metaleurop: os saqueadores desmascarados … · parte i. 1. crónicas publicadas no jornal le monde...

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CICLO INTEGRADO DE CINEMA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC DOC TAGV / FEUC INTEGRAÇÃO MUNDIAL, DESINTEGRAÇÃO NACIONAL: A CRISE NOS MERCADOS DE TRABALHO METALEUROP: OS SAQUEADORES DESMASCARADOS UM FILME DE CHOEURS DE FONDEURS E ATTAC-ROMANS GLENCORE: A MULTINACIONAL DOS FLIBUSTEIROS DA ECONOMIA UM FILME DE PATRICE DES MAZERY

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Page 1: mETALEUROp: OS SAQUEADORES DESmASCARADOS … · Parte I. 1. Crónicas publicadas no jornal Le Monde 05 Já não têm emprego, alguns estão doentes, perderam tudo 05 A multiplicação

CICLO INTEGRADO DE CINEmA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC

DOC TAGV / FEUC

INTEGRAçãO mUNDIAL, DESINTEGRAçãO NACIONAL:

A CRISE NOS mERCADOS DE TRABALhO

mETALEUROp:OS SAQUEADORES DESmASCARADOS

Um FilmE DE ChOEUrs DE FOnDEUrs E ATTAC-rOmAns

GLENCORE: A mULTINACIONALDOS FLIBUSTEIROS DA ECONOmIA

Um FilmE DE PATriCE DEs mAzEry

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CICLO INTEGRADO DE CINEmA, DEBATES E COLÓQUIOS NA FEUC

DOC TAGV / FEUC

INTEGRAçãO mUNDIAL, DESINTEGRAçãO NACIONAL:

A CRISE NOS mERCADOS DE TRABALhO

http://www4.fe.uc.pt/ciclo_int/2007_2008.htm

pARAíSOS FISCAIS, INFERNOS SOCIAIS:

O ENCERRAmENTO DA mETALEUROp

COnFErênCiA

JEAN-LOUIS mARTIN

mETALEUROp: OS SAQUEADORES DESmASCARADOS (2003)

Um FilmE DE ChOEUrs DE FOnDEUrs E ATTAC-rOmAns

GLENCORE: A mULTINACIONAL DOS FLIBUSTEIROS DA ECONOmIA (2004)

Um FilmE DE PATriCE DEs mAzEry

mEsA rEDOnDA E DEbATE COm

JEAN-LOUIS mARTIN (DiriGEnTE sinDiCAl DA mETAlEUrOP),

SALDANhA SANChES (FDUl), ULISSES GARRIDO (CGTP),

JOãO pROENçA (UGT) E ANTÓNIO CASImIRO (FEUC)

TEATrO ACADémiCO DE Gil ViCEnTE

18 DE JAnEirO DE 2008

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Parte I.

1. Crónicas publicadas no jornal Le Monde 05Já não têm emprego, alguns estão doentes, perderam tudo 05A multiplicação dos planos sociais preocupa o governo 08Uma fábrica de família 12Os administradores judiciais da Metaleurop Nord querem alargar o procedimento de saneamento financeiro a todo o grupo 18Na caça aos ‘patrões vigaristas’ faltam as munições 20O Estado atribui aos assalariados da Metaleurop Nord uma ‘indemnização por prejuízo moral’ de 15.000 euros 23 Como os assalariados de Metaleurop Nord tiveram êxito em rever a decisão judicial de encerramento da sua fundição, na instância judicial superior 25O Tribunal Supremo anula a extensão da liquidação da Metaleurop 28Dois anos depois da sua recuperação judicial, Metaleurop aproveita a subida do chumbo para voltar a ser cotada na Bolsa de Paris 29O tribunal recusa o pedido de condenar a Metaleurop SA 32

2. Textos apresentados na Assembleia Nacional Francesa 32Proposta de resolução apresentada na Assembleia Nacional Francesa 32Ontem Metaleurop Nord, hoje Samsonite e amanhã? 39

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Parte II.

1. Crónicas de outros jornais 41Glencore: Empresa de comércio internacional Suiça liga a City a fraude com o petróleo Iraquiano 41Glencore: Glencore emerge como colosso industrial 47Matérias-Primas: Glencore entra na luta pelos activos da Russneft 52

Parte III.

1. Paraísos Fiscais 57Os Paraísos fiscais e o mal-desenvolvimento 57Um contexto de injustiça fiscal generalizada 68As ‘caixas pretas’ da mundialização financeira 73Dinheiro sujo: a má fé americana 76Fiscalidade e deslocalizações 80Porquê uma fiscalidade internacional? 86

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PArTE i.

1. CRÓNICAS pUBLICADAS NO JORNAL Le Monde

Já não têm emprego, alguns estão doentes, perderam tudo

Jean-Paul DufourArtigo publicado na edição de 23.01.03

Numa região já atingida pelo desemprego e pelo saturnismo1 devido aos resíduos da fábrica, os 830 assalariados esperam “um plano social digno deste nome”. Em Noyelles-Godault, a fundição polui o ambiente desde 1894”.

Numa situação de choque, a confusão e as interrogações. O delegado da CGT da fábrica, Farid Ramou, evoca “um imbróglio sócio-jurídico muito pesado”, e o perfeito de Pas-de-Calais, Cirilo Schott, reconhece que “ainda não dispõe de todos os elementos”. À saída de um Comité de empresa extraordinário, na terça-feira, 21 de Janeiro, o presidente de Metaleurop Nord, Gilbert-Alain Ferrar, considerou que a apresentação à falência não está na ordem de trabalhos

1 O saturnismo, ou plumbismo, é o nome dado à intoxicação pelo chumbo. Ela afecta milhões de pessoas em todo o mundo como resultado da poluição ambiental, além de outras espécies, como as aves aquáticas. Em humanos, as principais fontes de intoxicação são as tintas que contém chumbo, baterias de automóveis, pilhas, soldas, e emissões industriais. Em outras espécies, somam-se o chumbo usado em projécteis para a caça (que também são uma causa de saturnismo em humanos com projécteis alojados) e os pesos para linhas de pesca, que são ingeridos por peixes, por sua vez ingeridos pelas aves. Em humanos, a intoxicação pode levar a um quadro clínico evidente ou a alterações bioquímicas mais subtis. Os sintomas mais comuns são dores abdominais severas, úlceras orais, constipação, parestesias de mãos e pés e a sensação de gosto metálico. O exame físico pode demonstrar a presença de uma linha de depósito de chumbo na gengiva e neuropatia periférica. Outras alterações incluem anemia (porfiria secundária e inibição da medula óssea), disfunção renal, hepatite e encefalopatia (com alterações de comportamento, redução no QI). Extraído de: Wikipedia. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Saturnismo.

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no plano imediato, mas o perfeito acredita que corre o risco de ter “ele que intervir dentro de alguns dias”.

Enquanto Ferrar, não disponível, estava “em reunião” todo o dia, uma quinzena de representantes do pessoal foi recebida por Cirilo Schott durante uma hora e meia, na terça-feira à tarde, para “uma análise da situação”. “O Estado foi bem claro. Demonstrará firmeza e considera que o tratamento reservado a esta fábrica e às pessoas que aí trabalhavam são inaceitáveis”, sublinha o perfeito. Os assalariados felicitam-se. Mas, “para além deste apoio declarado, queremos actos concretos”, declarou Farid Ramou. As acções jurídicas contra a Metaleurop SA? “Quaisquer que sejam os resultados, sabe-se efectivamente que estas serão longas. E, esperando, o que nos importa é o destino dos 830 assalariados”, recorda o delegado da CGT. “Basta de tantas palavras em termos políticos, diz Francis Dubus, representante da CFDT. “Necessitamos de resultados, ou seja, de um plano social digno deste nome, duma reconversão desta bacia de emprego ou então duma manutenção da zona industrial.” Como muitos outros, não crêem nos eventuais compradores evocados por Ferrar. “É uma mensagem de esperança que ele nos quer dar”, explica um militante da CGT. Mas não conhece a empresa desde há tanto tempo como nós. Por nosso lado, sabe-se que isto supõe mercados e grandes investimentos para se atingir uma situação normal.

32 crianças contaminadas

Com toda a lógica, os participantes na reunião decidiram discutir a hipótese da apresentação à falência. “Deveremos ter uma perspectiva melhor da situação antes de poder definir as modalidades do envolvimento do Estado”, reconhece o perfeito. Enquanto se espera, os sindicatos aceitaram empenhar-se neste sentido. “Disseram-nos que iam formar grupos de trabalho sobre os diferentes dossiers. Vamos também participar”, diz Farid Ramou. Para procurar, em conjunto com as autoridades públicas, que estas levem os responsáveis a tomar as medidas necessárias.

Só a vertente social foi evocada nesta terça-feira. A poluição? “Não é a nossa primeira preocupação”, diz um responsável sindical, com um ar cerrado. Instalada

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em Noyelles-Godault desde 1894, esta fábrica, que foi a mais importante fundição de chumbo europeia, contaminou, no entanto, largamente os arredores. O último estudo, feito em 2001-2002 pelo Serviço regional da saúde, revelou que, em 2002, 32 crianças de idade entre os 2 e os 4 anos de idade, de entre 331 examinadas nas zonas ribeirinhas, apresentavam uma taxa de chumbo no sangue superior à norma autorizada de 100 microgramas por litro. A proporção atinge 25% em Evin-Malmaison, situado sob os ventos dominantes. Mas Metaleurop Nord representa numerosos empregos e o quarto das receitas fiscais da comunidade de Hénin-Carvin (126.000 habitantes), duramente atingida pela recessão mineira: em certas localidades, a taxa de desemprego atinge os 25 %. Os raros pioneiros da defesa do ambiente, que se manifestaram a partir dos anos 1970, durante muito tempo pregaram no deserto. Se a poluição dos solos foi sublinhada em 1997, a despistagem do saturnismo nas crianças foi lançada apenas em 1993.

O traumatismo do encerramento anunciado despertou o velho ressentimento de uma parte da população, que torna “os ecologistas” responsáveis por esta decisão. Ludovic Dopierala, que acaba de apresentar queixa pelo envenenamento, decidiu calar-se durante algum tempo: “Prefiro esperar que as pessoas se acalmem, façam o ponto da situação, se virem contra os verdadeiros responsáveis e deixem de procurar bodes expiatórios que se limitaram a respeitar a lei e a tentar proteger as suas crianças.” O presidente do Comité que reúne uns 60 habitantes de Evin-Malmaison, ele também, apresentou queixa e Jean-Pierre Wirtgen não esconde o seu medo: “Recebi ameaças verbais várias vezes, na frente de testemunhos, afirmou.” Como por toda a parte, há também por aqui pessoas que reagem sem estar a reflectir. Eu não lhes quero mal. Eu compreendo-os. Já não têm mais trabalho, e alguns estão doentes. Não poderão sequer vender a sua casa. Estão como nós: perderam tudo. Mas certos meios de comunicação social ávidos de sensacionalismo colocam uns contra os outros. É dramático.

Em Noyelles-Godault, ninguém deseja atiçar a tensão, e cada um sabe que não há nenhuma urgência: uma poluição centenária não se elimina em poucos meses. “As medidas tomadas permitiram que os resíduos anuais de chumbo da

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fábrica na atmosfera passassem de 360 toneladas nos anos 70 para 17 toneladas este ano”, sublinha o perfeito que, quarta-feira de manhã, devia dar oficialmente posse a uma Comissão local de informação e de vigilância (CLIS), comissão esta que a zona industrial até aí ainda não tinha. Mas, reconhece, “o plano social é evidentemente, para nós, a prioridade absoluta”.

A multiplicação dos planos sociais preocupa o governo

Benoît Hopquin e Frédéric Lemaître Artigo publicado na edição de 25.01.03

Para além do processo Metaleurop, directamente gerido por Matignon, as supressões de empregos na Daewoo, ACT Manufacturing, Matra, Arcelor e Ar Lib forçam Jean-Pierre Raffarin a reconsiderar as suas prioridades sociais.

Enquanto vários ministros intervieram de forma dispersa sobre o processo Metaleurop, os serviços do primeiro-ministro multiplicaram as reuniões de crise na quinta-feira 23 e na sexta-feira 24 de Janeiro. O governo, que vai ter que gerir importantes e vários planos sociais, não quer dar a impressão de que com o clima criado pela decisão de não avançar já com a lei de modernização social favorece o regresso “dos patrões vigaristas”. Vai esforçar-se em dar uma “resposta personalizada” aos assalariados que perderam o emprego, mas recusa-se a atribuir subsídios, como o fez o governo anterior no caso Moulinex. Enquanto o governo encara acções judiciais contra a Metaleurop, o jornal Le Monde levanta o véu sobre o seu muito discreto accionista, o grupo suíço Glencore.

DAEWOO, ACT Manufacturing, Palace Parfums... Desde algumas semanas, os planos sociais começavam a tornar o céu do governo bem negro, estando até agora bastante sereno, na frente do emprego. Com a Metaleurop, Jean-Pierre Raffarin tomou consciência que a trovoada estava aí. E é sem dúvida apenas um início: Arcelor, Matra Automóvel, Ar Lib – só estas três – deveriam anunciar de modo iminente milhares de supressões de postos de trabalho.

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Embora afirme não se render ao pânico, o grupo à volta do primeiro-ministro, que julgava poder consagrar este primeiro semestre ao delicado problema das reformas, apercebe-se que vai igualmente dever gerir a degradação do emprego. E urgentemente. Os assalariados da Metaleurop ameaçavam, por sua vez, na quinta-feira de 23 de Janeiro, verter produtos químicos no canal de água de Noyelles-Godault (Pas-de-Calais). “Tomámos a nossa decisão: restam 3.000 a 4.000 litros de ácido de nitrato e na zona industrial. Estamos dispostos a derramá-lo no canal.” A ameaça foi proferida por Gérard Hellin, secretário (CGT) do Comité de empresa e adjunto do presidente da Câmara Municipal da comuna de Courcelles-les-Lens, próxima da Metaleurop. Hellin afirmava igualmente que a direcção tencionava apresentar-se à falência a partir de sexta-feira a partir do meio do dia. As condenações dos dirigentes de Metaleurop são unânimes. Mesmo Ernest-Antoine Seillière, presidente do Medef, denunciou “decisões brutais e desagradáveis”.

Na sexta-feira, a 24 de Janeiro, poderia ser um novo dia negro para o emprego em França. Na empresa Ar Lib, um Comité de empresa extraordinário foi convocado. O certificado de navegabilidade, sem o qual uma companhia aérea não pode voar, termina a 31 de Janeiro. Na Arcelor, foi nesse mesmo dia de Janeiro que o conselho de administração devia ratificar um encerramento dos vários locais siderúrgicos na Europa (Le Monde, de 23 de Janeiro).

Em Matignon, reconhece-se agora implicitamente que “o processo Metaleurop” não foi muito bem gerido. Jean-Paul Delevoye (ministro delegado da função pública), Roselyne Bachelot (ministro do Ambiente), Nicole Fontaine (secretário de Estado para a indústria) deram a impressão de se agitarem, cada um por seu lado. A ausência de reacção de Claude Viet, o “Sr. planos sociais” do governo, acrescentou a esta impressão a ideia de que o governo tinha sido apanhado em falso. Com efeito, Claude Viet não está ainda numa fase operacional. Como se podia prever, o ministério do Emprego, que não vê com muito bons olhos esta nomeação, não tem feito nada para lhe facilitar a tarefa. Nem sempre dispõe de gabinetes nem de secretariado!

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Quinta-feira, dia 23, Matignon tomou a questão em mãos. As reuniões inter-ministeriais multiplicaram-se. Claude Viet foi prometido, vai ser recebido por François Fillon, ministro do Trabalho, para poder realmente pôr-se a trabalhar. Jean-Pierre Raffarin interveio directamente sobre o processo Metaleurop. “Queremos respeitar o Estado de Direito e os que não respeitam o Estado de Direito terão que enfrentar a República Francesa”, declarou à margem dum colóquio em Paris. “Compreendo que se possa estar revoltado, porque neste caso, estamos com uma situação onde há uma empresa que atinge um território”, acrescentou o primeiro-ministro a propósito de Noyelles-Godaut. Evocou “processos” judiciais a nível “nacional”.

Ajuda à reclassificação

A reacção do governo no terreno social é tanto mais urgente quanto alguns julgam que “os patrões-vigaristas” se aproveitam do regresso da direita para levar a efeito práticas que não teriam sido toleradas pela esquerda. Matignon contesta esta análise. Em privado, os conselheiros do primeiro-ministro sublinham que a lei de modernização social, tão desacreditada, apresenta algumas vantagens. “Não revogamos os artigos mais importantes sobre a revitalização das bacias de empregos e os relativamente a todos os esforços de reclassificações que se devem fazer”, sublinham.

O governo quer voltar a dar a prioridade ao aumento do emprego, “incluindo inovações no plano jurídico, se tal for necessário”. Porém, o governo recusa atribuir subsídios aos assalariados despedidos como o fez o precedente governo aos assalariados da Moulinex e como o reclamam também os assalariados da Daewoo. A resposta do governo é, por conseguinte, uma ajuda personalizada na reclassificação e, subsequentemente, na revitalização das bacias de empregos em concertação com os eleitos. Mas este programa corre o risco de aparecer bem tímido, tendo em conta a urgência da situação. E as pré-reformas que serão atribuídas estarão em contradição com o alongamento da duração do tempo de trabalho que o governo quer instaurar.

No caso de Metaleurop, ao aspecto social acrescenta-se um grave problema ambiental. Neste terreno, a resposta será mais jurídica. Roselyne Bachelot,

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ministro da Ecologia, reiterou as suas promessas de processos judiciais para que os responsáveis paguem a factura da descontaminação do local, considerada entre 100 e 300 milhões de euros. Mas é ainda difícil obter precisões sobre a maneira como o governo conta aplicar o princípio do poluídor-pagador.

Um gabinete de advogados especializados, mandatado pelo governo, tenta desde quinta-feira desmontar os mecanismos que conduziram ao abandono puro e simples, sexta-feira 16 de Janeiro, da sucursal Metaleurop Nord. “Trabalhos complexos”, constata Patrick Thieffry, responsável pelo processo. Os serviços do ministério da Ecologia, que têm a ver igualmente com as estruturas do grupo, constatam que a operação de isolamento foi empreendida desde há pelo menos um ano.

A última etapa, antes do anúncio de sexta-feira, foi a recente mudança de morada da sucursal Metaleurop Nord, que deixou de ser a sede da Metaleurop de Noyelles-Godault em Paris. De acordo com os sindicatos, esta mudança teria por objectivo ficar ligada a um tribunal de comércio menos sensível às pressões sociais.

A ideia de exigir uma consignação imediata do custo da descontaminação defronta-se com a insolvência de Metaleurop. Ora, no direito actual, a responsabilidade duma empresa não pode ser comprometida para além do seu investimento. O único accionista capaz de oferecer garantias é Glencore. “É necessário demonstrar do ponto de vista penal que a Glencore é o empresário de facto”, considera Corinne Lepage, advogado e um antigo ministro do Ambiente.

Consciente do vazio jurídico que serviu os interesses dos accionistas da Metaleurop, a ministra Bachelot anunciou que alterações serão feitas ao projecto de lei sobre os riscos naturais e tecnológicos, adoptado a 3 de Janeiro em Conselho de Ministros. Uma empresa que crie uma sucursal deverá garantir através duma caução a responsabilidade da descontaminação de um local. Esta reforma evitará a tomada de um local poluído por uma empresa insolvente e, assim, o seu abandono de facto à responsabilidade do Estado.

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O ministério da Ecologia considera-se ainda tanto mais enganado pela Metaleurop quanto a empresa, enquanto organizava internamente o seu desmembramento, tinha mandatado um gabinete de advogados especializados em ambiente para trabalhar na descontaminação do local. A sociedade tinha assim iniciado a compra de terras contaminadas com chumbo em redor de Noyelles-Godault e estudado diversos meios para reparar um século e meio de estragos ambientais. Vários métodos técnicos foram estudados. Uma cooperação que terminou abruptamente na sexta-feira, dia 17 de Janeiro.

Uma fábrica de família

Jean-Paul DufourArtigo publicado na edição de 13.02.03

Cinco homens, toda uma família, trabalharam ou trabalham na fundição Metaleurop de Noyelles-Godault, Pas-de-Calais, e acreditam na inversão da situação financeira e judicial, após o seu abandono pela casa mãe.

Ilustração bem viva, aos 76 anos, do vigor das gentes do Norte, René de Hulster descobriu o mundo do trabalho “aos catorze anos e oito dias”. Na mina, como a maior parte dos rapazes da sua idade, na região. “Eu não era mais forte que as barras da gaiola” por onde desciam os homens até ao fundo, graceja, com um acento “chti” de cortar à faca.

Dez anos de labor até ao encerramento, no início dos anos 50, da fossa 6 A de Hénin onde esteve empregado, depois de dois anos e meio, em Tourcoing, onde conhece a sua futura esposa. Cansado do têxtil e demasiado longos os trajectos em autocarros entre o bairro de mineiros e a cidade, faz-se transportador de cerveja. Um dia, conta, parei o meu camião de entrega em frente da fábrica, perguntei se havia emprego... “Estávamos em 1956. Até à sua pré-reforma, em 1982, todo o resto da sua vida profissional se desenrolou na unidade de reprocessamento de ácido da fundição de chumbo e zinco da Metaleurop (Penarroya, naquela época), de Noyelles-Godault.

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A maior parte dos homens da família de René de Huslter trabalhou ou trabalha, eles também, na Metaleurop. Pelas mesmas razões: um trabalho na região, estável e bem pago, apesar de ser penoso. São quatro à sua volta, juntos por Regis Dupont, primo de René, colosso de 58 anos que sofreu durante trinta e quatro anos junto ao alto-forno de zinco, até à sua pré-reforma, obtida há seis meses. Tinha começado como reparador de electrodoméstico numa loja de móveis de Noyelles-Godault mas, em 1968, o comerciante teve que reduzir as suas actividades. “Numerosos poços de mina fechavam, era já a retirada. O meu sogro trabalhava na fábrica, e a minha mulher disse-me que encontraria horários mais estáveis e um salário melhor. Era verdade: o meu salário passou de 840 para 1.000 francos e, além disso, tinha o equivalente de três meses em prémios.

O seu filho Frédéric, de 37 anos, viu os seus rendimentos aumentar de 19% quando imitou o pai, deixando o seu emprego na produção de equipamentos para automóveis, em 1991. Do mesmo modo, Gérard Vendeville, 49 anos, genro de René de Hulster, afirma não ter perdido nada ao abandonar, em 1978, um posto de chefe de atelier numa garagem para entrar “pela base, com horários menos vinculativos” no serviço de manutenção da Metaleurop.

Só o sobrinho de Regis, Jean-Luc Miduch, de 47 anos – cujo pai, vindo da Polónia, tinha entrado na fábrica em 1936 – afirma ter perdido na troca. “Deixei a central térmica das minas de carvão, em Courrières, uma semana antes do seu encerramento, em 1980, entrando na Metaleurop como agente de manutenção mecânico, perdi 2.000 francos no meu salário mensal, explica. Fiz a boa escolha? Nunca o saberei. Alguns dos meus camaradas foram reclassificados na EDF, mas outros estão ainda no desemprego.”

Esta fábrica com construções de tijolo preto de fuligem, bloqueadas pela margem do canal do Deûle no ângulo da auto-estrada Paris-Lille e pela “estrada mineira” Lens-Douai, é toda a sua vida.

“Nas reuniões de família, só se falava de fornos e condensadores. Quando houve estágios de Verão para ganhar dinheiro para as minhas férias, não fiquei

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desagradado”, recorda-se Frédéric. “Toda a família estava a trabalhar na Metaleurop: René lavava o gás que saía do meu alto-forno e queimava-o seguidamente na sua caldeira que, por sua vez, fornecia o ar quente para o aquecimento dos fornos”, conta Regis. “Quando tinha necessidade duma reparação rápida e delicada, recorria a Gérard. Mesmo, às vezes, quando não era de obrigação”.

