kirstie. — Não podemos dar uma de

presente de vez em quando?

— No Natal — disse Angus — e na Páscoa e no aniversário dele e nos sábados

e domingos e...

— Não — disse a mãe. — Nada disso. Já é difícil conseguir alimentar vocês

três, sem desperdiçar boa comida com um... Seja lá o que você disse que era.

— Cavalo-do-lago — disseram eles em coro.

— Não é desperdício, mãe — disse Angus. — Ele precisa delas para crescer e

ficar um monstro bem grande.

Resmunga puxou o bigode caído e olhou para a mãe por debaixo das

sobrancelhas bastas daquele seu velho jeito amuado.

— Teria coragem de privar o pobre bicho de uma boa refeição? — grunhiu

ele.

— Sim — disse a mãe. — Se quiser gastar sua aposentadoria comprando

comida para ele, é problema seu. Posso sugerir que ele talvez prefira salmão

defumado? — E marchou para a casa.

Kirstie olhou para Crusoé, que partia para a última sardinha com entusiasmo.

— Posso poupar um pouco da minha comida e dar a ele — disse ela. — Você

também, não é, Angus?

— Não — respondeu Angus.

— Não há necessidade dessa conversa de poupar comida e muito menos de

comprar — disse

Resmunga. — O que temos de fazer é pegar para Crusoé.

— Quer dizer pescar? — disse Kirstie.

— Pescar, sim, e pegar qualquer outra coisa que pudermos para ele no mar,

na praia, nas piscinas de rocha. Duvido que ele seja exigente, desde que tenha

alguma coisa fresca na barriga. — Ele olhou para Crusoé enquanto o bicho

engolia o rabo da sardinha.

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— Ele é carnívoro, tenho certeza — disse ele.

— O que é isso? — perguntou Angus.

— Um comedor de carne — respondeu Kirstie.

— Eu sou carnívoro — disse Angus.

— Você é onívoro — corrigiu Resmunga.

— O que é isso? — perguntou Angus.

— É alguém que come qualquer coisa — respondeu Resmunga.

Crusoé, depois de terminar o peixe, remou para a beira do espelho d'água,

pousou a cabeça na borda de concreto e cricrilou.

— Ele ainda está com fome — disse Kirstie, mas, na realidade, ele estava

pedindo umas boas cócegas.

— Eu também — disse Angus. — Deve estar na hora do chá. — E se afastou

em disparada.

— Sabe de uma coisa, Resmunga — disse Kirstie. — Crusoé já parece maior

para mim, apesar de ele nem ter um dia de idade.

Resmunga ajoelhou e, esticando a mão, colocou o polegar no focinho de

Crusoé e abriu os dedos ao máximo. O dedo mínimo tocou a ponta da cauda do

cavalo-do-lago.

— Ele tem exatamente o tamanho da minha palma — disse ele.

— E quanto mede?

— Vinte e dois centímetros.

— De que tamanho você acha que ele vai ficar quando estiver todo crescido?

— Quinze ou vinte metros.

— Ah, Resmunga, você está me fazendo de boba! Ele teria de crescer muito

rápido mesmo.

— E ele vai — disse Resmunga. — Trate de se lembrar do que eu disse.

E, apenas 24 horas depois, Kirstie se lembrou.

Eles fizeram um expedição matinal bem-sucedida à praia, Kirstie e Angus

procurando nas piscinas de rochas, cada um com um puçá, e Resmunga, calçado

num par de botas altas, pescando nos baixios com a grande rede de pescar

camarão. As crianças encontraram vários pequenos bodiões, peixes-macacos e

muçurangos, e Resmunga pegou alguns linguados de bom tamanho.

Crusoé teve linguado no almoço e, agora, na hora do chá, estava acabando de

devorar o último dos bodiões. Quando terminou, veio à beira do espelho d'água,

como antes. Angus já havia ido para casa.

— Eu fico com fome só de ver ele comer — dissera ele.

Resmunga ajoelhou e abriu a mão. Esticando-a ao máximo, o dedo mínimo

não conseguia alcançar a ponta da cauda.

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— Ele cresceu mais de dois centímetros! — gritou Kirstie. — Dois centímetros

inteiros. Em um dia!

E à medida que os dias passavam, o cavalo-do-lago ia crescendo e crescendo.

Alimentá-lo era um problema menor do que se poderia pensar porque, como

Resmunga havia previsto, ele não era nem um pouco seletivo. Além de vários

tipos de peixe, ele se entupia satisfeito de pitus, camarões e estrelas-do-mar e

mastigava facilmente grandes caranguejos verdes da praia. Gostava

particularmente de mexilhão, felizmente, porque as pedras estavam cheias deles,

e as crianças passavam muito tempo abrindo-os para Crusoé.

Não era problema o fato de que todas essas criaturas fossem de água salgada,

libertadas na água doce do espelho d'água. Não duravam tempo suficiente para

serem perturbadas pela mudança porque o apetite de Crusoé crescia na mesma

velocidade de seu corpo. E este, com o passar das semanas, já estava do tamanho

de um gato adulto. Quando o mediu com um mês de idade, Resmunga precisou

das duas mãos espalmadas, polegar com polegar, para ir do focinho à cauda.

— Quando você acha que ele vai ter tamanho para ir para o laguinho,

Resmunga? — perguntou Kirstie.

— Ainda não — disse Resmunga. — Os peixes de lá têm duas vezes o

tamanho dele.

— Mas Crusoé acabaria com eles, aposto que poderia! — gritou Angus. — O

Crusoé ia arrancar nacos daqueles peixes velhos! Ia rasgar eles em pedaços! — E

corria sem parar em volta do espelho d'água, remando os braços como

nadadeiras, rugindo e fazendo caretas horríveis.

— Não, não — disse Resmunga. — Ele precisa estar muito maior. Precisamos

continuar abarrotando o Crusoé de comida por um bom tempo, até que ele possa

se cuidar e se proteger sozinho. Afinal, o bom disso tudo é que aqui, no espelho

d'água, o Crusoé está perfeitamente seguro. Mas Resmunga estava enganado.

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5

No meio de inimigos

HÁ UM VERSO em um hino muito antigo que diz, "Estás no meio de inimigos" e,

embora nenhum deles tenha percebido isso, Crusoé percebeu.

O primeiro inimigo tinha quatro patas.

Numa manhã bem cedinho, quando Crusoé tinha três meses, Kirstie acordou

pouco antes do amanhecer e ouviu um barulho ao longe. Era um assovio agudo

que parecia uma flauta. A mãe também ouviu, achou que era um passarinho,

virou-se e voltou a dormir. Resmunga, acordado na primeira parte da noite como

costumam fazer os velhos, finalmente havia dormido. Angus, é claro, estava no

mais profundo dos sonos e não ouviu nada.

O assovio apareceu novamente.

Atrás da casinha branca no alto do penhasco havia um pântano, grandes

trechos de urze e charcos de turfa onde os maçaricos soltavam seus cantos

esfuziantes e tristes e o lagópode-escocês gritava: "Volta lá! Volta lá!". Mas o que

quer que estivesse assoviando estava chegando mais perto, vindo do pântano na

direção da casa.

De repente, uma idéia medonha ocorreu a Kirstie, então ela pulou da cama e

pegou um livro na estante. Chamava-se Animais selvagens das ilhas britânicas e,

como Kirstie tinha interesse nessas coisas, era o preferido dela. Algo que lera nele

bem recentemente tocou sinos de alarme em sua mente e ela apressadamente

encontrou a página que queria. Passou com pressa por "História de Vida", "Ciclo

Anual", "Vida Diária" e "Alimentação", até chegar em "Vozes". "Um sibilo quando

brincalhão ou assustado", dizia. "Um guincho quando está com fome. Um assovio

agudo que parece uma flauta..."

Enquanto Kirstie lia, o barulho voltou, agora muito mais perto — o assovio de

uma lontra!

Vestindo o roupão, Kirstie correu para baixo, meteu os pés descalços nas botas

e disparou para fora da casa. Havia luz suficiente para enxergar — e ver por onde

corria — uma forma baixa e corcunda atravessando o gramado na direção do

espelho d'água. As lontras, Kirstie sabia, comem todo tipo de peixe, e para ela o

cavalo-do-lago seria só um peixe diferente.

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Ela abriu a boca, soltou o grito mais alto que já dera na vida e uma lontra

muito surpresa e sobressaltada virou e se afastou a galope com a maior rapidez

que suas perninhas lhe permitiram.

