mestrado em histÓria social sÃo paulo 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Ivan Canoletto Rodrigues Chagas da Exclusão: Internação Compulsória e Leprosário do Padre Bento (São Paulo 1930-1986) MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL SÃO PAULO 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ivan Canoletto Rodrigues

Chagas da Exclusão:

Internação Compulsória e Leprosário do Padre Bento

(São Paulo 1930-1986)

MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL

SÃO PAULO

2016

2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Ivan Canoletto Rodrigues

Chagas da Exclusão:

Internação Compulsória e Leprosário do Padre Bento

(São Paulo 1930-1986)

Mestrado em História Social

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como

exigência parcial para a obtenção do título de Mestre

em História Social sob orientação da Profa. Dra.

Maria Izilda Santos de Matos.

SÃO PAULO

2016

3

Banca Examinadora

_____________________________________

_____________________________________

_____________________________________

4

A presente pesquisa foi realizada com o apoio da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.

5

Agradecimentos:

A trajetória de uma pesquisa é um trabalho árduo, de um longo percurso, que

jamais conseguiria ter percorrido sozinho, sou muito grato a todos que me auxiliaram e

acompanharam.

Agradeço à minha esposa e filha, pela compreensão de minhas várias ausências e

incentivo para sempre seguir em frente.

Aos meus pais, que sempre me estimularam e, em alguns momentos financiaram

meus estudos.

Aos grandes amigos Márcio Hasegava e Allan Santana, pelos momentos de

reflexão que compartilhamos, assim como as necessárias horas de lazer. Companheiros

com quem pude contar sempre.

Ao Leonardo Guandeline, amigo e revisor deste trabalho, pelas dicas e pelos

atendimentos nos horários mais inoportunos.

A todos os meus colegas da PUC-SP, que comigo compartilharam

conhecimento, mas também angústias, aflições, e momentos de descontração. Destaco

dois deles, que foram grandes parceiros ao longo desse mestrado, Carlos Assis e Carlos

Eduardo, mais conhecido como Caê.

A todos os professores da PUC-SP, sempre muito atenciosos e com sugestões

valiosas, tendo notório prazer em compartilhar seu vasto conhecimento acumulado.

Às Professoras Tânia Soares da Silva e Mirtes de Moraes, que compuseram

minha banca de qualificação, foram extremamente amáveis, e com sugestões bastante

contributivas.

Finalizo agradecendo à pessoa sem a qual este trabalho não seria possível, à

minha orientadora, Profa. Dra. Maria Izilda Santos de Matos, que ao longo da pesquisa

foi a responsável pela ampliação da minha visão sobre História, sempre fazendo

apontamentos fundamentais, prestativa em seus atendimentos, compartilhando de

maneira generosa sua vasta experiência. Um exemplo de historiadora e competência.

6

Resumo

A presente pesquisa trata da internação compulsória dos hansenianos no Estado

de São Paulo, bem como dos fatores que motivaram a institucionalização desse

processo, sua influência no cenário nacional e suas consequências para as pessoas por

ele diretamente atingidas. Além disso, apresenta elementos do cotidiano de um

leprosário, tomando como objeto o Sanatório Padre Bento, em Guarulhos, considerado

uma referência dentro do sistema de asilos-colônias (leprosários).

As internações compulsórias se intensificaram a partir dos anos 1930,

estendendo-se até 1986. Entretanto, suas consequências reverberam até os dias atuais, já

que as pessoas internadas tiveram suas famílias desmanteladas, passaram muitos anos

isoladas da sociedade e ainda sofrem com o estigma da doença, o que dificultou em

muito sua reinserção social após as liberações dos leprosários, fazendo com que alguns

optassem por continuar vivendo nos alojamentos dessas instituições.

Nos anos 1930, pouco se sabia sobre as formas de transmissão da hanseníase. O

único vetor conhecido era o próprio doente, fazendo com que a reclusão e o estigma

fossem apresentados como uma necessidade no combate à lepra. Entretanto, a pesquisa

indica que os motivos para tal medida não eram exclusivamente médicos, havendo

influência da medicina higienista e até mesmo de ideias eugenistas, sendo a exclusão

utilizada como forma de “limpeza” social. Isso está relacionado ao contexto de

modernização e industrialização que o Brasil e, especialmente, São Paulo estavam

passando.

Mesmo com boa parte dos leprosários contando com ampla estrutura e da

tentativa dos internos de ter um cotidiano próximo da realidade externa, foram muitos

os anos de cerceamento da liberdade sem existência de uma cura ou tratamento. As

consequências drásticas dessa medida autoritária fizeram com que os hansenianos

iniciassem uma luta enquanto movimento social, na busca por ressarcimentos por parte

do Estado.

Palavras-chave: Lepra, hanseníase, internação compulsória, Sanatório Padre Bento,

asilos-colônia, leprosário, isolamento.

7

Abstract

This research deals with the compulsory hospitalization of leprosy in São Paulo,

as well as the factors that led to the institutionalization of this process, its influence on

the national scene and its consequences for the people directly affected by it. Besides, it

presents everyday elements of a leprosarium, taking as object the Sanatorium Padre

Bento, in Guarulhos, considered a reference in the nursing homes colonies system

(leprosariums).

Compulsory admissions intensified from 1930, extending through 1986.

However, its consequences reverberate to the present day, matter of fact the hospitalized

people had their families dismantled, spent many years isolated from society and still

suffer from the stigma of the disease, making it difficult in much social reintegration

after the release of leprosariums, causing some chose to continue living in the

accommodation of these institutions.

In the 1930s, little was known about the modes of transmission of leprosy. The

only known vector was the patient himself, causing the incarceration and stigma were

presented as a necessity in the fight against leprosy. Meantime, the research indicates

that the reasons for such a measure were not strictly medical, with influence of hygienist

medicine and even eugenic ideas, exclusion being used as a means of social "cleaning".

This is related to the modernization and industrialization context that Brazil and,

especially, São Paulo were passing through.

Even with most of the leprosariums counting with great structure and the attempt

of the inmates to have as close as possible to the everyday reality out there, there were

many years of restriction of freedom without existence of a cure or treatment. The

drastic consequences of this authoritarian measure caused the leprosy initiate a fight as a

social movement, in seeking remedies from the State.

Keywords: Leprosy, Compulsory admissions, Padre Bento Sanatorium, nursing homes

colonies, leprosariums, isolation.

8

Sumário:

Apresentação..................................................................................................................11

1 – Hanseníase, Internação Compulsória e “Modelo Paulista”.................................19

1.1 - Hanseníase: Doença e Profilaxia.............................................................................19

1.2 – Estratégias de Controle: “modelo paulista”............................................................28

1.3 –Brasil de Vargas: políticas, práticas e influências...................................................38

2 – Leprosário do Padre Bento: Padrão, Caixa Beneficente e Pérgola....................47

2.1 – Leprosário Padre Bento: padrão, gestão e práticas.................................................47

2.2 – Caixa Beneficente: ações e fraudes........................................................................62

2.3 – Pérgola: encontros e desencontros..........................................................................71

3- Internação Compulsória: finalização e lutas..........................................................81

3.1- Esperança: tratamentos e cura..................................................................................81

3.2 – Retorno á sociedade: preconceitos e lutas..............................................................91

Considerações Finais...................................................................................................106

Referencias...................................................................................................................110

Anexo............................................................................................................................115

Lista de Fotografias:

Fotografia 1 - Doentes de hanseníase e seus acampamentos à beira da estrada.............34

Fotografia 2 - Planta do Sanatório Padre Bento feita no ano de 1952.............................50

Fotografia 3 - Planta do Pavilhão Central do Sanatório Padre Bento.............................50

Fotografia 4 - Planta de uma das Alas do Pavilhão Masculino do Sanatório Padre

Bento................................................................................................................................51

Fotografia 5 - Casas de propriedade da Caixa Beneficente no Sanatório Padre Bento..52

Fotografia 6 - Tipo de residência para grupos de leprosos, reunidos de acordo com sua

condição social e forma clínica da doença, no Sanatório Padre Bento...........................52

9

Fotografia 7 - Artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa Beneficente

(1943)...............................................................................................................................55

Fotografia 8 - Lista de fugas ocorridas de janeiro a junho de 1938, encontrada no Livro

de Registros do Sanatório do Padre Bento......................................................................59

Fotografia 9 - Capa do primeiro exemplar da Revista Padre Bento, dezembro de

1932.................................................................................................................................62

Fotografia 10 - Capa do segundo exemplar da Revista Padre Bento, fevereiro de

1933.................................................................................................................................63

Fotografia 11 - Artigo publicado na Revista Padre Bento, em 1933. Caixa

Beneficente.......................................................................................................................65

Fotografia 12 - Anúncio publicado na Revista Padre Bento, em 1932...........................68

Fotografia 13 - Foto atual da Pérgula, monumento tombado, no Hospital do Padre

Bento................................................................................................................................71

Fotografia 14 - Artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa

Beneficente (1937)..........................................................................................................74

Fotografia 15 – Fotocópia do artigo: “Surram e Torturam as Crianças no Educandário

Sta. Terezinha.” Jornal A Última Hora. São Paulo, 2 de agosto de 1957. Caderno 1,

p.7.)..................................................................................................................................78

Fotografia 16 – fotocópia do artigo: Homenagem a D. Margarida Galvão: 40 Anos de

Esforço em Prol dos Filhos dos Hansenianos. Jornal O Diário de S. Paulo. São Paulo, 27

de setembro de 1957........................................................................................................79

Fotografia 17 – Cena do filme “Onde a esperança mora”, de 1948................................82

Fotografia 18 – Cena do filme “Onde a esperança mora”, de 1948................................82

Fotografia 19 – Cena do filme “Onde a esperança mora”, de 1948................................83

Fotografia 20 - Artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa

Beneficente (julho de 1944)............................................................................................86

10

Fotografia 21 – Número de curas, Revista Tópicos, ano de 1952...................................89

Fotografia 22 – Número de curas, Revista Tópicos, ano de 1955...................................90

Fotografia 23 – Reprodução de fragmento da notícia: “ Em SP, filhos de hansenianos

lutam por indenização”. Jornal Estadão. São Paulo, 21 de março de 2011...................101

Lista de Figuras:

Figura 1 – Distribuição da lepra na Província de São Paulo em 1851............................35

Figura 2 – Distribuição da lepra no estado de São Paulo em 1923.................................36

Lista de Quadros:

Quadro 1 - Organograma do Departmento Nacional de Saúde Pública em 1928...........24

Quadro 2 – Plano de construções de leprosários em 1935..............................................30

Quadro 3 – Distribuição da lepra na Província de São Paulo em 1887...........................35

Quadro 4 – Distribuição da lepra no estado de São Paulo em 1923................................36

Quadro 5 – Gráfico da proporcão de internados e de novos doentes de 1924 a 1937.....43

Quadro 6 – Leprosários construídos apenas com verbas federais...................................45

Quadro 7 - Leprosários construídos com parcerias entre governos estaduais e a

União...............................................................................................................................46

Quadro 8 – Números de casos de hanseníase identificados no estados brasileiros no ano

de 2013..........................................................................................................................103

11

Apresentação:

Nesse trabalho, analisarei a internação compulsória dos hansenianos no Estado

de São Paulo e, mais especificamente, o Leprosário do Padre Bento, considerado

modelo, localizado na cidade de Guarulhos.

O trabalho abrange o período do decreto da internação, em 1930, analisando

suas motivações; passando pelo seu final legal, em 1962; e estendendo-se a 1986,

quando, na prática as internações pararam de ocorrer; não deixando de analisar como a

liberação dos internados e seu retorno a sociedade ocorreram e as implicações do

período de isolamento.

O leitor pode estranhar a utilização da palavra lepra em alguns momentos, sendo

substituída por hanseníase em outros. Isso ocorre porque até os anos de 1970 o termo

hanseníase não era difundido, sendo adotado posteriormente para amenizar o peso do

estigma carregado pelos doentes e pela palavra lepra ou leproso.

A escolha do tema, primeiramente, ocorreu por questões pessoais. Sendo

morador de Guarulhos e usuário do atual Hospital Padre Bento, antigo leprosário, essa

temática, ligada à história da cidade, sempre me despertou interesse. Ainda na

graduação em História, que realizei numa faculdade em Guarulhos, fui bastante

estimulado pelos professores a trabalhar com a história local, abraçando desde então

esse tema.

Dei-me conta da necessidade de se resgatar uma parte da história dos excluídos

da História1, as experiências deixadas de lado pela historiografia tradicional, como as de

prisioneiros, mulheres, operários.

Recentes preocupações da historiografia com a descoberta de

"outras histórias" vêm favorecendo os estudos que contemplam

diferentes abordagens do passado. Por outro lado, esses trabalhos

têm contribuído de modo significativo para a renovação temática

e metodológica, ao redefinir e ampliar noções tradicionais e ao

permitir o questionamento das polarizações em categorias

abstratas e universais, abrindo possibilidades para a recuperação

de experiências passadas até então pouco valorizadas.

1 PERROT, Michelle. Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. 2ª ed. Rio

de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

12

Nas últimas décadas, a produção historiográfica vem passando

por um conjunto de transformações, poderíamos dizer que por

razões internas e externas os estudos históricos se reformularam

intensamente a partir da crise dos paradigmas tradicionais da

escrita da história, que requeria uma completa revisão dos

instrumentos de pesquisa.

Essa crise de identidade da história levou à procura de "outras

histórias", ampliando desse modo o saber histórico e

possibilitando a descoberta de outras abordagens.

A Nova História, ao propiciar um avanço considerável na

historiografia - tanto pela ampliação das áreas de investigação

como pela utilização da metodologia e marcos conceituais

renovados, dinamizando as relações sociais e modificando os

paradigmas históricos - influenciou a abertura de perspectivas

para outros estudos, como os do cotidiano.

Contudo, foi influência marcante a descoberta do político no

âmbito do cotidiano, o que levou a um questionamento sobre as

transformações da sociedade, o funcionamento da família, o

papel da disciplina e das mulheres, o significado dos fatos, gestos

e sentimentos.2

Explorar esses novos objetos, com uma gama diferente de fontes, torna-se

possível na historiografia contemporânea graças à ampliação das esferas do político e ao

relativismo pós-moderno, que destroem a tradicional distinção entre o que é central e o

que é periférico na História, levando os pesquisadores da área a ampliarem seus objetos

de estudo, focando a análise, e não mais o “fato”.3

Isso se dá com a ruptura do tradicional positivismo dos grandes feitos políticos

e militares. Ou até mesmo de um marxismo engessado e esquemático, de uma História

sem carne, que não enxerga o materialismo histórico como método de análise, o

transformando numa fórmula que se aplica a qualquer realidade, limitando-o muitas

vezes a um determinismo econômico, uma distorção propalada por Althusser, entre

outros.

Junto com a ampliação dos temas e objetos de estudos para o historiador, abre-se

um leque de novas fontes a serem adotadas e analisadas como documentos históricos. O

estudo contempla essa nova gama de fontes, utilizando documentos institucionais do

Leprosário do Padre Bento, como lista de fugas de internos, despachos e compras

realizadas. Também uma revista de circulação interna no Leprosário, subsidiada pela

Caixa Beneficente, na qual há não só publicações de um editorial, como também um

2 MATOS, Maria Izilda Santos de. Âncora de Emoções: Corpos, subjetividades e

sensibilidades. São Paulo: Editora EDUSC, 2005. 3 Ibid.

13

espaço para os internos se manifestarem, um documento de grande riqueza e variedade,

com reportagens, artigos, espaço para comunicados da administração, divulgação de

atividades e de resultados dos jogos realizados dentro do Leprosário etc.

A revista, listas de fugas e demais documentos ligados especificamente ao

Sanatório do Padre Bento foram encontrados em pesquisa no próprio acervo do atual

Hospital do Padre Bento, após longa conversa com seu cuidador, Sr. Domingos, antigo

funcionário que acabou se tornando uma fonte também, com riquíssima entrevista

concedida.

Os documentos relativos à institucionalização foram conseguidos no Arquivo

Público do Estado de São Paulo, em visita virtual, e nos anais do poder Legislativo,

também disponíveis para consulta na internet.

Além disso, foi de grande valia a análise de um livro de memórias de um ex-

interno, Sr. Arnaldo Rúbio, intitulado “Eu denuncio o Estado”.

Essa documentação ajuda a compreender parte do cotidiano dos internos, bem

como evidencia seus anseios e a repercussão de uma possível cura. A revista

mencionada permite questionar o conturbado momento do mundo fora do leprosário

reverberou lá dentro. É possível encontrar menções ao nazismo, aos horrores da guerra e

à vitória do “Tio Sam” em poemas e artigos produzidos pelos internos e publicados,

mas também as atividades realizadas na busca de um cotidiano próximo à vida fora do

leprosário, algo difícil de ser atingido, considerando-se a condição de doentes que se

encontravam e os dolorosos tratamentos experimentais a que eram submetidos.

Além da documentação escrita, o estudo conta também com o subsídio da

História Oral, da memória e suas reminiscências. Foram realizadas duas entrevistas,

uma com um ex-interno e outra, com um funcionário, ambos do Sanatório do Padre

Bento.

Metodologicamente, a História Oral trabalha com a memória dos indivíduos,

sabendo que essa é pessoal, submetida a influências do meio e outras subjetividades,

tornando a análise dos depoimentos uma tarefa difícil, porém rica.

A essencialidade do individuo é salientada pelo fato de a

História Oral dizer respeito a versões do passado, ou seja, à

14

memória. Ainda que essa seja sempre moldada de diversas

formas pelo meio social, em última análise, o ato e a arte de

lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. A

memória pode existir em elaborações socialmente estruturadas,

mas apenas os seres humanos são capazes de guardar

lembranças. Se considerarmos a memória um processo, e não

um depósito de dados, poderemos constatar que, à semelhança

da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas

quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memória é

um processo individual, que ocorre em um meio social

dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e

compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser

semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém, em hipótese

alguma as lembranças de duas pessoas são – assim como as

impressões digitais, ou, a bem da verdade, como as vozes –

exatamente iguais.4

A história oral também é definida como: [...] um método de

pesquisa (histórica, antropológica, sociológica, etc.) que

privilegia a realização de entrevistas com pessoas que

participaram de, ou testemunharam acontecimentos,

conjunturas, visões de mundo, como forma de se aproximar do

objeto de estudo.5

Os autores supracitados fornecem informações de grande valia tanto no que

tange à essência e importância da oralidade na construção da História como no que diz

respeito às ferramentas e métodos na hora fundamental de conseguir os depoimentos.

Conforme sugerem tais apontamentos, um roteiro previamente organizado

auxilia a conduzir as entrevistas, incluindo esclarecimento ao entrevistado quanto aos

objetivos do estudo. É considerada na coleta de dados a relatividade de cada memória,

buscando-se perceber e salientar as variadas percepções encontradas nos depoimentos

das diferentes figuras que fizeram parte desse contexto.

Cabe ao historiador, interpelar todas essas fontes com rigor metodológico, na

tentativa de resgatar essa História, outrora relegada pela historiografia tradicional.

4 PORTELLI, Alessandro. Tentando Aprender um Pouquinho. Algumas reflexões sobre a Ética

na História Oral. Projeto História. São Paulo, nº. 15. Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, 1997, p.16. 5 ALBERTI,Verena. Manual de História Oral. 3ª ed. São Paulo: Editora FGV, 2004, p.18.

15

Sr. Arnaldo Rúbio é um ex-interno que passou sua adolescência internado, dos 6

aos 18 anos. Internado em 1939, sua entrevista pouco foi utilizada, pois em sua maior

parte ele reproduz a versão que já cristalizou sobre esse passado, presente em seu livro

de memórias, também utilizado aqui como fonte.

Sr. Domingos ainda é funcionário do Hospital Padre Bento, trabalhou no

Departamento de Profilaxia da Lepra nos anos 1960 e, posteriormente foi trabalhar

diretamente no Padre Bento. Nesse período, de transição, a internação compulsória já

havia acabado, porém ele ainda teve contato com vários pacientes e suas histórias.

Nas entrevistas, fica claro que ambos enxergam de maneiras diferentes a

internação compulsória. O ex-interno relata a tristeza do isolamento e a arbitrariedade

das internações. Por outro lado, o funcionário retrata a magnitude do Leprosário do

Padre Bento, o cuidado com os pacientes, a estrutura, a grande área de lazer, o pavilhão

de menores e sua ótima escola, oficinas de ofícios, a convivência e até mesmo a

formação de novos casais. Essa magnitude do Leprosário do Padre Bento também se

evidencia em fontes fotográficas, mas, para os entrevistados, não supria a ausência da

família e da liberdade.

Entretanto, toda essa estrutura não era comum nos demais leprosários do Estado

de São Paulo, indicando um caráter mais elitizado do Leprosário Padre Bento, talvez

pela proximidade de Guarulhos em relação à capital e sua maior visibilidade, ou até

mesmo pela própria grandeza da cidade, que já abrigava várias indústrias e olarias.

Não encontrei na historiografia trabalhos que abordem especificamente o

Leprosário do Padre Bento. Entretanto, desde os anos 1970 é notória uma tendência

historiográfica brasileira e internacional de um foco no indivíduo, o que levou a

compreensão do corpo e da doença como fenômenos historicizáveis.

As discussões sobre a lepra até então eram realizadas por médicos que

publicavam obras com viés historiográfico, ainda assim, são coletâneas de grande valia

para esse trabalho. Nesse sentido, destaco História da lepra no Brasil, escrita pelo

médico Heraclides César de Souza-Araujo, que foi chefe de três importantes órgãos do

Instituto Oswaldo Cruz, e também a obra Tratado de leprologia. História da lepra no

Brasil e sua distribuição geográfica, de Flavio Maurano, importante leprologista e

diretor do leprosário paulista de Cocais.

16

Numa historiografia mais contemporânea, algumas teses de mestrado e

doutorado vêm trazendo à baila a questão da internação compulsória dos hansenianos, o

chamado “modelo paulista”, suas implicações sociais e motivações políticas. Vale

destacar os excelentes trabalhos de Vivian da Silva Cunha, O isolamento compulsório

em questão: políticas de combate à lepra no Brasil (1920-1941). Dissertação

(Mestrado em História das Ciências e da Saúde), de 2005, e ainda a tese de Vicente

Saul Moreira dos Santos, Entidades Filantrópicas & Políticas Públicas no Combate à

Lepra: Ministério Gustavo Capanema (1934-1945). Dissertação (Mestrado em História

das Ciências e da Saúde), ambas realizadas na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de

Janeiro, inspiradas fortemente pela tese de doutorado de Yara Nogueira Monteiro, pela

Universidade de São Paulo em 1995, intitulada Da maldição divina à exclusão social:

um estudo da hanseníase em São Paulo, referência para ao assunto.

Em seu trabalho, Vivian da Silva Cunha discute as políticas federais de combate

à lepra desde a década de 1920, com a criação da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das

Doenças Venéreas, os regulamentos sanitários até o início dos anos 1940, passando

pelas reformas promovidas pelo ministro Capanema, no período getulista.

A tese de Vicente Saul Moreira também caminha até o final da gestão

Vargas/Capanema, com todas as reformas promovidas por eles, além da

institucionalização do combate à lepra e as reformas paulistas. Entretanto, parte de um

ponto anterior, abordando a questão desde a Primeira República, quando o trabalho

junto aos leprosos ainda era realizado por instituições filantrópicas, normalmente de

cunho religioso, discutindo essa importante transição entre filantropia e Estado.

Além da historiografia relacionada à hanseníase, também há neste trabalho a

influência de obras sobre assuntos correlatos, que tratam de preconceito, exclusão e

controle social através do corpo, da doença e do discurso médico que vêm sendo

produzidas a partir de 1968 até os dias atuais, tratando de temáticas como a loucura, o

alcoolismo, a AIDS, a tuberculose... Vale destacar as duas obras do francês Michel

Foucault, A microfísica do poder e Vigiar e punir, onde é abordada a institucionalização

do discurso médico como fonte de poder, utilizando a internação como forma de

controle social. E ainda o trabalho da Professora Doutora Maria Izilda Santos de Matos,

Meu lar é o botequim: alcoolismo e masculinidade, que aborda as questões relacionadas

ao alcoolismo e saúde pública, e a dissertação de mestrado concluída em 2004, na PUC-

17

SP, da Professora Tânia Soares, “Da Panacéa para Hygéa": Representações,

diagnósticos e ações sobre a infância, mulheres e famílias pobres no discurso médico-

higienista (São Paulo, 1920-30), além da dissertação de mestrado da Professora Mirtes

de Moraes, Imagens e Ações: Representações e Práticas Médicas na luta contra a

tuberculose, São Paulo (1899-1930), também defendida na PUC-SP, no ano 2000.