Hoje, Gérard Vendeville está escandalizado: “Era, mesmo assim, uma boa fábrica, havia um bom ambiente.” É vergonhoso ver como “eles” nos abandonaram depois de tudo o que fizemos por eles. Eu posso reparar carros elevatórios noutro lugar – ainda que com 25% de desemprego na região... Mas os fundidores? Onde podem encontrar trabalho? No que é que se vão tornar? Varredores de ruas? “O que revolta mais, é a maneira como se ‘liquidou’ a sua fábrica.”

Construída em 1894 pela sociedade francesa das minas Malfidano, arrasada aquando dum bombardeamento dos aliados em 1917, permaneceu, para todos os mais velhos da região, “Penarroya”, o nome da firma que a comprou e a reconstruiu em 1920. “Aquilo começou nos anos 80, quando a Penarroya passou a Imetal e depois a Metaleurop, conta Regis Dupont.” Após esta grande transformação, o proprietário já não era o barão de Rothschild que tinha um banco e dinheiro. Viu-se a diferença. Tudo o que valorizava o nosso trabalho, o bónus tirado da produção e dos desperdícios, foi suprimido. Primeiro foi o laminador de zinco, depois, por sua vez, o local onde se fabricava o chumbo de caça, o atelier, depois foi o dos metais raros como o índio e o germânio, e, por fim, a produção de prata.

A “separação” em regra dos sectores mais rentáveis da fábrica é confirmada por certos quadros superiores, que se dizem “ameaçados”, e desejam, de momento, continuar a permanecer anónimos.

Os cinco homens, no entanto, não lamentam nada. “Se fosse necessário refazê-la, assinaria imediatamente”, assegura Frédéric Dupont. “Sempre gostei do meu trabalho”, acrescenta René de Hulster. Com, talvez, uma pequena preferência

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para a mina, mas que se felicita, no entanto, de a ter deixado a tempo: “Todos os camaradas da época morreram de silicose a 100 %.”

Regis Dupont reconhece, por seu lado, que o facto de se reencontrar “fechado num atelier oito horas por dia” depois de ter conhecido “a liberdade e os contactos humanos” no comércio, representou para ele “uma mudança radical”. Mas faz-se lírico para descrever o trabalho dos fundidores, que exerceu antes de os dirigir, os que, à cabeça da grande manifestação recentemente em Noyelles-Godault, arvoravam orgulhosamente o seu grande avental prateado não inflamável e o seu capacete munido de uma viseira dourada, à imagem dos bombeiros de Nova Iorque. “Era necessário vê-los a trabalhar!” Os vazamentos de zinco em “bolsas” de 3,2 toneladas duram apenas trinta a trinta e cinco minutos, mas o tempo era suficiente para terminarem encharcados, sob os seus fatos acolchoados. No entanto, conclui, à distância e com o recuo do tempo, que efectivamente gostei deste ofício”.

Apesar dos duros golpes, o perigo. A 16 de Julho de 1993, dez trabalhadores foram mortos pela explosão duma coluna de destilação, no atelier de refinação, vizinho do de Regis Dupont. Uma segunda explosão fará uma morte e oito feridos no mesmo lugar seis meses mais tarde. “Muito se tem desmontado, têm-se feito ensaios; nunca se encontrou a origem do acidente”, diz Regis. Mais tarde, veio a saber-se que explosões similares tinham-se produzido nos Estados Unidos. Ninguém tinha dito nada.

Apesar da poluição, também. Desde há mais de um século, a fábrica lança para a atmosfera poeiras de zinco, cádmio e, sobretudo, de chumbo, que é mais nocivo: 350 toneladas por ano em 1970, reduzidas, depois, a 18,3 toneladas (em 2001), graças à instalação de tratamento dos fumos. Os trabalhadores estão, evidentemente, na primeira linha. Não parecem estar muito preocupados com o facto. “É suficiente tomar as precauções básicas, diz Regis Dupont, levar a máscara, não fumar, lavar regularmente as mãos.” Sorri, passando a mão pela cabeça. “Em todo o caso, posso dizer que o óxido de zinco não faz cair os cabelos."

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Esta desenvoltura apresentada esconde, no entanto, uma consciência muito precisa do risco. Todos os assalariados da fábrica, assim como os temporários e os subcontratantes, são regularmente seguidos desde há mais de trinta anos; conhecem perfeitamente a sua taxa de plumbemia e o que isso significa, afirma o doutor Bruno Leleu, médico do trabalho e especialista em toxicologia profissional, ligado permanentemente à fábrica desde há cinco anos.

Falam de boa vontade. “Quando entrei, era de 15 [microgrammes de chumbo por decilitro de sangue]. Hoje, tenho 42”, diz Gérard Vendeville.” “Nada mal!”, comenta René Dupont. Não é surpreendente: os agentes de manutenção andam sempre de um lado para outro. Há cada vez menos gente para fazer cada vez mais trabalho. “O seu filho Frédéric atingiu a taxa de 72, o que lhe valeu a imposição de um mês de descanso.” É o caso, em média, de uma vintena de trabalhadores cada ano, que são levados a um repouso temporário ou afectados provisoriamente a postos menos expostos.

Os efeitos biológicos do chumbo são detectáveis no adulto a partir de 40 microgramas por decilitro (µg/dl) de sangue, explica o doutor Leleu, mas sem sintoma específico. Com doses mais fortes podem aparecer com anemia, colites, seguidamente tremores, ou mesmo alucinações, perdas de memória, e até lesões cerebrais (encefalopatias), no caso de intoxicação aguda (100 à 120 µ/dl). “A legislação prevê incapacidade para o trabalho a partir de 80 µg/dl, mas eu declaro-a com valores a partir de 70”, sublinha o doutor Leleu. “No final de um mês sem exposição, os indicadores retornam aos valores normais. Considero no entanto que seria desejável tender rapidamente para valores limites de 40µg/dl em meio profissional. Para as mulheres em idade de procriar – há muito poucas na fábrica e apenas nos serviços administrativos – situo-me, de resto, na norma em vigor para o público: não mais de 10 µg/dl”.

Nas cinco comunas ribeirinhas da fábrica, os estudos epidemiológicos efectuados nas crianças de 2 a 4 anos mostram que 10 a 11% entre eles atingem ou excedem esta taxa (mais de 26% em Evin-Malmaison, situado sob o vento das

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chaminés). A estas fracas doses, considera o doutor Laurence Ladrière, encarregado destes estudos, “a contaminação pode ter uma influência no crescimento ósseo, na audição e, sobretudo, no QI. Mas trata-se de estimativas estatísticas muito difíceis de verificar a nível individual”.

Os ribeirinhos mais antigos parecem, no entanto, aceitar dificilmente a responsabilidade da fábrica na contaminação das suas crianças. “Quando era criança, brincava ao futebol nas escórias do mineral, e trincava cenouras tiradas nos jardins. Não morri”, fanfarrona um deles.

Com mais matizes, Regis Dupont e o seu filho Frédéric recordam que “as rochas de minério também estão nos caminhos que contornam numerosas casas”, sublinhando sem demasiado convicção que o chumbo procedente de tubos de escape poderia também ter o seu papel. Habitantes de Evin-Malmaison e de Courcelles, que apresentaram queixa por envenenamento contra X... ou contra a Metaleurop, têm pena de hoje terem sido postos de lado pelos seus vizinhos, ou mesmo ameaçados. “Constatamos, no entanto, uma verdadeira tomada de consciência da população. Não há nenhuma rejeição da despistagem que propomos para as crianças”, surpreende-se o doutor Ladrière.

As controvérsias em torno das responsabilidades e o custo da futura descontaminação dos locais têm o dom de irritar Claude Galametz, Vice-Presidente (PS) do conselho regional responsável pela saúde. “Não é necessário abafar as coisas, mas também não é necessário deixar os cientistas de salão a dissertarem a propósito de pessoas que não puderam escolher”, diz ele. “A Metaleurop é sobretudo um problema humano. Os problemas de ambiente passam primeiro por um acompanhamento sistemático das populações, por uma melhor consideração do risco sanitário dos metais e dos seus efeitos sobre o corpo humano. O problema de poluição dos solos virá depois.”

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Os administradores judiciais da Metaleurop Nord querem alargar o procedimento de saneamento financeiro a todo o grupo

Frédéric Lemaître Artigo publicado na edição de 14.02.03

Enquanto nenhum empresário parece interessado pela empresa, a extensão dos processos judiciais obrigaria a direcção da Metaleurop a provar que não pode ajudar a sua sucursal.

O grupo Metaleurop SA vai ser colocado sob administração judicial? A pergunta, até agora teórica, vai em breve ser decidida pelos juízes. De acordo com as nossas informações, os administradores judiciais da Metaleurop Nord, a sucursal que possui a fábrica de Noyelles-Godault (Pas-de-Calais), apresentou um pedido na segunda-feira, 10 de Fevereiro, na câmara comercial do tribunal de grande instância de Béthune, para que este alargue o procedimento de administração judicial à Metaleurop SA e à Metaleurop Comercial SAS, a sucursal do grupo responsável pela comercialização dos produtos. De acordo com Jean-Jacques Bondroit, um dos dois administradores designados na sequência do pedido de declaração de insolvência apresentado na terça-feira, 28 de Janeiro, trata-se apenas “de constatar um facto”. De acordo com ele, os interesses da Metaleurop Nord, entre os quais os dos 830 assalariados foram postos em xeque, e os da casa mãe, Metaleurop, estão-lhes estreitamente ligados. Uma prova é um balanço provisório de Metaleurop Nord que refere o passivo de 170 milhões de euros, dos quais 130 milhões em contas correntes devidos à casa mãe. Quanto ao activo, essencialmente industrial, é impossível avaliar com precisão, porque o seu valor varia em função do futuro do local. Um eventual tomador tem até ao dia 17 de Fevereiro para se poder manifestar. Se os administradores constataram várias “sinais de interesse”, nenhuma oferta de retoma foi apresentada até quarta-feira, 12 de Fevereiro.

O pedido dos administradores deve agora ser estudado pelo tribunal, que vai ouvir as diferentes partes antes de pronunciar o seu julgamento. O mais provável é

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que a Metaleurop SA se venha a opor a esta extensão. Desde o início do negócio, os dirigentes deste grupo especializado na reciclagem dos metais não cessam de querer separar as actividades da casa mãe das da sua sucursal. É de resto a decisão da Metaleurop SA em deixar de financiar a reestruturação da sua sucursal “a fim de assegurar a estabilidade financeira do grupo” que provocou, em meados de Janeiro, uma verdadeira tempestade. O grupo voltava atrás sobre o compromisso tomado algumas semanas antes junto dos poderes públicos e dos assalariados, que desde então eram objecto de um plano social. Mesmo as autoridades políticas tinham qualificado os líderes da Metaleurop como “vigaristas”.

Opacidade e mutismo

Os interesses dos administradores e dos dirigentes da Metaleurop divergem profundamente. Os primeiros propõem-se fazer reconhecer que há um património comum a fim de fazer beneficiar a sucursal dos activos que o grupo possuiria. Os segundos vão querer demonstrar que o grupo está perante dificuldades suficientes para não poder assumir o socorro da sua sucursal, tranquilizando ao mesmo tempo os accionistas sobre o seu futuro.

A tarefa da Metaleurop SA, grupo possuído a 32,9% pelo suíço Glencore, anuncia-se por conseguinte delicada. Enquanto a opacidade das suas contas e o mutismo dos dirigentes foram objecto de severas críticas ao mais elevado nível do Estado, o grupo vai ter que demonstrar muito em breve um pouco mais de transparência, respondendo muito precisamente a um pedido da Comissão das Operações de Bolsa. A cotação do título Metaleurop SA foi suspensa a 5 de Fevereiro a pedido da COB, que considerava insuficientes as informações dadas ao mercado.

A resposta da Metaleurop é esperada desde há vários dias. Enquanto este grupo realizou em 2001 um volume de negócios de 649 milhões de euros, existe uma controvérsia que se refere essencialmente à venda de uma fábrica de zinco na Alemanha (Nordenham Zinco) por 100 milhões de dólares à Xstrata, um grupo mineiro baseado em Zoug (Suíça), e sem qualquer concurso. Ora, de acordo com

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o banco ING, “o preço da transacção situa-se abaixo das médias históricas”. Como que por azar, Xstrata é ela também detida (a 40 %) pelo grupo suíço Glencore. De imediato, os accionistas minoritários interrogaram-se se não foram enganados e se a COB se propõe, neste processo, mostrar-se particularmente vigilante.

Na caça aos ‘patrões vigaristas’ faltam as munições

Artigo publicado na edição de 18.02.03 Marie-Béatrice Baudet e Antoine Reverchon

Face à Metaleurop e ao “Prestige”, a justiça está tão pouco armada como o está perante o crime e o terrorismo internacional.

“Se necessário, irei mesmo manifestar-me como um metalúrgico”. Albert Facon, deputado do PS do Norte, Pas-de-Calais, começa a ganhar calma desde o encerramento sem pré-aviso da Metaleurop Nord, em Noyelles-Godault, no seu distrito. São 830 assalariados que foram atirados ao tapete pela casa mãe Metaleurop SA quando cortou os fornecimentos, a 17 de Janeiro, à sua sucursal, sob as recomendações do seu accionista de referência, Glencore, um conglomerado suíço conhecido pelo seu gosto pela discrição, cultivado ao ponto de ir domiciliar-se no cantão de Zoug, na Suíça, no reino das sociedades ecrãs. “Mais ninguém controla coisa alguma”, enerva-se o eleito. “O governo quer punir estes proprietários vigaristas? Vamos fazer pressão e ir a Zoug destruir a barraca”.

Jean-Pierre Raffarin tinha já bastante que fazer com os planos sociais anunciados em cascata, e agora o primeiro-ministro deve também fazer frente “aos piratas da economia”, que, como o declarava muito rapidamente Jacques Chirac após o naufrágio do Prestíge, “aproveitam cinicamente a falta de transparência do sistema [capitalista] actual”.

A caça está aberta. Mas com que meios? A família patronal – em especial a Union des Industries et des Metiers de la Metalurgie, que conta com a Metaleurop

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entre os seus membros – denunciou os “métodos condenáveis” desta sociedade, sublinhando, no entanto, que se tratava de um caso específico. Não há grande mobilização em perspectiva, por conseguinte, para se ir mais adiante na governança de empresa. As organizações sindicais deixaram de estar presentes. Quer seja da Confederação Europeia dos Sindicatos (CES) ou da Confederação Internacional dos Sindicatos Livres (CISL), as respostas são de uma franqueza desconcertante: “estamos completamente sem meios e as nossas disponibilidades financeiras não nos permitem ter peritos para estudar e deslindar estes circuitos financeiros opacos”.

“O governo não podia evidentemente permanecer de braços caídos e voltou-se para o seu ministro da Justiça, Dominique Perben, para que demonstre a sua vontade política em prosseguir “até ao nível penal” os proprietários delituosos. No que respeita ao Prestige, foi o procurador de Brest que se lançou na batalha, com base em vestígios de um armador protegido por uma sociedade imatriculada na Libéria e os de um fretador (mal se descobriu quem era, desapareceu por obra e graças da engenharia financeira), filial de um grupo russo domiciliado no cantão de Zoug, cantão decididamente bastante acolhedor. A 13 de Fevereiro, estudava-se a abertura de uma informação judicial por “abuso de bens sociais” e “dissimulação de abusos de bem social” contra a Metaleurop SA. Primeiros passos, evidentemente importantes, mas até onde conseguirão entalar estes sabujos? No governo, não se esconde estar “perante dificuldades enormes”. As experiências passadas, nomeadamente com o processo Elf, mostraram quanto o caminho é longo e difícil, dado que vai para além fronteiras. Noutros termos, só uma cooperação internacional entre órgãos jurisdicionais e Estados pode pôr a mão nos responsáveis. Tal cooperação está efectivamente em construção a nível de instituições como a União Europeia, a OCDE, o FMI, o G7 e a ONU. Mas os seus campos de acção “históricos” referem-se ao dinheiro da droga e à grande delinquência, e só parcialmente ao da evasão fiscal e, sobretudo desde o 11 de Setembro de 2001, também ao do terrorismo. Ora, o dinheiro sujo das máfias segue exactamente os mesmos circuitos e os mesmos métodos que o financiamento do terrorismo, as colocações dos investidores “cuidadosos”, e dos lucros das empresas que se dizem “arrasadas” pelas despesas com o cumprimento das leis que protegem os assalariados e o meio ambiente; afinal, o património dos contribuintes mortificados “pela inquisição fiscal”.

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O Grupo de Acção Financeira (GAFI), que agrupa desde a sua criação, em 1989, peritos de 29 países na luta contra o branqueamento, é encarregado de elaborar as regras desta cooperação. As suas “recomendações” inspiram mais ou menos a acção de todas as instituições internacionais. Reunido a semana passada em Paris, lançou-se numa reestruturação do seu dispositivo. Antes de elaborar a lista dos meios para combater a delinquência em colarinho branco, sempre com um atraso de uma guerra, o GAFI propõe-se aplicar a partir de agora as suas regras de cooperação a qualquer infracção que, no país onde foi cometida, seja punida com uma pena de prisão de uma duração mínima ainda em debate, mas que poderá ser de um ano; a outra condição que permanece certamente é que a infracção tenha trazido ao seu autor “um benefício financeiro importante”. Trata-se, com efeito, de alargar o campo da acção internacional contra toda a pretensão de dissimular os vestígios de uma operação financeira. Vistos a esta luz, os responsáveis da Metaleurop ou do Prestíge poderiam assim ficar na sua alçada? “Seria talvez possível”, admite prudentemente Patrick Moulette, secretário-geral do GAFI, que precisa, no entanto, que a discussão entre os peritos continua ainda a decorrer. Mas, como explica Ludovic François, professor na HEC e co-autor de Criminalité Financière (éd. de Organization), “a justiça continua a ser construída sobre lógicas territoriais, e a cooperação judicial continua a funcionar mal”. Os recuos da União Europeia, quando se trata de levantar o sigilo bancário na Bélgica, na Áustria e no Luxemburgo, ou ainda de suprimir os privilégios fiscais concedidos a mais de 200 sedes de multinacionais na Holanda, na Irlanda e na Bélgica, são disso um testemunho.

Claramente, os juízes deverão munir-se de uma grande paciência, e disso que não tenham dúvidas os trabalhadores da Metaleurop ou os pescadores da região de Landes. O público já tem a sua opinião formada: apenas 33% das pessoas interrogadas no âmbito da sondagem recentemente realizada para o Fórum económico mundial, junto de 36.000 pessoas em 47 países e apresentada no final de Janeiro em Davos, dizem ter confiança nos patrões – delinquentes ou não–, enquanto 56% saúdam os responsáveis das ONG. Uma crítica aos “global leaders “ que ecoa bem mais para além dos “piratas da economia”.

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O Estado atribui aos assalariados da Metaleurop Nord uma ‘indemnização por prejuízo moral' de 15.000 euros

Artigo publicado na edição de 04.04.03

Os trabalhadores que ocupavam a fábrica de Noyelles-Godault, fechada brutalmente em Janeiro, parecem aliviados com a saída do conflito, ainda que muito estejam inquietos com a sua reclassificação.

“Após 35 anos de fábrica, não se pega numa borracha e se apaga tudo”.

Quando Farid Ramou entra na cantina da fábrica Metaleurop Nord de Noyelles-Godault (Pas-de-Calais), os aplausos são em uníssono. Mais aliviados do que satisfeitos pelo resultado das negociações com o perfeito, os 200 assalariados ainda presentes às 19 h e 30 min, na quarta-feira 2 de Abril, agradecem ao seu delegado CGT de 36 anos que assumiu o conflito aberto quanto ao encerramento brusco desta unidade de 830 assalariados, desde o seu anúncio, em Janeiro. “Não é nem uma vitória nem uma derrota”, diz Farid Ramou.

Nos termos do acordo, os assalariados receberão uma “indemnização por prejuízo moral”, dum montante de 15.000 euros, valor até aí nunca pago pelo Estado, sem se esperar o fim dos procedimentos judiciais envolvidos contra a casa mãe, Metaleurop SA, e o seu principal accionista, o grupo suíço Glencore. As autorizações de conversão são prolongadas até um período de 12 meses e as duas células de reclassificação permanecerão no local durante 18 meses, enquanto 40 empregos serão mantidos para assegurar a manutenção e a segurança do local. “É muito mais do que o que se obteve na Moulinex”, considera Farid Ramou, ainda que inicialmente os assalariados reclamassem 50.000 euros ao Estado, dada a incapacidade de se poderem voltar contra os dirigentes da sua empresa em liquidação.

Durante toda a tarde desta quarta-feira, poucos encaravam uma tal saída para pôr termo ao conflito. O tom é de cólera e de rancor, deixando prever novas

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acções, como a da véspera quando foram derramados no canal do Deule buldozers escavadoras, os pães de sódio e tonéis de líquidos pouco perigosos.

Para alguns, estas acções relâmpago traduzem certa lassidão. “Até nos faz mal sabermos que não somos mais que 200, sempre os mesmos a mobilizarem-se, enquanto os outros esperam tranquilamente o prémio pelo qual nos andamos a bater. É lamentável”, lamenta Jean-Claude, um tesoureiro de 52 anos, que, como muitos outros, se sentiu “abandonado pelos seus patrões e agora pelo Estado.”

Uma importância simbólica

O presidente da República não os incentivou ele a denunciarem os “métodos de pirataria” dos dirigentes da Metaleurop SA? Mas, depois, o seu conflito foi ocultado pela liquidação da Ar Lib e agora pela guerra. “O dinheiro, esse existe para os comboios humanitários e para a reconstrução do Iraque. Porque não para nós que perdemos o nosso emprego?”, interpela Jean-Louis, 54 anos, motorista desde os vinte e dois anos, que ameaça “partir tudo, dado que não tem mais nada do que isso para se fazer entender”.

Para muitos assalariados com mais de 50 anos, a indemnização de partida reveste uma importância simbólica. Raros são os que se imaginam poder refazer-se noutro lugar. “Era pesador para alimentar os fornos. Na ANPE, não sabem sequer o que é, sublinha Paul, 49 anos. “A mim, comeram-me a carne “, proclama Christian, 51 anos. Entrou na fábrica aos 15 anos, é atingido de saturnismo, com uma incapacidade permanente parcial de 40%. “Quem vai querer interessar-se por mim?” Após trinta e cinco anos de fábrica, não se pega uma borracha e se apaga tudo”, acrescenta.

Poucos são aqueles que atribuem crédito ao projecto de criação de uma prisão em 2007, “que empregará apenas aqueles que tenham menos de 38 anos e obrigatoriamente franceses”. Para evitar os riscos de depressão depois da grande dispersão, uma associação dos assalariados acaba de ser criada. O seu objectivo:

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assegurar um apoio moral, um acompanhamento social e médico, e agir com a justiça contra a Glencore. Alguns não ousam acreditar que a sua vida vai parar e esperam ainda uma retoma mesmo parcial da actividade. Farid Ramou é mais determinado. O perfeito prometeu-lhe uma visita próxima da missão de re-industrialização. Por conseguinte, o que há a fazer é arregaçar as mangas para limpar a fábrica, reparar o que foi estragado de modo que o local apresentável”.

Como os assalariados de Metaleurop Nord tiveram êxito em rever a decisão judicial de encerramento da sua fundição, na instância judicial superior

Artigo publicado na edição de 01.03.05Philippe Allienne

O desafio é conseguir mostrar que a empresa tinha perdido a sua autonomia de gestão.

