mercantilização da educaão

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  • 8/18/2019 Mercantilização Da Educaão

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    Março 2000   Revista Adusp

    O IMPACTO DA

    MERCANTILIZAÇÃODA EDUCAÇÃO SUPERIORJoão dos Reis Silva Júnior

    Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação da PUC-SP

    eValdemar Sguissardi

    Professor da Universidade Metodista de Piracicaba

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    Março 2000Revista Adusp

    A reconfiguração da educação superior brasileira é parte de um processo de reformas, no interior de radical movimento de transformações político-econômicas 

    mundiais, reformas as quais, se concretizadas, terão conseqüências inevitáveis para a identidade 

    institucional da universidade. Suas diretrizes, emanadas de organismos como o Banco Mundial (BIRD), são em 

    geral bem traduzidas domesticamente pelos responsáveis oficiais pela reforma do Estado e da 

    Educação Superior em nosso país. Este artigo apresenta os principais argumentos presentes nos três primeiros 

    capítulos do livro Novas Faces da Educação Superiorno B rasil — reforma do E stado e mudança na

    produção (Bragança Paulista: Edusf, 1999) , que éresultado de 

    pesquisa sobre o processo de desmonte, pelo governo, do sistema 

    público de educação 

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    crise e reforma do

    Estado e da edu-

    cação super ior

    não são fenôme-

    nos exclusivos do

    B ras i l, mas umarealidade comum à maioria dos

    países de todas as dimensões e

    graus de desenvolvimento, a partir

    dos anos 60 e 70. As novas e atuais

    faces do Estado e dos sistemas de

    educação superior em cada país de-

    correm de um conjunto de fatores,

    entre os quais os avanços sócio-po-

    líticos dos direitos de cidadania e,

    no caso da educação superior, o es-tágio de desenvol-

    vimento desses sis-

    temas. Os ajustes

    estruturais e fis-

    cais e as reformas

    orientadas para o

    mercado têm ocu-

    pado pol í t icos e

    economistas dos

    países centrais (eperiféricos) e dos

    organismos multi-

    laterais especial-

    mente a partir dos

    anos 80. A preocupação desses or-

    ganismos em relação aos países do

    Terceiro Mundo revelava-se em al-

    guns eixos de sua concepção de de-

    senvolvimento, que, nos termos do

    chamado Consenso de Washington ,

    assim se traduziam: 1) equilíbrio

    orçamentário, sobretudo mediante

    a redução dos gastos públicos; 2)

    abertura comercial, pela redução

    das tarifas de importação e elimi-

    nação das barreiras não-tarifárias;

    3) liberalização financeira, pela re-

    formulação da s normas que restrin-

    gem o ingresso de capital estrangei-

    ro; 4) desregulamentação dos mer-

    cados domésticos, pela eliminação

    dos instrumentos de intervenção do

    Estado; 5) pr ivatização das empre-

    sas e dos serviços públ icos (Soares,

    1996: 23, grifos nossos).Esse processo de liberalização

    econômica, que se inicia sob os go-

    vernos Thatcher, Kohl e Reagan,

    desencadeia-se no Brasil em torno

    de 1990. Além do incremento à in-

    tegração com a economia mundial,

    enfatiza-se o papel do mercado na

    alocação de recursos e a diminui-

    ção do papel do Estado, acenando-

    se, como horizonte, para um cresci-

    mento rápido e sem os percalços

    dos modelos anteriores (Baer e

    Maloney, 1997: 39). As medidas re-

    comendadas: ajuste fiscal, privati-

    za ção , libera ção /a juste de preços,

    desregulamentação financeira, libe-

    ração do comércio, incentivo ao in-

    vestimento externo, reforma do sis-

    tema de previdência/seguridade so-

    cial e reforma do mercado de tra-

    balho. No Brasil, em meio ao ajus-

    te estrutural receitado, deu-se ên-

    fase à denominada “re forma do

    aparelho do Estado”. No âmbito

    dessa reforma situam-se a estraté-

    gia e as ações oficiais de reforma

    da educação superior. Suas idéias

    centrais : a modernização ou au - 

    mento de eficiência da administra-

    ção pública mediante complexo

    projeto de reforma, que visa forta-lecer a administração pública dire-

    t a — núcleo estratégico do Esta- 

    do — e promover sua descentrali-

    zação com a implantação de “ agên-

    cias executivas” e de “organizações

    sociais” vinculadas a contratos de

    gestão . A part ir da idéia da existên-

    cia de quatro setores dentro do Es-

    tad o (núcleo estratégico, at ividades

    exclusivas, serviços não exclusivosou competitivos, e

    produção de bens

    e serviços para o

    mercado), as uni-

    versidades, escolas

    técnicas, centros

    de pesquisa e tc .