Portanto, esta pesquisa se soma a essa vertente historiográfica, trazendo a

especificidade do antigo Leprosário do Padre Bento a esse cenário, e contribuindo pelo

ineditismo desse tema, já que os antigos leprosários não foram trabalhados em sua

individualidade.

Trata-se de um tema atual, pois, embora o período de

internação compulsória tenha acabado legalmente após 29 anos de opressão (1933 a

1962), ainda hoje os hansenianos brigam na Justiça por direitos e ressarcimentos do

Estado, e sofrem preconceito da sociedade, tanto por estigmas religiosos arcaicos como,

e principalmente, pela desinformação. Além disso, é a única experiência de internação

compulsória por motivos tidos como médicos no Brasil, assunto que volta à tona com a

discussão sobre usuários de crack, ideia em efervescente debate atualmente,

principalmente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.

Este trabalho se dividirá em três capítulos. O primeiro capítulo se intitula

“Hanseníase, Internação Compulsória e “Modelo Paulista” e nele será apresentado um

breve histórico da hanseníase, bem como os estigmas que a acompanharam

historicamente. Em seguida, questionar-se-á as especificidades do “modelo paulista”,

independente das políticas federais e que aplicava de maneira ferrenha a internação

compulsória aos doentes. Finalizando, ver-se-á a influência paulista nas ações nacionais

de controle da lepra, nos tempos de Vargas e Capanema.

O segundo capítulo, “Leprosário do Padre Bento: Padrão, Caixa Beneficente e

Pérgola”, se divide em três partes. A primeira apresenta uma discussão sobre as

peculiaridades do Sanatório Padre Bento, tido como um modelo de internação

manicomial para hansenianos, o convívio entre os internos e as relações estabelecidas, a

sociabilização bem como as angústias. No segundo item, o foco recai sobre a atuação da

Caixa Beneficente do Padre Bento, um órgão privado, fundado com intuito de zelar

pelos internos. A análise é feita sobre sua atuação e suas relações com o Estado. Para

18

finalizar, a Pérgola, um monumento belo que centralizava o namoro dentro do

leprosário, encerra o capítulo discutindo o destino dos frutos desse namoro; os filhos

dos hansenianos internados.

Para finalizar a dissertação, discutirei o final da internação compulsória, a

descoberta da cura e sua repercussão entre os doentes, a dificuldade de acesso aos

medicamentos, a retomada da esperança... Se contrapondo a isso está a falta de um

projeto por parte do poder público para reinserir essas pessoas que passaram anos

isolados do restante da sociedade, muitos perdendo tudo que tinham. Trarei à tona a

indignação desses ex-internos agora libertos, que partirão em busca de compensações na

Justiça.

Que os leitores desfrutem e aproveitem a leitura, mergulhem nesse universo que

é um leprosário, tirando dessa pequena contribuição para um assunto pouco explorado,

elementos para pensar a sociedade atual.

19

1 – Hanseníase, Internação Compulsória e “Modelo Paulista”

No presente capítulo, será apresentado um breve histórico da hanseníase, bem

como os estigmas que a acompanharam historicamente. Em seguida, questionar-se-á as

especificidades do “modelo paulista”, independente das políticas federais e que aplicava

de maneira ferrenha a internação compulsória aos doentes. Finalizando, ver-se-á a

influência paulista nas ações nacionais de controle da lepra nos tempos de Vargas e

Capanema.

1.1 - Hanseníase: Doença e Profilaxia

A hanseníase é definida como uma doença infectocontagiosa crônica e de longa

duração, sendo transmitida de pessoa a pessoa, por meio de contato íntimo e prolongado

com doentes que possuem as formas contagiantes (Virchoviana ou Dimorfa) e que não

fazem tratamento. As condições de vida ligadas aos fatores socioeconômicos, tais como

estado nutricional, situação de higiene e condição de moradia, também estão

relacionadas aos fatores de transmissão da doença.6

Sabe-se que, aproximadamente, 10% da população mundial é suscetível ao

bacilo causador da lepra, ou seja, pouco mais de 90% da população, mesmo que exposta

a esse bacilo, não será infectada ou não manifestará os sintomas. Contudo, não havia

esse conhecimento na primeira metade do século XX, tampouco sabia-se sobre as

formas de contágio. A hereditariedade foi descartada, mas as teorias iam desde as

miasmáticas (contágio pelo ar) até picadas de mosquito. Entretanto, poderia haver uma

percepção do não avanço avassalador da doença. Considerando o fato de que a lepra

esteve presente no Brasil desde a chegada dos portugueses e, em São Paulo, desde o

século XVIII, compreender os fatores que levaram à institucionalização da internação

compulsória dos hansenianos como medida profilática nos anos 1930 e sua aplicação

ferrenha do modelo manicomial em São Paulo, esse desafio complexo, envolve questões

socioeconômicas e urbanas muito além dos motivos médicos.

A hanseníase esteve vinculada às questões econômicas, sendo associada à

pobreza, entretanto, não é uma doença exclusiva das camadas menos abastadas,

6 QUEIROZ, Marcos de Souza & PUNTEL, Maria Angélica. A endemia hansênica: uma

perspectiva multidisciplinar. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1997.

20

atingindo todas as classes. Contudo, a posição social podia implicar em tratamentos

diferenciados, como será discutido ao longo dessa pesquisa.

O estigma da pobreza não é o único que, historicamente, recai sobre a

hanseníase, há um forte preconceito religioso dentro do cristianismo, sobretudo do

catolicismo. No Antigo Testamento, nos capítulos 13 e 14 do Livro de Levítico,

encontram-se uma série de caracterizações e de recomendações sobre a lepra, inclusive

a denominação “impura”, atribuindo essa pecha a pessoa identificada como portadora da

doença.

O Senhor disse a Moisés e a Araão: quando um homem tiver

um tumor, uma inflamação ou uma mancha branca na pele de

seu corpo, e esta se tornar em sua pele uma chaga de lepra, ele

será levado a Araão, o sacerdote, ou a um de seus filhos

sacerdotes. O sacerdote examinará o mal que houver na pele do

corpo: se o cabelo se tornou branco naquele lugar, e a chaga

parecer mais funda que a pele, será uma chaga de lepra. O

sacerdote verificará o fato e declarará impuro o homem.7

Todo homem atingido pela lepra terá suas vestes rasgadas e a

cabeça descoberta. Cobrirá a barba e clamará: Impuro! Impuro!

Enquanto durar seu mal, ele será impuro. É impuro; habitará só,

e a sua habitação será fora do acampamento.8

Pode-se encontrar em outras histórias bíblicas a doença como forma de

redenção, como na parábola de Jó, que, ao morrer coberto pelas chagas da lepra, vai

direto para os braços de Abraão, encontrando a salvação.

Esse estigma religioso gestado na antiguidade não foi totalmente superado;

muitos cristãos consideram a bíblia algo sagrado e atemporal, interpretando literalmente

suas designações. Segundo o ex-interno Arnaldo Rúbio, mesmo nos anos de 1930,

algumas pessoas ainda acreditavam que a hanseníase era uma manifestação da ira de

Deus. Alguns dos doentes internados tinham seus pertences queimados por vizinhos que

acreditavam na necessidade de purificação através do fogo.

7 Bíblia Sagrada, Levítico, Cap. 13, versículos 1 a 3.

8 Ibid., Cap. 13, versículos 45 a 46.

21

Seja encarada como castigo ou como purificação, o fato é que durante toda a

Idade Média o isolamento foi a maneira escolhida no trato com esses doentes, não

apenas pelas representações religiosas da lepra, mas também pelo caráter sanitário.9

Pode-se atribuir a internação compulsória dos hansenianos realizada no Brasil a

partir dos anos de 1930, sobretudo em São Paulo, uma espécie de permanência

histórica, a reprodução do modelo medieval europeu, já que a lepra praticamente

desapareceu da Europa do final da Idade Média, havendo alguns resquícios em certos

países. Entretanto, outros fatores imperam nesses casos específicos, brasileiro e paulista.

Atribui-se a chegada da lepra ao Brasil aos colonizadores portugueses, sendo

Portugal uma das regiões onde a lepra sobreviveu à Idade Média, já que não se

encontram registros da doença nos povos indígenas.

Contudo, em São Paulo, os primeiros registros da doença são encontrados

apenas no século XVIII. Os dois primeiros casos registrados na cidade, um deles de

uma cigana que fora despejada, datam do ano de 1768.10

Esses casos eram isolados. Atribui-se o grande aumento de hansenianos em São

Paulo ao crescimento demográfico e urbano decorrente da expansão cafeeira do século

XIX - XX.

A expansão cafeeira pelo Estado de São Paulo gerou uma ampla

demanda de braços para a lavoura que coincidiu com a crise do

escravismo, gerando tensões em torno da questão do trabalho. A

elite paulista considerava a imigração subsidiada o meio ideal

para o fornecimento de trabalhadores nas fazendas,

gradativamente, esta proposta foi institucionalizada em uma

política subsidiada pelo Estado e caracterizada pela imigração

em massa, contínua e familiar.11

9 F, BENIÀC. O medo da Lepra. In: LE GOFF, Jaques. As doenças tem história. Lisboa:

Terramar, 1985. Apud: Postigo, Vânia Regina Miranda. Espaços Vigiados: Um estudo do

isolamento compulsório dos portadores de hanseníase no Asilo-colônia Santo Ângelo (1890-

1960). Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São Paulo, 2008. 10

MAURANO, Flavio. História da lepra em São Paulo. Volume I. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1939, p. 13. 11

MATOS, Maria Izilda Santos de; GONÇALVES, Leandro Pereira. “Meu primeiro manifesto

político foi um romance”: reflexões sobre a obra O Estrangeiro de Plínio Salgado. Brasiliana:

Journal for Brazilian Studies, vol. 3, nº 1, 2014, p. 478.

22

Dentro da perspectiva de crescimento das cidades, um grande fluxo de pessoas,

de corpos, os indivíduos passaram a ser pensados enquanto desejáveis e indesejáveis.

Os proponentes idealizavam um imigrante laborioso,

inteligente, vigoroso, que aspirava à fortuna, representasse o

progresso e reabilitasse o ato de trabalhar, imprimindo uma

característica civilizadora ao trabalho, além de "caiar" o país.

No correr do processo, se para alguns imigrantes foi possível

atribuir adjetivos como: ‘laboriosos’, ‘ordeiros’ e ‘dedicados’;

em outros casos as características que melhor os qualificaram

eram: ‘lutadores’, ‘contestadores’, ‘inconformados com as

injustiças sociais’. Assim, geraram-se outras inquietações e

questões: quais eram os imigrantes desejados e em contraponto

definiam-se os “indesejáveis”.12

Nessa lógica, os ideais eugenistas passaram a ter grande força, o Estado passou a

pensar medidas médico-higienistas, dentre outras maneiras de controle social, no

isolamento como forma profilática da doença. Entretanto, nenhuma medida institucional

foi tomada nesse sentido até os anos 1920.

O Brasil, ao entrar no século XX, já se encontrava sob o regime

republicano, iniciado em 1889, e seguindo as orientações da

Constituição Federal de 1891. Constituindo-se de unidades

federativas, com autonomia política em seus territórios, os

Estados poderiam estabelecer medidas independentemente da

ação ou autorização federal. A autonomia dos Estados, própria

do sistema federativo, impedia que uma determinada política

estabelecida pela União fosse realizada imediatamente em todo

o território nacional. Essa situação descentralizada e

descontinuada só poderia ser modificada caso o poder estatal

firmasse acordos com a União, onde estivesse clara a submissão

daquele Estado às ações e orientações da União. Uma

intervenção federal sem que houvesse acordos firmados feriria

os termos da constituição vigente durante todo o período da

República Velha.

Todas as medidas determinadas pela legislação federal, como o

regulamento sanitário promovido por Oswaldo Cruz em 1904,

por exemplo, tinham como campo de ação específica a Capital

Federal. Para os demais estados, esse regulamento servia de

instrução ou ponto de partida para que cada um deles tratasse

das questões sanitárias como lhe fosse conveniente, de forma

independente ou com o auxílio da União.13

12

Ibid., p. 478. 13 CUNHA, Vivian da Silva. O isolamento compulsório em questão: políticas de combate à

lepra no Brasil (1920-1941). Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) –

Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2005, p. 36.

23

A autonomia dos estados permitia que São Paulo se recusasse a assinar os

acordos da União e desenvolvesse políticas próprias. No que tange a saúde e a profilaxia

da lepra, foi o único estado a não assinar tais tratados.

Esse panorama começa a ser alterado quando, em janeiro de 1920, foi criado o

Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), diretamente subordinado ao

Ministério da Justiça e Negócios Interiores.14

A criação do DNSP gerou uma ação coordenada nacionalmente nas questões de

saúde e nas medidas profiláticas, assim como uma maior intervenção federal nos

estados, dentro da lógica dos Estados-nações fortalecida pela Primeira Guerra Mundial.

Apesar disso, a lepra não era considerada um grande problema nacional até os anos

1920, estando num patamar abaixo das ditas endemias rurais. Entretanto, nos anos 1920

ganhou destaque e um órgão próprio para seu combate, a Inspetoria de Profilaxia da

Lepra e das Doenças Venéreas (IPLDV), sugerida pelo médico Carlos Chagas15

. O

regulamento da instituição sofreu críticas de periódicos médicos da época, tendo sua

última versão em 1923.16

Apenas a lepra, as doenças venéreas e a tuberculose17

gozavam de um órgão

específico para seu combate, enquanto as demais moléstias eram tratadas de maneira

mais geral, pelo DNSP. O Serviço especial de combate à tuberculose estava

subordinado à Diretoria de Serviços Sanitários do Distrito Federal, o que restringia sua

atuação à Capital Federal, enquanto a profilaxia da lepra e das doenças venéreas seria

orientada em todo o país. Os estados e municípios que desejassem realizar esses

serviços deveriam entrar em contato com o governo federal e se submeter a sua

supervisão.18

14

Ibid., p. 37. 15

Médico sanitarista e bacteriologista brasileiro, na época era diretor do Instituto Oswaldo Cruz

e viria a ser o primeiro a dirigir também o Departamento Nacional de Saúde Pública. 16

Ibid., 39. 17

Para aprofundar as medidas específicas de combate à tuberculose ver: MORAES, Mirtes de.

Imagens e Ações: Representações e Práticas Médicas na luta contra a tuberculose, São Paulo

(1899-1930). Dissertação (Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, São Paulo, 2000. 18

BRASIL, Coleção de Leis, 1920, vol. 1, p. 1. Decreto nº. 3.987, de 02 de janeiro de 1920, art.

5.

24

25

Pelo organograma do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), no ano

de 1928, pode-se observar que, de fato, a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das

Doenças Venéreas esteve direta e unicamente subordinada ao DNSP. Todavia, os

estados da federação ainda optavam por solicitar uma intervenção e se submeter a tal

órgão. Nota-se que, até então, apenas Espirito Santo e Rio Grande do Sul haviam optado

por isso.

Não se encontrava em São Paulo uma ação tão contundente de tal instituição no

sentido de perseguição e captura dos doentes, algo que ocorreu a partir de 1930, com o

Departamento de Profilaxia da Lepra, órgão estadual. Ver-se-á a seguir, através de

depoimentos, o quanto esse Departamento era temido.

Quais fatores podem ter levado a lepra a esse status de doença cuja profilaxia era

primordial no país e a gozar de uma instituição própria para seu combate? Destaca-se

dentre esses fatos a criação e atuação da Comissão de Profilaxia da Lepra, entre os anos

de 1915 e 1919.

Dentre os acontecimentos que influenciaram a criação da

Inspetoria de Profilaxiada Lepra e das Doenças Venéreas

podemos destacar a atuação da Comissão de Profilaxiada Lepra

que esteve reunida entre os anos de 1915 a 1919. Seguindo a

proposta do leprologista e então diretor do Hospital dos

Lázaros, Belmiro Valverde, e com orientação de Juliano

Moreira, à época diretor da Assistência Médico-Legal aos

Alienados do Distrito Federal, a Associação Médico-Cirúrgica

do Rio de Janeiro promoveu a organização de uma comissão,

composta por vários médicos, de forma a estabelecer as

medidas que deveriam ser implementadas com relação à

profilaxia da lepra, àquela altura definida como um grande mal

do país.19

Tal comissão contava com médicos de várias instituições renomadas do Rio

Janeiro e, durante seus anos de atuação, abordou uma série de temas relacionados à

lepra, fatores científicos e sociais. Para essa pesquisa, vale destacar os apontamentos

trazidos a respeito da lepra, isolamento e domicílio.

O primeiro foi apresentado pelos médicos Juliano Moreira e

Fernando Terra, ambos da Sociedade Brasileira de Medicina,

indicando a opinião desta importante instituição sobre tema tão

discutido: o isolamento dos doentes. Segundo os autores, as

19 Cf. MACIEL, Laurinda Rosa. A hanseníase e a saúde pública: a comissão de profilaxia da

lepra (1915- 1919). ANPUH Nacional – 2001 – GT História das Doenças. In CUNHA, Op. Cit.,

p. 39.

26

dificuldades em se cultivar o bacilo e determinar o modo de

transmissão, tema discutido por outros trabalhos nesta

conferência, impediam uma medida profilática mais específica e

eficiente. A única certeza seria a de que o organismo humano

hospedava e cultivava o bacilo da lepra e que, portanto, cabia ao

leproso a responsabilidade pela disseminação do mal. Assim, a

única medida a se aconselhar, segundo esses autores, seria o

afastamento dos doentes do convívio social, ou seja, o

isolamento.20

A culpabilização do doente pode ser encarada como uma justificativa para

medidas extremas, seja pelo estigma religioso, o da pobreza ou qualquer outro. O único

vetor da doença conhecido era o próprio doente, e responsabilizá-lo por portar e

disseminar esse mal legitima medidas autoritárias.

Apoiando-se no programa efetuado na Noruega,

incansavelmente citado pelos defensores do isolamento

profilático e compulsório dos leprosos, os autores indicavam

que seria necessário isolar de forma distinta os doentes de

classes sociais diferentes: aos abastados deveriam destinar o

isolamento no próprio domicílio, pois estes teriam condições de

manter seus tratamentos; aos demais doentes, que dependeriam

da assistência do Estado ou de iniciativas particulares, o

isolamento deveria ser feito em colônias agrícolas, para esse fim

construídas e onde pudessem trabalhar, diminuindo, assim, os

gastos com o seu sustento.

O segundo trabalho, exposto na comissão por Eduardo Rabello

e Oscar da Silva Araújo, tratava do tema ‘lepra e domicílio’. Os

autores defendiam que os leprosos em domicílio poderiam

contaminar seus familiares, domésticos e outras pessoas de suas

relações. O ideal era que o isolamento fosse realizado como

uma medida profilática, já que a lepra, sendo uma doença

contagiosa, não poderia permitir que o doente vivesse em

domicílio nas condições normais de uma pessoa sã. Indicavam,

ainda, que o isolamento domiciliar no Brasil só poderia ser

realizado em condições excepcionais, quando fosse possível

realizar conjuntamente uma vigilância sanitária completa e

efetiva desses doentes. Portanto, para os autores, o ideal seria

que os doentes vivessem nas colônias agrícolas, tendo lá a

réplica de sua vida social anterior e ainda impedindo a

propagação do mal entre seus parentes, amigos, vizinhos etc.21

Tais proposições foram adotadas pelo governo federal e pelos estados nos anos

1930, mas em proporções diferentes. Quase todos estados do Brasil contavam com, pelo

menos, um leprosário ou, como eram chamados, asilo-colônia. Entretanto, a maior parte

20

CUNHA, Op. Cit., pp. 40-41. 21

Ibid., pp. 40-41.

27

dos estados privilegiava a internação domiciliar, a exceção de São Paulo, que

privilegiou o modelo manicomial.

As considerações finais dos encontros da Comissão foram ouvidas pelo poder

público e davam conta da necessidade de se criar um órgão para o Estado assumir as

responsabilidades pelo problema da lepra. Tal órgão seria a Inspetoria de Profilaxia da

Lepra, que reuniria médicos leprologistas para adotar as medidas profiláticas

necessárias e manter um fórum de discussão permanente.22

Dentre as recomendações práticas, a comissão defendeu o

isolamento obrigatório dos doentes, sem distinção de classe ou

indivíduo. Para aqueles que pudessem trabalhar, seriam

fundadas as primeiras colônias, em local apropriado, onde

receberiam a assistência do Estado. Para os doentes inválidos,

seriam construídos asilos. O isolamento em domicílio só

poderia ser permitido em casos excepcionais, quando o doente

dispusesse de meios para o seu sustento e obrigando-se à

submissão restrita ao tratamento profilático, sob vigilância

assídua e rigorosa. Esses conselhos demonstram as opiniões dos

médicos (...), principalmente as de Eduardo Rabello e Oscar da

Silva Araújo, que, mais tarde, participarão da cúpula decisória

sobre as ações de profilaxia da lepra no país e tentarão pôr em

prática essas recomendações a respeito da profilaxia da lepra,

não obstante os empecilhos financeiros para a construção das

colônias para os doentes.23

Tais apontamentos tiveram forte influência sobre os modelos adotados no Brasil,

principalmente pelo estado de São Paulo, que sofreu grande influência da Comissão de

Profilaxia da Lepra e que já tinha grandes preocupações com a saúde, com medidas

profiláticas e com estatutos que regulamentassem esses serviços por conta do enorme

crescimento ocorrido a partir do ciclo cafeeiro e os problemas decorrentes dessa grande

concentração de pessoas num ambiente urbano.

Eram os chamados “medos urbanos”, fatores como o acúmulo de pessoas em

ambientes mal saneados, o surgimento de cemitérios nas cidades, a violência e outros

que levaram a uma espécie de sentimento coletivo de medo e apreensão.24

Assim, os

22

As conclusões da Comissão de Profilaxia da Lepra foram expostas por Emílio Gomes em sua

comunicação à Academia Nacional de Medicina e encontram-se transcritas na obra de SOUZA

ARAUJO, Heráclides César de. História da Lepra no Brasil. Período Republicano (1890-1952).

Volume III, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1956, p. 159. 23

CUNHA, Op. Cit., p. 39. 24

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2001.

28

trabalhos profiláticos e as tentativas de amenizar tal sentimento tornaram-se de grande

importância para os governos de cidades como São Paulo.

1.2 – Estratégias de Controle: “Modelo Paulista”

No Primeiro Congresso Médico Paulista, ocorrido em 1916, as preocupações

acerca da profilaxia da lepra tiveram destaque, sendo apontado como modelo ideal para

chegar a erradicação da doença a exclusão social do doente, seu isolamento. Isso porque

não se sabia exatamente como era transmitida a lepra, sendo o próprio doente o único

vetor conhecido.

Nesse sentido, pode-se afirmar que a criação da Inspetoria de

Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas veio como resposta

a esse movimento médico que pedia “a atenção dos governos

federal e estaduais a fim de que sejam tomadas medidas de

profilaxia contra essa moléstia”. O mesmo decreto que criou o

Departamento Nacional de Saúde Pública criou, também, a

Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas.25

Essa medida data do ano de 1920. Até então nada havia sido feito em nível

federal para o combate a lepra. Contudo, os estados da federação já vinham aplicando

políticas de maneira autônoma, havendo um grande destaque para São Paulo.

No VIII Congresso Médico Brasileiro, ocorrido no Rio de

Janeiro, em 1918, os trabalhos sobre lepra pautavam a situação

em vários Estados, citando as formas empreendidas pelos

respectivos governos para o seu combate. Podemos encontrar

inquéritos, censos, históricos sobre a presença da doença no

Estado, a profilaxia adotada e defendida etc. A atuação do

Estado de São Paulo, conforme trabalho apresentado por Emílio

Ribas, já demonstrava o quanto o governo estadual se

distanciava do governo federal, proporcionando à sua população

um cuidado específico para os doentes de lepra.26

Este foi o embrião do que ficaria conhecido como o “modelo paulista”, um

projeto profilático para a lepra que foi empreendido com veemência no estado de São

Paulo, principalmente a partir dos anos 1930.

O Estado de São Paulo promoveu medidas de controle da lepra

de forma independente daquelas realizadas pelo governo

federal. O chamado “modelo paulista” determinou a exclusão

25

SOUZA ARAUJO, Op. Cit., p. 208. 26 RIBAS, Emílio. “Freqüência da lepra em São Paulo – Profilaxia da lepra – Contagem dos

atacados de lepra”, apud SOUZA ARAUJO, H. C. de, Op. cit., pp. 233-241. Apud. CUNHA,

Op. Cit., p. 43

29

de todos os doentes de Hansen, independente da forma clínica

ou estágio da doença, distinguindo-se fortemente dos métodos

adotados por médicos e autoridades de outros estados. Em São

Paulo, os pacientes de formas não-contagiosas da doença

poderiam ser vigorosamente internados logo após o diagnóstico.

