metesse em gaiolas, unicamente para seu goso. · presença. propõe ao pai ... a morte de uma...

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163 No conto seguinte, “Ainda o Jerônimo”, é passada a noção de que devemos ter pena dos pobres. Em “Sempre o Jerônimo”, a irriquieta e caprichosa personagem de Castro Osório caça um passarinho, aprisionando o bicho, um lindo melro, numa gaiola. Não ouve os conselhos de sua boa mãe: “– Jerônimo, isso não se faz! (...) lembra-te que o mesmo te poderiam fazer a ti (...) e pensa bem no que tu sentirias se algum mau homem vos roubasse aos nossos cuidados e vos metesse em gaiolas, unicamente para seu goso. – O, mamã, mas nós somos pessôas, não somos pássaros!” p. 74 O tempo passa. Jerônimo, sempre ocupado com suas estrepolias, esquece-se de alimentar seu prisioneiro que, infelizmente, morre de fome. O conto, no caso, combate o egoísmo e, ao mesmo tempo, enaltece o amor à natureza. O conto “Companheiros”, apresenta uma família com vários irmãos. O mais velho é preguiçoso e nunca estuda direito. Como castigo, é proibido pelo pai de participar de uma grande festa que haverá na cidade. O irmão menor não se conforma em passar a festa sem sua presença. Propõe ao pai responder às questões no lugar do outro. O pai sorrindo, meio de brincadeira, pois o menino é pequeno ainda, aceita o desafio. A criança, num esforço descomunal, e dando uma extraordinária prova de amor, caráter e força de vontade, estuda, estuda mais e sai-se bem no questionário. Graças à sua generosidade, o irmão mais velho acaba participando dos festejos. Este, evidentemente envergonhado, cai em si e, seguindo o exemplo do menor, passa a ser estudioso, sem nunca, entretanto, diz a autora, superar o irmão menor. “É o castigo dos mandriões, ficarem sempre para traz e serem vencidos por aquelles que às vezes julgam inferiores.” p. 93 Em “Como a Izabel”, o espírito geral dos contos anteriores se repete. Alice, a personagem da história, é apresentada como uma menina egoísta, mimada e caprichosa, que sente grande desprezo pelos pobres e humildes. Alice tinha uma irmã, Isabel, já falecida, essa sim, em vida, uma excelente pessoa, bondosa e ótima filha. Alice acaba enfrentando uma situação trágica: assiste, por acaso, a morte de uma mulher pobre, vê-se na contingência de ajudar a cuidar da pequena filha da infeliz, e, assim, amadurece, transformando-se numa pessoa boa e generosa, como a falecida irmã. Diz ela à mãe, no desfecho do conto:

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Page 1: metesse em gaiolas, unicamente para seu goso. · presença. Propõe ao pai ... a morte de uma mulher pobre, vê-se na contingência de ajudar a cuidar da pequena filha da infeliz,

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No conto seguinte, “Ainda o Jerônimo”, é passada a noção de que devemos ter pena dos

pobres. Em “Sempre o Jerônimo”, a irriquieta e caprichosa personagem de Castro Osório caça

um passarinho, aprisionando o bicho, um lindo melro, numa gaiola. Não ouve os conselhos de sua boa mãe:

“– Jerônimo, isso não se faz! (...) lembra-te que o mesmo te poderiam fazer a ti (...) e

pensa bem no que tu sentirias se algum mau homem vos roubasse aos nossos cuidados e vos metesse em gaiolas, unicamente para seu goso.

– O, mamã, mas nós somos pessôas, não somos pássaros!” p. 74 O tempo passa. Jerônimo, sempre ocupado com suas estrepolias, esquece-se de alimentar

seu prisioneiro que, infelizmente, morre de fome. O conto, no caso, combate o egoísmo e, ao mesmo tempo, enaltece o amor à natureza.

O conto “Companheiros”, apresenta uma família com vários irmãos. O mais velho é

preguiçoso e nunca estuda direito. Como castigo, é proibido pelo pai de participar de uma grande festa que haverá na cidade. O irmão menor não se conforma em passar a festa sem sua presença. Propõe ao pai responder às questões no lugar do outro. O pai sorrindo, meio de brincadeira, pois o menino é pequeno ainda, aceita o desafio. A criança, num esforço descomunal, e dando uma extraordinária prova de amor, caráter e força de vontade, estuda, estuda mais e sai-se bem no questionário. Graças à sua generosidade, o irmão mais velho acaba participando dos festejos. Este, evidentemente envergonhado, cai em si e, seguindo o exemplo do menor, passa a ser estudioso, sem nunca, entretanto, diz a autora, superar o irmão menor.

“É o castigo dos mandriões, ficarem sempre para traz e serem vencidos por aquelles que

às vezes julgam inferiores.” p. 93 Em “Como a Izabel”, o espírito geral dos contos anteriores se repete. Alice, a personagem

da história, é apresentada como uma menina egoísta, mimada e caprichosa, que sente grande desprezo pelos pobres e humildes. Alice tinha uma irmã, Isabel, já falecida, essa sim, em vida, uma excelente pessoa, bondosa e ótima filha. Alice acaba enfrentando uma situação trágica: assiste, por acaso, a morte de uma mulher pobre, vê-se na contingência de ajudar a cuidar da pequena filha da infeliz, e, assim, amadurece, transformando-se numa pessoa boa e generosa, como a falecida irmã. Diz ela à mãe, no desfecho do conto:

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“– Oh, não sou ainda tão bôa como ella, não! Mas, se Deus quizer, ainda hei de ser como a Izabel.” p. 118

No último conto, “O engeitado” (sic) , surge Constantino, um rapaz pobre, rejeitado e

desprezado por todos. Luís, um menino rico e generoso, fica seu amigo. Profundamente grato, como se essa amizade fosse um privilégio fora do comum e mesmo imerecido, Constantino entra numa briga e perde um braço para defender e salvar o amigo. Ajudado por Luís, Constantino acaba estudando e melhorando de vida. Ana de Castro Osório encerra o conto com essas palavras:

“ Mostra assim que ser engeitado não é crime de que tenha de se argüir o desgraçado que

o é." p. 141.

5.2 Comentários sobre os contos de Alma Infantil Numa simplificação, por nós já mencionada, cujo único sentido é facilitar a colocação de

certas idéias, dividiremos nossos comentários em dois planos, na verdade, indissociáveis. O primeiro diz respeito aos aspectos formais dos contos de Alma Infantil; o segundo, aos aspectos temáticos. Como pano de fundo, teremos sempre a preocupação de fazer uma comparação e tentar uma ligação entre os contos criados por Osório e os contos populares.

Se considerarmos os aspectos formais ligados à vocalização, os índices de oralidade, assinalados anteriormente, veremos que é possível aproximar a linguagem dos contos populares aos contos de Alma Infantil.

Há sem dúvida, em todos eles, uma tentativa de aproximar e atingir o leitor, através de um discurso claro e direto; do tom coloquial; da ação e do diálogo em lugar da descrição; das orações coordenadas em lugar das subordinadas; da utilização de um repertório vocabular comum, popular, familiar, conhecido da platéia; de fórmulas verbais pré-fabricadas, frases feitas, clichês, lugares-comuns, adjetivação e ditados, além de recursos como o hipocorístico (carinho expresso através de diminutivos), as repetições de palavras, pleonasmos e hipérboles, entre outros.

“A mãe sentiu a almasinha do seu Jorge tão confrangida pela grandeza do desgosto que

não teve coragem de prolongar a lição, como tinha combinado com o marido.” p. 31 “ No fundo era generoso, tinha bom coração, mas terrabinto até ali chegava.” p. 38 “Tanto andou, tanto andou, que um dia, apanhando todos distraídos...” p.39 “ - Leste? Que proveito tiraste da lição? - Oh, a raposa era parva! Ella não via que os filhos eram uns monstrosinhos?

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- E tu julgas porventura que a visinha conhecia que o filho (nossa nota: era um menino doente e pobre que morreu) metia medo? Escuta, Bertha; põe o caso em ti, que é a melhor maneira de julgar os outros. Imaginas que eu sou tua amiga porque, graças a Deus, nasceste sem defeito? Enganaste, minha filha. Amar-te-hia na mesma; talvez te amasse mais ainda, se fosses uma desgraçadinha despresada por todos!” p. 51

“Aquellas pobres crianças, trabalhando todo o dia, andando pelos caminhos quer chova

quer faça sol, aceitando a vida resignadamente, como obrigação e não como festa, apresentavam-se-lhe agora debaixo doutro aspecto. Já não os via como até ahi, pedintões e aborrecidos, não!” p. 68

“Este episódio vem para dizer que o Jerônimo, sendo aliás muito bôa pessoa, tinha um

grandíssimo defeito. mas que admira se lá diz o velho ditado: que não ha bella sem senão. “ p. 73

“Era muito bom rapaz este Luizinho; todos em casa morriam por elle. não tinha uma

palavra má para os criados, um arremesso, uma queixa, uma grosseria. Não fôra nunca apanhado na mais leve mentira, e por isso os pais, os tios, os avós, todos os conhecidos e amigos, tinham a sua palavra como sagrada.” p. 124

Recolhemos os exemplos acima também com o intuito de revelar com mais detalhe o clima

geral dos contos de Alma Infantil. As amostras são, em todo caso, suficientes para demonstrar que a adaptabilidade às circunstâncias, a teatralidade e a concisão, traços característicos, como vimos, do discurso oral e popular, estão presentes e amplamente representados nos contos criados por Osório.

Quando examinamos aos aspectos temáticos, entretanto, a situação se modifica. Na verdade, os contos de Alma Infantil constituem, a nosso ver, legítmos representantes da

velha tradição, iniciada, ou pelo menos tornada mais nítida, por volta do séc.XVII, com a instituição das primeiras escolas burguesas: a de utilizar a literatura como instrumento, recurso e suporte para o aprendizado de crianças e jovens.

Se há um ponto comum entre os contos que compõem o referido livro é o de que todas as histórias, sem uma única exceção, são utilitárias e têm uma função: pretendem claramente passar ao leitor lições de moral e bons costumes, além de noções de cidadania etc. Em outras palavras, utilizam-se de uma linguagem popular e acessível como suporte para atingir seu objetivo primeiro, contribuir para a boa formação do leitor, integrando-o às regras e valores da sociedade em que vive.

No sentido temático, em nosso ponto de vista, o trabalho autoral de Osório talvez possa ser aproximado a expressões populares como as fábulas, os apólogos e as parábolas330 , nas

330 C.f. TRINGALI, Dante. Introdução à Retórica. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1988.

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quais “o texto funciona como instrumento para ilustrar um conceito’, no caso, conceitos representativos do conhecimento e da cultura oficial. Nada têm em comum, entretanto, com o espírito e com a tradição dos contos populares, pelo menos aquela descrita por Bakhtin, Jolles e Zumthor, entre outros.

Não devem ser confundidos, por outro lado, com as narrativas míticas, exemplares e paradigmáticas também, mas num sentido muito mais amplo, urdidas num patamar conceitual onde o que hoje chamamos de religião, ciência, filosofia e arte formam um todo indivisível. Como vimos, essas narrativas arcaicas eram ligadas à indagações, por exemplo, sobre o sentido da existência, sobre a origem e o significado dos costumes e instituições, a relação do homem com os deuses, com a morte, com a sexualidade, com o trabalho, com a verdade etc. Seria demasiadamente redutivo, equivocado mesmo, compará-las a pequenas histórias utilitárias, dirigidas exclusivamente ao público infantil, abordando temas restritos a uma determinada visão do que seja a infância.

Os contos criados por Osório, aliás, destinam-se a um público específico, a criança, e partem do pressuposto de que esse público apresenta algumas características bastante nítidas: é composto de seres imaturos, incoerentes, egoístas, irracionais, indisciplinados, sem discernimento, selvagens, sem juízo, impulsivos, caprichosos, inseguros, parciais, desiquilibrados, indisciplinados, inexperientes, irriquietos, irresponsáveis, ignorantes e errados por princípio, indivíduos cegos com relação às coisas da vida e do mundo, que precisam mudar, crescer, ser domados e assim, finalmente, amadurecer e compreender a realidade, as regras complexas e a sabedoria líquida e certa do mundo adulto.

O mundo adulto, por sua vez (e em oposição), seria composto por seres maduros, coerentes, altruístas, sérios, racionais, disciplinados, com discernimento, civilizados, ajuizados, comedidos, controlados, razoáveis, seguros, imparciais, isentos, equilibrados, disciplinados, experientes, quietos, responsáveis, sábios e corretos por princípio (!).

Os resultados desta tradição, dessa visão do que seria o universo e a “alma infantil” é, a nosso ver, a apresentação e descrição de um mundo bastante idealizado, regido por normas de conduta abstratas e pré-concebidas, onde a priori, independentemente de tudo, os adultos são sempre equilibrados e sábios, as mães sempre são boas e os irmãos nunca competem. Neste universo, várias tendências humanas naturais, talvez principalmente, mas não só, na infância, como o egocentrismo, a passionalidade, a parcialidade, a busca do prazer, a curiosidade, a insegurança, a irreverência e a vontade, às vezes irracional, de jogar, brincar e de experimentar, todos, por sinal, elementos ligados à subjetividade e à particularidade, ou não existem ou são condenados e substituídos pelo autocontrole, pelo equilíbrio, pela racionalidade, pela imparcialidade, pela objetividade, pela sabedoria e pelos "bons" sentimentos.

Com a idealização e, mesmo, a desumanização do ser adulto, cria-se uma espécie de fosso separando crianças e adultos, como se existissem dois estados etários sólidos e de contorno absolutamente nítido e, por conseguinte, como se entre crianças e adultos não houvessem pontos comuns.

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É importante ainda comentar o caráter elitista e ideológico dos contos examinados. Todos, também sem exceção, giram em torno de personagens ricas e poderosas. As pessoas do povo são apresentadas como mero pano de fundo: uma massa “natural” (pois a razão de sua existência jamais é questionada), impessoal e descaracterizada (a não ser por sua pobreza), por quem no máximo devemos nutrir uma distante, compreensiva, paciente e elegante compaixão. Existir, ao que parece, é essa, entre outras, a lição que os contos de Ana de Castro Osório transmitem, significa existir sob determinadas condições sócio-econômicas. Fora delas, não há vida que valha a pena mencionar.

Quanto às personagens dos contos, um aspecto se destaca: todas são, invariavelmente, crianças. Essa redução da realidade ligada, a nosso ver, a uma forçada e artifical adaptabilidade às circunstâncias, naturalmente pressupõe como visão da criança um ser separado do mundo adulto, imaturo por princípio, com uma série de características comuns bastante peculiares, constantes e nítidas.

Salientamos também o fato de os contos de Alma Infantil, ainda uma vez sem uma única exceção, abordarem temas “realistas”, no sentido de terem como intento e pretensão representar a “realidade” através de fatos cotidianos absolutamente verossímeis. Nelas não há espaço para poesia, o non-sense, o desconhecido, a perplexidade, o sublime, o imensurável, o paradoxal, a utopia e a fantasia. Ao contrário, fica patente a noção de que com relação a tudo, vida, sentimentos, natureza, existe uma “ realidade” palpável, mensurável, lógica, objetiva e nítida.

Concluindo, não seria legítimo, do nosso ponto de vista, fazer qualquer aproximação entre os contos de autoria de Ana de Castro Osório e os contos populares estudados anteriormente. Entre eles há apenas um ponto comum: a linguagem, concisa, teatral e sempre tentando atingir e se adaptar ao leitor, índices, esses sim, dos textos vocais e da expressão via oralidade peculiar às expressões típicas do povo.

5.3 Contos dos livros Contos Maravilhosos A leitura dos contos populares reunidos e recontados por Ana de Castro Osório nos três

livros entitulados Contos Maravilhosos - Biblioteca “Para Crianças”, oferece outra paisagem, bastante diferente daquela acima descrita.

Mesmo sendo contos de origem popular, o fato de terem sido recontados, fixados através da palavra escrita e publicados tendo em vista o público infantil, faz com que possam ser considerados literatura para crianças.

Como os contos são muitos, optamos por apresentar a sinopse dos que consideramos mais significativos. No apêndice (p. ), para eventual consulta, está o conjunto completo de sinopses.

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5.3.1 Contos Maravilhosos - 2ª Série

O conto “História do príncipe Luís” é uma aventura longa onde, em resumo, o herói vê-se obrigado a vencer vários desafios em busca de sua verdadeira origem, portanto, de sua identidade e auto-conhecimento. A história mexe com temas complexos, relacionados a dramas existenciais: um rei não consegue ter filhos e vive preocupado por não ter um sucessor. Para espairecer, resolve sair (viajar) para caçar e, no caminho, encontra uma linda moça, na verdade uma princesa. A moça conta que mora sozinha por causa de um encanto. Se vivesse com seus pais, uma grande desgraça aconteceria. O rei apaixona-se pela moça. Os dois juntos então

“ Passaram quatro dias na mais completa alegria...” p. 8 O rei tem compromissos e precisa partir. Promete voltar em breve para casar-se com a

moça. Enquanto isso, a rainha, a legítima esposa do rei, incapaz de gerar filhos, monta uma farsa e compra uma criança. Ao voltar, o rei fica sabendo que finalmente tornou-se pai. Exultante, esquece a moça com quem teve um caso amoroso. O tempo passa. A princesa solitária tem um filho: Luís. Como vive sòzinha, sem saber o que fazer, manda colocar a criança na porta do castelo de seu pai. O velho rei adota Luís sem saber que o menino é seu neto. Passam-se quinze anos. Luís torna-se um jovem muito bonito e admirado por todos. O mesmo não se pode dizer do outro, filho falso do rei, um rapaz violento e grosseiro. Luís viaja com o padrasto, na verdade seu avô, e, por coincidência, chega ao reino de seu pai verdadeiro. Provocado, briga com o outro rapaz e é condenado (pelo rei, seu próprio pai). Morre caso, no prazo de cinco dias, não descubra quem são justamente seus verdadeiros pais. Luís parte em busca de sua salvação. No caminho encontra

“ ...uma velha muito velha, muito encarquilhada, com o cabelo branco como a neve, mas

airosa e elegante como uma jovem. Vestida do mais preciosso brocado, levava riquissimas jóias e montava um branco palafrém vistosamente ajaezado.” p. 13

A estranha figura promete ajuda em troca de casamento. O rapaz a princípio recusa. A

velha podia ser sua avó! Sem outra alternativa, pois seu prazo está se esgotando, acaba cedendo. Esta mulher ajuda Luís, o rapaz encontra a princesa solitária, sua mãe, volta, declara-se o verdadeiro filho do rei, a rainha e seu filho falso são punidos, o rei casa-se com a princesa e assim a verdade e a justiça são reestabelecidas. Por sua vez, o jovem Luís, mantendo a palavra, para espanto de todos, casa-se com a velha. Na noite de núpcias, já dormindo, ouve a voz da velha esposa:

“– Não te assustes! Dizes qual queres: mulher bonita para toda gente ver, ou feia para

todos e bonita só para ti? – Quero bonita só para mim. – Então acende a luz.

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O príncipe assim fez e ficou maravilhado com sua formosura. – Aqui me tens - disse ela - tal qual eu sou, pois um encanto me torna feia e velha só na

aparência. O príncipe ficou contentíssimo e loucamente apaixonado pela formosa esposa.” p. 24 Durante os dias, porém, a moça volta a ser uma velha feia e encarquilhada. Tempos

depois, durante a noite, a moça torna a conversar com Luís. Insiste. Precisa saber se ele prefere mesmo uma mulher bonita só para ele e feia para os outros ou o contrário. Luís responde:

“ – Já disse que te prefiro bonita só para mim! – Agradeço-te, que por tua palavra me quebraste o encanto! Aqui tens mulher bonita para

os outros e bonita para ti. Menina de quinze anos, filha do mais poderoso monarca do mundo, senhora dos sete impérios, só tu me soubeste desencantar! Sete fadas me fadaram ao nascer para ter a cara de velha que tu viste, enquanto um nobre príncipe me não quizesse desposar.(...) Assim, posso agora ser a mulher mais feliz que há na terra.” p. 25

Eis o desfecho do conto: “ ...fizeram-se grandes festas em acção de graças, e foram estes os príncipes mais felizes

do mundo inteiro.” p. 26 O conto, “A padeirinha”, conta a história de uma linda moça que tem três admiradores.

Como não consegue escolher o melhor entre eles, acaba propondo um teste. O que trouxer a prenda mais original ganhará sua mão em casamento. Os três rapazes vão à luta, dão o melhor de si e conseguem presentes realmente extraordinários: um espelho mágico que enxerga as pessoas à distância; um tapete voador que leva as pessoas aonde quiserem e uma fruta capaz de fazer reviver os mortos. O desfecho do conto surpreende: a moça fica doente, morre e é salva graças aos três moços que se unem para ajudá-la empregando para isso os seus presentes. Agradecida, a moça diz o seguinte:

“ ...como estou muito agradecida a todos igualmente e os estimo da mesma maneira, acho

que podemos remediar tudo, não casando com nenhum e ficando todos quatro amigos para a vida e para a morte.” p. 41

A “História do príncipe Encantado no Palácio de Ferro no Reino da Escuridão”

apresenta um enredo onde várias situações humanas e complexas são abordadas: uma moça, tendo que lidar com o ciúme e a competição da madrasta e suas filhas, opta por ficar sozinha, sai de casa e, assim, enfrentar as dificuldades do mundo. Começa a ouvir uma voz que diz

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“– Maria, se te vires aflita, chama pelo príncipe encantado no palácio de ferro no reino da Escuridão!” p. 51

A menina, sem saber de quem é, nem de onde vem essa voz, acaba sempre esquecendo o

que ouviu, cena recorrente ao longo da história. Trabalhando como criada num palácio, demonstra inteligência e habilidade e vê-se obrigada, novamente, a enfrentar o ciúme e a inveja de outras empregadas que, por exemplo, mentem contando à rainha que Maria se gabava de conseguir lavar e engomar em três dias toda a roupa do palácio. A menina afirmou

“ ... que tal não tinha dito. Mas a rainha, querendo ver até onde chegava a sua habilidade,

respondeu-lhe: “– Pois minha amiga, has-de de fazê-lo, sob pena de morte, se não cumprires o que

disseste.” p. 61 Recebendo a ajuda mágica da voz, Maria enfrenta os desafios propostos pela rainha,

sempre insuflada pelas outras criadas. Seu último e mais difícil teste é encontrar o filho da rainha que está encantado, por coincidência, justamente “no palácio de ferro no reino da Escuridão”. A moça decide encarar o desafio. Sempre seguindo as instruções da voz misteriosa, enfrenta uma série muito interessante de testes, verdadeiros rituais mágicos: faca enterrada na porta; vassoura para a moura poder trabalhar; comida para cavalos e leões; a proibição de olhar para trás; o príncipe transformado num leitão etc. No final, ficamos sabendo que a voz misteriosa é do próprio princípe. Quando os dois voltam à cidade

“ ...a alegria e o entusiasmo foram tais que muita gente, consta, perdeu o siso.” p. 69 Os dois acabam se casando e “ Fez-se o casamento com grande pompa... ” p. 71 “ Os três desejos" é uma antiga história, quase uma anedota, abordando e ironizando o

egoísmo e a mediocridade do ser humano. “ Havia um homem muito pobre que casou com uma mulher formosa, mas tão pobre como

ele.” p. 79 Numa noite fria, marido e mulher conversam sobre a felicidade dos vizinhos. “– Ah! – disse a mulher – se eu tivesse tudo quanto desejo, com certeza sabia ser mais

feliz do que todos eles.

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– E eu - respondeu o marido -– desejava viver no tempo das fadas e conhecer uma que fôsse tão boa que me fizesse tudo quanto eu lhe pedisse.” p. 80

Uma fada aparece e lhes dá o direito de fazer três pedidos. O casal discute e chega a conclusão de que, para realmente obter tudo o que deseja, precisa

não três mas no mínimo doze dons. A mulher, distraída, diz que está com fome, olha para a lareira e exclama “– Que belas brasas! Quem me dera aqui um chouriço, que bem o assávamos e comíamos

com gosto.” p. 82 Um chouriço aparece sobre a mesa. O marido, furioso, deseja que o chouriço vá se

“dependurar” no nariz da mulher. Desesperada, esta pede que o marido deseje tirar “aquele feio apêndice da sua bonita cara”

“– (...) O que não quero é ter isso dependurado no meu nariz. Para que foste tu mau em

mo mandares para cá?!” p. 82 Encerrando o conto, o marido faz o último pedido, desejando que o choriço saia do nariz

da mulher, e ela, risonha, diz “– Olha, homem, eu desconfio que a fada esteve a fazer mangação de nós. Mas deixa lá,

talvez tivesse razão! Quem sabe se seríamos mais felizes, escolhendo outras três coisas?!... E foram assar o chouriço e comeram-no com alegria e boa paz.” p. 83 Evidentemente, a autora conhecia o fabliau Os quatro desejos de São Martinho. A beleza

da mulher, a imagem do chouriço dependurado são indícios disso. O conto “A história maravilhosa do princípe Urso Doce de Laranja” aborda vários temas

complexos da existência humana: o pai, um rei, que, por causa de um paradoxal pedido da filha, “um ramo de flores sem flores”, salta o muro de um jardim desconhecido, encontra o ramo mas é atacado por um monsto. Com a vida ameaçada, vê-se obrigado a fazer um pacto com o monstro e assim, sem querer, cede a própria filha. A menina passa a viver no castelo do monstro e casa-se com ele, transformado agora no príncipe urso Doce de Laranja. O príncipe, porém, só aparece para a moça com seu corpo humano quando as luzes estão apagadas, de forma que esta pensa que está casada com um urso. Um dia, precisando visitar os pais, é questionada pela rainha, sua mãe

“– Pois se tu és minha amiga, hás de dizer-me se teu marido é um bicho ou se é um

homem que anda encantado.” p. 103

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E sugere que, durante a noite, a moça vá com uma vela espiar o marido dormindo. A moça obedece a mãe e descobre que está casada com

“o homem mais perfeito de quantos conhecia.” p. 103 O príncipe, no entanto, acorda gritando: “ – Ai! desgraçada que me dobraram o encanto por mais sete anos! - E voltando-se para a

esposa, acrescentou: – Agora, se me quizeres ver, hás de ir procurar-me no palácio das Janelas Verdes, e só voltas a ser minha mulher, quando tirares da manga desta camisa estes três pingos de sangue.” p.104

A história é longa. Após inúmeros desafios, o enfrentamento de truques como o do vinho

que faz adormecer e outros, a moça acaba encontrando e ajudando o príncipe, seu marido, a libertar-se do encanto que o impedia de ser ele mesmo.