    são enquadrados

    como serviços não

    exclusivos de Esta-do, devendo ser

    transformados em

    um “ti po especial 

    de entidade não-es- 

    tatal, as organi zações sociais. A idéia 

    étransformá-los, volun tar iamente,

    em 'organ izações sociai s', ou seja,

    em enti dades que celebrem um con- 

    trato de gestão com o Poder Executi- 

    vo e con tem com a autori zação do 

    Parlamento para part icipar do orça- 

    mento públi co” (Bresser Pereira,

    1996: 286, grifo nosso).

    As propostas do BIRD — maior

    di ferenciação insti tucional e privati- 

    zação; di versif icação de fontes de fi- 

    nanciamento (inclusive fim da gra-

    tuidade) e vinculação do financia-

    mento oficial a resultados; redefini-

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    Março 2000   Revista Adusp

    Assumidas pelo MEC, as propostas do BI RD 

    revelam-se aténo projeto da L ei de 

    Autonomia das Uni versidades: consti tuição

    de dois ti pos de insti tuições, as de pesquisa

    e as de ensino; fim da unidade salar ial

    e de carrei ra; autonomia financeira em lugar 

    de autonomia de gestão fi nanceira 

     A

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    ção do papel do governo no ensino

    superior (B IR D , 1994: 4) — e as

    orientações da reforma do a parelho

    de Estado são assumidas pelo Mi-

    nistério da Educação (MEC) quan-

    do de suas propostas de reformadesse nível de ensino. Essas diretri-

    zes revelam-se nos termos da Lei

    de Diretrizes e Bases da Educação

    Nacional aprovada em dezembro

    de 1996, no contingenciamento de

    recursos de custeio e capital, no

    congelamento de salários há cinco

    anos e até nos projetos de uma Lei

    de Autonomia das Universidades.

    Propõem-se uma diferenciação ins-ti tuciona l , com a

    constituição oficial

    de dois t ipos de

    instituições univer-

    sitárias, as de pes-

    quisa e as de ensi-

    no; o fim da unida-

    de sa l a r i a l e de

    carreira; a autono- 

    mia financeira emlugar de autono- 

    m ia d e gestão f i - 

    nanceira .

    A re fo rm a d a

    educação superior em curso orien-

    ta-se pela mesma matriz teórica e

    política a reger a reforma do Esta-

    do brasi leiro, que se origina no

    trânsito do fordismo ao presente

    do capitalismo, e sua expressão no

    Brasil. O fordismo pode ser breve-

    mente caracterizado pela sua rigi-

    dez produtiva e econômica, legiti-

    mado por uma cultura com grande

    influência da dimensão política, em

    face da centralidade ocupada pelo

    Estado de Bem-Estar Social. A es-

    fera pública é uma das principais

    instituidoras das relações sociais; o

    associativismo em sindicatos e par-

    tidos políticos é, em termos, um co-

    rolário da força do público, disto

    resultando políticas públicas volta-

    das para as demanda s sociais, parti-

    cularmente para a esfera educacio-nal. A crise fordista foi uma crise

    de superprodução de capital, na

    sua forma financeira, e impôs aos

    gestores da economia mundial a

    busca de materialidade na produ-

    ção de capital produtivo, obrigando

    a internacionalização do capital na

    sua forma produtiva, processo de-

    nominado por Chesnais (1995) de

    “ mundialização d o capital”.

    Tal processo, no f inal deste sé-

    culo, faz-se necessária e articulada-

    mente com a redefinição da hierar-

    quia política mundial, e põe em

    movimento em grande parte do

    planeta reformas do Estado em di-

    reção à restrição e desregulamenta-

    ção da esfera pública e proporcio-

    nal alargamento da esfera privada.

    Isto influencia o redese-

    nho dos espaços sociais

    orientados pela lógica pú-

    bl ica , part icularmente a

    educação. Essas redefinições

    possibilitaram a entrada do capital

    em tais espaços sociais, num con-

    texto de Estado reformado, e, com

    sua entrada, a reorganização se-

    gundo a lógica privada, provocando

    transformações culturais e identitá-

    rias nas instituições educacionais,em part icular nas de nível superior.

