memórias e histórias do empreendedorismo na capital de

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Igualitária: Revista do Curso de História da Estácio BH ISSN - Belo Horizonte, Vol.1, n.1, jul-dez 2012: Gerais: Memória, Identidade e Patrimônio http://periodicosbh.estacio.br/index.php/historiabh/index Memórias e Histórias do Empreendedorismo na Capital de Minas: O caso do Mercado Central Maria Lucia Ferreira 1 [email protected] José Otávio Aguiar 2 [email protected] RESUMO: O artigo aborda a história do Mercado Central de Belo Horizonte, através da memória de seus empreendedores. Usando a metodologia de história oral, os autores ouviram os lojistas mais antigos do Mercado e também lojistas das novas gerações, que herdaram as lojas de seus pais, seguindo as memórias dos tempos da fundação até as estratégias de atualização, implementação e conservação do Mercado Central, como centro de compras, de cultura e de identidade. A pesquisa apresenta as características de empreendedorismo dos comerciantes do mercado e suas trajetórias pessoais na construção deste que é um patrimônio vivo e dinâmico da cultura mineira, no centro de Belo Horizonte. Palavras-chave: Mercado Central, Belo Horizonte, empreendedorismo, biografias, história, memória. ABSTRACT: This article approaches the history of Belo Horizonte Central Market through the memory of its entrepreneurs. By using the methodology of oral history, the authors listened to some of the first owners of stores in the Central Market and also to the new generations, following the memories from the foundation times till the strategies of updating, implementing and preserving the Central Market as a shopping and a place of culture and identity to the city of Belo Horizonte. It shows the characteristics of the enterprise taken by the store owners and their individual biographies related to the building of this live and dynamic patrimony of Minas Gerais culture, located in down town Belo Horizonte. Keywords: Mercado Central, Belo Horizonte, entrepreneurship, biographies, history, memory. 1 Licenciada em História, Mestre em Filosofia Contemporânea e Doutora em Filosofia Social e Política pela UFMG. Coordenadora do curso de História da Estácio de Belo Horizonte. * Doutor em História e Culturas Políticas pela UFMG, professor dos Programas de Mestrado e Doutorado em História e Recursos Naturais da UFCG e Pós-doutor em História pela UFPE.

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Belo Horizonte, Vol.1, n.1, jul-dez 2012: Gerais: Memória, Identidade e Patrimônio

http://periodicosbh.estacio.br/index.php/historiabh/index

Memórias e Histórias do Empreendedorismo na Capital de

Minas: O caso do Mercado Central

Maria Lucia Ferreira1

[email protected]

José Otávio Aguiar2

[email protected]

RESUMO:

O artigo aborda a história do Mercado Central de Belo Horizonte, através da memória

de seus empreendedores. Usando a metodologia de história oral, os autores ouviram os

lojistas mais antigos do Mercado e também lojistas das novas gerações, que herdaram

as lojas de seus pais, seguindo as memórias dos tempos da fundação até as estratégias

de atualização, implementação e conservação do Mercado Central, como centro de

compras, de cultura e de identidade. A pesquisa apresenta as características de

empreendedorismo dos comerciantes do mercado e suas trajetórias pessoais na

construção deste que é um patrimônio vivo e dinâmico da cultura mineira, no centro de

Belo Horizonte.

Palavras-chave: Mercado Central, Belo Horizonte, empreendedorismo, biografias,

história, memória.

ABSTRACT:

This article approaches the history of Belo Horizonte Central Market through the

memory of its entrepreneurs. By using the methodology of oral history, the authors

listened to some of the first owners of stores in the Central Market and also to the new

generations, following the memories from the foundation times till the strategies of

updating, implementing and preserving the Central Market as a shopping and a place

of culture and identity to the city of Belo Horizonte. It shows the characteristics of the

enterprise taken by the store owners and their individual biographies related to the

building of this live and dynamic patrimony of Minas Gerais culture, located in down

town Belo Horizonte.

Keywords: Mercado Central, Belo Horizonte, entrepreneurship, biographies, history,

memory.

1 Licenciada em História, Mestre em Filosofia Contemporânea e Doutora em Filosofia Social e Política

pela UFMG. Coordenadora do curso de História da Estácio de Belo Horizonte. * Doutor em História e Culturas Políticas pela UFMG, professor dos Programas de Mestrado e Doutorado

em História e Recursos Naturais da UFCG e Pós-doutor em História pela UFPE.

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INTRODUÇÃO

Em tempos de crise e incertezas, quando os empregos parecem escassos e o

medo influencia as decisões de investimento e consumo, alguns indivíduos agem contra

a corrente, vêem oportunidades, visualizam um futuro próspero. Em 1929, tempo de

queda da bolsa, crise internacional e filas de desemprego, um grupo de feirantes

expunha suas mercadorias em bancas improvisadas e acreditava que aquelas barracas de

madeira e lona garantiriam o sustento de suas famílias, cumprindo seu papel de

principal centro de distribuição de alimentos na jovem capital. Mais de oitenta anos

depois, o negócio que eles iniciaram continua, mas, sem lona, como um aglomerado de

lojas, com banco e loja de eletrodomésticos integrando o conjunto, ao lado da antiga

venda de hortifrutigranjeiros. Nas proximidades da Praça Raul Soares, o antigo

Mercado Municipal mudou de nome para Mercado Central. Gerações de comerciantes

que movimentaram suas lojas viram passar variadas crises e governos, sem perder sua

vocação empreendedora, reinventando o seu próprio negócio através dos anos.

A história do mercado é em grande parte a história dos indivíduos que montaram

suas barracas e as transformaram em lojas que aliam tradição e modernidade. Este artigo

recupera algumas destas histórias dos empreendedores do mercado central. A

historiografia do século XX é rica em exemplos de biografias consagradas tanto na

Inglaterra, quanto na França. Lucien Febvre, em seu estudo sobre as obras do escritor

renascentista François Fabelais, se interroga sobre a possibilidade ou impossibilidade do

ateísmo no século XVI3. Carlo Guinsburg, pesquisando a vida e as idéias do moleiro

Menóquio, desenvolveu uma interpretação sobre a circularidade entre a cultura

camponesa e a cultura da elite da Europa pré-industrial4. Cristopher Hill, dedicando-se à

análise dos documentos sobre a vida de Oliver Cromwell, em “o eleito de deus”, traçou

um perfil da sociedade inglesa seiscentista com suas disputas no âmbito das concepções

religiosas, das idéias políticas e das batalhas econômicas. Georges Duby, no livro

“Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo,” se propôs a, através da

trajetória de vida de seu biografado, se perguntar sobre o cotidiano e as estruturas de

uma sociedade feudal.5 Finalmente, Jacques Le Goff, na magistral biografia de São

3 FEBVRE, Lucien.O Problema da Descrença no século XVI. Paris: Albin Michel, 1974.

4 GUINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela

Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

5 DUBY, Georges. Guilherme Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro, Graal, 1987.

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Luiz, procura demostrar como seria possível conciliar a narrativa de vida com a

proposta de uma história-problema, sem, em momento algum, romper com o espírito

investigativo inaugurado por Marc bloch e Lucien Febvre.