O conto “A princesa da Áustria” narra a história de um rei e uma rainha que não

conseguiam ter filhos. Desesperada, a rainha faz um pacto com o diabo e engravida. Nasce uma princesa muito linda mas diferente das outras crianças. Desde o seu nascimento só come carne e pão e, além disso, gasta, todos os dias, sete sapatos de ferro. Quando chega a idade de se casar, seu pai lança um decreto. A princesa só se casará com quem conseguir desvendar o mistério dos tais sete sapatos. Por outro lado, quem se candidatasse e não conseguisse descobrir o mistério seria enforcado. Muitos jovens perdem a vida por causa da princesa e seu segredo, até que a história chega

“aos ouvidos dum pobre pastorsinho chamado José Pequeno, que vivia com seus pais

numa choça miserável no meio de serras bravas.” p.123 O jovem aceita o desafio, arrisca sua vida e pede para dormir no mesmo quarto da

princesa. Recebendo uma ajuda mágica, descobre que a princesa, todas as noites, parte numa carruagem. O rapaz vai escondido na carruagem que

“Voava (...) por cima de toda a folha, galgava precipícios, atravessava rios, pairava por

sobre as mais altas montanhas, como leve pluma de ave levada pelo vento.” p. 126 A carruagem entra no mar, passa por maravilhosos jardins de cobre, prata e ouro, e chega

ao inferno. Lá, a princesa é recebida pelo rei dos diabos, seu verdadeiro pai, faz com ele uma ceia e com ele dança a noite inteira, gastando os sete sapatinhos de ferro. De volta ao castelo, José Pequeno conta tudo o que viu. A princesa morre e o rapaz é aclamado

“herdeiro do trono, segundo foi a vontade do povo.” p. 134

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A história prossegue. O local onde a princesa é enterrada passa a ser vigiado por um

sentinela que todo o dia aparece morto. Muitos jovens continuam a perder a vida por causa da moça. Novamente, José Pequeno, agora um príncipe, entra em cena. Recebendo a ajuda de uma velhinha, fica no local e com coragem enfrenta o fantasma da princesa.

“ Soube se então que a princesa da Áustria nascida por parte do diabo, nunca estivera morta e sim encantada e só por encanto ela podia fazer tanta maldade. Vencido o inimigo, ficou a menina livre e feliz.” p. 141

José Pequeno finalmente casa-se com a princesa. 5.3.2 Contos Maravilhosos - 6ª Série

No conto “A rainha invejosa”, um bondoso rei é casado com uma rainha linda mas muito invejosa. Uma menina camponesa, também linda, mora com os pais na floresta. A mãe da menina morre. O velho campones chama a filha e diz que os dois precisam se separar. Manda a linda moça morar na cidade. No outro dia, a menina acorda num castelo mágico que fica justamente na frente do palácio do rei. A fama de sua beleza chega aos ouvidos da rainha que fica desesperada de inveja. A rainha tenta se aproximar da moça que passa a receber, diretamente, a ajuda do velho campones, seu pai, na verdade um feiticeiro. Após várias situações entre as duas mulheres, verdadeiros testes, a rainha vem visitar a menina que, instruída pelo pai, chama o toucador e este vem sozinho; chama o penteador e este vem sozinho; chama o pente e este vem sozinho.

“ Por fim, disse: - Vem cá, cutelo! Um enorme cutelo damasquino apareceu imediatamente; e a menina, com muito medo mas

tirando coragem da obedência que devia ao pai, deu um golpe no pescoço e decepou a cabeça. Pô-la nos joelhos e começou a penteá-la com todo o esmero.” p. 30

Inconformada e maravilhada, mas, ao mesmo tempo, cega de inveja, a rainha convida a

menina a ir a seu palácio e tenta imitá-la. Como não tem poderes mágicos, suas ordens são obedecidas por criadas. No fim, também pede um cutelo e morre cortando a própria cabeça.

O rei viúvo, casa-se com a bela menina, em meio a grandes festas. No conto "A feia que se faz bonita", um rei, logrado por uma avó que ama a neta, acaba

casando-se com uma moça “feia como uma noite de trovões", pensando que era lindíssima. Quando descobre a verdade, cheio de raiva, coloca a moça nua na varanda do castelo para que morra de frio. Por acaso, por ali passam fadas.

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“ Na sua companhia andava um príncipe, o mais poderoso e belo de quantos então existiam, que por um desgosto muito grande perdera o riso e que as boas fadas andavam a distrair. Embalde o tinham passeado por todo o mundo e levado a todas as festas e espetáculos, porque ele, sempre triste e indiferente, a coisa alguma dava apreço.” p. 48

Ao ver a moça feia e nua na varanda o príncipe “desatou a rir como um perdido”.

Agradecidas, as fadas transformam a moça feia que torna-se linda. O rei, ao vê-la fica arrependido do que fez, e vive feliz com ela por muitos anos. Há ainda uma história secundária, quase uma anedota. As vizinhas da moça que era feia, muito tolas e invejosas, vão perguntar como ela tinha conseguido ficar tão bela. A moça diz que foi “fadada”. As outras entendem “esfoladas” e acabam sendo esfoladas por um barbeiro.

Na "História da princesa que se perdeu na floresta", uma moça rica, bonita, mimada e

voluntariosa, a herdeira de todo um reino, sai à cavalo para caçar e perde-se na floresta. Resolve dormir um pouco. Um príncipe aparece, fica encantado com sua beleza e, sem acordá-la, pega uma das luvas da menina “para dar sinal da sua presença” e vai buscar uma carruagem para levá-la consigo. Enquanto isso, a menina acorda, pega seu cavalo e parte. Vai morar num reino distante onde começa a trabalhar como criada no castelo real. Infelizmente, ali mora uma princesa louca. Graças a sua inteligência e esperteza, a menina acaba descobrindo e quebrando o encanto que prende a princesa, curando-a. Seu feito é comemorado por todos, a notícia corre e ela acaba sendo convocada por outro rei que tem a filha muda. De novo a menina usa sua inteligência e sua coragem e quebra o encanto da segunda princesa que volta a falar. A menina recebe um terceiro chamado. É um príncipe que

“ ...não falava, nem comia, nem dormia, sempre a olhar para a luva de uma senhora.” p.81 A princesa se apresenta, mostra o outro par da luva e é reconhecida pelo príncipe que fica

curado instantaneamente. Os dois, naturalmente, acabam se casando. “Começaram as festas do casamento, que duraram nos dois reinos mais de um mês e

foram tão esplêndidas que ainda hoje se fala nelas.” p. 83 No conto “As três cidras do amor” “ Havia um príncipe que andava sempre tristonho, duma tal melancolia e desgosto da vida

que não havia nada que o distraísse.” p. 117 Preocupados, seus pais mandam construir debaixo das janelas do príncipe “uma fonte que

deitava vinho em vez de água.” Seu plano era fazer o rapaz rir com a fila de bêbados que se formava todos os dias, cena de “fazer rir um morto”.

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O plano não dá certo. Os pais do rapaz têm outra idéia. Fazem a fonte jorrar azeite. Assim, as mulheres das redondezas começaram a aparecer, cheias de potes, bilhas, púcaros, tijelas e copos. Os pais imaginavam com isso agradar ao filho. Um dia aparece uma velha carregando, na cabeça, um tabuleiro cheio de ovos. Pela primeira vez na vida, o rapaz acha graça em alguma coisa e ainda atira uma pedra no tabuleiro, quebrando os ovos. Furiosa, a velha roga uma praga:

“– Ah! quiz divertir-se comigo? Pois vingar-me-ei, que não lhe hei-de dizer onde poderá

encontrar as três cidras do amor.” p. 119 Ouvindo isso o rapaz fica desesperado. Quer porque quer entender o que a velha disse. A

mulher desaparece. O rei publica um decreto convocando todas as mulheres velhas do reino. No fim, a velha reaparece e manda o príncipe, por um caminho que só ela poderia ensinar, a um castelo rodeado por um bosque guardado por leões mas que tivesse cuidado pois

“ se os visse de olhos abertos é que estavam a dormir (...) mas se (...) tivessem os olhos

fechados era signal de que estavam acordados e o devorariam se cahisse (sic) em chegar a porta.” p.121

Na sala principal o príncipe encontraria as três cidras do amor, sobre uma salva de ouro,

em cima de uma mesa de ágata. Para se defender dos leões, que fatalmente o perseguiriam quando fugisse com as cidras, a velha lhe dá três agulheiros, um com agulhas, outro com cinza e o terceiro com sal.

“ Se conseguisse escapar, abriria então as cidras, mas cada uma por sua vez e sempre ao

pé da água, tendo pão e uma faca ao seu dispor. ” p. 121 O príncipe parte, pois “ ...todo o bom cavaleiro deve correr sem medo os perigos e aventuras que lhe estão

reservados.” p.121 O rapaz segue às recomendações da velha e, perseguido pelos leões, transforma as

agulhas num pinhal fechado, as cinzas num nevoeiro e o sal num mar que faz o leões abandonarem a perseguição.

O príncipe resolve abrir uma das cidras. Surge a menina mais linda que ele já havia visto e pede uma faca, pão e água, caso contrário vai morrer.

O rapaz não tem água e a moça morre. Mais adiante, vítima da impaciência, abre a segunda cidra. Sem água, a segunda menina

também morre.

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Consegue esperar até chegar a uma fonte para abrir a terceira cidra e fica com uma linda moça. Como a menina está muito fraca, o príncipe pede que ela espere escondida sobre a fonte, enquanto ele vai buscar uma carruagem para levá-la consigo.

Uma negra aparece para buscar água. Ao ver a imagem da menina refletida, acha que é sua imagem e fica feliz. Descobrindo a menina escondida no alto da fonte, enfia um alfinete em sua cabeça transformando-a numa pomba.

A pomba sai voando e a negra ocupa o lugar da moça. O príncipe volta, fica surpreso com o aspecto da moça mas, como tinha dado sua palavra,

casa-se com ela. O tempo passa. A pombinha aparece no reino no rapaz e pede notícias do príncipe a um

hortelão. O hortelão vai contar ao príncipe que, por sua vez, manda prender a pombinha. A ação de captura da pombinha é cheia de elementos típicos da teatralidade oral. Fala a pombinha:

“– Ai de mim que estou perdida! Laço de fita não é para o meu pé!” Depois fala em laço de prata e em laço de ouro e, esse sim, prende o pássaro. A pomba passa a viver com o príncipe, sempre junto, pousada em seu ombro etc. A negra

assustada diz que não quer pássaros no palácio. Diz também que morre se não comer uma pomba branca. O príncipe manda preparar outra pomba e dá para a esposa.

Certo dia, ao acariciar a cabeça da pombinha, descobre o alfinete e desencanta a linda moça. A negra é castigada e o príncipe casa-se com a Cidra do Amor

“ ...havendo tantas festas e regozijo tal que durante três meses não se fez nada naquele país

senão cantar e bailar.” p. 132 5.3.3 Contos Maravilhosos - 7ª Série

O primeiro conto, “História de Linda-a-Linda”, fala de uma menina chamada Linda-a-

Linda, muito vaidosa e “linda como os astros”. A moça, pretendida por todos, para decidir-se com quem vai casar, resolve que será com aquele que lhe trouxer a prenda mais bonita. Escolhe um rapaz que lhe dá de presente um espelho falante. Ao ser perguntado, o espelho garante que nunca viu rosto mais bonito do que o dela. O tempo passa. Linda-a-Linda fica viúva, com uma filha pequena. A filha cresce. Certo dia, ao consultar mais uma vez o espelho, Linda-a-Linda descobre que foi suplantada em beleza pela filha.

“ Possuída do mais louco desespero, chamou um criado e deu-lhe muito dinheiro com

ordem de levar a menina à floresta, matá-la e trazer-lhe como prova a língua e a cabeça do dedo mínimo.” p. 10

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O criado leva a menina para a floresta mas não tem coragem de cumprir as ordens da patroa. Por sorte, descobre o corpo de uma mendiga morta. Retira-lhe a língua e a ponta do dedo e solta a menina na floresta, desejando-lhe boa sorte. Tempos depois Linda-a-Linda, aquela mulher que

“a vaidade tornara um monstro ...” p.14 questiona novamente o espelho e, sabendo que sua filha ainda é a mais linda, cheia de

ódio, destrói o espelho falante. Sua filha, enquanto isso, encontra uma casa vazia na floresta, prepara a comida e arruma a

casa. Ali moram duzentos ladrões. Quando eles voltam no fim do dia, a menina amedrontada se esconde num cantinho da cozinha. Os bandidos julgam que a arrumação é obra de alguma fada. Nos outros dias, ocorre a mesma coisa. Intrigado, o capitão dos bandidos ordena que um de seus homens fique em casa para descobrir o que está havendo.

A boa menina tinha um anel mágico dado por sua madrinha. “Enquanto o trouxesse comsigo ninguém lhe faria mal e quando o metesse no dedo de

alguem ficava a dormir até que lho tirassem” p. 16 O bandido de guarda resolve descansar. A menina coloca o anel em seu dedo e assim

pode fazer seu serviço sem maiores preocupações. Outros ficam vigiando, mas acontece sempre a mesma coisa. Enfim, o capitão dos bandidos resolve, ele mesmo, permanecer em casa, finge estar dormindo e descobre a menina. Encantado, o homem a recrimina por ter tido medo dele e de seus amigos.

“– Medo tinheis de nós?! Era natural, mas sabeis que os maiores criminosos também

têem coração e que todos se lembram com saudade que tiveram mãe ou irmãs.” p. 18 A menina passa a viver com os duzentos bandidos mas, infelizmente, uma velha pedinte a

vê e vai correndo contar tudo a Linda-a-Linda. Esta, decide consultar uma bruxa. Para resolver o problema, a feiticeira lhe oferece certos sapatinhos de ouro que

“Tinham (...) o condão de dar à pessoa que os calçasse toda a aparência de morta.” p. 21 Linda-a-Linda manda a velha pedinte vender os sapatinhos à menina. Enquanto isso, o príncipe, herdeiro daquele reino, passeando pela floresta vê a menina e

fica apaixonado. Resolve voltar no dia seguinte para declarar o seu amor. Não mais a encontra. Ao retornarem no fim do dia, os bandidos acham a menina morta, mandam construir um

caixão de cristal, e passam a guardá-la dentro de casa.

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Desesperado por não achar a menina em parte alguma, o príncipe resolve entrar no antro dos bandidos para raptar a moça, que julga estar ali presa. Manda cercar a casa com seu exército e prende os bandidos, que não oferecem resistência

“desanimados porque o capitão não era já o mesmo valente, desde que a menina

morrera” p. 25 O príncipe leva o caixão de cristal para sua casa e guarda-o em seu quarto, sem contar para

ninguém. Ali passa seus dias e suas noites contemplando a morta. Seus pais, “Apoquentados por verem o filho naquela profunda tristeza, pediram ao amigo que o

fizesse sair a passeio e, na sua ausência foi a rainha com as damas procurar nos aposentos do príncipe a causa do seu mal.” p. 26

A rainha desconfiada, entra no quarto do filho e tira os sapatinhos da menina que

ressuscita e conta sua história. O príncipe, radiante, casa-se com a menina. Os ladrões são libertados. Linda-a-Linda pede perdão e é perdoada.

O conto “História do Armador” narra a história de um rico armador que vive viajando

com seus navios pelo mundo. Durante uma tempestade, vendo-se ameaçado de morte faz um juramento. Caso conseguisse salvar-se, casaria

“ ... com a menina mais pobre do sítio em que desembarcar, seja cidade, vila ou aldeia.” p. 32 A tempestade cessa e o armador casa-se com uma moça muito pobre mas que revelou-se “a mais encantadora, simples e engraçada mulher, que durante a sua vida tinha

encontrado.” p. 33 O armador gosta muito de sua mulher. O tempo passa. Um dia, durante uma viagem,

conversando com um amigo este lhe diz que “ ...não há mulher alguma que mereça confiança: a mim não se me dava de apostar em

como era capaz de a ver e de fazer com que me desse todas as prendas que lhe deste no casamento.” p. 34

A aposta é feita. O amigo do armador, através de um ardil, consegue mandar roubar um

cofre onde a moça guardava os presentes de casamento dados pelo marido. Diante das evidencias, o armador volta para casa com um “turvo aspecto” e manda a

esposa se arrumar pois teriam que realizar uma longa viagem. Sem maiores explicações, a moça é abandonada pelo marido num lugar distante e deserto.

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Muito triste, a moça, sem saber onde está e sem compreender o que está acontecendo, vai andando sem rumo. Seu pensamento é um só:

“ -... vir a conhecer o motivo do despreso de meu marido!” p. 39 Certa noite, assiste, escondida, uma reunião de bruxas no meio da floresta. Fica sabendo

que a rainha, há oito dias, nem come, nem bebe, nem abre os olhos, por causa de um feitiço. Para quebrar o encanto o segredo seria necessário queimar o travesseiro da rainha, “onde está metida a feitiçaria.”

A esposa do armador troca suas ricas roupas com as roupas humildes de uma camponesa e vai à cidade. Lá, o rei oferece uma recompensa para quem curar a rainha.

A moça salva a rainha e passa a morar no castelo como dama de companhia. Uma peste assola o reino, enchendo o hospital de doentes. O rei convoca a moça para resolver a questão. A mulher do armador usa um ardil. Vai ao

hospital, e, em voz alta, diante dos doentes, diz que o único remédio é matar alguns deles para dar o sangue dos mortos aos outros.

“ Os doentes que isto ouviram e não sabiam qual é que seria destinado à morte, trataram

de chamar os enfermeiros, pedir o fato, e sem explicarem mais nada foram-se a andar, dizendo que só a vista da senhora os tinha curado” p. 42

Radiante com o ardil da moça, o rei declara que, como prêmio, ela podia pedir o que

quisesse. A esposa do armador diz que quer “sevir de juiz na capital do reino vizinho.” Aceito o pedido, a moça “vestida de homem se dirigiu ao paço onde ninguém a reconheceu...” p. 43 A mulher do armador fica famosa por seus bons e justos julgamentos. Um dia, sua própria mãe aparece no tribunal. Sem reconhecer a filha, a boa senhora clama

por justiça. Conta toda a história, diz que perdeu a filha, abandonada pelo genro e que este “ ...desde que voltou da tal maldita jornada, não fala com ninguém. Tudo o que tinha deu a

um compadre e só ficou com um navio onde se mete como um urso no seu covil.” p. 45 O “juiz” manda convocar o marido, que também não a reconhece. Interrogado, o armador

conta sua história falando da traição da mulher. “– Então - perguntou o juiz - porque razão ao chegar a casa não interrogou sua mulher?

Talvez tudo se explicasse bem. – Já tenho pensado nisso, mas naquela ocasião, desesperado como estava, só me lembrei

de a afastar da minha vida. E hoje, ainda que me peze o que fiz, como remediá-lo se a abandonei

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em sítio tão êrmo, que decerto terá morrido de fome e sêde ou talvez devorada pelos lobos!” p. 46

O juiz chama o compadre do armador. O sujeito confessa o que fez mas diz

“– Eu apostei levar-lhe as prendas que dera à mulher no dia do casamento; cumpri o que disse, não tenho de que ter remorsos.” p. 47

O juiz convoca a velha que, a pedido do sujeito, roubou o cofre com os presente do armador. A mulher alega que era pobre e que graças ao que fez tinha sido gratificada e conseguido um fim de vida sossegado. O juiz faz uma retrospectiva, lembrando ponto por ponto de tudo o que aconteceu (note-se a anacefaleose). O armador pede para ser morto pois não pode conviver com o

“desgosto de ter perdido, pela minha tola credulidade, a melhor e a mais interessante das

esposas. ” p. 50 O juiz encerra a sessão e pede à mulher, sua mãe, e ao armador, seu marido, que fossem

mais tarde à sua casa. Lá, revela sua verdadeira identidade. Reestabelece-se a justiça. O armador e sua mulher passam a viver juntos e felizes novamente.

O conto seguinte, “História da Machadinha” conta a história de um jovem esperto que

resolve se casar com a filha de um lavrador, seu vizinho. O lavrador, contente, pois o jovem é um bom partido, para comemorar o noivado, pede à filha que pegue uma jarra de vinho na adega. A moça vai mas enquanto enche a jarra vê uma machadinha pendurada no teto e fica preocupada

“– Ora, eu vou-me casar amanhã; em tendo um menino, pode vir aqui, a machadinha cai-

lhe em cima e mata-o!” p. 57 Como a moça está demorando muito, vai a mãe ver o que está acontecendo. Ouvindo os

argumentos da filha, também fica na adega preocupada. Enquanto isso o vinho, saindo da pipa, já escorre fora da jarra.

O lavrador, com a demora da esposa, vai até a adega e sabendo de tudo fica admirado com a esperteza da filha. Finalmente o rapaz vai até lá verificar o que está acontecendo. A moça explica a situação ao rapaz.

“– Olhe que é grave! - disse o lavrador embasbacado.” p. 57 com a inteligencia impressionante da filha. O noivo concorda que realmente a situação é

complexa e diz

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“– É grave, é - respondeu o noivo - mas fiquem vocês cá a pensar nisso que eu vou correr

mundo. Em encontrando remédio para esse mal, cá venho ter. E consigo dizia: – Já não me apanham, só se encontrar gente ainda mais parva do que

eles.” p. 58 O rapaz segue viagem. Encontra uma velha tentando colocar o sol dentro de um cesto. Ela

diz que sua casa é muito úmida e lá nunca entra sol. O rapaz lhe pede quarenta escudos, sobe no telhado da casa e retira algumas telhas. Com isso, a casa fica ensolarada e a velha muito contente.

O rapaz segue seu caminho e chega a um lugar onde as pessoas acordam ainda de noite “para irem ao cimo duma serra buscar a madrugada.” p.59 O jovem diz que tem um animal precioso especialista em fazer esse tipo de serviço. Por

cem escudos “– O espertalhão deu-lhes um galo que trazia para farnel, e foi-se danando, déu-em-déu,

com mais aquele dinheirinho ganho à custa dos tolos. ” p. 60 Mais adiante, encontra um lugar onde as noivas costumavam entrar na igreja à cavalo.

Naquele dia, a noiva era muito alta e não passava pela porta. As pessoas estavam em dúvida se cortavam as pernas do cavalo ou a cabeça da noiva.

Por um saco de dinheiro, o rapaz ensina a noiva a baixar um pouco a cabeça na hora de passar pela porta.

Em seguida o rapaz chega a uma casa e é recebido por uma criada que anda muito preocupada. Há quarenta anos, sua patroa teve um filho. Como ninguém sabia o que fazer, os dois estavam até aquele dia deitados no quarto. O viajante vai até lá e diz que já está na hora do bebê, já um quarentão, “se ir levantando e brincar pela casa”. Recebe um pagamento por tão sábio conselho.

No caminho de volta, engana uma mulher e acaba recebendo de presente uma égua, uma porquinha, roupas e comidas. O marido da mulher volta para casa e furioso, sai em perseguição do rapaz, sendo também ludibriado.

O jovem chega em casa e, procurando o lavrador, pergunta se ele já havia encontrado um remédio para o problema da machadinha. Diante da resposta negativa, o rapaz vai até a adega, estica a mão e retira a machadinha do teto. A família do lavrador fica encantada com tamanha argúcia.

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“ O rapaz tratou de apressar o casamento porque, na verdade, mais parvos do que a noiva e os sogros encontrou muitos, e reconheceu que quanto mais gente se vê mais tolos se conhecem.” p. 69

Em “A princesa das pedras lindas”, uma velha mulher e seu filho acabam perdendo tudo

o que têm e resolvem sair pelo mundo em busca de fortuna. No meio da caminho, param à beira de um rio para beber água. Encontrando uma pedra muito brilhante, o rapaz decide levá-la consigo. Os dois passam a viver numa cidade. Um dia, a pedra se abre e dela sai uma

“ ...menina lindíssima vestida de branco e coberta de jóias, como se fôsse para uma festa.

A pedra fechou-se logo, ficando na mesma, brilhante como o sol. E assim ficaram a viver os três.” p. 84

Como a situação econômica continua difícil, a menina sugere ao rapaz que venda a pedra, mas ela é tão valiosa que ninguém tem dinheiro para pagar. O jovem resolve procurar o rei. O soberano compra a pedra por muito dinheiro e pede ao rapaz outra pedra igual. O rapaz volta para casa, manda construir um palácio e depois conta o pedido do rei. A menina explica que isso é impossível. Segundo ela, a pedra era obra de um gênio que

“ ...aborrecido do mundo, se recolheu a uma torre no meio do mar, onde nem as aves do

céu podem subir. ” p. 87 O jovem não desanima e resolve ir até o rio, a procura de outra pedra. O rio havia secado.

O rapaz vai ao rei relatar o acontecido. O rei simpatiza cada vez mais com o rapaz a ponto de, por gentileza, enviar seu barbeiro pessoal para lhe cortar a barba. Isso gera inveja. O tal barbeiro, com raiva por ter de servir ao jovem, conta ao rei que o rapaz mora com uma linda menina.

“O monarca cheio de curiosidade, respondeu: – Pois eu quero ver imediatamnete essa maravilha; como ha de ser? – Difícil será, meu senhor, que o rapaz tem bem guardada aquela jóia, mais valiosa do que

o brilhante que ilumina a vossa sala do trono.” p. 89 Por sugestão do barbeiro, o rei manda chamar o rapaz e lhe pede para ir à “Torre da má

hora, quem vai lá não torna” pegar uma certa laranja que existia num jardim. Caso não consiga cumprir a ordem, será condenado à morte. O rei, com isso, pretende afastar o jovem e assim conhecer a formosa moça.