Kirstie ajoelhou junto ao espelho d'água, arfando do esforço de correr e da

mistura de medo e raiva que a tomara, e logo a forma adormecida de Crusoé

flutuou. Seu focinho apontou para fora, ele tomou ar e afundou novamente. Ele

não ouvira nada do grito de Kirstie. E é claro que Angus também não ouviu, mas

logo a mãe e Resmunga vieram correndo para ver qual era o problema.

— O que vamos fazer? — perguntou Kirstie quando contou a eles. — A lontra

pode voltar.

— Duvido que volte — disse Resmunga. — O barulho que você fez foi

suficiente para matá-la de susto. Eu, pelo menos, me assustei. Mas, só para

garantir, devemos tomar algumas medidas para proteger Crusoé.

Naquela manhã Resmunga fez uma moldura grande, um quadro de madeira

com uma tela de arame esticada, que se encaixou em cima do espelho d'água

como uma tampa. Em todo o resto daquele verão continuou ali, dia e noite, e só

era erguida quando Crusoé era alimentado ou brincavam com ele.

O segundo inimigo tinha duas patas.

Passara-se mais ou menos um mês, já estava no outono, e aconteceu de

ninguém estar em casa. A mãe tinha pego o ônibus para fazer as compras da

semana e os outros desceram até a praia, para catar coisas e pegar comida para

Crusoé. Ele estaria seguro, pensaram eles, debaixo daquela tampa de tela.

Estavam quase chegando ao alto do penhasco pela trilha de volta, Resmunga

carregando uma carga de lenha e as crianças um balde de peixe cada uma, quando

de repente ouviram, vindo do espelho d'água, um súbito coaxar alto e áspero.

"Frank!", era o som que fazia e repetia, apressadamente, quase frenético: "Frank!

Frank! Frank!"

— Rápido! — gritou Resmunga, abaixando o fardo. — Baixem os baldes e

corram!

— O que é? — gritaram as crianças.

— Uma garça!

Ah, não!, pensou Kirstie enquanto corria. Não só lera sobre as garças no livro,

como tinha visto uma antes, parada na parte rasa do laguinho com as pernas

longas, o pescoço comprido esticado, perscrutando dentro da água. Ela a vira

parada, imóvel, e depois, com a velocidade de um raio, dar uma estocada para

baixo com o bico amarelo e comprido e fisgar um peixe.

Mas a cena que seus olhos encontraram era mais cômica do que trágica.

A garça realmente tentara pegar o cavalo-do-lago, mas a ponta do bico ficara

presa na tela de proteção. "Frank!", gritou a ave novamente, puxando como louca

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para se libertar ao ver que pessoas se aproximavam. Por fim conseguiu e, de um

pulo, voou para longe com um bater lento de suas grandes asas curvas.

— Tem sangue na água — disse Angus melancolicamente, e, na verdade, a

ponta do bico da garça tinha entrado o bastante pela tela para beliscar o dorso de

Crusoé. Mas não foi muito mais do que um arranhão e ele não parecia muito

preocupado com isso. De qualquer maneira, ele comeu todo o peixe que eles

pegaram com o prazer de sempre.

O terceiro inimigo chegou no inverno, não com quatro patas, nem com duas.

Não tinha substância, não podia ser visto, nem ouvido, nem tinha cheiro. Mas,

enquanto a vinda dos dois primeiros foi uma surpresa, a chegada do terceiro foi

transmitida pelo rádio.

Em um início de noite no novo ano, Resmunga estava sentado, como era seu

costume, ouvindo o rádio, esperando pela previsão do tempo para poder, como

era seu costume, resmungar sobre ela.

E então chegou a notícia do terceiro inimigo.

"Esta noite", disse uma voz, "haverá geada em grande parte da Escócia. Será

severa nas Highlands e em Grampian, embora seja leve no lado ocidental."

Como sempre, a costa oeste da Escócia seria atingida de leve, graças às águas

quentes da corrente do Golfo que fluíam para lá pelo Atlântico. Mas a ameaça da

mais leve geada foi o bastante para colocar Resmunga em guarda. Ao verificar

tudo pela última vez naquela noite, a superfície do espelho d'água ainda estava

líquida, protegida talvez pela tela. Mas, de manhã cedo, havia nela uma fina

camada de gelo.

Antes do café-da-manhã, ele ficou parado ali com as crianças e observaram

enquanto Crusoé, obviamente se divertindo, abria caminho pelo gelo, rompendo-

o com estalos.

— Ele é um quebra-gelo! — gritou Angus, correndo em volta do espelho

d'água, os braços esticados e a ponta dos dedos juntas no formato de uma proa de

navio. — Um quebra-gelo na Antártida, é isso que o Crusoé é, toda velocidade à

frente, crash, tum, pou!

— Mas logo, logo ele pode não conseguir quebrar — disse Resmunga a

Kirstie.

— Por que não?

— Porque agora disseram que este é o começo de uma temporada bem fria e

daqui a poucos dias um pequeno espelho d'água como este pode ficar com uma

camada de gelo bem grossa.

— Grossa demais para Crusoé quebrar? — perguntou Kirstie.

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— Pode ser.

— Grossa o bastante para patinar? — perguntou Angus, parando. — Isso ia

ser divertido!

— Não ia ser nada divertido para o Crusoé, seu bobo — disse Kirstie. — Se ele

ficar preso debaixo do gelo, não vai poder respirar.

— Ele ia se afogar — disse Angus, numa voz solene. Colocou as duas mãos em

volta da garganta, esticou a língua, ficou vesgo e fez barulhos medonhos de

asfixia.

— Ah, não seja tão idiota — disse Kirstie. — Resmunga, o que a gente pode

fazer?

— Vamos ter de mudá-lo daí.

— Para o laguinho?

— Sim, aquilo nunca vai congelar.

— Mas e os peixes? A lontra? A garça?

— Calculo que agora ele seja grande o bastante para se cuidar sozinho.

E realmente o cavalo-do-lago, agora com dez meses, tinha crescido

espantosamente. O espelho d'água há muito tempo já não tinha mais nenhuma

vida animal a não ser a dele, uma vez que ele comera tudo o que havia ali e,

graças a suas necessidades alimentares, há algum tempo faziam duas viagens por

dia até a praia. Ele estava grande como... Bem, é difícil medir um animal desses

em comparação com outro diferente, mas, como a comparação foi feita primeiro

com um gato, pode-se dizer agora — embora ele não fosse nada parecido com um

— que ele tinha o tamanho e o peso de um tigre quase adulto. Como um tigre,

seu corpo ficara muito comprido, embora, é claro, ele não tivesse pernas nem

patas, mas apenas aquelas quatro nadadeiras grandes em forma de losango.

— Grande o bastante para se cuidar sozinho! — disse Angus. — Que os

ventos me derrubem, acho que ele é mesmo! Aposto que agora ele pode vencer

aquela lontra e aquela garça, Resmunga! Elas iam tremer nas bases mesmo!

— Mas como vamos levá-lo para lá? — perguntou Kirstie.

— É isso que me preocupa — disse Resmunga.

— Esperei tempo demais. Eu pretendia colocá-lo no carrinho de mão de

algum jeito, mas duvido que possa fazer isso sozinho e não posso pedir a

ninguém, ou o segredo do cavalo-do-lago seria revelado e isso não pode

acontecer. O problema é que realmente preciso da ajuda de um homem forte.

— O que vamos fazer? — perguntou Kirstie.

— Vamos tomar o café-da-manhã — disse Angus. — Estou morrendo de

fome.

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Enquanto iam para a casa, eles viram Postie, o carteiro, pedalando pela estrada

com sua velha bicicleta vermelha e, quando eles entraram na cozinha, a mãe

estava de pé ali com uma carta aberta na mão. Parecia muito feliz.

— Adivinhem só! — disse ela às crianças. — É do seu pai! O navio dele atracou

no Clyde ontem. Ele vai chegar em casa hoje de manhã mesmo!

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6

Bem-vindo ao lar, marujo

KIRSTIE FICOU TÃO animada com a idéia do pai vindo para casa de folga que não

conseguiu comer muita coisa. Angus também ficou animado, mas isso não o

impediu de terminar o café-da-manhã e comer o que restava no prato de Kirstie.

Como sabiam a hora em que o ônibus chegava no ponto na base da ravina,

eles já estavam prontos e esperando na estrada, do lado de fora da casinha

branca, quando apareceu a figura distante vestida de azul, uma bolsa de viagem

no ombro, pacotes debaixo de um braço, acenando feliz com a outra mão.