Seria oportuno recordar que Le Goff também nos lembra de que os sujeitos

históricos biografados não são meros instrumentos de comprovação de determinada

teoria, que ofereceriam afortunados subsídios de confirmação para algum

encaminhamento lógico-linear, ou a solução de algum problema de pesquisa. Isso

porque, como relato e narração da vida de um indivíduo, a biografia não apenas se

movimenta entre os eventos individuais e coletivos, mas também nos leva a perceber

que, embora partamos em nossa observação de um lugar do tempo em que os fatos já se

consumaram de determinado modo e em determinada direção, esses mesmos episódios

do passado estiveram, por ocasião de sua temporalidade específica, submetidos à

imprevisibilidade e à indeterminação.6 como observou Sabina Loriga, os homens não

são fantoches, mas sujeitos da história.7

EMPREENDEDORISMO

Economistas como Schumpeter, Jeremy Bentham e Alfred Marshall,

remontando a Cantillon and Jean-Baptist Say, destacam o papel do empreendedorismo

para o desenvolvimento econômico. Schumpeter distingue entre capitalista e

empreendedor, demonstrando que embora um indivíduo possa combinar as duas

qualidades, elas são distintas. Um empreendedor bem sucedido se tornará um

capitalista, mas é possível que não fosse ainda um capitalista. Um capitalista é,

necessariamente, o detentor de capital. O empreendedorismo, por sua vez, “consiste

essencialmente de fazer coisas que não são feitas geralmente no curso ordinário da

rotina do negócio” (SCHUMPETER, 2002, p. 10). Ou seja, o conceito de

empreendedorismo está ligado ao de inovação. Por outro lado, o fato de o empreendedor

não necessariamente possuir recursos próprios indica a importância de haver recursos

6 LE GOFF, Jaques. Comment écrire une biographie aujourd’hui? Le Débat, n 54, p.49-50, mar./abr.,

1989.

7 LORIGA, Sabina. Manequins ou faiseurs d’histoire? Critique: revue générale des publications

françaises et étrangères, v., n. p.133-145, jan../fev. 2000.

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externos, por exemplo, o concurso de bancos e financiamentos, ou ainda a possibilidade

de alguns empreendimentos não demandarem um capital inicial.

Ainda é rara a publicação sobre a biografia de empreendedores no Brasil,

apesar da importância destes dados e reflexões para a discussão sobre as características

do empreendedorismo e como fomentá-lo.

O Estado pode desempenhar um papel fundamental e atuar como

empreendedor. Além disto, o empreendedorismo pode ser beneficiado por ações

coletivas, por exemplo, em cooperativas (como é o caso do Mercado Central), ou de

grandes corporações. O empreendedorismo não é uma qualidade específica de

indivíduos, e não há o indivíduo que seja sempre empreendedor, mas sim indivíduos

que atuam em determinadas circunstâncias como empreendedores. Vê-se que

empreendedorismo e inovação são conceitos complexos. Existe uma mitologia sobre

empreendedorismo e empreendedores, com pouca base em estudos históricos ou

teóricos. O assunto precisa ainda ser melhor abordado com método e discurso lógico.

Nos dizeres de Schumpeter (2002, p. 23):

eu recomendaria para historiadores econômicos – e, neste caso, para economistas teóricos, se

eles se interessarem pelo problema – que eles examinem o que já existe disponível na literatura

secundária para dados sobre o fenômeno e as características empreendedoras. Uma miscelânia de

escritos deste tipo – de histórias econômicas gerais a biografias de homens de negócios, e de

histórias locais até estudos de mudanças tecnológicas – todos têm informação que investigada e

organizada com uma hipótese mentalmente definida nos levará a uma boa distância em direção

aos nossos objetivos.

Uma lista de qualidades características de um empreendedor poderia destacar:

criatividade, inovação, oportunismo, força de vontade, fé, busca do menor custo,

qualidade e rapidez, ser capaz de correr riscos e quebrar regras (BRITTO; WEVER,

2003). Ou ainda: iniciativa, autonomia, otimismo, busca de realização, espelhar-se em

modelos, ser visionário, perseverante, aprender com os erros, dedicação, esforço,

estabelecer metas, descobrir áreas de investimento, quebrar padrões, ter compromisso,

fé, saber lidar com os recursos, ser sonhador e racional, ser um líder, buscar resultados,

aceitar o dinheiro como medida de desempenho, ter redes de relações internas e

externas, ter conhecimento, ser imaginativo, agir, buscar aprendizagem de forma pró-

ativa, minimizar riscos, ser tolerante à ambigüidade e incertezas, conhecer o ambiente e

detectar oportunidades (DOLABELA, 2004, p. 71-72).

Um estudioso do empreendedorismo, Fernando Dolabela (2004, p. 29),

procura definir o que é um empreendedor:

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indivíduo que cria uma empresa, qualquer que seja ela; pessoa que compra uma empresa e

introduz inovações [...]; empregado que introduz inovações; não se considera empreendedor uma

pessoa que adquira uma empresa e não introduza nenhuma inovação [...]

Utilizando Filion, a definição de Dolabela é mais abrangente do que a de

Schumpeter, que não colocaria como empreendedor todo indivíduo que cria uma

empresa, pois nem toda empresa é inovadora, e empreendedorismo em Schumpeter

significa inovação, definição que também é adotada por Peter F. Drucker (2000, p. 28 -

39): “nem todos os pequenos negócios novos são empreendedores ou representam

empreendimento [...] Os empreendedores inovam. A inovação é o instrumento

específico do espírito empreendedor”.

O Mercado Central nasceu da oportunidade criada pela prefeitura municipal,

primeiro quando criou a feira, depois quando privatizou o empreendimento, permitindo

que os comerciantes comprassem a área da feira e iniciassem o próprio negócio. Neste

sentido, identifica-se o papel do poder público incentivando e propiciando a atividade

empreendedora. Desde então, o Mercado jamais perdeu sua característica de

empreendimento vivo, que inova e se renova permanentemente.

Hashimoto (2006) trata do intra-empreendedorismo e das barreiras que perfis

empreendedores encontram em empresas com organogramas rígidos e burocracias

internas desfavoráveis a mudanças e inovações. O Mercado tem uma estrutura que

favorece a inovação, pois os lojistas são células independes com autonomia sobre o

negócio, a estrutura da administração é democrática com eleição dos representantes no

conselho e com decisões tomadas de forma coletiva, através de reuniões do corpo

administrativo e consulta aos lojistas. Deste modo, cada lojista tem plena liberdade de

implantar inovações e a administração geral é sensível aos interesses de cada célula que

compõe a organização, atuando de modo a maximizar os recursos coletivos, tais como

segurança interna, marketing, construção e manutenção de estrutura física, negociações

com autoridades municipais e outros níveis políticos que afetem os interesses do

Mercado. O Mercado inovou até mesmo na forma que escolheu sua estrutura

administrativa, antecipando tendências da teoria de administração mais atual:

Têm sido feitas muitas tentativas de mudar as estruturas organizacionais para promover o

desenvolvimento de uma cultura voltada à criatividade e à inovação. Um desses modelos

organizacionais, proposto por Robert Waterman (1992), transcende organogramas, funções e

descrição de cargos. A adhocracia – cujo termo origina-se do latim ad hoc, e singnifica “na hora

e no momento” – é uma filosofia de administração que, nas atuais circunstâncias, privilegia a

ação, a informalidade e o dinamismo dos processos decisórios (HASHIMOTO, 2006, p. 67).