O jovem volta para casa desesperado mas a moça diz: “– Não te apoquentes, que tudo neste mundo tem remédio, menos a morte. Volta ao

palácio e pede ao rei que te mande amanhã de madrugada, pelo seu barbeiro, doze cavalos que

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formarão no campo, fora da cidade. Tu então vais daqui e verás ao lado dos doze cavalos do rei um outro que será invisível para o resto das pessoas; monta nele e parte para a torre. Um vez ali, não olhes para parte alguma, nem te importes de saber o que se passar, péga na laranja e vem-te embora.” p. 90

O rapaz parte em seu cavalo invisível levando os outros doze cavalos. O barbeiro,

espantado, julga que o rapaz está voando. A torre é protegida por feras. Enquanto elas atacam os cavalos, o jovem entra, pega a laranja e volta em seu corcel mágico. Em casa, entrega a laranja à moça da pedra. Da laranja sai outra linda moça vestida de cor-de-rosa. As duas meninas se abraçam felizes, pois, na verdade, são irmãs,

“ ...princesas, filhas de um rei, que um mau gênio encantára.” p. 91 Como durante todo esse tempo, as janelas e portas do castelo do rapaz ficaram fechadas,

o rei não pôde ver nada. O jovem leva a laranja ao rei que fica muito feliz, gerando mais inveja. O barbeiro volta ao

palácio do rapaz e descobre a moça cor-de-rosa. Avisado, o “ ...rei com mais vontade ficou ainda de ver aquelas duas formosuras. ” p. 93 Sendo assim, manda o rapaz para a “Serra das pedras negras” buscar um certo limão

encantado. O rapaz fica assustado mas, voltando para casa, ouve os conselhos da menina de branco:

“ ...pede-lhe quinze cavalos e deita-os a correr adiante, montando tu no mais veloz, depois

vae à Serra e traze o limão sem importares com coisa alguma.” p. 93 O rapaz fecha as janelas e portas do seu palácio, parte e volta com o limão encantado. De

dento do limão sai uma linda menina vestida de azul. Era a terceira irmã que estava encantada. O rapaz leva o limão para o rei. Os cortesãos ficam cada vez mais enciumados. Através do

barbeiro, o rei fica sabendo da terceira moça e arde “ ...de curiosidade por ver as senhoras.” p.94.” O barbeiro então procura o rei. Diz que só seus pais, o pai do rei e o pai dele mesmo,

barbeiro, mortos há muitos anos, sabiam a maneira de desencantar as princesas filhas do rei. Sugere que o tal rapaz, que é tão valente, vá ao inferno visitar o rei morto e o barbeiro morto para aprender a desfazer o encanto. O rei então

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“ ...escreveu uma grande carta ao rei seu pai e o barbeiro outra ao seu e mandaram vir o rapaz para o encarregar da missão.” p. 95

Aconselhado pelas três meninas, o rapaz pede ao rei que mande abrir um poço diante de

sua casa, para que ele possa descer aos infernos. Diz também que só pode partir daí a um ano, poir a viagem é longa e ele precisa se preparar. O poço é construído e tapado por uma enorme pedra.

Na verdade, o túnel aberto tem uma ligação secreta com a casa do rapaz. Passado um ano, o jovem se despede de todos, entra no túnel e vai tranquilamente para sua casa. Enquanto isso

“As janelas e portas foram fechadas e ninguém mais viu as três meninas por mais que

passassem e repassassem na rua. O rei estava desesperado mas não tinha remédio senão calar-se.” p. 96

Passado um tempo, o rapaz finge voltar do inferno trazendo cartas assinadas pelos

defuntos, rei e babeiro. Na verdade as cartas eram escritas pelas moças. Nelas, os mortos pedem que o barbeiro vá visitá-los. O barbeiro vai, o buraco é fechado com a pedra e lá ele fica para sempre.

As três moças então se apresentam. São na verdade as filhas do rei que assim ficaram desencantadas. O rapaz acaba se casando com a moça vestida de branco em meio a grandes festejos. Mais tarde torna-se rei.

O conto “Os figos maravilhosos” narra a história de um rei que tem dois filhos. Um

deles, apesar de bem intencionado, é muito trapalhão. Um dia, cansado das enrascadas do filho, vistas por ele como más ações, o rei expulsa o príncipe de casa. Penalizada, a rainha chama o rapaz de lado e pede a ele que vá ao reino de seu avô. Coloca em suas mãos um colar de pérolas

“que mostraria ao avô para ser reconhecido como neto.” p. 112 O rapaz parte. No meio do caminho, senta-se debaixo de uma figueira para descansar e

resolve comer um figo. “ ...mas logo o nariz lhe cresceu tanto e tanto, que não se podia mover dali.” p. 112 Uma velhinha aparece. Penalizada diante do estado do rapaz, conta que ali perto existe

outra figueira com figos que desfazem o efeito do primeiro. Para ajudar, ela mesma pega os figos e dá a ele. O nariz volta ao estado normal. A velha manda o rapaz beber um pouco de certa água. O rapaz bebe e começa a falar feito uma matraca, descontroladamente.

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“– Vá mais adeante disse a velha e beba água de outra fonte que ficará a falar como é do seu natural, mas com muito mais eloquência e graça! E leve água das duas fontes e figos das duas figueiras, que tudo lhe há de ser preciso.” p. 114

O rapaz dirige-se à corte do avô que não acredita que ele seja mesmo seu neto. Magoado, o rapaz se disfarça e vende um figo ao rei que, naturalmente, fica com o nariz

imenso. “ Desesperado mandou chamar todos os médicos do reino para lhe cortarem o incômodo

apêndice, mas nenhum se atreveu a fazer tão perigosa operação.” p. 115 O príncipe veste sua roupa normal, procura rei e lhe dá outro figo. Imediatamente o nariz

do rei volta ao tamanho normal. Como preço pelo trabalho, o rapaz pede a mão da princesa, neta do rei.

“– Ah, isso não! Pede tudo quanto quizeres, mas a mão da princesa Branca não dou

porque tem um grande defeito, e a neta dum rei não pode ter defeitos. Outro será o herdeiro do meu poder. ” p. 116

O rapaz insiste. O rei revela que a princesa é muda. “– Ah, pois se é só esse o seu defeito bom remédio tenho.” p. 116 O príncipe dá a moça a água que faz falar e ela dispara a falar pelos cotovelos. Depois, lhe

dá a outra água e, então, a moça começa a falar normalmente, com “acerto e inteligencia, dizendo coisas que a todos espantavam pela justeza dos

conceitos... ” p. 117 Ao receber a mão da moça, o rapaz assume sua verdadeira identidade. “ Houve uma grande festa de que ainda hoje se fala naquele reino e foram todos muito

felizes. ” p. 118 No conto “Os irmãos” um homem muito pobre tem dois filhos e fica viúvo. Casa-se de

novo. Sua segunda mulher “ ...que antes era bôa e condescendente para as crianças, tornou-se por tal maneira áspera

depois de senhora da casa que os dois irmãos a não podiam tolerar.” p. 119

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Os meninos fogem e, perdidos na floresta, encontram a casa de uma velhinha. Subindo no

telhado e deslocando uma telha, descobrem que a mulher está fritando bolinhos. Mortos de fome, arranjam uma vara e pescam os bolinhos. A velha, na verdade uma feiticeira, acaba descobrindo os meninos e os prende numa caixa. Secretamente, pretende engordá-los para depois comê-los.

“As crianças lá iam vivendo dentro da sua prisão comendo castanhas à vontade, de modo

que já pareciam dois leitõezinhos gordos; mas a feiticeira não sabia, porque todos os dias os mandava deitar um dedinho por um buraco que tinha na arca e eles metiam o rabito dum rato que conseguiram apanhar. ” p. 121

Desconfiada, resolve abrir a caixa e descobre que os meninos já estão bem gordinhos. “Tirou-os para fora, fez-lhes uma grande festa e mandou-os amolar um facalhão imenso

na pedra que estava à porta.” p.123 Os dois meninos obedecem assustados, sem saber o que fazer. Nisso passa uma

“ formosa senhora”, adverte os meninos dos perigos que estão correndo e lhes deixa uma varinha de condão.

Os meninos fogem, são perseguidos pela bruxa, graças aos poderes da varinha mágica, transformam-se num burro carregado de sardinhas e num sardinheiro; numa ermida e num ermitão que perguntado pela velha, sobre os meninos, diz

“– Nada – (...) – ha cem anos que aqui estou e ainda não vi passar ninguém com esses

signaes.” p.124 Mais tarde, novamente perseguidos, os dois irmãos transformam-se num peixe e num

lago, onde, finalmente, a velha acaba se afogando. Os dois meninos vão morar na capital “ ..onde se estabeleceram e viveram como príncipes. ” p. 125

5.4 Comentários sobre os Contos Maravilhosos

Os trinta contos maravilhosos, de origem popular, recontados por Ana de Castro Osório, formam, em nosso ponto de vista, um interessantíssmo painel por intermédio do qual podem ser levantadas e discutidas inúmeras questões relevantes para o estudo da literatura infantil.

Optamos por separá-los em três grupos:

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(a) Utilitários: os que principalmente pretendem ser intrumento de algum tipo de ensino ou lição moral.

(b) Ficcionais: os que principalmente pretendem contar uma história. (c) Mistos: os que apresentam estes dois elementos combinados. Identificamos como elementos do grupo (a), os seguintes contos: - “S. Pedro e a ferradura” - “O soldado jogador” Identificamos como elementos do grupo (c), os seguintes contos: - “O Olharapo” - “A menina curiosa ou a luta do bem e do mal” - “O que é a felicidade” - “O tio Novelo” - “A esperteza de um sacristão” - “História das três meninas da torre” - “O príncipe com orelhas de burro” A nosso ver, os contos integrantes dos grupos (a) e (c), poderiam, em linhas bastante

gerais, ser identificados com os contos do livro Alma Infantil, pois, como estes, pretendem ensinar e educar. Ressalte-se que, num universo de trinta histórias, representam nove, ou seja, menos de um terço do total, quando em contrapartida, em Alma Infantil, todos os contos são moralistas, sem exceção.

Fora isso, note-se que, apesar de contarem histórias voltadas, umas mais outras menos, ao ensino e à educação moral, os referidos contos ultrapassam em muito a noção de realismo factual e cotidiano, encontrado nos contos do livro Alma Infantil, recorrendo, quase sempre, a imagens, enredos e temas ligados à ficção não realista, ao irracional, ao desconhecido, ao imensurável e ao fantástico.

Todos os outros contos pertencem ao grupo (b), ou seja, são os ficcionais, aqueles que, principalmente, pretendem contar uma história. Os contos do grupo (b) nos interessam diretamente. Vamos analisá-los com mais vagar.

Novamente, dividiremos nossos comentários em dois planos desenhados artificialmente, um deles contemplando os aspectos formais dos Contos Maravilhosos e o outro, os aspectos temáticos.

A mesma situação formal encontrada no livro Alma Infantil, aparece, ainda com mais vigor, nos textos dos Contos Maravilhosos, ou seja, a tentativa evidente de aproximar e atingir o leitor, através de um discurso claro e direto; o tom coloquial; a ação

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e o diálogo sempre ocupando mais espaço que a descrição; a preferência pelas orações coordenadas em lugar das subordinadas; a utilização de um repertório vocabular comum, popular, familiar, conhecido da platéia (=leitor); o emprego, agora ainda mais nítido, das fórmulas verbais pré-fabricadas, frases feitas, clichês, lugares comuns e ditados, além de inúmeras figuras de linguagem.

“ Pouco tempo antes tinha este rei ido a uma caçada, perdendo-se no caminho. Andou

para traz e para diante até que chegou à porta duma quinta.” p. 6 “ Ia pela estrada fora, ao acaso, sem bem saber o que fizesse, quando deu de cara com uma

velha muito velha, muito encarquilhada, com o cabelo branco como a neve, mas airosa e elegante como uma jovem.” p. 13

“ ...fizeram-se grandes festas em acção de graças, e foram estes os príncipes mais felizes

do mundo inteiro. Seja Deus louvado, está o conto acabado.” p. 26 “Era uma vez um homem que tinha três filhos.” p. 27 “ Diz-se que existiu, num certo país distante, uma padeirinha que era linda como uma

flor.” p .33 “ O primeiro andou muito, percorreu terras sem conta, mas nada via que podesse levar

como prenda melhor.(...) O segundo rapaz foi por outro caminho e chegando tambem a uma grande e magnífica cidade...(...) O terceiro rapaz foi andando até que chegou a um jardim formosíssimo.” p. 35/36

“Vendo-se abandonada começou a andar, a andar, mais triste do que a morte!” p. 67 “ ... a alegria e o estusiasmo foram tais que muita gente, consta, perdeu o siso.” p. 69 “Andou e desandou horas esquecidas...” p. 74 “ Quando se viu fora das unhas do monstro ...” p. 77 “ Havia um rei e uma rainha que tinham três filhas. ” p. 85 “ ...a coisa mais delicada e linda que jamais tinha aparecido aos seus olhos.” p. 87 “ - Não! Tem fé que a não perdes - disse a velha - Ainda has de ser feliz; atraz de tempo,

tempo vem.” p. 106

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“ - Tem esperança, que o sol vem sempre depois da tempestade! “ p. 107 “ Havia em tempos que já lá vão (...) um rei e uma rainha que tinham muita pena de não

terem filho ou filha que lhes herdasse honras e fortunas.” p. 119 “ ...galgava precipícios, atravessava rios, pairava por sobre as mais altas montanhas, como

leve pluma de ave levada pelo vento.” p. 126 “Árvores, flores, ramos, folhas, tudo era feito de cobre.” p.128 “ - Mas o rapaz, nem chús nem bús, aquillo estava com um susto que nem que quizesse se

poderia mexer!” p. 131 “Levaram-lhe em triunfo por toda a parte, fizeram-lhe grandes festas, e os reis abraçaram-

no cheios de alegria.” p. 139 Os exemplos foram pinçados exclusivamente do primeiro livro, Contos Maravilhosos, 2ª

Série, mas são suficientes, acreditamos, para demonstrar inúmeros índices de oralidade - pelo menos no que diz respeito à adaptabilidade às circunstâncias, à teatralidade e à concisão. Como exemplo deste último ítem, vale ressaltar os enredos de “História do príncipe Luís”, “ História do príncipe Encantado no Palácio de Ferro no Reino da Escuridão” ou “ História de Linda-a-Linda” entre outros, verdadeiras epopéias, repletas de situações e aventuras, mas apresentadas em poucas páginas. Quanto ao formulismo, evidente em todos os contos, poderíamos ainda mencionar certos aspectos relacionados à estrutura do enredo, como por exemplo, a “lei dos três” de Axel Olrik, comentada por Burke

“ ... o pai moribundo diz ao filho que observe três preceitos; eles os rompe um a um.(...)

um funcionário desafia o ladrão a roubar três objetos, e o ladrão consegue.(...)...um padre é enganado por três malandros mas vinga-se deles em três etapas. (...)

Tal lei talvez exista, diz Burke ...porque três é o número máximo de pontos que o narrador oral pode esperar que seu

público retenha mentalmente.” 331 Sobre as questões relacionadas ao estudo da estrutura do enredo, o mesmo autor faz um

pequeno e conciso retrospecto:

331 Op. cit. p. 169.

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“ Há muito já se percebeu que os contos folclóricos são combinações instáveis de elementos que têm uma existência semi-independente, vagueando ou passando de um conto para o outro. Para rastreá-los o folclorista americano Stith Thompson compilou um volumoso índice de motivos de contos populares, ao passo que seu colega russo Vladimir Propp afirmou que os contos de fadas russos se baseiam num repertório de 31 motivos (ou “funções” como ele os chama), nem mais nem menos, que vão de “um membro da família deixa a casa” a “o herói casa e sobe no trono”. Se tomarmos os contos publicados por Straparola em 1550 e os confrontarmos com o índice temático de Thompson, logo fica claro que êles contêm muitos temas bem conhecidos. Por exemplo, há o tema do animal, pássaro ou peixe que ajuda o herói e muitas vezes tem o dom da linguagem; ou o tema dos testes feitos ao pretendente, que pode ser obrigado a domar cavalos selvagens, matar um dragão ou ir em busca do elixir da vida. Ou, então, se nos concentrarmos em um conto popular, como Cinderela, descobriremos que ele pode ser decomposto em cinco motivos básicos, A,B,C,D,E, da seguinte maneira: A, a heroína é maltratada pelos seus parentes; B, ela recebe auxílio sobrenatural; C, ela se encontra com o herói; D, ela passa por um teste de reconhecimento; E, ela se casa com o herói. Cada motivo aparece numa série de variantes: por exemplo, D1, apenas uma moça consegue calçar a sandália; D2, apenas uma moça consegue pôr o anel; D3, apenas uma moça consegue arrancar a maçã. A versão da história segundo os Grimm poderia ser abreviada como A1,B1,C1,D1,E. Uma vez assim decomposta, a história em seus motivos elementares, fica evidente sua afinidade com outras histórias da coletânea dos irmãos Grimm (...) .Mais uma vez, descobrimos que “ textos diferentes são iguais”, ou melhor, são transformações uns dos outros, diferentes permutações entre os mesmos elementos básicos.” 332

Na visão de Burke, com a qual concordamos, talvez seja exagero, porém, falar em “ leis ”

universais que governam a combinação dos motivos dos contos, baladas etc, mas, lembra ele, existem de fato certos padrões de combinações, ao invés de uma associação aleatória entre um elemento e outro. 333

Dito isso, voltamos aos Contos Maravilhosos recontados por Ana de Castro Osório, privilegiando, agora, seu aspecto temático.

Observando o livro anterior, Alma Infantil, foi possível identificar os seguintes pontos: 1) uma linguagem apresentando inúmeros índices de oralidade; 2) um tom eminentemente didático ou moralista; 3) um narrador que se coloca na posição de saber mais do que o leitor e que pretende

ensiná-lo; 4) personagens, sem exceção, crianças; 5) um mundo onde adultos são seres sábios, racionais, altruístas, maduros e equilibrados, e

crianças seres ignorantes, irracionais, egoístas, imaturos e desequilibrados;

332 Idem.Ibidem p. 157. 333 C.f. Op. cit. p. 165.

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6) temas “realistas” (apresentam-se como reflexo de uma realidade palpável, mensurável e nítida), lógicos, cotidianos e específicos, onde, quase que como numa fórmula, mostra-se ao leitor uma situação de erro comportamental da personagem e, na seqüência, através de exemplo, ensina-se como corrigí-la;

7) personagens ricos sendo que a pobreza sempre aparece como um pano de fundo impessoal e absolutamente “natural”.

Nos contos maravilhosos, classificados por nós como (a) e (c), a situação é similar, mas

de forma alguma indêntica. Embora tenham também um tom didático-moralista, principalmente no desfecho, e, portanto, um narrador que se coloca na posição de ensinar, suas personagens nunca são crianças e as histórias transcendem a lição moral, quase sempre enveredando pelo mágico, pelo paradoxal, pelo poético e pelo fantástico. Tem-se a impressão, na verdade, de que a mensagem moral foi acrescida posteriormente ao enredo. Deixaremos de lado, em todo caso, os contos desses dois grupos.

Chegamos, finalmente, aos vinte e um contos, classificados por nós como tipo (b), ou seja, os ficcionais, aqueles que principalmente pretendem contar uma história.

Como características gerais gostaríamos de ressaltar que todos, sem exceção: 1) apresentam um narrador que simplesmente conta uma história, sem jamais pretender

ensinar ou direcionar essa ou aquela interpretação por parte do leitor (ressalvando-se evidentemente que todas as histórias são centradas em heróis que representam ou estão do lado do Bem visto sempre pelo prisma da moral ingênua);

2) não se dirigem a um público específico e tratam de assuntos bastante amplos, de interesse dos seres humanos de um modo geral;

3) utilizam-se larga e ricamente dos recursos da ficção e da fantasia, pressupondo, portanto, uma realidade não dominada onde há espaço para o imensurável e o desconhecido;

4) apresentam e abordam a existência vista sempre de um ponto de vista particular, do interesse pessoal e afetivo. Fundamentalmente, as personagens dos Contos Maravilhosos buscam ser felizes e determinam o que é certo ou errado a partir de seus objetivos particulares. Por este ângulo, o Bem seria tudo o que ajuda herói, e o Mal, tudo o que o prejudica. Essa postura eminentemente subjetiva diante da vida e do mundo, chamada por Jolles de moral

ingênua, seria, segundo ele, uma ética do acontecimento. Ao que parece, em todas as histórias, as situações temáticas (quase sempre interagindo

dialógicamente), pressupõem três pontos sólidos: 1) personagens jovens ou adultos, nunca crianças (exceção feita ao conto “Os irmãos”,

que, em todo caso, terminam a história já adultos e ricos), em busca de sua origem, do auto-conhecimento, da própria identidade ou da auto-afirmação (vistas sempre de forma ampla, como busca genérica, natural e comum a todas as pessoas e não como um anseio individual e particular de uma determinada personagem.);

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2) personagens em busca do amor e do casamento, portanto, do parceiro sexual; 3) personagens em busca da “fortuna” , portanto, do poder e da situação financeira

estável; Além destas situações amplas, que podem ser relacionadas à vida de todas as pessoas,

independentemente de faixas etárias (crianças, ao que parece, compreendem esses temas perfeita e completamente), o que as diferencia, como se vê, das descritas por nós nos outros contos estudados (com assuntos específicos da “infância”), gostaríamos de destacar, livremente, uma série de temas que vão surgindo no decorrer das histórias:

4) a luta do novo contra o velho ( “História do príncipe Encantado no Palácio de Ferro no Reino da Escuridão”, “História de Linda-a-Linda” entre muitos outros.);

5) o humor, a zombaria, a ironia, a paródia, a anedota, a comédia, o riso como saída (“ Os

três desejos”, “A feia que se faz bonita”, “História da Machadinha”, “ Os figos maravilhosos ”, “Franganito”, “História do armador” entre outros);

6) a busca da felicidade pessoal (todos, ao contrário dos contos Alma Infantil onde o que

se busca é sempre o princípio, a norma comportamental, a ação bem aceita socialmente, o “politicamente correto”, independente de anseios individuais.);

7) a complexidade dos relacionamentos afetivos ( “A padeirinha”, “História Maravilhosa

do princípe Urso Doce de Laranja”, “História do príncipe Luís”, entre muitos outros.); 8) o adultério (“História do príncipe Luis”, “História do Armador”, entre outros); 9) a disputa entre mãe e filha, madastra e enteada ou entre fêmeas (“História do príncipe

Encantado no Palácio de Ferro no Reino da Escuridão”, “História de Linda-a-Linda” , “As tres cidras do amor” entre muitos outros.). Este tema é, naturalmente, ligado à luta do novo

contra o velho; 10) a disputa entre irmãos (“História do príncipe Luís”, “O tio Novelo”, “Os figos

maravilhosos ”, entre muitos outros.); 11) a existência da maldade humana, da inveja, do ódio, da violência, da morte, (“A

princesa da Áustria”, “O príncipe Luís”, “A princesa das pedras lindas”, entre muitos outros.);

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12) a depressão emocional ( “O que é a felicidade”, classificado por nós como mista, mas com tema, a nosso ver típico de ficcional, “A feia que se faz bonita”, “As três cidras do amor”, “ História do armador”; “História de Linda-a-Linda” entre outros.);

13) a existência de forças desconhecidas e imensuráveis (todos, ao contrário dos contos

de Alma Infantil, onde o racionalismo, a lógica e o “realismo” imperam.); 14) a metamorfose - heróis fisicamente transformados em monstros etc. A luta pela

transformação de um estado insatisfatório para outro onde a verdade e a justiça é estabelecida (quase todos);

15) sentimentos humanos genéricos e complexos como a paixão, a loucura, o amor, a

amizade, a compreensão, o egoísmo, a mentira, o ciúme, a miséria, a vingança, a ambição, o orgulho, a prepotência, a insegurança, o sarcasmo (quase todos);

16) o incesto (claramente em “A princesa da Áustria”, mas também insinuado em “A

princesa das pedras lindas”); � 17) a existência de mundos utópicos e países imaginários (“História do príncipe

encantado no Palácio de Ferro no Reino da Escuridão”, “História do Príncipe Urso Doce de Laranja”, “A princesa da Austria”, “Os figos maravilhosos”, entre outros.);

18) o senso de solidariedade: tema presente em inúmeras histórias, cujas personagens,

durante sua tragetória, invariavelmente, recebem ajudas, seja através da velhinha que surge no caminho e que depois se revela uma princesa encantada; seja através de personagens que ajudadas pelo herói, reaparecem mais tarde para ajudá-lo; seja através de fadas e inúmeras outras ajudas de cunho mágico ligadas a forças desconhecidas;

20) a personificação e a prosopopéia ( “A história maravilhosa do Príncipe Urso Doce de

Laranja”; “O canudo mágico”, “As três cidras do amor”, “O casamento do pintainho”, “ Franganito”, “Os irmãos” etc.);

21) a astúcia e o ardil ( “A rainha invejosa”, “As três cidras do amor”, “ História do

armador” entre muitas outras); 22) o pacto com o diabo ( “História do príncipe Luís”, “ A princesa da Áustria” etc.);

� Vale lembrar inúmeros contos recolhidos por Teófilo Braga e Adolfo Coelho.

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23) a utilização de nomes próprios compostos e que se auto-explicam ( O Príncipe Urso Doce de Laranja; o Palácio de Ferro no Reino da Escuridão etc.);

24) a vida sexual ( “História do príncipe Luís”, “História do armador” etc.) 25) o desfecho com festejos, casamentos e comemorações - o final feliz ( todos -

comentaremos isso logo abaixo). Um boa parte desses temas revela traços bastante claros de antiquíssimas tradições

populares. Basta lembrar das características da sátira menipéia (fantasia como instrumento de experimentar a verdade; observação da vida através do ponto de vista inusitado; inúmeros oxímoros; mundos utópicos etc) apontadas por Bakhtin.