— Bem-vindo ao lar, marujo, bem-vindo do mar — disse Resmunga para si

mesmo todo satisfeito enquanto via a mãe e as crianças correndo para recebê-lo.

No começo, tudo foi empolgação na casa enquanto os pacotes eram abertos,

presentes de terras muito distantes. Para a mãe, havia um corte de uma bela seda;

para Resmunga, um pacote de estranhas sementes estrangeiras para plantar no

jardim; para Kirstie, um colar feito de dentes de tubarão; e para Angus, um barco

de quatro mastros com as velas de lona enfunadas, velejando eternamente dentro

de uma garrafa.

— Como vocês cresceram! — disse o pai aos filhos. — Porque, quando parti,

eu carregava você fácil, Angus. Agora não poderia fazer isso.

— Ele gosta de comer — disse a mãe.

Tudo isso lembrou Kirstie do cavalo-do-lago e de como ele crescera e ficara

pesado demais para ser carregado.

— Resmunga! — gritou ela. — Ainda não demos comida ao Crusoé!

— Quem é Crusoé? — disse o pai.

— E o nosso monstro! — gritou Angus. — A gente achou na praia e o ovo dele

chocou na banheira e ele mora no espelho d'água dos peixinhos dourados, e a

gente pega peixe para ele todo dia, e ele engole tudo, chomp, chomp, chomp.

Precisa ver os dentes dele, pai, um quilômetro maior do que os do colar da

Kirstie, são sim!

— Do que é que este menino está falando? — perguntou o pai, e os outros

explicaram tudo a ele.

— Você não podia ter voltado para casa em melhor hora — disse Resmunga.

— Precisamos levá-lo para o laguinho o mais rápido possível, e ele é pesado

demais para eu fazer isso sozinho. Para começar, tirá-lo do espelho d'água não vai

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ser fácil, então minha idéia é não alimentá-lo o dia todo, de modo que ele vai ficar

com tanta fome que pode conseguir subir sozinho se o tentarmos com alguma

coisa saborosa.

— Vem ver, pai — disse Kirstie, e todos saíram para o espelho d'água, onde

Crusoé gritava, faminto.

Eles tiraram a tela, Kirstie chamou "Crusoé" e o cavalo-do-lago veio e pôs a

cabeça na beira de concreto.

— Santa cavalinha! — disse o pai. — Naveguei pelos sete mares e nunca vi

uma criatura dessas! Será uma serpente marinha?

— Um cavalo-do-lago — disse Resmunga.

— Ouvi você falar de uma coisa dessas. Não tinha um no lago Morar? Acho

que me contou uma vez.

Resmunga assentiu.

— Seja gentil com Crusoé — disse ele. — É um bicho amistoso.

O pai se abaixou, coçou e puxou as orelhas de Crusoé.

— Quando vamos tentar mudá-lo, então? — disse ele.

— De manhã, eu pensei — disse Resmunga. — Talvez consigamos que ele

entre em meu velho carrinho de mão e nós o levaremos pela estrada até o

laguinho. É domingo, então Postie não vai aparecer, não tem ônibus e é provável

que ninguém mais apareça.

Crusoé nadava rapidamente de um lado a outro do espelho d'água, como sempre

fazia quando se aproximava o meio-dia, levantando a cabeça de tempos em

tempos para olhar na direção do alto da trilha do penhasco. Era nesta hora que

ele recebia a primeira refeição do dia. Agora, quando viu os gigantes se

aproximando, começou a gritar impaciente. Não se podia mais dizer que ele

estava cricrilando, porque sua voz tinha irrompido, então ele dava uma espécie de

mugido áspero, como uma vaca com dor de garganta chamando o bezerro. Era

um barulho rouco, podia-se dizer.

Mas, quando os gigantes chegaram e tiraram a tela, ele viu que não tinham

trazido comida nenhuma. Além disso, agora não eram quatro, mas cinco

gigantes. Um dos menores chamou seu nome e, ao ouvir, ele veio, como agora

estava acostumado, e pousou a cabeça na beira de concreto do espelho d'água. O

gigante novo — outro muito grande, com muito pêlo no queixo — abaixou-se,

coçou e puxou agradavelmente suas orelhas, e todos eles fizeram a mistura de

sempre de sons, alguns graves, alguns estridentes.

Depois eles se afastaram e, enquanto desapareciam, uma chuva fria e

constante começou a cair. No final da tarde, a chuva tinha parado, mas Crusoé

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estava com muita fome. Não recebera nada para comer nas últimas 24 horas e sua

mente estava cheia de visões torturantes de comida — tenros linguados

pintalgados e bodiões marrons, pequenos e gordos, e caranguejos crocantes e

suculentas estrelas-do-mar cor-de-rosa. Quanto aos mexilhões, podia comer um

barril deles.

Pela primeira vez na vida, ele sentiu necessidade de procurar comida em vez

de esperar que ela lhe fosse levada, e pela primeira vez tentou realmente sair do

espelho d'água. Depois de muito esforço desajeitado, conseguiu levantar a tela

com a cabeça e colocou as duas nadadeiras da frente na borda de concreto

molhada de chuva, mas era íngreme demais, já congelava e ele escorregou de

volta com um gemido de decepção.

Naquela noite, a geada foi muito mais severa. Mas a superfície do espelho

d'água não chegou a congelar, porque a fome de Crusoé o manteve nadando com

um senso de urgência.

Veio o amanhecer, o sol saiu, subiu no céu e brilhou sem calor, e o voraz

cavalo-do-lago mugiu sua fome ao mundo gelado. Depois de um longo tempo,

quatro dos gigantes apareceram novamente e, ao se aproximarem, ele pôde sentir

o cheiro da comida que eles estavam carregando!

O pai e os outros puderam ver que, embora tivesse caído uma forte geada,

Crusoé mantivera o espelho d'água sem gelo, remando faminto por ele.

Mas todo o resto estava coberto de gelo, porque a chuva da tarde anterior tinha

se solidificado em cada superfície. Até os galhos e ramos das árvores estavam

cobertos de gelo.

Crusoé chegou ansioso na lateral sem esperar ser chamado. Podia sentir o

cheiro do peixe que Kirstie carregava em um prato.

Para surpresa de todos (e tristeza de Angus), a mãe doara uma pequena lata

de arenques como isca para atrair o cavalo-do-lago para fora do espelho d'água.

Na verdade, ela ficou deliciada com a idéia de ele ir para outro lugar, onde podia

pegar sua própria comida a partir de agora, libertando-a do lavar interminável de

roupas cobertas de pegajosas escamas de peixe.

— Segure um dos arenques na frente do focinho dele, Kirstie — disse

Resmunga. — Mas não perto demais. Não deixe que ele pegue ainda.

Freneticamente, Crusoé tentou se içar para fora, mas a borda gelada era

escorregadia demais.

— Muito bem — disse o pai. — Vamos ter de ajudá-lo. — A transferência de

objetos pesados de um lado para outro com cabos de navios era uma coisa que ele

entendia bem, e assim assumiu o comando.

— Angus — disse ele —, tome posição atrás de mim. Calculo que esse

camarada pese mais perto de 100 quilos do que de 50, e não queremos que

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ninguém se machuque. Kirstie, mantenha o peixe bem diante da cara dele, mas

prepare-se para pular para trás quando ele sair. — E para Resmunga, ele disse: —

Da próxima vez que ele aparecer na borda, eu seguro uma das nadadeiras da

frente, você pega a outra e espera minha ordem. Prontos? Agora, Kirstie! — E,

enquanto Crusoé subia de novo, o pai e Resmunga pegaram uma nadadeira cada

um.

— Levanta! — gritou o pai, e — Levanta! — enquanto Angus dançava em

volta, gritando:

— Venham, marujos!

Por fim, com muitos gemidos e muito chapinhar, o cavalo-do-lago saiu do

espelho d'água e ficou na grama congelada, pingando água.

— Agüente! — disse o pai para Resmunga, e para Kirstie: — Dê o peixe a ele.

— Ufa! — disse Resmunga. — Ele é pesado mesmo! Duvido que a gente

consiga colocá-lo no carrinho de mão.

— Se colocarmos — disse o pai — e se não quebrar com o peso dele, duvido

que consigamos empurrá-lo. Vamos ver primeiro se ele vai conseguir navegar

sozinho.