O Mercado parece funcionar por projetos, projetos individuais dos lojistas e

projetos coletivos implantados com a cooperação de todos sob a coordenação da

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administração da Associação. Esta dinamicidade da estrutura é o que permitiu ao

mesmo tempo mudanças desafiadoras, como a implantação de uma loja de

eletrodoméstico no meio de um centro comercial que fez o seu nome pela qualidade de

suas verduras, legumes, peixes e pela miscelânea de produtos regionais e exóticos. Se

no Mercado predominasse a força da tradição e não o caráter empreendedor, o Mercado

ainda seria aquela feira, teria substituído as barracas de lona, mas mantido os produtos e

as cadernetas em que se anotavam os “galhos”, as compras a pagar de clientes fiéis. No

entanto, sua estrutura democrática e informal, voltada para o esforço de equipe e o

objetivo comum de fazer do Mercado um centro de compras eficiente, direcionado para

a distribuição e ampliação da variedade de produtos que atendam ao seu público

consumidor, tem permitido inovar, ao mesmo tempo em que a tradição resiste sem

impedir as mudanças, com as duas forças buscando uma integração que permita a

convivência da barraca de cebolas e da “praça do abacaxi”, no mesmo ambiente da

moderna loja de atendimento do Banco do Brasil:

Para os empreendedores, sua função está baseada na criação de valor, e não no cumprimento de

ordens, assim, ele atende às necessidades dos consumidores em vez de atender às necessidades

do chefe. Quando as pessoas pensam desta forma, sua capacidade de colocar idéias em prática é

inigualável (HASHIMOTO, 2006, p. 107).

Os comerciantes do Mercado Central, de seus primeiros anos e de hoje, que

ousam inovar no espaço tradicional e sagrado deste marco da cultura regional, são

exemplos de empreendedores que reúnem qualidades essenciais, como as descritas por

Hashimoto (2006): humildade, integridade, tolerância, responsabilidade, desejo de

contribuir. O Mercado Central é, afinal, uma coleção de empresas, na sua maioria de

pequeno e médio porte, marcada pela informalidade no gerenciamento dos negócios,

mas que se organizaram desde cedo em uma associação que zela pelo interesse coletivo:

O intra-empreendedorismo procura resgatar esse clima de pequena empresa. [...] As pessoas se

sentiam mais dentro do negócio, mais próximas dos centros de decisão, conheciam melhor o

negócio e o papel do seu trabalho nele, dominavam melhor os elementos internos e externos à

empresa e construíam relacionamentos mais fortes e duradouros (HASHIMOTO, 2006, p. 110).

Os comerciantes do Mercado Central atuam no sentido pleno da livre

iniciativa, mas não da competição interna. Administrativamente, como parceiros em

uma associação, não são competidores, são associados com um objetivo comum, cujas

empresas compõem a empresa maior, o grande negócio de todos, o próprio Mercado

Central.

Por hora, vale observar que, aqui, estabelecemos, por conveniência

metodológica, um diálogo com os escritos de Marshal Sahlins para quem as ações

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simbólicas humanas são informadas tanto pelos conceitos por meio dos quais a

experiência é organizada e comunicada – procedentes de um esquema cultural

preexistente – quanto pela singularidade proporcionada por cada nova experiência do

mundo social e histórico dos homens.8 Os atores históricos, as situações vivenciadas no

tempo e no espaço e também os seus conceitos não são redutíveis a outros atores e

outras situações. Suas existências inéditas não são e não serão iguais a quaisquer outras.

como na analogia da diferença heraclitiana, não se entra num mesmo rio duas vezes,

embora o nome pelo qual o conhecemos não mude. Os sistemas conceituais tradicionais

de interpretação, como observou sahlins, são culturalmente recriados quando realizados

como projetos pessoais: “as pessoas, enquanto responsáveis por suas próprias ações,

realmente se tornam autoras de seus próprios conceitos; isto é, tomam a

responsabilidade pelo que suas próprias culturas possam ter feito com elas.”9

Em geral, a narrativa oral entrecruza elementos de memória acréscimos de

subjetividade ficcional. Ao realizar a leitura das entrevistas, consideramos, para o

diálogo a proposta de Paul Ricouer, segundo a qual haveria um entrecruzamento entre a

ficção e a história, através do uso de traços do imaginário no ato humano de composição

desses enredos. Essa relação ocorreria por intermédio da operação de humanização do

tempo na narrativa, processo que o filósofo denomina refiguração. Nessa perspectiva, a

história reclamaria, de algum modo, a ficção, quando se utiliza da imaginação para

preencher as lacunas deixadas pelos rastros ou para interpretar os vestígios que toma

como fonte, mesmo que esse uso seja feito a serviço de seu intento de representância do

passado, favorecendo a ficcionalização da história; enquanto, por outro lado, de forma

similar, a ficção se valeria da história com o objetivo de construir a sua trama e de

humanizar o tempo narrado, historicizando a ficção.10

(RICOUER, 1997)

OLÍMPIO MARTELETO E OS PIONEIROS DO MERCADO CENTRAL

8 SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 188-189.

9 Ibid., p. 189.

10 Para aprofundar a inter-relação entre história e ficção, ver também os tomos I e II da obra Tempo e

narrativa, de Paul Ricoeur, nas quais ele introduz as operações de prefiguração (mímesis I), configuração

(mímesis II) e refiguração do tempo na narrado (mímesis III). RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo

III. Tradução Roberto Leal Ferreira. Campinas, SP: Papirus, 1997.

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O senhor Olímpio Marteleto nasceu em 16 de julho de 1917, em Antônio

Carlos “pertinho de Barbacena”11

, de família italiana, “Vim de uma família muito

humilde. [...] Eu trabalhava na roça lá, plantando verdura e vendendo arroz [...] Meus

avós vieram da Itália. Eles vieram e foram pra São Paulo trabalhar na lavoura de café

como empregados.”

A vida no interior, com o trabalho na roça, permitiu ao senhor Olímpio estudar

somente até o antigo terceiro ano primário, na Escola Municipal Adelaide Andrada:

“Modéstia a parte, eu só tirava dez. Nós éramos três alunos, eu, João Cunha e Fernando

de Oliveira. Só nós três que tirávamos dez. O meu colega de carteira era um rapaz que

chamava José Neto. Malandro como ele só. Não estudava nada. Vivia copiando de mim.

Então, eu falava assim, ‘José Neto. Você tem que estudar, meu filho. O dia que Dona

Maria te chamar lá no quadro você não sabe falar nada. Nem escrever nada. Você tem

que estudar. Não pode copiar, não’”. E, em 1932, Olímpio faria uma viagem que selaria

seu destino.