    No Brasil, essas mudanças ga-

    nham concreticidade a partir de

    meados dos anos 90, quando, fun-

    dado em uma a liança política, o go-

    verno de Fernando Henrique Car-

    doso põe em movimento a tradu-

    ção brasileira da mundialização do

    capital, com graves conseqüências

    para a economia (que se desnacio-naliza e se desin-

    dustrializa), para a

    democracia e para

    as esferas sociais

    de a t i vidade hu-

    mana, que passam

    a se organizar for-

    temente pela lógi-

    ca mercanti l . No

    que toca à educa-ção ta l processo

    verificou-se nas re-

    formas de todos os

    níveis de ensino. O

    propósito do então ministro Bres-

    ser Pereira torna-se explícito nessa

    lógica da reforma do Estado em re-

    Trata-se de introduzir na educação superior

    a racionali dade gerencial capital ista

    e privada, reduzindo-se a esfera pública.

    Modifi ca-se a natureza das insti tuições 

    uni versi tárias, que tendem a responder priori tar iamente às demandas do mercado 

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    lação à esfera pública: trata-se de

    introduzir, na educação superior

    pública, a racionalidade gerencial

    capitalista e privada, que se traduz

    na redução da esfera pública ou na

    expansão do capital e sua racionali-dade organizativa.

    Ocorre presentemente um pro-

    cesso de tecnificação da política,

    conduzido por um Poder Executivo

    de ilimitados poderes. A educação

    em geral, mas especialmente a edu-

    cação superior, passa pelo mesmo

    processo. Por um lado, mercadoriza- 

    se ao extremo, e, por outro, na sua

    especificidade, acentua-se o movi-mento de redefinição da esfera pú-

    blica, ao mesmo tempo em que se

    dissemina a crítica de sua antiga na-

    tureza e constroem-se os pilares de

    um novo espaço, em cujo centro se

    encontra a racionalidade da produ-

    ção capitalista. A meta é a reorgani-

    zação desse espaço social segundo a

    lógica do mercado: modifica-se a

    natureza das instituições universitá-rias, que tendem a responder prio-

    ritariamente às demandas do mer-

    cado , a ssemelhando-se, a ssim, a

    qualquer empresa, com prejuízos

    evidentes para sua natureza e iden-

    tidade tradicionais. Esse reordena-

    mento conduz à redefinição, nesse

    âmbito, das esferas pública e priva-

    da, e possibilita a identificação, de

    fundo ideológico liberal, de uma su-

    posta existência de outros espaços

    intermediários entre o público e o

    privado: o semipúblico ou o semipri- 

    vado . Isso impõe uma adequada re-

    flexão sobre o significado dos con-

    ceitos de “público” e de “privado”,

    para a melhor compreensão de co-

    mo tais dimensões se movimentam,

    ambiguamente, criando a ilusão da

    emergência de tais espaços, quan-

    do, de fa to, o q ue ocorre é uma cla-

    ra redefinição dessas duas esferas

    diante da necessidade estrutural de

    expansão própria do capital.

    Apesar do muito que se tem es-crito acerca dos conceitos “público”

    e “privado” e da realidade desses

    espaços, sua compreensão mostra-

    se aind a insuf iciente. Ta lvez um

    bom itinerário de análise seja bus-

    car os pressupostos filosóficos des-

    ses conceitos, que estão na origem

    da ideologia liberal. Tentar com-

    preender como, historicamente,

    têm contribuído para a instituiçãodesses espaços, legitimando-os ao

    longo da existência do modo de pro- 

    dução capi tal ista , pode ser uma boa

    maneira de entendimento das mu-

    danças que se verificam no âmbito

    do Estado, da sociedade civil e da

    educação superior brasileira, sem

    correr o risco de, a partir de uma

    crítica que vá à raiz, sermos desqua-

    lificados como “ideológicos”. Emmuitas obras sobre a ideologia libe-

    ral pode-se notar a ênfase nos direi-

    tos inalienáveis à vida, à igualdade

    e à propriedade dos indivíduos em

    sociedade, como instituidores do

    Estado, para garantia desses direi-

    tos, e, portanto, para garantia

    dos homens. Muitos pensado-

    res combateram o absolutismo

    e o inatismo das idéias e, obvia-

    mente, do poder. No entanto,

    parecem-nos mais marcantes as

    idéias de John Locke (1632-

    1704), pre-

    sentes em

    duas obras

    publicadas em

    1690: Ensaio Acerca 

    do Entendimento Humano e o Se- 

    gundo Tratado sobre o Governo Ci- 

    vi l . Locke escreve, como um dos

    princípios do Segundo Tratado :

    Considero, portanto, poder polí- 

    tico o di reito de fazer l eis com 

    pena de mor te e, conseqüente- mente, todas as penalidades me- 

    nores para regular e preservar a 

    propriedade, e de empregar a for- 

    ça da comunidade na execução 

    de tais leis e na defesa da comu- 

    nidade de dano exterior; e tudo 

    tão-só em prol do bem públi co .