Além dos três primeiros, busca do auto-conhecimento (= identidade), busca do amor e busca da estabilidade financeira, básicos e recorrentes em quase todos os contos e, a nosso ver, descendentes diretos de alguns enredos arcaicos e míticos que, como vimos com Eliade, Jensen e outros, resumem a condição humana como constituída de seres mortais (portanto preocupados em dar sentido ao limitado lapso de tempo correspondente à existência); sexuados ( busca do parceiro); e condenados a lutar pela sobrevivência (em busca da segurança econômica), vale a pena comentar:

1) O aspecto da luta do novo contra o velho: esse tema aparece nas lutas travadas entre

princesas e mocinhas contra mães e madrastas; entre crianças e bruxas; entre heróis e reis. Invariavelmente, a filha sobrevive à mãe ou madastra, o menino vence a bruxa ( a velha!) e o herói assume o trono, substituindo o rei e casando-se com a princesa. O tema corresponde, como vimos, aos conceitos de regeneração períódica do mundo e à idéia de alternância apontados por Mikhail Balktin como característicos do espírito popular. Pode, ainda, ser ligado às concepções arcaicas de mundo, vimos isso com Cassirer e Eliade. Se formos apelar para categorias como “realismo” no sentido de reflexo de algo cuja existëncia é palpável, factual e consensual, o tema é absolutamente “realista” pois representa, nada mais, nada menos, do que a eterna, inevitável e óbvia luta do novo que vem para suplantar o velho; a luta das gerações; a luta da semente que suga energia e arrebenta a terra para construir o novo fruto. É “realista” simplesmente por indicar um processo natural básico e inegável existente na realidade palpável: o novo, por princípio, sempre substituiu, continua substituindo e susbtituirá o velho. É apenas uma questão de tempo. Deste confronto primordial, natural e essencial, pressuposto básico, a nosso ver, da existência, surgem imagens, temas, motivos e tramas de numerosíssimos contos populares.

2) O aspecto cômico: em alguns contos estudados como “Os três desejos”, “História da

machadinha” ou “Franganito” o humor constitui o tom dominante do enredo. Examinando as outras narrativas, veremos, entretanto, que em quase todas o humor comparece. Ele surge, por

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exemplo, no episódio da velha que se veste como donzela, em “História do príncipe Luis”; nas cenas de violenta e absurda tolice humana como aquela em que a “A rainha invejosa” corta o próprio pescoço; no truques que João Pequeno usa para enganar o diabo, em “A princesa da Áustria”; na trama de “A feia que se faz bonita” tanto no que diz respeito à princesa, feia “como uma noite de trovões”, até o desfecho com as moças invejosas pedindo para serem esfoladas; na situação tragicômica do “príncipe de orelhas de burro”; no nariz imenso do herói em “Os figos maravilhosos ”; nos inúmeros ardis utilizados pelos heróis, entre outros. Na verdade, a nosso ver, uma certa alegria subjacente percorre, sem exceção, todas narrativas de os Contos Maravilhosos. Ela estaria representando a alegria e a esperança intrínsecas, verdadeiros e essenciais susbtratos do conto popular. De fato, todos os contos aqui observados (não os de autoria, note-se, mas sim os recolhidos por Castro Osório) e some-se a eles a grande maioria dos recolhidos e/ou recontados por Perrault, Grimm, Silvio Romero, Figueiredo Pimentel, Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Câmara Cascudo, Basílio de Magalhães, Lindolfo Gomes, Aluisio de Almeida etc. têm um imenso e indiscutível ponto comum: o final feliz. As exceções só vêm para confirmar a regra. Sabemos que a história, em geral, parte de dificuldades e desgraças iniciais mas caminha sempre e sempre para uma situação de felicidade. Ao contrário de outras manifestações populares como, por exemplo, as sagas e as legendas nas quais, muitas vezes o herói sacrifica-se e morre em benefício do povo, os contos populares descrevem, invariavelmente, uma trajetória vitoriosa: o percurso de um herói que vê-se em dificuldades (sempre injustas de seu ponto de vista), enfrenta essas dificuldades (aparentemente insuperáveis ) e acaba conquistando, seja por sua coragem e obstinação, seja pela sorte, pela astúcia, através de ajudas mágicas, pela reunião de tudo isso, seu objetivo. É neste sentido amplo que vemos a noção bakhtiniana de riso regenerador, oriundo da cosmovisão carnavalesca associada ao conto popular: a fruição do conto é sempre, ou quase sempre, uma fruição otimista, portanto regeneradora, alegre e cheia de esperança: sabemos de antemão que o herói, portanto, a vida, a verdade e a justiça, vão vencer e acompanhamos o “como” isso ocorreu. O pensamento popular é claro, como vimos, no que diz respeito a esse assunto:

“ No fim tudo vai dar certo. Se não deu certo é porque ainda não chegou no fim...” 3) O aspecto da busca da felicidade pessoal: tema presente em todos os contos. Suas

personagens, ao que parece, na verdade atuam respaldados por uma moral ingênua, como aquela descrita por Jolles, uma ética que opera no plano do livre arbítrio, particular e afetivo, atua no caso a caso, jamais tem a pretensão de ser geral, de funcionar para todas as pessoas, de ser insenta e imparcial, pairando acima das emoções. A moral ingênua não é, portanto, uma categoria abstrata e teórica: existe no patamar concreto e afetivo da existência particular, é interessada, relativa e pragmática por princípio e diz respeito sempre ao “aqui agora”. É descrita numerosíssimas vezes pelo pensamento popular: “A união faz a força”, “ Mais vale um hoje do que dois amanhãs”, “A aranha vive do que tece”, “Em terra de sapo, mosca não dá rasante”, “Quem disso usa, disso cuida”, “Atrás do tempo, tempo vem”, “Os lobos uivam e a

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caravana passa”, “Não há mal que sempre dure”, “A vida é ruim, mas ninguém quer morrer”, “Cada qual enterra seu pai como pode”, “ O que é de gosto, regala a vida”, “Cada qual puxa a brasa pra sua sardinha”, “Quem senta na garupa não pega na rédea”, “Uma mão lava a outra”, “Falar é fácil, fazer é que são elas”, “Em terra de cego, quem tem olho é rei”, “Entre o princípio e o fim, há sempre um meio”, “ Feliz é quem feliz se julga”, “Filho feio não tem pai”, “Homem velho, saco de azares”, “ Unir o útil ao agradável”, “Mais faz quem quer do que quem pode”, “Mais vale amigo próximo que parente afastado”, “Mais vale tico-tico no prato que jacu no mato”, “Mais vale uma perna do que duas muletas”, “Mais vale um burro vivo do que um doutor morto”, “Mais vale um gosto do que quatro vinténs”, “Mais vale um ovo hoje que uma galinha amanhã”, “Mais vale um rapaz sem nada, que um velho com dinheiro”, “Morre o cavalo a bem do urubu”, “Muito atura quem precisa”, “ Quando a esmola é grande, o santo desconfia”, “Não há gosto sem desgosto”, “Não há mestre como o mundo”, “Não há tempero tão bom quanto a fome”, “Não preparar a cama, sem ver a noiva”, “ Onde come um, comem dois”, “O que cair na rede, é peixe”, “O que não tem remédio, remediado está”, “Quem gosta, volta”, “ Quem semeia vento, colhe tempestade”, “Não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe”, “Em tempo de tempestade qualquer buraco é abrigo”, “Rei morto, rei posto”, “Ver para crer”, “A voz do povo é a voz de Deus” .

Optamos pela longa lista de ditados por eles representarem, a nosso ver, um verdadeiro

depósito das leis que regem o pensamento ligado à moral ingênua e, por conseguinte, o próprio espírito popular. São pensamentos que lidam com o concreto, com o pragmático, amorais com relação a uma ética abstrata e de princípios que pretenda classificar os atos humanos, ser absoluta e estipular o certo e o errado em termos genéricos. Servem para toda e qualquer pessoa, independentemente, de faixas etárias, classes socias etc. No patamar da moral ingênua, todas as pessoas estão lutando em busca da felicidade e todas, sem exceção, têm direito à essa luta. O conto popular fixa o herói, ou seja, quem merece vencer, determina portanto quem é bom, puro e justo, em geral jovem e bonito (até porque o novo sempre vence): fixa o representante do Bem; e conta a história pelo ponto de vista deste herói. Tudo o que vai contra a sua trajetória representa o que é injusto, impuro, errado e merece perder: o Mal. Não são valores absolutos e sim relativos no sentido de conjunturais (na moral ingênua o relativo está ligado ao concreto e ao particular e não ao jogo abstrato das virtualidades e das potencialidades infinitas). São valores afetivos, pessoais, subjetivos, e ao mesmo tempo, pragmáticos, simples, concretos, ligados ao senso comum e ao livre arbítrio. A história de “Cinderela” poderia perfeitamente ser contada do ponto de vista das duas irmãs. Neste caso, seriam duas lindas, boas e puras irmãs que passam a viver com a filha vaidosa, arrogante, egoísta e mimada (do ponto de vista das irmãs) filha de seu padastro. As história onde três irmãos partem pelo mundo e só um deles, quase sempre o mais jovem, se dá bem, naturalmente poderia ser recontada. Tudo isso, em todo caso, é indiferente: o que interessa nos contos populares é, ao que parece, sempre e sempre, a trajetória de um herói com o qual, em linhas amplas, estamos identificados: também nós, crianças, adultos ou idosos, analfabetos ou universitários, honestos ou não, estamos a procura

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da felicidade; valorizamos a estabilidade, financeira ou outras; queremos e julgamos merecer amar e ser amados; temos o nosso valor, o nosso caminho, os nossos desejos e gostos, a nossa “verdade” peculiar, ingênua e particular, que justifica nossa existência no mundo. Neste sentido, todo o ser humano sem exceção, independentemente, repetimos, de etnia, posição social ou faixa etária, conscientemente ou não, acorda todo o dia de manhã com um único e grande objetivo, profundamente representado pela moral ingênua: se dar bem, ser feliz na medida do possível, acertar, conseguir tal intento (mesmo que este intento seja por exemplo não fazer nada ou praticar algo condenável), atingir tal objetivo, numa palavra: vencer. Neste patamar, ingênuo, afetivo, prático e particular (e, ao mesmo tempo, universal) se desenrolam sem exceção, a nosso ver, a grande maioria dos contos populares.

“Puxar a brasa para a sua (minha) sardinha” é uma frase feita que resume o espírito da ética popular. 4) O aspecto da solidariedade: o herói é ajudado em quase todas as histórias populares.

Além dos exemplos citados, seria interessante ressaltar os heróis que se juntam a companheiros de viagem e unidos enfrentam desafios (como os “Músicos de Bremen” recolhido pelos Grimm), ou aqueles que fazem amizades durante o percurso e dela recebem ajuda para atingir seu objetivo (“O jovem gigante”, também dos Grimm). Essa solidariedade recorrente pode, a nosso ver, ser perfeitamente associada a um certo espírito ligado ao senso de coletividade arcaico e à sociedade da vida descrita por Cassirer e todos os outros estudiosos da vida “primitiva”, através do qual o homem vive uma vida coletiva e homem, bicho, planta, pedra e astros fazem parte de um mesmo e único sistema de vida.

5) O aspecto da personificação e da prosopopéia (e da metamorfose): tema também

ligado, a nosso ver, ao conceito de sociedade da vida, que possibilita ao herói conversar, lutar, ajudar ou receber ajuda de animais, plantas, ventos, estrelas etc. É interessante ressaltar que em muitas histórias (por exemplo “A história maravilhosa do príncipe urso Doce de Laranja” ou “ As três cidras do amor”) as personagens aparecem transformadas em animais e depois, graças à sua luta pessoal e às ajudas recebidas, voltam à sua condição humana. Isto indica, por um lado, um claro índice da familiaridade entre as coisas da natureza e, por outro, o tom iniciático de não poucos contos.

6) Num outro plano, note-se que, na maioria dos contos, a questão das classes sociais não

parece ser importante pois todos nós, nobres ou camponeses, sábios ou ignorantes, velhos ou jovens, sempre nos identificamos com a personagem principal. Em todo caso, é possível dizer que a pobreza, nos contos populares, não surge como pano de fundo. Estamos num mundo onde camponeses têm chance de, legitimamente, ocuparem tronos, e mocinhas, filhas de lenhadores, podem casar-se com príncipes.

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Pelo menos se considerarmos o universo representado pelos contos populares recolhidos

por Ana de Castro Osório e dirigidos ao público intantil, muitos dos temas abordados são, na verdade, os mesmos e velhos temas, ligados à existência concreta, particular e paradoxal do homem no mundo, temas estes que, aliás, vêm sendo recorrentemente tratados pela literatura através dos tempos.

Ao nível da teoria, dos conceitos abstratos, da relatividade das coisas, da virtualidade, da

realidade vista através de suas inúmeras possibilidades imagináveis, todos os caminhos são possíveis, a realidade é um imenso jogo, e todos os percursos são teoricamente realizáveis.

Ao nível da vida mesmo, da experiência cotidiana, factual, corporal e afetiva, no território,

portanto, da moral ingênua, temos um só corpo, uma idade, nome e sobrenome, moramos em uma casa, repetimos os mesmos caminhos para ir de casa aos lugares que costumamos ir, ficamos cansados, sentimos dor física, precisamos dormir, temos fome e sede, temos gostos e costumes que preferimos repetir, somos inclusive mortais, em outras palavras, temos limitações bastante palpáveis de toda a sorte. Naturalmente é possível modificar muitas situações ao longo da vida, mas não tantas e não ilimitadamente. Neste sentido e em decorrência justamente do estado limitado, nem sempre a originalidade é a melhor ou a mais conveniente solução.

Eis o patamar pragmático e paradoxal onde se desenvolve a moral ingênua e, acreditamos, o território recorrente onde florescem e criam vida os contos populares ( e, como veremos, parte considerável dos livros de literatura infantil.).

5.5 Anotações finais

Diante do panorama apresentado acima colocando, em resumo, de um lado, histórias moralistas e utilitárias, voltadas ao “realismo”, abordando temas elementares, dirigidas especificamente ao público infantil e, de outro, histórias visando, antes de mais nada, o prazer e o entretenimento do leitor, voltadas ao “maravilhoso”, abordando temas complexos, dirigidas ao público em geral, ambas, note-se, utilizando, no plano da expressão, uma linguagem popular, teatral e concisa, voltamos às oposições, verdadeiras dicotomias, antecipadas na Introdução de nossa pesquisa:

1) a existência de uma literatura infantil necessariamente utilitária (ligada à lição e à

intenção didática) em oposição a uma literatura necessariamente poética (= literária) e não-utilitária (ligada à ficção e à intenção estética)

2) a adoção do pressuposto da existência de um “universo adulto” e de um “universo

infantil” em oposição à adoção da pressuposição de que haja uma sobreposição, ou que haja, basicamente, um único universo compartilhado por crianças e adultos;

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3) a identificação das raízes da literatura infantil com o surgimento da escola burguesa em

oposição aos elos existentes entre a literatura infantil e os contos populares, portanto, à “cultura popular”.

Se tomarmos por base a comparação entre as obras criadas e as recontadas por Ana de

Castro Osório, fica claro que tais dicotomias realmente existem e são, num certo sentido, excludentes.

Enquanto os textos de Alma Infantil pretendem nitidamente ser textos utilitários, dirigidos

a um “universo” exclusivamente infantil e, assumidamente, descendem dos princípios que nortearam a criação da escola burguesa, boa parte dos Contos Maravilhosos, buscam ser poéticos e não utilitários, dirigem-se a um universo compartilhado por adultos e crianças e, assumidamente, estão enraizados em antigas tradições populares.

Na última etapa de nossa pesquisa tentaremos aprofundar essa dicotomia, vital, a nosso

ver, para a compreensão e determinação de um posicionamento diante da chamada literatura infantil.

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6. Vestígios dos contos populares na literatura infantil

– Que sabe você a respeito desse caso? – perguntou o Rei a Alice.

– Nada.

– Absolutamente nada? – insistiu o Rei.

– Absolutamente nada – confirmou Alice.

– Isso é extremamente importante – disse o Rei, voltando-se para o júri.

Aventuras de Alice no País das Maravilhas 334

Seria possível identificar as duas vertentes apontadas nos contos de Ana de Castro Osório

em obras da chamada literatura infantil? Antes de tentar responder a essa indagação, faremos uma breve reflexão sobre a atual

produção de livros destinados ao público infantil. 6.1 Uma proposta classificatória dos livros para crianças Uma enorme quantidade de obras destinadas ao público infantil tem sido colocada a

venda em livrarias e adotadas nas escolas. Se examinadas de perto, não formam um grupo homogêneo, mas sim conjuntos que se diferenciam uns dos outros, apresentando, cada um deles, características bastante específicas.

Nossa intenção, neste momento da pesquisa, será firmar uma posição quanto à identificação e definição de determinados elementos capazes de, dentro da produção cultural dirigida ao público infantil, diferenciar o que se poderia chamar de literatura infantil de outras produções que também utilizam o objeto livro como suporte.

Julgamos este procedimento fundamental, uma vez que este tópico costuma ser espaço de muita confusão. Livros para crianças e literatura infantil são conceitos que, como veremos, em princípio, podem pouco ou nada ter em comum.

Em linhas gerais, propomos que a grande massa de livros dirigida às crianças seja divida nos seguintes grupos:

6.1.1 Livros didáticos: grupo composto de livros essencialmente utilitários que

frequentemente utilizam textos verbais e visuais, reunindo informações objetivas e ao mesmo tempo genéricas (no sentido de apontarem leis gerais), organizadas num grau crescente de dificuldade e ligadas aos currículos dos sistemas educacionais, correspondendo às matérias que

334 Op. cit. p. 126

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compõem o ensino regular: História, Português, Literatura, Gramática, Matemática, Biologia e assim por diante. Estes livros são instrumentos nítida e assumidamente pedagógicos. Representam e pretendem introduzir as crianças às várias facetas e aspectos da Ciência. Estão ligados ao conhecimento oficial, às regras e convenções; ao estudo atualizado das leis universais que regem os fenômenos; à tentativa de explicar a realidade através da visão objetiva; à expressão denotativa e unívoca; ao pensamento analítico; à instituição de sistemas axiológicos; à lógica e à razão. Além disso, buscam, na medida do possível, a visão e a regra geral, o ponto de vista universal sobre as coisas. Se quiséssemos adjetivar os livros didáticos teríamos de lançar mão de palavras como objetividade, concisão, monologia, univocidade, organização, metodologia, axiologia, clareza, atualização, teses, postulados, axiomas e teorias. O texto verbal empregado nessas obras procura, na medida do possível, obedecer às normas gramaticais, tende à impessoalidade, e recorre, ou ao vocabulário técnico necessário, ou ao vocabulário oficial, denotativo e impessoal, na medida do possivel, sempre objetivando transmitir, da forma mais clara e nítida possível, os conteúdos pré-determinados. A linguagem, no caso dos livros didáticos, funciona como um verdadeiro e neutro suporte através do qual as informações devem

fluir � . Um exemplo, entre outros: “ Há uma tendência muito forte para confundirmos os fonemas com as letras. É

importante que você não faça essa confusão. Os fonemas são sons, são falados e ouvidos. As letras são sinais escritos que procuram representar esses sons; assim, colocadas sobre o papel, as letras são visíveis. Confundindo letras e fonemas, você correrá o risco de não perceber certos detalhes importantes da Fonologia, que é a parte da Gramática que estuda os fonemas.” 335

Ou “AIMORÉS ou AIMBERÉS. Povo indígena extinto que, no séc.XVI, vivia em regiões

hoje situadas em Minas Gerias, Bahia e Espírito Santo. Os Aimorés usavam botoques e eram mais altos e mais claros que os Tupinambás. Referidos genericamente como Tapuias, supõe-se que falavam língua do tronco Macro-Jê. Bastante aguerridos, não se deixavam seduzir e escravizar. Entraram em muitos conflitos com os colonos e índios a eles aliados.” 336

Ou “ Nem todos os homens teem a mesma côr. Não é igual a sua maneira de viver em toda a

parte. Teem costumes e hábitos diferentes (...) Os negros matam as aves e os animais com flechas, porque não teem espingardas. Os povos selvagens precisam as vezes, de ser castigados,

� NICOLA, José de e INFANTE, Ulisses. Portugues Palavras e Idéias. 8ª Série. São Paulo, Scipione, 1990, p. 10. 335 Vale ressaltar que os livros didáticos, por outro lado, quando se utilizam do texto visual, apresentam imagens e ilustrações produzidas com o grau máximo possível de denotação, ou seja, imagens impessoais e unívocas que não dêem margem a outras leituras: em geral apelando para a linguagem fotográfica, desenhos comprometidos com o “realismo”, e linguagens específicas como a da cartografia e dos gráficos. 336 LARROUSSE CULTURAL. Dicionário temático. São Paulo, Nova Cultural, 1995.

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porque são maus. Não sabem lêr e escrever porque não querem. Eu não quero comer que não tenho fome. Tu não comerás que não tens fome. Êle comeria porque tem fome. Estuda que

aprenderás. Estudarei porque preciso.” �� O discurso impessoal e denotativo, o utilitarismo, o didatismo, a univocidade e a

necessidade peródica de atualização, somadas ao conservadorimo (pois, em princípio, referem-se invariavelmente ao conhecimento e ao sistema de valores oficiais) são, como se vê, marcas dos livros didáticos.

6.1.2 Livros paradidáticos: utilizam-se, em geral, dos textos verbais e visuais e também

pretendem trazer e transmitir informações e conceitos concretos e objetivos sobre determinado assunto. Necessariamente, têm motivação pedagógica ou ideológica e pretendem, em última análise, educar, informar e ensinar. Ao contrário dos livros didáticos, podem ou não estar diretamente comprometidos com os programas de ensino oficiais. Em lugar do discurso didático, denotativo, unívoco e, na medida do possível, impessoal, podem utilizar-se, em grau maior ou menor, do recurso da ficcionalidade, do discurso poético e aparentemente subjetivo, como suporte para transmitir conceitos. Os livros paradidáticos pretendem distrair ensinando. Através de uma determinada narrativa de ficção, são transmitidas informações sobre, por exemplo, a natureza; o desequilíbrio ecológico; a ideologia vigente ou sua oposição; a Constituição Nacional; os valores cívicos e morais da sociedade organizada; temas como a defesa e a aceitação das minorias; a luta pela abolição das desigualdades sociais; a emancipação da mulher; o exercício da cidadania etc. Nestes livros são levantadas, discutidas e solucionadas questões que podem, por exemplo, abordar a História do país, assim como o comportamento humano, as dúvidas sobre a sexualidade, o combate ao uso de drogas e a prevenção de doenças contagiosas. Utilizam-se, invariavelmente, das leis gerais e da visão universal das coisas, sempre fundamentadas no conhecimento científico atualizado ou na visão das coisas vistas através de uma ideologia (em geral, a oficial).

Evidentemente, toda a expressão humana reflete uma ideologia. Não pretendemos, no espaço desta pequisa, aprofundar tal questão. Há, em todo caso, obras bastante mais doutrinárias que outras. Ao nível do texto, verbal e visual, estes livros, como dissemos, apresentam uma condição paradoxal: são aparentemente conotativos. Buscam dar ao leitor a sensação de uma leitura lúdica e poética, com diferentes níveis de significado, mas, na verdade, são fundamentalmente denotativos e têm como objetivo passar um determinado ensinamento ou ideologia. Em geral, estes livros são concebidos e produzidos para a utilização em escolas, como leitura complementar ao ensino regular, por psicólogos e psicopedagogos no âmbito dos

�� Texto extraído de um livro didático ilustrado, publicado provavelmente em Portugal, no começo do

século. Temos a obra em mãos mas ela, infelizmente, não apresenta nenhum dado bibliográfico, nem mesmo o

título.

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processos terapêuticos e mesmo pelos pais de família que procuram alimentar seus filhos com informações atualizadas sobre determinado assunto. Evidentemente, podem também servir a partidos e doutrinas políticas. Alguns exemplos deste tipo de texto:

“Todos sabem que Marina é muito boa menina, embora tal não pareça, porque é um pouquinho travessa... Estudiosa, comportada, anda sempre muito asseada, ouve a mamãe, não reclama, vai cedinho para a cama” 337 Ou “ O Visconde tomou fôlego, serenou o ânimo e respondeu calmamente: – Barril é a medida de petróleo que os americanos adotaram desde o começo. Equivale a

42 galões. – E quantos litros têm esses galos grandes? – perguntou Emília. – Um galão tem 3 litros e 785 centímetros cúbicos. Logo, um barril tem isso multiplicado

por 42 – ou sejam 159 litros. Aqui no Brasil precisamos nos acostumar desde já a medir o petróleo decimalmente – aos litros, aos metros cúbicos, como fazem os argentinos. Isso de barril e galão e tantas outras medidas populares dos países que não seguem o sistema métrico decimal, que é, Emília?

–É besteira ! gritou a boneca. Dona Benta advertiu-a. – Emília, as professoras e os pedagogos vivem condenando esse seu modo de falar, que

tanto estraga os livros do Lobato. Já por vezes tenho pedido a você que seja mais educada na linguagem.” 338

Ou “ Pedrinho abriu a boca e Dona Benta continuou: – A nova hipótese diz que durante o tempo em que a nebulosa formada pelo derrame da

estrela se fixou na forma dos planetas atuais, um dos pedaços passou a ser a nossa Terra – mas muito menor que hoje. A Terra foi crescendo à custa dos meteoritos que constantemente caíam sobre ela, como ainda hoje acontece, embora em menor quantidade. Naquele tempo a superfície

337 “O sonho de Marina”, de Guilherme de Almeida, apud ZILBERMAN, R.; LAJOLO, M. Literatura Infantil Brasileira - História & Histórias. São Paulo, Ática, 1984, p. 146. 338 LOBATO, Monteiro. O Poço do Visconde. São Paulo, Círculo do Livro, 1989, p. 56.

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da Terra não passava de massa porosa, solta. O que nela caía, espetava-se como pedrinhas que você joga de encontro a uma bola mole de barro.” 339

Ou “Um pão. De um lado Bastante creme de leite, Orégano e azeite. Do outro Bastante requeijão. Uma fatia de tomate... Agora uma sardinha –Dessas em latinha– Uma pitada de sal Nunca vai lhe fazer mal. E olhe...Antes que alguém lhe peça... Coma tudo bem depressa! É brincadeira... Mastigue direitinho Pra sentir bem o gostinho!” 340 Livros paradidáticos, por suas características intrínsecas, em geral também necessitam de

atualização periódica, uma vez que o conhecimento científico, as situações macro e micro econômicas, a prática social, histórica e política e mesmo as ideologias e costumes vivem em um constante processo de revisão e elaboração.