Desde cedo, com 15 anos, começou a trabalhar. Sua família tinha um terreno de

noventa mil metros quadrados em Barbacena, mas não havia empregos: “eu precisava

trabalhar. Só tinha vontade de trabalhar. E lá não conseguia emprego”. Seu Olímpio

queria trabalhar em armazéns, mas não encontrava uma oportunidade em sua cidade

natal. Se a oportunidade não vinha onde ele estava, ele resolveu buscá-la: “O meu tio

que morava aqui em Belo Horizonte, João Antônio”. Com um primo que trabalhava

com “X” Negrão de Lima, Olímpio teve a chance de vir para a capital trabalhar com o

seu tio: “meu tio tinha uma chácara de que produzia hortifrutigranjeiros aqui na

Pampulha, logo depois da, da... da Lagoa. E ele vendia, todos os domingos ele vinha

com a produção dele trabalhar no Mercado”. Seu primeiro trabalho foi vender verdura

numa feira no centro da cidade, que viria a ser o Mercado Central: “Ta vendo, o que eu

queria mostrar a vocês, criaram o Mercado.” Mas seu Olímpio queria mesmo era

trabalhar em um armazém, e a oportunidade chegou logo no seu segundo domingo

ajudando o tio com as verduras: “um cidadão chegou, bateu nas minhas costas e falou

assim: ‘- O que você está fazendo aqui?’ Eu estou ajudando meu tio vender verduras

aqui no Mercado. ‘- Você não quer trabalhar num armazém, não?’ Eu falei quero! Eu

11

A história do lojista Olímpio Marteleto é contada a partir dos dados da entrevista realizada em

05/04/2004, transcrita na íntegra em FERREIRA, M. L. (Coord.); AGUIAR, J. O(Coord.). . Entrevistas

com lojistas do Mercado Central / 2004. Belo Horizonte: Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte,

2004. (Relatório de pesquisa) p. 5-19.

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era doido para trabalhar num armazém.” Em 1932, o senhor Olímpio chegava a Belo

Horizonte e realizava seu primeiro sonho: trabalhar em um armazém. Para realizar este

sonho, com apenas 15 anos ele deixou sua cidade natal e a casa de seus pais, deixou

para trás a propriedade da família em Barbacena e abraçou a oportunidade de fazer o

que sempre quis: trabalhar e trabalhar em um armazém: “no dia seguinte eu já vim

trabalhar com ele. Eu morava com meu tio lá na Pampulha e vinha de ônibus. Eu

trabalhei com ele doze anos. Dos 32 a 44”. O menino dedicado logo se tornou um

competente administrador do Armazém 1º de março. Mas, em 1944, uma reviravolta,

que para outros poderia ter causado angústia e tristeza, com a perda do emprego seguro,

para este empreendedor tornou-se a oportunidade de ouro: “esse meu patrão, já idoso,

resolveu parar de trabalhar. Então ele me dispensou, dispensou os outros funcionários e

me deu dez contos de réis.” Olímpio sabia que havia outro armazém à venda e foi

negociar com os seus dez contos de réis (aproximadamente...): “Eu cheguei e falei

assim: - Seu Américo, o senhor está vendendo o armazém? Quanto é que o senhor está

pedindo? Ele disse: ‘Trinta e um contos de réis. A mercadoria toda tá aí, balcões,

armações, balança e tudo e tal.” Seu Olímpio falou que só possuía os dez contos de réis

que recebera na demissão do armazém que fechara. Mas mais do que os dez contos de

réis, seu Olímpio tinha um importante trunfo para um pretendente a empresário: crédito.

“Ele me falou: ‘me dá os dez contos de réis, toma conta dos dez contos de réis, toma

conta da casa e os outros 21 você paga quando você puder’”. O menino que sonhara

trabalhar em um armazém tornava-se o dono de uma casa que faria história no Mercado

Central de Belo Horizonte. Na rota de sucesso de um empreendedor, é fundamental

contar com instrutores, companheiros, amigos, parceiros. Seu Olímpio trouxe do

interior dois irmãos para tocar o negócio: “em sessenta dias eu paguei os 21 contos de

réis”.

Nesta época, o comércio no centro de Belo Horizonte ainda estava em

desenvolvimento e não havia os modernos super e hipermercados. As vendas no

armazém permitiram aos irmãos rapidamente aumentar o patrimônio: “Depois comprei

mais duas portas largas, comprei mais duas do outro lado e tal”.

Em 2004, quando nos concedeu esta entrevista, o Seu Olímpio, com 71 de

trabalho e 86 anos de vida, mantinha a sua mesma dedicação ao Mercado Central: “Não

paro de trabalhar. Às seis e meia da manhã já estou aqui no Mercado trabalhando.

Acordo bem cedo, né? Às 10 horas já estou dormindo. Perdi a minha esposa tem dois

anos e meio. Estou morando sozinho. Tomo a minha cervejinha todo dia, quando eu

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chego em casa até hoje. (...) com crocante, mussarela de búfalo. (...) E estou nesse

batido até hoje nesses anos todos.”

A loja sempre foi num mesmo ponto: “quando eu comprei duas lojas, depois

comprei mais duas e mais uma de outro lado é aqui até hoje (2004)”. O nome foi

primeiro Armazém Aimoré, depois virou Supermercado Aymoré”. O nome havia

mudado, mas o sistema de administração manteve o estilo criado pelos irmãos

Marteleto: “A gente fica com o nome de Supermercado Aymoré e o sistema de venda aí

no balcão até hoje.”

Olímpio tem orgulho desta organização que ajudou a criar, para ele o Mercado

Central de Belo Horizonte é muito mais do que um negócio próprio, é um patrimônio da

cidade: “O Mercado não perdeu sua popularidade até hoje. O Mercado é o melhor

mercado do Brasil. Eu conheço o Brasil inteirinho e já fui à Europa também. […]Não vi

igual ao nosso”.

A história do Armazém Aymoré se mescla com a do Mercado. O Mercado foi

fundado em 7 de setembro de 1929, como uma Feira Permanente de Amostra, onde é

hoje a estação rodoviária: “Ali que era o Mercado. Ele tinha uma lei. O Mercado só

poderia vender frutas, verduras, legumes, armazéns, casa de carne, casa de açougues e

peixarias. Não podia ter nada que nós temos aí, que o senhor tá vendo aí hoje”. Segundo

o senhor Olímpio, em 1948 o Mercado já estava “completamente descaracterizado”. Foi

aberta até mesmo uma loja para venda de armas, que Olímpio proibiu quando exercia a

presidência da Associação do Mercado Central. Naquela época, foram abertas casas de

vendas de artigos religiosos, roupas e até mesmo uma casa de massagens. Em 1964, na

gestão do prefeito Jorge Carone, o Mercado, que pertencia à Prefeitura Municipal de

Belo Horizonte, foi vendido para um grupo de comerciantes que formaram a Associação

do Mercado Central. O senhor Olímpio era muito amigo do prefeito, que conhecera nos

tempos em que era empregado do armazém: “Era vendido em cadernetas, depois eu

anotava na caderneta, despachei e eu ia entregar”. A entrega era feita de carroça e o

entregador fez amizade com o dono da casa, que viria a ser prefeito. Um bom

empreendedor deixa um círculo de amigos por onde passa, uma imagem de confiança e

valor. Mais uma vez, mais do que o dinheiro na mão, é fundamental ter crédito. Os

comerciantes do Mercado, centro tradicional de compras e pioneiro no abastecimento da

cidade, tiveram muitas oportunidades de conhecer personagens importantes da história

de Belo Horizonte e do Brasil: “Fui caixeiro até do Juscelino Kubitschek”.