E assim começou um lento processo a partir do espelho d'água, atravessando o

gramado, em direção à estrada. A graça e a velocidade de Crusoé debaixo da água

equivaliam a sua falta de jeito e lentidão em terra. Mas, impelido pela fome, ele

seguiu Kirstie e seus arenques lentamente, ah, tão devagar, numa velocidade de

tartaruga, centímetro após centímetro.

— Mas que velocidade! — disse o pai, olhando o relógio. — Meia hora para

percorrer 50 metros.

— Vamos levar o dia todo e a noite toda para colocá-lo no laguinho —

grunhiu Resmunga. Mas então aconteceu uma coisa que mudou todo o quadro.

Kirstie, ainda andando de costas, finalmente chegara à estrada e saíra do

acostamento para a superfície de asfalto. De imediato, suas pernas falharam e,

enquanto ela caía, os últimos arenques voaram do prato e pousaram bem diante

do agradecido cavalo-do-lago.

— Você está bem, Kirstie? — gritaram todos.

— Estou — respondeu ela, lutando para se levantar —, mas ele comeu o peixe

todo. O que mais podemos usar como isca para ele?

— Não precisamos fazer isso — disse o pai, sorrindo.

— Por que não?

— Olhem — disse o pai, e encontrou um seixo liso e deslizou-o pelo leve

declive da estrada. O seixo escorregou sem parar, porque a chuva na superfície da

estrada tinha congelado e formado uma camada fina e escorregadia, como um

rinque de patinação.

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— Podemos deslizá-lo! — exclamou Resmunga. — Como no jogo de curling!

E foi exatamente o que fizeram.

A estrada estava tão vítrea que o pai fez com que Resmunga e as crianças

andassem no acostamento, porque ossos velhos e novos podem se quebrar com

facilidade numa queda, ele sabia disso, e assumiu a tarefa de empurrar Crusoé.

Agora o progresso era dez vezes mais rápido. Escorregando, deslizando,

resvalando e patinando, o cavalo-do-lago desceu a estrada gelada sem esforço da

parte dele e muito pouco do pai, e depois de mais ou menos meia hora eles

tinham chegado ao laguinho, a 400 metros de distância. Depois foi fácil. A beira

do laguinho ficava perto da estrada e um pouco abaixo dela, e com um último

empurrão concentrado, eles lançaram Crusoé em seu novo lar.

Era fácil ver o prazer de Crusoé por estar de volta a seu elemento e por

encontrar tanto espaço para nadar. Ele foi longe, a cabeça e o pescoço aparecendo

por sobre a superfície como um periscópio, um rastro em V fluindo atrás dele, até

que chegou ao meio do laguinho. Ali ele se virou e, por um momento, olhou para

os que ficaram na margem.

Depois, deslizou em silêncio por baixo da superfície e ficou fora de vista.

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7

Meio domesticado demais

— ESTÁ VENDO QUAL é o problema, não está? — disse o pai na manhã seguinte.

— Estou — disse Resmunga. — Ele está meio domesticado demais.

Eles ficaram olhando as crianças de pé nos baixios, brincando com Crusoé.

Cada uma delas tinha uma vareta para coçar o dorso dele, e como sempre, ele se

contorcia de prazer com as cócegas rudes.

Não havia sinal de Crusoé quando eles chegaram. A superfície do laguinho

estava calma e vazia, mas Kirstie chamou "Crusoé!", e quase de imediato ele veio

à superfície e nadou até eles.

— Ele não tem medo de gente, o problema é esse — disse o pai. —

Tratamento carinhoso e boa comida... É o que as pessoas significam para ele.

Então agora ele vai reagir do mesmo jeito com todo mundo, eu acho... Um dos

moradores, um turista, qualquer um. — Ele virou para as crianças. — Imagine

que alguns de seus amigos da escola venham visitar vocês e Crusoé apareça para

eles... Ele pode estar procurando por cócegas, confundindo-os com vocês. Não

contaram a nenhuma criança da escola, contaram?

— É claro que não! — exclamou Kirstie, chocada.

— Eles não iam acreditar se eu contasse — disse Angus.

— De qualquer modo — disse Resmunga —, não vem muita gente para estas

bandas.

— Mas só é necessário uma pessoa vê-lo — disse o pai — para entregar o

jogo. Em breve vamos ter dezenas de jornalistas escrevendo sobre ele, tirando

fotos e depois o mundo todo vai querer vir aqui e ficar olhando para ele como

parvos. Em seguida, vão querer pegá-lo e colocá-lo em um zoológico. Isso se um

caçador não atirar no cavalo-do-lago primeiro e colocar a cabeça dele na parede

como um troféu.

— O laguinho é pequeno demais — disse Resmunga —, ainda mais no ritmo

em que ele cresce. Se ao menos pudéssemos colocá-lo em uma massa de água

realmente grande... O lago Lomond, digamos... Não seria fácil localizá-lo.

— Hmmm — disse o pai. — Na minha opinião — continuou —, a primeira

coisa a ser feita é ensinar um truque novo a ele. Crusoé vem quando é chamado.

Agora devemos treiná-lo a ficar escondido a não ser que seja chamado.

— Como diabos vamos fazer isso?

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— Não vai ser fácil. Significa disciplinar o animal. Ele consegue as coisas com

muita facilidade... O problema é esse.

— As crianças são apaixonadas por esse bicho — disse Resmunga. — Elas têm

muito prazer com ele.

— Você mesmo ficou meio mole com ele, pelo que sei — disse o pai. Olhou

para o rosto do sogro, que trazia um sorriso que não era familiar ao ver os netos

brincando com o cavalo-do-lago. — Se não se importa com o que vou dizer —

prosseguiu ele —, você agora é um homem mais feliz do que antigamente.

— Hmmm! — grunhiu Resmunga.

— De qualquer forma — disse o pai —, se vamos manter esse animal de

estimação estranho... E isso significa mantê-lo em segredo... então ele terá de

aprender da forma mais difícil que só deve se mostrar quando nós quisermos,

quando nós o convocarmos.

Naquela noitinha, enquanto todos estavam sentados em volta de uma boa

lareira de lenha catada na praia, o pai explicou a situação às crianças.

— Então, vejam vocês — concluiu —, é isso que devemos fazer, a não ser que

queiramos nos arriscar a perder Crusoé. Se o chamarmos pelo nome e ele vier,

tudo bem... Podemos afagá-lo e elogiá-lo, fazer cócegas, oferecer petiscos e fazer

uma algazarra com ele. Mas o que também devemos fazer muitas vezes nas

próximas semanas — o pai tinha um mês de folga enquanto o navio era reequi-

pado em Greenock — é ir lá e ficar parado no laguinho e não chamar Crusoé, não

dizer nada. Ele vai nos ver e no começo vai aparecer, mas quando ele fizer isso,

não vamos tocar nele, não vamos dar nada, só falar asperamente e com raiva

como se faria com um cachorro que fez alguma coisa errada.

— Ah, mas, papai! — disse Kirstie. — O Crusoé vai ficar muito magoado!

— Talvez fique. Mas ele vai aprender. Ele precisa aprender, precisamos ensinar

a ele e temos de começar já. A primeira aula será amanhã de manhã.

O dia anterior foi memorável para Crusoé — sua saída do espelho d'água, o

caminho doloroso até a estrada, a estranha sensação vertiginosa de escorregar

pelo declive e, por fim, a gloriosa sensação de se ver livre em uma casa aquática

centenas de vezes maior que a antiga. Ele nadou pelas águas escuras e calmas sem

esforço, virou e viu os quatro gigantes observando-o e acenando para ele e mer-

gulhou bem para o fundo. E o que havia no fundo? Peixes, peixes, milhares e

milhares de peixes! Crusoé não sabia distinguir um lúcio de uma perca ou um

salmão de uma truta. Só o que sabia era que o laguinho estava repleto de comida

— comida que agora, pelo que ele descobria, era fácil de pegar, graças à

velocidade que conseguia alcançar debaixo da água.

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Ao anoitecer, ele havia se fartado e se cansara do negócio e, com a

simplicidade que era característica a todos os seus atos, Crusoé fechou os olhos e

foi dormir. Como sempre, ele subia automaticamente no meio da soneca para

encher os pulmões de ar e com o mesmo automatismo afundava de novo, não a 2

metros de profundidade, mas a 20 metros agora.

Na manhã seguinte, depois de ter tomado o café-da-manhã, ele estava

nadando preguiçosamente no que era, se ele soubesse disso, a maneira natural e

instintiva de sua raça quando não estava caçando. Isto é, ele estava

completamente submerso e, portanto, invisível a um expectador de fora — a não

ser por suas ventas, que ficavam logo acima da superfície da água. Depois ouviu o

chamado que era, pelo que ele sabia, seu nome, e nadou rapidamente para a

margem.