6.1.3 Livros jogos: podem utilizar-se tanto do texto verbal quanto do visual. São livros de

caráter lúdico, didáticos ou não, cujo grande objetivo é distrair, e, eventualmente, ensinar o leitor. Equivalem a um brinquedo ou jogo. Como exemplo deste tipo de livro poderíamos citar Onde

está Wally? e Olho mágico, entre outros. Não aprofundaremos nossa pesquisa sobre esses trabalhos que, a nosso ver, não dizem respeito às questões ligadas à literatura mas sim ao estudo do brinquedo.

6.1.4 Livros de Imagens: apesar dos mesmos não utilizarem texto verbal, vale a pena

comentar os livros de imagem. Eles nos trazem histórias contadas através de imagens, podendo ou não ser de fundo utilitário. Em nosso ponto de vista, os livros de imagens representam não um tipo de “literatura”, como o são os didáticos, mas uma linguagem, um suporte formal e 339 LOBATO, Monteiro. Serões de Dona Benta. São Paulo, Círculo do Livro, 1989, p. 178. 340 GARCIA, Maria da Conceição Torres. Coma este poema. São Paulo, Arte Livre, 1983, p. 13.

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conceitual, riquíssimo em possibilidades e ainda relativamente pouco explorado � . Essa linguagem, em linhas gerais, seria caracterizada pela articulação de imagens que, dentro de um sistema sintático, acabariam constituindo um discurso. Erroneamente, a nosso ver, costumam ser vistos como material necessariamente destinado às crianças pequenas que poderiam, através deles, acessar uma narrativa sem serem alfabetizadas. Ora, os recursos de um livro sem texto estão vinculados, por exemplo, ao discurso cinematográfico e televisivo e às histórias em quadrinhos, ou seja, profundamente comprometidos com os sistemas expressivos contemporâneos, por sua vez cada vez mais ligados ao texto visual, vide o alto consumo, hoje, de cinema, vídeos, clips, televisão, publicidade, cd-roms, HQs etc.. Por tudo isso, em nosso entender, os recursos oferecidos pelos livros de imagens são infinitamente mais amplos do que os que encontramos nos livros destinados a leitores não alfabetizados: nada impede, por exemplo, que seja criado, produzido e assimilado um livro sem texto verbal dirigido ao público em geral, independentemente de faixas etárias. O estudo do discurso, da mecânica, da gramática e dos recursos que regem os livros de imagem são um capítulo, a nosso ver, do estudo geral da literatura infantil. Como exemplo deste tipo de livro poderíamos citar as obras de Ângela Lago, Eva Furnari e Juarez Machado, entre outros.

6.1.5 Livros de literatura infantil: representam, na verdade, o objeto de nossa pesquisa.

São livros, em geral, compostos pelo texto verbal e visual, mas que se utilizam da ficção, da linguagem poética, eventualmente da narrativa feita através das imagens, cujo objetivo fundamental, primordial e essencial, cuja condição sine qua non, é a motivação estética e, a nosso ver, uma determinada, particular e subjetiva especulação, não uma lição, sobre a existência humana. Este tipo de livro é a contrapartida do livro didático. Enquanto este representa a visão utilitária e científica da vida e do mundo, ligada à motivação didática e à transmissão de informação, à linguagem denotativa, às leis universais e gerais (e, note-se, sempre atualizáveis) que regem as coisas, pretende descrever e explicar a realidade através do pensamento analítico e axiológico, os livros de literatura representam uma tentativa de compreender e interpretar a realidade (= verdade), através da visão particular, afetiva e intuitiva, da abordagem artística e da linguagem conotativa, portanto da visão poética e eminentemente

subjetiva das coisas � . Obras deste tipo, sem obedecer a nenhum conjunto de informações geral e pré estabelecido, acabam também levantando, expeculando, discutindo e descrevendo as questões relacionadas à existência, ao relacionamento do homem com a natureza, com a sociedade e com o mundo sem, entretanto, jamais solucioná-las. Não buscam chegar a uma verdade universal sobre as coisas mas sim a uma verdade particular, portanto passível de

� Sobre o assunto, ver GÓES, Lúcia Sampaio. Olhar de descoberta. São Paulo, Mercuryo, 1996

� Pensamos aqui na função poética prevista por R. Jakobson, função da linguagem através da qual, em

resumo, a própria linguagem é a mensagem, ou seja, pode ser uma obra de arte.

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discussão (através do particular, muitas vezes o universal acaba sendo discutido, mas isso é apenas outra questão). Livros de literatura, infantil ou não, utilizam-se, basicamente, da linguagem metafórica e não do discurso objetivo. Estão profundamente ligados, por exemplo, às questões de estilo e de retórica. Como na tradição mítica, pressupõem uma aproximação simpática da realidade. Consideram como instrumentos de feitura, e de leitura ou fruição, os instintos, a intuição, a plurissignificação, a ambigüidade, o prazer estético etc. Estão vinculados à ficção, à fantasia, ao maravilhoso, ao sublime, à subjetividade, à conotação, à analogia, ao divertimento, à emoção, ao humor, à paródia, ao imensurável, ao desconhecido etc. Se fossemos adjetivar esse tipo de livro lançaríamos mão de termos como emotividade, beleza, ação, terror, romance, aventura, tristeza, depressão, imaginação, alegria, estranhamento etc. Simplicidade, objetividade ou clareza não são necessariamente qualidades de um discurso literário, ao contrário do que se espera de um discurso científico. Por vezes, é justamente seu hermetismo, sua ambigüidade e sua complexidade o que nos fascina. O uso da metáfora, é exemplo disso. Evidentemente, podem tratar em sua trama de temas como a ecologia, a psicologia, a história ou a filosofia, ou mesmo abordar questões diretamente ideológicas como a luta de classes, o direito das minorias ou a emancipação da mulher, mas isso sempre ficará num patamar secundário, pois as questões serão abordadas no plano das verdades particulares e não no das verdades universais. Em primeiríssimo lugar estarão a intenção estética, a forma como o assunto é tratado, a linguagem elaborada artisticamente, a estrutura textual e o uso da metáfora, assim como a trama, as imagens etc. Autores de livros didáticos naturalmente também têm seu estilo individual e utilizam a linguagem de modo particular. O grau de particularidade a que se permitem, pela própria vocação do trabalho que se propõem a fazer, não pode ser comparado ao dos autores ligados à literatura. Estes, pela essência de seu trabalho, podem usar e abusar da linguagem simbólica, desenvolver estilos e imagens absolutamente particulares (= idioleto), inovar a sintaxe, inventar palavras etc. O assunto é imenso e transcende os limites e o objeto desta pesquisa.

É preciso ressaltar que os livros paradidáticos, com freqüência, são confundidos com os de literatura infantil. Há casos de livros que, realmente, encontram-se no limiar de uma ou outra categoria. Um exemplo interessante, que eventualmente pode contribuir para o esclarecimento da questão, é a obra de Monteiro Lobato. Em nossa opinião, a produção lobatiana, importantíssima e fundadora de nossa moderna literatura para crianças, apresenta um hibridismo: por um lado, nos faz penetrar em um microcosmo mágico, original, único e fascinante, ricamente ficcional, composto por personagens como Emília, Visconde de Sabugosa, o Marques de Rabicó, Pedrinho, Narizinho, viagens com o pó de pirilimpimpim etc.; de outro lado, apresenta o utilitarismo, a intenção pedagógica de transmitir ao leitor informações de todo o tipo.

A tradição de oferecer às crianças obras que contenham ensinamentos e lições é ideológica (corresponde a uma certa visão do relacionamento adulto/criança) e vem de longa data, como vimos, mas cremos que o grande legado de Monteiro Lobato para a literatura infantil, se pudéssemos fazer uma separação entre os dois polos que se entrelaçam em sua obra,

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é, sem dúvida, a ficção rica, original e mágica do Sítio do Picapau Amarelo, até porque o resto, as lições, por serem datadas, já foram superadas em muitos casos. Restou-nos apenas a forma brilhante com que foram transmitidas. Nota-se tudo disso, claramente, no exemplo acima, onde as informações objetivas transmitidas por Visconde convivem com brincadeiras de palavras, uma referência inusitada ao autor etc. Emília, seu temperamento extremamente humano e sua postura diante da vida e do mundo, o sábio e original Visconde de Sabugosa; as peripécias de Pedrinho e Narizinho, o espaço do Sítio, tudo isso, ficará para sempre como um marco em nossa literatura.

Todas as categorias - didático, paradidático, literatura - são importantes dentro de uma determinada produção cultural, têm seu espaço conceitual e sua razão de ser. A indiferenciação entre elas, entretanto, a nosso ver, constitui de um engano que pode confundir, desnecessariamente, leitores, autores e críticos.

Os exemplos de literatura infantil serão estudados em seguida. Ficaremos, a título de ilustração, com um pequeno poema de Murilo Mendes, passível de agradar, a nosso ver, ao público em geral, inclusive crianças:

“Amostra da Poesia Local Tenho duas rosas na face, Nenhuma no coração. No lado esquerdo da face Costuma também dar alface, No lado direito não.” 341 O lúdico, a intenção estética, a especulação sobre a existência (o que significa uma poesia

“ local”? o que significa ter rosas na face mas não no coração?), o imensurável, o discurso e as imagens pessoais, a ambiguidade, a plurissignificação, a impossibilidade de atualização (a não ser ortográfica), tudo se mistura e dialoga quando entramos no território livre da arte e da literatura.

6.2 Conto popular e literatura para crianças Dentro do contexto representado pelos livros de literatura infantil, o verdadeiro objeto de

nossa pesquisa, e sempre a partir do estudo do mito, do conto e da cultura popular e, ainda, das conclusões oriundas da análise dos contos de Ana de Castro Osório,selecionamos uma série de obras, formando um conjunto bastante heterogêneo, mas representativo, não pertencentes a

341 MENDES, Murilo. O menino experimental. 2ª ed.. São Paulo, Summus, 1979, p. 26.

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nenhum grupo ou escola, produzidas em épocas que vão de meados do século passado aos nossos dias, todas bastante conhecidas do público, algumas sendo consideradas verdadeiros clássicos, com o intuito de apontar uma série de elos existentes entre elas e os contos populares. Tratam-se, é preciso ressaltar, de obras com autoria, ou seja, obras que revelam ou poderiam revelar uma linguagem particular e a abordagem de temas também particulares ligados às preocupações e à visão de mundo de cada autor. Dividimos o conjunto em dois grupos.

O primeiro, composto de oito livros, é formado por Pinóquio de Collodi; Aventuras de

João Sem Medo de José Gomes Ferreira; Aventuras de Xisto de Lúcia Machado de Almeida; História meio ao contrário de Ana Maria Machado; Uma idéia toda azul de Marina Colasanti; Os pregadores do Rei João de Luís Camargo; A Fada Sempre-Viva e a Galinha-Fada de Sylvia Orthof e Tampinha de Ângela Lago, histórias que, a nosso ver, podem ser vinculadas diretamente ao conto popular

O segundo grupo, composto de nove livros, é formado por Juca e Chico (1885) de

Wilhelm Busch; As aventuras de Alice no País das Maravilhas de Lewis Carroll; Peter Pan de J.M.Barrie; Contos para crianças de Peter Bichsel; A bolsa amarela de Lygia Bojunga Nunes; O menino maluquinho de Ziraldo; Ou isto ou aquilo de Cecília Meireles; O Homem

que soltava pum de Mário Prata e Lá onde ficam as coisas selvagens de Maurice Sendak, histórias, em princípio, sem vínculos aparentes com o conto e as tradições populares.

Esclarecemos que, até para, depois, poder apontar com nitidez nossas idéias e conclusões, fizemos a opção de preparar sinopses relativamente detalhadas de todas as obras mencionadas. O fato de estarmos remetendo a autores pouco conhecidos e mesmo, infelizmente, ainda não publicados no Brasil, caso de José Gomes Ferreira, Peter Bichsel e Maurice Sendak também é uma justificativa para esse procedimento.

Se julgar conveniente, o leitor poderá, em todo caso, pular essa etapa e ir direto à página 225 onde comentamos o grupo de obras nitidamente vinculadas ao conto popular e à página 265 onde se encontram os comentários sobre as demais.

6.3 Obras com evidentes vestígios do conto popular 6.3.1 Pinóquio

Escrito por Collodi (pseudônimo de Carlo Lorenzini - 1826-1890) Pinóquio,226 p., foi

publicado em 1883 inicialmente em folhetim com o título de História de um títere. Assim começa o texto de Collodi, na tradução de Edith Negraes 342

“Era uma vez...

342 COLLODI, C. Pinóquio. Trad. Edith Negraes, São Paulo, Hemus, 1985.

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– Um rei! - dirão imediatamente os meus pequenos leitores. Nada disso, meninos! Vocês se enganaram! Era um vez...um pedaço de pau. Não era madeira de luxo, mas um simples pedaço de lenha, desses que, nos dias de

inverno, a gente põe na lareira para fazer fogo e aquecer a casa. Não sei como foi que aconteceu, mas o fato é que, um belo dia, esse pedaço de pau

apareceu na oficina de um velho carpinteiro, chamado Mestre Antônio, que tinha o apelido de Mestre Cereja, porque a ponta do seu nariz estava sempre vermelha e lustrosa como uma cereja madura.

Mal viu o pedaço de madeira, Mestre Cereja encheu-se de alegria. Esfregou as mãos de contentamento e disse baixinho, para si mesmo:

– Este pedaço de pau chegou bem na hora! Que boa perna de mesa vou fazer com ele! Dito e feito! Pegou um machado bem afiado para começar a tirar-lhe a casca e afiná-la,

mas quando se preparava para dar a primeira machadada, ficou com o braço parado no ar, pois ouviu uma voz fininha, muito fininha, que pedia:

– Ai! Não vá me bater com muita força!

Imaginem o susto do bom Mestre Cereja ” (� ) p.1/2

Os primeiros parágrafos de Pinóquio são, a nosso ver, suficientes para demonstrar o espírito geral do texto, ao nível da linguagem, espírito voltado, com clareza, aos índices de oralidade, característicos das obras de tradição popular. Encontramos um narrador que se dirige diretamente ao leitor, como um verdadeiro contador de histórias, utilizando linguagem concisa, vocabulário acessível e inúmeras fómulas. Parece indiscutível que o texto pretenda atingir o leitor e para isso recorra aos recursos, já descritos, ligados à adaptabilidade às circunstâncias,

à teatralidade e à concisão. Outros exemplo serão dados mais para frente. Vejamos agora a sinopse da história. Um pedaço de madeira falante aparece na oficina de um carpiteiro e acaba sendo dado a

um velhinho, Gepeto, que com ele faz um boneco. O boneco revela-se incontrolável e, tão logo consegue caminhar, foge de casa. Na descrição de Collodi, Pinóquio pode facilmente ser identificado com uma certa visão cristalizada da infância: seres manhosos, desobedientes, irresponsáveis, imaturos, egoístas e sem um pingo de juízo. O boneco não pretende perder tempo estudando mas sim comer, beber, dormir, divertir-se e levar, de manhã à noite, uma vida de vagabundo. Mata o Grilo Falante que afirma ter mais de cem anos de idade e aparece para lhe dar conselhos. Após uma série de desobediências, Pinóquio, aparentemente convencido, resolve ir para escola. Gepeto, que é pobre, troca seu único casaco por uma cartilha para que o � “ – Era una volta... – Un re ! – diranno subito i miei piccoli lettori. – No, ragazzi, avete sbagliato. C’era una volta un pezzo di legno. Non era un legno di lusso, ma un semplice pezzo da catasta, di quelli che d’inverno si mettono nelle stufe e nei caminetti per accendere il fuoco e per riscaldare le stanze.” p. 3/4 Como se vê o sentido de oralidade do texto original foi respeitado pela tradução. (COLLODI, C. Le Avventure di Pinóquio. Roma, RFB, s/d)

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boneco possa frequentar as aulas. Pinóquio vende a cartilha para assistir a um teatro de marionetes e acaba metendo-se numa confusão com os outros bonecos do teatro. Um deles, o Arlequim, é ameaçado pelo dono, de ir para a fogueira. Heroicamente, Pinóquio se oferece para ir no lugar do Arlequim, emocionando o empresário que lhe dá cinco moedas de ouro. Voltando para casa com o dinheiro, o boneco, agradecido e arrependido, pensa em comprar um casaco novo para Gepeto. Encontra uma Raposa e um Gato. Os dois falam de uma certa Terra dos Bobos onde basta enterrar uma moeda no chão e regar bem que no dia seguinte ela estará transformada numa árvore cheia de moedas. Um melro branco e também a alma do Grilo Falante aparecem aconselhando o boneco a não ouvir aquela história e voltar para casa. Pinóquio despreza os conselhos. Durante a noite, assaltado pela Raposa e o Gato, agora disfarçados de bandidos, o boneco esconde as moedas na boca e acaba sendo enforcado. Uma fada de cabelos azuis, habitante do bosque há mais de mil anos, manda um pássaro tirá-lo da árvore e depois envia um cachorro, elegantemente vestido, para buscá-lo num carruagem transparente puxada por camundongos brancos. Pinóquio não morre por um triz. É salvo pela fada, graças a um remédio que ele reluta em tomar, como “costumam fazer as crianças”. O boneco mente e diz à fada que perdeu as moedas. Seu nariz cresce imensamente. A fada ri e ensina que existem mentiras de pernas curtas e outras de nariz comprido. Muito aconselhado pela fada, Pinóquio parte em busca de Gepeto, mas, de novo, encontra a Raposa e o Gato, agora sem disfarces. Os dois fingidos tratam o boneco carinhosamente e este, convencido a ir plantar as moedas na Terra dos Bobos, acaba sendo roubado. Pinóquio procura o tribunal de Justiça da cidade de Pega Trouxas, mas ali tudo funciona ao contrário: quem é honesto vai preso e quem é bandido fica solto. Preso, Pinóquio resolve confessar que é malandro sendo solto imediatamente. O boneco parte à procura da fada e encontra uma serpente de “pele verde, olhos de fogo e a cauda afilada, de cuja ponta saía fumaça como uma chaminé”. A bicha finge-se de morta, prega uma peça em Pinóquio e acaba morrendo de tanto rir. Esfoemado, o boneco rouba uns cachos de uva. Um vagalume o recrimina pelo que fez. Preso pelo dono da videira, passa a viver acorrentado numa casinha de cachorro. Graças a isso, descobre uns ladrões de galinha e, como recompensa, é solto. Ao voltar para a casa da Fada descobre que esta, infelizmente, morreu. Pinóquio então é levado por um pombo, um “cavalinho de penas”, até uma praia onde está Gepeto, que partiu pelo mundo em busca do filho. O velho pegou um barco e foi procurá-lo do outro lado do oceano. Pinóquio consegue enxergar o barquinho de Gepeto ao longe, atira-se ao mar, mas, levado pelas ondas, vai parar em uma ilha, onde enfrenta, pela primeira vez, a solidão. Segundo um peixe, Gepeto, a essas alturas, já deve ter sido engolido pelo tubarão, um animal gigantesco

“maior do que um prédio de cinco andares, e tem um boca tão grande e tão larga que

poderia abocanhar uma composição inteira de estrada de ferro, com locomotiva e tudo.” p. 122 Pinóquio segue uma estrada de terra e chega na Cidade das Abelhas Trabalhadoras. “Este

lugar não serve para mim! Eu não nasci para trabalhar”, diz o boneco. Acaba pedindo esmola

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mas por ali ninguém costuma dar esmola. Reaparece a Fada de cabelos azuis. Eis a conversa entre os dois:

“– Que boneco danado! Como foi que percebeu que eu sou a Fada? – Foi o meu grande amor que me revelou a verdade. – Você se lembra, Pinóquio? Eu era quase uma menina e agora já sou uma mulher; quase

poderia ser sua mãe. – Fico muito contente, porque assim, em vez de irmãzinha, poderei chamá-la mãezinha. Há

tanto tempo desejo ter uma mãe como todos os meninos!... Mas como é possível crescer assim tão depressa?

– Isto é um segredo. – Ensine-me esse segredo. Eu também quero crescer um pouco. Está vendo? Continuo da

mesma altura. – Mas você - replicou a Fada - não pode crescer. – Por quê? – Porque os bonecos nunca crescem. Nascem bonecos, vivem como bonecos e morrem

como bonecos. _ Ah! Mas eu estou farto de ser um boneco! - gritou Pinóquio, dando um tapa em si

mesmo. - Gostaria de me tornar um homem como os outros. – Se você merecer, tornar-se-á um homem... – De verdade? E que posso fazer para merecê-lo?” p. 129 A resposta da Fada, em resumo, é sempre ouvir os mais velhos, trabalhar e ser honesto.

Pinóquio vai, finalmente, à escola e faz muitas amizades. Por causa de uma peça pregada pelos colegas, acaba brigando, é preso, engana a polícia e foge. Os guardas soltam um cão mastim para perseguí-lo. Acossado pelo cachorro, Pinóquio entra no mar. O animal quase se afoga e é salvo pelo boneco. Mais tarde, Pinóquio é pescado e vai ser comido por um pescador que lhe diz:

“ – ...Como vejo que você fala e raciocina, como eu, far-lhe-ei todas as honras que

merece. – Que honras são essas posso saber? – Em sinal de amizade e de particular estima, deixarei a você a escolha: de que modo quer

ser comido? Quer ser frito na frigideira, ou ensopado com molho de tomate?” p. 149 Coberto de farinha e pronto para ser cortado, é salvo pelo mastim da polícia que reaparece.

Pinóquio volta a procurar a Fada, promete a ela que será bom aluno e cumpre sua palavra. No fim do ano, a Fada diz que o desejo do boneco será cumprido: ele, finalmente, será transformado num menino. Uma festa é marcada para o dia seguinte, mas, mais uma vez, Pinóquio cai na tentação. Um amigo seu diz que está indo para a Terra dos Brinquedos

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“Lá não há escolas, nem professores, nem livros. Nesse abençoado lugar, ninguém estuda. às quintas feiras não há aula e a semana é formada por seis quinta feiras e um domingo. Imagine que as férias começam a 1º de janeiro e terminam no último dia de dezembro. (...) Assim deveriam ser todas as terras civilizadas!” p. 163

Mais uma vez sem resistir à tentação, Pinóquio parte com os amigos para a Terra dos Brinquedos. Após cinco meses, acaba se transformando num burro e é vendido ao dono de um circo. Lá, passa por todo um aprendizado, treina vários números, mas, um dia, durante o espetáculo, cai e fica manco para o resto da vida. É vendido a um sujeito que pretende usar seu couro para fazer um tambor. Ainda tranformado em burro, Pinóquio foge, cai no mar e, inexplicavelmente, acaba voltando a ser boneco. Solto no mar, é comido pelo imenso Tubarão. Na barriga do monstro, reencontra Gepeto. Faz então um recapitulação (note-se a anacefaleose) de tudo o que aconteceu. Pai e filho conseguem sair nadando da barriga do peixe. Pinóquio carrega Gepeto que está fraco e muito cansado. Quando os dois estão quase morrendo afogados, são salvos por um atum e levados à terra. O boneco, a partir daí, passa a trabalhar para ganhar dinheiro e sustentar Gepeto. Reencontra a Fada e acaba tornando-se um menino. Encantado com sua metamorfose pergunta:

“ Satisfaça a minha curiosidade, paizinho. Como se explica toda esta inesperada

mudança? (...) – Toda esta transformação se deve a você – respondeu Gepeto.” p.221 O texto de Collodi, é preciso que se diga, é impregnado de noções morais, típicas da época

em que foi escrito: “Coitados dos meninos que não obedecem aos pais e saem de casa sem nenhum motivo.

Nunca mais terão sossego neste mundo e, cedo ou tarde, vão se arrepender amargamente.” p. 17 “– Lembre-se de que os meninos que querem satisfazer todos os seus caprichos, mais

cedo ou mais tarde acabam se dando mal” p. 62 “– É que nós, as crianças, somos todas assim! Temos mais medo do remédio que da

doença! – Que vergonha! As crianças deveriam saber que um bom remédio, tomado a tempo, pode

salvá-las de uma doença e até mesmo da morte... ” p. 83 “– Nada disso. Fique sabendo que, para aprender, nunca é tarde.” p. 131

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6.3.2 Aventuras de João Sem Medo

A obra de José Gomes Ferreira teve sua primeira versão publicada num jornal, em Lisboa, 1933. A edição em livro, 210 p., saiu em 1963. 343

Também a linguagem utilizada em Aventuras de João Sem Medo, apresenta inúmeros índices de oralidade ligados à adaptabilidade às circunstâncias, à teatralidade e à oralidade. Apesar do discurso claro e direto, o autor apresenta várias imagens originais e, por vezes, períodos e descrições mais longos e complexos, típicos de um texto para ser lido.

“Era uma vez um rapaz chamado João que vivia em Chora-Que-Logo-Bebes...” p. 11 “E, após quilómetros de marcha sonâmbula aos pontapés às pedras e aos arbustos para não

adormecer, acabou por desembocar numa vasta clareira batida pelo sol...” p. 14 “Então – ó pasmo dos pasmos! – João Sem Medo viu sair da espessura da floresta um

ser prodigioso que de longe parecia uma mulher jovem e bela... ” p. 15 “Esta gracinha parva ainda convenceu mais o nosso herói a obstinar-se na recusa...” p. 19 “E zás! Pegou em João Sem Medo e arremessou-o ao ar, duas, três, quatro, dez, vinte

vezes com destreza de mestre de jogos de malabares, enquanto as plantas em redor aplaudiam....” p. 23

“Bem. Eu, José Gomes Ferreira, nascido na Rua das Musas da cidade do Porto,

licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, poeta, ex-consul, ex-figurante de cinema etc., etc. – tenho a melancolia de declarar que.... ” p. 155

São suficientes, a nosso ver, os exemplos de oralidade no texto de José Gomes Ferreira. Quanto a um resumo do enredo: João Sem Medo vive em Chora-Que-Logo-Bebes, uma aldeia onde chovia sem parar e que

fica perto do Parque de Reserva de Entes Fantásticos (a floresta-de-todos-os-espantos) . O parque é cercado por um imenso muro que ninguém ousa ultrapassar. Cansado daquela vida medíocre, pobre e vazia, João despede-se da mãe e entra no parque proibido. No muro encontra um bilhete colado:

“É proibida a entrada a quem não andar espantado de existir.” p.13 O jovem salta o muro e assim começam suas aventuras.