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O senhor Olímpio, cuja família era proprietária de terras no interior de Minas, o

que não o impediu de abraçar a primeira oportunidade de vir para a capital, também

“não escolheu serviço” quando iniciou seu trabalho ajudando seu tio com as barracas,

trabalhando como empregado em um armazém, ou enfrentando o desafio do seu próprio

negócio. Ronald Degen (1989, p. 11) observa que uma característica do empreendedor é

não temer o trabalho honesto, mesmo que socialmente a tarefa seja vista com certo

estigma:

A realidade é que todo empreendedor que deseja ter sucesso precisa estar disposto a, no início,

desenvolver ele mesmo todas as atividades na sua empresa. É preciso fazer as compras, aender

pessoalmente a clientes e fornecedores, vender, entregar, fazer conabilidade e, eventualmente,

até limpeza. Não há nenhuma vergonha no trabalho honesto. Porém, muitos pensam que, após

terem atingido uma boa posição como empregados, as tarefas necessárias para iniciar um novo

negóco vão prejudicar a sua imagem social. Por este motivo, acabam preferindo permanecer no

“conforto” do emprego.

Seu irmão Olinto, já falecido, chegou em Belo Horizonte em 1941, com apenas

o curso primário, para estudar e trabalhar no Mercado Central. De 1943 a 45, ele esteve

ausente, servindo o Exército, durante a Segunda Guerra Mundial, mas não chegou a ser

enviado para a Guerra, outro irmão foi e voltou com uma invalidez. Trabalhou no

Mercado desde os tempos em que este era uma estrutura de barracas: “Era livre.

Trânsito livre, carroça, carro [...] dentro do Mercado” (FERREIRA; AGUIAR, 2004, p.

62).

Os pioneiros do Mercado Central tinham a humildade do empreendedor, que

empenha todos seus esforços para ver prosperar seu negócio. O prefeito Carone

conhecia a dedicação dos comerciantes do Mercado e falou com Olímpio: “eu vou

vender o Mercado pra vocês, pra vocês, hein? Se aparecer outras firmas lá, eu não vou

dar oportunidade a ninguém deles”. O senhor Olímpio conta que apareceram

interessados até do Japão. Em 1964, um grupo de empreendedores dava um passo

fundamental nessa história: “eu estava em Guarapari construindo a minha casa,

exatamente neste mês, foi o mês de agosto de 64, mas foi o Dico aí no meu lugar e

comandou direitinho, então nós arrematamos”.

Atualmente, o Mercado tem loja de pregos, de ferragens, embalagens “de tudo

o que você pensar” e se distanciou de sua vocação original, os hortifrutigranjeiros, mas

estas transformações não são recentes, esta variedade já dava o tom em 1964, quando o

Mercado foi arrematado pelos seus próprios comerciantes. O valor de mercado das lojas

é alto e ascendente, pois o Mercado não apenas mantém sua clientela, mas expande cada

vez mais seu volume de negócios. Apesar das mudanças, com a saída de antigos

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proprietários e a diversificação dos produtos oferecidos, o Mercado não perde a sua

tradição.

Quando o Mercado foi arrematado, constava na ata de arrematação e também

na própria escritura que os compradores teriam que fazer um mercado novo no prazo de

cinco anos, ou seja, até agosto de 69. O senhor Olímpio relembrava que o tempo

passava e nem dos presidentes da Associação havia iniciado as obras: “De 64 a 67

houveram três presidentes. [...] Agosto de 1967 chamaram o Olímpio para ser o

salvador da pátria. Um amigo meu que chama Cid Néri, e até nem tá no Mercado mais.

Ele que foi quem me convidou, até nós devemos a ele essa estrutura e terminada em 30

de agosto de 69. Tomei posse como presidente lá em cima e assumi lá. Fui ver o que

tinha em estoque em dinheiro para poder quebrar o Mercado. Não tinha um tostão em

caixa. Nenhum tostão, tava até devendo”. Mais uma vez o senhor Olímpio teria que

contar com crédito, confiabilidade, esperança e determinação para iniciar as obras que

eram urgentes, mas sem ter o dinheiro em caixa: “Eu fui ao Vicente Araújo, que ele era

gerente do Banco da Lavoura de Minas Gerais [...] Ele comprou o Banco Mercantil, que

era, chamava-se Banco Meridional na rua Tupinambás, na esquina lá com Curitiba”.

Vicente Araújo concordou com o empréstimo de “quinhentos, seiscentos, setecentos mil

cruzeiros pra mim salvar o Mercado”. Mas ele exigiu que o senhor Olímpio Marteleto

assinasse a promissória como garantia do empréstimo: “eu nesses anos todos que eu

estou aqui, eu nunca pedi um tostão um banco emprestado pra minha firma, nunca

paguei (...) até o dia seguinte, nunca dei um cheque sem fundo. Sempre eu dei

previsão”. Na verdade, os comerciantes mais antigos do Mercado nunca tiveram uma

cultura de financiar investimentos com empréstimos bancários, a poupança de recursos

próprios é que deveria garantir a segurança e as modestas expansões do

empreendimento, sem o que os mineiros chamam de “dar uma passo maior do que as

pernas” e contrair compromissos que não pudessem ser cumpridos. Mas mesmo o mais

empreendedor conservador pode se ver diante de situações em que um financiamento é

a melhor ou única solução. As obras previstas no contrato assinado precisavam ser

feitas, os arrematadores não queriam correr o risco de perder a “menina dos olhos”, o

orgulho de todos, a cria da casa, o próprio Mercado Central! As obras foram iniciadas e

finalizadas sem interrupção e sem fechar o comércio um único dia, mas os comerciantes

arcaram com algumas perdas e prejuízos: “Então, eu quebrei o Mercado todo. Quando

nós estávamos, quando estávamos na estrutura metálica e fizemos umas soldas, eu

previa que ia acontecer acidente porque aquela fagulha ia cair em cima dele. (...) Então

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fiz um seguro. Não deu outra. Caía fagulha, queimava a camisa, aí diziam, ai, queimou

minha camisa. (...) vinte cruzeiros. A mulher queimava o vestido. Dava um vestido

novo pra ela. O seguro pagava. Depois nós descobrimos que um cidadão teve em casa,

vestia uma camisa velha e ficava lá debaixo do fogo. Ele levou doze camisas novinhas.

Um caso interessante que passou aqui no Mercado, né?”