A liquidação da fundição da Metaleurop Nord, a 10 de Março de 2003, é um modelo de rapidez por parte da justiça. Para os 830 assalariados da fundição, instalada em Noyelles-Godault (Pas-de-Calais), esta decisão foi sobretudo de uma brutalidade que poderia ter sido evitada se a sua empresa tivesse sido autónoma. Ora, é o grupo Metaleurop SA que decidia.

Farid Ramou, então secretário da CGT e representante sindical no Comité de empresa, tinha previsto o que veio a aparecer como uma nova catástrofe social nesta bacia de emprego. Em 2002, um projecto de reestruturação, com alteração completa dos instrumentos de trabalho e do plano social, tinha sido apresentado ao Comité de empresa. O custo anunciado ascendia a valores entre 15 milhões e 25 milhões de euros. Mas, no fim de 2002, a pedido da casa mãe Metaleurop SA, baseada em Paris, a direcção de Noyelles-Godault encomenda uma auditoria a fim de precisar o custo real da reestruturação. Em Dezembro, o valor é conhecido: 50 milhões de euros. “É uma das razões invocadas pela casa mãe para cessar de financiar a sua sucursal”, explica Ramou.

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A partir daí, os acontecimentos precipitam-se. A 17 de Janeiro de 2003, a Metaleurop SA anuncia a sua decisão de abandonar a fábrica do Pas-de-Calais. “A tesouraria é então quase nula”, precisa o sindicalista. A 25 de Janeiro, o director, nomeado recentemente, apresenta-se à falência.

O tribunal de comércio de Béthune pronuncia a reorganização com gestão judicial e com um período de observação de três meses. “Mas o administrador abre o concurso para uma eventual retoma apenas num período de duas semanas.” Muitíssimo curto, comenta Ramou. A Metaleurop Nord não era uma barraca de fritos na esquina da rua!

A 10 de Março de 2003, é declarada a liquidação e os assalariados são despedidos nos quinze dias que se seguem. É o prazo que prevê a legislação para que os salários possam ser garantidos. Mas quanto ao plano de acompanhamento social, é com os serviços do Estado que os parceiros sociais negoceiam.

Os assalariados obtêm a criação de células de reclassificação, uma ajuda para a formação, acompanhamento médico, ajudas à mobilidade. Mas pedem igualmente uma indemnização por prejuízos morais, sanitários e financeiros. Nem a sua empresa nem a casa mãe atribuirão mais algum cêntimo.

Em Maio de 2003, o Estado paga um adiantamento de 15.000 euros a cada assalariado. Isto supõe que estes levem a tribunal a casa mãe. Uma nova batalha se inicia a fim de obter a extensão da liquidação judicial ao conjunto do grupo. Para o advogado do Comité de empresa, Patrick Tillie, esta batalha é essencial. Trata-se de reconhecer que, desde a sua filialização em 1994, a Metaleurop Nord perdeu completamente a sua autonomia de gestão, em proveito de Metaleurop SA e dos seus accionistas, o suíço Glencore e o alemão Preussag. Se não, afirma o advogado, “a empresa teria conseguido sair da situação”.

Julgamento esperado em Abril

Um primeiro julgamento do tribunal de Béthune rejeita o pedido de

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extensão. A 16 de Dezembro de 2004, o Tribunal de Recurso de Douai (Norte) infirma este julgamento e dá razão aos assalariados. Na mesma altura, a Metaleurop SA é colocada sob reorganização e administração judicial.

“A partir de 2000, recorda Me Tillie, a casa mãe tinha decidido organizar a sua sucursal em linhas de produto, ou seja, de a gerir a partir do fabrico por produtos (chumbo e zinco). A direcção das operações foi decidida em Paris. Isto alterou completamente a autonomia de decisão de Noyelles-Godault.”

“De qualquer modo, acrescenta o advogado do comité de empresa, o conjunto das funções estratégicas da empresa tinha sido abandonado em proveito da casa mãe. A Metaleurop SA comprava os minérios (explorados pela Glencore) e escoava a produção para a sua sucursal do Norte.”

A extensão da liquidação é também uma maneira de denunciar a venda de uma unidade de tratamento de zinco à Nordenham, na Alemanha. O grupo tinha-o vendido a um preço muito baixo, hipotecando o plano social da Metaleurop Nord. Após o acórdão do Tribunal de Recurso de Douai, o grupo decidiu ir ao Supremo. A decisão é esperada para Abril. Mas, dando razão aos assalariados e aos liquidatários, o tribunal de Béthune criou um precedente no direito francês. Há “moralização do direito dos negócios e uma espécie de advertência para com os outros grupos que quereriam reproduzir o esquema de Noyelles-Godault”, dizem os advogados.

Isto foi possível devido “a uma colaboração excepcional entre os peritos e os magistrados.” Os peritos permitiram nomeadamente sublinhar as relações financeiras anormais entre a casa mãe e a sua sucursal”, felicita-se o advogado Tillie.

Mas este caso também sublinhou os limites do direito comercial. “Não é completamente seguro, considera um juiz de Douai, que a reforma do procedimento colectivo em matéria de falência nos traga algo de diferente.” Por outro lado, no caso da Metaleurop, julgou-se num quadro nacional. Mas o que é que se pode fazer contra um accionista estrangeiro?

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O Tribunal Supremo anula a extensão da liquidação da Metaleurop

Artigo publicado na edição de 21.04.05 Nathalie Brafman

NOVO duro golpe para os assalariados da Metaleurop Nord e o regresso à estaca de partida para todos. Terça-feira, dia 19 de Abril, a câmara comercial do Tribunal de Recurso anulou a extensão da liquidação judicial da Metaleurop Nord à sua casa mãe, o grupo de metais não ferrosos, Metaleurop SA. Surpresa geral, a 16 de Dezembro de 2004, o Tribunal de Recurso de Douai (Norte) tinha no entanto tomado a outra decisão. O Tribunal de Recurso levou o caso ao Tribunal de Recurso de Paris que deverá de novo pronunciar-se.

Para os 830 assalariados de Metaleurop SA, é essencial reconhecer-se que, desde a sua filialização em 1994, a Metaleurop Nord tinha perdido completamente a sua autonomia de gestão, em proveito de Metaleurop SA e do seu accionista principal, o suíço Glencore.

Se um primeiro julgamento do tribunal de Béthune (Pas-de-Calais) tinha rejeitado o pedido de extensão, o Tribunal de Recurso de Douai, tinha considerado que existia entre a casa mãe e a sua sucursal suficientes fluxos financeiros, anormais, para caracterizar uma confusão dos patrimónios das duas sociedades, justificando a extensão da liquidação judicial. E nomeadamente, “um apoio abusivo da sociedade mãe à sua sucursal de um total de 550 milhões de francos sem contrapartida através de um empréstimo de longo prazo e de adiantamentos de tesouraria que nunca foram reembolsados”, recorda Jean-Philippe Duhamel, o advogado dos liquidatários e do Comité de empresa. “A Metaleurop Nord não tinha nenhum controlo na compra das matérias-primas, nem na venda dos produtos acabados”, apoia o Sr. Duhamel.

Motivos inoportunos

O Supremo Tribunal, por seu lado, considerou que o Tribunal de Recurso utilizou “motivos inoportunos” para considerar que as duas sociedades mantinham

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“relações financeiras anormais constitutivas de uma confusão do património”. Aquando do exame do recurso, o advogado geral Christian Feuillard tinha também avançado neste sentido nas suas conclusões. Os assalariados por conseguinte não foram muito surpreendidos pela decisão do Supremo Tribunal. “A lei tem dez ou vinte anos de atraso”, lamenta Yves Lebleu, vice-presidente da associação dos antigos assalariados da Metaleurop Nord, Choeurs de fondeurs. O Supremo situou-se estritamente no quadro legislativo em vigor... sem estar a ter em conta os comportamentos insidiosos do accionista de referência da Metaleurop SA através de sociedades ecrãs situadas em paraísos fiscais, como a Glencore Bermudas...”

A 16 de Janeiro de 2003, a Metaleurop SA tinha decidido brutalmente cortar os fornecimentos à Metaleurop Nord, pondo os seus assalariados na rua e economizando, de passagem, um plano social. Em Outubro, a Metaleurop SA é ela própria largada pelo seu accionista Glencore e apresenta-se à falência.

“Espera-se que o calendário do Tribunal de Recurso esteja em consonância com o imperativo do plano de correcção judicial da Metaleurop SA em curso”, declara Olivier Puech, advogado associado de Gide Loyrette Nouel. Segundo ele, a sociedade espera sempre um plano de continuação e exclui qualquer liquidação judicial.

Dois anos depois da sua recuperação judicial, Metaleurop aproveita a subida do chumbo para voltar a ser cotada na Bolsa de Paris

Artigo publicado na edição de 12.01.06Nathalie Brafman

O grupo de metais não ferrosos Metaleurop SA vai outra vez ser cotado na Bolsa de Paris, mais de dois anos depois de ter sido declarado em cessação de pagamentos e de ter sido colocado em recuperação judicial pelo tribunal de comércio de Paris.

«A cotação terá lugar durante o mês de Janeiro», indicou Yves Roche, o Presidente da empresa, terça-feira 10 de Janeiro. Tinha avisado os seus accionistas no início do ano.

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O título Metaleurop, sucursal em 33% do grupo suíço Glencore, suspenso a 26 de Junho de 2003 tinha o valor de 54 cêntimos de euro. Na época, o grupo contava 17.000 accionistas e a sua capitalização ascendia à 12,61 milhões de euros. Este regresso à Bolsa surge após a homologação pelo tribunal de comércio de Paris, 24 de Novembro de 2005, do plano de recuperação através da continuação de actividade da Metaleurop SA. Uma decisão que pôs termo à sua recuperação judicial.

Para justificar este regresso aos mercados financeiros, Yves Roche indicou que «o bom comportamento das cotações dos metais e performances industriais constantes durante o segundo semestre... permitem-nos encarar um volume de negócios para 2005 à volta de 225 milhões de euros e antecipar uma melhoria sensível do resultado de exploração em relação a 2004 [10,2 milhões de euros]». No primeiro semestre, este ascendeu a 7 milhões de euros. Entre 1997 e 2005, a cotação do chumbo quase duplicou, para quase 1.130 dólares a tonelada. Durante estes dois últimos anos, a Metaleurop SA centrou as suas actividades na reciclagem do chumbo e do plástico a partir das baterias de automóveis e industriais, do zinco bem como de metais especiais. Em França, desde a liquidação em Março de 2003 da Metaleurop Nord, instalada em Noyelles-Godault (Pas-de-Calais) que empregava 807 pessoas, a Metaleurop SA está presente em quatro locais: dois especializados na recolha e destruição de baterias de automóveis usadas situados em Villefranche-sur-Saône (Rhône, cerca de 15 pessoas) e em Escaudoeuvres (Norte, 7 pessoas); dois outros especializados na reciclagem do zinco em Fouquières-lès-Lens (Pas-de-Calais) e Anzin (Norte).

Recentragem das actividades

Estes dois locais, que empregam cada um deles 40 pessoas e são propriedade da Metaleurop via participações (respectivamente de 50% e 55 %), poderiam ser cedidos no âmbito do plano de cessão de activos não estratégicos. «Não temos calendário de momento», assegura Yves Roche. Paralelamente à recentragem das suas actividades, a empresa comprometeu-se a reembolsar os seus credores durante dez anos num máximo de 60,8 milhões de euros, sabendo que há 12,6 milhões de créditos que estão com contestação em curso.

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Para os antigos assalariados da Metaleurop Nord, isto é uma pílula amarga. «É uma boa notícia para os 600 assalariados do grupo na Europa mas continua a ser difícil para nós», explica Albert Lebleu, vice-presidente da associação Choeurs des Fondeurs, criada em Abril de 2003 após o encerramento da fábrica e o despedimento dos seus assalariados. Tinham pedido a extensão da liquidação da sua empresa à sua casa mãe. Em Dezembro de 2004, o Tribunal de Recurso de Douai (Norte) tinha-lhes dado razão. Em Abril de 2005, a câmara comercial do Tribunal de cassação tinha anulado esta decisão pedindo ao Tribunal de Recurso que reanalisasse o processo. A 11 de Outubro, este último recusava esta extensão. Um novo duro golpe para os assalariados que deu seguimento ao encerramento, em Março de 2005, da célula de reclassificação instaurada aquando da liquidação. Quanto aos 807 assalariados, 600 deveriam reencontrar um trabalho.

«Hoje, 300 pessoas têm uma situação estável [260 têm um contrato de duração indeterminada (CDI), 20 criaram uma empresa e 20 seguem uma formação que pode dar lugar a um CDI].» Mas permanecem ainda 300 pessoas em situação precária: 48 têm contratos de duração determinada (CDD), 40 estão com trabalho temporário e 206 não têm ou têm muito pouco trabalho desde há três anos», diz. Lebleu. Uma situação ainda mais inquietante quando a média de idades é de 50 anos. Para aqueles, a esperança chama-se Sita, a sucursal do grupo Suez, especializada na triagem e na valorização dos desperdícios. Esta sociedade deve com efeito instalar-se na antiga fábrica da Metaleurop Nord no fim de 2006. «A empresa Sita deve contratar 190 pessoas de agora até ao final de 2007, sempre prometeu atribuir uma prioridade na contratação aos ex-assalariados da Metaleurop Nord», afirma. Lebleu. Já, 35 de entre eles foram recrutados para ocupar postos de guarda ou de vigilância do local.

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O tribunal recusa o pedido de condenar a Metaleurop SA

Artigo publicado na edição de 01.03.07

O tribunal de grande instância de Béthune (Pas-de-Calais) rejeitou, terça-feira 27 de Fevereiro, o pedido dos liquidatários judiciais de condenar a Metaleurop SA ao preenchimento do passivo da Metaleurop Nord, num montante de 50 milhões de euros. A direcção da Metaleurop SA precisa que esta decisão permite prosseguir o seu plano de continuação com a “manutenção dos 600 empregos e a liquidação do passivo de 40 milhões de euros num período de dez anos”.

2. TExTOS ApRESENTADOS NA ASSEmBLEIA NACIONAL FRANCESA

Proposta de resolução apresentada na Assembleia Nacional Francesa

www.assemblee-nationale.fr/12/propositions/pion2842.aspAssembleia Nacional Francesa, sessão de 22 de Fevereiro de 2006

Tendente a criar uma comissão de inquérito sobre a liquidação da Metaleurop Nord pela Metaleurop SA, depois do regresso à bolsa dos seus títulos Metaleurop e com a introdução na lei da noção de “dependência decisional e financeira particularmente marcada”, no quadro da extensão dos procedimentos colectivos duma filial ao seu grupo.

Exposição de Motivos

Minhas Senhoras, Meus Senhores

A 17 de Janeiro de 2003, a decisão do grupo industrial Metaleurop “de não conceder novos financiamentos à sua sucursal Metaleurop Nord de Noyelles-Godault (Pas-de-Calais),... a fim de assegurar a estabilidade financeira do grupo” assinava a

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sentença de morte deste local de produção de zinco, lançava 830 assalariados na rua, sem com isto se estar a contar os empregos indirectos, e dava um golpe terrível na economia de uma zona dinâmica e deixava ao Estado e às autarquias o encargo considerável das consequências sociais, sanitárias e ambientais deste desastre.

Três anos mais tarde, a retoma de cotação em bolsa do título Metaleurop, a 6 de Fevereiro, com uma subida de 622% a partir do primeiro dia, de 35% no segundo, suscita a emoção e a cólera. E isto tanto mais quando, entretanto, a Metaleurop e um antigo dirigente foram objecto, em menos de um ano, de uma severa sanção da Autoridade dos Mercados Financeiros, “Polícia da Bolsa”, e de multas acumuladas de 350.000 euros por terem fornecido uma informação financeira falaciosa!

Emoção e cólera dos assalariados da Metaleurop Nord dos quais centenas permanecem em situações pessoais e profissionais precárias, ou mesmo totalmente sem perspectivas. Emoção e cólera das populações ribeirinhas e dos eleitos das autarquias.

Emoção e cólera das famílias da “Metaleurop” e das dos assalariados mortos desde 2003; alguns foram vítimas do amianto enquanto, até agora, os poderes públicos recusaram a inscrição da Metaleurop Nord no número de empresas que devem beneficiar do dispositivo de cessação antecipada de actividade.

O vice-presidente da associação “Choeurs dees Fondeurs”, Albert Lebleu, testemunhava a esse respeito a 4 de Maio de 2005, à Comissão do Senado que instruiu o relatório sobre “o drama do amianto em França”.

Após ter recordado diversos elementos efectivos entre os quais, por exemplo, as tonelagens de amianto encomendadas, 31 toneladas em 1972 e ainda as 7 a 8 toneladas por ano dos anos 80, o seu testemunho evocava a situação sanitária nestes termos:

“Venho falar da situação sanitária. Sobre as 807 pessoas que foram despedidas, diversas dentre elas foram fazer radiografias e scanners, e identificámos até agora doze pessoas que têm 5% de IPP devido a placas pleurais.”

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“Tivemos outros casos nos reformados, que vieram confiar-nos o seu processo de pedido de indemnização ao FIVA. E através da nossa comissão ‘saúde e indemnização para prejuízos sanitários’, tivemos conhecimento de seis falecimentos como resultado das consequências do amianto”.

“Recentemente ainda, agimos em benefício dos ex-assalariados, quer se tratasse de CDI, CDD, temporário ou sub-contratantes, e um subcontratante que passou muito tempo na fábrica morreu muito recentemente por causa do amianto.”

“Qual é o balanço das placas pleurais hoje?”

“Sobre as pessoas que nasceram entre 1948 e 1950, temos toda a cohorte que trabalhou na fábrica durante numerosos anos, e detectamos que 6% das pessoas foram atingidas com placas pleurais. Na minha opinião, este número deveria estar vizinho de 10% se todos tivessem feito radiografias e scanners, o que não é o caso”.

“Pode, por conseguinte, pensar-se que este número poderá aumentar em função do envelhecimento do pessoal. Em todo caso, poder-se-á encontrar este número de 6% em todos os documentos que se referem às pessoas nascidas em 1948, 1949 e em 1950, entre as quais algumas estão em estado de reconhecimento do seu IPP, mas é uma certeza e é um número que só pode aumentar com o correr do tempo pelas duas razões que acabo de indicar.”

É doravante um elemento incontornável e importante deste processo, e que quis acrescentar às constatações feitas pela comissão de inquérito parlamentar que apresentámos a partir de Março de 2003. Pedido rejeitado a 28 de Maio de 2003 pela maioria da Comissão dos Negócios Económicos da Assembleia.

Recordemos as informações que então tinham sido trazidas a lume, referindo “assalariados da empresa atingidos de saturnismo”; “taxas de plumbemia muito alarmantes”, detectadas num inquérito do Serviço regional de saúde em 2001-2002, e que afectavam também o ambiente do local e as populações ribeirinhas.

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Três anos depois, numerosas e dolorosas perguntas permanecem quanto a este aspecto essencial do escândalo Metaleurop Nord e Metaleurop SA.

Mas outros elementos retêm também a nossa atenção, e necessitam da criação de uma comissão de inquérito parlamentar.

Porque, para além das responsabilidades da empresa no plano sanitário, as suas responsabilidades económicas, sociais e ambientais deveriam ser objecto de tal investigação.

A Assembleia Nacional não pode deixar, com efeito, sem sequência este “regresso em graça” da Metaleurop SA aos meios bolsistas e financeiros!

Que respostas dar a estes homens, a estas mulheres, a estes lares que viram a sua vida profissional, familiar e social perturbada ou destruída cobardemente pelo abandono de Janeiro de 2003?

Que respostas dar às suas interrogações, às das populações e às dos eleitos locais que constatam que dezenas, ou mesmo mais, de milhões de euros de dinheiro público, são investidas, em vez da Metaleurop SA e do seu accionista privilegiado Glencore, sempre soberano no jogo, nas tentativas que estão longe de conduzirem até agora, à reparação das rupturas e dos prejuízos sofridos.

Poluições, desindustrialização, desemprego, desestabilização social... A corrida aos lucros tem um custo que deve ser claramente precisado, calculado, recordado e... assumido pelos responsáveis deste drama humano.

E depois, há o futuro, a necessidade de impedir a repetição até ao infinito de práticas similares, permitidas pela habilidade em jogar contra as leis e contra os procedimentos de gabinetes de negócios de alto coturno, graça às vezes, e é o caso aqui, ao vazio dos textos legais e à passividade dos poderes públicos que deveriam estar na ofensiva em relação a tais desafios.

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Levado a julgar o recurso que deu seguimento à decisão do tribunal de Béthune, de 2 de Outubro de 2003, o Tribunal de Recurso de Douai, num acórdão de 16 de Dezembro de 2004, tinha, com base num relatório de avaliação feito a seu pedido, constatado “uma confusão entre os patrimónios das sociedades Metaleurop Nord e Metaleurop SA”, e ordenado “a extensão à Metaleurop SA do procedimento colectivo aberto contra a SAS Metaleurop Nord”.

No âmbito do debate aberto em sessão pública da Assembleia nacional a 8 de Março de 2005, os deputados comunistas tinham recordado a declaração de François Fillon, ministro dos Assuntos Sociais aquando dos factos: “não é aceitável que uma empresa se permita decidir fechar uma das suas sucursais, sem estar a assumir as consequências sociais e ambientais”.

O tempo tinha passado desde então, e mais ainda hoje. Mas, permanece o diagnóstico que estabeleceram por conseguinte, em Março de 2005, os deputados comunistas, na sequência do relatório de avaliação invocado pelo Tribunal de Recurso de Douai no seu julgamento.

A Metaleurop Nord “encontrava-se numa situação de dependência de decisão e financeira particularmente marcada”, e as suas relações com a Metaleurop SA “tinham-se tornado anormais”.

Incontestavelmente, este julgamento constitui um progresso nas questões referentes à responsabilidade das sociedades mães nos grupos industriais.

Daí a importância da proposta que avançávamos a 8 de Março de 2005, de encarar que um prolongamento legislativo seja dado ao acórdão do Tribunal de Recurso de Douai.

Tínhamo-lo pedido sem estarmos a ser seguidos obviamente pelo governo! Mas esta importância permanece. Ela é ainda mais relevante no presente, face à acumulação na economia francesa de situações similares e de decisões de conselhos

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de administração e de fundos de pensão, das quais os assalariados, as bacias de emprego, as autarquias locais e os contribuintes continuam a ser as únicas vítimas. É necessário que isto acabe!

O artigo L. 621-5 do código do comércio é mudo sobre as condições que justificam a extensão à casa mãe dum procedimento aberto contra uma filial.

No processo Metaleurop Nord-Metaleurop SA, o acórdão do tribunal de cassação de 19 de Abril de 2005 pôde pôr em causa o julgamento do Tribunal de Recurso de Douai pela ausência, na lei francesa, de definição das relações e das obrigações sociais entre uma sociedade dominante e uma unidade filiada.

“Fomos abandonados pelo Estado”, denunciavam os ex-assalariados. E a imprensa sublinhava o facto do Estado, pela voz do ministério público, ter apoiado primeiro a extensão do procedimento na frente do Tribunal de Recurso de Douai, em 2004, e, depois, ser contra esta extensão, alguns meses mais tarde na cassação em Paris!

Mas esta decisão do tribunal de cassação foi tomada tendo apenas como base uma insuficiência da lei, em referência a uma ausência de apoio na linguagem do direito, e não uma tomada de posição sobre o fundo das questões do processo e sobre as motivações do julgamento, isto é, sobre os argumentos financeiros, económicos e sociais levantados e aceites pelo Tribunal de Recurso.

Argumentos completamente justificados na época e que, três anos depois, permanecem de uma escaldante actualidade, considerando certos julgamentos feitos em negócios similares, como o do Tribunal de Recurso de Rouen, no processo Aspocomp.