343 FERREIRA, José Gomes. Aventuras de João Sem Medo. Lisboa, Portugalia Editora, 1963.

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Inicialmente, vai dar num lugar mágico onde as árvores se espreguiçam e os pássaros bocejam. Mais em frente, se vê diante de dois caminhos. Um todo florido, o do Bem, e outro cheio de pedras e espinhos, o do Mal. João opta pelo caminho do Bem porque uma fada, na verdade um homem travestido de fada, lhe diz que o caminho do Bem corresponde ao da Felicidade. Descobre, através de um estranho ser sem cabeça com os olhos no peito e a boca no estômago, que para continuar na direção da felicidade vai ter que:

“ Primeiro: consentir que lhe cortem a cabeça para não pensar, não ter opinião nem criar

piolhos ou idéias perigosas. Segundo e último: trazer nos pés e nas mãos estas correntes de ouro.” p. 19

João não aceita essa condição, volta e segue pelo caminho do Mal gritando: - ...podem perseguir-me, arrancar-me os olhos, torcer-me as orelhas (...) mas juro que não

hei de ser infeliz porque não quero. E João Sem Medo continuou a subir o caminho árduo, resoluto na sua obstinação de

ocultar o mêdo- a única valentia verdadeira dos homens verdadeiros. ” p. 20 João segue viagem e enfrenta um "caminho que mordia" com pedras e seixos que

possuem bocas. O herói sente medo mas finge indiferença. É depois agarrado por uma árvore com dez braços e passa por um verdadeiro teste de tortura. Assim que termina a sessão, nosso herói, para mostrar sua força, canta. Enfrenta, em seguida, uma situação onde passa fome. Mais adiante, transformado numa árvore, fica encantado com uma menina que vem balançar-se em seus galhos. Infelizmente a menina adoece e está prestes para entrar no Palácio da Colina de Cristal onde

“quem uma vez lá vai nunca mais de lá sai” p. 34 João quer deixar de ser árvore e ao mesmo tempo sente pena da menina. Faz um trato com

o pai dela, um velho lenhador, e vai para o tal palácio no lugar dela, mesmo sabendo que terá que enfrentar um tal Monstro Branco. Para isso passa por um verdadeiro ritual de passagem: é cortado, vira lenha, vai para o fogo, transforma-se em fumaça e readquire finalmente seu corpo. Ao chegar no castelo, descobre que é o castelo da Morte. Ajudado por um deus desconhecido, foge à cavalo. Ao partir, grita de longe perguntando ao tal deus: “ – Quem és tu?” Não consegue ouvir bem a resposta que em todo caso termina em “or ”, dor, talvez, amor.

Nosso herói vai parar num país de gramofones onde todos falam através de discos como se já tivessem um discurso pronto. Esse povo tem uma conversa absolutamente sem significado, cheia de lugares comuns.

João conversa com um gramofone que lhe diz que tudo aquilo é miragem, que aquele país não existe e que foi inventado pelos Altos Poderes para o enganar. João pergunta por quê.

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“– Sei lá! .Talvez para te ensinarem qualquer coisa. É esse o Disco das Fadas. Pregar

moral!” p. 53 João segue adiante e vai parar num deserto. Cheio de fome e fadiga encontra, através de

uma carta misteriosa, encontra uma varinha de condão com a seguinte característica: “Com ela poderás realizar todos os teus desejos. Basta que a aproximes de qualquer parte

do corpo e digas o que pretendes. Mas perderás para sempre a parte do corpo em que tocares." p. 57

Esfomeado, João troca o dedo mindinho por um camelo, e outro dedo por um bife com

batatas e assim vai, matando a fome em troca de partes de seu corpo até ficar reduzido a uma cabeça. Encontra uma mulher vestida de negro, aos gritos. Descobre que ela grita de sede. A mulher pede água. O herói não sabe o que fazer. A mulher diz que êle não poderá compreendê-la porque ele só tem cabeça e não tem coração. João então transforma-se numa fonte.

Mais tarde, o herói retoma a vida através da Fada do Sonho que se coloca à suas ordens. Os desejos entretanto só podem durar cinco minutos. O herói pede um cheque de bilhões

e bilhões. “...e durante cinco minutos, o Ultramilionário passeou (...) a gabar-se: Não há ninguém mais

rico no mundo. Sou riquíssimo. Sou podre de rico. Cheiro mal de rico”. p. 70 Depois, troca as orelhas. Pede uma tromba de elefante. Pede para ser Rei absoluto do

Reino de Coisa Nenhuma. E como rei ordena que seu povo não tenha estômago para acabar com a fome do reino. Depois de fazer mil e umas o herói fica cansado e manda a fada ir embora. Ela diz que sim e pede que ele abra a boca e entra dentro dele. Diz que só aparecerá quando ele chamar. Ele afirma que nunca a chamará. Ela responde que quando as pessoas ficam desiludidas e desesperançadas constumavam chamá-la e que com ele não será diferente.

João segue seu caminho e vai dar num lugar onde tudo é meio ao contrário. Pessoas dão boa noite de dia. Riem quando estão tristes e andam de cabeça para baixo. Nas escolas os mestres ensinavam coisas sem nenhum significado etc, etc.

O herói, então, resolve tentar voltar para casa. Encontra um príncipe de aparência horrivel, com orelhas de burro e nariz de porco que pensa ser muito bonito. Os dois especulam a respeito da Verdade e da relatividade da Verdade. O príncipe se despede mas antes confessa que as vezes gostaria de ser feio... feio assim como João.

Mais adiante, cavalgando Rocinante, o cavalo de Dom Quixote, vai em busca de uma princesa que se revela apenas uma imagem inatingível.

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Seguindo sempre em frente, agora em busca da Bruxa da Felicidade à Força, João Sem Medo conhece um tal de João Medroso, um rapaz de aparência identica à sua, mas que tem medo de tudo. Os dois especulam a respeito do entregar-se ou não ao medo. O herói, influenciado pela covardia do outro, enfrenta vários testes de coragem e declara não ter medo

“– Primeiro, porque sou o João Sem Medo. Segundo, porque jurei esconder o medo de

mim mesmo, para não me desprezar. Terceiro, porque uma pedra a andar não me desperta medo, mas apenas curiosidade de saber porque anda.” p.143

Os dois encontram ainda homens pássaros que vivem sendo servidos por escravos - gente que se sujeita à escravidão.

Na seqüência, João enfrenta um perigoso gigante que destrói literalmente João Medroso e tenta destruí-lo. Para isso, precisa que o nosso herói sinta medo. João enfrenta o gigante que, por sua vez, faz com que ele respire o ar em que transformou o outro João e assim fique com medo (o ar é envenenado de medo). Sem saída, nosso herói apela para o autor da história que, surpreendentemente (note-se a metalepse, recurso não usual no conto popular), entra em cena e salva sua personagem da destruição (p. 155)

João Sem Medo vai dar no país da fábula onde tem oportunidade de rediscutir a fábula da formiga e da cigarra (as formigas acabaram comendo as cigarras), e a fábula da rã e do boi (agora o boi se encolhe enquanto a rã cresce até ficarem do mesmo tamanho). O boi discute com João a diferença entre igualdade e identidade. Mais adiante, nosso herói encontra a raposa e o corvo. Quem acaba levando o queijo é João sem Medo.

Apesar de sentir fome, o herói cede o queijo para a Boca Perseguidora que o ensina onde fica a entrada do muro. Morto de fome acaba encontrando uma moça a quem pede comida. A mesma não sabe o que é comida. Descobre que a moça recebe sua alimentação diretamente da terra através dos pés ocos. Percebe que ela tem cheiro de fruta.Como um antropófago vegetariano ataca a infeliz e come-lhe alguns pedaços. Aparecem uns guardas e nosso herói foge, não sem antes receber da moça, que tinha ótimo coração, as indicações para chegar ao muro.

No último capítulo nosso herói constata: “– A verdade é que nessas minhas andanças descobri que, tanto no mundo da Imaginação

Mágica (...) como em Chora-que-logo-bebes impera a mesma Lei tremenda que se pode resumir numa destas palavras à escolha do fregues: Maçada, Repetição, Monotonia, Chatice...Com uma diferença, claro. É que em Chora-que-logo-bebes sofre-se mais. Ou pior ainda: sofre-se menos. Porque lá a pseudo-dor é tão pífia, tão pilha, tão vil, tão rasca que até se ignora o que é a dor verdadeira.” p. 185

Confessa ao guardião do muro que está com vontade de provar de novo um pouco de

realidade e mais:

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“ - Não sei se me atreverei a dizer-te (...) (sinto) Saudades terríveis de... nem calculas de quê...Dessa coisa grosseira que se chama bacalhau com batatas...” p. 186

O trato para que ele possa voltar a sua terra é o seguinte. Tem que se repartir em dois. Um

João ficaria no lado da fantasia e o outro em Chora-que-logo-bebes, com direito a trocar de lugar de vez em quando.

João despede-se do seu outro “eu” e atravessa o muro que vira Nevoeiro de Pedra. Encontra sua terra igual com sempre fora. Abraça sua mãe chorosa como sempre, tenta um discurso renovador (“Viva a alegria revolucionária!”) recebido com total desinteresse, desiste, vai para a casa com a mãe comer um bacalhau e vendo tantos olhos a chorar acaba montando uma fábrica de lenços e ficando rico.

6.3.3 Aventuras de Xisto

O texto de Lúcia Machado de Almeida, 78 p. 344 , pretende claramente atingir o leitor através de um narrador que se comporta como um contador de histórias, de muitos diálogos e frases feitas, entre outros índices de oralidade:

“ O fim do caso já se sabe...O mestre ouviu a própria voz e...coitado de Xisto! Foi para o

quarto sem ganhar pastéis de queijo... ” p. 7 “ Sim, pois jamais iria haver no mundo mais generoso coração, mais lúcida inteligência e mais nobre alma que a de Xisto! É verdade que era gulosíssimo... mas

quem é que não tem os seus defeitos? ” P. 7 “Como vocês viram, Xisto e seu amigo Bruzo ficaram, por acaso, de posse do Manual

Secreto dos Bruxos.” p. 0 “E assim, numa ensolarada manhã, Xisto e sua gaiola de bambu foram carregados e

levados para um grande navio de vela. Zingu exigiu que o passarinho ficasse no camarote bem juntinho de sua cama.” P. 65

Cremos que os exemplos demonstram os aspectos orais do texto de Lúcia Machado de

Almeida. Quanto à história propriamente dita, eis uma sinopse: Xisto é apresentado como um jovem, orfão de pai, muito esperto, inteligente e querido pela

mãe. Vive no reino de El-Rei Magnoto. Um dia, entrando, por acaso, no esconderijo de um

344 ALMEIDA, Lúcia Machado de. Aventuras de Xisto. 5ª ed.. São Paulo, Brasiliense, 1973.

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bruxo, descobre um livro encadernado com couro de sapo: Manual Secreto dos Bruxos. Encantado, declara ao inseparável amigo Bruzo:

“Vou sair pelo mundo endireitando coisas erradas! Esse livro que acabamos de encontrar

vai me ajudar muito. Por ele ficarei conhecendo o ponto fraco dos feiticeiros, aprenderei o meio de libertar a humanidade desses espíritos do mal.” p. 11

Após ser armado cavaleiro andante, graças a um estratagema que defende seu reino de

uma invasão, Xisto despede-se da mãe e, juntamentente com Bruzo, seu escudeiro, parte pelo mundo para destruir os últimos feiticeiros da Terra. Acaba chegando num reino distante governado por um verdadeiro ditador chamado Vilebrodo, na verdade, o bruxo Durga disfarçado. Os dois heróis conseguem enfrentar e destruir a feiticeira Fredegonda, senhora dos que voam, mas não são aves, ou seja, os morcegos e Jacomino, o bruxo que se alimenta de humo da terra e é capaz de transformar gente em árvore. Restam Minoco, o senhor do tempo, capaz de rejuvenecer e envelhecer e fazer o mesmo com suas vítimas, e Durga, o que “vê sem ser visto”. Em sua trajetória, Xisto enfrenta vários desafios. Utiliza o veneno curare para vencer as harpias, verdadeiras feras-do-ar. Atacado por leões, escapa jogando gás hilariante sobre os felinos que caem na gargalhada. Bruzo é transformado por Minoco, num recém nascido. Para escapar do mesmo destino e graças a um conhecimento aprendido no manual dos bruxos, Xisto consegue virar um canário.

“ Que delícia voar...” pensou Xisto, saltando de galho em galho, na floresta. De repente,

teve vontade de cantar e experimentou fazer isso. Então, cheio de prazer, ouviu um alegre e lindo trinado: a sua própria voz!” p. 60

Infelizmente, Xisto é caçado e preso numa gaiola. Por causa disso, faz grande amizade

com o menino Zingu. Mais tarde, escapa do cativeiro e, levado nas asas de uma águia, pois a distância é muito grande, viaja até um vulcão para pegar um pouco de lava, único remédio capaz de destruir Durga. Voltando ao reino de Vilebrodo (Durga), esconde-se no quarto, espera o bruxo adormecer e atira a lava, guardada num caramujo.

“Então...então... cheio de medo, o passarinho viu o rosto de Durga ir envelhecendo

rapidamente como se tivesse cem, duzentos, quinhentos, setecentos, novecentos anos! A pele foi enrugando, enrugando até se transformar num couro escuro e curtido, todo escarquilhado. Diante da horrenda metamorfose, Xisto quase desmaiou. E o pior de tudo era aquele enjoativo e estranho cheiro– cheiro de século– que se foi espalhando pelo ambiente.” p. 78

Missão cumprida, Xisto, ainda transformado em passarinho, resolve voltar para casa e

visitar a mãe. A boa senhora além de triste com a ausência do filho, anda muito doente. Suas lágrimas caem sobre a cabeça do passarinho e assim Xisto volta a ser gente de novo. Logo

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depois, sua mãe morre. Falta ainda destruir Minoco, o senhor do tempo. Com o nome falso de Sárpio, ele governa o reino que antes pertencia a Vilebrodo. Xisto consegue enganar o bruxo utilizando um gás asfixiante e fazendo-se passar por poderoso feiticeiro. Acuado, Minoco faz Bruzo voltar a sua idade verdadeira. Os dois amigos, então, urdem um plano e destroem Minoco com a única coisa capaz de fazer isso: o choque de um peixe elétrico.

A história termina com Xisto assumindo, para a felicidade geral da nação, o reino antes pertencente aos bruxos.

6.3.4 História meio ao contrário

No texto de Ana Maria Machado 345 , de 40 páginas, repleto de índices de oralidade, o

narrador utiliza linguagem coloquial e simula um contador de histórias. A obra, ao mesmo tempo, parodia os contos de fadas tradicionais. Começa, por ex.., pelo desfecho tradicional da forma.

“E então eles se casaram, tiveram uma filha linda como um raio de sol e viveram felizes

para sempre... Tem muita história que acaba assim. mas este é o começo da nossa. Quer dizer, se a gente

tem que começar em algum lugar, pode muito bem ser por aí.” p. 4 “ Mas isso é coisa de índio. Homem branco hoje em dia não liga mais para essas coisas.

Prefere saber escalação de time de futebol, anúncio de televisão... etc.” p.5 “Vamos logo saber como foi isso. “ p .6 “ Um belo dia, o Rei estava tranquilamente passeando... etc” p. 8 “Lá dentro, com o recado do rei, a Rainha chamou a Princesinha, e as duas trataram de ir

começando a jantar, sentadas à real mesa, no real salão de banquetes, todo iluminado com dezenas de reais lustres de cristal, enquanto os reais músicos tocavam belas melodias. De repente, o Rei entrou aos gritos, fazendo um escândalo real...” p. 10

“Só com a coragem, não. Vinha também com sua lança, sua espada, seu escudo. Com

armadura, elmo e tudo.” p. 32

345 MACHADO, Ana Maria. História meio ao contrário. 7ª ed.. São Paulo, Ática, 1986.

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São evidentes os recursos de adaptabilidade às circunstâncias, teatralidade e concisão utilizados pela autora. Ressalte-se as inúmeras repetições de palavras, trocadilhos, frase feitas, assonancias, duplos sentidos etc.

Quanto ao enredo de História meio ao contrário, eis uma sinopse: Um rei, uma rainha e sua filha moravam num reino distante e encantado e viviam “felizes

para sempre”. Para casar-se com a rainha, o rei havia enfrentado “mil perigos.” “Viver feliz para sempre não é fácil, não. (...) Fica tudo tão igual a vida inteira que é até

sem graça.” p. 6 Um dia, o rei resolve ficar até mais tarde assistindo o anoitecer. Depois, volta para casa

muito assustado. Diz que aconteceu “– Uma coisa horrível! Roubaram o dia!” p. 12 A família real fica muito preocupada pois realmente com a escuridão da noite, sumiu tudo.

O rei resolve tomar enérgicas providências. “–Onde já se viu? Roubar minha real luz bem nas minhas reais barbas!” p. 14 O primeiro-ministro tenta, sem sucesso, explicar ao rei que o problema não é novo. O

soberano não se conforma. “– Como é que eu não soube disso? (...) Eu e minha família nunca vamos lá fora, e não

vemos. Mas alguém podia ter-me contado, não?” p. 16 O primeiro-ministro explica que “– Se nós fôssemos trazer a vossos reais ouvidos todos os problemas do povo, como é

que Vossa Magestadade ia poder continuar a ser feliz para sempre?” p. 16 O rei manda convocar o povo para conversar. Alegando que é complicado convocar todo o

povo, o ministro chama os empregados do castelo, representantes do povo. Assombrado com o tamanho do povo, o rei quer saber o nome de quem roubou o dia. Segundo um soldado, o culpado é um monstro, o terrível Dragão Negro.

“É um Dragão enorme, maior que a aldeia, o vale e este castelo real. Diariamente, ele chega

de mansinho e rouba o dia por um tempão, até a hora em que se cansa dele e deixa o sol voltar de novo. É imenso, todo preto de escuridão. Solta pelas narinas uma espécie de fumaça gelada parecida com nuvens e que fica assentada no fundo do vale até que o sol a desmanche de manhã.

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Quando abre a boca lança fagulhas pequenas que não desaparecem enquanto o dia não volta, ficam brilhando e cintilando na escuridão...” p. 20

O Dragão além disso, segundo o soldado, tem um olho só (na verdade, a Lua). “–Que horror! – exclamou o Rei. – Deve ser lindo! – suspirou a princesa. – Cale a boca, menina – ralhou a Rainha.” p. 21 O rei ordena que o monstro seja destruído. Quem liquidar o Dragão terá a princesa em

casamento. O povo conversa sobre o assunto. Uma pastora, por exemplo, diz que jamais se casaria com alguém só porque esse alguém é bom de briga. Um ferreiro acha que enfrentar as fagulhas do Dragão Negro é energia jogada fora.

No outro dia, surge um príncipe na aldeia. A pastora acha o príncipe encantador e pergunta a ele se vai enfrentar o monstro só por causa da princesa.

“– Nada disso.(...) Não tenho nada para fazer o dia inteiro, tudo o que eu quero alguém

faz para mim. (...) Quando soube desse monstro, logo achei que ia ser uma aventura maravilhosa.” p. 25

Um camponês resolve defender o Dragão. O ferreiro concorda: “– Se ele não carregasse o sol todo dia, garanto que nós íamos ter que trabalhar sem parar,

sem poder dormir, sem descansar. ” p.25 Fora isso, se fizesse sol o tempo todo, as colheitas acabariam secas e queimadas e

ninguém ia ter o que comer. O povo resolve perdir ajuda a um gigante que mora no alto da montanha. Acontece que o gigante vive dormindo. Alguém diz

“– É mesmo...Deitado eternamente...” p. 26 Para acordá-lo o povo vai todo junto. Naquele dia, a aldeia fica deserta. Com a gritaria do

povo - “acorda!” – o gigante abre o olho. “– Que corda é essa que vocês tanto pedem? Peguem logo a corda e me deixem

dormir...” p. 28 O gigante pede para o povo explicar a situação e o narrador diz “Eu não vou explicar tudo de novo, porque nós todos já sabemos.” p. 28

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O gigante, que tinha o corpo de terra, e povo fazem um plano: “E o gigante suou orvalho que evaporou para virar nuvens. E as nuvens choveram água no

alto dos montes para engrossar os riachos. E as sementes que os homnes plantaram viraram grama e capim, espinhos e mato, árvores e cipós. E toda essa mata produziu flores e frutos que atraíram insetos que atraíram passarinhos que atraíram passarões e animais de pelo e de pele. ” p. 30

Isso tudo muito rapidamente, graças ao gigante. No fim do dia, o Dragão chegou

“ soltando suas fagulhas que pisca-piscavam”. Do outro lado, apareceu o príncipe “com armadura, elmo e tudo.”

Mesmo atrapalhado pelas correntezas dos riachos, pelas plantas e matos que haviam crescido, e pelos insetos e outros animais, o príncipe, corajosamente, segue em frente. Foi quando o Dragão abriu o olho, ou seja, a Lua. Com o clarão da Lua, o príncipe vê a pastora

“e pensou que de manhã (...) nem tinha reparado como ela era tão bonita.” p.34 Na mesma hora, o príncipe perde duas vontades: de acabar com o Dragão e de casar com a

princesa. O rei, por outro lado, havia passado a noite acordado e aprendido a beleza da noite e que aquilo acontecia todos os dias.

Mesmo assim oferece a mão da filha ao príncipe. “– Meu real pai, peço desculpas. Mas se o casamento é meu, quem resolve sou eu. Só

caso com quem eu quiser e quando quiser.” p.37 Como desfecho, a princesa vai viajar e conhecer outras pessoas e outras terras. A bela

pastora, em princípio, não quer se casar com o príncipe. Não aceita ter que chamar o próprio marido de “Vossa Alteza”. No fim, o príncipe começa a trabalhar como Vaqueiro e acaba se casando com a pastora.

6.3.5 Uma idéia toda azul

O livro de Marina Colasanti, publicado em 1979, é composto de dez contos.

Examinaremos dois deles, “Uma idéia toda azul” e “A primeira só”. 346 No plano da linguagem, tendendo à prosa poética, é preciso que se diga, todos os texto do

livro foram construídos através dos mesmos recursos ligados à oralidade: adaptabilidade às

346 COLASANTI, Marina. Uma idéia toda azul. 15ª ed.. Rio de Janeiro, Nórdica, 1979.

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circunstâncias, teatralidade e concisão: vocabulário popular; ritmo; imagens poéticas; figuras tais como a personificação, metáforas, repetições de palavras etc.; frases curtas; coordenação preferencialmente à subordinação etc.

“ Um dia o Rei teve uma idéia. Era a primeira da vida toda, e tão maravilhado ficou com aquela idéía azul, que não quis

saber de contar aos ministros. Desceu com ela para o jardim, correu com ela nos gramados, brincou com ela de esconder entre outros pensamentos, encontrando-a sempre com igual alegria, linda idéia dele toda azul.

Brincaram até o Rei adormecer encostado numa árvore.” p. 32 “ Quando todos os olhos se fecharam, saiu dos seus aposentos, atravessou salões, desceu

escadas, subiu degraus, até chegar ao Corredor das Salas do Tempo.” p. 32 “ Sentado na beira da cama o Rei chorou suas duas últimas lágrimas, as que tinha

guardado para a maior tristeza.” p. 34 “ O príncipe acordou contente. Era dia de caçada. Os cachorros latiam no pátio do castelo.

Vestiu o colete de couro, calçou as botas. Os cavalos batiam os cascos debaixo da janela. Apanhou as luvas e desceu. “ p. 39

“Era linda, era filha, era única.” p. 47 “Riram muito depois. felizes juntas, felizes iguais. A brincadeira de uma era a graça da

outra. O salto de uma era o pulo da outra. E quando uma estava cansada, a outra dormia.” p. 48 São exemplo retirados dos diversos contos do livro. Passemos agora às sinopses dos dois

contos. “ Uma idéia toda azul” conta a história de um rei que um dia teve uma idéia. Foi sua

primeira idéia e isso o deixou maravilhado. Escondeu a idéia de todos e passou a brincar com ela todos os dias. Passou, inclusive, a ter ciúmes:

“ ...solta e tão bonita, a idéia poderia ter chamado a atenção de alguém. Bastaria esse

alguém pegá-la e levar. É tão fácil roubar uma idéia.” p. 32 O rei resolve escondê-la na sala do sono, “ sala de quase escuro, sempre igual”. “ O Rei deitou a idéia adormecida na cama de marfim, baixou o cortinado, saiu e trancou a

porta. A chave prendeu no pescoço em grossa corrente. E nunca mais mexeu nela. ” p. 33

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O tempo passa. O rei nunca mais teve outras idéias nem sentiu falta delas. Vive ocupado

em governar. Envelhece “ ...sem perceber, diante dos educados espelhos reais que mentiam a verdade. Apenas

sentia-se mais triste e mais só, sem que nunca mais tivesse tido vontade de brincar nos jardins. ” p. 33

Quando finalmente se aposenta, o rei corre até a sala do sono para pegar de volta a sua

idéia. Lá está ela dormindo, linda e jovem como sempre. “ Mas o rei não era mais o rei (...). Entre ele e a idéia estava todo o tempo passado lá fora

(...). Seus olhos não viam na idéia a mesma graça. Brincar não queria, nem rir. Que fazer com ela?” p. 33

O rei senta-se na cama e chora. Depois, baixa o cortinado e vai embora, esse o desfecho

do conto. “A primeira só” conta a história de uma linda princesa, filha única, que vive triste porque

não tem com quem brincar. “ Sozinha no palácio chorava e chorava. Não queria saber de bonecas, não queria saber de

brinquedos. Queria uma amiga para gostar. ” p. 47 Preocupado com a tristeza da filha, o rei chama um vidraceiro e manda fazer um espelho.