Para pôr em prática tais medidas era importante a construção de

colônias para leprosos, cujo projeto e estrutura terminaram por

influenciar a edificação de instituições similares em outros

países. As colônias de São Paulo foram visitadas por

pesquisadores estrangeiros e citadas em literatura especializada,

transformando-as em referência obrigatória para os

leprologistas brasileiros e latino-americanos, notadamente até a

década de 1950.27

Quase todos os estados brasileiros possuíam pelo menos um leprosário, que só

eram utilizados para os casos mais graves e no estágio contagioso da doença. Já São

Paulo internava compulsoriamente as pessoas ao menor sinal da doença. Enquanto os

demais estados privilegiavam a internação domiciliar, São Paulo privilegiou o modelo

manicomial dos asilos-colônias.

O Estado paulista desenvolveu uma política centralizada de combate à lepra,

uma necessidade frente a seu crescimento.

A partir do ultimo quarto do século XIX, o desenvolvimento

econômico da província de São Paulo, motivado principalmente

pela expansão cafeeira, contribuiu para o crescimento urbano e

populacional, impulsionado pela chegada de imigrantes para a

cafeicultura, a ampliação das atividades fabris e terciárias, e o

fortalecimento de uma “burguesia cafeeira”, que investiu na

produção agrícola e em outros setores da economia como as

fábricas e as ferrovias. Os problemas com a estrutura urbana e a

saúde pública agravaram-se no mesmo período. As epidemias

tornaram-se grave problema tanto na capital do estado e no

porto de Santos como em prósperos núcleos urbanos do interior,

onde a assistência médica se restringia a hospitais religiosos e

consultórios privados. Para enfrentar a crise sanitária na virada

do século XIX para o XX, o governo estadual colocou em

prática medidas que serviriam de modelo a decisões adotadas

posteriormente pelo governo federal.28

27

MONTEIRO, Yara Nogueira. Da maldição divina à exclusão social: um estudo da

hanseníase em São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São

Paulo, 1995, pp. 217-230. 28

SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Entidades Filantrópicas & Políticas Públicas no

Combate à Lepra: Ministério Gustavo Capanema (1934-1945). Dissertação (Mestrado em

História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2006.p. 44.

30

O Brasil ainda não possuía, em nível federal, uma centralização dos serviços de

saúde, principalmente para o tratamento da lepra. Isso ocorreu primeiro em São Paulo,

por conta do grande crescimento gerado pelo café, o surgimento de uma burguesia

cafeeira capaz de investir e diversificar investimentos, o que eleva o Estado a outro

status e sua capital a um grande processo de urbanização, com aumento demográfico

ligado a um intenso processo imigrantista, trazendo consigo os problemas decorrentes

da concentração populacional.

(x) Incluída desde o início a despesa de manutenção.

(xx) Despesas totais de instalação no 1.º Ano. Do segundo em diante metade das despesas de manutenção. (xxx) Os cálculos de manutenção foram feitos tomando a si o Governo Federal metade das despesas e

partindo, de uma maneira geral da base de 1 conto ‘per

capita’, custo médio verificado nos leprosários que já estão funcionando. Essa despesa entretanto, terá de variar de um Estado a outro só podendo ser

definitivamente fixada após o 1.º ano de funcionamento dos novos leprosários.”

Fonte: BARRETO, João de. Arquivos de Higiene, 1935:5 (1) pp. 119-130.

No documento, nota-se que São Paulo, juntamente com Minas Gerais, estado

vizinho também com condições econômicas e influência política consideráveis, eram os

dois estados com maior demanda por leitos. Eram 6.000 para os paulistas e pouco mais

31

do que isso para os mineiros, ambos também tinham o maior número de leprosários;

cinco cada.

O primeiro leprosário construído em terras paulistas foi o Asilo-colônia de Santo

Ângelo, em Mogi das Cruzes, inaugurado em 1928. Em seguida, o Asilo-colônia de

Pitapitingui, criado na cidade de Itu, em 1931, mesmo ano de inauguração do Sanatório

Padre Bento, em Guarulhos. No ano seguinte, 1932, na cidade de Casa Branca, foi

inaugurado o Asilo-colônia Cocais, e finalizando a rede de leprosários paulistas, em

1933 começa a funcionar o Asilo-colônia Aimorés, em Bauru.

Todos os leprosários possuíam amplos pavilhões, sendo o Pirapitingui o de

maior capacidade, aproximadamente 5.000 leitos29

. O objetivo das escolhas dos lugares

para as construções desses leprosários pode se evidenciar pelo fato de nenhum deles

estar na capital do Estado. Pelo contrário, todos ficavam em regiões bastante afastadas,

denotando o intento de promover uma limpeza social na cidade de São Paulo,

utilizando-se da medicina higienista para tal fim.

Quanto pior o estágio da doença, quanto mais aparentes os sinais físicos, que não

eram agradáveis a quem vê, mais distante era internado esse doente. Mais próximo a

capital paulista e de mais fácil acesso, o Sanatório Padre Bento recebia os doentes em

estágio inicial. Já o Santo Ângelo foi apelidado de “ferro velho” pelos seus próprios

internos, por conta da situação física já bastante deteriorada desses doentes.30

O órgão responsável pela captura, transporte e internação dos doentes, além da

fiscalização dos leprosários, em nível estadual, era o Departamento de Profilaxia da

Lepra (DPL), dirigido com mãos de ferro pelo Dr. Salles Gomes31

.

Ao assumir o comando da profilaxia da lepra no estado, a partir

de 1935, Francisco Salles Gomes Júnior assumiu, como

medidas primordiais, o isolamento dos leprosos em grande

escala, a anexação de todos os asilos ao Departamento de

Profilaxia da Lepra (...)

Alguns jornais denunciavam as atrocidades que ocorriam no

interior do Santo Ângelo e dos demais asilos da rede paulista,

atribuindo ao Dr. Salles Gomes a responsabilidade por tais

29

RÚBIO, Arnaldo. Eu Denuncio o Estado. 1ª ed. São Paulo: s.e., 2007, p. 78 30

Ibid.. p. 75. 31 Dr. Francisco Salles Gomes Júnior era médico leprologista e dirigia o DPL (Departamento de

Profilaxia da Lepra). Era conhecido por sua intransigência quanto a necessidade e os benefícios

da internação compulsória mesmo no estágio não contagioso da doença.

32

acontecimentos. O médico chegou a ficar conhecido como o

“carrasco dos leprosos”.32

O depoimento de um ex-interno ao Jornal de São Paulo, que traz alguns

elementos elucidativos a respeito da caracterização feita do DPL pelos doentes.

Há sete anos fui segregado, brutalmente, pelos “dedicados”

agentes do Serviço da Lepra de São Paulo. Foram dois os

choques que recebi: primeiro saber-me doente, o segundo, ver-

me tratado com tanta desumanidade. Estive no Asilo Santo

Ângelo e de lá me mandaram para o Sanatório Padre Bento,

isso como verdadeira mercadoria humana. Nesse tempo, eu

estranhei, pois ainda não sabia existir um mal maior do que o

“ter lepra”. Soube logo após o que era ser leproso debaixo dos

“regulamentos” do D.P. da Lepra em São Paulo! Conheci,

então, a real situação minha e de meus companheiros de

infortúnio: éramos leprosos no corpo, administrados por

verdadeiros leprosos no caráter! (...) Ao jogarem-me nesses

leprosários que eles denominam “colônias” ou então

“Sanatórios”, eu era um moço de presença absolutamente

normal, sem qualquer característica que seja da moléstia

(convém frisar que fui pego por denúncia do médico, o qual fui

consultar de motu próprio).33

Nota-se, além da truculência com que os doentes eram tratados e da maneira

ferrenha com que o “modelo paulista” foi implementado, uma hierarquia entre os

leprosários. O paciente que cedeu seu depoimento ao Jornal de São Paulo diz ter

passado pelo Santo Ângelo e depois ter sido transferido para o Padre Bento. Também

afirma ser o único sem nenhum sinal físico da doença. Tais fatos estão interligados; o

Padre Bento era o sanatório mais próximo da capital e também o de mais fácil acesso.

Não à toa, foi transformado em modelo pelo DPL, uma vez que recebia pacientes em

estágio mais inicial da doença e com maior poder aquisitivo, um cartão de visitas do

programa de combate à lepra paulista, reforçando a tese de limpeza social para a capital.

As especificidades desse sanatório modelo serão aprofundadas no próximo capítulo.

A implementação do isolamento compulsório em São Paulo

cerceou-se de várias aproximações profiláticas em que, em

muitas vezes, viram-se refletidos os interesses da comunidade

científica nacional e internacional e os métodos adotados em

outros países endêmicos, A política preventiva que culminou no

32

POSTIGO, Vânia Regina Miranda. Espaços Vigiados: Um estudo do isolamento compulsório

dos portadores de hanseníase no Asilo-colônia Santo Ângelo (1890-1960). Dissertação de

Mestrado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São Paulo, 2008, p. 146. 33

Fonte: Depoimento não assinado enviado ao Jornal de São Paulo – 25 de abril de 1945

(Acervo do Instituto de Saúde).

33

modelo paulista foi estruturada gradualmente. Enquanto o

isolamento era seletivo em alguns estados brasileiros, em São

Paulo ele foi compulsório para todas as pessoas diagnosticadas

com lepra. Isso porque São Paulo era um estado

economicamente independente e tinha poder e verba para

implementar tal política. (...) O “modelo campanhista” do

Brasil, que desde a década de 1910 indicava que as doenças

deveriam ser combatidas através de campanhas tão rigorosas

quanto às estratégias militares, influenciou também no “modelo

paulista” que empreendeu vigorosas buscas aos leprosos.34

Além da capacidade financeira e autonomia perante o governo federal, São

Paulo necessitava dar uma resposta à sociedade civil ao avanço da doença, que

aumentou consideravelmente junto com o crescimento populacional e a imigração

gerada pela expansão cafeeira. Esses doentes circulavam em grande número pelo

interior e pela capital, maltrapilhos, pedindo esmolas, muitos até possuíam um sino,

para avisar sua chegada, para que as mães pudessem recolher suas crianças. Nas

décadas de 1930 e 1940 ampliou-se a expansão urbana e industrial da cidade de São

Paulo, bem como os ideais de modernidade e a necessidade de higienização e

embelezamento.

34

CUNHA, Op. Cit., pp. 53-54.

34

Doentes de hanseníase e seus acampamentos à beira da estrada

Cenas como as da imagem eram comuns nas primeiras décadas do século XX.

Os doentes, em sua maioria pobres, eram obrigados a abandonar o pouco que tinham e

se refugiar nesses acampamentos, vivendo um exílio como andarilhos, passando a ser

vistos como perigo e incomodo.

A análise dos quadros e figuras a seguir permite mensurar o avanço da doença,

principalmente na capital. A doença tornou-se algo visível, um dos fatores que

estimularam o decreto da internação compulsória manicomial nos anos de 1930.

35

35

Vê-se na figura e no quadro, respectivamente dos anos de 1851 e 1887, que o

número de doentes foi relativamente pequeno e que a região de incidência era a oeste,

ou seja, as áreas produtoras de café, com maior densidade populacional. O número

mudou consideravelmente nas primeiras décadas do século XX.

35

Deve-se relativizar a coleta de dados, os métodos utilizados e a importância dada à lepra pelo

poder público nesse período, bem como levar em consideração a menor densidade demográfica.

36

36

O avanço da doença na capital paulista era considerado alarmante, e quase nada

se sabia das formas de contágio. A aparância dos doentes, suas chagas e a situação de

mendicância em que boa parte deles se encontrava contrastava com a cidade que

crescia, se modernizava e criava no imaginário o slogan de “locomotiva do Brasil”.

Dentro da lógica higienista, elimina-se o único fator contagiante conhecido e promove-

36

Deve-se relativizar a coleta de dados, os métodos utilizados e a importância dada à lepra pelo

poder público nesse período.

37

se limpeza social e embelezamento da capital (um símbolo), numa única medida: A

internação compulsória manicomial dos hansenianos, assim nascia o “modelo paulista”,

esses foram os fatores que definiram esse modelo, o compulsoriedade da internação, ou

seja, internar pessoas independentemente de sua vontade e não abrir a possibilidade de

uma internação domiciliar, adotando o modelo manicomial, com seus asilos-colônias e

sanatórios para todos os doentes, independentemente do estagio ou da forma da doença.

Essa era uma tendência higienista.

Diante do caos gerador de medo e insegurança, era urgente a

emergência da ordem, do equilíbrio. A harmonia desejada era a

de uma sociedade que caminhasse para o progresso, isso é, que

desenvolvesse o modo de produção capitalista sem sofrer os

percalços da luta de classes. Todo comportamento considerado

diferente deveria ser visto como resistência ao sistema, como

uma anomalia impeditiva do funcionamento do corpo social, e

seus agentes deveriam ser enquadrados nas prisões, nos

hopícios e nos institutos disciplinares.37

Para promover tal modelo de internação, apresentaram um projeto

propagandeado como o que havia de mais moderno e humano, com leprosários que

possuiam grande área e estrutura.

As construções foram planejadas permitindo a separação dos

pacientes por sexo, idade e condições de saúde, incluindo uma

zona de diversões, outra para a administração, além de cadeia,

igreja, portaria, estábulos, cemitério, biblioteca, creches, posto

policial, farmácia etc. Deveria ter também sistema de

eletricidade, de águas e de esgotos. Era projetado para se tornar

auto-suficiente, contendo terra para cultivo agrícola e animais

de pasto.38

No caso do Sanatório Padre Bento, os pacientes também eram separados por

classe social. Poderiam haver variações nessa estrutura, mas, em linhas gerais, os

leprosários estavam dentro desse modelo, e todos foram construídos com verba

estadual.

Algumas funções eram executadas pelos próprios internos e remuneradas pelas

caixas beneficentes. Uma das estratégias para dividir, dominar e vigiar os internos era

destacar entre os próprios um delegado e seus assistentes, que exerciam certa forma de

37 ROMERO, Marisa. As normas médicas em São Paulo, 1889-1930. Projeto História. São

Paulo, nº 13, 1996, p, 167-173. 38

CUNHA, Op. Cit., p. 53.

38

poder sobre os demais, e se sentiam parceiros da direção do leprosário por gozarem de

algumas beneces.39

Aproximadamente 15 mil pessoas foram vítimas da internação compulsória nos

5 leprosários paulistas construídos com verba estadual e frutos do chamado “modelo

paulista”, movido pelo desconhecimento da doença, preconceito e pelos ideais

eugênicos de modernidade paulista.

1.3 –Brasil de Vargas: Políticas, Práticas e Influências

São Paulo foi o único estado a não assinar os acordos federais e a desenvolver

políticas próprias, vide o Decreto estadual Lei nº 5965, de 30 de junho de 1933, que em

seu 9º artigo destacava a responsabilidade da Inspetoria de Profilaxia da Lepra em

providenciar no menor tempo possível a internação dos doentes de lepra no Estado,

compulsoriamente. Assim, como agiu autonomamente ao longo de todo período de

internação compulsória, também o fez no seu fim. A portaria nº 968 do Ministério da

Saúde, de 7 de maio de 1958, revogou a internação compulsória em todo o país,

entretanto, São Paulo só o fez quatro anos depois, em 1962.

O caso paulista foi bastante peculiar, pois houve influência das políticas

empreendidas no estado sobre as políticas que seriam implementadas em nível federal,

principalmente na “Era Vargas”.

O Estado de São Paulo foi pioneiro nas ações para o combate a lepra e a

centralização de seu serviço de saúde, isso por conta de suas condições materiais, como

visto.

A solução encontrada pelo poder público foi uma reforma

sanitária que centralizou os serviços de saúde e tornou mais

rigoroso o controle da imigração, viabilizando ações

permanentes no campo da saúde. Em 1892 foi criado o Serviço

Sanitário do Estado de São Paulo para elaborar e implementar

os programas de combate às diversas epidemias. Dois anos

depois, produzia-se em São Paulo o primeiro código sanitário

brasileiro, e, em 1896, a administração estadual passou a

intervir nos municípios em momentos de epidemia. As

engrenagens principais do sistema de saúde eram então os

institutos Bacteriológico, Vacinogênico, Butantan, o

Farmacêutico e o de Análises Clínicas. De 1896 a 1917, o cargo

de diretor do Serviço Sanitário Estadual foi ocupado por Emílio

39

RÚBIO, Op. Cit., 2007.

39

Ribas, e em sua gestão houve gradual centralização das ações

de saúde nas mãos do governo paulista.40

Como já citado anteriormente, o controle das epidemias também passava por um

controle do fluxo de pessoas e da imigração, uma busca pelo “imigrante desejável”,

pelas pessoas que se enquadravam às normas sociais influenciadas pelo pensamento

eugenista.

Em dezembro de 1916, a Sociedade de Medicina e Cirurgia de

São Paulo e outras instituições locais de pesquisa e ensino

organizaram o I Primeiro Congresso Médico Paulista, enquanto

na Capital Federal transcorriam os debates suscitados pela

Comissão de Profilaxia da Lepra. Na conferência que Emilio

Ribas proferiu no congresso paulista, ele abordou a repercussão

do debate entre contagionistas e anticontagionistasno que se

refere à herança versus o contágio da lepra. Ribas admitia que a

medicina e a ciência não tinham chegado ainda a

conhecimentos seguros que permitissem a eliminação do mal, e

por isso mesmo recomendava o isolamento dos doentes. Por se

tratar de doença que requeria segregação por muitos anos, a

melhor opção seriam leprosários operando como pequenas

cidades, com boas instalações e localização geográfica

adequada, de modo a evitar a idéia de degredo do doente.41

Apesar dos indicativos que os congressos em São Paulo já traziam, a internação

compulsória dos hansenianos só pôde ser aplicada nos anos 1930, período que coincidiu

com a ascenção de Getúlio Vargas ao poder federal. Nesse momento, as ações de

controle da lepra não tiveram grande influência na política paulista, pelo contrário,

foram bastante influenciadas pela última.

Em 1924, foi criado o Serviço Oficial de Profilaxia da Lepra

em São Paulo. No ano seguinte, foi apresentada ao legislativo, a

Reforma do Serviço Sanitário, também conhecida como

Reforma Paula Souza. Entre as medidas propostas transformou

o Serviço de Profilaxia da Lepra em a Inspetoria de Profilaxia

da Lepra, efetivamente criado em julho de 1925. Este órgão

subordinado ao Serviço Sanitário, que por sua vez, era

vinculado à Secretária do Interior, sistematizou as políticas de

combate no território paulista.

Havia divergências entre as autoridades médicas locais em

relação à política isolacionista dos doentes. Somente quando

Aguiar Pupo - professor de Clínica Dermatológica e

Sifiligráfica na Faculdade de Medicina de São Paulo, e defensor

do isolamento compulsório - assumiu a direção da Inspetoria de

Profilaxia da Lepra, no governo estadual de Julio Prestes (1926-

40

SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Op. Cit., p. 44. 41

Ibid, p. 45.

40

1930), foi possível priorizar o isolamento compulsório dos

doentes, mas as antigas instituições hospitalares não

comportavam tal política. Em 1928, foi inaugurada a Colônia

Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes. Ela passou a representar o

modelo para as demais colônias de São Paulo, as quais, “por sua

vez, influenciariam as instituições congêneres no Brasil”.42

A Reforma Sanitária ficou conhecida como “Reforma Paula Souza” por conta de

seu idealizador, o médico-sanitarista Geraldo Horácio de Paula Souza. Formado nos

E.U.A., de onde trouxe suas influências, Paula Souza cria os Centros de Saúde, órgãos

eminentemente educativos e profiláticos cuja atuação se dava principalmente junto às

mulheres e crianças pobres.43

Geraldo Horácio de Paula Souza em sintonia com seu tempo,

propôs uma estratégia de saúde pela educação. Em 1922, o

referido médico assume o cargo de diretor do Serviço Sanitário

recomendado ao secretário dos Negócios do Interior pela

Fundação Rockefeller, assumindo também a direção do

Instituto de Higiene, criado com ajuda desta fundação.

Recém chegado dos Estados Unidos onde concluiu o curso de

Higiene e Saúde Pública da Johns Hopkins University, obtendo

o grau de doutor, trouxe consigo novas idéias e concepções

para tratar da saúde pública paulista. Consciente das questões e

carências urbanas, Paula Souza à frente do Serviço Sanitário,iria

atuar diretamente sobre esse meio.44

Tais medidas de centralização das ações adotadas em São Paulo iam ao encontro

das ideias de Vargas para o Brasil. Até então, o papel federal no combate à lepra era o

de controlar o fluxo migratório, impedindo a entrada de novos doentes, o restante ficava

a cargo dos municípios e dos estados.

No início da gestão de Vargas, as ações nacionais ainda estavam centralizadas

pelas instituições filantrópicas, representadas pela Sociedade de Assistência aos

Lázaros, que nos início dos anos 1930 já possuía unidades em São Paulo capital (a

sede); Bauru; Rio de Janeiro (Distrito Federal); São Simão; Parnaíba (Piauí); Juiz de

Fora; Belo Horizonte; Natal (Rio Grande do Norte); Bahia e São Carlos. O governo

paulista era contrário a isso e se manifestava através do IPL (Inspetoria de Profilaxia da

Lepra), representado na figura de seu diretor, Salles Gomes, pedindo para que as

doações fossem feitas diretamente para as caixas beneficentes dos leprosários, o que

42

Ibid. pp. 47 e 48. 43

SILVA, Tânia Soares da, “Carências” : Crianças, mulheres, famílias - As representações na

medicina higienista (São Paulo, 1920-1930). ANPUH – XXII SIMPÓSIO NACIONAL DE

HISTÓRIA – João Pessoa, 2003. p. 04. 44

Ibid. p. 03.

41

evitaria desvios e desoneraria o Estado. O governo paulista acreditava que deveria

centralizar as ações de combate à lepra.45

O Governo Vargas iniciou maiores intervenções nesse sentido, principalmente a

partir de 1934, quando Capanema assumiu o Ministério da Educação e Saúde Pública

(MESP). Um primeiro indicativo foi financiar a construção de leprosários em alguns

estados, exceto São Paulo, que o fazia com recursos próprios, mas, num primeiro

momento, as administrações ainda ficaram a cargo dos estados. Capanema começou a

traçar um plano de combate à lepra baseado no tripé leprosário, preventório e

dispensário, uma apropriação das políticas paulistas.

O leprosário seria responsável por isolar e cuidar do doente, o preventório

serviria para abrigar os filhos sãos dos leprosos internados, e o dispensário, por sua

vez, fiscalizaria os parentes e outras pessoas que entrassem em contato com os doentes

internados.

Apesar da aproximação do modelo paulista e das políticas de Capanema, as duas

ainda corriam em separado. O modelo paulista ainda era muito mais ferrenho e

mantinha suas especificidades, principalmente na rigidez com que praticava a

internação compulsória.

Os primeiros anos do governo Vargas foram marcados por forte

instabilidade política, devida, em grande parte, à diversidade de

forças engajadas no processo que culminou com a Revolução de

1930. Os interesses divergentes das elites regionais que

defendiam o federalismo, e dos tenentes, partidários da

centralização, refletiam-se na arena política, tanto na disputa

por cargos na administração pública como na definição dos

rumos do governo. Na concepção das elites regionais,

hegemônicas, cabia ao Estado dinamizar a administração

pública para atingir o crescimento econômico. Isso requeria “a constituição de um aparato governamental que atuasse em todo

o território nacional, conjugando a ação governamental nas

esferas federal, estadual e municipal em um projeto unificado”.

A criação do MESP foi um subproduto da centralização do

poder, da “ampliação da autonomia e da capacidade de

intervenção do Estado brasileiro”, consubstanciada na reforma

administrativa implementada durante o Governo Provisório.46

O Ministério da Educação e da Saúde Pública seria um instrumento de

intervenção federal nos estados, norteador das políticas e ferramenta de combate à lepra. 45

SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Op. Cit., 2006. 46

Ibid., pp. 87 e 88.

42

Até esse período, São Paulo não tinha uma secretaria específica para a saúde, cria, em

1931, a Secretaria do Estado de Educação e da Saúde Pública. No mesmo ano, o diretor

Salles Gomes cria as diversas inspetorias submetidas a essa secretaria, entre elas, a

Inspetoria de Profilaxia da Lepra, que dirigiu com mãos de ferro, extinguindo as

inspetorias municipais e seguindo a tendência de centralização, herdada dos anos de

1920.47

De 1930 até 1934, o MESP passou por um período de adaptação, com trocas

constantes de funcionários e de nomenclaturas nas ações. Isso muda quando Capanema

se fixa no Ministério, de 1934 a 1945. Logo que assume, faz uma reforma, mas mantém

a extinção das Inspetorias de Profilaxia de Lepra e o DNSP, que herdou de seu

antecessor, Washington Pires.