Mas apesar do esforço, as obras não ficariam prontas no prazo previsto. Mais

uma vez o senhor Olímpio precisou acionar o círculo de amigos que fizera quando era

ainda um simples entregador de caixas no armazém. Milton Campos, Juscelino, Dom

Eugênio, que havia ajudado com a escritura, são algumas personalidades que auxiliaram

nas negociações por uma dilatação do prazo junto ao assessor jurídico da Prefeitura,

Maurício Brant: “’voltar pra prefeitura o Mercado? Não senhor. O senhor vai dar um

jeito, uma oportunidade a ele.’ Nós tínhamos mais de quatrocentas barracas de madeira

com a lona em cima e quatro paus fincados em volta do Mercado todo”. Nenhuma

parede externa estava pronta. Maurício Brant deu um prazo de dez dias para “fechar as

quatro paredes do Mercado em dez dias, Augusto de Lima, Santa Catarina, Goitacazes e

Curitiba, fazer os passeios e tirar os tapumes todos, eu cancelo pra você”. Nesta época,

o velho amigo do senhor Olímpio, no Banco da Lavoura, Vicente Araújo, havia falecido

e Olímpio não tinha dinheiro para fazer a obra no prazo de dez dias. Ele foi falar com o

Osvaldo Araújo, irmão do Vicente, e pedir mais quatrocentos mil cruzeiros: “Ele ligou

pra agência aqui e falou assim, ó, o Olímpio vai precisar de quatrocentos mil cruzeiros e

você pode emprestar pra ele aí, viu?” O Márcio Gomes dos Santos era o engenheiro

responsável pela obra, para fazer o serviço em dez dias eles precisavam de quatro

empresas trabalhando noite e dia. Três empresas pediram cem mil cruzeiros cada uma.

A outra pediu cento e vinte. Dez dias depois ele telefonaram para a prefeitura: “Pode

mandar seus engenheiros aqui, seus funcionários aqui e olhar o Mercado pra ver como é

que está”. Em 30 de agosto de 1969, a parte externa estava pronta. A reforma interna só

terminou em 1973. As barracas todas, que eram de quatro paus fincados com as lonas

em cima foram transformadas em lojas com porta de aço. Olímpio conta que pensou em

fazer lojas onde viria a ser o atual estacionamento do Mercado: “lá em casa, uma vez

pensando, falei, gente, Belo Horizonte tem crescido demais, não tem estacionamento em

Belo Horizonte. Onde é que vão estacionar pra fazer compras no Mercado?” Nascia

assim a idéia do estacionamento, que se tornaria a maior fonte de renda para a

administração do Mercado, permitindo as obras permanentes de manutenção e vários

serviços, como limpeza e segurança, de apoio aos lojistas. Duas características de um

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empreendedor são claramente perceptíveis aqui. 1. Dedicação integral ao negócio:

mesmo em seu momento de lazer e repouso, algumas intuições podem transformar os

planos e permitir melhores decisões. 2. Visão do futuro do empreendimento.

Olímpio Marteleto foi presidente de 1967 a 2001: “ Teve uns que cobriram o

meu lugar porque eu fiz uma viagem à Europa. Então, descontei. Foram trinta anos”.

Além da reforma estrutural mais importante que o Mercado já viveu, Olímpio

contribuiu para muitas outras melhorias no Mercado Central, uma recente foi a

disponibilização de carrinhos de compras para os clientes: “tinha menino aqui que

carregava a cesta, a sacola pra freguês. Mas a hora que a freguesia dava as costas ele

vinha e roubava a sacola dela”. Ele lamenta o Mercado ter somente um dos quatro

elevadores previstos, construído ainda sob sua administração.

Pelo seu papel fundamental, com 30 anos presidindo a Associação que

administra o Mercado Central, seu Olimpio se tornou o presidente de honra do

Mercado, um título merecido, além da homenagem prestada dando seu nome à sala de

reuniões da Associação. Tem ainda isenção nas taxas, pois sempre trabalhou pelo

mercado. Em 2004, ele se preocupava com as melhorias que ainda queria ver no

Mercado: “Melhorar o piso do Mercado, né? Porque quando eu fui comprar esse pisos

para o Mercado, eu exigi um piso industrial, que é o melhor piso, que não quebra

mesmo, né? Não achei em Belo Horizonte, Rio e São Paulo. Eu fui comprar isso em

Belém do Pará”.

A dedicação ao Mercado Central compensou, para este empreendedor que

ajudou a criar um patrimônio cultural, pólo comercial e turístico da cidade de Belo

Horizonte e, sobretudo, criou uma família bem sucedida. Seus três filhos são destaques

nas áreas de atuação que escolheram. Nenhum quis assumir os negócios no Mercado:

“O rapaz é engenheiro [...] Ele fez praticamente aquela usina de Furnas [...] A minha

caçula é advogada [...] E tem a Regina, Presidente de uma associação nacional. [...]

aposentou no Rio de Janeiro também, no Instituto Brasileiro de Pesquisas Científicas

[...] foi chamada pra dar aula na Universidade Federal de Minas Gerais”.

Como administrador do Mercado, Seu Olimpio aproveitou bem as viagens que

fez para trazer inovações, mas também observou que havia qualidades próprias deste

centro de compras que não existiam em nenhuma outra praça e se orgulha ao falar do

interesse de estrangeiros que visitam a capital: “No Brasil, não tem um mercado igual

ao nosso. É um quarteirão com quatro ruas. 13.400m2. [...] Ó, Itália, Portugal, Espanha,

Argentina. Esses países daqui da América do Sul. Vem gente aqui sempre. Nós estamos

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ligados via internet com o mundo inteiro. [...] a Primeira Dama da Alemanha veio a

Belo Horizonte [...] comprou mais de três mil dólares de artigo de macumba dentro do

Mercado [...] Ela tirou um retrato [...] Eu tenho lá tudo guardado. Tudo num armário lá

em casa, só disso. Só do Mercado [...] Nossa Senhora! É uma coisa enorme, isso aqui.”

Ao longo de todos esses anos, Olímpio acumulou amigos e teve atenção até

mesmo com quem poderia ter lhe deixado alguma mágoa, como a diretora da escola que

foi severa com o menino e dele recebeu flores e visitas diárias quando já se encontrava

doente em tratamento na capital, em 1948. A atenção que sempre teve com os

funcionários é retribuída com muito carinho: “Todo mundo (me) conhece. A chefe da

faxina vem aqui me dar um beijo no rosto toda manhã. [...] Tem gente que trabalha aqui

há mais quarenta anos. Então isso é a vida que a gente levou, né?”

Esta é a história de um dos pioneiros do Mercado Central de Belo Horizonte,

que, com sua dedicação, perseverança e visão, construiu seu próprio negócio e

contribuiu para o conjunto do empreendimento exercendo um papel de liderança

essencial para o progresso e modernização deste centro de abastecimentos que nasceu

com uma simples feira de barracas de pau e lona: “Eu espero que seja o mesmo de hoje

[...] daqui a 50 anos [...] Graças as Deus. Eu nunca tive nada na minha vida. Eu não sei

como pagar a Deus isso. [...] eu tô todo o dia dentro do mercado, no armazém. Isso tudo

é muito bom na vida, né?’. Embora o armazém ou Supermercados Aymoré tenha

fechado, cedendo seu lugar a uma loja de eletrodomésticos, pois não houve interesse na

segunda geração familiar em continuar com o empreendimento, seu Olímpio continua

freqüentando o Mercado e é parte do conselho de administração como membro

honorário.