    (L ocke, 1991: 216, gri fo nosso) 

    Para Locke, toda idéia teria sua

    origem na percepção e nos senti-dos, não sendo, portanto, imanente

    ao homem ou inata. Segundo ele,

    Consiste numa opinião estabele- 

    cida entre alguns homens que o 

    entendimento comporta certos 

    princípios inatos, certas noções 

    primárias, koinai` énoiai, carac- 

    teres, os quais estariam estampa- 

    dos na mente do homem, cuj a 

    alma os recebera em seu ser pri - mordial e os transportara consigo 

    para o mundo. Seria sufi ciente 

    para convencer os leito res sem 

    preconceito da falsidade desta hi- 

    pótese se pudesse apenas mostrar 

    ( ...) como os homens, simples- 

    mente pelo 

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    uso de suas faculdades naturais,

    podem adquiri r todo conheci- 

    mento que possuem sem a ajuda 

    de quaisquer impressões inatas e 

    podem alcançar a certeza sem 

    quaisquer destas noções ou prin- cípios originais.(L ocke, 1991: 13) 

    O filósofo combaterá a partir

    dessa tese todos os defensores do

    inatismo das idéias, e, no âmbito

    da política, todo pod er inato . Todo

    poder político teria pa ssado a exis-

    tir a pa rtir de um momento históri-

    co, quando os homens fizeram um

    pacto para organizar a forma de

    convivência; desse pacto derivariao poder político, e

    suas fo rmas de

    realização, consti-

    tuindo-se o Esta-

    do em sua estrutu-

    ra máx ima . Com

    base nesses argu-

    mentos, Locke de-

    senvolveu suas

    idéias liberais.No es tado na-

    tural, para Locke,

    todos nascem

    iguais, racionais e

    em liberdade; as leis da natureza

    encontrar-se-iam igualmente nas

    mãos dos indivíduos, não existindo,

    ainda, o espaço comunal. Os ho-

    mens estabeleceriam sua identida-

    de por meio da razão, com vistas à

    preservação da paz e dos direitos

    dos outros. No entanto, no estadonatura l, os direitos de igualdade, li-

    berdade e propriedade poderiam

    ser ameaçado s, dado q ue alguns

    homens favoreceriam mais a si e a

    seus amigos, provocando, a partir

    de então, um estado de guerra. Isto

    contrariaria o estado natural, bem

    como esses direitos; disso deduz

    Locke a necessidade de superação,

    pelo homem, desse estado natura l.

    Nesse momento os homens te-

    riam feito um pacto social e criado

    a sociedade política para a preser-

    vação dos di re i tos naturais (de

    igualdade, liberdade e propriedade)

    de qualquer indivíduo, independen-

    temente de suas condições naturais.

    Não há renúncia dos direitos natu-

    rais em favor dos governantes, co-

    mo o queria, por exemplo, Hobbes:

    há um pacto para a preservação de

    tais direitos a todo cidadão. O po-

    der dos governantes, portanto, deri-

    varia da sociedade, da qual o rece-

    beriam (Locke, 1991: 225).

    As atividades executivas e legis-

    lativas do indivíduo em estado na-

    tural transferir-se-iam para a so-

    ciedade. Esta, portanto, é a base e

    o limite do poder político dos go-

    vernantes, isto é, o processo decriação do pacto social e de cria-

    ção d o poder político, como tra ns-

    ferência do ato de governar, por

    outorga da sociedade, constitui-se

    em espaço comunal construído

    por esse pacto social.

    O público e o estatal põem-se,

    assim, como realidades distintas pa-

    ra Locke. O estatal é derivado do

    público e, ao mesmo tempo, a elesubmetido, razã o

    pe la qua l o ho-

    mem, por meio do

    pacto social, cons-

    tituiu-se em socie-

    dade. Assim, o pú-

    blico só se faz na

    conjugação com o

    Estado, ainda que

    este último derivedo primeiro e a

    e le se submeta .