São Paulo, mais uma vez, busca manter-se independente, pondo em prática suas

próprias ações, e Salles Gomes, em 1935, transforma a Inspetoria de Profilaxia da Lepra

em Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL), sob seu comando.

Segundo o relatório de 1935, do Departamento de Profilaxia da

Lepra em São Paulo, seus médicos eram unânimes em

considerar o isolamento dos doentes como a medida profilática

de maior alcance. O isolamento nosocomial requeria número

suficiente de leitos, e o domiciliar, poderia ocorrer somente em

condições muito especiais. Havia então apenas 55 enfermos

nesta condição, enfermos que precisavam ser visitados

regularmente pelos médicos do serviço. A organização

estabelecida no Estado de São Paulo, após 1930, passou a ser

considerada pela literatura médica sobre lepra como uma das

mais eficientes, por organizar o combate à doença

independentemente da União, sem sujeitar-se às políticas

federais.

A União começava, porém, a mudar, aproximando-se do

modelo instituído em São Paulo. Em 1935, Ernani Agrícola –

um dos principais personagens das políticas de combate à lepra

ao longo da Era Vargas, ocupava a direção dos Serviços

Sanitários Federais nos Estados. Posteriormente ocuparia outros

cargos na burocracia do Ministério da Educação e Saúde – e

Joaquim Motta, assistente da Secção Técnica Geral de São

Paulo, apresentaram projeto que visava a construção de novos

leprosários e a melhoria dos já existentes.48

No ministério de Capanema, os serviços de combate à lepra avançaram dentro

do citado trinômio constituído pelos leprosários, preventórios (ou educandários) e

47

Ibid. 48

Ibid., pp. 93-94.

43

dispensários, em parceria com as Associações de Defesa dos Lázaros e Defesa contra a

Lepra, que eram filantrópicas e laicas e ajudavam nas construções e administrações

desse tripé. Ainda assim, São Paulo continuava alegando e propagandeando a

supremacia de seu programa, e atribuindo a isso a independência e autonomia com

relação ao governo federal.

No gráfico a seguir, vê-se o crescimento no aparecimento de novos casos da

doença em São Paulo e o grande número de internações realizadas pelo Estado.

49

Nota-se que em 1937, poucos anos depois de São Paulo iniciar sua proposta e 3

anos depois de Capanema empreender um modelo parecido em nível nacional, o

“projeto paulista” demonstrava sucesso nos dados apresentados, com um número de

internações bem maior do que o de surgimentos de novos casos. Se a proporção

seguisse, rapidamente todos os doentes estariam internados.

O governo paulista atribuía tal sucesso aos investimentos especiais que fazia no

projeto e a presença de grandes especialistas, médicos-sanitaristas e leprologistas

atuando no estado.

49 Deve-se relativizar esses dados, levando-se em consideração que os leprosários e a internação

compulsória só são institucionalizados em 1930-31, e que a atenção sobre a lepra bem como a

densidade demográfica aumentam nesse período.

44

Tendo São Paulo como exemplo, no ano de 1940, o governo federal fez um

grande investimento em todo o território nacional, principalmente nas regiões Norte e

Nordeste. O plano de distribuição da verba de 10.000 contos para o combate à lepra, em

1940 (Processo 23.228-40), foi encaminhado pelo ministro Capanema ao presidente

Vargas, no dia 24 de junho. Logo em seguida, o presidente autorizou integralmente a

distribuição das verbas propostas.50

Tais investimentos eram utilizados na construção de

leprosários e preventórios por todo território nacional.

São Paulo possuía então a maior rede de leprosários do país, que, ainda assim,

operavam em superlotação. As verbas federais eram utilizadas na manutenção dessa

rede e do preventório de Jacareí.

Documento ministerial do mesmo ano dividia a campanha

contra a lepra no período entre 1931 e 1940 em duas etapas – de

1931 a 1935, e de 1936 a 1940. Na primeira fase, a ação do

governo federal não obedecera a nenhum plano, sendo os

auxílios concedidos para construção e reforma de leprosários. A

segunda etapa seguira o plano elaborado em 1935, com a

ampliação do número de instituições do aparelho anti-leproso –

leprosários, dispensários e preventórios.51

Era notória a desorganização federal em uma fase inicial para o combate à lepra.

As mudanças nos rumos das políticas nacionais para esse fim - a partir da consolidação

de Gustavo Capanema a frente do MESP, bem como a grande influência do “modelo

paulista”, colocado como vanguarda nos congressos internacionais de leprologistas, nas

proposições de Capanema e Vargas - passaram a encarar a lepra como um problema de

saúde nacional num segundo momento.

A tabela apresenta os leprosários construídos apenas com verbas federais:

50

SANTOS, Vicente Saul Moreira dos, Op. Cit., p. 111. 51

Ibid.

45

(Tabela encontrada em: SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Entidades Filantrópicas &

Políticas Públicas no Combate à Lepra: Ministério Gustavo Capanema (1934-1945). Dissertação

(Mestrado em História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de

Janeiro, 2006. p. 118.)

Em 1945 ainda havia dois leprosários em construção, com as obras paralisadas

porque os governadores dos Territórios tinham desviado as verbas para outras

aplicações, um em Cruzeiro do Sul e outro em Rio Branco.52

Já leprosários construídos com parcerias entre governos estaduais e a União

eram:

52

SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Ibid., p.119.

46

(Tabela encontrada em: SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Op. Cit., 2006. P. 119.)

Nota-se que, a partir do Ministério de Capanema, o governo Vargas passou a

investir na criação de órgãos e construção de estruturas para o combate à lepra, tal

projeto foi uma apropriação do “modelo paulista”, o Ministério de Capanema acabou

em 1945, junto com o governo de Getúlio Vargas.

Nestes anos de 1930-45, o “modelo paulista” se tornou matriz, em nível

nacional, com certa centralização das ações e maiores investimentos. Apesar disso, São

Paulo continuou com suas ações de maneira autônoma. O próximo capítulo discutirá os

meandros dessas ações ao investigar-se o Sanatório Padre Bento, considerado padrão

dentro do “modelo paulista”.

47

2 – Leprosário do Padre Bento: Padrão, Caixa Beneficente e Pérgola

Este capítulo apresenta inicialmente uma discussão sobre as peculiaridades do

Sanatório Padre Bento, tido como um modelo de internação manicomial para

hansenianos, o convívio entre os internos e as relações estabelecidas, a sociabilização

bem como as angústias. Também focaliza a atuação da Caixa Beneficente do Padre

Bento, um órgão privado, fundado com intuito de zelar pelos internos. Para finalizar,

focaliza a Pérgola, um monumento belo, que centralizava o namoro dentro do

leprosário, encerra este capítulo discutindo o destino dos frutos desse namoro; os filhos

dos hansenianos internados.

2.1 – Leprosário Padre Bento: Padrão, Gestão e Práticas

A visita que fiz, há dias, ao “Leprosário do Padre Bento”, deu-

me ensejo a admirar a eficiência dos serviços brasileiros de

combate á lepra, e posso dizer essas palavras em plena

consciência porque me refiro a um assunto de que estou

informada e de que conheço a evolução no plano internacional.

Um leprosário servido por enfermeiras-laicas, italianas, que

prestaram juramento, há três anos, para esse longo e admirável

ato de devoção. Heroínas que acordaram, na minha memória, a

recordação de outras heroínas, também visitadas por mim, há

oito anos, num leprosário português, o “Hospital Rovisco Pais”,

e são as irmãs de São Vicente de Paula. (...)53

O fragmento acima abre um artigo da colunista do jornal “O Estado de São

Paulo” Maria Archer, intitulado “Heroínas”, e ressalta a eficiência e o avanço da

política brasileira para o tratamento dos leprosos. A autora afirma isso pautada por uma

visita que realizara no Sanatório do Padre Bento, em Guarulhos, e faz comparação com

leprosários que conhecia na Europa.

Entretanto, como já analisado, o Padre Bento não foi fruto de uma política

nacional, mas sim do chamado “modelo paulista”54

, que podia ser considerado uma

53

ARCHER, Maria. Heroinas. O Estado de São Paulo, São Paulo, 21 de janeiro de 1956.

Suplemento feminino, p. 03. 54 O modelo paulista privilegia a internação manicomial em detrimento da domiciliar. São Paulo

era o único estado a não assinar os protocolos federais. Nesse período, apesar das intervenções

federais, os estados da federação gozavam de maior autonomia.

48

exceção, “o cartão de visitas” do Departamento de Profilaxia da Lepra55

. Tendo até sido

escolhido como cenário do filme “Onde a Esperança Mora”, produzido pela Carrari

Filmes, em 1948, um curta-metragem, de aproximadamente 13 minutos.56

O filme traz uma sequência de imagens com uma narração que tenta dar um tom

de documentário científico. No início, retrata como seria a vida dos leprosos nos anos

1920, mendigando à beira das estradas ou passando em casas. O leproso é representado

por um homem de pele mais escura e mal vestido, um pobre miserável, excluído

socialmente. Em seguida, aparecem imagens da cidade de São Paulo nos anos 1930, tida

como um símbolo do progresso, com seus edifícios, pontes, indústrias e escritórios. É

nesse contexto que um homem branco, jovem e bem vestido descobre que está com

hanseníase e é internado no Sanatório Padre Bento. Lá é bem tratado pelos médicos,

bem alojado, desfruta das áreas esportivas e de lazer, flerta, dança, vai ao cinema,

biblioteca, etc., sempre na companhia de pessoas do mesmo perfil, sem chagas visíveis,

com “boa aparência”, jovens e brancos. Passado um ano, já curado, é liberado para

voltar ao convívio social.

Nota-se no filme um caráter propagandista, a escolha do Sanatório do Padre

Bento como cenário se deu por ser o mais avançado estruturalmente dentre os

leprosários paulistas. Foi realizado em 1948 porque naquela época já havia a

possibilidade de cura - as sulfonas (medicamento que levou a cura) foram introduzidas

no Padre Bento em 1944, pelo então diretor, Dr. Lauro de Souza Lima57

. Não teria tanta

aceitação um filme que não terminasse com a cura, que mostrasse apenas a exclusão, o

que ocorreu na maior parte da existência dos leprosários. O curta até chegou a mostrar

rapidamente os tratamentos torturantes, feitos com centenas de injeções de óleo de

chaulmoogra58

nas manchas, o que posteriormente se soube, de nada adiantava. Mas

55 O departamento de Profilaxia da Lepra (DPL) respondia pela identificação dos casos de

hanseníase e pela internação compulsória. 56

O filme encontra-se disponível no acervo iconográfico do Instituto Lauro de Souza Lima, e

foi reproduzido digitalmente no site: https://www.youtube.com/watch?v=duBJRjI6Dzw. 57

Dr. Lauro, médico leprologista, foi diretor do Departamento de Profilaxia da Lepra do Estado

de São Paulo, Consultor Científico da ONU, representante brasileiro nos congressos

internacionais de Leprologia, membro da Conferência Pan-Americana de Leprologia do Rio de

Janeiro, e diretor do Sanatório Padre Bento durante 20 anos, onde foi o pioneiro na introdução

do tratamento sulfônico no Brasil. 58

As plantas conhecidas pela designação de chaulmoogras pertencem à família das

Flacourtiáceas, e seus óleos contêm os ácidos hidnocárpico e chaulmúgrico, que são

considerados os responsáveis pela ação terapêutica nos casos de lepra. Porém, na maioria dos

caos, seu uso apenas apresentava uma melhora temporária dos sintomas.

49

isso só serviu como ponto inicial para demonstrar os avanços feitos e ressaltar ainda

mais a excelência que haviam atingido à época.

Fundado em 1931, o Sanatório do Padre Bento seguiu um caminho oposto ao

proposto por Foucault59

como forma de controle social. Para o autor, os manicômios

surgiram para substituir os leprosários como mecanismo de controle e higiene social.

Entretanto, no caso do Padre Bento ocorreu o contrário: a transformação de um

manicômio em leprosário.

O Sanatório São Paulo foi inaugurado como uma instituição para tratamento de

doentes mentais. Logo em seguida, em 5 de junho do mesmo ano, foi adquirido pelo

Estado e transformado no Sanatório do Padre Bento (SPB), para internação compulsória

e tratamento de leprosos, contando naquela data com 83 pacientes.

Minha hipótese é que com o capitalismo não se deu a passagem

de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas

justamente o contrário: que o capitalismo, desenvolvendo-se em

fins do século XVIII e início do século XIX, socializou um

primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção,

força de trabalho. O controle da sociedade pelos indivíduos não

se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas

começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático,

no corporal que, antes de tudo investiu a sociedade capitalista.

O corpo é uma realidade bio-política. A medicina é uma

estratégia bio-política.60

O sanatório era apresentado como o que havia de mais moderno e até mesmo

humano no combate à lepra, mas de fato o Padre Bento e, consequentemente, Guarulhos

serviram como uma espécie de apêndice da cidade de São Paulo, um local onde as elites

e o governo paulista acomodavam aquilo que não era mais bem-vindo dentro do ideal de

modernidade trazido com os edifícios e fábricas dos anos 1920 e 1930.

O Sanatório do Padre Bento contava com uma vila de moradias, um prédio que

abrigava a caixa beneficente, cinema, teatro, biblioteca, cassino, salão de baile,

barbearia, campo de futebol, chácara para a criação de gado, laboratórios, sala para

palestras e escola profissional, constituindo um complexo com aproximadamente 340

mil metros quadrados.

59

FOUCAULT, Michel. Op. Cit.. 60

Ibid., p. 80.

50

Planta do Sanatório Padre Bento feita no ano de 1952. (Arquivo Histórico de Guarulhos)

Destaca-se na parte superior da imagem da planta do sanatório o campo de

futebol, com medidas oficiais, o que traz uma dimensão do tamanho do Padre Bento. Na

parte direita, a entrada e os pavilhões, que eram divididos por sexo.

Os pavilhões possuíam quartos coletivos, hall, sala de estar e saguão, como é

possível ver nas imagens seguintes:

Planta do Pavilhão Central do Sanatório Padre Bento. (Arquivo Histórico de Guarulhos)

51

Planta de uma das Alas do Pavilhão Masculino do Sanatório Padre Bento (Arquivo Histórico de

Guarulhos)

Essa infraestrutura não era comum nos demais leprosários do Estado de São

Paulo. Aliás, o Padre Bento pode ser tido como uma exceção em vários sentidos.

Lá não se encontravam pacientes em um estágio tão avançado da doença, com o

corpo deteriorado em demasia. Também era o único leprosário onde havia um pavilhão

só para menores e uma área de lazer tão grande, com belos monumentos arquitetônicos.

Além disso, a questão de classe estava presente. Nos depoimentos do ex-interno, Sr.

Arnaldo, e do ex-funcionário do Departamento de Profilaxia da Lepra, Sr. Domingos61

,

chama a atenção o apontamento de que lá havia filhos de engenheiros, empresários e até

mesmo o dono de um entreposto de café.

61

Sr. Domingos é funcionário do atual Hospital Padre Bento. Entretanto, trabalhou no antigo

Departamento de Profilaxia da Lepra, indo nos anos 1960 para o Padre Bento, já no período de

extinção da internação compulsória. Ainda assim, teve contato com diversos pacientes

remanescentes do leprosário, conhecendo muitas histórias e pesquisando o assunto.

52

Sanatório Padre Bento, São Paulo. Casas de propriedade da Caixa Beneficente, destinada a

alugar aos leprosos mais ricos. In: ARAUJO, H. C. Souza. História da Lepra no Brasil. Álbuns

das Organizações Antileprosas – Período Republicano (1889 – 1946). Rio de Janeiro. Imprensa

Nacional, 1946.

Sanatório Padre Bento, São Paulo. Tipo de residência para grupos de leprosos, reunidos de

acordo com sua condição social e forma clínica da doença. In: ARAUJO, H. C. Souza. História

da Lepra no Brasil. Álbuns das Organizações Antileprosas – Período Republicano (1889 –

1946). Rio de Janeiro. Imprensa Nacional, 1946.

Os títulos das imagens acima evidenciam o caráter elitista de alguns pacientes do

Padre Bento, bem como uma divisão do espaço físico através do critério de classe.

A primeira é intitulada “Sanatório Padre Bento, São Paulo. Casas de

propriedade da Caixa Beneficente, destinada a alugar aos leprosos mais ricos”,

demonstrando que mesmo dentro dessa instituição, que era pública, havia espaço para

usufruir de sua posição social e de seu poder de compra.

53

A segunda imagem chama-se “Sanatório Padre Bento, São Paulo. Tipo de

residência para grupos de leprosos, reunidos de acordo com sua condição social e

forma clínica da doença”, novamente denota que a divisão física e o tratamento dos

pacientes não tinham como critério apenas a análise clínica, mas também a condição

social. Não está claro se os títulos das imagens foram dados pelo próprio autor62

- um

leprologista que organizou uma coleção sobre a hanseníase no país intitulada “A

História da Lepra no Brasil”63

, contendo uma série de imagens das instituições

antileprosas - ou se pela direção do leprosário que também as veiculava, tendo assim o

leprologista fotógrafo apenas reproduzido. Em qualquer das hipóteses, a questão

classista no sanatório está posta, e não de forma velada.

Isso, possivelmente, porque os asilos-colônias de hansenianos foram

organizados distantes dos centros urbanos, com exceção do Sanatório Padre Bento, o

mais próximo da capital, onde eram mantidos pacientes sem sinais visíveis da doença,

em geral pessoas de maior prestígio ou poder aquisitivo. Na década de 1930 esta região

quase não era habitada, mas tinha proximidade com a Avenida Guarulhos, caminho para

Penha, e como ramal do trem da Cantareira, que desde 1915 ligava Guarulhos à Zona

Norte de São Paulo (Estação Gopoúva, a mais próxima do Padre Bento), fazia do

sanatório um lugar de fácil acesso, relativamente próximo à capital.64

Outra singularidade do Sanatório Padre Bento era o pavilhão de menores, único

nos leprosários paulistas, recebendo pacientes de várias regiões. O local ainda dispunha

de uma escola técnica, onde se aprendiam ofícios como a marcenaria, por exemplo, e

era a “menina dos olhos” do diretor do Padre Bento, Dr. Lauro de Souza Lima, segundo

62

Heráclito Cesar Souza Araújo, que nasceu no estado do Paraná, em 1886. Formou-se na

Escola de Farmácia de Ouro Preto, em Minas Gerais, e foi inscrito imediatamente na Faculdade

de Medicina do Rio de Janeiro, terminando lá o curso em 1915. Enquanto ainda era estudante,

ele também concluiu o Curso de Aplicação oferecido pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC), em

1913. Araújo recebeu seu doutorado da IOC, com sua tese intitulada Estudo Sobre o granuloma

venéreo. Sua formação foi concluída com os cursos em Saúde Pública na Universidade Johns

Hopikins, nos EUA, em 1926, e em Dermatologia, na Faculdade de Dermatologia de Londres,

entre 1930 e 1931. Após a formatura, permaneceu afiliado com o Instituto Oswaldo Cruz e

começou a concentrar-se na área da hansenologia. Durante os anos 1920, serviu como chefe do

Serviço Sanitário Rural do Pará, abrindo um leprosário. Mais tarde, ele escreveu uma

monografia sobre o leprosário paraense. Como pesquisador da IOC, publicou cerca de 210

trabalhos científicos e dirigiu o Laboratório de Leprologia, de 1927 a 1956. 63 ARAUJO, H. C. Souza. História da Lepra no Brasil. Álbuns das Organizações Antileprosas.

Rio de Janeiro. Imprensa Nacional. 64

RÚBIO, Op. Cit.

54

depoimento do Sr. Domingos65

. As peculiaridades também foram citadas em algumas

publicações da revista da Caixa Beneficente. Em um artigo da publicação de 5 de maio

de 1943, foi ressaltado o trabalho realizado no pavilhão de menores, a vivacidade dos

jovens ao aprender, ao praticar esportes, teatro, dança etc.

65

Ibdem 13.

55

Fotocópia de artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa Beneficente (1943).

É um vasto e belo edifício de andar térreo e superior, formado

por duas alas unidas ao centro por um amplo refeitório. Um

espaçoso porão dispõe ainda de várias acomodações para sala

de aula e outras utilidades. Edificação em bonito estilo

arquitetônico, assenta no alto de graciosa colina, de onde se

descortinam lindos panoramas em cuja beleza e plenitude a

56

nossa vista alcança paisagens da capital do Estado e seus

subúrbios. Contornam o Pavilhão de Menores lindos jardins, o

seu Parque de Diversões, a sua piscina e um grande número de

brinquedo que fazem a alacridade louçã de cerca de 300

crianças, almas em flor tão cedo arrebatadas ao aconchego de

seus lares e ao carinho de seus pais.66

Inaugurado em 1936, o Pavilhão de Menores abrigava cerca de 300 crianças e

adolescentes, entre 5 e 17 anos de idade. Meninos e meninas eram separados em alas

diferentes. O pavilhão contava ainda com escola, área de lazer e era separado do

restante do complexo por uma área arborizada.

No Pavilhão de Menores, pois, as crianças internadas, em

conforto, em desvelo, em carinho, enfim, em tratamento afetivo

e lhano, bem como em instrução e educação, um verdadeiro

complemento do lar paterno. Ao lado do tratamento prescrito

pela ciência médica. E ao influxo da bondade sem par do ilustre

Dr. Lauro, que as anima e reconforta, e do seu digno e operoso

diretor, professores e funcionários, os seus dias decorrem num

ambiente de calma e serenidade, de bem estar e de conforto, em

busca da saúde que as há de reconduzir um dia ao seu lar

venturoso, à sua família, à sociedade e à Pátria, que nelas

confiam e esperam.67

Ainda hoje, é possível encontrar móveis no atual Hospital Padre Bento que

foram feitos por jovens aprendizes de marcenaria. Ressaltando que não foi encontrado

nenhum registro de violência contra esses menores durante a pesquisa. Todos os

serviços do pavilhão foram bastante elogiados, exceto por algumas reclamações da

cozinha.68

Mesmo gozando do convívio de outras crianças, era dura a separação dos

menores dos pais e da família. O Sr. Arnaldo Rúbio, que ficou internado dos 6 aos 18

anos, relata com muita emoção o fato de seu pai, também hanseniano, ter sido internado

em outro leprosário, em Bauru, interior de São Paulo, o que fez com que a família o

acompanhasse, deixando Arnaldo sozinho no Padre Bento, o único dos cinco leprosários

do estado a ter um pavilhão para menores hansenianos.

No começo, minha mãe ainda vinha me visitar. Mas estava

muito difícil ter que viajar para Bauru para ver meu pai com os

66 Fragmento do artigo “Pavilhão de Menores”, publicado na Revista Padre Bento, em maio de

1943. 67 Ibid. 68

RÚBIO, Op. Cit.

57

outros filhos e eles acabaram mudando para lá. Fiquei sozinho

aqui, era uma criança, tinha só 6 anos...69

Nem mesmo o campo de futebol, descrito com grande empolgação, foi capaz de

apagar a memória de sofrimento. Possuía medidas oficiais, pintado em branco e preto,

cores do Sport Clube Corinthians Paulista, segundo relatos, time de futebol do coração

do diretor Dr. Lauro de Souza Lima, muito querido pelos internos, sempre elogiado por

seu lado humano e tido nos relatos dos pacientes como um dos poucos que não

demonstrava medo ou nojo dos doentes.

Em discurso feito a alunos de Medicina que visitaram o Padre Bento, Dr. Lauro

demonstrou sua lógica humanista ao ressaltar o fato de que não é pela lepra ser uma

doença ainda incurável que o leprosário deveria se tornar apenas um depósito de

pessoas, que seu objetivo era o de amenizar o sofrimento dos pacientes, seja o físico ou

as angústias causadas pelo estigma da doença. Dr. Lauro também foi o primeiro a

introduzir e testar as sulfonas no Brasil, novamente sendo o Padre Bento o pioneiro

desse tratamento que possibilitou a cura. Residia no sanatório, de onde, segundo

contam, só saía para acompanhar os jogos de seu time de coração.70

Foi justamente durante a gestão do Dr. Lauro que o leprosário passou por

grandes obras de ampliação e melhoria. O salão de baile tinha câmara para orquestra e

recebia festas de gala, onde os internos dançavam e flertavam. O cassino era luxuoso,

considerado o melhor dentre os existentes em leprosários. O cinema era espaçoso,

entretanto, dividido em duas áreas, uma para homens e outra para mulheres. Ainda

havia quadras poliesportivas, quadra de tênis.