EVANDRO

Atualmente é proprietário da loja Arco Iris, situada no corredor da Rua Santa

Catarina, loja 182. Mas antes teve a loja 241, de artesanato. Os produtos

comercializados na sua loja incluem velas, produtos religiosos, CDs e produtos para

rituais. Esta ultima loja tem doze anos. Na loja anterior, de artesanato, foi proprietário

por 25 anos e trabalhou com empregado durante 5 anos. Veio do interior, seu pai era

fornecedor do mercado e o Sr. Evandro começou a frequentar o mercado na infância:

“Eu vim de Ravena... de passagem, acabei ficando. O mercado é como minha família. [...] já

tenho no Mercado 34 anos [...] gostaria que meu filho tocasse um negócio dentro do Mercado,

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que conservasse o Mercado como ponto de lazer, de convivência [...] Aqui do Mercado, se você

soubesse o prazer da gente, do dia a dia, o prazer de sair da sua casa e vir trabalhar. Os donos de

loja não tiram férias”12

.

Sua fala marca com orgulho a ligação estreita com a história do Mercado.

Começou a trabalhar no Mercado Central aos 13 anos e está até hoje. Tornou-se sócio

de uma loja, em 1979. Trabalhou com artesanato e produtos de limpeza, antes de se

dedicar aos produtos religiosos. Ao longo de todos estes anos, testemunhou e contribuiu

para inúmeras modificações no Mercado. Destaca as alterações na parte física. O piso

das lojas, por exemplo, já foi de madeira. Hoje o Mercado tem ampla infraestrutura.

Evandro continua no mercado, seu negócio principal, mas tem outros empreendimentos

como uma churrascaria na praça Raul Soares. Foi conselheiro na Administração do

Mercado por 8 anos antes de se tornar um dos diretores. Faz questão de lembrar que

aprendeu muito com os comerciantes e outros diretores.

O início como empresário foi difícil, arriscado. Primeiro, foi empregado,

adquiriu experiência e conhecimento do negócio. Logo foi convidado a trabalhar com

artesanato. Depois de 10 anos, percebeu que reunia as qualidades e experiência

necessárias para ter um empreendimento próprio. Logo, analisou o mercado e buscou a

diversificação, abrindo a loja de umbanda. “Os produtos do artesanato eram pedra...

carrancas, de perto do Rio São Francisco. Artesanato de Minas e do Brasil todo.”,

lembra.

Já havia lojas de artigos religiosos no mercado, mas havia mercado para abrir

mais três ou quatro. Faz o gerenciamento de todas as lojas: “Eu tenho três lojas, faço

questão de estar presente em todas, todos os dias. Para funcionar, você tem que estar lá

dentro, como diz o meu pai: “O dono do boi é que pega no chifre”.

A churrascaria foi aberta há três anos. Tem um gerente que substitui quando sai

e o irmão cuida da loja de artesanato. A churrascaria era o antigo Scaramouche, que

havia se tornado um ponto ruim, com uma clientela problemática, e acabou fechado por

quatro anos. Mas Evandro teve a visão de aquele ponto, central, bem situado em uma

avenida de grande movimento tinha a possibilidade de atrair famílias como

frequentadores do local. Investiu nesta proposta, reformulou o espaço e implantou a

churrascaria. Atualmente, com a reforma do hipercentro, acredita que a Praça Raul

Soares, onde se localiza a churrascaria, voltará a atrair uma clientela de bom poder

12

A história e citações do lojista Evandro têm origem na entrevista concedida aos professores Maria

Lucia Ferreira e Pedro Fiúza, na sala da diretoria do Mercado Central de Belo Horizonte, em 12/06/2009.

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aquisitivo, podendo se tornar uma outra “Savassi”13

. Destaca a ação do poder público:

“Parabenizar os órgãos que nos apoiam, a prefeitura, a polícia militar, as faculdades [...].

O entorno melhorou muito, o Prefeito Pimentel”.

É favorável a um projeto de colocar um bonde ligando a Praça Raul soares à

Savassi. Evandro defende o direito ao trabalho para menores de idade e dá o exemplo

em sua casa. Ele próprio começou ainda menino e seu filho, com apenas 17 anos, já

gerencia a churrascaria:

“Eu gostaria de contestar, pois um homem de 13 anos ´já é capaz de fazer tudo que um adulto

faz. Meus pais, com 10 filhos, colocou todos nós para trabalhar desde cedo e todos nós somos

bem sucedidos e consguimos as coisas com o suor do rosto. Meu filho trabalho comigo desde a

idade de 12 anos e eu tenho certeza que se eu for, ele tem condição de tocar o negócio. Ele é

comprador da minha firma e todo mundo respeita ele como se ele tivesse 30 anos. O homem tem

muita energia e precisar trabalhar desde cedo. É diferente da mulher. Precisa se ocupar para

gastar a energia. Acho um absurdo o jovem não poder trabalhar. O que é mais construtivo para a

sociedade? Estar aqui trabalhando, estar sempre comigo, ou ir fazer arte, pega de carro etc.

Coloquei no Mercado novo, como carregador mirim”.

A disciplina do trabalho, a ética do trabalho, acredita Evandro, é fundamental

para a formação de um homem: “Se houvesse escola integral, tudo bem. Mas você

deixar seu filho em casa... a mãe e o pai vão trabalhar... ele sai para a rua fazendo

bagunça”.

Em termos de inovação do negócio, Evandro destaca a mudança de artesanato

para artigos religiosos, com a busca de diversificação, vendendo produtos para todas as

áreas religiosas, não somente candomblé, mas também artigos católicos.

Evandro salienta a importância que o empresário deve dar às mudanças a partir

de sugestões e demandas de funcionários e clientes: “A gente tem que aprender com o

funcionário, com o fornecedor, com os clientes, para o negócio ser bem sucedido.” Esta

busca de inovação é uma característica dos lojistas do Mercado: “Com certeza. O

Mercado sempre procurar inovar... O nível de cultura é muito elevado, não cultura

formal”. Fez até o curso técnico. Curso de técnico de contabilidade. Escola Visconde de

Cairu. A faculdade foi cursada no Mercado, “com diploma de PhD”. Evandro destaca o

aprendizado que vem com a experiência, a dedicação diária aos negócios.

Assim como o Sr. Olímpio Martelo, Evandro partilha a cultura do comerciante

mineiro, cauteloso, que prefere sustentar as pequenas expansões do negócio com

recursos próprios e evitar o endividamento: “Sempre com recursos próprios. A primeira

loja, procurei economizar e comecei devagar para não usar recursos do banco”.

13

Referência à Praça tradicionalmente conhecida na cidade pela oferta de amplo comércio e por ser

frequentada pela população de maior poder aquisitivo.