Quando a princesa acordou “ ...não estava mais sózinha. Uma menina linda e única olhava supresa para ela, os cabelos

ainda desfeitos de sono. Rápido saltaram as duas da cama. Rápido chegaram perto e ficaram se encontrando. Uma sorriu e deu bom-dia. A outra deu bom dia sorrindo.” p. 48

A princesa passa um tempo de muita felicidade brincando com sua nova amiga. Um dia,

resolve jogar bola e quebra o espelho. Examinando os cacos no chão, a menina reencontra não só a amiga mas muitas outras.

“Era diferente brincar com tantas amigas. Agora podia escolher. Um dia escolheu uma, e

logo se cansou. No dia seguinte preferiu outra, e esqueceu dela em seguida.” p. 49 Enfastiada, a princesa começa a quebrar os cacos em pedaços cada vez menores. Os

pedaços agora só mostram olhos, bocas, um lado de nariz. A menina acaba sozinha outra vez.

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Cheia de tristeza, resolve ir brincar no jardim. Encontra um lago e vê a imagem da amiga esperando por ela.

“Mas a princesa não queria mais uma única amiga, queria tantas, queria todas, aquelas

que tinha tido e as novas que encontraria. Soprou na água. A amiga escrespou-se mas continuou sendo uma. Atirou-lhe uma pedra. A amiga abriu-se em círculos, mas continuou sendo uma.” p. 50

A princesa, então, salta na água de braços aberto, estilhaçando a imagem, seu reflexo, em

muitas amigas “que foram afundando com ela, sumindo nas pequenas ondas com que o lago arrumava

sua superfície.” p.50 Sendo este, o desfecho do conto. 6.3.6 Os Pregadores do Rei João

A obra de Luís Camargo foi publicada em 1980 e tem 32 páginas. 347 No plano textual, encontramos muitas marcas típicas da expressão oral: o narrador que se

faz de contador de histórias; o uso de vocabulário popular; fórmulas e frases feitas e um texto conciso construído basicamente através de diálogos e orações coordenadas.

“Era uma vez um rei, chamado João, que tinha um lençol mágico” p. 5 “– RES-PEI-TÁ-VEL PÚBLICO! Temos o prazer de apresentar ROLDÃO CORRE-

TUFÃO, o domador de vento!” p. 8 “ Durante muitos e muitos anos, Roldão, Oliveiros e Ferrabrás tomaram conta do lençol

mágico.” p. 9 “ O vento mais forte do mundo veio roubar o lençol mágico do Rei João.” p. 10 “ O vento ventou, ventou e ventou, até chegar no meio do mar.” p. 10 “ ... a tempestade estava tirando uma soneca.” p. 12 “ Quando eles chegaram. encontraram Ferrabrás com um corpo novinho em folha, de

madeira e arame.” p. 30 347 CAMARGO, Luís. Os pregadores do Rei João. São Paulo, Ática, 1980.

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Eis a sinopse de Os Pregadores do Rei João: O rei João tem um lençol mágico onde cabem todas as coisas que há no mundo. O lençol

não pode ser deixado solto no varal pois corre o risco de ser roubado pelos ventos. “– Preciso arrumar uns pregadores! pensou o Rei João. E logo mandou convidar pregadores do mundo inteiro para um torneio no palácio.” p.5 Roldão, Oliveiros e Ferrabrás vencem o torneio e passam a ser os guardiões do lençol. Um dia, o vento mais forte do mundo arrebenta o varal e rouba o lençol mágico, levando

os pregadores junto. Durante a fuga, uma tempestade cai sobre o lençol que, pesado, afunda no mar. Os três heróis ficam boiando sem saber o que fazer.

“– Estamos no mato sem cachorro - disse Ferrabrás!” p.12 Os pregadores então recebem a ajuda de um peixe vermelho. Viajam dentro do animal

olhando tudo através de seus olhos. O lençol não está no fundo do mar. Segundo uma alga marinha, a Lua tinha levado o lençol embora. “– A Lua puxou os cabelos do mar e falou que ia deixar ele careca, se ele não desse o

lençol mágico. Então, o mar deu o lençol mágico pra Lua.” p.16 Roldão, Oliveiros e Ferrabrás acham um foguete e vão para a Lua. Encontram São Jorge e

o dragão brincando de pega-pega. “– O Planeta das Plantas Pregadoríferas levou o lençol embora – disse São Jorge. ”

p.18 O Planeta das Plantas Pregadoríferas tinha comido um pedaço da Lua e ameaçou comê-la

inteirinha se ela não lhe desse o lençol mágico. Os três heróis voam até o tal planeta. No meio do caminho passam por um planeta especial.

“Era o Planeta dos Pregadores-Fantasmas. – É pra lá que os pregadores vão quando morrem – explicou Oliveiros. – Os pregadores

ganham um corpo novo, de madeira e arame, e voltam pra Terra.” p.20 Chegando no Planeta das Plantas Pregadoríferas, os heróis encontram o lençol mágico,

lutam contra a planta pregadorífera e conseguem recuperá-lo. Ferrabrás, infelizmente, é comido por uma planta e vira um pregador fantasma.

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De volta para casa, acaba o combustível da nave espacial e Roldão e Oliveiros ficam girando em torno da Terra durante um tempo. Recebem a ajuda de um arco-íris, escorregam por suas costas e vão parar no quintal do palácio de Rei João. Chegando lá, reencontram Ferrabrás com um corpo “novinho em folha”.

“– Vocês demoraram tanto que deu tempo pra eu fazer um corpo novopra mim e ainda

chegar antes de vocês!” p.30 Vitoriosos, os três se abraçam contentes e este é o desfecho da história. 6.3.7 A fada Sempre-viva e a Galinha–fada

De autoria de Sylvia Orthof, com 32 p., publicada em 1986 348 ,a obra apresenta um texto repleto de recursos ligados à oralidade. Através de prosa poética, o narrador, feito um contador de histórias, dirige-se diretamente ao leitor empregando linguagem coloquial, vocabulário popular e familiar, fórmulas, brincadeiras com palavras, trocadilhos etc.

“Eu conheço uma fada chamada Sempre-Viva. Ela é uma senhora fada, tipo avó ou

bisavó.” p.3 “ Qual ser á a galinha que sabe botar setenta e quatro ovos seguidos, hein? Você sabe?” p.12 “Vou dizer um segredo: para botar...etc” p. 13 “ O problema era grave, vou explicar por que o problema era gravíssimo.” p.15 “Voaram por cima do cima e por baixo do baixo.” p.22 “E a história tão louca, desandou: entrou por um forno, saiu por um bolo, virou um

suspiro.” p.32 Eis uma sinopse da história. A fada Sempre-Viva mora numa casa que, na verdade, também é fada e tem janelas

encantadas. “As janelas abrem-se sobre paisagens que imaginamos. A janela daqui mostra um lugar

cheio de borboletas. A janela dali mostra um céu estrelado com lua, dragão e astronauta. A janela do meio mostra o pensamento. E como o pensamento é coisa de repente, a janela abre para o branco. Quem olhar por ela pensa o que quer. ” p.5.

348 ORTHOF, Sylvia. A Fada Semore-Viva e a Galinha-Fada. 6ª ed.. São Paulo, FTD, 1994.

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A tal fada faz tudo o que toda fada faz. “ ...transforma sapos em príncipes, abóboras em carruagens, ratinhos em sanduíches de

cachorro-quente e cachorro-quente em cachorro-frio resfriado.” p.6 A maior especialidade da fada Sempre-Viva é bater claras em neve. Ela, inclusive, é

formada na “Escola de Claras em Neve do país das Nevadas Claras. ” A grande dificuldade em preparar as claras em neve é conseguir uma galinha-fada que

bote setenta e quatro ovos seguidos. Acontece que o rei Ovoski, que mora no país do Bem e do Mal, declara, um dia, que quer comer o bolo especial, o que leva setenta e quatro ovos, feito pela fada Sempre-Viva.

“E se ela não mandar o bolo, eu fico danado...e se eu ficar muito danado, desiquilibro...e

aí, o lado ruim fica maior que o lado bom...e eu sou capaz de mandar para prisão todo o bem e deixar em liberdade todo o mal do mundo... ” p.17

Preocupado, o primeiro- ministro pega carona com um motoqueiro e vai conversar com a

fada. O motoqueiro só deu carona porque se tratava de um primeiro ministro. “ Se fosse um décimo-ministro, talvez o motoqueiro não levasse.” p.19 Ao saber do pedido do rei, a fada fica aflita, pede carona ao motoqueiro e manda soprar

uma brisa fazendo a moto voar “ ... num vôo a jato, em busca da galinha-fada e de seus setenta e quatro ovos.” p.21. Após voar por “ ... sete caminhos tortos, sete luas, sete tempestades...(...) só acharam sete sapos, sete

dragões e sete gatos resfriados que miavam atchins: miau...atchim!” p.25 Depois da sétima tempestade, aparece o arco-íris e, embaixo dele, a galinha-fada que, por

coincidência, já havia botado setenta e três ovos e “ ...se espremia e esticava até botar o último ovo: “Que alívio!” A fada Sempre-Viva volta para casa e começa a bater as claras e as claras vão “ ...crescendo, crescendo, CRESCENDO e a fada Sempre-Viva, ali, batendo, batendo,

BATENDO... “ p.29

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As claras saem pelo mundo afora e invadem o castelo do rei Ovovski. “As torres, cada uma ficou parecendo uma torre de suspiro. Ovovski, o rei, adorou. Pegou

um par de esquis, fingiu que era suiço e desceu do morro, uma perna pra lá, outra pra cá. O Bem e o Mal, ensuspirados, continuam equilibrados. Nem mal terrível nem bem absoluto, assim como é a vida.” p.31

Sendo este o desfecho da história. 6.3.8 Tampinha

Escrito e ilustrado por Ângela Lago, o livro tem 48 páginas e foi publicado em 1994 349 . Como os demais textos deste primeiro grupo, apresenta inúmeros traços de oralidade: formulismo, vocabulário popular e familiar, concisão, orações coordenadas etc. O narrador, mais uma vez, coloca-se no lugar do contador de histórias.

“Era um vez uma menina tão pequena, que, cada vez que espirravam por perto, ela voava.

Seu nome era Tampinha. Ela usava uma tampinha de garrafa na cabeça para ficar mais pesada e aterrisar mais depressa quando voava.” p. 5/6

“ Perto morava um rapaz...que eu esqueci o nome. Era um rapaz muito simpático e, para

facilitar esta história, vou chamá-lo de Bonito.” p. 8 “ Que tamanhico que nada! A menina estestou que iria de qualquer jeito e danou a falar

que ia, porque ia... ” p.10 “ Pois muito bem. De repente Tampinha deu de cara com...” p. 18 “Tampinha ficou branca de medo e nada de lembrar os versos mágicos.” p. 22 Eis uma sinopse da história. Tampinha, uma menina muito pequena, mora com sua avó. Perto dali vive um rapaz

chamado Bonito. Um dia Bonito fica doente. O jeito de salvar o rapaz, segundo a avó de Tampinha, é fazer um chá da flor preta da árvore do Curupira. Tampinha resolve procurar a tal flor.

349 LAGO, Ângela. Tampinha. São Paulo, Moderna, 1995.

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“ Mas, antes de a menina ir embora, a avó apanhou uma pimenta-malagueta bem forte. Amarrou a pimenta no pescoço de Tampinha e lhe ensinou umas palavras mágicas para ela falar nas horas de perigo.” p. 13

Tampinha parte em seu barquinho de papel, levando uma agulha como espada e uma

colherzinha de café para usar de remo. “Enquanto ela remava, ia recitando as palavras mágicas. Tinha medo de esquecer alguma

na hora do perigo: Pimentum, pimentom, pimentém,pimentim; peixe quer água, eu quero atchim Pimentur, pimentor, pimenter, pimentir e quero voltar de onde eu quero ir.” p. 17 No meio do caminho, Tampinha encontra a Cobra Grande e esquece as palavras mágicas.

Ao sentir o cheiro da pimenta a cobra dá um espirro e a menina sai voando pelos ares. Vai cair justo na praia da Onça Pintada. Diante da fera, a menina esquece de novo as palavras mágicas mas a onça, sentindo o cheirinho da pimenta, espirra e manda Tampinha para longe. Por sorte, nossa heroína vai parar no pé da árvore do Curupira. Acontece que árvore é muito alta e Tampinha fica sem saber o que fazer. A árvore então deixa cair uma fruta.

“Come esta frutinha e cresça bonitinha” p.31 Tampinha come a fruta e fica com os braços compridos e o corpo pequeno. “ Ô filhote louco, come mais um pouco.” p.33 A menina come e fica com as pernas compridas. Seu corpo, porém, continua pequeno. A

árvore joga mais um fruta, Tampinha come e “ Quando terminou, estava moça feita. Alta como qualquer moça, se vocês me acreditam.

E o melhor: deu conta de apanhar a flor. ” p.36 Neste momento, chega o Curupira. O monstrengo fica furioso e a menina, assustada,

esquece de novo das palavras mágicas. Ao cheirar a pimenta, o Curupira dá o maior espirro do mundo e Tampinha sai voando pelos ares. Indo parar na casa do moço Bonito, a moça faz o chá e o rapaz fica curado.

“ –Vocês têm alguma coisa contra o casamento?” p.44

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é o desfecho da história.

6.4 Comentários sobre as obras com evidentes vestígios do conto popular No plano da linguagem, os nove textos estudados apresentam, sem exceção, inúmeros e

evidentes índices de oralidade, sempre considerando aqui as categorias propostas por nós a partir dos estudos de Paul Zumthor. Todos os textos buscam a comunicação direta com o leitor através da adaptabilidade às circuntâncias, ou seja, utilizam vocabulário popular e familiar, fórmulas, frases feitas etc; a teatralidade, ou seja, utilizam recursos para seduzir e prender o leitor; e a concisão, ou seja, privilegiam a ação, os períodos curtos e as orações coordenadas em oposição à descrição, às frases longas e à subordinação. A nosso ver, no plano textual, os contos analisados estão totalmente ligados a expressões populares como o conto, entre outras, e, enfim, considerando nossa época, às manifestações da cultura de massa: sua prioridade é, independentemente de qualquer coisa, atingir o receptor.

Quanto aos temas, faremos comentários texto a texto.

6.4.1 Pinóquio

O enredo, em nossa leitura, remete, quase que pontualmente, às mais arcaicas narrativas míticas. Acompanhamos o percurso do herói, verdadeira gesta, desde sua origem, um pedaço de madeira, até sua transformação em ser humano. São inúmeros os desafios que o protagonista precisa vencer. Correspondem, de um lado, à busca do auto-conhecimento e do auto-domínio (sua luta interior, presente durante toda a narrativa, no sentido de avaliar seus próprios sentimentos e desejos e assim encontrar o caminho que o transformará num homem); à ampliação de uma visão de mundo que englobe o outro (sua relação com Gepeto ou com a Fada) e ao abandono de uma postura egocêntrica; de outro lado, corresponde ao enfrentamento das dificuldades do mundo, à constatação da maldade humana (os vários falsos amigos, Raposa, Gato etc), dos paradoxos e mal-entendidos. Pinóquio encontra também a bondade e a solidariedade (o dono do teatro de bonecos p.e.) e ainda recebe ajuda, tal e qual os heróis míticos e os dos contos populares, de forças desconhecidas (o melro branco, o Grilo Falante, A Fada de cabelos azuis, o vagalume), além de peixes e cachorros. Durante sua trajetória, visita países exóticos e utópicos (por ex. A Cidade das Abelhas Trabalhadoras) e lugares onde, tal como as arcaicas tradições populares do “mundo às avessas”, tudo funciona ao contrário: a cidade de Pega Trouxas, onde a justiça prende os honestos e solta os bandidos, e a Terra dos Brinquedos, verdadeira Cocanha. Note-se aqui a utilização de nomes próprios compostos, e que se auto-explicam, para identificar lugares mágicos ou exóticos. Lembremos, em Ana da Castro Osório, do “Palácio de Ferro no Reino da Escuridão” ou da “Torre da má hora, quem vai lá

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não torna” � . Nosso herói acaba sendo engolido pelo Tubarão, imagem mítica clássica tal como os peixes, as grutas escuras e as vaginas dentadas descritas por Eliade e de onde o herói sempre sai modificado, exatamente como ocorre com Pinóquio. O enredo de Pinóquio já é em si, uma grande viagem, tema mítico clássico que, como ensina Zumthor, pode simbolizar a própria existência, e dentro dela, há pequenas viagens: é levado pelo pombo, “cavalinho de penas”; na carroça puxada por burrinhos; ajudado pelo atum etc. A metamorfose de Pinóquio, transformado em burro, é outro elo mítico, faz parte da gesta do herói, e remete para inúmeras histórias (por. ex.“A história maravilhosa do príncipe Urso de Laranja) e também ao Asno de

Ouro de Apuleio. Num certo sentido, Pinóquio é um menino eventualmente transformado em boneco, lutando para voltar a ser gente. Durante seu percurso, Pinóquio enfrenta a morte por diversas vezes: quando é enforcado; nadando no mar; quando é quase devorado pelo pescador. Deve-se ressaltar que o boneco de Collodi age sempre a partir do livre arbítrio e da busca pessoal de prazer e felicidade: a moral ingênua. No plano da enunciação, o narrador faz-se passar por um contador de histórias e utiliza-se de vários recursos típicos das narrativas orais. Um exemplo: a recapitulação dos pontos principais do discurso (a anacefaleose) na cena em que o boneco encontra Gepeto. Note-se ainda que Pinóquio nem sempre age como um menino: enfrenta e escapa da polícia; tem força física para carregar Gepeto nas costas em pleno mar; trabalha e consegue ganhar dinheiro feito um adulto. Em resumo, abordando um herói às voltas com problemas éticos de toda a ordem e em busca de si mesmo, o texto de Collodi, por outro lado, impregnado de fantasia e de forças mágicas remete, a nosso ver, diretamente às narrativas míticas e pode ser perfeitamente lido como uma narrativa relatando a iniciação de um herói.

Outra leitura poderia vincular Pinóquio, por conta de suas inúmeras lições morais, aos contos paradidáticos tais como os de autoria de Ana de Castro Osório. Discordamos dessa visão.

1) Estamos diante de um protagonista complexo, cheio de dúvidas éticas, operando, em

princípio, a partir de uma ética ingênua. 2) O texto de Collodi recorre ao fantástico o tempo todo e está enraizado em inúmeros

temas e imagens arcaicas e populares. 3) As questões de comportamento ético, note-se, faziam parte, em termos, das narrativas

míticas, o que as torna coerentes no corpo do texto, se encararmos Pinóquio como tendo vestígios de gestas iniciáticas.

� O emprego de nomes assim é traço das mais antigas tradições remetendo, a nosso ver, a uma utilização arcaica da linguagem, ligada ao pensamento sintético, para o qual cada nome ainda preserva a sua correspondência nítida e concreta. Segundo Cassirer “Na vida primitiva, o interesse pelo aspecto concreto e particular das coisas predomina necessariamente. A fala humana sempre se conforma a certas formas de vida humana, e é por elas mensurável. Um interesse por meros “universais “ não é nem possível, nem necessário, em uma tribo indígena. É bastante, e mais importante, distinguir os objetos segundo certas características visíveis e palpáveis.” C.f. Op. cit. p. 223 Com o passar do tempo, ao que parece, as denominações foram se tornando abstratas, num fenômeno que pode ser vinculado ao processo de dessacralização.

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4) Visam exclusivamente o comportamento ético, ou seja, não há outras lições, de caráter didático tipo Gramática, História ou Geografia.

5) Elas, em todo caso, são acessórias, ou seja, podem ser descartadas sem prejuízo do enredo.

6) As lições morais correspondem evidentemente à visão da relação criança /adulto à época, são portanto datadas.

Em nosso ponto de vista, concluindo, as lições morais de Pinóquio poderiam ser perfeitamente excluídas sem prejudicar o conjunto da obra de Collodi e, principalmente, sem alterar um de seus temas centrais: a busca de si mesmo.

6.4.2 Aventuras de João Sem Medo

O texto pode ser considerado uma estilização, ou seja, obedece mas atualiza os paradigmas do conto popular. Nele, a personagem, cansada da vida medíocre e acomodada das pessoas à sua volta (ou seja, cansada do que já é conhecido, do antigo, do mundo oficial), parte em busca do novo, do original e do desconhecido. Para isso, salta o muro e penetra no parque proibido. Acompanhamos então o percurso de um protagonista que, em resumo, tem coragem porque esconde seu medo (sendo essa “a única valentia dos homens verdadeiros”); que vê-se obrigado a discutir o Bem e o Mal (acaba seguindo o caminho difícil e pedregoso do Mal, em nossa leitura visto como o novo e o desconhecido, pois, para o caminho do Bem, visto como o oficial e conhecido de todos, é necessário deixar de pensar e viver preso a burocráticas correntes de ouro); enfrenta a dor física e a morte por causa de uma linda menina e escapa ajudado por um deus cujo nome termina em “or ” não se sabe se “dor”, “amor”, ou as duas coisas junto; atravessa um país exótico onde habitantes não têm expressão pessoal: falam somente através de fórmulas e frases feitas; enfrenta um conflito de ética pessoal, de limites etc., quando para ajudar certa mulher, vê-se obrigado a perder partes do corpo; enfrenta o desafio representado pelos sonhos e os devaneios humanos (através da Fada dos Sonhos de cinco minutos); encara outra vez a relatividade das coisas com o príncipe que se julga muito bonito; encontra-se com João Medroso, verdadeiro alter ego, e enfrenta seus limites e o imponderável, sendo salvo graças ao próprio autor que interfere na história (a metalepse não é recurso comum no conto popular) etc. São temas abordados de forma sofisticada, refletindo as marcas e a visão de mundo do autor. A luta do novo contra o velho reflexo da renovação periódica do mundo (a insatisfação com o mundo à sua volta); a busca de si mesmo (os inúmeros testes pelos quais passa o heróis); a constatação da relatividade das coisas (em oposição a um mundo oficial, burocrático, idealizado e cristalizado, remetendo novamente à luta do novo (a verdade estabelecida) contra o novo (a nova verdade) e à conceitos como a alternância; os lugares onde as coisas ocorrem às avessas; as personificações; as inúmeras metamorfoses pelas quais passa o herói; o clima mágico, entre outros, são índices que remetem às tradições populares e míticas. Ressaltamos ainda a utilização de nomes próprios compostos para identificação de personagens, lugares e espaços mágicos ou exóticos: João Sem Medo, Chora-Que-Logo-

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Bebes, Parque de Reserva de Entes Fantásticos, Cidade da Confusão, Palácio da Colina de Cristal etc. A nosso ver, concluindo, as Aventuras de João Sem Medo colocam em discussão os percursos individuais, os rumos da sociedade, a ética e, além disso, podem ser associadas às narrativas míticas de iniciação, onde o herói viaja, enfrenta e vence inúmeros desafios (sempre ligados às condições da existência e à construção de uma certa visão de mundo), e retorna modificado.

6.4.3 As Aventuras de Xisto

Podem ser facilmente associadas às antigas narrativas populares como Guingamor e aos romances de calavalaria do ciclo arturiano. Trata-se de uma estilização. O herói Xisto, verdadeiro cavaleiro andante, parte com seu escudeiro em busca de aventuras e tambem para combater as injustiças do mundo. Alguns temas, a nosso ver, bastante nítidos na obra de Lúcia Machado de Almeida, também podem ser relacionados às antigas tradições populares. Por exemplo, a luta do novo contra o velho, cujos indícios aparecem em pelo menos dois pontos: 1) o jovem herói, insatisfeito, parte para mudar o mundo em que vive, ou seja, pretende viver num mundo diferente daquele construído pela geração anterior. 2) o herói vence ou mostra-se superior a todos os adultos de destaque na história (com exceção de sua mãe): ajuda o incompetente El-Rei Magnoto; vence o “nefando” Mirtofredo Barba-Coque; derrota Fredegonda que tem dois séculos de idade; Jacomino que tem quinhentos e vinte anos, Minoco que tem setecentos e quatro anos e Durga que tem novecentos e noventa anos. Dentro do espírito da renovação periódica do mundo, o jovem sempre e sempre suplanta o mais velho. A nosso ver, nesse sentido amplo, o Mal pode ser perfeitamente associado à velhice. Não se trata aqui, evidentemente, do Mal visto no sentido abstrato e absoluto mas sim apenas do Mal que impede o novo de crescer e por isso precisa ser destruído. Ressalte-se a existência de forças desconhecidas (o poder dos bruxos, as lágrimas da mãe de Xisto etc.). A utilização de nomes próprios compostos e auto-explicativos em Aventuras de Xisto dá-se na identificação dos feiticeiros: “Senhora dos que voam mas não são aves”, “O que vê sem ser visto” etc. A título de curiosidade, o nome Durga, utilizado pela autora para identificar o mais poderoso dos feiticeiros, corresponde à Durgâ, a “Natureza”, divindade poderosíssima na mitologia indiana (C.f. Eliade Mito e Realidade p. 104.). O nome Fredegonda, por sua vez, remete à rainha da Nêustria, Fredegunda (cerca de 545-597 d.C.), mulher de Quilperico I, que cometeu os piores crimes para chegar ao trono. Situações como a metamorfose do herói, transformado em pássaro e salvo graças às lágrimas (leia-se ao amor) da mãe; o vôo perigoso, nas asas da águia, até o vulcão; a ajuda da águia; a viagem do herói que, insatisfeito, parte pelo mundo, enfrenta desafios e poderes desconhecidos e volta modificado a ponto de assumir um trono (leia-se mais experiente e com maior auto-conhecimento) remetem às arcaicas narrativas de iniciação e às gestas divinas. Vale notar que o tema da busca do amor, o encontro do herói com a mulher, não ocorre na história de Lúcia Machado de Almeida, substituído pelo imenso amor maternal de Oriana.