Os internos conseguiam algum dinheiro trabalhando nas obras e benfeitorias

financiadas pela Caixa Beneficente, que arrecadava doações da elite paulista. Aliás, toda

essa estrutura suntuosa só se tornou possível através das doações recolhidas pela Caixa

Beneficente do Padre Bento em parceria com a gestão do Dr. Lauro. Foi possível

encontrar tabelas de campeonatos e resultados de jogos realizados entre os internos na

revista de circulação interna produzida pela Caixa Beneficente.

69 Sr. Arnaldo Rúbio, ex-interno, em entrevista concedida ao autor em agosto de 2009. 70

Giannini, Sérgio Diogo. Santos Médicos – Médicos Santos. 1ª ed. São Paulo: Editora Panda,

2004. págs. 160 – 163.

58

Esse veículo interno, aliás, foi fonte para o desenvolvimento desta pesquisa.

Além dos resultados dos campeonatos internos, divulgação dos eventos, também era um

espaço para publicação de boletins médicos sobre os avanços no combate à doença e

ainda contava com espaço para publicação de poemas, contos, artigos, produzidos pelos

hansenianos.

Nas publicações produzidas pelos internos, nota-se um grau elevado de

conhecimento, poemas sobre a Segunda Guerra Mundial, a expectativa de uma cura e a

saudade da liberdade. Entretanto, é passível de desconfiança a falta de críticas diretas e

incisivas ao Leprosário do Padre Bento e à política de internação compulsória,

indicando uma possível censura prévia.

Tal publicação era interna e trimestral, pode-se perceber no citado artigo sobre o

Pavilhão de Menores um ar panfletário, de propaganda. Isso pode nos remeter à ideia de

que a revista também era utilizada como forma de construção de um imaginário, de uma

visão positiva da instituição junto aos internos, com objetivo de evitar rebeliões,

revoltas e novas fugas. A dominação não se dá apenas pela imposição, mas também

pelo convencimento.

Os valores não são “pensados”, nem “chamados”; são vividos,

surgem dentro do mesmo vínculo com a vida material e as

relações materiais em que surgem as nossas ideias. São as

normas, regras, expectativas, etc. necessárias e aprendidas (e

“aprendidas” no sentimento) no “habitus” de viver; e

aprendidas, em primeiro lugar, na família, no trabalho e na

comunidade imediata. Sem esse aprendizado a vida social não

poderia ser mantida e toda produção cessaria.71

A estrutura do Sanatório do Padre Bento visava amenizar o desespero de um

isolamento. Entretanto, a falta da família e da liberdade foram sempre citadas pelos ex-

internos, uma experiência sofrida, cuja revista é quase didática ao sublimar esse lado da

internação e ressaltar as possibilidades de convivência oferecidas pelo suntuoso

sanatório.

Também fica nítida a insatisfação por parte dos hansenianos com a internação

compulsória pelo alto número de fugas ocorridas no local.

71

THOMPSON, E.P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao

pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. p. 194.

59

Lista de fugas ocorridas de janeiro a junho de 1938, encontrada no Livro de Registros do

Sanatório do Padre Bento.

60

A lista conta com mais de 100 nomes de internos que conseguiram fugir entre

janeiro e junho de 1938. Trata-se de um rol predominantemente masculino, com uma

dezena de mulheres. Isso pode ser reflexo da sociedade sexista da época, onde uma

egressa teria maior dificuldade em se virar sozinha e seria recriminada pela família, ou

até mesmo um indicativo de que as mulheres não se sentissem livres em lugar algum, e

se conformavam com o convívio e o relativo ambiente de conforto e sociabilidade que a

estrutura do leprosário permitia.

Na tentativa de encontrar possíveis fugitivos, identifica-se que boa parte deles

buscou asilo no Rio de Janeiro, onde poderiam circular com menos riscos de serem

apreendidos novamente, o que reforça a ideia discutida no primeiro capítulo, de uma

perseguição aos doentes muito mais ferrenha no Estado de São Paulo.

A revolta dos internos, que já vinha dando sinais nas fugas e em algumas

manifestações, atingiu um ponto alto e se materializou em 1945, quando, segundo relato

do Sr. Arnaldo Rúbio encontrado em seu livro de memórias, todos os asilos-colônias

fervilham sobre liderança da deputada Conceição da Costa Neves72

.

No Padre Bento, foi roubado o busto do diretor do Departamento de Profilaxia

da Lepra, Dr. Salles Gomes, presente em uma das praças do complexo. Durante a

madrugada, alguns internos retiraram a escultura do local e a esconderam debaixo de

um dormitório. Informado de uma possível rebelião no Padre Bento, Salles Gomes

acionou a polícia e se dirigiu para o sanatório. A polícia chegou primeiro que o diretor,

72

Nascida em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 17 de outubro de 1908, filha de Manoel da Costa

Neves e Maria do Espírito Santo Neves, Conceição fez seus primeiros estudos nos Colégios

Santa Catarina e Stela Maris. Com apenas 21 anos de idade, usando o nome artístico de Regina

Maura, estreou no palco, na comédia Dinheiro anda por aí (Das Gildauf der Strasse), levada à

cena em 6 de junho de 1930, pela Companhia Procópio Ferreira, no Teatro Trianon, no Rio de

Janeiro. Com a trupe, percorreu o país encenando nos teatros brasileiros diversas peças cômicas,

sua especialidade. Em 1934, foi eleita rainha das atrizes, tendo recebido o título das mãos de

Lourival Fontes, secretário da prefeitura do Distrito Federal. Ainda na década de 19330, passou

a viver com Procópio Ferreira, fixando residência em São Paulo. Em 1938, casou-se com o

médico Matheus Galdi Santamaria, de quem se separou legalmente em 1955. Durante

a Segunda Guerra Mundial, entre 1943 e 1945, foi diretora da filial de São Paulo da Cruz

Vermelha. Pela escola dessa entidade também foi samaritana e monitora. Fundou a Associação

Paulista de Assistência ao Doente da Lepra, da qual foi sempre sua presidente. Seu trabalho em

defesa das vítimas da lepra a tornou conhecida através da imprensa e, em 19 de janeiro 1947,

iniciou sua carreira política tendo sido a única mulher eleita à Constituinte Paulista, com 12.119

votos, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), do qual foi uma das fundadoras. Foi a terceira

parlamentar mais votada entre 75 deputados.

61

com a ordem de desarmar os internos e prender aqueles que possuíssem armas. Ao

perceber que não havia armas e que os revoltosos eram pacientes mutilados e acamados,

a polícia se retirou, mas não sem antes entoar o hino nacional acompanhada por alguns

internos em suas janelas. Sendo este um exemplo dos efeitos do sentimento nacionalista

estimulado pelo Governo Vargas nos anos que antecederam 1945, e como isso

reverberava nas pessoas e nas instituições.

O apoio da deputada Conceição da Costa Neves as manifestações ocorreu em

1945, depois da saída de Vargas, seu correligionário do PTB no governo federal.

Entre 1944 e 1970, foi considerada a “mãe dos leprosos”, defendendo os

interesses dos internos, se reunindo com fugitivos dos leprosários, organizando motins...

Seu interesse pelos doentes é atribuído ao fato de ter sido casada com um médico. Esta,

tecia críticas duras ao modelo de internação compulsória, às superlotações dos

leprosários, à falta de medicamentos e direitos aos hansenianos.

Tal bandeira a daria certa notoriedade da mídia. Conceição então resolveu

candidatar-se, em 1944, ao cargo de deputada estadual. Reuniu-se com os internos no

cinema do Padre Bento para expor sua intenção de continuar a luta por melhores

condições para os leprosos. Para isso, precisaria contar com o apoio dos familiares dos

internos, já que os doentes não tinham direito a voto.73

D. Conceição da Costa Neves foi eleita e se manteve na função por 16 anos. Sua

principal conquista foi a lei federal número 1.430, de 14 de outubro de 1951, que dava o

direito a voto aos hansenianos internados, o que trouxe a eles uma maior participação na

democracia representativa e aumentou, por consequência, o seu número de votantes

para as eleições seguintes. Isso também conferiu aos hansenianos um maior poder de

barganha junto às outras esferas do poder público, nas palavras do ex-funcionário do

Departamento de Profilaxia da Lepra, Sr. Domingos: “O que interessa pra político é

voto.”

D. Conceição também foi ativa no combate aos supostos desvios das doações

realizadas à Caixa Beneficente que deveriam ser revertidas em benfeitorias aos internos.

Cabe, então, discutir o caráter, finalidade e atuação prática de tal instituição.

73

RÚBIO, Op. Cit., p. 146.

62

2.2 – Caixa Beneficente: Ações e Fraudes

A Caixa Beneficente, fundada em 1931, era grande, realizou muitas obras no

Padre Bento. A área esportiva foi totalmente construída pela Caixa Beneficente,

inclusive o campo de futebol com medidas oficiais.

O dinheiro vinha de donativos e da venda da Revista Padre Bento, organizada e

vendida pela própria Caixa Beneficente de dezembro de 1932 a 1944, havendo um

intervalo de de 1933 a novembro de 1936, talvez por problemas de direção.

Fotocópia da capa do primeiro exemplar da Revista Padre Bento, dezembro de 1932.

63

Fotocópia da capa do segundo exemplar da Revista Padre Bento, fevereiro de 1933.

As imagens acima são das duas primeiras capas da revista Padre Bento, de

dezembro de 1932 e de fevereiro de 1933. No geral, a revista costumava sair

trimestralmente, apesar de, nesse caso específico, ter havido um intervalo menor.

Percebe-se que as imagens das capas foram feitas de ângulos diferentes de um

mesmo local, a vista de entrada do Sanatório, o pavilhão central, o maior e o que possui

o nome da instituição em destaque. Isso foi uma tônica na revista: a exaltação da

opulência estrutural do Padre Bento.

Na segunda imagem, pode-se ver os preços das assinaturas, no canto direito

superior da capa, o que não há na primeira, que talvez tenha sido um piloto para testar a

64

sua aceitação. Nesse momento havia três diferentes tipos de assinatura anual: a comum

custava 10$000 (dez mil réis), podendo ser adquirida por qualquer pessoa; a

cooperadora, para aqueles mais compadecidos e com maior possibilidade de ajudar na

causa, ao dobro do preço da primeira, 20$000 (vinte mil réis); e, por último, o preço

especial para internados de 5$000 (cinco mil réis). Apesar da liberdade cerceada e de

serem o mote da revista, os internos também tinham que arcar com um custo, mesmo

que menor, para poder adquirir a revista. Além das assinaturas anuais, a revista também

era comercializada de maneira avulsa, por 1$000 (mil réis) cada número, o que

demonstra que a intenção dos assinantes era a de contribuir, já que, dada a periodicidade

da revista, que variava de 2 a 3 meses, sairia mais barato adquirir os números

individualmente do que fazer uma assinatura anual.

A Revista Padre Bento era uma vitrine das atividades realizadas dentro do

sanatório. Havia na publicação notícias dos eventos, das visitas recebidas, das festas,

dos jogos realizados, das melhorias estruturais, além de textos com os avanços nas

pesquisas médicas e dos agradecimentos aos que contribuíam com a Caixa Beneficente,

fazendo dela uma grande propaganda interna e externa. Internamente, no sanatório,

servia como convencimento dos pacientes de que estavam sendo tratados dentro com

que havia de mais moderno e humano, além de exaltar a estrutura e o convívio, passava

a sensação de normalidade, tentando assim evitar rebeliões ou fugas. Externamente,

servia para que os doadores acompanhassem o bom uso feito de suas doações,

acalentando sua consciência e estimulando novas doações.

Nesse sentido, trazia, inclusive, publicações para se autopromover, além de

exaltar os médicos sanitaristas, a direção do sanatório e o próprio Estado de São Paulo.

65

Fotocópia do artigo publicado na Revista Padre Bento, em 1933. Caixa Beneficente.

Quem vae a Guarulhos pela ampla estrada de rodagem ou pelo

Tramway da Cantareira, ao chegar à próspera Villa de

Gopouva, situado no alto de uma colina de clima salubérrimo, a

poucos kilometros da Capital – divisa logo à direita – entre a

bella paisagem que se lhe descortina – um lindo predio, de

66

propriedade do Governo do Estado, ladeados de jardins e

dividido em tres pavilhões, ostentando na fachada do Pavilhão

central os seguintes dizeres: SANATORIO PADRE BENTO,

em memoria do grande Apostolo da Caridade que foi o Padre

Bento José Dias Pacheco.

Ahi, vivem rodeados de carinho e de todo o conforto, mais de

uma centena de Hanseanos.74

Nesse artigo, intitulado Caixa Beneficente, foi exaltada novamente a estrutura do

Padre Bento, falando-se em carinho e conforto. Também foi manifestada admiração à

figura do diretor do Departamento de Profilaxia da Lepra, Dr. Salles Gomes75

, figura

que, segundo relatos, era bastante autoritária. Além disso, o texto ressalta a grandeza e o

pioneirismo do Estado de São Paulo, evocando a memória construída da figura do

bandeirante.

São Paulo de gloriosas tradições, terra do Bandeirante invicto,

terra do trabalho e do progresso, não podia ficar indifferente ao

importante problema da lepra em nosso Estado.76

Tal construção identitária era bastante característica desse período e está sempre

presente nos discursos políticos e, principalmente, nos de caráter eugenista, num

processo de invenção da paulistaneidade.

Nestes campos de luta, reconstruiu-se o papel dos paulistas na

formação histórica brasileira e local, através da “invenção” do

mito do bandeirante, compondo uma narrativa histórica que

valorizava o português mestiçado com o indígena com seu

papel central na condução do processo colonizador, que

partindo do Planalto de Piratininga, desbravou os sertões. Os

bandeirantes foram romantizados como destemidos

desbravadores que alargaram e consolidaram o território

nacional, deixando de lado o aventureiro apresador de

indígenas. A simbologia serviu para construir a trajetória

paulista como o único e decidido percurso rumo ao progresso,

encobrindo conflitos, diferenças e legitimando a hegemonia

paulista no governo nacional. Este mito se tornou a marca do

espírito paulista (iniciativa, valentia, arrojo, tenacidade) e seus

74 Fragmento do artigo “Caixa Beneficente”, publicado na Revista Padre Bento, em 1933. 75

Dr. Francisco Salles Gomes Júnior era médico leprologista e dirigia o DPL (Departamento de

Profilaxia da Lepra). Ficou conhecido por sua intransigência quanto à necessidade e os

benefícios da internação compulsória mesmo no estágio não contagioso da doença. 76 Fragmento do artigo “Caixa Beneficente”, Idem.

67

herdeiros (os paulistas de 400 anos) mantinham geneticamente

este espírito heroico.77

Já no final do documento, os autores do artigo (Caixa Beneficente), teciam

grandes elogios ao diretor do Sanatório Padre Bento, Dr. Lauro de Souza Lima, que era

bastante querido pelos internos e fundador da Caixa Beneficente, cuja parte do estatuto

que destacava sua missão era citada no artigo: “Zelar pelo interesse moral, material e

espiritual de todos, prover-lhes suas necessidades, fomentar esportes e promover

diversão”. O que tornava a Caixa Beneficente bastante útil ao Estado era o fato dela

conseguir doações para investir na estrutura e bem-estar dos pacientes, deixando o

ambiente melhor, isso sem onerar os cofres públicos e isentando o governo da

responsabilidade das obras.

A Caixa Beneficente – cuja directoria é constituída

exclusivamente de Internados, com Estatutos próprios, sob a

immediatadirecção do Exmo. Dr. Do Sanatório – tem como

Patrono o Exmo. Snr. Dr. Salles Gomes Junior e como

Patronesse a Exma. Snra. D. Alice de Toledo Tibiriçá78

...

Também fazia parte do estatuto a obrigatoriedade de todos os membros da

diretoria da Caixa Beneficente serem internos. Entretanto, como aponta o documento

anterior, estava sobre direção imediata do também diretor do sanatório, Dr. Lauro, e

tinha como patrono o Dr. Salles Gomes, do Departamento de Profilaxia, não havendo

assim a autonomia dos internados dentro desse órgão.

77

MATOS, Maria Izilda Santos de; Gonçalves, Leandro Pereira. “Meu primeiro manifesto

político foi um romance”: reflexões sobre a obra O Estrangeiro de Plínio Salgado.: Journal for

BrazilianStudies, vol. 3, nº 1, 2014. Págs. 486 e 487. 78

Dona Alice Toledo Tibiriçá, após a infância em Ouro Preto, Minas Gerais, mudou-se para o

Rio de Janeiro com a família em 1898. Dois anos depois, órfã de mãe, foi morar com as tias

em São Paulo. Casou-se em 1912 com João Tibiriçá Neto. Acompanhou o marido durante a

construção de uma estrada de ferro no Maranhão, onde se comoveu com a situação dos doentes

de hanseníase, conhecida então como lepra. De volta ao Rio, em 1915, militou pelos direitos dos

doentes, lutando pela mudança do nome da doença, denunciando os preconceitos e arrecadando

fundos para ajudar suas famílias. Fundou a Sociedade de Assistência às Crianças Lázaras, mais

tarde Sociedade de Assistência aos Lázaros e Defesa contra a Lepra (SALDCL), além de

instituições similares em todo o país. Em 1929, as diversas instituições se reuniram na

Federação das Sociedades, da qual Alice Tibiriçá foi a primeira presidenta. Criticou as medidas

adotadas na época, como o isolamento dos doentes e a separação de pais e filhos. Escreveu,

em 1934, o livro Como eu vejo o problema da lepra. Fundou também a Federação das

Associações de Combate à Tuberculose, em 1944, e militou pelos direitos dos doentes mentais.

68

A relação entre a Caixa Beneficente e o Estado aparecia na revista, onde

encontravam-se às coberturas das visitas de vários políticos ao Sanatório Padre Bento,

indicando uma grande influência da Caixa Beneficente.

O Estado, representado pelo Departamento de Profilaxia da Lepra, fazia

concessões para aumentar arrecadação da Caixa Beneficente e até mesmo doações

diretas.

Anúncio publicado na Revista Padre Bento, em 1932.

De acordo com a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e a Direção

do Sanatório, a Caixa Beneficente creou uma secção a

pagamento dentro deste Sanatório, para as pessoas que

desejarem internar-se como pensionistas, pagando uma

mensalidade bastante modica, a título de donativo à mesma

Caixa. Esta seção já ocupa uma considerável parte do Pavilhão

Central.

No trecho acima, retirado da Revista Padre Bento, do ano de 1932, vê-se o

anúncio de um plano para pensionistas que desejassem pagar uma mensalidade à Caixa

Beneficente, podendo, assim, usufruir de uma moradia diferenciada. Como o próprio

anúncio destacava, essas moradias já ocupavam parte do pavilhão central, ou seja,

enquanto alguns internos reclamavam da superlotação dos alojamentos, outros podiam

69

viver de maneira mais confortável, desde que pagassem por isso. Como já colocado

anteriormente, a questão de classe estava presente no leprosário, o que era bastante

problemático tratando-se de uma instituição pública.

Além dessas concessões de espaço dentro do sanatório, também havia doações

em dinheiro, feitas diretamente a Caixa Beneficente. No decreto lei nº 14.009, de 30 de

maio de 1944, que dispunha sobre concessão de auxílios, o interventor federal no

Estado de São Paulo e o conselho administrativo do Estado autorizaram o pagamento de

Cr$ 120.000 (cento e vinte mil cruzeiros) à Caixa Beneficente do Sanatório Padre

Bento.79

O que permite um questionamento é o fato do Padre Bento ser administrado pelo

Estado de São Paulo, e, assim sendo, fazer uma doação à Caixa Beneficente, uma

instituição privada, ao invés de um investimento direto. Quanto a isso, levantam-se

algumas hipóteses: continuar obtendo o apoio da Caixa Beneficente no controle dos

internos, se livrar dos percalços e encargos trabalhistas de tocar as obras, ou até mesmo,

como desconfiava D. Conceição da Costa Neves, facilitar algum desvio.

Além da doação do Estado de São Paulo, também foi possível encontrar

contribuições das prefeituras das cidades de São Paulo e de Guarulhos à Caixa

Beneficente.

Na Lei Municipal nº 233, de maio de 1953, e na Lei Municipal nº 940, de 27 de

dezembro de 1963, a Prefeitura de Guarulhos doou, respectivamente, 5 mil e 300 mil

cruzeiros. Já a Prefeitura de São Paulo ajudava as caixas beneficentes dos leprosários de

maneira geral, sendo que nenhuma delas estava dentro da cidade, como se pode ver no

Decreto Lei nº 3742, de 28 de janeiro de 1949, que dispõe sobre a concessão de

auxílios. Nele, o prefeito Asdrubal Euritysses da Cunha autorizou a doação de Cr$

98.000,00 (noventa e oito mil cruzeiros) a cada uma das caixas beneficentes, sendo

escolhidas a do Sanatório Padre Bento, em Guarulhos, a do Asilo Colônia Cocais, na

cidade de Casa Branca, e a do Asilo Colônia Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes. Esse

fato reforçou a tese de que os 5 leprosários do Estado de São Paulo serviam a um

projeto político de higiene social para a capital paulista.

79 Apenas para trazer uma noção do tamanho da doação, o salário mínimo no ano de 1944 era de

Cr$ 380,00 (trezentos e oitenta cruzeiros).

70

A Caixa Beneficente funcionou no Padre Bento até os dias atuais, hoje sob a

direção de um ex-interno, Sr. Ivan Uchoa, que chegou ao leprosário quando já se

conhecia o tratamento e a cura. A instituição ainda presta assistência a antigos pacientes

e atividades recreativas com idosos.

O fato de ainda existir com o mesmo princípio, o de não ser uma instituição com

fins lucrativos, e os mesmos estatutos dificulta a investigação sobre possíveis desvios. O

acesso aos arquivos da instituição não foi concedido, com o argumento de haver muitos

nomes em documentos e que não seria ético deixar que terceiros os vissem.

Nada se pôde comprovar sobre possíveis irregularidades da Caixa Beneficente

nesta pesquisa e, é dado que esta foi fundamental para a ampliação das instalações do

Sanatório Padre Bento e no desenvolvimento de atividades esportivas e de lazer para os

hansenianos.

Apesar da Caixa Beneficente não ser a única instituição privada a cumprir

funções do Estado, ela contribuiu para melhorar o convívio dentro do Sanatório, devido

a estrutura criada.

71

2.3 – Pérgola: Encontros e Desencontros

(Foto atual da Pérgula, monumento tombado, no Hospital do Padre Bento. Autor: Ivan

Canoletto Rodrigues.)

O monumento acima, nomeado Pérgola, era uma das partes do antigo Sanatório

Padre Bento, atual Hospital Padre Bento, e atualmente se encontra da maneira como foi

concebido no antigo sanatório, exceto pelos problemas de conservação, o grande

desgaste a que foi submetido ao longo dos anos e os vidros em sua cúpula, que estão

quebrados. Nota-se que até mesmo a inscrição SPB, abreviação de Sanatório Padre

Bento, ainda está presente.

72

Trata-se de um monumento que aguça a curiosidade dos observadores mais

atentos que adentram o hospital ou então passam em frente da entrada, na Avenida

Emílio Ribas, pois é algo semelhante a um corredor que liga nada a lugar nenhum.

O leprosário constituía-se numa verdadeira cidade, um espaço de múltiplos

sujeitos e experiências, que passou a ser o palco da vida desses milhares de internos

que, excluídos do convívio habitual, passaram ali a interagir, a festejar, a namorar, a

escrever, a lamentar, a sentir saudade, esperança...

Dentre esses múltiplos sujeitos, havia variedade geracional, idosos, adultos,

crianças e muitos jovens que, como qualquer pessoa dessa idade, buscam namorar e se

casar. Segundo depoimentos e documentação analisados, muitos casais se constituíram

dentro do leprosário.

Sobre a Pérgola, existem contradições: Uma versão para a função da Pérgola é a

do Senhor Arnaldo Rúbio, ex-interno que viveu dos 6 aos 18 anos no Leprosário do

Padre Bento, e que escreveu um livro-denúncia80

sobre o tema. Segundo ele, a Pérgola

era utilizada nos dias de visita para delimitar o espaço a ser ocupado pelo doente e o

espaço do visitante, uma espécie de parlatório, onde os doentes ficariam numa

extremidade e os visitantes na outra, separados por uma distância de mais de vinte

metros, já que não poderia haver contato físico entre eles. É tocante a descrição que ele

traz em seu depoimento, o desejo do abraço não concretizado.

Era muito ruim ver a minha mãe e não poder abraçar, tocar...

Dava um aperto no coração, me sentia uma aberração (choro).81

A outra versão para a função da pérgola, presente no depoimento do Sr.