O acórdão de 19 de Abril de 2005 do tribunal de cassação incide sobre a forma, não sobre o fundamento: neste caso, o estabelecimento da prova de uma relação de subordinação de molde a caracterizar uma confusão dos patrimónios e, por isso mesmo, uma extensão do procedimento colectivo.

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Esta diligência de identificação pelo juiz da responsabilidade da empresa Metaleurop SA permite não restringir o debate apenas às formalidades comerciais, e ter em conta também as dimensões ambientais e sociais da actividade económica.

Compreende-se, portanto, que o grande patronato e os gabinetes de negócios tenham aplaudido a censura do tribunal de cassação.

Uma comissão de inquérito parlamentar, que retoma o conjunto dos elementos constitutivos deste escândalo da Metaleurop Nord-Metaleurop SA e “de patrões-vigaristas” denunciados na altura, em tom elevado e forte, pelo presidente da República, permitiria propor justificações para introduzir na lei os progressos da jurisprudência fornecidos pela decisão corajosa do Tribunal de Recurso de Douai, nomeadamente a noção de “dependência de decisão e financeira particularmente marcada” como critério que abre o caminho a uma confusão dos patrimónios.

O Chefe de Estado, a 29 de Junho de 2003, não prometia ele pedir ao governo “disposições legislativas de modo que actuações tão escandalosas nunca ficassem mais por punir?

Três anos após, o Estado está longe de ter trazido o mais pequeno prolongamento a estes compromisso; está longe da escuta devida a todos os que foram vítimas; está longe do respeito dos seus direitos e da sua dignidade.

Daí o carácter urgentemente reforçado que assume o nosso pedido de constituição em relação à Metaleurop Nord-Metaleurop SA, três anos após a liquidação e alguns dias após o regresso à bolsa dos seus títulos, de uma comissão de inquérito parlamentar que retome o conjunto do processo e que encare primeiramente os progressos legislativos susceptíveis de serem utilizados.

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Proposta de resolução. Artigo único

Em conformidade com os artigos 140 e seguinte do Regulamento, é criada uma comissão de inquérito de 30 membros sobre a liquidação de Metaleurop Nord por Metaleurop SA, após o regresso à Bolsa do título Metaleurop; e sobre a introdução na lei, da noção de “dependência decisional e financeira particularmente marcada”, no âmbito da extensão dos procedimentos colectivos, de uma sucursal ao seu grupo.

Ontem Metaleurop Nord, hoje Samsonite e amanhã?

www.assemblee-nationale.fr/12/CRA/2006-2007/111.aspAssembleia Nacional Francesa, sessão de 16 de Janeiro de 2007

“Patrões Vigaristas”

Albert Facon – A 17 de Janeiro de 2003, a Metaleurop liquidava a sua sucursal Metaleurop Nord, lançando assim na rua 1.000 assalariados. O presidente Chirac qualificava os responsáveis, que se tinham refugiado na Suíça, de “patrões vigaristas”. Podíamos então esperar que o Governo os fosse perseguir. Pois bem, não o fez!

Ontem à meia-noite, 223 assalariados da empresa Sublistatic de Hénin-Beaumont eram lançados na rua. Esta empresa, que existe desde há 30 anos, detém um know-how único no mundo com o método de impressão por fotogravura de papel de transferência para a confecção têxtil. Esta empresa florescente foi vendida, revendida: os accionistas pilharam-na e liquidaram-na. A última operação de venda e de resgate, em 2002, assinou a sua sentença de morte.

Actualmente, o conselho regional concedendo um adiantamento de tesouraria de um milhão, e a comunidade de aglomeração comprando as construções por 2,8 milhões, tentam reencontrar um comprador. Que faz o Governo? Nada! Ou o que é que tenciona fazer?

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Exactamente ao lado, a empresa Samsonite colocou-se em liquidação judicial e, para evitar um plano social de 15 a 20 milhões, encontrou como seu comprador a Energy Plast, uma holding luxemburguesa, não para continuar a actividade mas para a liquidar e lançar no passeio da rua 204 assalariados. Esta holding tinha procedido da mesma maneira com a empresa Delsey, de Montdidier na Somme, e Máximo Gremetz tinha-me avisado dos costumes destes bandidos. A 23 de Janeiro, sobre a queixa dos assalariados que contestam a cessação e pedindo que Samsonite assegure o plano social, o tribunal de Paris terá de pronunciar-se.

Demasiado é demasiado. Os franceses já não compreendem mais. Será que vão deixar despojar o nosso país por estes abutres que se refugiam nos paraísos fiscais?

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PArTE ii.

1. CRÓNICAS DE OUTROS JORNAIS

Glencore: Empresa de comércio internacional Suiça liga a City a fraude com o petróleo Iraquiano

Sunday Times, 25 de Setembro de 2005Peter Koenig, com reportagem adicional de Inês Sabalic

Reportagem especial: O relatório das Nações Unidas do próximo mês envolverá em controvérsia a empresa do sector mineiro Xstrata, com sede no Reino Unido, sobre pagamentos por fora feitos a Saddam. O petroleiro Artemis ancorou no porto Turco de Ceyhan, em 18 de Novembro de 2000, para transportar 100 milhões de barris de crude iraquiano no âmbito do Programa da ONU “Petróleo por Alimentos”. O petroleiro destinar-se-ia aos EUA, onde o carregamento seria transaccionado a um preço referenciado ao do crude do Texas. O petroleiro aportou depois a Omisalj, um porto croata na ilha de Krk, onde o petróleo foi transferido para depósitos de armazenamento em instalações pertencentes à companhia petrolífera croata INA. Este desvio do destino da carga passou desde então a constituir matéria de contencioso entre a ONU e o proprietário do carregamento, uma empresa Suiça chamada Glencore. A ONU argumentou que o destino final efectivo do carregamento tinha sido a Croácia e solicitou à Glencore que o pagasse aos preços de referência europeus e não aos americanos. A diferença era de 3 milhões de dólares, e a Glencore UK, com sede em Mayfair, em Londres, mandou um cheque à ONU para cobrir aquele montante. A Glencore afirmou na semana passada que a Croácia nunca tinha sido o designado destino final do petróleo, dizendo que tinha havido um mal-entendido resultante das intrincadas regras da ONU sobre os carregamentos de “Petróleo

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por Alimentos” no Iraque. Tudo isto tem mais do que mero interesse académico para a City. No próximo mês, a ONU revelará quais as empresas que compraram petróleo ao governo de Saddam Hussein. Aposta-se que o relatório mencionará a Glencore. O que não fará incidir a atenção apenas na Glencore, mas envolverá também no escândalo a empresa mineira Xstrata, uma empresa que faz parte do índice FTSE 100, dado que a Glencore controla 40% desta empresa. Nos círculos financeiros, a Glencore é conhecida pelos seus bons resultados. A empresa ganhou no último ano 1,5 mil milhões de dólares (845 milhões de Libras) colocando-a ao nível dos maiores fundos de investimento de alto risco (“hedge funds”) da City. A Glencore é também conhecida por ser uma empresa fundada por Marc Rich, o agente internacional de matérias-primas que fugiu dos EUA para a Suiça depois de ter sido acusado de violar o embargo ao Irão, a seguir à revolução de Khomeini. Há quatro anos, Rich obteve do Presidente Bill Clinton o perdão por esta infracção, precisamente no último dia de Clinton na Casa Branca. A Glencore foi conotada pela CIA com irregularidades no Programa “Petróleo por Alimentos”. Esta agência de espionagem americana obteve a lista das empresas que, segundo a organização iraquiana State Oil Marketing Organisation (SOMO), tinham feito pagamentos extra ilegais em negócios de “Petróleo por Alimentos”. “De acordo com os registos da SOMO, um dos compradores mais activos do crude iraquiano foi uma empresa com sede na Suiça, chamada Glencore”, relatou a CIA. “A empresa pagou 3.222.780 dólares de suplementos ilegais durante o período de vigência do programa”. Um porta-voz da CIA afirmou na semana passada que a agência não tinha chegado a tirar a limpo a veracidade daqueles registos da SOMO. A empresa, por seu turno, veio declarar: “A Glencore nunca pagou quaisquer extras ou fez qualquer pagamento impróprio à SOMO ou a qualquer outro ramo do governo iraquiano, ou a entidades oficiais iraquianas”. Poderá haver novos elementos no próximo mês, quando os investigadores da ONU, coordenados pelo antigo Presidente do Banco de Reserva Federal dos EUA, Paul Volcker, investigarem a Glencore e as suas actividades no Iraque. Em 7 de Setembro, a Comissão Volcker publicou a primeira parte do seu relatório criticando o Secretário-geral da ONU, Kofi Annan, por ter permitido a corrupção no âmbito do Programa “Petróleo por Alimentos”. Como o regime de Saddam concedia descontos sobre o preço oficial às 600 empresas autorizadas a

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comprar o crude iraquiano, cobrava por fora até 50 cêntimos por barril em cada carregamento. A Comissão Volcker descobriu que no conjunto dos 64 mil milhões de dólares de vendas do Programa “Petróleo por Alimentos” do Iraque “cerca de um terço dos pagamentos por fora foram feitos através de entregas de dinheiro vivo em várias embaixadas iraquianas no estrangeiro”. Na semana passada, a Glencore veio declarar: “Tal como outras empresas, a Glencore foi contactada pela Comissão Independente de Investigação e cooperou inteiramente com os respectivos representantes. A Glencore não espera vir a ser, de modo nenhum, mencionada no relatório”.

A Xstrata declarou que as ligações da Glencore ao Iraque não teriam efeito negativo sobre si.

O presidente executivo da Xstrata nomeado pela Glencore, Mick Davis, veio dizer que os analistas financeiros da City podiam interpretar qualquer problema na empresa Suiça Glencore como uma oportunidade para levar a uma redução da participação da Glencore no sector mineiro no Reino Unido. A Xstrata mantém ciosamente a sua independência relativamente à Glencore. Os termos do relacionamento entre as duas empresas estão redigidos num “acordo de relacionamento” com força legal. O Presidente da Glencore, Willy Strothotte, é o Presidente da Xstrata.

A Xstrata dispõe da possibilidade de poder usar a empresa Suiça como agente de marketing.

Apenas três dos doze membros da Administração da empresa mineira são designados pela Glencore. Os administradores não executivos, em que pontua o antigo chefe da Legal & General Investment, David Rough, são conhecidos pelo seu cioso seguidismo. Os analistas da City não crêem que as notícias do próximo mês sobre o caso da Glencore no Iraque influenciem a cotação dos títulos da Xstrata. A possibilidade de críticas à Glencore no próximo mês pela Comissão Volcker “não são obviamente boas notícias para a Xstrata”, afirmou um analista da City. “Mas as pessoas estão mais focalizadas no impacto na Xstrata dos preços do carvão”. Quando a City olha para a relação entre a

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Glencore e a Xstrata globalmente, as opiniões dividem-se. O analista do sector mineiro da Dresdner Kleinwort Benson, Simon Toyne, afirmou: “Há um grupo de accionistas que diz que as acções da Glencore são um risco. A Glencore poderia vender as suas acções e a cotação baixaria. Mais do que a anular esta perspectiva estão os investidores que vêem na Glencore um benefício, porque a Xstrata pode comercializar os produtos através da Glencore”. O RREV, um observatório da governação empresarial criado pela National Association of Pension Funds, e um seu associado dos EUA, levantaram questões acerca daquele relacionamento entre as referidas empresas no início deste ano. O RREV aconselhou os seus clientes a votarem contra a reeleição de Strohotte para Presidente da Xstrata. Strothotte, além de Presidente da Administração, preside à Comissão de Remunerações. O RREV critica este duplo papel. Qualquer que seja o impacto resultante das actividades da Glencore no Iraque, as notícias sobre o seu envolvimento no escândalo do “Petróleo por Alimentos” está a atrair as atenções para si – e para as suas relações com a Xstrata. A Glencore afirmou que a empresa Suiça tinha sido injustamente visada, por causa da notoriedade do seu fundador, Mar Rich. Os críticos da Glencore – incluindo Deputados Australianos preocupados com as transacções da empresa na Austrália, e a revista americana Business Week, que publicou em 18 de Julho um relatório crítico sobre o mundo de Marc Rich – dizem que Rich pode ter saído, mas não desapareceu a cultura que ele criou na empresa. Rich nasceu em Antuérpia, em 1934, e chegou aos EUA com oito anos de idade quando a sua família fugiu dos nazis. Em 1954, entrou para a Philip Brothers e tornou-se o protegido do célebre agente internacional de matérias-primas, Ludwig Jesselson. Em 1973, lançou-se por conta própria. Rich e os seus colegas de profissão, incluindo Pincus “Pinky” Green – conhecido por “Almirante” devido à sua habilidade em fretar navios – constituíram a sociedade na Suiça, em 1974. A tendência de Rich em fazer negócios em zonas obscuras do mundo foi abalada quando, em 1983, Rudolph Giuliani, na altura Procurador da região sul de Nova Iorque, o indiciou e à sua empresa por evasão fiscal e violação das sanções ao Irão.

A situação de Rich como fugitivo trouxe-lhe problemas nos negócios.

Rich foi banido da venda de minério ao US Mint (Departamento do Tesouro americano responsável pelo fabrico de moedas). Em 1992, os trabalhadores que

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tinham sido objecto de lock-out na fábrica de alumínio Ravenswood, no Rio Ohio, na Virgínia Ocidental – controlada indirectamente pela Glencore – organizaram uma manifestação em frente da sede da empresa, perturbando a paz das prósperas empresas da vizinhança. Em Junho de 1992, Strothotte, que tinha começado na Alemanha como negociante internacional de produtos metálicos e se associou a Rich em 1978, abandonou a empresa. Regressou em Fevereiro de 1993, quando Rich concordou em reduzir a sua participação maioritária de 51% na Glencore. Rich pretendia reduzir a sua participação só até 15% em cinco anos. Strothotte e os seus colegas queriam que Rich se afastasse totalmente e mais rapidamente. Rich perdeu a batalha. Nos últimos 11 anos, Strothtotte, de 61 anos de idade, Ivan Glasemberg, o director executivo australiano, de 48 anos de idade, e o director para o Reino Unido Daniel Dreyfuss, de 50 anos de idade, tornaram a Glencore numa das maiores sociedades por quotas do mundo. A capacidade da empresa em transaccionar petróleo, carvão, alumínio, cobre, zinco, chumbo, níquel, cobalto, trigo, milho, aveia, óleos vegetais e açúcar, a partir de 60 delegações em 50 países tornaram-na num dos maiores beneficiários do boom das matérias-primas. A Glencore continua a guardar ciosamente o seu secretismo. Os investidores interessados na empresa só conseguem obter detalhes financeiros se comprarem os únicos títulos que a Glencore emitiu – obrigações luxemburguesas no montante de 950 milhões de dólares, no ano passado. Todos os outros interessados são barrados no seu site na Internet na área protegida por palavra passe. A Glencore contabilizava 4,6 mil milhões de dólares de capital social no final do ano passado. Dado que a empresa é detida a 100% pelos sócios, este capital é controlado pelos gestores de topo. Os 2000 empregados da Glencore têm regularmente participação nos lucros. A empresa afirmou que estas distribuições estavam em linha com os bónus praticados nas sociedades anónimas. “Pode considerar-se com segurança que as pessoas de topo da Glencore estão perto de serem bilionários”, afirmou um broker londrino que conhece a empresa. Sob a gestão de Rich, a Glencore tinha diversificado os seus negócios da transacção de matérias-primas para a aquisição de minas, fábricas e outros activos industriais. Sob a gestão de Strothtotte a Glencore reorganizou estes activos, alienando-os parcialmente através da venda de títulos em bolsa. Em 1996, a Glencore meteu no mercado bolsista Nasdaq a Century Aluminium, sedeada na Califórnia. “Tínhamos activos,

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incluindo a fábrica Ravenswood, que não se coadunavam com a esfera do negócio de comércio internacional de trading”, afirmou o presidente executivo da Century, Graig Davis. Após a saída de Rich, a Glencore também reorganizou e desenvolveu uma empresa mineira Suiça chamada Suedlektra. Strothtotte mudou-lhe o nome para Xstrata e contratou Davis para a gerir, o sul-africano que ajudou a formar a BHP-Billiton, a maior empresa mineira mundial. Quando abortou o plano da Glencore para vender as suas minas de carvão australianas e sul-africanas através da Bolsa Australiana, devido aos ataques terroristas do “11 de Setembro”, Davis viu aí uma oportunidade. A Xstrata arranjou maneira de comprar aquelas minas de carvão à Glencore, colocando os seus próprios títulos na Bolsa de Londres. Obteve financiamentos no montante de 800 milhões de Libras, principalmente de instituições financeiras da City. Em 2003, a Xstrata adquiriu o ícone das minas de carvão e cobre australiano MIM Holdings. No mês passado tomou uma participação de 20% na empresa de níquel canadiana Falconbridge. Em resultado da sua estratégia de crescimento através de aquisições, a Xstrata está hoje posicionada em nono lugar da capitalização bolsista no conjunto da indústria mineira mundial. Em 2004, a empresa apresentou um aumento de 75% nas vendas, atingindo 6,1 mil milhões de dólares, e um salto de 280% nos resultados líquidos, atingindo 1,1 mil milhões de dólares. A Glencore continua a evoluir de uma pura sociedade por quotas Suiça para uma sociedade com uma presença selectiva nos mercados financeiros de títulos. No passado, não prestava praticamente nenhuma atenção à percepção pelos investidores, pelos funcionários do Estado, pelos reguladores e pelo público, porque não tinham nada a ver com os negócios da empresa.

Agora as percepções do exterior importam mais.

A história da Business Week de Julho sobre o legado deixado por Marc Rich causou um pequeno abalo no mercado. “O valor das obrigações luxemburguesas da Glencore caiu em relação a títulos com cotações idênticas”, afirmou a analista Joanne Fisher da firma Pioneer, de gestão de fundos, de Boston. A analista disse que o valor das obrigações subiu novamente após a empresa vir anunciar elevados resultados financeiros. A Glencore contesta isto. “Os prémios das obrigações estavam muito

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estabilizados por volta da data de 18 de Julho”, disse um porta-voz da empresa. A transformação da Glencore de uma empresa de elevado secretismo numa empresa semi-anónima está centrada em Londres. A Xstrata, o seu maior investimento aberto aos investidores do mercado, confirma isso. A City de Londres – tal como os gestores da Glencore e da Xstrata – estarão à espera de ver qual o impacto, caso haja algum, numa das mais poderosas empresas mundiais, provocado pelo relatório da Comissão Volcker, no próximo mês.

Glencore: Glencore emerge como colosso industrial

Wall Street Journal, 2 de Agosto de 2007Em colaboração de Ann Davis Glenn R. Simpson,

Paul Glader e David Gauthier-Villars

Baar, Suiça – Quando o fugitivo agente internacional de matérias-primas, Marc Rich, vendeu a sua empresa de comércio internacional, há 13 anos, era mais conhecido por fazer negócios com “Estados-párias”. Desde que saiu, a fechada sociedade por quotas – que mudou de nome para Glencore Internacional AG – elevou-se ao estatuto de colosso industrial, com um domínio mais poderoso do que qualquer outra empresa sobre os mercados de cada uma das riquezas da terra. A Glencore é um dos maiores fornecedores mundiais de alumínio, níquel, zinco e chumbo. É também um dos maiores vendedores de petróleo, cereais e açúcar. Em conjunto com as suas filiais, diz a Glencore, transacciona mais carvão do qualquer concorrente. O alcance da Glencore estende-se até à região de Knoxville, onde a sua subsidiária East Tennessee Zinc adquiriu à Asarco no ano passado, por 65 milhões de dólares, três minas de zinco – uma em Knox County e duas em Jefferson County. As minas estavam fechadas desde 2001, quando os preços do zinco caíram para menos de 50 cêntimos por libra. A Glencore emergiu também como um poderoso concorrente da Alcoa Inc. A Glencore desenvolveu importantes manobras na sombra no decurso da recente consolidação profunda do sector de negócios de matérias-primas. A batalha pelo controlo da empresa canadiana líder no alumínio, Alcan Inc., surgiu quando a Glencore se aliou a empresa russas para

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criar um gigante que fez cair a Alcoa do pedestal de maior produtor mundial. Numa violenta batalha sobre o níquel, a Glencore ajudou uma sua filial a ganhar um longo e complexo combate pela empresa mineira canadiana Falconbridge Ltd. A história da evolução da Glencore, de agente internacional de duvidosa reputação para uma das mais poderosas sociedades por quotas do mundo, foi recriada a partir de entrevistas com pessoas que conhecem intimamente a empresa e de documentos como as brochuras de lançamento da emissão das obrigações. A empresa pretende, desde há muito, fazer negócios com praticamente todas as matérias-primas à volta do globo, desde o cobalto do militarmente devastado Congo ao petróleo do Iraque de Saddam Hussein. O seu longo conhecimento e relacionamento com os regimes mais isolados ou instáveis permite à Glencore ter acesso a recursos naturais a bons preços porque pode agarrar oportunidades que nem todos procuram. A Glencore tem dito que a sua política consiste em exigir às suas empresas e aos seus empregados que cumpram as sanções económicas em vigor nos países com que negoceiam. A sua habilidade comercial e a sua propensão para adquirir activos produtivos, como minas e fundições, tornaram a Glencore num dos grandes ganhadores do boom dos mercados das matérias-primas. As suas vendas no ano passado foram de 116,5 mil milhões de dólares, ultrapassando em cerca de 30% a maior sociedade por quotas dos EUA, a Koch Industries Inc. Os lucros da Glencore, no montante de 5,3 mil milhões de dólares, representam o triplo dos lucros antes de impostos da sociedade por quotas mais conhecida do comércio internacional de matérias-primas, a Cargill Inc. Um reduzido grupo de pessoas partilha esta riqueza. Os 12 mais importantes executivos viram o valor das suas quotas (nesta empresa que é detida pelos próprios trabalhadores) aumentar, para cada um, em média, 87 milhões de dólares, no último ano - mais do triplo dos ganhos do presidente executivo do Grupo Glodman Sachs ligados à capitalização bolsista. E, no conjunto, os 67 mais importantes quadros da Glencore embolsaram também, em média, 8 milhões em remunerações adicionais e benefícios. À medida que a Glencore se posiciona cada vez mais na senda das sociedades anónimas – emitindo milhares de milhões de dólares de obrigações no mercado aberto – a empresa ainda se debate para vencer algum cepticismo ainda existente de que já tenha passado a ser um espécime diferente da empresa que Rich fundou e que abandonou há longo tempo. A não ajudar nisso está um relatório de

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2005 da Comissão de Investigação das Nações Unidas, que afirma que a Glencore pagou milhões de dólares em “luvas” no início da década para ter acesso ao petróleo de Saddam Hussein no âmbito do programa “Petróleo por Alimentos”. A Glencore disse à ONU que não tinha autorizado quaisquer subornos. A evolução da empresa Suiça deve bastante ao seu administrador executivo, Ivan Glasemberg, de 50 anos de idade, um qualificado agente internacional do comércio de carvão, que já foi campeão desportivo sul-africano de provas de marcha. Uma das estratégias de Glasemberg foi a integração de activos produtivos da empresa em sociedades suas filiais cotadas em bolsa, cuja produção é comercializada na sua maior parte pela Glencore.