Que alegria era ser afagado pelos dois gigantes menores (ele ainda pensava

neles dessa forma, embora agora fosse muito maior que os dois) e como se

contorcia de prazer! Não importava para ele que os dois não o alimentassem,

porque agora estava satisfeito. Satisfeito e extremamente feliz.

Mas, no dia seguinte, as coisas ficaram muito diferentes!

Ele devia estar debaixo da água quando os gigantes chegaram, porque ele só

soube que eles estavam ali quando viu de repente os quatro, parados em silêncio

na margem. Não partiu nenhum chamado deles, mas Crusoé, deliciado ao vê-los,

nadou direto para lá e espadanou na parte rasa, onde ficou, encarando-os

amorosamente, esperando por umas cócegas. Mas não houve nenhuma, nem os

sons afetuosos de sempre. Em vez disso, eles fizeram o que pareciam barulhos de

raiva, apontaram para o meio do laguinho e o enxotaram como se não quisessem

ter mais nada a ver com ele. E depois se viraram e saíram sem olhar para trás.

Confuso e magoado, o cavalo-do-lago ficou olhando depois que os gigantes

partiram. O que fizera de errado? Ele tombou a cabeça e soltou um longo gemido

de angústia.

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8

O primeiro aniversário

— FOI HORRÍVEL! — disse Kirstie à mãe. — Dar as costas e deixar o Crusoé. Como

ele pode saber que fez alguma coisa errada? — Os olhos dela estavam cheios de

lágrimas. A mãe lhe fez um carinho.

— Tenho certeza que ele vai aprender logo — disse ela.

— É preciso ser duro com ele no começo — disse o pai —, mas é a única coisa

a fazer.

— Ele vai ficar bem feliz com todos aqueles peixes para comer — disse

Resmunga. — A barriga dele parecia dura feito um tambor.

— Quando sai o almoço? — perguntou Angus. Eles desceram novamente

naquela tarde. Kirstie

chamou Crusoé e ele apareceu, todos fizeram uma enorme algazarra com ele e,

assim, Kirstie estava muito mais feliz quando foi para a cama à noite.

Mas, logo que acordou na manhã seguinte, sentiu-se infeliz ao pensar que

devia mais uma vez fingir estar com raiva se ele aparecesse sem ser chamado. E é

claro que ele viria, e todo o fingimento de repreendê-lo e afugentá-lo ia se repetir.

Por vários dias não havia sinal de que ele tivesse entendido, mas, então, numa

manhã, eles desceram ao laguinho e ficaram parados, em silêncio, e o cavalo-do-

lago não apareceu. Eles podiam ver sua cabeça na água bem distante, observando-

os, mas ele não se mexeu.

— Melhor assim — disse o pai —, mas ainda não está bom. Qualquer um

pode ver aquele pedaço de macarrão para fora da água. — E gritou: —

MERGULHA! MERGULHA! MERGULHA! — num berro alto de marinheiro. A

cabeça submergiu com um espadanar sobressaltado.

Aos poucos, parecia que o cavalo-do-lago estava entendendo o recado. Logo

ele não aparecia a não ser quando chamado e, quando chegou a hora de o pai

voltar ao navio, todos os outros estavam confiantes de que, a não ser que

gritassem o nome dele, não podiam ver nem um fio de cabelo em sua cabeça (se

ele tivesse cabelo). Em algum lugar, um par de ventas estaria se projetando para

fora da água, talvez até um par de olhos atentos, mas ninguém podia localizá-lo

em meio ao ondular constante da superfície.

Pelo menos não havia necessidade de falar asperamente com Crusoé. A lição

foi aprendida, e eles simplesmente podiam desfrutar dos mimos que lhe faziam a

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cada vez que ele atendia a seu nome, e ele podia desfrutar das cócegas e das pa-

lavras calorosas de elogio e, agora, do presente ocasional (e, para o cavalo-do-

lago, incomum) de um petisco.

Certo dia, Angus chegara carregando um biscoito na mão. Era hábito dele

providenciar algum tipo de suprimento de emergência, para poder passar pelo

difícil abismo entre uma refeição e outra. Mas, nesta ocasião — talvez porque não

passasse muito do café-da-manhã —, ele havia chegado ao laguinho sem ter

comido o biscoito. Era de chocolate, o preferido dele.

Eles chamaram Crusoé e ficaram esperando na margem, quando, tão de

repente que os fez pular, ele veio à superfície bem ao lado deles, esticou o

pescoço comprido e pegou o biscoito de chocolate da mão de Angus.

— Sai daí! — gritou Angus com raiva. — Devolve, seu filho de um cozinheiro

de navio! — Mas o biscoito tinha desaparecido, e uma expressão de prazer

apareceu na cara do cavalo-do-lago. Ele lambeu os lábios com apreço e soltou um

grunhido grave e pequeno, um sinal, como eles sabiam, de grande

contentamento.

A partir daí, por consentimento comum (com exceção de Angus), um biscoito

de chocolate era o presente especial de Crusoé e, em 27 de março de 1931, eles lhe

deram uma caixa inteira de presente pelo primeiro aniversário.

— Você se lembra, Resmunga — perguntou Kirstie enquanto viam a caixa

desaparecer, com papelão e tudo —, quando ele só tinha o tamanho da palma da

sua mão? Olha só para ele agora!

Agora, era inútil tentar descrever o tamanho de Crusoé comparando-o com o

de qualquer tigre, nem mesmo com um dente-de-sabre. Ele era muito maior.

Resmunga calculava que, no final desse primeiro ano de vida, ele medisse

aproximadamente 4,5 metros do focinho à ponta da cauda.

— É de tanto peixe que ele come — comentou.

— O que vai acontecer — perguntou Kirstie — quando ele tiver pego todos

os peixes do lagui-nho?—Mas, antes que Resmunga pudesse responder, eles

ouviram um som que era muito incomum por aquelas bandas ultimamente. Era o

som de um carro, bem longe na ravina, vindo na direção deles.

— Mergulha! — gritou Resmunga, e Crusoé imediatamente obedeceu.

Quando os alcançou, o carro parou na estrada acima e o motorista saiu para

pedir informações ao velho grandalhão de bigode caído que estava parado perto

do laguinho, de mãos dadas com uma menina e um menininho gorducho.

— Muito obrigado — disse o motorista quando Resmunga respondeu. Ele

olhou a superfície do laguinho, parada como um espelho. — Mas que lugar

tranqüilo! — comentou. — Nada o perturba, eu imagino.

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Eles esperaram até que desaparecesse o som do carro que partia, e depois

Resmunga disse:

— Chame-o, Angus. E Angus gritou:

— Crusoé! Aqui, Crusoé! — e, no meio do laguinho, em uma grande fonte de

água como uma baleia saltando no mar, surgiu a forma estranha e maravilhosa do

cavalo-do-lago. Em um agitar de borrifos e espuma, ele disparou para a margem

na maior velocidade possível, mugindo delicadamente de prazer com a segunda

convocação dos amigos.

— Mas que lugar tranqüilo! — disse Angus com a voz arrastada. — Nada o

perturba, imagino.

Nada o perturbou em toda aquela primavera e no verão de 1931. Agora, Resmunga

levava as crianças ao laguinho com menos freqüência, talvez só uma vez por

semana. Quando eles perguntaram por quê, ele disse que Crusoé precisava se

acostumar mais com a solidão, cuidando de si próprio. Era como uma criança em

crescimento, disse Resmunga: logo, logo ele teria de vencer sozinho no mundo.

Mas um dia, no outono, eles testemunharam um incidente que mostrou que o

gosto de Crusoé para comida não se limitava aos peixes (e aos biscoitos de

chocolate).

Ao se aproximarem do laguinho em geral deserto, encontraram na estrada

acima um grupo de cerca de 12 pessoas. Certamente não moravam por ali, porque

não havia nada de escocês nas vozes altas que podiam ser ouvidas e todas

estavam vestidas de forma estranha. Usavam calças — homens e mulheres

também —, suéteres Fair Isle grossos e botas pesadas e ferradas com prego,

tinham mochilas nas costas e portavam cajados robustos.

— Quem são eles? — perguntou Angus.

— Andarilhos — respondeu Resmunga com azedume.

— O que são andarilhos? — indagou Kirstie.