    Não há, portanto,

    sentido em se falar

    de público na ausência do E stado e

    vice-versa (Locke, 1991, p. 268).

    O privado, portanto, como co-

    rolário do exposto acima, estaria

    circunscrito ao âmbito das possibi-

    lidades de ação dos indivíduos sin-

    gulares ou considerados como co-

    letivo, porém, em conformidade

    com o poder legislativo, por sua

    vez derivado do público e a ele

    submetido. Somente dessa forma o

    pacto social e a constituição dos

    poderes estariam garantidos; com

    eles, os direitos naturais de igual-

    dade, liberdade e propriedade. Po-

    Para L ocke, o estatal éderivado do público

    e a ele submetido. Assim, o público só

    se faz na conjugação com o Estado,

    ainda que este último derive do primeiro.

    Não há sentido em se falar de públicona ausência do Estado, e vice-versa 

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    de-se concluir que o que não é es-

    ta tal é necessariamente público, is-

    to é, está no â mbito da sociedade.

    Sob tal arrazoado teórico-políti-

    co, os pressupostos da ideologia li-

    beral ancorar-se-iam na diferencia-ção entre o público (inerente à so-

    ciedade) e o estatal (referente ao

    governo), que se legitima ou não

    conforme a natureza de suas ações

    contrarie ou não o interesse público

    (sociedade). A diferença entre as

    instituições do pú-

    blico (socieda de)

    deve tomar como

    referência suaspróprias especifici-

    dades e não suas

    relações com o Es-

    t ado (governo) ,

    uma vez que, na re-

    lação com o Esta-

    do, todas as insti-

    tuições da socieda-

    de são iguais. Isto

    é , na acepção deLocke, nenhuma instituição pública

    pode reivindicar a condição de esta-

    tal, pois não faz sentido reivindicá-

    la. No entanto, na linguagem cor-

    rente, por inspiração de autores

    que hoje refletem sobre as relações

    entre Estado e sociedade, socieda-

    de política e sociedade civil, o con-

    ceito de público é tomado como si-

    nônimo do conceito de estatal, de

    pertença ao aparelho de Estado,

    responsável pela administração pú-

    blica. Em decorrência, o que é pri-

    vado, ou seja, do âmbito da socie-

    dade civil, jamais poderá ser públi-

    co, isto é, do âmbito do aparelho do

    Estado . Não há lugar, conseqüente-

    mente, para um espaço social mis-

    to, constituído de elementos públi-

    cos e privados. Por outro lado, ne-

    nhuma instituição privada pode rei-

    vindicar o título de estatal ou de

    não estatal, pois, tratando-se de ins-

    tituições da sociedade civil, serão

    todas iguais perante o E stado.As transformações na educação

    superior têm como pano de fundo

    as mudanças na produção e expan-

    são do capital, onde de fato se efeti-

    vam as redefinições das esferas pú-

    blica e privada. Na reconfiguração

    desse nível de ensino destaca-se a

    restrição daquela esfera e expansão

    desta. Mediante uma espécie de

    id eologia transit óri a , como diria

    G ramsci, do surgimento de espaços

    semipúblicos e semiprivados , e um

    processo de extremada diferencia-

    ção institucional e diversificação de

    fontes de recursos, verifica-se que a

    educação superior no Brasil cami-

    nha célere para constituir-se de fato

    e formalmente como um sistema

    dual: as instituições exclusivamente

    de ensino e as de pesquisa. Aquelas

    somariam aproximadamente 90%

    do total das IES, em sua maioria de

    natureza privada e não-universitá-

    ria, e estas somariam aproximada-

    mente 10%, e, em sua maioria, se-

    riam universidades de natureza pú-

    blica ou semipública ou semiprivada,

    isto é, organizadas segundo uma ra-

    cionalidade privada.

    As novas faces da educação su-

    perior no Brasil não parecem fada-das a garantir um avanço significa-

    tivo da educação pública e da inclu-

    são social; ao contrário, tendem a

    aprofundar a apartação social entre

    a minoria incluída e a maioria dos

    cada vez mais excluídos da socieda-

    de da informação.

    Nesse contexto,

    as tendências de

    reconfiguração daeducação superior

    brasileira são for-

    temente tensiona-

    das na direção de

    sua efetiva concre-

    tização, que traria

    c o n s e q ü ê n c i a s

    profundas para a

    es fera educacio-

    nal, para a própriaidentidade instituciona l universitá-

    ria, e em especial para a formação

    do docente universitário no exercí-

    cio de sua ação docente, de pesqui-

    sa ou extensão .