O resultado consiste em amplificar o seu poder de mercado

A Glencore movimenta tantos minerais metálicos que, por vezes, chega a deter 50 a 90% de todo o níquel e do alumínio contratado para entrega nos armazéns da Bolsa Londrina de Minerais Metálicos, segundo agentes internacionais que integram aquela bolsa. Tais movimentações agressivas não são ilegais: os mercados de matérias-primas dão aos produtores uma considerável margem de manobra na gestão dos seus riscos relativos às cotações. A Glencore conseguiu afastar acusações esporádicas de manipulação do mercado, como aconteceu no mercado do alumínio, argumentando que as suas actividades de produção tinham justificado as suas operações de compra e venda cruzada. “Não há qualquer outra empresa que jogue em tantos domínios diferentes como a Glencore. Nestes mercados, os fornecedores é que estão no lugar do condutor”, diz Mrkus Moll, um analista da indústria de minerais metálicos na Áustria, consultor sobretudo de fabricantes de aço. A história da Glencore é conhecida a partir de 1974, quando Rich fundou a sua própria empresa após a saída em ruptura da Philip Brothers, um histórico agente internacional de minerais metálicos e de petróleo. Em 1983, o Departamento de Justiça americano acusou Rich de evasão fiscal e de ter comprado petróleo ao Irão quando este detinha reféns americanos. Fugiu para a Suiça, onde estava sedeada a sua empresa. Mais tarde, a empresa e a sua anterior filial nos EUA deram-se como culpadas relativamente a algumas das acusações e aceitaram um acordo, pagando cerca de 200 milhões de dólares, mas Rich continuou a ser considerado como fugitivo à justiça. O seu estatuto

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pairou sobre a March Rich & Co. AG até 1994, altura em que alguns dos colaboradores mais próximos de Rich adquiriram a sua participação por 500 milhões de dólares e a empresa mudou de nome para Glencore. Desde então, Rich criou outras empresas com o seu nome, algumas das quais ainda detém. O Presidente Clinton concedeu-lhe o perdão, ao deixar o governo americano em 2001. Na altura da aquisição da empresa pelos seus colaboradores, Glasemberg encontrava-se entre as estrelas ascendentes dos meios do comércio internacional de matérias-primas. Tinha ganho reputação de negociador determinado, que, entre outras coisas, foi até capaz de arranjar compradores para o carvão da sua África do Sul natal, no período em que o país esteve sujeito a um boicote generalizado devido à sua política de apartheid. A Glencore era uma rede de 50 postos avançados em mais de 50 países, geridos por quadros no terreno. Uma das suas funções era manterem contactos com os fornecedores das matérias-primas e com os consumidores, para avaliarem os níveis dos stocks e estimarem a procura local. Esta rede elaborou frequentemente elementos para a CIA. Os agentes de comércio internacional de matérias-primas são as estrelas à volta das quais roda o sistema. A ideia comum de um agente de comércio internacional é o de uma pessoa agarrada a um monitor de computador a fazer previsões rápidas sobre o mercado de futuros. Mas os agentes da Glencore vão frequentemente para a estrada. Glasemberg tornou-se o presidente executivo em 2002. Nesse ano, no meio de outra perturbação do mercado de matérias-primas, a Glencore integrou as suas minas de carvão numa pequena empresa produtora de zinco e ligas metálicas que detinha parcialmente. Esta empresa, a Xstrata PLC, aceitou comprar os activos de carvão por 2,5 mil milhões de dólares e, simultaneamente, colocar as suas acções na Bolsa de Londres. O Presidente da Glencore, Willy Strothtotte, é também o Presidente da Xstrata. Esta empresa entrou então numa espiral de aquisições, tornando-se rapidamente na quinta maior empresa mundial do sector mineiro. A enorme valorização das acções da Xstrata projectou o valor da participação de 35% que a Glencore possui naquela empresa para 21 mil milhões de dólares. A Xstrata é apenas a mais visível das sociedades anónimas controladas pela Glencore. Desde 1987, a Glencore tem vindo a adquirir posições importantes em várias fábricas de produção de alumínio. Em 1996, integrou algumas dessas participações na Century Aluminium Co., cujas acções colocou na Bolsa Nasdaq.

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A Century é hoje o terceiro maior produtor de alumínio da América do Norte. A Glencore, que é possuidora de 29% da Century, vende-lhe as matérias-primas e compra-lhe uma parte do alumínio produzido. Neste tipo de negócios, quando a empresa participada adquire depois mais activos, o domínio do mercado da Glencore aumenta também frequentemente. Um cliente da Glencore, Max Crosland, chefe do sector de combustíveis e logística numa central eléctrica a carvão britânica, diz que compra à Glencore porque sabe que esta empresa tem um acesso muito grande à cadeia de fornecimento. “Quanto mais confiança tivermos no nosso fornecedor de carvão, menos stocks temos de ter”, afirma. A Glencore é conhecida por ultrapassar os obstáculos que se deparam aos fornecimentos. No ano passado, conseguiu fornecer carvão a Israel, apesar dos problemas que paralisavam os carregamentos vindos da Rússia. “Eles encontrarão sempre uma via”, diz Moshe Bornstein, director da National Coal Supply Corp., de Israel. Um dos lances de maior alcance da Glencore teve lugar no sector do alumínio. Em 2004, venceu um leilão por uma empresa jamaicana de extracção e refinação de bauxite, uma matéria-prima do fabrico do alumínio, que era também disputada por uma empresa controlada pelo oligarca Russo, Oleg Deripaska. Passados dois anos, enquanto Deripaska e outro produtor Russo de alumínio discutiam um acordo de participações, Glasemberg propôs-lhes aliar-se a eles, contribuindo com os activos jamaicanos e outros activos para a criação de uma nova empresa. O resultado foi a criação no ano corrente do gigante do alumínio conhecido por United Co. Rusal, de que a Glencore detém 12%. Depois de fechado este negócio, o anterior Nº1 da produção de alumínio, a Alcoa, tentou aguentar a posição pela aquisição da Alcan, mas foi batida pela oferta pública da empresa Anglo-Australiana Rio Tinto. Distanciar-se da sua ligação passada a Marc Rich tem sido um desafio para a Glencore, de tempos a tempos. O relatório da ONU de 2005 sobre as fraudes no programa “Petróleo por Alimentos” no Iraque acusou a Glencore e uma firma na altura controlada por Rich de esquemas de “luvas”, separados mas semelhantes, para terem acesso ao petróleo iraquiano. Até as sociedades anónimas controladas pela Glencore são vítimas do seu passado de negócios com “Estados-párias”. A Xstrata foi recentemente confrontada com questões sobre a Glencore quando quis comprar uma empresa de extracção de urânio na Austrália. O governo australiano autorizou mas impôs que as autoridades fossem previamente consultadas antes de ser concedida

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a comercialização do urânio a qualquer outra entidade. No final, a Xstrata desistiu da aquisição. Os responsáveis da Glencore “estão sob pressão para provarem que são respeitáveis”, quando pretendem estreitar relações com os bancos e emitir títulos de dívida, afirma Mark Pieth, um professor de direito Suíço que é um dos três membros da Comissão que investigou o esquema do “Petróleo por Alimentos” iraquiano. Pieth diz que a empresa está a trabalhar para reforçar os seus sistemas de acreditação, embora “chegue um pouco tarde”. Os investidores das obrigações centram a atenção nos florescentes negócios da Glencore. Na última emissão de títulos de dívida no princípio deste ano, em Londres, os investidores das obrigações subscreveram 10 vezes mais obrigações do que a Glencore tinha planeado. Os trabalhadores da Glencore que detêm participações sociais, que são, no conjunto, 417, não podem dispor das suas quotas a não ser que abandonem a empresa. Os empregados que saem têm de vender as suas participações sociais de volta à empresa. Este esquema pode exigir que a Glencore tenha de recorrer a vultuosos pagamentos em dinheiro quando alguns executivos que acumularam dezenas ou centenas de milhões de dólares de riqueza apareçam a cobrar. As agências de rating dizem que há o risco de a Glencore poder enfrentar uma corrida às saídas durante o presente período de tempos áureos. Glasemberg declarou aos investidores que as transacções das participações sociais estão planeadas e sob controlo.

Matérias-Primas: Glencore entra na luta pelos activos da Russneft”

The Moscow Times.com, 25 de Outubro de 2007Miriam Elder

A luta pela aquisição da empresa petrolífera Russneft intensificou-se na Quarta-feira, quando a empresa Suiça de comércio internacional de matérias-primas Glencore anunciou que tinha entrado na corrida para adquirir alguns dos activos da empresa.

A Russneft tem estado a funcionar sem presidente e sem dono formal desde que o seu fundador, Mikhail Gutseriyev fugiu do país, em Agosto, para evitar aquilo

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a que chamou acusações motivadas politicamente de evasão fiscal. Basic Element, a sociedade de participações sociais do magnata do sector dos metais, Oleg Deripaska, requereu autorização no âmbito das leis anti-monopolistas para comprar a Russneft, mas fontes próximas do negócio dizem que o oligarca já pagou 6 mil milhões de dólares pela empresa. A Glencore, que opera em ligação estreita com os interesses de Deripaska no sector dos metais, pode ter entrado para reforçar a sua oferta pela Russneft, dado que os rivais dos círculos do Kremlin esperam deitar a mão à sétima mais importante companhia petrolífera do país, segundo dizem alguns analistas. A Glencore, que ajudou a financiar a rápida expansão da Russneft ao longo dos últimos cinco anos, poderá estar também a querer recuperar parte dos 2,8 mil milhões de dólares que a empresa lhe deve. A Glencore candidatou-se, em 11 de Setembro, à compra de participações minoritárias em três subsidiárias da Russneft, disse Irina Romanenkova, uma porta-voz do Federal Anti-Monopoly Service. A decisão sobre as ofertas da Glencore e da Basic Elements será tomada depois de 30 de Novembro, segundo afirmou. Estes serviços deveriam ter decidido sobre a oferta da Basic Elements em 4 de Outubro, 30 dias após o pedido de autorização. O prolongamento do período de dois meses foi atribuído “ à necessidade de avaliação adicional das transacções e da recolha de informações adicionais”, informaram estes serviços numa declaração, no princípio deste mês. A Russneft não conseguiu eleger um presidente numa assembleia realizada em 5 de Outubro e tem ainda de marcar uma nova data para as próximas eleições. O porta-voz da Glencore, Lotti Grenacher, confirmou a oferta de compra feita pela Glencore mas acrescentou que a empresa não tinha interesse em adquirir a totalidade dos activos. “Nem a Glencore, nem qualquer das suas subsidiárias apresentou qualquer pedido ao Russian Federal Anti-Monopoly Service para adquirir qualquer participação social da Russneft”, declarou Grenacher em comentários por e-mail. Continua a especular-se que a Rosneft, presidida pelo poderoso sub-chefe de gabinete do Presidente Vladimir Putin, Igor Sechin, pretende comprar a empresa. O porta-voz da Rosneft. Nikolai Manvelov, disse, na Quarta-feira, que esta empresa não tinha qualquer interesse na Russneft, afirmando que “Não estamos a pensar comprá-la”. A batalha pelos activos da empresa intensificam-se no momento em que Putin se aproxima do fim do mandato, com grupos rivais a pretenderem assegurar posições antes dele

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sair após as eleições presidenciais de Março. “Isto não é uma transacção comercial, é uma disputa política”, disse Chris Weafer, responsável pelo departamento de estratégia da UralSib. A sociedade por quotas Glencore, o maior agente mundial de comércio internacional de matérias-primas, detém uma posição importante no comércio dos minerais metálicos e do petróleo russos, mas não revela detalhes das suas transacções comerciais. O seu volume de negócios, em 2006, totalizou 116,5 mil milhões de dólares, com activos avaliados em 47,1 mil milhões de dólares. A empresa, um dos mais activos agentes de comércio internacional de matérias-primas na Rússia depois da era soviética, foi fundada em 1974 pelo financeiro Marc Rich. Marc Rich vendeu a empresa aos seus actuais proprietários em 1994. Rich refugiou-se na Suiça após ter sido acusado pela justiça dos EUA de evasão fiscal e de violação das sanções sobre o Irão. O Presidente Bill Clinton concedeu-lhe o perdão em Janeiro de 2001. No início deste ano, a Glencore fundiu os seus activos no sector do alumínio com a Russian Aluminium, pertencente a Deripaska, e com a SUAL, de Viktor Vekselberg, para criar a United Company RusAl. “Se a Glencore conseguir adquirir os activos, só poderemos concluir que eles têm uma relação próxima com o Kremlin e que confiam neles para serem proprietários desses activos”, afirmou Weafer. A Glencore solicitou autorização para adquirir participações sociais nas subsidiárias da Russneft, Uralskaya Neft, Udmurtskaya Natsionalnaya Kompania e na Agan Neftegazgeologia, disse Romanenkova, dos serviços anti-monopolistas. A Basic Elements, que solicitou autorização para comprar a Russneft através de uma empresa registada no estrangeiro chamada Continental Group Management, não especificou se se candidatava aos 100% das acções da empresa. “Nós candidatamo-nos ao controlo da empresa”, afirmou o porta-voz da Basic Elements, Sergei Rybak na Quarta-feira. Recusou comentar se a Basic Elements estava disposta a partilhar a Russneft com a Glencore. Várias fontes próximas do negócio dizem que Deripaska já pagou a Gutseriyev 3 mil milhões de dólares, com uma garantia adicional de 3 mil milhões, para sacar a empresa. Gusteriyev, cuja fortuna está estimada em 2,9 mil milhões de dólares, segundo a Forbes, tem vivido em Londres desde que saiu da Rússia em Agosto último, pouco tempo depois do funeral do filho, que morreu num acidente de automóvel que permanece envolto em mistério. O governo britânico recusou comentar na Quarta-feira se tinha recebido algum pedido de asilo político

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de Gutseriyev. Gutseriyev saiu da presidência da Russneft em 31 de Julho depois de denunciar “perseguição sem precedentes” por parte das autoridades fiscais, numa carta tornada pública. As autoridades fiscais exararam 11 acusações de crimes fiscais contra oito actuais e anteriores sócios da sociedade por quotas Russneft, tendo congelado todas as participações sociais e todos os activos. O ministério público emitiu mandatos de detenção sobre Gutseriyev por acusações de práticas comerciais ilegais e evasão fiscal. Gutseriyev fundou a Russneft em 2002, depois de deixar o seu cargo de responsável máximo da empresa petrolífera estatal Slaveneft.

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PArTE iii.

1. pARAíSOS FISCAIS

Os Paraísos fiscais e o mal-desenvolvimento

Attac Liège, www.local.attac.org/liege/pdf/ParadisFiscauxDeveloppementFGobbe.pdf

Introdução: O nascimento de um novo capitalismo “mundializado”, baseado nas tecnologias de telecomunicações, nos computadores, nos produtos financeiros, que asseguram uma diversificação das colocações e maior segurança (SICAV, derivados, opções, Hedge Funds...), uma redução do papel do Estado (tanto a nível social como de serviços públicos) e uma procura em aumentar a taxa de lucro, nomeadamente pela mobilidade dos capitais (capitais de curto prazo, diminuição e ausência de controlo de câmbios...), provocou uma multiplicidade de locais e de derrogações que permitem escapar às obrigações para com o Estado e optimizar os lucros. É a este conjunto que se pode designar por “mundialização financeira” que encarna claramente a expressão “governo dos accionistas”. O objectivo consiste em aumentar os lucros escapando aos impostos reclamados pelos Estados-nações, assegurar lugares de relativa segurança num mundo de instabilidade financeira (porto de abrigo-paraíso fiscal) e também manter paradoxalmente (?) uma certa opacidade no conjunto da actividade económica. Não devemos esquecer que Adam Smith, pai fundador do liberalismo, reclamava ao lado do produtor e do consumidor, a existência da “mão invisível” como elemento essencial do mercado. Talvez possamos nós ver, nesta sequência, nos paraísos fiscais um dos elementos de opacidade e de não transparência essenciais ao capitalismo e ao seu funcionamento?

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De que se trata?

De espaços jurídicos (territórios) ou de Estados que dispõem essencialmente das quatro características seguintes:

1) a autonomia política;2) um espaço legal independente; 3) um regime fiscal vantajoso ou de fraca fiscalidade (especialmente para os

não residentes); 4) a existência de sigilo bancário (de facto ou legalmente inscrito como na

Suíça) e/ou o apoio em diversos mecanismos ou sociedades para fazer transitar fundos de maneira opaca ou anónima (exemplo: os trusts e as sociedades-ecrã).

Onde é que se situam?

Em geral na periferia dos grandes centros financeiros (a Suíça, o Liechtenstein e o Luxemburgo, entre Paris e Frankfurt; as ilhas situadas entre a França e a Inglaterra, entre Paris e a City de Londres; as Caraíbas e os países da América Latina, perto dos Estados Unidos (Nova Iorque).

Existe uma relação histórica entre as grandes praças financeiras (onshore) e os paraísos fiscais (off-shore).

As STN (sociedades transnacionais) americanas beneficiariam, desde 1945, de benefícios fiscais importantes (Foreign Sales Corporation), se não repatriassem os seus lucros para os EUA, o que incentivou o desenvolvimento de zonas de baixa fiscalidade. Os ingleses seguiram o exemplo e transformaram muitos dos seus minúsculos territórios da Commonwealth em zonas de baixa fiscalidade aquando da descolonização (1950-60); procuravam assim apoiar o seu próprio desenvolvimento dentro da sua zona financeira (reactivação da City em relação ao dólar). Na Europa, o Luxemburgo, a Suíça, o Mónaco... e a Bélgica dispõem desde há muito tempo de mecanismos de incentivos à fraude que se desenvolveram com a desregulação

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financeira (supressão de controlo dos câmbios e a constituição de um grande mercado financeiro), bem como a criação de uma zona euro (moeda única). A Ásia, a África, o Médio Oriente, o Pacífico desenvolveram igualmente centros off-shore no seguimento do desenvolvimento da mundialização neoliberal dos anos 90.

Qual é a sua importância?

Pode-se verdadeiramente falar de uma economia “paralela”. Em 1970, considerava-se que havia 25 paraísos fiscais e hoje, 2005, fala-se em 72 paraísos fiscais: os paraísos fiscais estão presentes em todas as zonas geográficas. A riqueza off-shore dos particulares ricos é avaliada em um quarto da fortuna mundial. Mais de 50% dos activos (em dinheiro e em títulos) dos latino-americanos ricos são colocados off-shore e cerca de 70% no caso do Médio Oriente. Perto de metade do comércio mundial passa pelos paraísos fiscais através das sucursais das STN. Estes centros off-shore, que representam apenas 1,2% da população mundial e 3% do PIB planetário, acolhem, por exemplo, 31% dos lucros e 26% dos activos das STN americanas. Calcula-se que anualmente se criam 150.000 sociedades opacas

Quem recorre a estes espaços?

As STN, que desenvolvem redes de sucursais em diversos países para diminuir as suas despesas fiscais deslocando os seus lucros para os lugares de mais baixa tributação (métodos utilizados: sobre ou sub/facturação, preços de transferência, sub-capitalização, patentes...). Em 2003, existia 870.000 sucursais para 64.000 grupos multinacionais; em 1990, 175.000 sucursais para 37.000 grupos. Mais de 50% das transacções mundiais fazem-se entre sociedades de um mesmo grupo.

Exemplos: Enron ou Parmalat. A Enron, sociedade americana de energia, foi declarada em falência no seguimento das maquilhagens contabilísticas: 3500 sociedades filiais nos paraísos fiscais, entre as quais 440 matriculadas só nas Ilhas Cayman. A Parmalat recorria igualmente a montagens entre a sociedade-mãe, sucursais nas Caraíbas e mercados na América Latina e mais especialmente no Brasil.

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Mas há também empresas públicas como a Elf, Total em África ou empresas mais pequenas na pilhagem da África Central (relatório Kassem, das Nações Unidas), as sociedades petroleiras americanas e inglesas na Nigéria... 52% das maiores sociedades cotadas na Bolsa em Londres reconheceram utilizar esquemas de optimização fiscal. A Microsoft registou em 1999 um lucro de 12,3 mil milhões de dólares e não pagou nenhum imposto nos EUA! A firmas como a Colgate ou a Goodyear foram mesmo restituídas somas pelo fisco americano. Em 2000, 94% das sociedades americanas pagavam menos de 5% dos seus lucros, enquanto a taxa nominal é de cerca de 30%. A Irlanda e o seu “milagre económico” assentam na evasão fiscal praticada pelas sociedades farmacêuticas e de informática americanas! O exemplo de Volcafé, que utilizava uma sucursal off-shore em Jersey, “Cofina”, para acumular lucros por isenção de impostos, foi analisado pela ONG suíça “La Declaration de Berne”, em 2004. As grandes fortunas privadas (que querem colocar mais de um milhão de dólares de activos), cujo número em 2003 foi calculado em 7,7 milhões, são assediadas pelos bancos especializados em serviços “específicos” (private banking) que se esforçam em responder à sua preocupação de optimização financeira e fiscal. As somas confiadas a esta gestão “específica” ascendem aproximadamente a 15.000 mil milhões de dólares (um terço dos quais é tratado na Suíça).

Quem trabalha nesta indústria da evasão e de fraude fiscal?

Trata-se de um sistema bem rodado. Os bancos são os primeiros a abrir sucursais nos paraísos fiscais, mas também os revisores de contas e os auditores que transformam e manipulam os balanços das sociedades ou declarações de impostos, os gabinetes de advogados que trabalham para optimizar fiscalmente as fortunas dos seus clientes e as suas, tanto quanto possível na legalidade (utilização dos nichos fiscais ou montagens jurídicas complexas). Em 2003, grandes firmas de auditoria (que são com efeito juízes e partes!), como a KPMG, a Deloitte e Touch (que asseguram a revisão da Administração dos EUA), foram condenadas pela justiça americana, por terem vendido a clientes privados e a STN montagens financeiras que lhes permitiram praticar de maneira voluntária (agressiva) a fraude e a evasão fiscal. A KPMG teria recebido pelo menos 180 milhões de dólares pela venda destes

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produtos e o fisco teria perdido pelo menos 85 mil milhões de dólares! Aconselhado pela Deloitte e Andersen, a Enron tinha declarado, entre 1996 e 1999, um volume de lucros de 2,3 mil milhões de dólares sem estar a pagar qualquer imposto. Para esse efeito, a Enron dispunha de uma rede de 440 sucursais, nas ilhas Cayman.

Quais são as consequências da existência dos paraísos fiscais e qual a ameaça para o desenvolvimento?

Em primeiro lugar, os paraísos fiscais são interfaces, como denunciou um relatório da Oxfam, entre o dinheiro sujo (crime, armas, droga...), cinzento (fraude fiscal ou subtracção à administração fiscal do país onde o imposto deveria ser pago) e o branco (optimização fiscal). Após o 11 de Setembro, existe um dilema para a actual Administração dos EUA que é, por exemplo, como controlar a margem (os paraísos fiscais nomeadamente) sem, no entanto, estar a tocar naquilo que dinamizou as suas STN? É por isso que a Administração Bush travou as iniciativas da OCDE em matéria de lista negra dos paraísos fiscais. Se se considera que a paz é um elemento essencial do desenvolvimento, os paraísos fiscais são um factor de insegurança, mesmo sob os seus novos aspectos muito new look e muito “clean”. Os paraísos fiscais atribuem às STN vantagens concorrenciais exorbitantes em relação às PME e às sociedades locais. Privilegiam igualmente as sociedades “antigas” em relação às “novas” (Start-up). Os paraísos fiscais contribuem por essa via para aumentar a dependência económica e política no que diz respeito às todo-poderosas STN nos países em desenvolvimento (PED), onde se implantam e onde o investimento é raro. A agricultura e os recursos mineiros constituem dois campos de acção importantes das STN privadas como, por exemplo, em África. Os paraísos fiscais são os lugares por excelência de “fuga dos capitais” ou da subtracção fiscal provenientes dos PED. No caso de crise económica, como se tem visto recentemente, atraem os activos (na Argentina, o valor estará entre 50 a 100 mil milhões de dólares entre 1991 e 2001) e contribuem para destabilizar os equilíbrios monetários, provocando desvalorizações. Os paraísos fiscais atraem as grandes fortunas (e os lucros das STN) que existem nos PED: na América Latina – 50% dos activos – e no Médio Oriente – 70% dos activos – são colocados off-shore e se na África subsahariana os dados são raros, fala-se de 30% do PIB desta região que

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desapareceu em off-shore na segunda metade dos anos 90. Estas colocações permitem fugir aos impostos e, por conseguinte, às receitas fiscais dos PED, deslocando assim a carga fiscal para as pessoas menos privilegiadas e mesmo para as mais pobres. Privam os Estados de receitas que devem servir para os investimentos sociais e básicos (ensino, saúde, infra-estruturas como estradas e os portos). As reentradas fiscais representam apenas 11% do PIB nos PED e 26% nos países industrializados! O FMI e o Banco Mundial com a sua preocupação em não tocar na liberdade de circulação dos capitais, pedem aos PED que desenvolvam um imposto sobre o consumo (IVA) e as vendas; este imposto é frequentemente o único imposto real nos PED; no entanto, é profundamente desigual e por conseguinte injusto. Um “pobre” consagra uma muito maior parte dos seus rendimentos à alimentação, vestuários, transportes, alojamento, que uma pessoa que tem grandes rendimentos! Os paraísos fiscais enfraquecem as capacidades democráticas dos PED, sujeitando-os aos diktats das STN que utilizam como arma de chantagem os repatriamentos dos seus lucros ou mesmo a deslocalização dos seus investimentos para outros países. A ameaça e a violência (milícias privadas, intimidações e não aceitação de organizações sindicais) acompanham este tipo de investimento ligado a regimes corrompidos e ditatoriais que utilizam, por seu turno, os paraísos fiscais para esconder os seus roubos (Mobutu, Pinochet...). Os paraísos fiscais alimentam a concorrência fiscal apresentando-se como “modelo” de desenvolvimento, que beneficia duma gestão sã, pouco burocrática, aberta porque voltada para os não residentes. Com efeito, alimentam a “corrida para o imposto zero”, na qual a União Europeia (UE) se encontra comprometida.