— Um pessoal que caminha por todo o interior, gente da cidade,

principalmente. Não sabem distinguir uma ovelha de um porco. — Exatamente

neste momento eles viram um dos andarilhos apontando para o laguinho e

depois todo o grupo se virou, olhou e apontou. Kirstie prendeu a respiração. Será

que viram Crusoé? Ela ficou escutando tensa as vozes altas.

— Olha aquele ganso! — exclamou um.

— Não é um ganso — disse outro, um daqueles homens que sabem de tudo.

— É um cisne.

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— Olha, ele colocou a cabeça bem embaixo da água. Fica tão engraçado com

o traseiro apontado para o ar! Por que está fazendo isso?

— Está procurando peixes — disse o sabe-tudo.

— Está subindo de novo.

— Agora mergulhou a cabeça de novo.

E, enquanto Resmunga e as crianças observavam, o cisne mergulhou mais

uma vez. Depois, em silêncio e de repente, desapareceu sob a superfície.

— Para onde ele foi? — perguntaram os andarilhos.

— Ele mergulhou — respondeu o sabe-tudo. Houve um silêncio de vários

minutos, até que

alguém disse:

— Está debaixo da água por um tempo longo demais.

— Eles podem prender a respiração — disse o sabe-tudo, e os andarilhos

viraram e pisotearam pela estrada, balançando seus cajados.

Na água, algumas penas brancas surgiram e flutuaram na superfície.

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9

Postie

CRUSOÉ ENGOLIU o cisne com facilidade e satisfação. Não era exigente (como

Resmunga pensara antes), e o cisne deu uma boa refeição e um acréscimo bem-

vindo a sua dieta de peixe e enguias. Agora ele vivia no laguinho há tempo

suficiente para provocar uma redução no suprimento de peixes, e depois que

percebeu que havia presas acima da água bem como embaixo dela, muitas aves

aquáticas que se alimentavam ou descansavam na superfície poderiam satisfazer

seu apetite.

O cavalo-do-lago pegava galeirões, galinholas e até gaivotas, mas

especialmente patos. Com as aves que se alimentavam chapinhando, como o pato

selvagem e o marreco, ele esticava o pescoço para fora. Os patos que

mergulhavam, como o tarrantana e o zarro-neguinha, eram refeições ainda mais

fáceis para Crusoé, e ele levou vários patos-marinhos para o fundo. Uma vez, até

um mobelha-grande desapareceu dali.

Tudo isso o levou, um dia, a abocanhar mais do que podia mastigar.

Outro ano havia se passado. O pai foi para casa e partiu duas vezes, a cada vez

maravilhando-se com o crescimento de Crusoé. Ele agora tinha quase 2 anos e

meio, e o pai e Resmunga estavam começando a se preocupar. Quanto tempo

mais ele pode ficar aqui?, perguntavam-se eles. Quanto tempo os peixes vão

durar? Quanto tempo até que ele seja tão grande que fique impossível se

esconder nesse lago pequeno?

Um dia, no final do verão de 1932, aconteceu uma coisa que os deixou ainda

mais preocupados.

Era a tarde de um dia calmo e quente, e Crusoé estava tirando o cochilo de

costume. Era hábito dele fazer um bom descanso entre as caçadas da manhã e da

noitinha e, como sempre, ele dormia embaixo da água, subindo em busca de ar a

certos intervalos. Esses períodos, já que ele estava muito maior, podiam durar até

15 minutos. Agora, enquanto flutuava bem lentamente para cima, a cabeça

inclinada pronta para respirar automaticamente, seu focinho bateu de leve em

uma coisa dura e ele acordou. Submergindo um pouco de novo, ele olhou para

cima e viu um objeto escuro que estava na superfície, acima de sua cabeça. Era

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grande, quase do tamanho dele, e era pontudo numa extremidade e quadrado na

outra. Não estava se movendo.

O que poderia ser?, pensou o cavalo-do-lago.

Naquele momento, houve um pequeno espadanar a alguma distância do

objeto e Crusoé nadou para investigar. Mas o fio de linha, com seu anzol e isca

artificial prateada, não significava nada para ele, então voltou nadando até o

objeto escuro. Ele teria gostado de esticar a cabeça para fora da água e dar uma

boa olhada, mas ele sabia que os gigantes não iam gostar disso. Será que iam

reclamar se ele desse só uma mordidinha naquela coisa?

Crusoé nadou para cima, abriu bem a boca e deu uma dentada no fundo do

barco.

A mãe e as crianças tinham descido à praia, e Resmunga estava sozinho na

casinha branca quando ouviu uma batida à porta. Ele a abriu e ali estava Postie, a

cara lívida e todo encharcado.

— Mas o que é isso, Sr. Macnab? — perguntou Resmunga. Postie, pelo que

ele sabia, mantinha um bote velho e meio podre atracado no laguinho e, nas

horas de folga, às vezes tentava pegar o velho e grande lúcio que o pessoal do

lugar acreditava estar emboscado no fundo. — Virou o barco, foi isso? —

indagou.

— Virei o barco! — exclamou Postie. — Rapaz, tem alguma coisa horrível de

grande no laguinho! Senti uma pancadinha por baixo do barco pouco antes de

lançar o anzol e, no minuto seguinte, houve um rangido e uma coisa partiu o

fundo do barco. Tinha um buraco do tamanho de uma frigideira, e a água

entrava! Afundou antes que eu conseguisse levar até a margem, entendeu? Barco,

vara e equipamento... Perdi tudo. Quase me afoguei!

Você quase foi devorado também, pensou Resmunga. Ele puxou o bigode

pensativo.

— Deve ser um lúcio e tanto, Sr. Macnab! — exclamou ele solenemente. —

Um monstro, ao que parece.

— Aquilo não era um lúcio — disse Postie. Ele deu um pigarro. — Agora me

diga — disse ele, hesitante —, o senhor mora perto... Acha que tem alguma coisa

vivendo no laguinho?

— Ah, ora essa! — disse Resmunga. — Tem é muito peixe.

— Eu não quis dizer peixe — disse Postie. — Eu quis dizer... Você já viu... —

ele baixou a voz até um sussurro — poderia ser... o kelpie?

— Ah, Sr. Macnab — disse Resmunga —, certamente não vai contar a todo

mundo que tem um kelpie no lago, vai? Não estou dizendo que essas criaturas

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não existam... Havia uma no lago Morar quando eu era menino... Mas um homem

da sua posição dizer uma coisa dessas seria muito insensato.

— Insensato? — perguntou Postie.

— Sim — respondeu Resmunga. — Caso se espalhe que uma pessoa como o

senhor, um funcionário público encarregado da entrega da correspondência de

Sua Majestade por quilômetros de distância, ficou falando de ver monstros, os

poderosos dos Correios podem começar a duvidar de sua aptidão para o cargo. E

já existe muito desemprego hoje, Sr. Macnab, é isso.

Postie ficou parado e pingando água por um momento.

— É isso — disse ele. — Não vai contar a ninguém sobre isso, vai?

— Nem uma palavra — respondeu Resmunga e, depois, como que para selar a

promessa: — Agora, não pode pegar uma gripe, então que tal tomar um

traguinho comigo antes de ir embora?

— Podia ter sido horrível — disse ele mais tarde, quando a mãe e as crianças

ouviram a história —, mas não acho que o Postie vá dizer alguma coisa.

— Mas o Crusoé foi bonzinho, não foi? — perguntou Kirstie.

— Bonzinho?

— Ué, ele não se mostrou.

— Não, mas quebrou o barco do Postie — disse a mãe.

— Ele tremeu nas bases dele — disse Angus.

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10

Um plano temerário

O NATAL DE 1932 foi bom na casinha branca no alto do penhasco, porque, pela

primeira vez, o pai estava em casa nesse feriado. Além disso, como a viagem

seguinte seria curta, ele partiria de novo, pelo que disse, no final de março ou

começo de abril.

— E nessa época o cavalo-do-lago terá três anos, não é verdade? — perguntou

ele.

Eles assentiram.

— E só Deus sabe que tamanho vai ter — disse o pai. — Nós precisamos mudá-

lo. Precisamos mudá-lo nessa época, na primavera, ou ele vai ficar grande demais

para ser transportado.

— Mas como vamos fazer isso, pai? — perguntou Kirstie.

— Pela estrada, é claro.

— No quê?

— Bom, onde você colocaria um cavalo-do-lago?

— Num trailer de cavalo — respondeu Angus.

— Não é grande o suficiente.