    A autonomia universitária esta-

    ria subordinada ao setor produtivo

    (face aos recursos daí advindos a

    partir da prestação de serviços e as-

    sessorias) e ao Estado — face aos

    contratos de gestão, no caso das

    IFE S, e à legislação, no caso de ou-

    tros tipos de instituições. Sobre elas

    restaria pequeno espaço de influên-

    cia da sociedade em geral e das co-

    munidades com as quais se relacio-

    nam. O financiamento da educação

    superior efetivar-se-ia de diferentes

    formas, especialmente em função

    52

    Março 2000   Revista Adusp

    As novas faces da educação superior no 

    Brasi l não parecem fadadas a garanti r um 

    avanço signi ficativo da educação pública e da 

    inclusão social; ao contrário, tendem a 

    aprofundar a apar tação social entre a 

    minor ia incluída e a maioria excluída

  • 8/18/2019 Mercantilização Da Educaão

    8/8

    53

    Março 2000Revista Adusp

    da extrema diferenciação institucio-

    nal a que se chegaria como conse-

    qüência direta das reformas em

    curso, indutoras potenciais de uma

    miríade de novas formas de IES. O s

    recursos para o setor privado origi-nar-se-iam das anuidades e even-

    tualmente do Estado (em função

    do “mérito” atribuído pelo sistema

    de avaliação oficial); para o setor

    comunitário, das anuidades e tam-

    bém do Estado; e para o setor esta-

    t a l , d o E s t a d o , d a s

    anuidades e, crescen-

    temente, do mercado.

    Por outro lado, o mo-vimento docente, im-

    portante crí t ico das

    políticas oficiais, e res-

    ponsável, entre outros

    atores, pelo esforço de

    democratização (e pe-

    la busca da excelên-

    cia) da educação su-

    perior, tenderá a ser

    substantivamente en-fraquecido em decorrência da dife-

    renciação institucional propiciada

    por distintas estruturas, formas de

    organização e gestão das institui-

    ções, carreira a cadêmica e níveis sa-

    lariais, que marcariam o conjunto

    das I ES brasileiras.

    A previsível tra nsformação a

    médio prazo das IF ES em organiza- 

    ções sociai s , relacionada s com o Es-

    tado por meio do contrato de ges- 

    tão , com parte de seu financiamen-

    to oriundo do mercado; a acentua-

    ção das caracte-

    rísticas das insti-

    tuições comunitá-

    rias (filosofias edu-

    cacionais proclama-

    damente públicas, po-

    rém com esta tuto privad o) ; e a

    consolidação do setor privado, pa-

    recem indicar profundas alterações

    nas esferas públicas e privadas. As

    transformações das esferas pública

    e privada fazem-se com prejuízo doestatuto público estatal, indicando

    que as instituições públicas tendem

    ao desaparecimento no médio pra-

    zo. A maior conseqüência de tudo

    isso: as mudanças que irão incidir

    sobre a identidade da instituição

    universitária. A produção de co-

    nhecimento tende a ser substituída

    pela administração de dados e in-

    formações em um processo de as-

    sessoramento ao mercado, o que

    impõe sensível perda da capacida-

    de de reflexão e crítica, característi-

    ca histórica da universidade. Esse

    processo assemelharia a instituição

    universitária a empresas prestado-

    ras de serviços.

    Destaque-se igualmente a ques-

    tão da formação do educador, até omomento uma função da educação

    superior. As transformações que se

    impõem, inclusive em relação à pró-

    pria identidad e do conjunto da s

    IES, tendem a retirar tal função

    desse nível de ensino e, talvez, da

    esfera educa-

    cional. As IES

    organ izar-se-

    iam mais parao atendimento

    das demandas

    do mercado do

    que para a pre-

    paração das fu-

    turas gerações

    de educadores

    e abririam es-

    paço, no âmbi-

    to da sociedadecivil, a entidades não ligadas direta-

    mente à educação para o exercício

    desta tarefa, com sérias e bastante

    óbvias conseqüências na esfera edu-

    cacional como um todo.

    Bib l iograf ia  

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    R A

    A produção de conhecimento tende a ser 

    substi tuída pela administração de dados

    e informações para assessoramento

    ao mercado, impondo sensível perda

    da capacidade de reflexão e crítica

    e assemelhando a uni versidade

    a empresas prestadoras de serviços