Que fazem as instituições internacionais?

A nível internacional, a OCDE (1998) e o GAFI (1989) ligaram-se ao Fórum de estabilidade financeira (1999) para combater as práticas de concorrência desleal. Mas falta a vontade política para se atacar a raiz dos problemas: a evasão e a concorrência fiscal. A OCDE fala hoje em termos de cooperação ao nível das legislações fiscais e, do seu ponto de vista, existem apenas quatro paraísos fiscais (termo utilizado para designar os países ou territórios não-cooperativos), quando à partida contava mais de quarenta.

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A UE pôs em prática ao nível da poupança um princípio de troca automático de informações (o oposto do sigilo bancário), mas o Luxemburgo, a Áustria e a Bélgica recusam-se e preferem taxar na fonte e manter o seu segredo bancário, alinhando com a Suíça que em negociações com a UE chegou ao mesmo resultado.

Na OCDE, desenvolveu-se um registo de troca de informações, mas esta não é automática e numerosos países-membros e externos dos PED recusam-se ou não fazem parte deste clube de ricos.

A ONU retoma uma tentativa feita sob a égide da Sociedade das Nações nos anos 20, mas até agora constituiu apenas um Comité de peritos em matéria de fiscalidade, não ligado sequer ao Conselho económico e social (UNOSOC). Quer isto dizer que o caminho a percorrer ainda será longo. No entanto, esta pergunta é central: como assegurar o financiamento quer dos países desenvolvidos quer dos países em desenvolvimento, sem administração fiscal, sem uma percepção correcta e justa do imposto, sem no fundo se estar a mobilizar os recursos próprios de cada país?

O relatório de Monterrey, consagrado ao financiamento do desenvolvimento, defendeu a necessidade de responder aos objectivos do Milénio, que visam reduzir a nível mundial a pobreza para metade em 2015, e de colocar a tónica não somente sobre a dívida ou a ajuda pública ao desenvolvimento, mas também sobre a fiscalidade e a fuga dos capitais que estão na origem dos desequilíbrios. Os capitais mobilizados retornam seguidamente ao Norte. Considera-se que 5 triliões de dólares foram assim deslocados dos países pobres para o Norte desde os anos 70. Quando se sabe que 25 a 50 mil milhões de dólares são necessários para os objectivos do desenvolvimento e que o presente do G8 de anulação da dívida dos países pobres, anunciado por Tony Blair em Julho passado, era desta ordem, compreende-se que se está ainda muito longe de se atacar os mecanismos fundamentais dos desequilíbrios. No entanto, Jeffrey Owens, responsável pelas questões fiscais na OCDE (Financial Times, Novembro de 2004), não hesitou em afirmar que a questão fiscal se situará na agenda dos próximos anos e que a fiscalidade assume nos dias de hoje uma importância semelhante à que assumiram as questões do ambiente há 10 anos.

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Conclusão: “o imposto é o preço da civilização” Oliver Wendell Holmes, 1904.

Pagar os seus impostos é a primeira e a mais importante forma dos cidadãos e das empresas se implicarem na sociedade. As receitas fiscais são elas próprias o sangue do contrato social. Os governos do mundo inteiro podem lutar actualmente para assegurar uma protecção social e serviços públicos de qualidade. Os cidadãos “comuns” (assalariados e de pequenos rendimentos) asseguram uma parte crescente da carga fiscal, enquanto as grandes sociedades e as pessoas com fortuna escapam às suas obrigações através de montagens e de deslocalizações para os paraísos fiscais (centros off-shore). A amplitude deste fenómeno tornou-se de tal forma importante que o futuro dos sistemas sociais e dos serviços públicos de numerosos países passa a estar ameaçado.

O que fazer?

Cooperação e não competição.

As soluções devem elaborar-se a um nível mundial. Os mercados dos capitais e os investidores institucionais trabalham a um nível mundial. Os sistemas fiscais continuaram a ser em grande parte nacionais. Encontram-se assim situados numa espiral de impostos virada para baixo. Os paraísos fiscais exploram as diferenças entre os países graças à sua baixa fiscalidade e ao seu sigilo bancário. É necessário um quadro internacional de regulamentações para proteger os sistemas fiscais nacionais das práticas ilegais e abusivas, acabar com a competição e com a concorrência fiscal e permitir a troca automática de informações entre autoridades fiscais. A rede internacional para a justiça fiscal (Tax Justice Network: TJN) constituiu-se para responder a estes desafios e desenvolver um quadro coerente de cooperação fiscal. Enumeremos aqui algumas medidas importantes que se poderiam tomar a nível mundial:

1. No âmbito de um acordo global de cooperação fiscal, deve incluir-se a extensão de um princípio de troca automática de informações relativas às sociedades, aos trusts e às pessoas singulares. O formulário desenvolvido pela OCDE pode

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servir de referência. Não existe nenhuma razão que proíba um trust de divulgar: a identidade do fundador, as disposições do acto constitutivo e as identidades dos fideicomissários (trustees), a identidade do beneficiário (potencial, eventualmente) bem como as contas anuais.

2. Para lutar contra os preços de transferências internos às STN (ou seja 5% das empresas mundiais), é necessário prosseguir as investigações para identificar os elementos básicos de uma definição comum dos lucros passíveis de imposto e a distribuição destes lucros entre cada país referido, seguindo o modo de tributação próprio a cada um deles. O sistema unitário praticado nos Estados Unidos com base numa estrutura federal combina os volumes das vendas, os custos salariais e os activos utilizados em cada Estado (tributação sobre base unitária: Unitary Basis).

3. Deve ser criada uma autoridade fiscal mundial para controlar as consequências das políticas fiscais no comércio e para assegurar a protecção das políticas fiscais dos diferentes Estados contra as práticas abusivas e a distorção dos mercados. As Nações Unidas seriam mais adequados que a OCDE (clube de países ricos). Dispõe já de um Comité de peritos sobre a cooperação internacional em matéria fiscal. A justiça fiscal não deveria afectar a autonomia dos Estados que é muito afectada pelos paraísos fiscais.

4. É urgente prestar uma ajuda internacional aos países em desenvolvimento, para que estes instaurem regimes fiscais coerentes, administrações fiscais eficazes, procedimentos rigorosos que obriguem as STN a dar conta das suas acções, impondo-se normas contabilísticas internacionais. Devem igualmente ser aplicados procedimentos de cobrança à escala internacional, de modo que as grandes empresas paguem os impostos devidos aos países em desenvolvimento.

Irlanda, paraíso fiscal da Microsoft e de sociedades americanas.

Todos os valores do quadro abaixo estão em dólares. O imposto sobre as sociedades é de 35% nos Estados Unidos e de 12,5 % na Irlanda.

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Sociedades mães Tipos de

fabricação

Filial irlandesa-

filial filha

Filial-mercados

da filial

Volume de

negócios

Lucros antes de

imposto

Impostos % de imposto

sobre os lucros

Apple Informática, Ipod Apple Computer

Inc. Limited

Europa, Ásia

(fabricação)

Europa, Ásia,

Canadá e África

do Sul (vendas e

2,6 milhares de

milhões de dólares

214,1 milhões 8 milhões

(27/09/03)

3,7%

Symantec Software de

segurança

Symantec Limited Filiais:

Holanda, China,

Emiratos, Rússia

679,6 milhões 253,7 ? ?

eBay Vendas pela

Internet, em linha

PayPal

International

Limited

Contas na

Inglaterra,

Alemanha, França,

Itália, China e

Canadá

59,75 milhões

(Junho de 2003

a Dezembro de

2004)

Perda de 14,6

milhões

0 0 possibilidade

de não pagar

impostos futuros

Oracle

Corporation

Software Oracle EMEA, Ltd 2 milhares de

milhões (fim de

Maio 2004)

553 milhões 60,85 milhões, dos

quais 9 milhões

de taxas ao

estrangeiro

11

Rede de filiais

irlandesas

recentemente

criadas

Xilinx Concepção de

circuitos (semi-

condutores)

Xilinx Holding

Two

Pertence a Xilinx

Holding (Ilhas

Virgens Britânicas)

320 milhões

(03.04.04)

67,9 milhões 0 0

Synopsis (US) Filial irlandesa 476,8 milhões

devidos ao fisco

US (IRS)

Salesforce (US) Software Internet SFDC

International

Limited

Direitos de

propriedade

intelectual com

outras filiais

0 (filial registada

recentemente na

ilha de Man)

0

Boston Sc. Inc. Um empregado 475 milhões

Microsoft (Estado

de Washington)

e uma sociedade

mãe em Round

Island, Nevada-Us.

Emprego total

nos EUA: 29 mil

Software Sociedade filial:

Round Island One

Ltd (Dublin) no

prédio dum perito

em “protecção

fiscal”. Emprego

na Irlanda: 1.000

Patentes, registos

dos produtos de

software vindos

dos EUA; venda

para a Europa,

Médio Oriente,

África

40 milhares de

milhões dos

quais 30 milhares

milhões em

patentes

Benefícios antes

de impostos na

Irlanda: 9 milhares

de milhões;

3,88 milhares de

milhões em 2004

Impostos pagos

na Irlanda: 300

milhões ou seja

77 USD por

habitante

3%

Além disso, a Microsoft paga apenas 17 milhões de dólares de impostos em 20 países que contam 300 milhões de habitantes. Por esta montagem, a Microsoft

poupa cerca de 500 milhões de dólares de impostos por ano.

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Historial da configuração das sociedades americanas na Irlanda.

1. Em 1969, a Pfizer Inc (Soc. americana principalmente farmacêutica) instala uma fábrica de ácido cítrico. Vantagens da Irlanda na época: benefícios fiscais (10% de impostos sobre os lucros das sociedades, comparados com os 30 a 40% nos outros países industrializados), pessoal que fala inglês, baixos salários, tradição de imigração para os EUA, abertura comercial da Irlanda com a entrada desta na CEE (1973).

2. A forte expansão dos anos 90 com numerosas firmas de sociedades farmacêuticas e de informática (incentivos fiscais sobre os produtos de software): Intel Corp., Dell, Gateway Inc., HP, IBM. As vendas fazem-se via sucursais situadas principalmente na Europa e as sociedades irlandesas mantêm os lucros graças aos direitos sobre as patentes e direitos de propriedade. Seguidamente, as vendas (e por conseguinte os benefícios) fazem-se directamente a partir da Irlanda, suprimindo certas sucursais europeias com impostos demasiado altos e dispendiosas.

3. O governo irlandês adoptou em 2000 uma estratégia de “sociedade baseada no conhecimento”, paralela à da cimeira europeia de Lisboa. Entre diferentes medidas, atribui um novo incentivo fiscal. Desenvolve a Investigação e Desenvolvimento (I&D) e suprime o imposto de 9% sobre as vendas e as transferências de propriedade intelectual. Incentiva a criação de zonas de desenvolvimento.

4. Anúncios de projectos de investigação de firmas americanas (desde 1/1/2004) para justificar a deslocação dos direitos de propriedade intelectual para fora dos EUA. A firma deve poder demonstrar ao fisco americano, por acordos de “divisões de custos”, que a sua unidade off-shore é pelo menos parcialmente responsável pelas inovações: assim foi o caso da Lucent Technologies, Bell, IBM, HP, Dell, Pfizer, Palm Computing. A Dell anunciou recentemente que deixaria a Irlanda se o imposto for aí aumentado. As cinco firmas entre as dez aí mais rentáveis, em 2004, eram americanas. De sublinhar também os lucros muito importantes (2.° no hit parade) da Janssen Pharmaceutica, sucursal belga da Johnson e Johnson (1,42 mil milhões de euros).

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Um contexto de injustiça fiscal generalizada

Coordination SUD, doc-aea.aide-et-action.org/data/admin/article_1925.pdf

Régis Mabilais

Os sistemas fiscais sob pressão.

A palavra de ordem das instituições financeiras internacionais é “criar um ambiente propício ao investimento”, o que é suposto ser o principal factor para a redução da pobreza, e esta resulta de um raciocínio míope quando afecta quer as taxas de imposição ou a legislação social e a ambiental. Com efeito, estes estímulos, conjugados à chantagem das multinacionais, de modo a que os governos, quer a Norte quer a Sul, multipliquem as isenções de impostos a seu respeito e reduzam as barreiras aduaneiras, reduzem os já magros orçamentos dos países do Sul e levam à alteração, por muito tempo, do financiamento das políticas sociais. Em média, as reentradas fiscais representam apenas 11% do PIB nos países em desenvolvimento contra 26% nos países industrializados.

A deslocação da carga fiscal para os países mais pobres.

Globalmente, as empresas pagam cada vez menos impostos: entre 1983 e 1996, a imposição fiscal sobre as firmas americanas nos países em desenvolvimento teria caído de 54% para 28%. No caso de um grande investimento mineiro na Zâmbia, a Anglo American Company obteve uma imposição de 25%, em vez dos 35% habituais. No Peru, quase nenhuma empresa estrangeira paga imposto. “Only poor people pay taxes”. Em contrapartida, a carga de imposto sobre os mais pobres aumenta. No Brasil, entre 1996 e 2001, o imposto sobre os rendimentos do trabalho aumentava de 27%, a contribuição para a segurança social de 66%, enquanto o imposto sobre as sociedades diminuía 16% e o imposto sobre o património rural descia para metade.

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Um efeito de sapa sobre a democracia.

Hoje, as populações do Sul vêem largamente a satisfação dos seus direitos fundamentais depender de financiamentos externos incertos e de efeitos nefastos em termos de construção democrática. Historicamente, quanto mais os Estados institucionalizam a recolha de dinheiro público junto de uma larga fracção da população, quanto mais são obrigados a prestarem contas. Pelo contrário, a dependência de rendimentos adquiridos com menos esforço (ajuda externa, rendimentos do petróleo ou os minérios) tende a estar ligada com a manutenção de regimes muito pouco democráticos e corruptos. Para aos países menos avançados em especial, para os quais metade do orçamento, em média, depende da ajuda internacional, o problema é real. Assim, o facto dos países endividados terem que responder às exigências dos credores internacionais, em vez de terem que responder às aspirações dos seus povos, gera pesadas frustrações e enfraquece duravelmente a credibilidade dos processos democráticos. A hostilidade que inspiram os Estados Unidos na América Latina, a França numa parte da África, o FMI e o Banco Mundial em numerosos países, privados do direito de escolher o seu destino, não se explicam de modo diferente. Além disso, o crescimento das desigualdades, ligado à deslocação da carga fiscal, enfraquece profundamente a coesão social, cimento indispensável da construção democrática. Por último, a liberalização dos fluxos de capitais, que preconiza o FMI, em conjunto com o colocar em concorrência os sistemas fiscais, gera crises financeiras com efeitos sociais e políticos devastadores, como no Sueste Asiático, no Equador ou na Argentina.

Os centros off-shore, exacerbação da minimização fiscal e da impunidade.

Uma concorrência fiscal desleal.

Pela sua superfície e sua fraca população, os paraísos fiscais estão numa situação bem específica de baixos níveis de despesas públicas, o que lhes permite praticar a minimização fiscal ao menor custo. Também pode falar-se de concorrência desleal. Como é que a República da África do Sul, que já diminuiu os impostos sobre as

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sociedades de 48% para 30% desde 1994, pode resistir perante o desenvolvimento na região de centros off-shore como as ilhas Maurícias, que oferecem um nível de imposição fiscal de 1,5%? Os paraísos fiscais jovens permitem aos actores mais potentes da finança e da economia internacional actuarem sobre todas as brechas abertas por este sistema, e com toda a legalidade. Além disso, este sistema favorece a constituição de caixas negras ou de remunerações paralelas à cabeça das grandes empresas. É por isso que 150.000 sociedades off-shore continuam a criar-se anualmente. As empresas transnacionais utilizam a multiplicidade das suas sucursais para efectuar transferências de lucros (para as sociedades situadas off-shore), transferências via preços (sobre-facturação das trocas entre sucursais de modo que o lucro só apareça no lugar “certo”) ou pela via da dívida (sub-capitalização das sucursais situadas nos países fortemente taxados). Foi fingindo que funcionava com prejuízos que a Exxon, por exemplo, pôde evitar, durante 23 anos, pagar o mínimo imposto ao Estado chileno sobre a exploração do cobre da mina “Disputada de las Condes”.

Uma espiral de custos exorbitante para os países do Sul.

A corrida para o imposto zero está lançada – Jersey oferece já essa possibilidade. Em meados dos anos 70, havia cerca de 25 paraísos fiscais; o FMI identifica hoje mais de 60, pelos quais transita a metade do comércio mundial e onde os activos domiciliados ascendem a 11.000 mil milhões de dólares, enquanto estes territórios representam apenas 3% do PIB mundial. A esse respeito, a Europa não aparece como exemplar, uma vez que, no interior do continente, operam uma dúzia de paraísos fiscais como a Suíça, o Luxemburgo, mas também como as ilhas da Mancha, entre a Inglaterra e a Normandia, Gibraltar, Malta, Chipre, o Liechtenstein, Mónaco e Andorra. De acordo com as estimativas mais baixas, o custo desta calamidade para os países do Sul ascende a valores entre 50 a 70 mil milhões de dólares; e as estimativas mais elevadas apontam para 600 mil milhões de dólares – com que se poderiam financiar várias vezes os Objectivos do Milénio para o Desenvolvimento (OMD). A diferença entre estes valores explica-se essencialmente pela consideração ou não da fuga dos capitais. O Brasil, por exemplo, viu “saírem” 4 mil milhões de dólares em 2001, só para as Bahamas e para as ilhas Cayman. Os países do Norte

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não estão protegidos deste problema: nos Estados Unidos, as autoridades fiscais consideram uma ausência de receitas de mais de 300 mil milhões de dólares.

Uma caixa preta para a criminalidade transnacional

Combinando instrumentos capazes de ocultar a origem dos fundos e a recusa de cooperar com a comunidade internacional em matéria de investigações fiscais e criminosas, os paraísos fiscais e judiciais oferecem um espaço privilegiado de conversão entre o mundo das transacções financeiras legítimas e o dinheiro de origem criminosa. Constituem por conseguinte um incentivo à corrupção transnacional e ao desenvolvimento das redes criminosas e mafiosas: o dinheiro da droga, da prostituição, do terrorismo, do tráfego de armas, do abrigo dos pavilhões de conveniência, etc. Não é surpreendente, portanto, que estes tenham sido utilizados em grande escala na maior parte dos escândalos financeiros destes últimos anos. O grupo Enron, por exemplo, muito tempo considerado o modelo do sucesso e da sofisticação financeira ao serviço dos seus clientes, criou uma miríade de sucursais off-shore (881, das quais 692 nas ilhas Cayman), que lhe permitiam esconder a sua verdadeira situação financeira e subtrair ao pagamento do imposto cerca de 1,5 mil milhões de dólares de 1996 para 2000, ocultando as actuações delituosas dos seus dirigentes.

Os países do Sul são as primeiras vítimas deste sistema, que favorece a pilhagem dos seus recursos naturais e a corrupção dos seus dirigentes. A grande corrupção é contrária ao desenvolvimento dos países do Sul e mina também as democracias ocidentais, atingindo às vezes o próprio coração do poder. Em França, “o processo Elf ” actualizou um sistema de extorsão, em regra do petróleo africano, mesmo, se necessário, ao preço de guerras civis como no Congo-Brazzaville, com a cumplicidade de uma parte das elites africanas e da classe política francesa, remunerados via sociedades off-shore ou na Suíça. É por isso que a campanha “publiquem o que pagam” quer promover um objectivo de transparência que permitirá libertar receitas que serão bem-vindas para financiar os OMD. Os traficantes de armas gostam particularmente dos circuitos ocultos, como o recordou

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o processo Falcone/Pasqua relativo a Angola. O custo para os países do Sul foi considerável: durante a ditadura de Abacha, 55 mil milhões de dólares teriam assim sido desviados da Nigéria (cuja dívida atinge 31 mil milhões de dólares); considera-se a fortuna do clã Mobutu em mais de 8 mil milhões de dólares, a de Suharto entre 4 e 40 mil milhões de dólares... Na Rússia, a fuga de capitais atingia 22 mil milhões de dólares por ano, em média, entre 1992 e 1997.

Para uma regulação fiscal internacional.

De um ponto de vista meramente económico, não pode haver funcionamento harmonioso das trocas internacionais sem concorrência leal, respeito das regras do direito e transparência nas transacções. Uma regulação dos fluxos financeiros internacionais é, por conseguinte, indispensável para promover uma maior fiabilidade da informação financeira e reduzir a instabilidade do sistema financeiro como um todo. Esta regulação deve operar-se no âmbito de uma conferência mundial convocada pela Organização das Nações Unidas, que deverá assegurar a sua realização. Tal regulação deverá garantir o rasto dos movimentos de fundos, um melhor enquadramento do dever de vigilância dos bancos e o reforço dos sistemas de controlo judicial e de vigilância bancária, nomeadamente sobre as sociedades de compensação.

De acordo com o Relatório Landau, “existe um consenso internacional para lutar contra a evasão fiscal”. Realmente, as estratégias postas até agora em prática, nomeadamente pelo Grupo de acção financeira internacional (GAFI), criado pelo G7 em 1989, ou através da OCDE, aparecem sobretudo como uma cobertura que permite a manutenção do sistema. Perante a urgência dos OMD, é tempo dos países ricos tomarem medidas à altura dos desafios. Têm os meios: os paraísos fiscais e judiciais são apenas o espelho de decisões tomadas, realmente, a partir das grandes instâncias financeiras internacionais. Todos os grandes bancos aí têm sucursais; a maior parte das grandes empresas a eles recorrem. O Reino Unido, em especial, parece assumir a face limpa quando fala da luta contra a pobreza, quando fala de ajuda e dívida, mas entretanto a sua coroa protege metade dos paraísos fiscais. A França protege o Mónaco e Andorra.