— Um caminhão de mudança? — indagou Resmunga.

— Difícil — disse o pai. — Os caminhões de mudança são muito altos e seria

muito difícil colocá-lo lá dentro. Ia precisar de um guindaste, como os que

usamos nas docas. De qualquer modo, e os homens da mudança? Eles iam vê-lo,

e a história se espalharia. Não, me parece que só há um tipo de veículo adequado

para a tarefa.

— Um caminhão de gado! — disse a mãe.

— Exatamente, você entendeu bem. É bem grande, é forte o bastante para

carregar uma dúzia de touros, é coberto, e assim ele não será visto na viagem e

tem uma boa rampa na traseira para ele subir sozinho. E uma última coisa... Tem

uma portinha na frente da carroceria, bem atrás da cabine, e assim alguém pode

entrar no caminhão antes de

Crusoé para atraí-lo com comida e pode sair sem ser esmagado.

— Você só se esqueceu de uma coisa — disse Resmunga. — E o motorista

desse caminhão de gado? Não há jeito de esconder as coisas dele.

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— E nem precisa — disse o pai. — Ele já sabe. O motorista do caminhão de

gado serei eu. Um dos colegas de navio, o pai passou a explicar, tinha um irmão

que era transportador de gado no distrito e ele tinha certeza de que alugaria um

de seus caminhões. — Meu colega me contou — disse o pai — que o irmão dele

não é o homem mais honesto da Escócia. De vez em quando, ao que parece, um

de seus caminhões pode pegar um bando de gado de um pasto remoto numa

noite escura e deixá-los em um campo diferente a 70 ou 80 quilômetros de

distância.

— Roubo de gado, quer dizer? — indagou Resmunga. O pai assentiu.

A mãe pareceu preocupada.

— Você quer dizer — perguntou ela — que está pretendendo deixar esse

transportador pensar que quer o caminhão dele para roubar gado?

O pai sorriu.

— Basta assentir, dar uma piscadela e um pouco mais de dinheiro na mão

dele para conseguir enganá-lo — disse ele. — Eu tenho carteira de habilitação e,

apesar de nunca ter dirigido um caminhão, espero pegar o jeito rápido.

A mãe abriu a boca para questionar uma idéia tão louca e depois a fechou

novamente. Assim como ficou satisfeita em ver a partida de Crusoé do espelho

d'água para o laguinho, agora, percebia, ela estava feliz em pensar que ele ficaria a

muitos quilômetros de distância, fora da vida deles para sempre, talvez. Não que

ela não se incomodasse com a possibilidade de o cavalo-do-lago adoecer. Era sim-

plesmente porque durante quase três anos ele ocupara tanto o tempo de todos,

além de exigir (disse ela a si mesma, injustamente) suprimentos constantes de

sardinhas, arenques e biscoitos de chocolate. Seus filhos, ela sentia (injustamente

de novo), deixavam de lado o dever de casa e o pai trabalhava menos no jardim.

Agora o marido estava propondo transferir a criatura. Isso era bom.

— Humpf! — disse ela, com o olhar e o tom do Resmunga. — Nunca ouvi

falar de um plano tão temerário. Eu lavo as minhas mãos — e marchou para a

cozinha para lavar os pratos.

— Mas para onde vamos levar o Crusoé? — perguntou Kirstie.

— Tem de ser um lago bem grande, não é? — perguntou Angus.

— É verdade, Angus — disse o pai. — Pegue o mapa na cômoda, por favor. É

aquele que está marcado com "Oeste da Escócia: de Islay a Gairloch". — E depois

que Angus o trouxe, o pai abriu o mapa em cima da mesa.

— Agora — disse ele —, primeiro de tudo, podemos colocá-lo em uma lagoa.

Também podemos deixá-lo aqui, no lago Moidart, e ele vai ficar livre para andar

pelo mundo.

— Não, não! — as crianças gritaram. — Nunca mais o veríamos de novo!

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— Então em um desses três, não? — perguntou Resmunga. — Tem o lago

Morar... O mais próximo de nós, mais adequado e fundo, muito fundo. Talvez o

cavalo-do-lago que diziam viver nesse lago quando eu era menino ainda esteja lá.

Pode fazer companhia a ele.

— Mas espere aí — disse o pai, olhando o mapa. — Olha aqui... Ele pode

muito bem descer o rio Morar até o mar. Isso não é bom.

— Bem, então, que tal o lago Lomond? É bem grande.

— Fica longe demais — disse o pai. — Não quero dirigir tudo isso.

— Então só resta um — disse Resmunga e apontou para um longo trecho de

água em azul que subia diagonalmente para o nordeste. — Quarenta quilômetros

de uma ponta à outra e talvez o mais fundo de todos. Ali há todo o espaço que ele

pode querer.

— Tem razão — disse o pai. — É para lá que vamos levar Crusoé. Esse é o

lago certo para ele. E não fica tão longe para levar de caminhão... Digamos, 45

quilômetros até Fort William e mais 45 até Fort Augustus.

— Quando ele estiver morando lá — perguntou Kirstie —, vamos poder

visitá-lo de vez em quando? — A voz dela estava meio trêmula.

— É claro que vamos — disse o pai. — Não fica muito longe, é um belo

passeio de verão. Nós iremos lá, vamos chamá-lo e ele vai aparecer para receber

umas cócegas.

— Mas e se outras pessoas o virem?

— Pode acontecer, eu imagino — disse Resmunga —, de vez em quando. Se

ele se distrair, se ele se esquecer e se mostrar por um momento. Ou se ele ficar

empolgado demais pescando perto da superfície. Ou se ele esbarrar num barco,

como fez com o do Postie. Só podemos esperar que ele se comporte.

— Mesmo que alguém tenha um vislumbre dele, nunca vai ter certeza do que

está vendo — disse o pai. — Vai pensar consigo mesmo, ah, talvez seja só um

tronco ou sombras na água, ou um salmão pulando, ou lontras brincando, ou um

cervo morto boiando entre as ondas. Nunca vai ter certeza. Somos as únicas

pessoas que sabem que naquele lago mora o cavalo-do-lago.

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11

Um passeio de caminhão

QUANDO CHEGOU O momento, foi fácil colocar Crusoé no caminhão.

Havia uma trilha acidentada que ia da estrada até o laguinho, e o pai tinha

descido com o caminhão de ré, parando bem perto da água, onde o chão ficava

encharcado. Naturalmente não havia nenhum sinal de Crusoé, uma vez que ele

não fora chamado.

Agora, naquela manhã de primavera, em 14 de abril de 1933, tudo estava

pronto. As crianças estavam seguras sentadas na cabine do caminhão, enquanto o

pai e Resmunga se colocaram na ponta da rampa abaixada da traseira. A mãe

ficara em casa, mas tinha providenciado um presente de despedida para o cavalo-

do-lago: uma comida para servir de isca para ele sair do laguinho, subir a rampa e

entrar na carroceria do caminhão.

Houve muita discussão sobre o que seria essa isca. Biscoitos de chocolate?

Arenque? Ou a primeira comida que passou pelos lábios de bebê de Crusoé —

sardinha?

— O problema — disse o pai — é que, se eu fizer um rastro com uma dessas

coisas, ele pode achar difícil pegar no chão. Ele vai ficar mais lento para subir e

não vai se esforçar. O que precisamos é de uma coisa gostosa que eu possa levar

na frente dele, fora de alcance, uma coisa grande o bastante para que eu não me

torne uma refeição acidental.

— Uma tira de salsichas! — disse a mãe.

— Que idéia maravilhosa! — exclamou o pai. Agora ele parou por um

momento, olhando e

escutando com cuidado, mas não conseguiu ver ninguém nem ouvir nada. Então

andou até a margem e chamou "Crusoé!" e Crusoé apareceu.

O pai e Resmunga tinham medo de que talvez o cavalo-do-lago não estivesse

disposto a deixar o ambiente em que, a não ser por sua mudança do espelho

d'água para o laguinho, ele já morava há três anos. Mas seus temores eram

infundados.

À medida que o pai andava de costas e devagar agitando a tira de salsichas,

Crusoé, agindo como uma lagarta gigante, saiu da água e deslizou pelo chão que

se interpunha até o caminhão de gado. Para subir a rampa de sarrafos de madeira,

ele se içou, o pescoço esticado pelo esforço de chegar à ponta da longa tira de

salsichas, e entrou na carroceria do caminhão, enquanto as molas estalavam e

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rangiam sob seu peso. Largando a isca na outra ponta, o pai escapuliu

rapidamente pela portinha lateral e correu para a traseira. Depois, enquanto

Crusoé devorava as salsichas com grunhidos de satisfação, o pai e Resmunga

pegaram um lado da rampa cada um, ergueram-na e fecharam as travas bem

apertadas. Tinham conseguido embarcar o cavalo-do-lago!