Domingos, um ex-funcionário, é a de que tal monumento servia como forma de

centralizar o namoro dos jovens, já que a área do leprosário era muito grande e seria

impossível fiscalizá-los. Por sua beleza arquitetônica, clima agradável, a Pérgola

acabava atraindo os casais para lá. Esses casais contraíam matrimônio, recebiam uma

casa separada e acabavam gerando frutos, crianças que nasciam saudáveis dentro do

leprosário e que, por esse motivo, eram imediatamente retiradas de seus pais e

mandadas para uma instituição privada que se encarregavam do trato delas, o Asilo de

Santa Therezinha, em Carapicuíba.

80 RÚBIO, Op. Cit. 81

Sr. Arnaldo Rúbio, ex-interno, em conversa no lançamento de seu livro.

73

Pode-se atribuir essas diferentes versões ao fato de que, para um ex-interno, a

separação da família no momento da visita é mais marcante e traumatizante. Todavia, o

caráter da internação compulsória e do Leprosário do Padre Bento, o controle social, se

evidencia nas duas versões.

Em meados de 1937, já eram 226 crianças retiradas dos pais em leprosários

estaduais e enviadas ao Santa Terezinha, além de 190 encaminhadas ao Preventório de

Jacareí. Esse dado pode observado no próximo documento, que também apresenta o alto

número de internos nesse período, o pequeno número de doentes ainda presentes na

capital, demonstrando o sucesso do projeto de higienização social na cidade de São

Paulo para fins de modernização e industrialização da capital.

O número de crianças que nasciam no leprosário era considerável, já que os

internos tinham permissão para se casar. Mesmo a união entre os enfermos não foi

proibida oficialmente, entretanto, a diretoria do leprosário procurava dificultá-la,

impondo regras aos cônjuges, era necessário que o estado clínico do casal fosse bom e

que ambos tivessem um comportamento exemplar. Entretanto, essas regras podiam

variar de diretor para diretor. O casamento, nesse contexto, constituía uma concessão,

não um direito do doente.82

82

MONTEIRO, Yara Nogueira. Da maldição divina à exclusão social: um estudo da

hanseníase em São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São

Paulo, 1995. P. 240. Apud. Dos Santos, Cláudia Cristina. Crianças Indesejadas – Estigma e

exclusão dos filhos sadios de Portadores de Hanseníase internados no Preventório Santa

Terezinha 1930-1967. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São

Paulo, 2009. P. 101.

74

Fotocópia de artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa Beneficente

(1937).

75

A publicação acima é um exceto de uma mensagem enviada pelo governador J.J.

Cardoso de Melo Neto83

para a Assembleia Legislativa de São Paulo, em 9 de julho de

1937, data em que o estado comemorava os cinco anos da “Revolução

Constitucionalista”. Novamente o “modelo paulista” de internação compulsória era

apontado como o que havia de mais moderno no combate à lepra.

Estão elles (os doentes) assim discriminados: 1.263 residentes

no interior do Estado; 282 residentes na Capital; 83 residentes

em ouros Estados, e 1 procedente do Estrangeiro.

No mesmo anno (1936) foram feitas 1890 internações,

perfazendo agora, o total de 5.770 doentes internados.84

Nesse trecho, publicado na revista da Caixa Beneficente do Padre Bento, são

apresentados números que trazem a dimensão de famílias atingidas. Na respectiva data,

já eram 5.770 os internados. O texto ainda aponta que o número de internações vinha

caindo, mas ainda aconteciam quase sete anos após o início do projeto, e assim seria até

o início dos anos 1960.

Destaca-se no documento o número de crianças que já estavam sobre o poder do

Estado, como no Preventório de Jacareí, que era público e diretamente administrado

pelo Departamento de Profilaxia da Lepra, ou em instituições particulares que agiam em

parceria com o Estado, como era o caso do Asilo de Santa Terezinha, apontado

anteriormente.

Essas crianças provinham de duas situações distintas: poderiam ser filhas de

hansenianos que as conceberam e criaram fora do leprosário por um tempo, antes do

período de internação compulsória, mas, assim que a captura promovida pelo

Departamento de Profilaxia da Lepra se iniciou, foram internados e tiveram seus filhos

encaminhados a uma dessas instituições; ou, na segunda possibilidade, crianças

concebidas dentro do próprio leprosário pelos casais formados nesse convívio, os

83

José Joaquim Cardoso de Melo Neto foi nomeado pelo general Hastinfilo de Moura prefeito

do município de São Paulo e permaneceu no cargo interinamente de 24 de outubro a 5 de

dezembro de 1930. Foi governador do Estado de São Paulo eleito pela Assembleia Legislativa,

de 5 de janeiro a 10 de novembro de 1937 e interventor federal no Estado de São Paulo, de 11

de novembro de 1937 a 25 de abril de 1938. Foi também o fundador e presidente do Banco

Mercantil de São Paulo e diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo entre

1941 e 1942. 84 Fragmento do artigo “Departamento de Prophylaxia”, publicado na Revista Padre Bento, em

1937.

76

namorados da Pérgola. Assim que nasciam e eram diagnosticadas como sãs, as crianças

já eram destinadas a algum desses abrigos.

Através de depoimentos colhidos e de um documento encontrado no Sanatório

Padre Bento, pode-se perceber que, a maior parte dos filhos dos hansenianos que se

encontravam internados nesta instituição foi encaminhada para o Santa Terezinha. No

documento, o diretor do Padre Bento cobrava informações da direção do Santa

Terezinha sobre as crianças enviadas para lá, se dizendo pressionado pelos pais

internados, contudo, não foi possível encontrar uma resposta a tal solicitação.

O Santa Terezinha foi o primeiro estabelecimento edificado no Brasil com a

finalidade de abrigar os filhos dos portadores de hanseníase. Inaugurado no ano de

1927, no município de Carapicuíba, seu projeto foi executado por um grupo de senhoras

pertencente à Liga Católica paulista85

. A idealizadora e presidente da obra foi Margarida

Galvão, uma dama da sociedade paulista que recebeu apoio fundamental da Cúria

Metropolitana de São Paulo, através do Bispo Dom Duarte Leopoldo.86

Dona Margarida Galvão seguiu o que pode ser considerado uma prática

tradicional de mulheres da sociedade, que tinham na filantropia uma forma de expressão

na esfera pública da vida.

As mulheres das camadas mais abastadas eram educadas dentro

de forte tradição cultural cristã, que defendia o dever das

camadas privilegiadas de oferecer auxílio material e conforto

espiritual aos desvalidos. (...) Essas mulheres, certamente,

atendiam aos apelos da doutrina cristã e às demandas da

sociedade seguindo o exemplo de suas predecessoras. Sem

escapar das marcas de representação que as colocava como as

tradicionalmente responsáveis por educar, cuidar, confortar e

acolher...87

A ligação entre os portadores do mal de Lázaro (hansenianos) e a caridade

esteve presente desde o período medieval, mas com uma lógica de isolamento diferente:

segregando, porém mantendo a proximidade.

85

A Liga Católica paulista era uma associação formada principalmente por mulheres da elite

paulistana, com formação católica, voltadas à filantropia como forma de atuação na esfera

pública. 86

SANTOS, Cláudia Cristina dos. Op. Cit., p. 87. 87 SOUZA, Christiane Maria Cruz de. Médicos e mulheres em ação: O controle do câncer na

Bahia (primeira metade do século XX) In Filantropos da nação: sociedade, saúde e assistência

no Brasil e em Portugal. 1º Edição, Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.

77

Na Europa, no período medieval, as ações de caridade eram

praticadas principalmente por hospitais da misericórdia e outras

instituições mantidas por ordens religiosas. As leprosarias

deveriam ficar próximas das cidades, por ser mais fácil o

controle e a assistência.88

A caridade das senhoras da elite paulista, herdeiras da filantropia e do legado de

manterem-se próximas dos desvalidos, pode ser encarada como fruto de sua devoção

religiosa, mas também como uma forma de “alívio de consciência”, a caridade é sempre

importante na construção de uma boa imagem.

Originalmente, o Preventório Santa Terezinha seria construído em terreno doado

na região da Lapa, zona oeste da cidade de São Paulo. Esse projeto, entretanto, foi

vetado pelo então diretor do Departamento Sanitário do Estado de São Paulo, Dr.

Geraldo de Paula Souza89

, que alegou ser perigoso manter crianças em um

estabelecimento dessa natureza próximo à sociedade. Importante ressaltar que o terreno

ficava incrustado numa região habitada pela elite paulistana, o que pode ter influenciado

a decisão do diretor sanitário.90

Verifica-se, então, que os filhos de hansenianos, apesar de saudáveis, também

sofriam com o estigma da doença dos pais. Eram tratados pelo Estado seguindo a

mesma lógica de segregação espacial, afastando-os da cidade e dos centros

populacionais, ou seja, na construção dos preventórios era utilizado o mesmo critério

que na dos leprosários, o de tirar das vistas das pessoas tidas como “normais” tudo

aquilo que as incomodava, através de um projeto eugênico para a cidade de São Paulo.

Ao terceirizar, de certa maneira, a responsabilidade dos cuidados dispensados

aos filhos dos hansenianos, o Estado também se eximia de culpa ou acusação, o que

tornava mais conveniente auxiliar com doações e parcerias do que ter uma

administração pública direta como havia no Preventório Jacareí.

88

SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Entidades Filantrópicas & Políticas Públicas no

Combate à Lepra: Ministério Gustavo Capanema (1934-1945). Dissertação (Mestrado em

História das Ciências e da Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2006. P. 52. 89

Médico sanitarista, estudou nos E.U.A. com financiamento da Fundação Rockfeller. Nos anos

1920, época em que se instalou o Serviço Sanitário de SãoPaulo (1922 a 1927), Paula Souza

conseguiu oficializá-lo, sendo, posteriormente, nomeado diretor e permanecendo à frente dessa

instituição por cinco anos. Com atribuições mais amplas, organizou serviços especializados de

alimentação, de fiscalização do exercício damedicina e da inspetoria da lepra. 90

SANTOS, Cláudia Cristina dos. Op. Cit. p. 89.

78

Os problemas e acusações começaram a aparecer no final dos anos 1950.

Egressos do educandário passaram a denunciar, através de jornais, maus-tratos sofridos

dentro do Educandário Santa Terezinha. Tais denúncias foram corroboradas pelo

depoimento de um ex-vigilante do educandário, como pode-se ver no recorte do jornal

“A Última Hora”, de 1957.

(Siqueira, Hélio. “Surram e Torturam as Crianças no Educandário Sta. Terezinha.” Jornal A

Última Hora. São Paulo, 2 de agosto de 1957. Caderno 1, p.7.)

Fomos procurados, ontem, por dois ex-internos do Educandário

Santa Teresinha, em Carapicuíba, os quais solicitaram fosse

feito por intermédio de nossas colunas, um apelo às autoridades

competentes, no sentido de inspecionarem as graves

irregularidades que por eles são apontadas nesta reportagem.91

As acusações levaram o Juizado de Menores de São Paulo a promover, em 1957,

uma sindicância no Educandário Santa Terezinha coordenada pelo juiz de menores de

São Paulo, Aldo de Assis Dias. Em entrevista ao jornal A Ultima Hora, o magistrado

declarou serem procedentes todas as acusações referentes às torturas físicas impostas

aos internos. Além disso, acrescentou que alguns vigilantes responsáveis por cuidar das

crianças assumiam uma postura imoral perante os internos, o que sugere que, além de

91 SIQUEIRA, Hélio. “Surram e Torturam as Crianças no Educandário Sta. Terezinha.” Jornal

A Última Hora. São Paulo, 2 de agosto de 1957. Caderno 1, p.7.)

79

agressões físicas e psicológicas, as crianças eram submetidas a possíveis abusos

sexuais.92

Apesar das apurações concluírem a veracidade das denúncias, a comissão de

investigação deu um parecer que incriminava alguns funcionários antigos do

educandário, mas inocentava a presidenta Margarida Galvão, alegando que ela não tinha

conhecimento dos abusos cometidos na instituição que dirigia. Em contrapartida,

segundo as acusações dos egressos, “o mais terrível carrasco das crianças de Santa

Terezinha era o homem de confiança de Margarida Galvão”.93

(Homenagem a d.Margarida Galvão: 40 Anos de Esforço em Prol dos Filhos dos Hansenianos.

Jornal O Diário de S. Paulo. São Paulo, 27 de setembro de 1957. Arquivo Santa Terezinha-

Carapicuíba-SP)

Homenagem a d. Margarida Galvão: 40 Anos de Esforços em

Prol dos Filhos dos Hansenianos.

“Tem esta cerimonia a austera gravidade de um julgamento e,

do mesmo passo, a entusiástica alegria de uma consagração”,

92 SIQUEIRA, Hélio. “Juiz de Menores: Procedente As Denúncias Sobre o Asilo S. Terezinha

de Carapicuíba”. Jornal A Ultima Hora. Apud. Santos, Cláudia Cristina dos. Op. Cit., p. 197. 93

SANTOS, Cláudia Cristina dos. Ibid. p. 197 e 198.

80

disse o desembargador Theodomiro Dias em seu discurso –

Palavras da homenageada – Oração do sr. Altino Arantes e

mensagem do governador do Estado.94

As acusações recaíram sobre alguns funcionários que, sim, deveriam ser

punidos, pois foi comprovada sua culpa, mas pararam por aí. Não tocaram na dirigente

da instituição, uma senhora da sociedade paulista, frequentadora dos círculos da elite,

uma representação da “bondade e caridade” com os mais necessitados.

Era muito difícil tais agressões não terem sido percebidas pela presidenta

Margarida Galvão, mesmo o educandário sendo bastante grande, os depoimentos davam

conta de que tais violências eram frequentes, além de provocar o choro e outros ruídos

bastante audíveis, também deixavam sinais físicos que dificilmente passariam

despercebidos por alguém que frequentava a instituição cotidianamente e era

responsável pela mesma.95

Nota-se que a segregação a que os hansenianos eram submetidos também se

estendia à família, que, na prática, foi desestruturada pela internação compulsória. O

romance que começava na Pérgola, que trazia alguma sensação de normalidade dentro

do isolamento, gerava a dor do afastamento dos filhos. Mesmo após o fim da internação

compulsória, havia dificuldade dos pais em reaver a guarda de seus filhos. Aliás, a falta

de um projeto foi a tônica da mudança legal que encerrava o encarceramento obrigatório

desses doentes, como será discutido a seguir.

94 Homenagem a d. Margarida Galvão: 40 Anos de Esforço em Prol dos Filhos dos Hansenianos. Jornal O

Diário de S. Paulo. São Paulo, 27 de setembro de 1957. 95 SANTOS, Cláudia Cristina dos. Op. Cit., 2009.

81

3- Internação Compulsória: Finalização e Lutas

Este capítulo discute questões relacionadas à lepra e a descoberta da cura, a

chegada ao Brasil e seus impactos sobre a política de internação compulsória. Também

abordada as dificuldades de reinserção social de pacientes e familiares após a saída do

isolamento e a luta empreendida por essas famílias em busca de compensações e

ressarcimentos por parte do Estado.

3.1- Esperança: Tratamentos e Cura

Os pacientes internados viviam a angústia da espera, entendiam que jamais

sairiam dali sem a descoberta de uma cura para a lepra, e tal descoberta parecia nunca

chegar.

O tratamento mais usual até meados dos anos de 1940 era realizado com óleo de

chaulmoogra, mas, as chances de cura eram ínfimas, as centenas de injeções de tal óleo

aplicadas em cada paciente trazia apenas uma melhora momentânea nos sintomas.96

No Brasil, óleo de chaulmoogra passou a ser utilizado nos anos de 1920, ainda

importando a planta da Índia, para depois ser plantado aqui mesmo e utilizado em larga

escala nos leprosários.

No Brasil, o Instituto Oswaldo Cruz importou dessa empresa

localizada no sul da Índia – e que possuía importante posição

nesse comércio, fornecendo sementes e óleo de chaulmoogra

para vários países – uma quantidade de óleo de

Hydnocarpuswightiana, em 1927. Essa compra visava abastecer

o recém-criado Laboratório de Leprologia do Instituto Oswaldo

Cruz, comandado pelo dr. Souza Araújo, no sentido que ele

pudesse fabricar os ésteres etílicos com os quais trataria os

doentes que iam a Manguinhos em busca de exames e

terapêuticas gratuitos (Araújo, 1957). Ao mesmo tempo,

diversas espécies de chaulmoogras indianas passaram a ser

aclimatadas em outros países, inclusive o Brasil. Várias

sementes plantadas no Brasil foram doadas pelos Estados

Unidos. 97

96

Chaulmoogras são plantas que pertencem à determinada família, tais plantas eram utilizadas

há séculos na índia e alguns outros locais da Ásia para o tratamento de doenças de pele,

inclusive a lepra. Seu uso no ocidente passou a ocorrer em meados do século XIX, após uma

série de testes e adequações a medicina ocidental, realizados pela Inglaterra. 97

(Araújo, fev. 1937). Citado por SANTOS, Fernando Sergio Dumas dos; SOUZA, Letícia

Pumar Alves de; SIANI, Antonio Carlos. O óleo de chaulmoogra como conhecimento

82

Um tratamento bastante sacrificante para os doentes, já que o óleo era aplicado

através de injeções subcutâneas e intramusculares.

(Cena do filme “Onde a Esperança Mora”, um curta produzido pela Carrari Filmes, em 1948).

(Cena do filme “Onde a Esperança Mora”, um curta produzido pela Carrari Filmes, em 1948).

científico: a construção de uma terapêutica antileprótica. História, Ciências, Saúde –

Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, n 1, p 29-47, jan.-mar. 2008. p. 34.

83

(Cena do filme “Onde a Esperança Mora”, um curta produzido pela Carrari Filmes, em 1948).

As imagens anteriores foram retiradas do filme “Onde a Esperança Mora”, um

curta produzido pela Carrari Filmes, em 1948, tendo como cenário principal o Sanatório

Padre Bento, como citado. Em tais cenas ocorre uma aplicação do óleo de chaulmoogra,

um doloroso procedimento. Enquanto a cena ocorre, o narrador destaca:

(...)Foi nessa época que tiveram início os primeiros

tratamentos por chaulmoogra, todos os irados se

submetiam cheios de esperança ao doloroso tratamento,

em cada centímetro de pele, mais de duzentas picadas de

uma pequena agulha que ia inoculando gota a gota o que

se considerava um óleo milagroso. Sacrifício inútil! As

manchas voltavam com maior intensidade, e a medicina

nada dizia, pesquisadores debruçavam-se em seus

microscópios e as experiências continuavam...98

Os pacientes internados nos leprosários se tornaram espécies de cobaias, o

tratamento com chaulmoogra que era sofrível e tinha baixíssimo índice de sucesso, foi

utilizado durante anos. Além disso, outras formas de tratamento “experimentais” foram

aplicadas em internos dos leprosários, algumas até beiravam o bizarro, como prender

percevejos vivos numa caixinha colada junto ao peito do paciente, próximo ao coração,

98 Fala do narrador no curta-metragem produzido pela Carrari Filmes sobre o problema da

endemia de hanseníase em São Paulo na década de 1940. Filme mostra imagens do Asilo-

Colônia Santo Ângelo, de Mogi das Cruzes, e, principalmente, do Sanatório Padre Bento, de

Guarulhos. O filme integra o acervo iconográfico do Instituto Lauro de Souza Lima.

84

no intento de que esses animais sugassem e purificassem o sangue, como foi relatado

pelo ex-interno Arnaldo Rúbio. 99

Esse cenário desolador se estendeu por anos, quando muitos pacientes já haviam

passado boa parte de suas vidas confinados e estavam desesperançados de um dia sair,

quiçá saírem curados. Quando, em 1946, o tratamento com sulfonas foi introduzido no

Brasil, revolucionando os métodos e renovando esperanças.

Após a segunda metade deste século, com a criação da

Campanha Nacional do Controle da Hanseníase, ocorreu uma

mudança fundamental na abordagem deste problema a partir do

surgimento da sulfona, um antibiótico que não produz muitos

efeitos colaterais, ao mesmo tempo em que permite a cura da

doença, embora o tratamento seja quase sempre prolongado.

Com a nova tecnologia, a erradicação da endemia passou a ser

vista como um empreendimento que combinava a perspectiva

da saúde pública com a clínica. O dermatologista sanitário,

funcionário público em tempo integral, surgiu nesta época, com

esta postura. Criou-se com isso, no Brasil,uma forte Escola de

Lepra, que realizou pesquisas pioneiras nesta área médica.100

Os primeiros estudos com as sulfonas que obtiveram resultados satisfatórios

foram realizados nos Estados Unidos, ainda no início dos anos 1940. Apenas alguns

anos depois, o Dr. Lauro de Souza Lima101

introduziu as sulfonas no Brasil, iniciando os

testes no Sanatório Padre Bento, instituição a qual dirigia e, mais uma vez, a referência

dentro do “modelo paulista”.

A descoberta da eficiência das sulfonas no combate ao M.

leprae seria um ponto de guinada na história da hanseníase. Em

1946, a 2ª Conferência Pan-Americana de Lepra, no Rio de

Janeiro, apresentou resultados positivos das sulfonas pela

primeira vez, marcando uma nova etapa no combate à doença a

partir dos estudos do médico norte-americano Guy Faget (1891-

1947). Cientistas de São Paulo ligados ao DPL, como Lauro de

99

Sr. Arnaldo Rúbio é um ex-interno que passou sua adolescência internado, dos 6 aos 18 anos,

sendo internado em 1939. 100

QUEIROZ, Marcos de Souza; PUNTEL, Maria Angélica. A endemia hansênica: uma

perspectiva multidisciplinar. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1997. p. 36. 101

Dr. Lauro de Souza Lima, cientísta, hansenologo de renome internacional,foi Diretor do

Departamento de Profilaxia da Lepra do Estado de São Paulo, Consultor Científico da ONU,

Representante Brasileiro nos Congressos Internacionais de Leprologia no Cairo (Egito) e

Havana (Cuba), Membro da Conferência Pan-Americana de Leprologia do Rio de Janeiro,

Diretor do Instituto de Terapêutica Científica, Membro da Associação Paulista de Leprologia,

Diretor do Sanatório Padre Bento durante 20 anos, iniciador do tratamento sulfônico no Brasil

85

Souza Lima (1903-1973), estariam entre os pioneiros que se

dedicaram às pesquisas sobre a droga nos leprosários.102

Antes mesmo da chegada do medicamento ao Brasil, o Dr. Lauro já se mostrava

atento aos estudos com a sulfona, conhecida pela marca Promin.

102

GORGULHO, Guilherme. O equívoco da internação compulsória dos hansenianos. Boletim

da FCM UNICAMP, Vol. 10, N. 3. p. 16-17, mai. 2015. p. 16.

86

Artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa Beneficente (julho de 1944).

87

No artigo publicado na Revista Boletim Padre Bento, em julho de 1944, o Dr.

Lauro de Souza Lima elogiou a iniciativa da redação em traduzir e publicar um estudo

do médico americano Dr. Guy Faget sobre o Promin, um antibiótico sulfônico. O artigo

foi publicado no mesmo número da revista que tal comentário do Dr. Lauro, o que

denota uma consulta prévia ou até mesmo uma sugestão do mesmo para que isso

ocorrese.

Muito Judiciosa foi a iniciativa da Redação do “Boletim Padre

Bento” , de traduzir e publicar, como o faz neste número,

pondo-o ao alcance dos interessados, o artigo do Dr. Faget e

colaboradores, sobre o PROMIN.103

As notícias sobre os resultados dos testes já se espalhava entre doentes e

médicos, gerando otimismo, euforia naqueles que por tantos anos buscavam alguma

esperança de cura.

Como era de esperar-se, as primeiras notícias sobre esse

medicamento deram origem às mais variadas versões sobre sua

eficácia. Foram-lhe atribuídas virtudes miraculosas, tanto pelos

resultados surpreendentes, como pelo escasso tempo necessário

à sua obtenção. Entretanto, sempre que nessa especialidade

deparamos com um novo medicamento, manda-nos o bom

senso e a prudencia que lancemos um olhar ao passado e

recordemos a longa lista de “curas” maravilhosas, tão

alviçareiramente anunciadas, mas terminando em dolorosas

decepções.104

Dr. Lauro, conhecido por sua dedicação ao trabalho, mas também, pela maneira

humanitaria que exercia a medicina, desenvolvendo com seus pacientes uma relação

fraternal, demonstrou uma preocupação com o excesso de otimismo, e uma possível

decepção, caso o Promin falhasse. Fez questão de alertar os internos quanto a isso em

seu artigo, e publicá-lo na mesma edição da revista que publicara os estudos do médico

americano.