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As ‘caixas pretas’ da mundialização financeira

Le Monde, 10 de Maio de 2001

Dois meses após a publicação do livro do jornalista Denis Robert e do antigo quadro bancário luxemburguês Ernest Backes Révélation$, é tempo de analisar a medida do seu impacto. Os dois autores sustentam que pelos mecanismos opacos das câmaras de compensação internacionais se esconde não somente uma das chaves da mundialização financeira, mas também a da mundialização criminosa. É necessário acreditar neles? Pelo menos é conveniente lê-los cuidadosamente.

Paradoxalmente, o essencial do impacto de Révélation$ revela-se no silêncio espantoso do conjunto dos actores do sistema posto em causa no funcionamento do Clearstream e, em menor escala, do seu homólogo Euroclear, bem como do sistema de encaminhamento financeiro Swift. Inicialmente, esta estratégia de avestruz dos meios financeiros pôde levar a acreditar que Révélation$ tenha sido apenas uma pedrada no charco. A nós, parece-nos pelo contrário que esta história ainda mal se iniciou.

A primeira divulgação deste inquérito é que, por detrás dos mecanismos oficiais da finança mundial, cuja sociedade Clearstream no Luxemburgo é uma das peças chave, se dissimula uma maquinaria discreta, construída no seio do próprio sistema. Bancos e grandes grupos industriais abriram em grande número contas “não publicadas”, das quais algumas podem ter uma existência bem compreensível, ou mesmo legítima, mas poderá haver outras que parecem dificilmente explicáveis no âmbito do funcionamento normal de uma sociedade de clearing.

Uma câmara de compensação permite, com efeito, aos clientes conhecerem-se para se dirigirem mutuamente as suas ordens de pagamento ou de transferência. Que existam sub-contas não publicadas de contas publicadas, ainda se poderá perceber: podem simplificar e racionalizar certas trocas. Mas a existência de contas não publicadas de clientes ocultos não parece ter qualquer sentido numa câmara de compensação. Do mesmo modo, o rápido crescimento de contas não publicadas abertas pelas sucursais de

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grandes bancos instalados nos paraísos fiscais não deixa de surpreender. Este princípio de dissimulação reencontra-se igualmente no sistema Swift, onde utilizadores podem decidir não publicar os seus códigos para os utilizarem de maneira bilateral ou num pequeno grupo de iniciados. O desenvolvimento discreto dos procedimentos deste tipo favorece incontestavelmente a criação de um “Triângulo das Bermudas” no qual virão desaparecer fluxos de dinheiro cada vez menos controláveis.

A segunda revelação forte da obra é que o caos dos fluxos financeiros é apenas aparente. Certamente, os paraísos bancários e fiscais escondem muito bem os pontos de passagem e de chegada dos capitais sujos. É mesmo a sua razão de ser. Tentar descobrir estes últimos nos centros off-shore é o mesmo que procurar uma agulha num palheiro cheio de feno, a qual, para além disso, é guardada numa fortaleza protegida por uma guarnição fortemente armada. Contudo, como os capitais de origem criminosa passam nos mesmos “tubos” financeiros que os outros, ou seja, as sociedades de clearing e de encaminhamento financeiro, ficam vulneráveis durante as suas transferências.

Crê-se geralmente que o dinheiro escapa a qualquer controlo possível durante esta fase porque mergulha no universo virtual da moeda electrónica. A invisibilidade física destas transferências é enganosa porque, realmente, as sociedades de clearing e de encaminhamento exercem o quase-monopólio no transporte internacional dos capitais. Como os polícias à beira da estrada, seria suficiente ir olhando para o que circula nestas vias de passagem obrigatórias para apanhar exactamente o que por essas vias se procura esconder.

A terceira divulgação da obra aparece capital: contrariamente, aí também, ao que se imagina frequentemente, nenhum vestígio da circulação dos capitais, quer sejam lícitos ou não, se extravia, porque é essencial conservá-los para servir de prova das transferências e das mudanças de propriedade.

Certamente, a memória destes movimentos não é concebida pelas autoridades judiciais nem lhes é destinada: é conservada apenas para reencontrar as ligações de uma história no caso de contestação ou de contenciosos entre os operadores. Mas existe. Todas

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as operações são registadas e conservadas durante anos em suportes físicos, quer sejam micro-fichas ou discos ópticos. O Euroclear, o Clearstream, o Swift e todos os organismos similares aos níveis nacionais ou regionais são ao mesmo tempo os elementos que transportam e entregam o dinheiro ou os valores quando mudam de mãos e os notários destas operações, as quais velam com cuidado para que se conservem os vestígios.

Assim, Denis Robert e Ernest Backes mostram-nos simplesmente onde se encontram as “caixas pretas” da mundialização financeira. Esta divulgação conduz a uma mudança completa de perspectivas.

Uma conclusão se impõe: abandonados sem controlo real, estes organismos podem ser os agentes de fraudes financeiras, da corrupção e do branqueamento. E no entanto, a solução está no próprio problema: o quase-monópolio de facto das câmaras de compensação e dos serviços de encaminhamento financeiro, bem como o rasto dos fluxos de capitais são os meios pelos quais o controlo seria possível, se se quisesse exercê-lo. Porque não aplicar às câmaras de compensação os mecanismos de controlo que, por exemplo, são instaurados nos cartões bancários? Diariamente, para transacções infinitamente mais pequenas, softwares internos detectam as retiradas suspeitas dos utilizadores de cartões de crédito-depósito. Ninguém se alarma. As liberdades fundamentais não são ameaçadas por este mecanismo de protecção elementar. A lição de Révélation$ é clara: o branqueamento nos mercados financeiros poderia ser reduzido consideravelmente.

Há quatro anos, um outro livro de Denis Robert, La Justice ou le chaos, permitiu lançar O Apelo de Genebra2 e alertar os cidadãos europeus sobre a necessidade de

2 O Apelo de Genebra foi lançado em 1 de Outubro de 1996 por sete magistrados europeus contra os paraísos fiscais, a favor da criminalização na finança internacional e para a abolição dos proteccionismos em matéria de questões de polícia e judiciais. Com o Apelo de Genebra pretendia-se a instauração dum verdadeiro espaço judicial europeu no interior do qual os magistrados pudessem, sem qualquer entrave, pelo Estado de Direito, procurar e trocar informações úteis nos processos que estivessem a decorrer.O Apelo de Genebra foi assinado por Bernard Bertossa, Edmundo Bruti Liberati, Gherardo Colombo, Benoît Dejemeppe, Baltasar Garzon Real, Carlos Jimenez Villarejo, Renaud Van Ruymbeke.

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um espaço judicial comum. Esta iniciativa marcou uma etapa importante na luta contra a criminalidade organizada. Infelizmente, as instituições políticas levaram vários meses, se não vários anos, antes de reagir. Hoje, a mobilização instantânea da missão parlamentar francesa sobre o branqueamento é um bom augúrio. Mas o debate apenas começou.

A publicação de Révélation$ deve permitir aos cidadãos europeus compreenderem o papel das câmaras de compensação e por aí mesmo levar a que tenham uma ideia completamente diferente da mundialização financeira. Uma solução entre outras consistiria em colocar estas instituições sob o controlo de uma organização internacional que poderia desempenhar o papel de garante do processo. Um progresso capital seria assim realizado na reconciliação entre a finança e a democracia.

Bernard Bertossa, Procurador-geral de Genebra; Benoit Dejemeppe, Procurador do Rei em Bruxelas; Eva Joly, Juiz de instrução em Paris; Jean de Maillard, Magistrado em Blois, Renaud Van Ruymbek, igualmente juiz.

Dinheiro sujo: a má fé americana

Libération, 4 de Outubro de 2001Jean de Maillard,

magistrado e autor “de um mundo sem lei” (Stock, 1998).

A globalização económica e financeira inventou uma dupla quimera. Fez com que se acreditasse na existência duma mundialização sem História (e sem histórias) e numa criminalização mundial indizivelmente feliz e vantajosa para todos. O primeiro engano fascinou e desorientou os economistas e os dirigentes ocidentais. Cegos aos desastres de uma financiarização que estende o seu império em todas as relações humanas, esqueceram os milhões de indivíduos que ficavam abandonados pelo caminho, aqueles dos longínquos países do terceiro mundo, como também os dos nossos próprios subúrbios. A outra ilusão permitiu recuperar, pelo não confessável e pelo não dito, as consequências destes mesmos desastres e

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re-injectar o seu resultado financeiro global nos mercados e fazer da criminalidade uma fonte de inesgotáveis lucros. Os atentados de 11 de Setembro puseram os ponteiros no lugar, infelizmente no drama e na humilhação. Tiveram por efeito prático obrigar os americanos a reconhecer, por instinto de defesa, a necessidade de lutar contra os financiamentos ocultos das redes terroristas. Imediatamente após ter-lhes declarado a guerra, o governo americano acrescentou, pois, uma vertente financeira ao desenrolar das suas operações, num ritmo igualmente marcial.

Os outros países ocidentais declaram-se prontos para apoiar os esforços americanos sem pestanejar; a mobilização iria eliminar todas as dificuldades da luta contra a criminalidade financeira, tão frequentemente denunciadas pelos juízes europeus? A imprensa, que expressa o parecer de diversos peritos, mostrou-se com muitas dúvidas. A complexidade dos circuitos internacionais, a opacidade das trocas entre os países orientais, o papel dos paraísos bancários e fiscais, a fraqueza dos meios de acção, tudo isto foi posto em realce para concluir que os Estados Unidos e os seus aliados terão efectivamente dificuldade em destruir a rede financeira de Bin Laden. E é verdade que a luta contra a finança criminosa é hoje um malogro completo.

Ninguém está em condições de controlar o desenvolvimento prodigioso da economia e da finança subterrâneas, que se alimentam de todas as espécies de tráficos, da corrupção e da fraude fiscal, e mantêm bem oleadas as redes mafiosas, terroristas e sectárias. As estimativas menos pessimistas avaliam em mil milhões de dólares o dinheiro branqueado em cada dia no mundo. Será realmente com os meios actuais da luta anti-branqueamento que se irá virar a extremidade deste processo infernal? Pode duvidar-se. No entanto, o malogro do inquérito Bin Laden não é assim tão certo. Por uma simples razão: porque é Bin Laden e porque são os Estados Unidos. Audacioso seria o país ou o banco que – sigilo bancário ou não – recusasse apresentar-se a uma cruzada financeira apoiada pelos porta-aviões.

A verdadeira pergunta é assim saber o que se irá passar depois. Os Estados manterão primeiro a sua determinação em lutar, não somente contra o dinheiro dos terroristas, mas também contra o das máfias, da corrupção, da fraude fiscal...?

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De modo a que se creia hoje neles, os americanos deverão dar garantias da sua boa fé porque, no domínio da luta contra a criminalidade financeira e organizada, o desfasamento entre os efeitos de anúncio e as realizações concretas foi, até agora, a sua única constância. Há dez anos, na questão do BCCI (a partir do qual a rede poderia ter-se reconstituído em parte em redor de Bin Laden), as autoridades americanas elas mesmas tinham obstruído o inquérito. O escândalo desembocou em insignificantes perseguições, muito aquém do que teriam justificado os comportamentos predadores realizados por este banco. É verdade que a CIA também estava comprometida francamente com este banco. O desvio dos milhares de milhões de dólares do FMI pelo Banco da Rússia, via Bank of Nova Iorque, enrolou-se, por sua vez, na má vontade da justiça americana, que cessou rapidamente de colaborar com os juízes suíços que inquiriam pelo seu lado. Ainda aí, o FMI era com efeito uma vítima que bem consentia. Estes dois exemplos, e há muitos outros, mostram que estamos longe dos distante gritos de alarme lançados pelas autoridades políticas à realidade dos seus compromissos assumidos na luta contra as novas formas de grande criminalidade internacional.

Ainda que as suas intenções sejam hoje sinceras – o que permanece por provar – é necessário examinar os meios com os quais anunciam querer agir. A virtude financeira, que se pretende restabelecer actualmente pela chantagem dos canhões, deveria vir com efeito daqueles que apontam os canhões. São eles, não nos devemos esquecer, quem organizou os mercados financeiros tão benevolentes para com o dinheiro do crime e do terrorismo, e quem abriu as portas dos paraísos bancários e fiscais aos fraudulentos e aos traficantes, impedindo ao mesmo tempo o seu acesso aos juízes. Seria necessário por conseguinte reexaminar tudo e retomar os próprios fundamentos da política anti-branqueamento.

O termo branqueamento dá, por si, azo a todas as confusões. Designa uma forma de criminalidade aparecida há uma vintena de anos, quando se imaginava ainda que existia uma sociedade legal, dotada de uma economia “limpa”, em que as duas entidades eram homogéneas e estanques ao crime. Se alguma vez esta percepção tranquilizante teve algum sentido na realidade, o certo é que hoje

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deixou de o ter. Não existe uma economia legal dum lado, que seria, do outro, o alvo e a vítima inocente duma economia criminosa que lhe seria estranha. Há uma única e imensa economia criminal e legal, onde a melhor garantia de impunidade e mesmo de prosperidade dos criminosos, dos terroristas e doutros traficantes, é utilizar todos os recursos que a sociedade lhes oferece e que persiste em chamar “legal”. O processo Bin Laden terá tido pelo menos o mérito de o ilustrar até ao máximo de evidência. Aquilo a que se chama branqueamento não é nada mais que a reversão dos mecanismos da economia e da finança globalizadas contra elas mesmas. O problema está em nós e não noutro lugar. O inferno não são os outros, somos nós.

Desde então o interesse dos Estados Unidos, friamente convertidos à luta anti-branqueamento, não é, pense-se o que se pensar, a melhor das notícias. É necessário seriamente temer, com efeito, que eles importem e perpetuem neste domínio os mesmos métodos que empregam para trazer a ordem às ruas de Washington ou de Nova Iorque. Para refrear a violência da sua sociedade sem estar a mexer nas causas da sua exuberante criminalidade, os americanos nada mais puderam fazer do que opor-lhe uma ferocidade ainda maior da sua polícia e da sua justiça. Declarando a guerra financeira ao terrorismo como foi anunciado, assume-se por conseguinte dois riscos, nos quais os aliados dos americanos deveriam seriamente reflectir: o primeiro, e não é dos menores, é serem apenas os agentes supletivos dos Estados Unidos. Estes alterarão os objectivos ao sabor das suas alianças políticas e dos seus interesses, e convocarão os seus aliados para obedecerem docilmente ao seu diktat de cada momento, como o fazem já na sua “guerra” contra a droga na América do Sul. O segundo risco, consequência do precedente, é que a nova guerra contra a criminalidade financeira procurará mesmo muito pouco em erradicá-la, pondo no sistema financeiro mundial uma ordem cujos mercados não provam espontaneamente nem a necessidade nem o desejo de a erradicar. Em vez de quererem resolver as causas da grande desordem planetária, preferir-se-á sobrepor, à violência caótica da desregulação mundial, a brutalidade e a injustiça de uma repressão selectiva que não toque nem nos paraísos bancários e fiscais, estes piratas do direito internacional, nem na rapacidade não visível dos mercados financeiros.

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Eis pois o pior: teremos ao mesmo tempo a liberdade e a repressão da liberdade. Precisemos: a liberdade para uns, a repressão para os outros. E como sempre, a postura liberal-repressiva não regula nada, porque nunca toca no essencial. Pelo contrário, dissimula-o. Quiseram-nos fazer acreditar que a mundialização era um longo rio tranquilo. Querem-nos agora convencer que é uma guerra. Não é nem uma coisa nem outra. A mundialização tomou o rosto da desregulação, mas uma outra mundialização é possível: a do direito, a da justiça, a da segurança. Porque se tomou brutalmente consciência que a globalização, tal como a vida, não é a felicidade, que o crime que a alimentava também não o era; a raiva desta descoberta deveria voltar-se contra todos os que não mantiveram este sonho, sonho porém impossível. Desejemos, pelo menos, que a Europa não naufrague neste maniqueísmo suicida.

Fiscalidade e deslocalizações

Excerto de “Face às deslocalizações, que política económica para a França?”, Revue d’OFCE, 94, 2005

Catherine Mathieu e Henri Sterdyniak

Pode lutar-se contra as deslocalizações em França graças a uma reforma fiscal francesa ou graças à harmonização fiscal a nível europeu?

No que diz respeito às contribuições sociais, sublinhemos que são um elemento da remuneração dos trabalhadores ao mesmo nível que o salário líquido, de modo que não há nenhuma razão para evocar uma responsabilidade específica das contribuições sociais nos fenómenos de competitividade e nenhuma razão também em preconizar uma harmonização específica das contribuições sociais, sem primeiramente se procurar fazê-la nos salários.

O relatório Grignon (2004) coloca em primeiro plano uma medida anteriormente preconizada e de maneira recorrente em França (Arthuis, 1993; Marini, 2004), que consistiria em substituir uma parte ou a totalidade das contribuições sociais dos empregadores por aumentos na taxa do IVA. Isto permitiria

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fazer com que as prestações sociais fossem financiadas pelas despesas de consumo (e mais precisamente pelas importações) em vez de o ser pelos salários. De acordo com os seus defensores, esta reforma provocaria ganhos de competitividade e diminuiria o custo do trabalho nos sectores intensivos em mão-de-obra, o que conduziria a um aumento do emprego. Do nosso ponto de vista, a reforma assim concebida seria totalmente ineficaz por duas razões (Sterdyniak e Villa, 1998). Por um lado, o IVA, sendo dedutível na FBCF, incidiria, como as contribuições sociais dos empregadores, sobre os salários e não sobre os bens de equipamento: a transferência da carga fiscal a priori não teria, por conseguinte, nenhum impacto específico no custo do trabalho e, logo, nenhum impacto sobre as indústrias intensivas em mão-de-obra. Por outro lado, a competitividade só é reforçada se o aumento dos preços dos bens de consumo importados, resultante do aumento do IVA, não tiver nenhum impacto nos salários ou, por outras palavras, se os assalariados aceitarem uma baixa do seu poder de compra.

Para perceber melhor este argumento admitamos que os consumidores gastam 20 por cento da sua despesa em bens importados e 80 por cento em bens produzidos no espaço nacional. Nesta hipótese, para cada 100 unidades de valor da produção nacional o consumo interno é de 80 unidades e as 20 unidades restantes são exportadas. Os salários são o único factor de produção. Inicialmente, os preços e os salários valem uma unidade. Os salários são então de 80 unidades; a taxa de contribuições dos empregadores é 25%. Estas contribuições são substituídas por uma taxa de IVA de 25%. Nos dias seguintes à reforma, os preços de importação são de 1,20; os preços das empresas francesas em França são iguais a um, os preços de exportação de 0,8 (porque o IVA é reembolsado na exportação). A economia nacional efectivamente obteve ganhos de competitividade em 20%. Uma carga de 4 unidades foi transferida da produção para as importações. O problema é que este ganho foi obtido graças à uma perda de 4% do poder de compra dos trabalhadores. Se estes obtêm o aumento dos salários necessário para compensar esta perda e se este aumento se reflecte nos preços, e depois, de novo, outra vez nos salários, a espiral preços-salários continua até que os preços internos aumentem de 20%; e, por conseguinte, o lucro foi apenas temporário. Não há pois reforma fiscal milagre que forneça ganhos de competitividade sem perda de poder de compra dos assalariados.

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Taxas legais de imposto sobre as sociedades na Europa em 2004*

Áustria 34

Alemanha 25/39,31

Bélgica 34

Dinamarca 30

Espanha 35

Finlândia 29

França 35,4

Grécia 35

Irlanda 12,5/102

Itália 33/37,253

Luxemburgo 22,9

Portugal 27,5

Holanda 34,5

Reino Unido 30

Suécia 28

UE 15 (média) 34,7

Chipre 10

Estónia 04/26

Hungria 16

Letónia 15

Lituânia 15

Malta 35

Polónia 22

República Eslovaca 25

Eslovénia 25

República Checa 24

1 39,3 com a taxa de solidariedade e a taxa profissional.2 10 para a indústria.3 37,25 com o IRAP.4 Lucros reinvestido.Fonte : Comissão Europeia

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Os impostos sobre as empresas representavam em França, em 2002, 6,6% do PIB, o que colocava a França no segundo lugar da UE a 15, atrás do Luxemburgo, contra 6,4% na Itália, 5,2% no Reino Unido, 3% na Espanha, 0,9% na Alemanha (este número é excepcionalmente baixo devido à reforma fiscal) e 3% nos Estados Unidos. A taxa francesa actual do imposto sobre as sociedades, 34,3%, está na média europeia (quadro seguinte); deve reduzir-se para 33,3% em 2006. O problema é que se lhe acrescem a taxa sobre os salários, a taxa fundiária e a taxa profissional.

A taxa profissional actualmente tem como base as imobilizações. Esta taxa por conseguinte incide sobre o capital físico, independentemente da sua propriedade. Isto tem a vantagem de motivar as empresas a escolherem técnicas de produção menos capitalísticas, mas atinge particularmente a indústria, o que é prejudicial do ponto de vista das deslocalizações e da atracção pela França de projectos industriais.

No entanto, as isenções temporárias são frequentemente atribuídas às empresas que se instalam e o valor máximo para esta taxa é estabelecido em função do valor acrescentado. A reforma desta taxa foi objecto de debates recorrentes. O governo comprometeu-se a reformar a taxa profissional em 2006, sem que o financiamento das administrações locais e a fiscalidade sobre as famílias sejam afectados e mantendo o objectivo de basear a fiscalidade local nos factores físicos efectivamente utilizados localmente pela empresa. Tendo em conta estas restrições, as possibilidades de reformas são difíceis de encarar. As receitas de substituição possíveis são discutíveis: o imposto sobre as sociedades não atinge o capital emprestado e é extremamente flutuante com a conjuntura geral ou específica à empresa; uma taxa específica sobre o excedente bruto de exploração obrigaria a criar uma nova base fiscal, dificilmente determinável e a sua base seria ainda relativamente volátil; uma taxa sobre as famílias permitiria a França ganhar em competitividade e atractividade, mas em detrimento do poder de compra das famílias e comprometendo-se numa estratégia de concorrência fiscal. Parece que a orientação que se está a seguir é caminhar-se para a solução que consiste em assentar a taxa profissional sobre o valor acrescentado: isto teria o mérito de

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favorecer a indústria em detrimento do comércio e das instituições financeiras. Em contrapartida, a relação entre a localização física da empresa e a tributação local será enfraquecida; a taxa incidiria menos sobre o capital e pesaria mais sobre o trabalho, o que é contraproducente em situação de desemprego de massa.

A questão da harmonização fiscal coloca-se de forma importante quanto ao imposto sobre as sociedades (IS). É certo, as taxas estão próximas dos 30% no conjunto dos países da UE, de modo que este nível pode ser tomado como o mínimo. Mas isto é difícil, na medida em que tal mínimo não existe para os outros impostos. Os países deveriam renunciar à sua liberdade de fixar as bases de imposição fiscal, enquanto a unanimidade em matéria de fiscalidade directa é mantida no projecto de Constituição para a Europa. Os novos países membros e a Irlanda reclamam o direito de praticar uma taxa mais baixa para atrair os investimentos directos estrangeiros. É normal que baixas taxas de imposição compensam desvantagens, em termos de infra-estruturas, de desenvolvimento económico ou, para os novos membros, será normal a obrigação de suprimir as suas subvenções às empresas.