A viagem em si foi calma. Eles foram para o sul, primeiro até Glenfinna, depois

ao leste pela costa norte do lago Eil, até que chegaram a Fort William. Pararam

nas margens do lago Lochy. O pai estava meio preocupado que o cavalo-do-lago

pudesse ficar desagradavelmente seco ali, então aqui, em cerca de metade da

jornada, ele e Resmunga encheram baldes e despejaram o conteúdo pelas fendas

da lateral do caminhão de gado. Crusoé mugiu baixinho com apreço.

À margem do lago Oich, eles pararam novamente e repetiram a operação.

Kirstie e Angus saíram para esticar as pernas enquanto o pai e Resmunga

enchiam os baldes. Assim que o pai estava prestes a atirar o último balde, eles

ouviram o barulho de um carro se aproximando.

— Saiam da estrada, crianças — disse o pai, porque o caminho era estreito, e

todos ficaram parados esperando que o veículo fizesse a curva à frente. Turistas,

pensaram eles. Mas era um carro da polícia. Eles o viram chegar mais perto, dese-

jando que fosse embora sem parar, mas o carro reduziu e parou.

— Rápido — disse o pai a Resmunga. — Levante o capô!

Um único policial saiu da viatura.

— Algum problema? — perguntou ele. Sim, temos sim, pensou o pai, mas

disse:

— Não, não temos — respondeu numa voz animada. — Só paramos para

encher o radiador. Acho que está vazando um pouquinho em algum lugar...

Precisa de um pouco de água de vez em quando.

— Começou a abrir a tampa do radiador, com todo cuidado, como se achasse que

estava quente, e levantou o balde de água.

Felizmente, o policial não viu de perto as tentativas do pai de encher o

radiador já cheio, mas virou-se para Resmunga.

— Para onde estão indo? — perguntou ele.

— Fort Augustus — disse Resmunga, contando a verdade. — Uma carga de

gado gordo para o matadouro — acrescentou, contando uma mentira.

— De sua própria criação? — perguntou o policial.

— Ah, sim! — exclamou Resmunga, mais uma vez contando a verdade.

— Andam ocorrendo muitos roubos de gado por estas bandas, você acredita

nisso? — disse o policial.

— Que absurdo! — exclamou Resmunga num tom de surpresa.

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— É a realidade — disse o policial. Ele olhou o velho e as duas crianças

pequenas.

— Não que vocês me pareçam ladrões — disse ele, sorrindo. Então pôs o olho

em uma das fendas na lateral do caminhão.

Misericordiosamente, ele podia ver muito pouco, porque o grosso do corpo de

Crusoé ocupava todo o espaço disponível, mas pôde distinguir um grande flanco

escuro apertado na lateral do caminhão. Cutucou com um dedo enluvado, e

Crusoé, achando que era um carinho dos amigos, soltou um mugido baixo de

prazer.

— Parece ser um bicho bem grande — disse o policial. Ele virou para Angus.

— De bom tamanho, não é, amiguinho? — perguntou.

— Um monstro — disse Angus, solenemente.

O policial riu e afagou o cabelo de Angus enquanto o pai se juntava a eles,

depois de concluir sua pantomima com o radiador.

— Já encheu até a boca? — disse o policial.

— Sim.

— É melhor ver esse vazamento.

— Sim — disse o pai. — Agora precisamos ir andando.

— E eu também — disse o policial.

E, para grande alívio de todos, ele foi embora mesmo.

No início da tarde, eles chegaram a Fort Augustus, na extremidade mais rasa

do grande lago que procuravam. Uma nova estrada fora construída recentemente

junto à margem norte, mas o pai preferiu uma velha estrada ao sul e levou o

caminhão para lá, procurando o tempo todo por um local adequado.

Bem perto de Dores, ele achou. Havia uma área de descanso à esquerda, no

alto de uma ladeira íngreme e cheia de mato que caía diretamente no lago. Ali

eles pararam.

Crusoé não gostou muito dessa viagem. No começo, quando a rampa da traseira

bateu atrás dele, ele se sentiu estranho por estar confinado. Não teve medo,

porque não sabia o que significava o medo, mas não gostou muito do rugido do

motor, do fedor da fumaça do escapamento e do chocalhar e balançar do

progresso do caminhão. Começou a ficar meio enjoado.

Mas, depois de um tempo, ele se acostumou com as coisas e, naturalmente,

como era a hora do dia em que sempre tirava um cochilo, ele começou a ficar

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sonolento. Estava quase dormindo quando o chocalhar e o balançar pararam e

caiu um pouco de água nele.

Gigantes bonzinhos, pensou ele, e soltou um pequeno mugido de

agradecimento. Depois estava seguindo de novo, dentro da estranha caverna em

que, por causa de seu tamanho grande, ele mal tinha espaço para mexer um

músculo. Um pouco depois, o chocalhar parou de novo, mais água foi atirada

nele, e Crusoé se abaixou de prazer quando alguém afagou a lateral de seu corpo.

Mas se sentia muito apertado, e foi um alívio quando enfim o rugido e as

sacudidas pararam de vez, a porta atrás dele se abaixou e deixou entrar a luz.

Dolorosamente, porque seus membros estavam com cãibras, Crusoé

conseguiu recuar e descer o declive da rampa e chegar ao chão. E como era

agradável receber as velhas e conhecidas cócegas, porque os dois gigantes

pequenos tinham uma vareta cada um e passaram a trabalhar nele com

entusiasmo.

Depois, enquanto se contorcia de satisfação, Crusoé de repente viu, lá

embaixo, espalhando-se em todas as direções até onde a vista alcançava, uma

massa enorme de água!

Entre nela, dizia-lhe cada instinto, mergulhe nela. E ele ergueu o corpo

imenso para a beira da área de apoio, deslizou e esmagou os arbustos ladeira

abaixo e caiu com um forte espadanar nas profundezas do lago banhado de sol.

Quando ele se foi, todos ficaram parados em silêncio olhando as águas calmas da

primavera.

O pai sentiu prazer e orgulho porque o problema fora resolvido de forma

tranqüila.

Resmunga sentiu alívio porque, agora, enfim, o grande bicho estava em um

lugar seguro, onde não precisaria mais se preocupar com ele.

Kirstie se lembrou da época em que Crusoé era do tamanho da palma da mão

de Resmunga. Quatro ou cinco metros, disse Resmunga que ele atingiria, e agora

ela não duvidava mais disso.

Angus estava se lembrando que tinha se esquecido de trazer suprimento de

emergência.

Em todos eles, havia a sensação de um profundo contentamento pois agora o

cavalo-do-lago teria tudo que quisesse. Ele teria, para todo o sempre, a liberdade

desse grande e profundo lago cheio de peixes, seguro contra todos os perigos.

Ele vai viver feliz para sempre, pensou Kirstie, então eu também vou.

O pai olhou o relógio.

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— Meu Deus! — disse ele. — Olhem só a hora! Já são cinco para as três.

Precisamos voltar para casa ou vai ficar tarde demais para aquele chá que a mãe

está preparando para nós.

— Borrascas me derrubem! — exclamou Angus. — Isso nunca. — E todos

subiram no caminhão e foram embora.

Para baixo, cada vez mais fundo, o cavalo-do-lago mergulhava, dispersando

grandes cardumes de peixes enquanto descia, mergulhava para o fundo frio e

escuro, depois virava e subia rápido, cada vez mais rápido, orgulhoso de sua

força. Por um momento, todo o treinamento foi esquecido, todas as lições que os

gigantes lhe ensinaram de não se mostrar a não ser que fosse chamado. Ele

irrompeu na superfície ensolarada no meio do lago, feliz demais por estar neste

novo e maravilhoso mundo aquático.

Depois recuperou o juízo e, com um último impulso, afundou e sumiu de

vista.

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12

De um jornal da cidade

O PRIMEIRO RELATO DE VISÃO DO MONSTRO:

Em 14 de abril de 1933, às três horas da tarde, o Sr. e a Sra.

Mackay, de Drummadrochit, seguiam de carro pela nova

estrada na margem norte do lago Ness quando viram "um ani-

mal enorme rolando e mergulhando", até que desapareceu

com grande agitação na água.

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