Fez ressalvas e ponderações sobre os resultados apresentados na pesquisa,

alertou sobre possíveis riscos no tratamento, porém, terminou seu artigo de maneira

esperançosa, demonstrando crença na possibilidade de cura.

Deve notar-se ainda, que sua administração não é isenta de

riscos, exigindo cuidados especiais e constantes, e que os

103 Fragmento do artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa Beneficente

(julho de 1944), assinado pelo Dr. Lauro de Souza Lima. 104

Ibid.

88

resultados favoráveis podem ter sido consequência de sua ação

sobre infecções secundárias, ou uma coincidencia com as

remissões espontâneas tão frequentes na evolução do mal de

Hansen.

Contudo, a verificação dos resultados relatados por Faget se

impõe, para que nos pronunciemos em definitivo. Oxalá sejam

plenamente confirmados, e uma nova aurora desponte no

horizonte sombrio de milhares de sofredores.”105

As expectativas do Dr. Lauro de Souza Lima se confirmaram, junto com os

resultados apresentados por Faget. Com isso, Dr. Lauro foi o pioneiro na introdução do

tratamento sulfônico no Brasil, trazendo-o para São Paulo e para o Sanatório Padre

Bento, em 1946, logo após retornar de um congresso na França.

Os resultados no Brasil foram satisfatórios e o número de curas cresceu

consideravelmente. Em 1952, apenas 6 anos após a introdução das sulfonas no Brasil,

mais especificamente em São Paulo, a Revista Tópicos estampava, de maneira

comemorativa, o número de 7.923 curas, junto com fotos dos leprosários paulistas,

corroborando com a ideia de São Paulo como modelo a ser seguido pelo Brasil.

105

Fragmento do artigo publicado na Revista Padre Bento, editada pela Caixa Beneficente

(julho de 1944), assinado pelo Dr. Lauro de Souza Lima.

89

Extinta Revista Tópicos (1952)

Durante a pesquisa não foram encontrados exemplares completos da Revista

Tópicos, não sendo possível caracterizar sua linha editorial, entretanto, a maneira como

ressaltou o número de curas, associando-as aos leprosários paulistas, pode indicar uma

tendência a propaganda estatal.

Em 1952, Getúlio Vargas havia retornado a Presidência da República, podendo

observar que o projeto que instaurou durante seu primeiro governo (1930-45), mesmo

sendo imposta autoritariamente a internação compulsória dos hansenianos, obteve êxito.

Divulgar os números de cura associando-os a política de internação manicomial era

benéfico tanto para o Governo Federal quanto para o do Estado de São Paulo.

Neste período, a Agência Nacional, um órgão ligado ao Ministério da Justiça e

dos Negócios Interiores, estava em pleno funcionamento, tendo por finalidade informar

ao público sobre assuntos de interesse da nação, ligados a sua vida econômica,

90

industrial, agrícola, social, cultural e artística. A Divisão de Informações, uma das

subdivisões da Agência Nacional, produzia e divulgava notícias, propagandas políticas

e informes.106

Extinta Revista Tópicos (1955)

Em 1955, já eram 10.566 curas em São Paulo e a Revista Tópicos chamava uma

campanha para que as pessoas ajudem na reinserção dos egressos dos leprosários a

sociedade, algo bastante difícil de ocorrer devido ao preconceito, as permanências

ligadas ao estigma da doença. Vargas não ocupava mais a presidência (tendo se

suicidado em 1954), mas a Agência Nacional cumpria as mesmas funções.

Apesar da descoberta da cura e a propaganda realizada sobre ela, a campanha de

reinserção social da Revista Tópicos, permite uma associação direta e simples com o fim

imediato da internação compulsória, contudo, não foi assim que tudo ocorreu. Após

tantos anos isolados, os pacientes não conseguiram se readaptar com facilidade a

sociedade, além do preconceito com a doença, muitos deles carregavam as lesões,

marcas, cicatrizes da doença, pedaços do corpo que haviam se deteriorado. Os motivos

da internação não eram apenas médicos, era uma questão higienista e até mesmo

eugenista, havia um próposito de “limpeza” social, de uma cidade ideal, livre dos

106 CASTRO, Clarissa Costa Mainardi Miguel de. O governo democrático de Vargas através

dos cinejornais. Dissertação de Mestrado – Universidade Federal Fluminense, Instituto de

Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2013. p. 56.

91

“medos urbanos”, sendo assim, a descoberta da cura não foi motivo suficiente para

decretar o fim da internação compulsória.

O sistema hospitalar já não era de confinamento, de reclusão

absoluta. Era um sistema misto, de colônia, com um hospital no

centro e moradias ao redor. Uma vez entrando nesta colônia, o

doente não conseguia mais sair. Mesmo que curado

parasitológica e clinicamente, culturalmente ele não conseguia

mais se reinserir na sociedade e continuava doente para

sempre.107

Este cenário contraditório entre a descoberta da cura e a manutenção do sistema

de internação compulsória dos hansenianos em São Paulo, só começou a se alterar nos

anos de 1960, com um marco fundamental em 1962, a aprovação do Decreto Federal nº

968, que determinava o fim do isolamento compulsório dos hansenianos no Brasil.

3.2 – Retorno á sociedade: preconceitos e lutas

(...)A partir da década de 1960, foram realizadas várias

reuniões e vários congressos no país, com o objetivo central de

combater a política isolacionista presente em São Paulo e, em

vários estados Brasileiros, apresentando alternativas ao

tratamento da doença. Assim, em 1962, por meio do Decreto

Federal n° 968, foi estabelecido o fim do isolamento

compulsório no Brasil e, como a maior parte dos estados não

possuía verbas suficientes em seus orçamentos para a

manutenção para os serviços de prevenção à hanseníase,

dependendo financeiramente da União, foi mais fácil abolir tal

prática nesses lugares.108

O Brasil passava por um momento político peculiar, em 1961, João Goulart

assumiu a presidência da república, após renúncia do presidente Jânio Quadros. Para

aprovar a lei que poria fim a internação compulsória, o presidente teve que buscar por

alianças, contudo, um fator preponderante foi a crise econômica, que dificultava a

manutenção dos leprosários, devido a política de internação compulsória, pôr fim a esta

política reduziria gastos do Estado. Em seu primeiro artigo, a Lei Federal nº 968 trazia:

Parágrafo único. No combate à endemia a leprótica será, sempre

que possível, evitada a aplicação de medidas que impliquem na

107

QUEIROZ, Marcos de Souza; PUNTEL, Maria Angélica. A endemia hansênica: uma

perspectiva multidisciplinar. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1997. p. 36. 108 POSTIGO, Vânia Regina Miranda. Espaços Vigiados: Um estudo do isolamento

compulsório dos portadores de hanseníase no Asilo-colônia Santo Ângelo (1890-1960).

Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São Paulo, 2008.p. 180.

92

quebra da unidade familiar, no desajustamento ocupacional e na

criação de outros problemas sociais.109

O isolamento compulsório passou a ser evitado, o que não significou a liberação

imediata de todos os internados e nem a exclusão por completo da possibilidade de uma

nova internação em casos específicos, quando pessoas não possuíssem condições de

seguirem um tratamento domiciliar. Isto estava posto no artigo 8º:

Art. 8º Será assegurado aos enfermos de lepra, portadores de

formas clínicas contagiantes, o direito de movimentação, que

poderá, entretanto, sofrer limitações nas eventualidades:

a) de não possuir o enfermo as condições econômicas que

garantam sua subsistência na forma requerida pelo seu estado

de saúde.

b) de não possuir o enfermo domicílio que satisfaça os

requisitos mínimos de proteção aos demais conviventes.

c) de o enfermo, embora satisfazendo os itens anteriores não

acatar as determinações relativas ao seu tratamento regular e as

recomendações que visem a eliminar os riscos da

disseminação.110

Ou seja, os enfermos sem condições econômicas ainda estariam sujeitos a um

possível cerceamento de sua liberdade, ainda obrigados a se tratarem, não tendo plenos

direitos sobre seus corpos. A procura e captura dos hansenianos também permaneceu,

como estava disposto no artigo 4º desta mesma lei:

Art. 4º A procura sistemática dos doentes de lepra será

realizada, principalmente, mediante:

a) Vigilância sanitária dos contatos e suspeitos;

b) Verificação de denúncias e notificações;

c) Exames em coletividades;

d) Investigação de focos.

§ 4º A prática de notificações será incentivada por meios

adequados, junto à classe médica, sendo conservado em sigilo o

nome do notificante.

§ 5º Todos os casos de denúncias ou notificações serão

obrigatoriamente examinados e investigados.111

Lei que também explicitava uma das lógicas vigentes no Brasil e,

principalmente, no Estado de São Paulo: a lógica do corpo como instrumento de

109

Decreto do Conselho de Ministros Nº 968, de 7 de maio de 1962. Diário Oficial da União -

Seção 1 - 9/5/1962, Página 5113 (Publicação Original). 110 Ibid. 111 Ibid.

93

trabalho indispensável para o sistema de um país que almejava o crescimento

econômico.

Art. 7º O Estado prestará a devida assistência social aos doentes

de lepra e aos seus dependentes.

§ 1º Aos doentes internados ou não, quando necessário, será

promovida a sua recuperação ocupacional, sua readaptação e

sua reintegração social.

§ 2º Os doentes de lepra serão divididos em quatro categorias

do ponto de vista de seus estigmas:

a) os incapacitados seriamente para tomar parte ativa na vida.

b) os que sofrendo deformidades, possam produzir trabalhos de

valor econômico sob condições especiais.

c) os que são forçados a abandonar sua antiga ocupação e

necessitam habilitar-se para novo emprego.

d) os que apenas precisam de auxílio para encontrar trabalhos,

não constituindo estorvo os estigmas da doença.112

Os portadores e os que haviam sofrido com o mal de Hansen passaram a ser

classificados a partir da sua capacidade de reinserção social, tendo como base para isso

a retomada do trabalho e suas funções produtivas.

Apesar dos Estados ainda gozarem de certa autonomia, sem invertimentos

federais, cortados a partir da nova perspectiva trazida pela Lei Federal nº 968, a

manutenção do projeto isolacionista se inviabilizou, desta forma, esse decreto pôs fim a

internação compulsória de novos casos de doentes no Brasil. A exceção, novamente, foi

o Estado de São Paulo.

Contudo, São Paulo se constituía um caso a parte em termos de

políticas públicas de saúde. O Departamento de Profilaxia da

Lepra possuía verba própria, podendo perfeitamente arcar com

os custos da política por ele adotada, além disso, deve ser

levado em conta o fato de que a própria sociedade paulista

contribuía financeiramente para a manutenção dos asilos por

meio de entidades beneficentes.113

O “modelo paulista” de internação compulsória sempre se desenvolveu de

maneira autônoma, sendo apropriado pelo Governo Federal durante a gestão de Vargas.

Estava ligado ao imaginário paulista de pioneirismo e ao projeto de modernização e

industrialização, fatores confluentes com as ações de política médica do período.

Apenas em 1967, que em São Paulo se começou a tomar algumas medidas gradativas no

112 Ibid. 113 POSTIGO, Vânia Regina Miranda. Espaços Vigiados: Um estudo do isolamento

compulsório dos portadores de hanseníase no Asilo-colônia Santo Ângelo (1890-1960).

Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH da Universidade de São Paulo, 2008.p. 180.

94

sentido de alterar as políticas de internação compulsória. Tal fato foi fruto de discussões

médicas e da mudança no comando do DPL, também pode ser observado que neste

momento, o então governador Abreu Sodré, nomeado pelo governo militar, visava um

maior alinhamento entre o estado e a federação.

Somente a partir de 1967, com a nomeação do leprólogo

Abrahão Rotberg, como diretor do Departamento de Profilaxia

da Lepra, teve ínício uma progressiva queda no internamento

dos doentes e a adoção de uma nova política para o tratamento

da doença. Os doentes passaram a ser tratados em centros ou

postos de saúde com novos medicamentos, que tornavam a cura

mais rápida. Embora livres do isolamento compulsório, os

doentes de hanseníase não eram integrados à sociedade de

imediato, pois havia grande resistência em aceitá-los.114

Ao iniciar seu trabalho como diretor do Departamento de Profilaxia da Lepra Dr.

Abrahão Rotberg115

, foi gradativamente reduzindo as internações e privilegiando o

tratamento ambulatorial, contudo, isso não era o suficiente para acabar de vez com o

isolamento e com os leprosários. Os internos tinham passado muitos anos excluídos do

convívio social, o que dificultaria sua reinserção, a sociedade ainda tinha permanências

históricas dos estígmas ligados a lepra, ainda entendia-se o corpo como algo sacralizado

e as chagas da lepra como uma manifestação das impurezas da alma, o que só agravava

o quadro de emcaminhamento do fim dos leprosários.

Rotberg tomou algumas medidas para viabilizar a transição entre isolamento e

liberdade, uma de suas medidas foi substituir a palavra “lepra” por “hanseníase” ou

“mal de Hansen”. A intenção da mudança de nomenclatura visava a desmistificação da

doença, desassociando-a do nome tão estigmatizado que a denominava há tantos

séculos.

Mesmo com trabalhos como o do Dr. Abrahão Rotberg, a falta de um projeto

mais amplo e estruturado fez com que as tentativas de reinserção dos doentes

fracassassem. Muitos dos doentes não tinham mais contato com suas famílias, que

poderiam ter sido internadas em alguma outra instituição ou simplesmente se mudado

para não sofrer com o preconceito dos vizinhos. Outros não possuiam mais nada, já que

muitas vezes tiveram suas casas queimadas quando foram internados, algumas pessoas

114

Ibid., p. 180. 115 Médico e pesquisador brasileiro dedicado a hansenologia, foi Professor Titular de

Dermatologia da Escola Paulista de Medicina/UNIFESP (1958-1973) e da Faculdade de

Medicina de Taubaté (1970-1973).

95

acreditavam que isso era necessário para purificação do ambiente, como pode-se

observar no depoimento de um ex-interno:

Nivaldo Mercúrio tinha 7 anos quando uma ambulância preta

com a sigla DPL, de Departamento de Profilaxia da Lepra,

parou em frente à sua casa, em um sítio em Itápolis, interior de

São Paulo. Dois médicos desceram e pediram para examinar

toda a família. “Descobriram que minha mãe tinha hanseníase, a

antiga lepra, e dias depois voltaram para levá-la”, ele relembra,

aos 88 anos, enquanto caminha pelas ruas do antigo hospital-

colônia Aimorés, hoje parte do Instituto Lauro de Souza Lima,

em Bauru, um dos principais centros de atendimento a pessoas

com hanseníase no estado de São Paulo. “Depois os médicos

pediram para que eu, meu pai e meus irmãos fôssemos para a

rua e puseram fogo em nossa casa.” Em 1933, a internação

compulsória e a queima da casa das pessoas com hanseníase

eram as formas adotadas para evitar que outras pessoas se

contaminassem com a doença, vista com forte repulsa desde os

tempos medievais.

Dez anos depois, Nivaldo recebeu o mesmo diagnóstico da mãe

e foi levado para Aimorés, onde vive desde então, exceto por

alguns meses em que tentou trabalhar em Itápolis. Sua mãe foi

levada para outro hospital e ele nunca mais a viu. Estima-se que

cerca de 40 mil pessoas tenham sido separadas de suas famílias

por causa das estratégias de isolamento adotadas como forma de

tratar a hanseníase.116

As próprias autoridades médicas não acreditavam que um dia esses doentes

pudessem sair e retomar suas vidas, portanto, queimar suas casas não era um problema,

em casos como do Sr. Nivaldo, as medidas tomadas contra os hansenianos atingiram

toda sua família.

Os egressos não conseguiam se reinserir a sociedade, pois ainda carregavam os

estigmas. Apesar da Lei Federal nº 968 classificar os hansenianos por sua capacidade de

exercer atividades produtivas, analisando o caso do Sr. Nivaldo, vê-se que não era tão

simples entrar o mercado de trabalho.

Foi o que aconteceu com Nivaldo Mercúrio. Em 1968, curado,

ele deixou o hospital-colônia, voltou para Itápolis e arrumou um

emprego. Semanas depois, porém, outros empregados exigiram

do dono da empresa que ele fosse demitido porque vinha de um

leprosário. Ele exibia os sinais de seu passado: suas mãos

haviam atrofiado e falava com dificuldade, em consequência do

tratamento com óleo de chaulmoogra, usado antes da sulfona.

“Fui demitido e, meses depois, voltei para cá”, ele conta. O

116

ANDRADE, Rodrigo de Oliveira. Violência, Medo e Preconceito. Revista Pesquisa

FAPESP, São Paulo, nº 236, p. 78-83, outubro de 2015. p. 78 e 81.

96

antigo hospital-colônia de Aimorés abriga hoje 74 pessoas que,

como ele, um dia tiveram hanseníase.117

Mesmo depois de adquirirem sua liberdade, muitos ex-internos retornavam para

viver nos asilos-colônias por não conseguirem voltar ao convívio social, não terem

condições de manter-se economicamente. No Asilo-colônia de Aimorés, ainda hoje,

vivem 74 residentes, o mesmo acontece no Santo Ângelo; a Secretaria de Saúde de São

Paulo reconheceu a dívida que tinha com esses sobreviventes e aceitou que

continuassem a residir nos antigos asilos-colônias.

O antigo Asilo-Colônia Santo Ângelo abriga, atualmente,

moradores sobreviventes do tempo de internação compulsória.

A Secretaria de Saúde de São Paulo reconheceu que tem uma

dívida com os pacientes internados compulsoriamente,

permitindo que os mesmos permanecessem nas moradias.

Alguns internos que necessitam de maiores cuidados ficam nas

enfermarias e nos pavilhões coletivos.118

Novamente a exceção foi o Sanatório Padre Bento, por possuir pacientes com

melhores condições econômicas, com menos sinais físicos da doença, os egressos dessa

instituição acabavam não retornando para lá. Ainda foram mantidos leitos para uso

exclusivo dos hansenianos, uma conquista da Caixa Beneficente, mas aos poucos foram

diminuindo por falta de demanda específica pelos hansenianos, assim, o Sanatório do

Padre Bento tornou-se um hospital público de Guarulhos, que se mantém como

referência em dermatologia.

A percepção dos prejuízos gerados pelos anos de isolamento, as perdas materiais

e afetivas que se monstraram irreversíveis mesmo após a liberdade, levaram os

hansenianos a uma luta por ressarcimentos que dura anos, obtendo algum êxito apenas

no ano de 2007. Os sobreviventes da internação compulsória tiveram sua liberdade

cerceada e muitos comparavam seu martírio ao exílio, passaram por sofrimentos físicos,

psicológicos e morais, contrariamente a sua vontade, sendo isso imposto pelo Estado.

As conquistas que tanto tardaram só foram possíveis através da luta, um esforço

militante pela causa, bem como algum nível de organização. Em 6 de junho de 1981, foi

fundado o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase

(MORHAN), que se identifica como um movimento social, recusando o status de ONG,

117

ANDRADE, Rodrigo de Oliveira. Op. Cit., p. 83. 118

POSTIGO, Vânia Regina Miranda. Op. Cit., p. 182.

97

pois sobrevive do trabalho de seus voluntários. Em seu site, define sua missão como:

“Possibilitar que a hanseníase seja compreendida na sociedade como uma doença

normal, com tratamento e cura, eliminando assim o preconceito e estigma em torno da

doença.” E sua visão como: “Continuar a ser uma referência para informações sobre

hanseníase e apoio a pessoa atingida pela hanseníase e tornar o Brasil uma referência no

tratamento e respeito aos direitos humanos das pessoas atingidas pela hanseníase.”119

A luta dos hansenianos, com grande participação do MORHAN, culminou na

aprovação da Lei Federal Nº 11.520, de 18 de setembro de 2007, que em seu primeiro

artigo dispunha:

CONGRESSO NACIONAL

LEI Nº 11.520, DE 18 DE SETEMBRO DE 2007

Dispõe sobre a concessão de pensão especial às pessoas

atingidas pela hanseníase que foram submetidas a isolamento e

internação compulsórios.

Faço saber que o Presidente da República adotou a Medida

Provisória nº 373, de 2007, que o Congresso Nacional aprovou,

e eu, Renan Calheiros, Presidente da Mesa do Congresso

Nacional, para os efeitos do disposto no art. 62 da Constituição

Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 32,

combinado com o art. 12 da Resolução nº 1, de 2002-CN,

promulgo a seguinte Lei:

Art. 1º Fica o Poder Executivo autorizado a conceder pensão

especial, mensal, vitalícia e intransferível, às pessoas atingidas

pela hanseníase e que foram submetidas a isolamento e

internação compulsórios em hospitais-colônia, até 31 de

dezembro de 1986, que a requererem, a título de indenização

especial, correspondente a R$750,00 (setecentos e cinqüenta

reais).

§ 1º A pensão especial de que trata o caput deste artigo é

personalíssima, não sendo transmissível a dependentes e

herdeiros, e será devida a partir da entrada em vigor da Medida

Provisória nº 373, de 24 de maio de 2007.

§ 2º O valor da pensão especial será reajustado anualmente,

conforme os índices concedidos aos benefícios de valor

superior ao piso do Regime Geral de Previdência Social.

§ 3º O requerimento referido do caput deste artigo será

endereçado ao Secretário Especial dos Direitos Humanos da

Presidência da República, nos termos do regulamento.

§ 4º Caberão ao Instituto Nacional do Seguro Social – INSS o

processamento, a manutenção e o pagamento da pensão,

observado o disposto no art. 6º desta Lei.120

119

Site do MORHAN: http://www.morhan.org.br/institucional. Consultado em 18/01/2015. 120 Lei Nº 11.520, de 18 de setembro de 2007. Diário Oficial da União - Seção 1 - 19/9/2007,

Página 1 (Publicação Original).

98

Esta lei dava o benefício de uma pensão vitalícia às pessoas atingidas pela

hanseníase e internadas nos asilos-colônias até 31 de dezembro de 1986, esta data não

foi escolhida aleatoriamente, de fato, as internações compulsórias ocorreram e foram

mantidas, mesmo que em menor escala, como uma transição, até tal ano, quando foi

“recomendada” a transformação de alguns leprosários em hospitais gerais. Esta pensão

teve o valor determinado em R$ 750,00, reajustado anualmente, de acordo com os

índices concedidos a benefícios pela Previdência Social. A pensão não foi retroativa aos

anos de internação, sendo paga apenas a partir a aprovação da lei, e nesse mesmo valor,

independente do tempo de internação de cada indivíduo e a instituição na qual ficou

confinado.

Esta conquista não pôs fim à luta por ressarcimentos referentes às internações

compulsórias, isso porque essa lei indenizou apenas os internados em asilos-colônias,

ou seja, os hansenianos, sendo a pensão intransferível a familiares. O número de

hansenianos sobreviventes em 2007 já não era alto, cerca de 6,2 mil, de acordo com a

Secretaria Especial dos Direitos Humanos, e com uma expectativa de vida não muito

elevada. Indenizar também os familiares geraria custos muito mais elevados, podendo

os números chegarem a 30 mil pessoas.

A lei não beneficia as famílias dos ex-internos, que na maioria dos casos,

sofreram igualmente. Os filhos internados em preventórios, as esposas que passaram por

dificuldade de sustento sem o aporte dos maridos internados, sem contar que todos

sofriam com o preconceito da sociedade, que se estendia a eles.

Via de regra, a internação de um dos pais acarretava a chamada

"explosão familiar", pois assim que a notícia se espalhava, era

comum que ocorressem perdas de emprego ou que as crianças

fossem expulsas da escola. Mesmo quando apenas um dos

genitores era internado, os filhos acabavam por ser enviados

para um Preventório. Nem sempre esse processo era imediato,

porém o que ocorria era que, no caso da mãe ser internada, o pai

nem sempre conseguia cuidar das crianças, no caso da

internação do pai, a mãe acabava por não ter condições de

sustentar a prole e, como dificilmente havia ajuda de familiares,

a situação acabava por se tornar insustentável. Desta forma,

tanto num caso como no outro, o único espaço para essas

crianças acabava por ser o da "exclusão". Eram crianças

marcadas que, praticamente, não dispunham de outro local para

ir a não ser o Preventório.121

121

MONTEIRO, Yara Nogueira. Violência e profilaxia: os preventórios paulistas para filhos de

portadores de hanseníase. Saúde e Sociedade. v.7, n. 1, p. 3-26. 1998. p.14.

99

A desestruturação da família gerada pela internação de um único membro que

fosse, fazia com que os filhos, quase que invariavelmente, também fossem internados

em algum Preventório. Em São Paulo havia dois preventórios, o Santa Terezinha e o

Preventório de Jacareí, este último era público. Os dois funcionavam de maneira muito

parecida e também dentro da mesma lógica dos asilos-colônias em que os pais

hansenianos estavam internados.