O imposto sobre as sociedades pode ser considerado como um imposto sobre os accionistas das sociedades ou como um imposto sobre as sociedades em si mesmas, como contrapartida das vantagens que obtêm para a organização das suas actividades no país onde são localizadas (e, nesta concepção, nada justifica que não incidam também sobre o capital emprestado). A imposição pode assentar em dois princípios. De acordo com o princípio da fonte, um país tem o direito de imposição fiscal sobre todos os lucros gerados no seu território, quer tenham sido realizados por residentes ou por não residentes. Este princípio corresponde à concepção do IS como imposto sobre as sociedades em si mesmas. De acordo com o princípio de residência, um país tem o direito de imposição fiscal sobre todos os rendimentos auferidos pelos residentes nacionais, quer tenham sido realizados no território nacional ou no estrangeiro. Este princípio corresponde à concepção do IS como imposto sobre os proprietários das empresas. O princípio da residência permite às empresas escapar à tributação localizando-se ficticiamente num paraíso fiscal ou num país com muito baixas taxas de

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imposição fiscal. Com o princípio da fonte, uma empresa deve efectivamente investir e produzir num país com baixas taxas de imposição para se aproveitar destas. Deve então arbitrar entre o nível de taxas de imposição e o das infra-estruturas públicas, os riscos políticos, etc. No entanto, pode sempre aproveitar-se da sua implantação num país de baixas taxas para praticar a optimização fiscal aí localizando uma parte importante dos seus lucros (actuando sobre os preços de transferências, sobre os royalties).

Seria concebível que a UE fizesse progressivamente convergir os sistemas nacionais de impostos sobre as sociedades. Esta convergência supõe um acordo sobre os princípios de imposição, sobre a harmonização das bases e sobre um nível mínimo de taxas de imposição. Mas isto levanta difíceis questões: como ter em conta a taxa de imposição local? Será que seria necessário autorizar taxas reduzidas para as regiões, países ou sectores em situação económica difícil? Quem, entre os Estados e a Comissão, teria a iniciativa de medidas que visam aligeirar a imposição temporária (por razões conjunturais) ou estruturalmente (para incitar a I&D, por exemplo)? Tendo em conta o princípio de subsidiariedade em matéria fiscal, a Comissão renunciou a prosseguir esta estratégia.

Também, a única estratégia possível hoje é afirmar o princípio de imposição na fonte: cada país deve poder praticar a taxa de sua escolha sobre o conjunto dos lucros realizados no seu território. Não é a situação óptima dado que vai no sentido de não incentivar a constituição de empresas europeias e obriga a supervisionar as transferências entre sociedades mães e sucursais, mas hoje não há outra alternativa. A Estónia pode praticar uma taxa de IS muito baixa, mas é relativamente pouco incómodo se esta taxa é aplicável apenas a actividades realizadas na Estónia, e não aos lucros gerados num país da Europa ocidental. Nesta óptica, as baixas taxas de IS nos países do Leste compensam o seu baixo nível de infra-estruturas públicas, os custos de transporte, etc. Pode pois pensar-se que não é optimal, que este país deva primeiramente incentivar a vinda de investimentos praticando baixas taxas de contribuições sociais ou construindo infra-estruturas públicas, mas cabe a cada país julgar.

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O Tratado que institui a Comunidade Europeia assim como o projecto de Constituição para a Europa sublinha quatro liberdades fundamentais que são a livre circulação das pessoas, das mercadorias, dos serviços e dos capitais. Em contrapartida, a necessidade para cada país de preservar a sua capacidade fiscal não figura nos textos. Se a convergência fiscal não faz parte das prioridades, a Europa deve organizar uma coordenação fiscal de acordo com o princípio da subsidiariedade. A fiscalidade deve continuar a ser no máximo nacional, mas devem ser unificadas quando necessário, e a coexistência de fiscalidades nacionais diferentes deve ser organizada com regras de boa conduta que permitam a cada país preservar a sua capacidade de taxar os seus próprios residentes. A concorrência fiscal desleal (ou prejudicial) deve ser proibida, em especial a que consiste em praticar taxas de imposição mais fracas sobre os não residentes ou sobre os residentes recentes ou sobre as sociedades estrangeiras para as atrair com bases de imposição mais rentáveis. No entanto, esta estratégia não é fácil de pôr em prática. Supõe delicadas negociações entre os países; a coordenação fiscal, mesmo negociada, limita a autonomia fiscal dos Estados.

Sublinhemos, por último, que pode ser legítimo procurar a harmonização social na Europa para promover um modelo social europeu, para fazer convergir os países europeus, o que tornará mais fácil a construção de uma cidadania europeia. É pois legítimo pedir aos organismos internacionais que façam respeitar à escala mundial normas sociais e ambientais. Mas estas medidas devem ser procuradas por si mesmas, e não para reduzir a concorrência internacional e para impedir os países emergentes de se desenvolverem.

Porquê uma fiscalidade internacional?

Comunicação de Jacques Cossart, ATTAC,Excerto do Relatório Landau,

Les nouvelles contributions financières internationaleswww.diplomatie.gouv.fr/fr/IMG/pdf/landau.pdf

1. Mundialização e concorrência fiscal

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Os sistemas fiscais actuais foram concebidos no momento em que as fronteiras e os espaços fiscais coincidiam com os Estados nacionais ao ponto de ter, desde há vários séculos, preexistido relativamente aos Estados nacionais. Devido, nomeadamente, à existência destas fronteiras, os Estados beneficiam há muito tempo de uma soberania e duma grande autonomia na escolha das suas políticas monetárias e fiscais. A mundialização contemporânea transformou profundamente o ambiente das políticas fiscais. Devido à abertura das fronteiras e à mobilidade de certos factores de produção, as políticas fiscais nacionais perderam a sua autonomia e tornaram-se interdependentes, devido, nomeadamente, ao seu impacto sobre as trocas comerciais e financeiras. Os países terceiros podem assim aproveitar-se de um aumento da fiscalidade decidida por um país vizinho que perde então o benefício esperado da sua medida em termos de receitas fiscais suplementares. Com razão ou sem ela, muitos países desenvolvidos ou em via de desenvolvimento tomam, a partir de agora, decisões de ordem fiscal em função de considerações externas.

Dois tipos de estratégias são encaráveis e que se inscrevem no âmbito teórico conhecido como o «dilema do prisioneiro». Numa primeira estratégia, os países não cooperam entre si e jogam o jogo da «concorrência fiscal» e do «dumping fiscal”, reduzindo a sua fiscalidade de maneira a atrair ao seu solo os capitais estrangeiros e as empresas multinacionais. Neste caso, os países sofrem uma erosão das suas receitas fiscais devido à sua escalada de política de redução da imposição fiscal. Com a outra estratégia, os países cooperam entre si a fim de manter uma pressão fiscal homogénea, o que lhes permite preservar as suas receitas públicas. A cooperação fiscal pode ela própria apoiar-se numa harmonização das políticas fiscais nacionais ou na criação de taxas globais comuns. Nos dois casos, em teoria, o resultado é ainda o mesmo se os países adoptam as mesmas bases fiscais e as mesmas taxas de imposição: a prática do “passageiro clandestino” é então eliminada.

Constata-se que, no contexto da integração dos mercados, as políticas fiscais cooperativas são difíceis de levar a efeito, como é mostrado pelo exemplo da União Europeia. Uma das razões é que, devido às suas estratégias de optimização fiscal à escala internacional, as firmas multinacionais levam os países a praticar o jogo

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da concorrência com o objectivo de conduzir a uma baixa da pressão fiscal que se exerce sobre elas. Este fenómeno parece particularmente verificado a propósito do investimento directo estrangeiro.

2. Fiscalidade e mobilidade dos factores

Os Estados podem taxar tanto mais eficazmente os factores de produção quanto estes são pouco móveis e a sua base fiscal é não elástica em relação às variações da taxa de imposição. Ora, a eliminação das fronteiras nacionais, na sequência das políticas de liberalização, aumentou a mobilidade de certos factores de produção, principalmente o capital, cujos principais detentores são as firmas multinacionais industriais, os bancos e os investidores internacionais. Graças à sua mobilidade, estes actores estão em condições de optimizar a sua política fiscal localizando-se nos territórios onde a pressão fiscal é mais fraca.3 As firmas voltam-se não somente para o Estado que tem o “regime fiscal claramente mais favorável”, mas igualmente para aquele que oferece também subvenções, o que permite reduzir a zero ou mesmo tornar negativa a sua carga fiscal. Os lucros destes grandes grupos tornaram-se assim um alvo sempre em movimento e que escapa cada vez mais à fiscalidade nacional. No total, os Estados vêem desaparecer a base sobre a qual se apoia a sua fiscalidade, enquanto as multinacionais alargaram o espaço no qual podem minimizar a sua carga fiscal e maximizar os seus lucros.

As técnicas utilizadas pelas firmas transnacionais para escapar à fiscalidade são numerosas: a mais radical é evidentemente a domiciliação das operações nos paraísos fiscais de toda a espécie ou nas zonas francas. Uma outra forma assenta em manipulações contabilísticas mais sofisticadas, entre as quais a mais conhecida é a técnica dos preços de transferência fictícios entre a casa mãe e as sucursais dos grupos. Estes exemplos nestes últimos anos são particularmente demonstrativos a esse respeito.

3 Sublinhado no original.

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3. Mundialização e desigualdades fiscais

A globalização tem como consequência aumentar as desigualdades fiscais entre as diferentes categorias de detentores de factores de produção em função do seu grau de mobilidade internacional. Existem, por um lado, os agricultores e os assalariados, detentores da terra e de trabalho, que representam a quase totalidade da humanidade. Para a maior parte dos trabalhadores, deslocar-se geograficamente é muito difícil devido a obstáculos evidentes, nomeadamente devido às barreiras culturais, linguísticas e às leis sobre a imigração. Sofrem em geral, consequentemente, uma pressão fiscal à qual não podem subtrair-se.

Na posição inversa estão os quadros superiores que estão no cume da pirâmide global dos rendimentos e que, devido à sua forte mobilidade, têm uma base fiscal muito elástica, ou seja, estão em condições de se deslocarem para escapar à tributação. A globalização introduziu assim uma nova segmentação entre os assalariados, em que, de um lado, estão os que se podem deslocalizar para aproveitar as diferenças de remuneração e de tributação e, do outro lado, está a esmagadora maioria dos assalariados que não o podem fazer.

Os dados estatísticos existentes ilustram efectivamente esta relação entre a erosão da base fiscal e a mobilidade dos factores de produção. A diferença entre a taxa de imposição fiscal do trabalho e do capital não cessou de se alargar desde os inícios do processo de mundialização. Assim, nos países da União Europeia, o peso das taxas sobre o capital reduziu-se fortemente, passando de 50% para 35% das receitas fiscais totais de 1980 para 1994, enquanto a parte das taxas sobre o trabalho aumentou de 35% para 40%, a fim de preservar as receitas fiscais dos Estados. Lutar contra as desigualdades passa por um profundo reequilíbrio nesta matéria.

4. Taxas globais e bens comuns da humanidade

Uma outra razão fundamental para encarar a criação de taxas globais é a ideia segundo a qual a mundialização gera novas necessidades, ou a consideração destas necessidades novas ou antigas mas que necessitam agora do recurso ao

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instrumento fiscal a nível internacional. O conceito de bens comuns da humanidade, correntemente designados como bens públicos mundiais (BPM), foi forjado para descrever estas necessidades que se exprimem à escala planetária e não podem ser produzidas pelos mercados devido às suas duas características principais: nenhuma pessoa pode ser excluída do consumo de um bem público (princípio de não exclusão) e o uso de um bem público por alguém não priva nenhum dos outros membros da comunidade (princípio da não rivalidade). O objectivo de um desenvolvimento equilibrado do planeta pode apenas ser atingido se os bens públicos como a saúde, a educação e a segurança forem objecto de políticas definidas e financiadas à escala internacional com recursos públicos como as taxas globais.

Actualmente, constata-se uma sub-produção acentuada de BPM. A instabilidade financeira internacional, as pandemias, a criminalidade financeira, a insuficiente divulgação do saber e da Internet, a degradação do ambiente, nomeadamente, são o resultado deste sub-investimento. Sob o efeito da mundialização e da insuficiente produção de bens comuns da humanidade, o planeta tornou-se assim instável, fortemente desigual e, para uma grande parte, insalubre. Várias razões explicam as insuficiências dos BPM. Há, em primeiro lugar, um problema de avaliação dos custos e dos seus rendimentos, devido nomeadamente ao horizonte temporal no qual se inscrevem. Estes efeitos só podem, com efeito, medir-se a longo prazo. Assim, as políticas de luta contra a instabilidade financeira e contra a destruição da biodiversidade têm custos elevados e rendimentos incertos, e remotos, que podem desencorajar as iniciativas dos actores públicos. Em segundo lugar, a insuficiência actual dos BPM provêm da sua dimensão espacial. As políticas orçamentais e fiscais dos Estados são definidas numa base nacional enquanto os benefícios tirados destes bens são muito largamente aproveitados por países terceiros. Os recursos públicos só poderão ser disponibilizados em quantidade suficiente com a condição de se instaurar um dispositivo fiscal global, funcionando num espaço alargado.

5. Objectivos do milénio (ODM)

Como lembrou o Presidente da República, os ODM são o resultado de uma decisão da Assembleia-geral das Nações Unidas e, portanto, dificilmente podem ser

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contestados. O cálculo dos ODM permanece muito claramente por efectuar. Só uma coisa é segura: as necessidades são consideráveis e requerem recursos adicionais relativamente aos quais se compreenderia que a fiscalidade pudesse ser excluída.

O Objectivo 1, alvo 2, por exemplo, prevê “reduzir de metade, entre 1990 e 2015, a proporção da população que sofre da fome”. A ambição é que, em resumo, num domínio como este se quer interferir muito directamente sobre o crescimento, que é extremamente modesto. Ora o relatório 2003 da FAO diz-nos que a meio do período fixado, o número de pessoas que sofrem da fome, embora diminuído na primeira parte da década 90, aumenta de novo para atingir quase 800 milhões de pessoas. O relatório diz-nos também que é impossível lutar contra a desnutrição, se não se luta também contra a SIDA, a que se refere o Objectivo 6.

Que fiscalidade internacional?

Para preencher os seus três papéis principais, a redução de danos diversos, a redistribuição dos rendimentos – ou mais sobriamente, o respeito dos ODM – e a produção de rendimentos internacionais, nomeadamente para o financiamento dos BPM, uma fiscalidade internacional eficaz e equitativa deveria poder instaurar vários tipos de contribuições financeiras internacionais. Vários aspectos devem ser tomados em conta no âmbito da aplicação progressiva de uma fiscalidade internacional e são perfeitamente tratados no relatório geral [Relatório Landau] e por conseguinte não serão retomados aqui. Sublinhemos que é sobretudo uma diversidade fiscal internacional que convém instaurar e esta é mais importante que uma taxa única, por muito relevante que esta possa ser.

1. Fiscalidade financeira

Na nossa economia mundializada, os fluxos, de natureza muito variada, são numerosos e facilmente identificáveis. Estão na origem de rendimentos para quem dá a ordem da sua movimentação. Por conseguinte, é perfeitamente justificado a partir daí estabelecer um sistema de cobrança colectivo. Sabe-se também que

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certos destes fluxos são prejudiciais à ordem mundial, e que a fiscalidade que lhes seria aplicada teria um papel dissuasivo e, deste modo, salvador. Poderá ser uma fiscalidade de incitação (é fundamentalmente o que visa uma tributação das transacções cambiais), mas pode ser igualmente uma fiscalidade de financiamento (que poderia ser uma tributação IDE).

A. Taxa sobre as transacções cambiais e bolsistas

A ATTAC não se estenderá sobre a tributação das operações cambiais, questão já emblemática através do mundo, uma vez que é tratada largamente no relatório geral. É necessário recordar que a especulação internacional é um das calamidades da globalização financeira cujo custo económico e social pode ser considerável, em especial sobre os países do Sul, como o mostrou a última década.

A fiscalidade tem também por objectivo recolher receitas. Um imposto de bolsa, incidindo sobre as transacções com títulos, de aproximadamente 0,01% e recolhido em todas as praças financeiras, seria uma fonte importante de receitas fiscais. Quaisquer que possam ser as dificuldades de aplicação e os argumentados encontrados contra a sua percepção, parece dificilmente compreensível que nada seja proposto neste domínio. A fiscalidade tem também a ver com a moralidade! Deste ponto de vista, a União Europeia, em relação aos princípios que apresenta, deveria mostrar o caminho.

B. Medidas contra os paraísos fiscais e o sigilo bancário

Nem toda a fiscalidade pode verdadeiramente preencher, equitativamente, o seu papel a não ser que quem conceba a imposição fiscal esteja em condições de controlar o cálculo do imposto assim como a sua cobrança. Este preceito básico tem sido constantemente ridicularizado pela existência dos paraísos fiscais e pelo sigilo bancário. Tratando-se dos primeiros, uma só medida se impõe: a sua supressão, pois contra os paraísos fiscais nenhuma outra regulamentação é verdadeiramente eficaz nesta matéria.

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Quanto ao sigilo bancário, parece haver remédios contra as evasões fiscais que ele favorece e que são bastante fáceis de levar à prática. Os bancos acham e querem preservar o segredo das operações dos seus clientes. Perfeito! Que aceitem então proceder às declarações não nominativas e pagar consequentemente os impostos devidos. Para os que não o queiram assim fazer, seria bastante fácil aplicar uma tributação sobre os rendimentos presumíveis.

C. Taxa sobre o investimento estrangeiro (IDE)

Uma tal taxa visa claramente dois objectivos que se integram perfeitamente nos ODM: opor-se à evasão fiscal travando a escolha de países de fraca fiscalidade e opor-se à erosão dos direitos dos assalariados nos países de acolhimento dos IDE se estes são aplicados onde os salários são mais baixos e a legislação do trabalho mais laxista.

Os IDE não devem dar uma excessiva ilusão no que diz respeito aos seus contributos para a economia do país estrangeiro. Em 2000, os dez primeiros países beneficiários concentram 75% dos investimentos directos mundiais, nove dos quais são países ricos, a China (Hong-Kong incluída) é a única excepção. Por outro lado, 90% destes investimentos directos correspondem a operações de fusões/aquisições. Não nos devemos pois espantar se as transferências de tecnologia sejam frequentemente limitadas e se os empregos criados o sejam em fraco número. Sobretudo, a concorrência exercida pelas firmas locais, compradas e reestruturadas pelos investidores estrangeiros, provoca falências e despedimentos nas outras empresas locais. O balanço é globalmente negativo para o emprego. É-o também negativo quanto aos salários, às condições de trabalho e à protecção social porque as firmas multinacionais põem em concorrência os países do Sul e localizam as suas actividades naqueles que propõem as condições mais vantajosas. A ATTAC apoia a proposta de uma taxa de 20% aplicável a todos os investimentos nos países de acolhimento que se situam na parte inferior da escala do respeito dos direitos fundamentais. Esta taxa poderia ser modulada até descer a um mínimo de 10% para um país que respeite melhor estes direitos ou que faça esforços significativos nesse sentido. A “notação social” seria atribuída pelo Bureau Internacional do Trabalho.

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D. Taxa unitária sobre os lucros

O objectivo é restabelecer a capacidade dos Estados em tributarem os lucros das empresas. Organizando a liberdade de circulação dos capitais, os Estados atribuíram o poder às firmas transnacionais de exercer uma pressão relativamente à qual se vê mal como é que os referidos Estados se podem agora subtrair, a não ser, precisamente, através desta tributação mundial unitária. É com efeito, no estado actual das coisas, prática corrente das firmas transnacionais ameaçarem investir num outro país, ou deslocalizar se o Estado não lhes concede reduções de imposto. Esta prática, que poderia equiparar-se a chantagem, provoca uma guerra fiscal entre os Estados que multiplicam os presentes fiscais às empresas, o que tem como consequência uma queda da contribuição das empresas para as receitas fiscais do Estado. Nos Estados Unidos, o imposto sobre as sociedades representa apenas 17% das receitas fiscais do Estado federal em 1990, contra 27% em 1965. O princípio, assim como a sua própria aplicação, da taxa unitária é simples: independentemente do país ou da região do mundo onde se instala uma firma multinacional, fica sujeita à mesma taxa de imposição fiscal sobre os seus lucros. Isto limitaria muito fortemente a guerra fiscal mas também as possibilidades de evasão e de fraude fiscal. As receitas fiscais são potencialmente importantes. Em 2000, as mil primeiras firmas classificadas de acordo com o valor da sua capitalização bolsista realizaram um lucro de 847 mil milhões de dólares. A UNCTAD, por seu lado, considera em 4.800 mil milhões de dólares o volume de negócios das 100 primeiras firmas transnacionais, em 2000, que representa assim 4,3% do PIB mundial contra 3,5% em 1990.

A ATTAC dá muita importância a este modo de fiscalidade que visa pôr termo à degradação da fiscalidade sobre os lucros das empresas transnacionais, etapa indispensável na via da redução das desigualdades e da satisfação dos ODM.

E. Imposto sobre a fortuna

Embora se trate mais de um stock do que de um fluxo, pode no entanto inscrever-se aqui esta possibilidade na medida em que se pode tencionar taxar o

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stock enquanto tal, segundo o modelo francês, ou sobre o seu rendimento, segundo o modelo americano; este poderia ser avaliado condicionalmente em função da fortuna visada. Não se dará aqui valores definitivos; pode-se, com base nos números regularmente estabelecidos pelo PNUD, simplesmente indicar que a base de imposição é relativamente fácil de estabelecer. Assim o relatório 2003 nota que “os 1% mais ricos obtêm tanto quanto obtêm os 57% mais pobres”. Várias avaliações calculam em 1.000 milhares de milhões de dólares os activos das 200 pessoas mais ricas do planeta. Uma avaliação grosseira de 5.000 mil milhões de activos tributáveis à taxa, sobre estes valores presumíveis, muito baixa de 1% produziria, no entanto, 50 mil milhões de dólares; quer isto dizer, sem se estar a exercer uma pressão fiscal intolerável sobre as referidas fortunas, que este valor significaria mais ou menos tanto quanto a Ajuda Pública ao Desenvolvimento deste início de milénio.

2. Fiscalidade ecológica

Neste modo de tributação cada vez mais indispensável, está-se claramente numa óptica de limitação de externalidades negativas que colocam, gravemente e cada vez mais, em perigo a evolução do planeta. Só uma regulação pública é susceptível de parar esta deterioração. Bem escolhida, em natureza e em montante, uma fiscalidade internacional pode tornar-se um potente instrumento regulador. …Os recursos públicos assim recolhidos poderiam ser utilizados para reforçar o orçamento de uma Organização Mundial do Ambiente, como organização ligada às Nações Unidas. As funções desta organização seriam controlar as regras internacionais de luta para a preservação do ambiente e financiar programas internacionais destinados a desenvolver a investigação sobre as energias alternativas, renováveis e não poluentes, sobre a reciclagem dos desperdícios e sobre o desenvolvimento de técnicas de produção não poluentes e menos consumidoras de energia.

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Ciclo organizado pelos docentes da disciplina de Economia Internacional

da Faculdade de economia da Universidade de Coimbra

Colaboração do Núcleo de Estudantes de Economia da Associação Académica de Coimbra

Apoio da Coordenação do Núcleo de Economia da FEUC

Com o apoio das instituições:

Caixa Geral de Depósitos

Fundação Luso-Americana

Fundação para a Ciência e Tecnologia

Fundação Calouste Gulbenkian

Ciclo Integrado de Cinema, Debates e Colóquios na FEUC

DOC TAGV / FEUC

Integração Mundial, Desintegração Nacional:

a Crise nos Mercados de Trabalho

Textos seleccionados, traduzidos e organizados por:

Júlio Mota

Luís Peres Lopes

Margarida Antunes

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Defino globalização como a liberdade para o meu grupo de investir onde quiser,

o tempo que quiser, para produzir o que quiser, comprando e vendendo onde quiser,

suportando o mínimo de obrigações possíveis em matéria de direito do trabalho

e de convenções sociais.

Asea Brown Bovery (Presidente do grupo ABB, 12ª empresa mundial)

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Globalização é um daqueles termos que passaram directamente da obscuridade

para a ausência de sentido, sem qualquer fase intermédia de coerência.

Mas deixem-me dizer apenas o seguinte: a globalização é também muito importante

e é totalmente consistente com mais e melhores empregos,

salários decentes e empregos decentes.

Robert Reich, ministro do trabalho da Administração Clinton

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