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6.4.4 História meio ao contrário

Tende a ser um conto às avessas podendo ser considerado, portanto, ao deformar certos paradigmas da forma, uma paródia do conto popular. Vários temas ligados às antigas tradições merecem ser destacados. A própria idéia central da obra, expressa no título, “história ao contrário”, ou seu início partindo da fórmula “viveram felizes para sempre”, desfecho costumeiro de inúmeros contos, podem ser vinculados ao conceito de “mundo às avessas” e portanto, inseridos no contexto da discussão e da renovação da realidade. O poder oficial representado pelo rei, revela-se, no texto de Ana Maria Machado, incompetente e desvinculado da realidade, portanto evidenciando a necessidade e a época de ser substituído. A princesa não pretende seguir a tradição, inteiramente superada, imposta pelo pai (“se o casamento é meu, quem resolve sou eu...”). As hierarquias sociais (o casamento entre a pastora e o príncipe) são colocadas em discussão e superadas por um novo comportamento; a atuação e o sentido da elite e do poder instituído representados pelo rei (desligado da mais óbvia realidade) e pelo príncipe (que combate o monstro por não ter o que fazer) é discutida e contestada; o poder e a sabedoria advindos da união do povo (coletividade) em oposição à alienação e à ilegitimidade do poder oficial são destacados; os elos entre as pessoas e a natureza (lembremos da sociedade da vida) são reafirmados (o dia, a noite, os ritmos naturais, os elementos, a flora, a fauna etc.). Vale a pena ressaltar certos recursos “ao contrário”: quando, por ex., o gigante pergunta ao povo o que afinal está acontecendo, o narrador dirige-se ao leitor afirmando que não vai repetir tudo de novo, ou seja, utiliza-se do recurso da recapitulação (anacefaleose), típico da tradição oral, mas “às avessas”. Também vale sublinhar a utilização de nomes próprios compostos e que se auto-explicam: o “príncipe Valente e Encantador”, o “Dragão Negro” etc. Em nossa leitura,

História meio ao contrário traz, entre outros temas populares, a luta do novo contra o velho, representada, no caso, pela substituição das velhas pelas novas concepções da vida e do mundo. Merece ser ressaltado o aspecto político da obra de Ana Maria Machado, onde os limites do poder oficial e as diferenças sociais são discutidas e onde a democracia, a força advinda da união popular, aparece como grande vitoriosa. Independentemente de seu aspecto político e atualizado, as questões da união popular e do poder instituído podem ser vinculadas também às antigas tradições populares ligadas ao coletivismo e à sociedade da vida e ao destronamento representado pela renovação periódica do mundo. “A união faz a força”, “A voz do povo é a voz de Deus” ou “Rei morto, rei posto” são ditados representativos dessas situações. Seria interessante lembrar aqui, particulamente, um dos aspectos da sátira menipéia, levantado por Mikhail Bakhtin: a atualização temática, representada pela discussão do contexto ideológico em oposição às histórias míticas atemporais. Este aspecto, antiqüíssimo portanto, aparece claramente em História meio ao contrário.

6.4.5 Uma idéia toda azul

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É composto de dez contos cuja grande referência são os contos populares, tanto da tradição ocidental (por ex. os contos de encantamento), como da oriental ( por ex. as narrativas alegóricas persas e indianas), levando-se em conta a precariedade de uma distinção como esta. Em nossa leitura, a busca do auto-conhecimento, a complexidade dos processos existenciais e as dificuldades dos relacionamentos e da comunicação humana são os grandes temas dos dois contos selecionados, “Uma idéia toda azul” e “A primeira só”. O primeiro, coloca os sonhos e a identidade verdadeira e essencial da personagem em oposição às solicitações banais da realidade cotidiana, aos papéis burocráticos a serem cumpridos durante a vida etc. Num outro plano, se considerarmos a idéia azul como metáfora de uma mulher (ou do amor) novas leituras se impõem. O segundo conto refere-se, a nosso ver, entre outros temas, ao contexto existencial que opõe o egocentrismo à alteridade (ou o indivíduo a outra pessoa), e, num outro plano, à complexidade dos relacionamentos humanos. A questão da ambigüidade é motivo forte neste conto. A menina por ex. fica amiga de seu próprio reflexo. Ao mesmo tempo, trata a “amiga” (agora vista como “outro”) como parte sua (ou seja, ela vê a outra pessoa exclusivamente a partir de si mesma etc). Tratam-se, evidentemente, de leituras suscintas e bastante pessoais. Os dois contos de Marina Colasanti são densos e dificilmente podem ser reduzidos a sínteses deste tipo. Para nós, em todo caso, ambos estão absolutamente ligados aos mesmos motivos e imagens abordados em inúmeros contos populares, pelo menos se considerarmos como referência a amostra feita a partir do material recontado por Ana de Castro Osório. Neste sentido, é razoável por ex. estabelecer elos entre eles e as narrativas míticas de iniciação, onde o herói busca encontrar-se a si mesmo. Há, no segundo conto, uma referência ao mito do filho do rio Cefísio, Narciso, que, enamorando-se da própria imagem ao mirar-se nas águas, nelas se precipitou. Note-se a utilização de nomes próprios compostos para identificar espaços mágicos: o “Corredor das Salas do Tempo”, a “Sala do Sono” etc. A ausência do “final feliz” diferencia os dois contos das narrativas populares. A agudeza e a concisão com que os temas são tratados em “Uma idéía toda azul” e “A primeira só”, ao contrário dos contos tradicionais, nos quais os assuntos, em geral, costumam ser tratados com maior ambigüidade, também distingue, a nosso ver, o trabalho de recontar histórias populares do trabalho de criar histórias. No segundo caso, o autor, livre de uma obra referencial específica, pode burilar e intensificar os temas conforme suas necessidades e sua visão de mundo, caso de Marina Colasanti. Quanto ao tema da renovação periódica do mundo, recorrente em inúmeros contos populares, ele aparece nas obras citadas, sempre a nosso ver, mas de maneira invertida: acompanhamos, na verdade, a impossibilidade da renovação (ou seja: de como o herói não conseguiu atingir a felicidade e a “justiça”) daí, inclusive, os desfechos trágicos. Esse dado afasta a obra de Colasanti das tradições populares inserindo-a no contexto da problemática e das perplexidades contemporâneas (por ex. o isolamento inerente ao individualismo).

6.4.6 Os Pregadores do Rei João

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Certo lençol mágico do rei é roubado pelo vento. Seus guardiões, os pregadores Roldão, Oliveiros e Ferrabrás partem para recuperá-lo enfrentando e vencendo vários e heróicos desafios: para ultrapassar as ondas do mar, viajam no interior de um peixe; a bordo de um foguete voam até a Lua e de lá vão para o Planeta das Plantas Pregadoríferas onde, correndo riscos de vida, conseguem recuperar o lençol mágico. Durante a luta, Ferrabrás é comido, perde a vida e vai para o Planeta dos Pregadores Fantasmas. Para retornar à Terra, Roldão e Oliveiros pegam carona com o Arco-íris. Ferrabrás acaba recuperando a vida e voltando para casa. Vale a pena ressaltar alguns pontos de Pregadores do Rei João: o contexto geral com reis, castelos e heróis; três heróis, verdadeiros cavaleiros andantes, que partem pelo mundo enfrentando obstáculos, reestabelecendo a justiça e retornando vitoriosos e, particularmente Ferrabrás, modificados; a fórmula dos três heróis; os nomes Roldão, Oliveiros e Ferrabrás remetendo para inúmeros heróis de contos populares: Ferrabrás é herói de uma canção de gesta do fim do século XII, ligada ao ciclo de Carlos Magno; Oliveiros é um herói lendário do ciclo carolíngio, símbolo da prudência e da moderação; Roldão (ou Rolando e Orlando) é o famoso e impetuoso paladino, um dos doze pares de Carlos Magno, imortalizado pela Canção de Roldão e pelo poema de Ariosto (Podem ser associados também aos cachorros, na versão João mais Maria recolhida por Sílvio Romero: Turco, Leão e Facão, ou os três cães do conto homônimo recontado por Figueiredo Pimentel: Provedor, Despedaçador e Quebra-Ferro); a utilização de nomes próprios compostos e auto-explicativos: Roldão Corre-Tufão, Planeta das Plantas Pregadoríferas, Planeta dos Pregadores Fantasmas etc; o recurso da personificação, sempre vinculado, a nosso ver, à idéia arcaica da sociedade da vida: a ajuda do peixe vermelho e do arco-íris, a atuação do vento etc.; explicações, tal como nas narrativas míticas, da origem das coisas: as plantas pregadoríferas comendo um pedaço da Lua, daí sua forma atual; a fantasia ligada à existência de forças desconhecidas; as inúmeras viagens e vôos; a moral ingênua: os interesses dos heróis são a expressão da justiça; tudo isso sem falar no tom iniciático já mencionado. Em nossa leitura, concluindo, há, portanto, vários pontos de contato entre o texto de Luís Camargo e as mais antigas narrativas populares.

6.4.7 A Fada- Sempre Viva e a Galinha-Fada

Pudemos encontrar uma série de elos e pontos coincidentes entre esta obra e os contos populares: o contexto da história com fadas, animais mágicos, varinha de condão, castelos e reis; o recurso da personificação: a fada, por exemplo, mora numa casa que também é fada. Há ainda o namoro entre a Galinha-Fada e o arco-íris; o uso de nomes próprios compostos e auto-explicativos: “Fada Sempre-Viva”, “Escola de Claras em Neve do país das Nevadas Claras”, “ País do Bem e do Mal” etc; o elemento mágico: fada utiliza um leque-varinha de condão, viaja pelo ar levada por um motoqueiro num “vôo a jato”, recebe a ajuda de um anjinho-brisa que sai de dentro do leque-varinha de condão etc.; o vôo mágico e arriscado “por sete caminhos tortos, sete luas, sete tempestades... ” ; a fórmula do desfecho: “entrou por um forno, saiu por um bolo, virou um suspiro” etc. Outra característica de A Fada Sempre-Viva e a Galinha-Fada

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é o humor e a alegria que perpassa todo o texto. A comicidade e a irreverência é marca, sem dúvida, da obra da autora, mas também é traço e índice, como vimos, da cultura popular (em oposição a cultura oficial séria, abstrata e “ realista”). Muitos elos, aliás, ligam obra de Orthof à cosmovisão carnavalesca apontada por Bakhtin. Se a fada não conseguir preparar o bolo, o rei vai mandar prender todo o Bem e deixar o Mal em liberdade, ou seja, o tema central da história aborda o equilíbrio entre o Bem e Mal, e não a supremacia idealizada do Bem podendo, portanto, ser relacionado às noções de alternância, de abolição das hieraquias e de renovação

periódica do mundo: além de ridicularizarem o poder instituído, reconhecem a interação e a virtualidade da troca de forças entre o Bem e o Mal, por conseguinte, entre a vida e a morte, entre o poder oficial e o novo poder; entre o velho e o novo etc; há ainda o país das fadas, país utópico, onde “tudo muda, inventa, venta e acontece”; proliferam as imagens relacionadas à visão cômica do mundo e ao grotesco: a fada velha e desidealizada; o ridículo e infantilizado rei Ovovski; os “cachorros-frios” resfriados; a busca da Fada-Galinha passando por ex. por galinhas assadas, ensopadas e fritas; a própria Galinha-Fada usando meias listradas e seu esforço para botar o septuagéssimo quarto ovo; os sete gatos resfriados que miavam atchins etc. Vale notar ainda que a noção da existência de um equilíbrio entre o Bem e o Mal pode ser ligada à ambigüidade e à relatividade das coisas, pois pressupõe o Bem e o Mal como forças dependentes e complementares (em oposição a uma visão abstrata e idealizada do Bem como entidade autônoma). Concluindo, a nosso ver, são inúmeros os vestígios das narrativas populares em A Fada Sempre-Viva e a Galinha-Fada. A obra, aliás, pode ser considerada uma estilização, pois atualiza mas não contraria os paradigmas do conto tradicional. Toda a obra de Sylvia Orthof, dos livros às peças de teatro, olhando bem, note-se, é profundamente impregnada pela cultura popular.

6.4.8 Tampinha

A personagem principal, uma menina muito pequena e frágil, sai em busca do único remédio que pode salvar o príncipe Bonito. Munida dos conselhos e de um amuleto dado pela avó, a menina parte pelo mundo enfrentando difíceis situações. O texto, também uma estilização, traz, a nosso ver, muitas e claras influências dos contos populares: o contexto onde vivem personagens como o príncipe Bonito; a viagem da heroína, cheia de testes - a Cobra Grande, a Onça-Pintada, o Curupira, a falta de memória ocasionada pelo medo etc. - em busca do remédio mágico e salvador; a luta para reestabelecer uma injustiça inicial; o uso de palavras mágicas: ”pimentum, pimentom, pimentém, pimentim” etc; a menção à importância da memória, elemento, como vimos, mítico por excelência; diversas referências à magia, por ex. as frutas que fazem a heroína crescer ou a ajuda da árvore; a metamorfose de Tampinha; os nomes próprios que se auto-explicam: Tampinha, Bonito, Cobra Grande etc.; a fórmula do desfecho: o final feliz, o casamento. Em nossa leitura, o texto de Ângela Lago pode ainda ser perfeitamente associado a uma verdadeira narrativa de iniciação: acompanhamos a gesta da pequena heroína, lutando, enfrentando perigos e arriscando a própria vida para atingir seu objetivo. Ao retornar,

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Tampinha vem modificada, amadurecida, “ iniciada”, e portanto apta a salvar o príncipe e com ele se casar, seu objetivo maior. O processo de amadurecimento da heroína e a busca do amor ou do parceiro amoroso, parecem ser, indiscutivelmente, dois dos temas desta obra de Ângela Lago. A “doença” do príncipe Bonito, curada pelo chá da flor preta da árvore do Curupira, mas, cremos, principalmente pela presença de Tampinha, transformada em mulher, é outro tema que merece ser ressaltado.

6.5 Obras sem vestígios aparentes do conto popular.

Abordaremos agora as obras Juca e Chico de Wilhelm Busch; As aventuras de Alice no

País das Maravilhas de Lewis Carroll; Peter Pan de J.M.Barrie; Contos para crianças de Peter Bichsel; A bolsa amarela de Lygia Bojunga Nunes; O menino maluquinho de Ziraldo; Ou isto ou aquilo de Cecília Meireles; O Homem que soltava pum de Mário Prata e Lá onde

ficam as coisas selvagens de Maurice Sendak. Caso o leitor prescinda das sinopses, pode pular para a página 279 onde encontrará

nossos comentários sobres as mesmas. 6.5.1 Juca e Chico

O livro Juca e Chico (Max und Moritz), de Wilhelm Busch 350 , 64 p., teve sua primeira edição publicada em 1865. As obras do poeta e desenhista alemão, costumam apresentar narrativas construídas através de, pelo menos, duas linguagens - texto e imagem - atuando entrelaçadamente, dialogicamente, e representam, a nosso ver, uma das vertentes de toda a literatura infantil contemporânea. Nelas, as ilustrações (= o texto visual) já não apenas “ ilustram” passivamente o texto, mas contam coisas que o texto verbal não conta, atuam sinergicamente com relação ao texto verbal e acrescentam informações sem as quais o todo da obra perde significado. É exatamente o caso de Juca e Chico.

Sem ter acesso ao original alemão, utilizamos como referência a tradução de Olavo Bilac, por isso não abordaremos a questão dos eventuais indíces de oralidade no texto de Busch. Observando o trabalho de Bilac nota-se, em todo caso, um narrador que, atuando como um contador de histórias e dirigindo-se a uma platéia imaginária, utiliza-se dos recursos poéticos de rima e métrica e vocabulário popular e familiar.

Juca e Chico são apresentados pelo narrador como dois meninos travessos e endiabrados que costumam não ouvir conselhos e enfernizar a vida dos adultos.

“Andar pela rua à tôa Caçoar de uma pessoa, Dar nos bichos, roubar frutas, Armar brigas e disputas,

350 BUSCH, Wilhelm. Juca e Chico. Trad. Olavo Bilac, Belo Horizonte, Villa Rica, s/d

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Rir dos homens respeitáveis, São coisas mais agradáveis Que ir à escola ou ouvir missa... Antes a troça e a preguiça!” p.2 Em sua primeira aventura, Juca e Chico amarram quatro pedaços de pão nas pontas de

duas cordas e colocam num quintal. Um galo e três galinhas comem os pães, ficam engasgados e, fisgados e enredados nas cordas, morrem enforcados numa árvore, para desespero de sua dona. A cena da luta das aves para se desvencilhar das cordas é bastante explorada nos desenhos do autor, com detalhes não presentes no texto: as galinhas enforcadas por ex. chegam, tragicomicamente, a botar ovos antes de seu sufocante desfecho. Na segunda aventura, os dois moleques sobem no telhado da casa e, através da chaminé, munidos de linha e anzol, numa situação ricamente desenhada, com os três andares da casa sendo mostrados lateralmente, em corte, pescam as aves que estão sendo assadas. Quem acaba levando a culpa é o cachorro que nnao fez nada. Enquanto isso, os dois malandros são mostrados deitados prazeirosamente, de pança cheia. Na terceira travessura, Juca e seu amigo serram uma pontezinha de madeira na frente da casa de um alfaiate. Passam, depois, a xingar e a ridicularizar o pobre homem. Ofendido, o alfaiate resolve perseguir os farsantes e vai parar dentro do rio. Como resultado do acidente, o autor mostra as seguintes cenas: o alfaiate agarrado às pernas dos gansos para escapar da água; sua dor de barriga decorrente do tombo e ainda o “tratamento” dado por sua mulher, que passa o ferro quente em sua barriga, esse o desfecho da aventura. Na quarta travessura, é mostrado o mestre-escola e sacristão da cidade, bom homem que toca orgão na missa de domingo e gosta de fumar cachimbo. Os dois endiabrados enchem seu cachimbo de pólvora. Um dos desenhos mais elaborados e de maior destaque do livro, ocupando duas páginas, mostra a cena da explosão. Na quinta aventura, os dois meninos enchem de besouros a cama de um tio. Visualmente, são exploradas as cenas, cômicas, da luta do pobre homem, sonolento, de touca e pijama, contra os inoportunos insetos. Na sexta travessura, os dois meninos entram pela chaminé da padaria para roubar doces, caem dentro de um depósito de massas, vão para o forno e são assados, transformando-se em pães.

“ Vejam só que cataplasmas! Até parecem fantasmas!” p. 52 Eis uma mostra da interação texto imagem operada por Wilhelm Busch. O texto no caso

pressupõe necessáriamente uma imagem, pois não descreve como de fato os dois ficaram. No desfecho do episódio, os bandidinhos, apesar de terem ido para o forno, comem a casca de dentro para fora e livram-se do pão fugindo alegremente, para espanto do padeiro. Em termos de imagem, o autor privilegia nesta etapa da narrativa, passo a passo, a feitura dos pães-meninos. Em sua derradeira aventura, Juca e Chico rasgam, de propósito, um saco cheio de trigo. Ao colocar o saco nas costas, o dono do trigo percebe a brincadeira, prende os

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sacripantas, leva-os a um moinho e tranforma nossos heróis em farinha que depois é comida por dois gansos. Como desfecho, o narrador afirma que ninguém lamentou o desaparecimento dos dois arteiros.

“ Em suma, por toda a vila, Livre dos dois e tranquila, Reinou a paz afinal... Mais nada. Ponto final! “ p. 65 6.5.2 As aventuras de Alice no País das Maravilhas

O livro escrito por Lewis Carroll, publicado em 1865, é considerado por muitos um clássico da literatura mundial. 351

Utilizaremos como referência a tradução de Sebatião Uchoa Leite. As palavras grifadas acompanham o original e a tradução. Examinando o texto original, são evidentes os inúmeros índices de oralidade, ligados à adaptabilidade às circunstâncias, à teatralidade e, de um modo geral, à concisão. Dizemos de um modo geral, porque o texto de Carroll, para ser lido, é longo, apresenta descrições e orações mais elaboradas, trocadilhos e vocabulário, por vezes, complexo. Se levarmos em consideração a tradução de Uchoa Leite, encontramos, em todo caso, um narrador dirigindo-se diretamente ao leitor

“ ...e tentou fazer uma mesura enquanto falava...mas imaginem fazer uma mesura

enquanto se está caindo! Vocês acham que podem?” p. 43 “ ...and she tried to curtsey as she spoke - fancy, curtseying as you’re falling through the

air! Do you think you could manage it ?” p. 17 � utilizando, de forma concisa, um vocabulário popular e familiar, e recorrendo a inúmeros

recursos ligados à teatralidade textual “Caindo, caindo, caindo. Essa queda nunca teria fim?” p. 42 “ Down, down, down. Would the fall never come to an end?” p. 17 Ou

351 CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas e outros textos. Trad. Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro, Fontana/Summus, 1977. � CARROLL, Lewis. The Complete Lewis Carroll. Hertfordshire, Wordsworth Editions, 1996.

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“ ... é tão curiosa essa espécie de vida! Só queria saber o que aconteceu comigo. Quando eu lia contos de fadas, pensava que essas coisas jamais aconteciam, e cá estou eu metida numa dessas histórias!” p. 64

“ ...it’s rather curious, you know, this sort of life! I do wonder what can have happened to me! When I used to read fairy tales, I fancied that kind of thing never happened, and now here I am in the middle of one!” p. 40

Ou “ – ...Pense só no que aconteceria com o dia e a noite! Veja bem. A terra leva vinte e

quatro horas para marchar do...” – Por falar em machado – disse a Duquesa - corte-lhe a cabeça!” p. 80 “ Just think what work it would make with the day and night! You see the earth takes

twenty-four hours to turn round on its axis... ” “Talking of axes – said the Duchess – chop off her head!” p. 61 Eis uma sinopse da história. Sentada num barranco, sem ter o que fazer, Alice vê passar um coelho. Tirando o relógio

do bolso do colete, o animal aperta o passo e entra numa toca. A menina vai atrás e acaba caindo num poço escuro e comprido. Alice vai falando em voz alta durante a queda:

“–...Devo estar chegando perto do centro da terra. Deixe ver: deve ter sido mais de seis

mil quilômetros, por aí... (como se vê, Alice tinha aprendido uma porção de coisas desse tipo na escola, e embora essa não fosse uma oportunidade lá muito boa de demonstrar conhecimentos, já que não havia ninguém por perto para escutá-la, em todo caso era bom praticar um pouco)... ” p. 42

Alice cai e fica presa numa sala comprida cheia de portas fechadas. Encontra uma mesinha

de três pés com uma chave em cima. A chave não serve em nenhuma das portas, mas sim numa portinha de uns quarenta centimetros escondida atrás de uma cortina. Do outro lado, vê-se um lindo jardim. Alice não consegue passar pela portinhola. Do nada, surge uma garrafinha com um rótulo e uma inscrição: “beba-me”. A menina bebe o líquido

“ ...o sabor era uma mistura de torta de cereja, creme de leite, suco de abacaxi, peru assado,

doce puxa-puxa e torradas quentes com manteiga... ” p. 45 Alice diminui de tamanho, fica com mais ou menos vinte centímetros e resolve abrir a

portinha. Constata então que esqueceu a chave em cima da mesa. Agora não consegue pegá-la. Acha uma caixinha embaixo da mesa, com a inscrição: “coma-me”. Dentro tem um bolo. Ao comê-lo, fica tão comprida que sua cabeça vai bater no teto.

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A menina começa a chorar. Daquele tamanho jamais conseguiria passar pela portinha. O coelho reaparece e, antes de fugir assustado, deixa cair uma de suas luvas e um leque. Alice, começa a pensar em sua própria identidade, fazendo perguntas a si mesma, para ver se é mesmo ela ou outra pessoa.

“– ...Mas, se não sou a mesma, então quem eu sou? “ p. 48 E Alice compara as características de algumas amigas com as suas. Faz perguntas a si

mesma, sobre Tabuada e Geografia, para ver se ainda sabe o que costumava saber. Acaba concluindo que está transformada em Mabel, uma amiga meio “burrinha”.

Alice encolhe de novo, vai parar dentro de um lago formado pelas suas lágirmas e trava com um rato uma conversa absurda sobre gatos e cachorros. O rato convida a menina para ir até a praia dizendo que vai revelar a ela o motivo de seu ódio por cães e gatos.

Na praia, a menina trava uma discussão com o Papagaio que, por fim, apela para o seguinte argumento:

“ Sou mais velho (...) portanto devo saber mais. Alice não podia admitir isso, sem antes saber qual a idade dele, e como o Papagaio recusou-se a dizê-lo, a discussão ficou por aí mesmo.” p. 53 O Rato garante que fará todos se secarem rapidamente. Começa contar uma longa história,

episódios da história da Inglaterra. O Dodó sugere jogar um jogo, sem regras definidas: “ “ Primeiro marcou a pista da corrida, traçando uma espécie de círculo (“a forma exata

não tem muita importância”, ele explicou), e depois todo o grupo foi colocado aqui e ali, ao longo da pista. Não havia nenhum “Uma, duas, três, já!”. pois todos começavam a correr quando quisessem e paravam também à vontade, de modo que não era nada fácil saber quando a corrida tinha terminado. Entretanto, quando já tinham corrido cerca de meia hora, e já estavam completamente enxutos outra vez, o Dodó subitamente proclamou:”A corrida acabou!” E todos se reuniram em torno dele, ofegantes, perguntando: “Mas quem ganhou?”

Essa pergunta o Dodó não soube responder sem pensar antes um bocado.(...) Finalmente,(...) setenciou: – Todo mundo ganhou, e todos devem ter prêmios.” p. 55

Convocada a dar os prêmios, Alice acha uma caixinha de bombons no bolso e premia todo

mundo. O Rato conta uma triste história onde certo gato prende, julga e condena, ele mesmo sendo juiz e juri, um rato. Alice sente saudade de sua gata Dinah, conta isso ao grupo, formado basicamente por aves. Essas ficam irritadas, e a menina acaba novamente sózinha. Os fatos vão se sucedendo. A grande sala onde Alice estava desaparece. Surge o coelho de novo procurando a luva e o leque. Chamando-a de Mary Ann, ordena que a menina vá buscar um par de luvas e um leque novo. Alice obedece e vai pensando que logo, logo vai receber ordens de Dinah, sua