Como já foi visto, em São Paulo existiam apenas dois locais de

internação, o Asilo de Santa Terezinha e o Preventório de

Jacareí, ambos com trajetórias semelhantes e muitos pontos em

comum. Contudo, é através da análise do funcionamento do

segundo que tem-se uma imagem mais nítida do procedimento

adotado pelos hansenólogos paulistas com relação ao menor,

isto devido ao fato do Preventório de Jacareí estar subordinado

ao Departamento de Profilaxia da Lepra, o D.PL. o que o

tornava permeável à política exercida por aquele órgão. Desta

forma, vê-se refletir no Preventório o mesmo mecanismo

imposto aos asilos-colônia, ou seja, um grande cuidado com a

tarefa profilática em detrimento de uma visão mais humanista

com relação aos internos, ainda que estes fossem crianças e

saudáveis.122

Os internos dos preventórios passaram pelas mesmas dificuldades geradas pelo

isolamento de seus pais e, como consequência, também sofreram no momento de tentar

se reintegrar a sociedade, tanto pelo estigma que carregavam como pelo tempo que se

mantiveram afastados do mundo.

Sair da instituição nem sempre se constituía numa tarefa

simples para o interno, até mesmo para os que atingissem a

maioridade, em especial porque uma boa parte deles não tinha

para onde ir. (...) o tipo de estrutura montada favorecia o

distanciamento familiar e a falta de uma formação profissional

limitava as chances de que o egresso pudesse prover sua própria

manutenção. Essa situação ainda era agravada pelo tipo de vida

a que haviam sido submetidos, em que o distanciamento do

mundo fazia com que eles não soubessem como viver fora dos

muros da instituição.123

Os problemas descritos eram muito similares aos dos hansenianos, a dificuldade

em arrumar emprego e se sustentar, a falta de suporte de uma família (o modelo de

internação promovia um distanciamento), a dificuldade em lidar com a reinserção após

tantos anos longe do convívio, além do próprio estigma da doença, que constituía a

identidade dos hansenianos e de seus familiares, mesmo após a cura.

122

Ibid. p. 14. 123

Ibid. p. 21.

100

Os Preventórios existiram por todo o território nacional, podendo haver algumas

diferenças entre si, alguns buscavam pessoas dispostas a adotar os filhos sadios de

hansenianos, caso isso ocorresse, não precisariam permanecer no preventório até a

maioridade.

Estima-se que 25 mil crianças tenham se tornado órfãs de pais

vivos internados em hospitais-colônia, principalmente nas

regiões Norte e Nordeste. As crianças que nasciam nos

leprosários ou não tinham com quem ficar eram levadas para os

preventórios, como eram chamados os orfanatos para filhos de

pessoas com hanseníase, às vezes em outras cidades. “Os

médicos diziam às mulheres que seus filhos tinham morrido no

parto, quando haviam sido dados para adoção”, relata Lavínia.

Em 1943, os 22 preventórios do país abrigavam cerca de 2.500

crianças, que depois eram entregues para parentes ou

desconhecidos dispostos a criá-las. Não era fácil encontrar

quem as adotasse, porque se temia que as crianças estivessem

contaminadas e pudessem transmitir a doença.124

Contudo, mesmo os filhos de hansenianos que conseguiam um lar adotivo não

estavam livres de mazelas e sofrimento.

Depois de examinar cerca de 10 mil fichas preenchidas por

filhos de pessoas isoladas em leprosários do país, a equipe do

MORHAN verificou que muitas crianças adotadas eram

forçadas a trabalhar, sofriam maus-tratos e eram discriminadas

por serem filhos de pessoas com hanseníase. Por meio desses

documentos, os pesquisadores também identificaram rotas de

saída de crianças para adoção. “Muitas crianças do norte de

Minas Gerais foram enviadas para a Itália e, do sul do Pará, por

meio do Suriname, para a Holanda”, diz Custódio. Em julho, a

equipe do MORHAN localizou na Holanda dois irmãos, filhos

de brasileiros que tiveram hanseníase e ainda estão vivos.125

Filhos de pais vivos sendo adotados por outras pessoas, sem garantias de que

fosse um lar adequado, além do tráfico dessas crianças para o exterior, crimes que foram

facilitados por entidades governamentais. Tendo em vista que os danos gerados aos

familiares são tão similares aos dos hansenianos, passou-se a encampar uma luta

política para que os ressarcimentos sejam estendidos a eles também, luta essa que se

estende até os dias atuais.

124 ANDRADE, Rodrigo de Oliveira. Violência, Medo e Preconceito. Revista Pesquisa

FAPESP, São Paulo, nº 236, p. 78-83, outubro de 2015. p. 81. 125

Ibid.

101

(Em SP, filhos de hansenianos lutam por indenização. Jornal Estadão. São Paulo, 21 de março

de 2011. Disponível no ste: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,em-sp-filhos-de-

hansenianos-lutam-por-indenizacao,695170. Consultado em 18/01/2015.)

A notícia veiculada pelo jornal Estado de São Paulo, em 2011, trata de uma

reunião de cerca de 500 pessoas, em Itu, ao lado de um antigo asilo-colônia, para

discutir as indenizaões aos filhos de hansenianos que sofreram com o isolamento e com

a alienação parental. Inúmeras são as notícias como essa, dando conta de reuniões, bem

como manifestações, cobrando esta dívida histórica. Isso vem ocorrendo em vários

estados do país, encabeçado pelo MORHAN. Os governos estaduais dizem que essa

discussão deve ser feita em nível federal, já que a lei que instituiu o isolamento

compulsório veio dessa instância de poder, mas, o Governo Federal nunca acenou com

um projeto que contemplasse essas vítimas da exclusão.

Além da busca por compensações financeiras, os filhos e parentes dos

hansenianos encontram-se em outra missão: a de reencontrar e unir suas famílias

separadas no passado. Para isso, hoje podem contar com a ajuda da tecnologia e do

acesso a informação nessa busca.

102

“A maioria dos que nos procuram são filhos de pessoas com

hanseníase querendo encontrar os irmãos, já que os pais muitas

vezes estão mortos”, diz Artur Custódio, presidente do

MORHAN, fundado em 1981 por ex-internos de hospitais-

colônia, que hoje atende pessoas à procura de seus familiares. O

trabalho integrado de médicos, historiadores, antropólogos e

sociólogos permitiu às equipes de Porto Alegre e do Rio

reaproximar 800 pessoas, por meio de visitas a antigos

hospitais-colônia e consultas a arquivos para atestar o

parentesco. “Quando as informações encontradas nos

documentos não são suficientes, aplicamos o teste de DNA”,

explica a bióloga Flávia Costa Biondi, da equipe da UFRGS.

Pais e filhos que se reencontram, porém, raramente voltam a

viver juntos. “Em geral os filhos não conseguem reconhecê-los

como pais ou mães. O isolamento os fez completos

desconhecidos”, diz Lavínia. Algumas histórias são dramáticas,

como a de um homem que queria saber do pai internado havia

décadas em um leprosário do Acre. Meses depois a equipe do

MORHAN o localizou, mas ele tinha morrido fazia poucas

semanas.126

O MORHAN, em parceria com médicos, historiadores, sociólogos, antropólogos

vem, desde 2011, tentando reaproximar famílias separadas pela internação compulsória,

este trabalho é realizado por equipes no Rio de Janeiro e Porto Alegre. Até agora, já

foram 800 pessoas reaproximadas, num árduo trabalho, que em casos de documentação

incompleta, envolve até mesmo exames de DNA. Contudo, está longe de contemplar as

mais de 40 mil famílias atingidas pela internação compulsória no Brasil, além do

problema apontado pela médica Lavínia Schuler-Faccini: a dificuldade dessas pessoas

se reconhecerem como pais e filhos, que após tantos anos separados, se tornaram

estranhos. Muitos desses ex-internos dos leprosários também já vieram a falecer,

fazendo com que a maioria de reencontros promovidos pelo MORHAN seja entre

irmãos, e não entre filhos com pais ou mães que tenham sido internados.

O fato do Estado ter concedido pensão aos hansenianos, pode ser encarado como

um reconhecimento do autoritarismo da internação compulsória, legitimando a demanda

dos filhos de hansenianos, que também foram internados compulsoriamente mesmo

estando sãos, ou foram privados do convívio de seus pais e de uma vida de

oportunidades. O único motivo notório, são os gastos que isso traria ao Estado, devido o

grande números de pessoas a serem ressarcidas.

126

ANDRADE, Rodrigo de Oliveira. Op. Cit., p. 81.

103

Este reconhecimento de culpa por parte do Estado era inevitável, tendo em vista

que, medicamente, a internação compulsória dos hansenianos, inspirada no “modelo

paulista”, falhou, já que a doença ainda não foi erradicada do Brasil.

Número de casos de hanseníase identificados em cada Estado brasileiro no ano de 2013.

Elaborado a partir dos dados do SINAN, atualizados em 30/01/2014. Disponível em: Portal

Saúde – <http://www.Saude.gov.br>. – Vigilância. SINAN (Sistema de Informação de Agravos

de Notificação).

Os dados apresentados são de novos casos de hanseníase surgidos no ano de

2013, sendo um número próximo aos 30 mil, estando a maior parte dos casos

localizados nas regiões Norte e Nordeste, isto se deve as condições de vida precárias,

gerado pelo alto índice de pobreza. Estudos médicos apontam para o fato de que a maior

transmissão de hanseníase está ligada a falta de higiene, a má alimentação, dentre outros

fatores que enfraquecem o sistema imunológico das pessoas.

Os números de 2014 não são muito diferentes, segundo o Ministério da Saúde,

foram 31.064 novos casos em todo território nacional, colocando o Brasil na segunda

104

colocação entre os países com maior número de casos no mundo, atrás apenas da

Índia.127

Os hansenianos e suas famílias foram vítimas do desconhecimento médico e do

preconceito, já que nos anos de 1930 pouco se sabia a respeito das formas de contágio

da lepra, conhecia-se a causa, o bacilo Mycobacterium Leprae (já identificado em 1873,

pelo médico norueguês Gerhard Hansen), mas como as pessoas eram contaminadas era

ainda desconhecido. Foram também submetidos à lógica eugenista (seleção de pessoas

desejáveis e exclusão das indesejáveis, para fim de construir gerações futuras

etnicamente, geneticamente, socialmente “melhores”), assim como os leprosários, eram

afastados das cidades. A internação compulsória dos hansenianos pode ser considerada

como uma estratégia de higiene social, da mesma forma, o fato de filhos sadios de

hansenianos também serem retirados de circulação sendo internados em preventórios.

Em seu livro de memórias128

, o ex-interno Sr. Arnaldo Rúbio129

, descreve a

condição de cobaia a que os pacientes de hanseníase eram submetidos, tanto na busca

pela cura da lepra quanto para outros procedimentos, principalmente testes de cirurgias

plásticas e de enxertos de nervos e músculos. Segundo ele, estes experimentos se

intensificaram nos anos de 1950, a possibilidade de testar práticas cirúrgicas em cobaias

humanas rendeu avanços na área, sendo que até 1991 as cirurgias em hansenianos eram

realizadas sem consentimento formal dos pacientes ou familiares. Sr. Arnaldo destaca

que a sociedade se beneficiou dos resultados obtidos nesses testes em hansenianos, mas,

não nega que alguns hansenianos também foram beneficiados pelos experimentos,

conseguindo um nariz mais harmônico ou algo assim, apesar das possibilidades de erros

a que a condição de cobaia está exposta.

Pelos melhores anos de vida perdidos no confinamento, pela imposição da

separação dos familiares, pela condição de “cobaia médica”, pelas dificuldades de

reinserção social, pelo fracasso do projeto médico em erradicar a doença, Sr. Arnaldo e

127

Para ter-se uma noção em nível comparativo, a Europa já tinha praticamente eliminado a

hanseníase no século XIX, hoje alguns poucos doentes são encontrados num único leprosário

em Portugal. Nos Estados Unidos, o número de pessoas atingidas por essa moléstia também é

baixíssimo, e na América Latina, Uruguai e Argentina já eliminaram a doença e Chile nunca

registrou um caso. A diminuição da pobreza, as condições de higiene, de saneamento básico e o

nível de desenvolvimento da educação são fatores que acabam servindo de profilaxia da

hanseníase. 128

RÚBIO, Op. Cit. 129

Internado em 1939, no Sanatório Padre Bento, onde viveu dos 12 aos 18 anos.

105

outros ex-internos ativistas consideram injusta a pensão vitalícia oferecida, que não leva

em consideração os anos de sofrimento, e julgam ainda pior, o fato das famílias não

conseguirem nenhum ressarcimento.

O caso dos hansenianos, ainda reverbera nos dias atuais, permitindo observar a

dívida histórica, frente a uma política de internação compulsória instituída nos anos de

1930, a permanência histórica dos estigmas sobre os doentes de lepra que, no seu

conjunto, ainda leva a sua exclusão social.

Percebe-se que a pessoa realmente continuava isolada, apesar

de estar entre a sociedade extra-muros. Estava fadada ao

confinamento domiciliar, diferindo da instituição apenas em seu

aspecto físico, acentuando-se a solidão de sentir-se um doente

dentro da área limpa/saudável, onde não seria aceita se os

sadios soubessem do seu passado, da sua origem, da sua

identidade.130

Para os hansenianos, foram muitos anos de exclusão, seguidos de vários outros

anos de indiferença por parte do poder público e da sociedade, devido ao preconceito.

130

BARCELOS, Artur Henrique Franco; BORGES, Viviane Trindade. Segregar para curar? A

experiência do Hospital Colônia Itapuã. Bol. da Saúde, v. 14, n. 1, 1999-2000. p.151.

106

Considerações Finais

A presente pesquisa tratou da internação compulsória dos hansenianos no Estado

de São Paulo, no início do século XX, e seu reflexo no cenário nacional, tendo como

referência o Sanatório Padre Bento, fundado em 1931, na cidade de Guarulhos, e tido

como modelo.

A hanseníase é uma doença contagiosa, causada por um bacilo que deixa chagas

na pele do doente, podendo chegar a fazer com que a pessoa atingida perca partes do

corpo. Hoje, sabe-se que menos de 10% da população mundial é suscetível a esse

bacilo. A contaminação se dá em contato direto com secreções do doente, mas também

está relacionada a um baixo sistema imunológico, por conta de má nutrição, falta de

saneamento básico, más condições de higiene, fatores esses ligados à pobreza, mas é

uma doença tratável, atualmente utilizam-se três antibióticos, a chamada

poliquimioterapia (PQT), e partir da primeira dose, o doente já não transmite mais a

moléstia.

No início do século XX ainda se desconhecia as formas de contágio da doença,

sendo o próprio doente o único vetor identificado. Foram propostos dois modelos para

lidar com os hansenianos; um de internação compulsória e isolamento, e o outro, de

tratamento domiciliar; o primeiro prevaleceu, foi adotado no Estado de São Paulo.

Iniciou-se então, em 1930, em São Paulo, a construção e arrendamento de cinco

leprosários, ou asilos-colônia, todos em cidades afastadas da capital. A exceção foi o

Sanatório Padre Bento, em Guarulhos, e mais especificamente nos bairros da

Tranquilidade e Gopoúva.

Essa política de internação compulsória em asilos-colônias ficou conhecida

como “modelo paulista”, sendo relacionado ao que havia de mais moderno e humano no

tratamento da hanseníase na época, já que os leprosários possuíam uma estrutura

opulenta, o que, segundo as autoridades, possibilitaria uma vida próxima da

normalidade.

O Sanatório do Padre Bento contava com uma vila de moradias, um prédio que

abrigava a Caixa Beneficente, cinema, teatro, biblioteca, cassino, salão de baile,

barbearia, campo de futebol, chácara para a criação de gado, laboratórios, sala para

107

palestras e escola profissional, constituindo um complexo de aproximadamente 340 mil

metros quadrados. Também era o único a possuir uma ala para menores hansenianos,

recebendo internos de diversas regiões.

Essa estrutura e sua proximidade com a capital fez com que o Sanatório Padre

Bento recebesse um perfil de hanseniano diferente dos demais leprosários, sendo um

público mais elitizado e em estágio inicial da doença (sem sinais físicos visivelmente

chocantes).

Contudo, os pacientes tiveram sua liberdade cerceada, eram separados de suas

famílias e submetidos a tratamentos experimentais que, muitas vezes, poderiam ser

cruéis. Esse sofrimento se estendia à família dos hansenianos internados. Se um pai

fosse internado, dificilmente a mãe, nessa época, conseguiria prover o sustento da

família. Caso fosse a mãe a internada, o pai não daria conta de trabalhar e cuidar dos

filhos. Em sendo os dois, os filhos sadios seriam enviados a uma instituição específica:

os preventórios.

Além das crianças que tinham os pais internados, as que nasciam dentro do

leprosário, fruto de relacionamentos entre os internos, também eram retiradas de seus

pais e enviadas a um preventório, onde eram submetidas à mesma lógica de controle e

exclusão de seus pais.

O órgão responsável pela captura, diagnóstico e internação dos doentes e de seus

filhos era o Departamento de Profilaxia da Lepra (DPL), uma instituição paulista,

autônoma em relação ao governo federal. Durante os anos de 1930 a 1945, o DPL

esteve sob direção do Dr. Francisco Salles Gomes, conhecido por ser implacável e tido

como um “carrasco” pelos hansenianos, que eram arrancados de suas casas à força,

jogados no carro e internados, muitas vezes, tinham suas residências incendiadas, pois

acreditava-se que isso evitaria possíveis contágios.

Nesse mesmo período, Getúlio Vargas apropriou-se do modelo paulista,

promoveu uma centralização nacional nas políticas de combate à lepra e incentivou a

construção de leprosários por todo o território nacional. São Paulo continuou com sua

política independente, não assinando os acordos federais e sendo o estado com maior

rigor na promoção das internações dos leprosos.

108

Esse panorama de internação compulsória, desmantelamento da família e

experiências inúteis em busca de uma cura, só começa a se alterar nos anos de 1940,

quando estudos realizados nos E.U.A. indicam que o tratamento com sulfonas em

hansenianos poderiam levar à cura. Tal tratamento chega ao Brasil em 1946, através do

Dr. Lauro de Souza Lima, então diretor do Sanatório Padre Bento, que se tornou a

pioneiro nos testes com a sulfona, o que possibilitou a chegada da cura tão esperada

pelos doentes.

A partir da cura, começaram a serem promovidas algumas altas hospitalares,

mas a internação compulsória enquanto política foi mantida, e os poucos pacientes

liberados seriam vigiados também, numa espécie de isolamento domiciliar.

O fim da internação compulsória só foi instituído legalmente no ano de 1962,

com a Lei Federal nº 968. Em São Paulo, à época, iniciou-se uma transição, mas ainda

houve internações no estado até o ano de 1986.

O retorno à sociedade a partir das altas também deu-se de maneira bastante

complicada, notando-se a ausência de um projeto de reinserção social para essas pessoas

que por tantos anos estiveram isoladas em leprosários e preventórios.

O estigma da doença ainda era latente e, juntamente a falta de formação

profissional, fizeram com que essas pessoas não conseguissem empregos para manter-se

fora do confinamento. Além disso, muitas já tinham perdido contato com seus

familiares e não tinham para onde ir.

Por conta destas dificuldades, muitos pacientes permaneceram vivendo nas

instituições mesmo após sua liberação, situação que ainda acontece com alguns dos

sobreviventes.

Tendo em vista as dificuldades enfrentadas no retorno à sociedade, os anos

perdidos no isolamento, as condições a que foram submetidos e o desmantelamento de

suas famílias, os hansenianos sobreviventes se organizaram em um movimento social, o

MORHAN, e passaram a travar uma luta em busca de compensações e ressarcimentos

junto ao Estado.

Em 2007, conseguiram uma pensão vitalícia, no valor de R$ 750,00, quantia

reajustada anualmente pelos índices de outros benefícios concedidos pelo INSS. Porém,

109

a pensão não é retroativa e não se estende aos familiares, nem mesmo aos filhos que

também foram confinados nos preventórios enfrentando adversidades similares às de

seus pais.

A luta dos hansenianos internados e de seus familiares permanece, seja por

ressarcimentos financeiros, seja para reencontrar parentes com os quais perderam o

contato durante a internação, já que as instituições não promoviam a permanência

desses laços e relações, privilegiando, muitas vezes, adoções ilegais.

Essa pesquisa tem o intento de ser uma contribuição social, além de acadêmica.

Trazer alguma notoriedade a essa causa, ainda tão atual, uma dívida histórica impossível

de ser paga em sua totalidade, já que muitos morreram ainda relegados. Além da

contribuição direta à causa dos hansenianos e de seus familiares, também pode-se

considerar este trabalho uma base de reflexão para pensar as políticas de internações

compulsórias para pessoas consideradas loucas e para usuários de drogas, com destaque

para os dependentes de crack. Que esta pesquisa possa ser entendida como uma singela

contribuição nas lutas antimanicomiais.

110

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Fontes Documentais:

Anais Eletrônicos do Congresso Nacional

Jornal Estado de São Paulo

Jornal A Última Hora

Jornal O Diário de São Paulo

Revista Boletim Padre Bento

Revista Tópicos

115

ANEXO

116

Entrevista

Entrevista com Sr. Domingos, funcionário do atual Hospital Padre Bento.

Trabalhou no antigo Departamento de Profilaxia da Lepra, indo no final dos anos 1960

para o Padre Bento, já no período de extinção da internação compulsória. Ainda assim,

teve contato com diversos pacientes remanescentes do leprosário, conhecendo muitas

histórias e pesquisando o assunto.

Como o Senhor veio para o Padre Bento?

(Sr. Domingos) Eu entrei no serviço público, no Departamento de Profilaxia da Lepra,

que administrava todos os sanatórios de lepra. Trabalhava no departamento de compras.

Em 1970, o Estado fez a coisa mais bacana. Todos esses sanatórios não tinham vida

própria no que tange a administração, RH, finanças, compras...Era tudo centralizado no

Departamento, esse decreto de 69, 69 ou 70, estabeleceu que cada ex-sanatório, porque

já não era mais sanatório, passasse a ter vida própria, com seu RH, finanças, enfim,

tinham setores. Foi uma mudança enorme! Saiu no Diário Oficial. Eu me inscrevi e

consegui a vaga aqui. Tomei o cuidado de verificar se não havia nenhum funcionário

que já trabalhava aqui e queria continuar, pra não ficar com a vaga de ninguém, mas não

tinha.

Então o Senhor teve contato com ex-internos? Alguns ainda viviam aqui?

(Sr. Domingos) Sim. Mas aconteceu que em 69, quando os caras chegaram e falaram: -

Escuta, podem ir embora, não precisa ficar mais aqui. Aqui a maioria deles foram

embora, por ter uma condição social um pouco mais alta. Aqui tinha engenheiros, até

um dono de um entreposto de café... Nos outros Sanatórios, afastados, quando falaram

isso eles disseram: - Quando eu era jovem, tinha uma pinta insensível, vocês me

puseram aqui, agora eu vou ficar. Os que não morreram estão até hoje. Agora nesse

Sanatório (Padre Bento) não. E outra coisa, eles tinham uma força política imensa, com

o apoio da Caixa Beneficente, eram bem organizados e sabiam usar a política. Eles

conseguiram reservar alas para o atendimento deles, mas essas alas foram diminuindo

porque não tinha necessidade, eles brigaram, até que um dia se reuniram e o diretor

disse que seria porta aberta, pra comunidade toda, mas eles teriam prioridade.

117

Eles tinham o apoio de uma deputada, a D. Conceição da Costa Neves. O Sr. sabe a

importância dela aqui?

(Sr. Domingos) Exatamente. Os hansenianos também votavam, e você sabe que político

quer voto, né? Então eles traziam aqui deputados, vereadores, porque eles sabiam que

quem decidia as coisas era o governador, com o apoio da Assembleia.

E a Pérgola, o Sr. conhece a sua história?

(Sr. Domingos) A Pérgola é interessante, ela liga nada a lugar nenhum. Aí um dia eu

perguntei para um senhor, que veio pra cá jovem, esse do entreposto de café, e ele me

disse que existem duas versões. A primeira é a de que os doentes ficavam la dentro e os

visitantes fora, mas isso aí não bate. A outra, que me convenceu mais, é porque aqui

tinham crianças hansenianas, moços hansenianos, moças hansenianas, e eles

namoravam. Agora imagina isso aqui, com 20 alqueires, pro diretor fiscalizar isso, olha

a responsabilidade do diretor. Então eles concentraram o namoro nessa Pérgola. Então

isso me convenceu mais.

Então não funcionou como parlatório?

(Sr. Domingos) Não. Quando quiseram fazer um parlatório aqui, eles destruíram.