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Evandro considera a concorrência um aspecto positivo dos negócios, pois exige

inovação e boas estratégias para o sucesso do empreendimento:

“Eu adoro concorrência. A concorrência te dá uma criatividade tão grande. A concorrência é que

te faz prosperar. A concorrência é fundamental em qualquer segmento. Eu concorro comigo

mesmo. Eu vejo a diferença de uma loja para outra. Entre uma loja e a outra, o gerente que

trabalha em uma, procura melhorar para competir com a outra. Ele expõe o produto melhor, ele

cuida mais da vitrine. Um concorrendo com o outro, o dono ganha, ganham o funcionário e o

cliente, com a exposição melhor.”

Evandro revela que o moto do empreendedor é o dinheiro, mas não somente o

dinheiro, por isto os ganhos do Mercado Financeiro não podem satisfazer o verdadeiro

empreendedor::

“A gente trabalhar por dinheiro... isto é muito pouco. A gente tem que trabalhar para ajudar os

outros, contribuir para a sociedade. A obrigação da gente, o empreendedor é ajudar os outros.

Tem gente que me pergunta: ‘está trabalhando por que? Poderia parar’. Não é isso, é o prazer de

ajudar, de contribuir. O empreendedor, ele quer criar, não se realiza só colando o dinheiro no

Mercado Financeiro. Pensar só para ele é muito simples. Mas é um desperdício, o conhecimento

que ele tem, ele se sente bem em fazer aquilo, em ser útil, dar empregos. Nós não vamos nos

aposentar, vamos parar quando morrer.”

Evandro é um perfil de empreendedor marcado pela dedicação à inovação dos

negócios, seja do gerenciamento, da diversificação de produtos ou da transformação da

destinação de um ponto considerado esgotado, e na preocupação com a criação de

emprego e a valorização do conhecimento próprio como importante contribuição para a

sociedade.

JOSÉ AGOSTINHO

José Agostinho veio do interior ainda menino, com 14 anos. Recorda bem seu

pai dizendo:

“A menino, você já amarrou a calça na cintura, cê tem que dar um jeito. Meu pai me deu 500

conto. Eu era tão ingênuo que dei o dinheiro para o trocador do ônibus que eu peguei na estrada

e ele ficou com o dinheiro todo. Eu desci sem saber aonde, um policial me falou que eu estava

perto de uma cidade chamada Betim, próxima de outra maior, Belo Horizonte. Eu vim, fiquei na

Estação. O ambiente era ruim. O delegado me levou, me deu uns cocão, eu sai ali perto do IAPI.

Um moço me falou da venda de picolé.”14

.

Vendendo picolé, José Agostinho chegou ao Mercado Central e foi convidado

a se retirar. Mas gostou do que viu e voltou sem os picolés. Logo estava empregado

numa loja de frutas, do irmão do ex-diretor, Antônio dos Cocos. O Mercado Central deu

oportunidade a muita gente que chegava à capital de se estabelecer e prosperar: “Aí eu

14

A história e citações do lojista José Agostinho têm origem na entrevista concedida aos professores

Maria Lucia Ferreira e Pedro Fiúza, na sala da diretoria do Mercado Central de Belo Horizonte, em

12/06/2009.

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comecei no Mercado. Eu tinha muita agilidade, era bom vendedor. O povo perguntava,

cê num tem mais um pra trazer? Eu fui trazendo os irmãos. Hoje no interior só tem um

irmão. A maioria está em Belo Horizonte. José Agostinho, conhecido no Mercado

apenas como “Nem”, começou com a coragem e a vontade de vencer. Agostinho

lembra os primeiros sucessos como empreendedor:

“sem nem um conhecido em Belo Horizonte, não tinha ninguém. Até a loja que eu estava, eu não

tinha capital para comprar. Nós (estávamos) com a loja, com pouca mercadoria... eu fui falar

com o Sr. Bessa, ‘ô Seu Bessa, vão trabalhar à meia’, ele levou toda a mercadoria que não tava

muito boa e eu trabalhei e vendi. Depois quando fui buscar mais, ele ia me dar a mercadoria

encalhada, eu falei, agora eu tô com o dinheiro e vou escolher“.

José Agostinho começou trabalhando com frutas. O proprietário de uma loja

vizinha fez o convite para trabalhar na sua loja pelo dobro do salário. Para não perder o

excelente funcionário, seu patrão propôs dividir com ele o negócio. Assim surgiu sua

oportunidade para tornar-se empresário. A partir daí, Seu Nem ficou e foi guardando,

economizando para poder comprar sua própria loja.

Com o tempo, o negócio de frutas no Mercado foi perdendo a atratividade e

José Agostinho identificou uma nova oportunidade no ramo de ferragens. Quando teve a

loja de frutas, ela ficava situada na área central do Mercado, a loja de ferragens é na

saída para a Rua Augusto de Lima. Esta loja tem 12m2 e 830 itens, trabalhando,

sobretudo, com utilidades domésticas:

tinha uma economia e sai e montei um negócio só para mim. Não quis montar o ramo para não

concorrer com o Vasco. Mas quando o meu deu certo, ele passou para ferragem também e hoje é

meu concorrente. Eu tive dificuldade, porque um concorrente vendia muito barato. Ai eu fui

acrescentando produtos de utilidade doméstica. Hoje a minha loja tem mais utilidade domestica

do que ferragens.”

Na administração do Mercado como conselheiro há 26 anos, atualmente é um

dos diretores. Enfatiza o papel do Mercado em sua vida, que lhe permitiu criar e formas

as filhas, adquirir residência própria, e voltar a estudar: “Eu quando vim não tinha o

primário, depois voltei a estudar e formei o científico”

Seus funcionários foram também parte desta história de sucesso, indicando

novas possibilidades e contribuindo para as transformações no negócio:

Tem alguns artigos de mercadoria. Por exemplo, eu não trabalhava com uma linha, o funcionário

sugeriu, eu adotei e aumentei minhas vendas em 20 %. A gente sempre tem que ouvir o

funcionário e os clientes. Os funcionários estão sempre anotando o que os clientes procuram,

para a gente correr atrás.

José Agostinho considera que o empresário precisa sempre inovar: “Se não

inovar, fica para trás”. Assim como seu colega Evandro, ele também acha positivo o

trabalho para os muito jovens: “Eu acho que uma das falhas muito grandes é não deixar

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o menor trabalhar. Hoje, se colocar para trabalhar tem que pagar salário integral. Na

minha época ganhava metade. Lá em casa eram 13 filhos. Hoje todos têm casa de

morar, por causa do Mercado Central, porque eu pude ajudar eles”.

Além da qualidade dos produtos, José Agostinho menciona um outro fator para

o sucesso do Mercado Central: “O preço aqui é muito melhor do que lá fora. As frutas,

carnes, queijo, são os melhores de BH. O que vende de queijo aqui em um mês é mais

do que no resto do estado”. Sobre a crise econômica mundial e como ela pode afetar o

Mercado, José Agostinho, que já viu muita crise chegar e passar nestes 30 anos de

Mercado Central afirma: “espanta a crise é com o serviço. Trabalha duas vezes mais”.

Para um empreendedor, a crise é somente uma nova oportunidade de inovação e

dedicação multiplicada para o sucesso do negócio.

LUIS CARLOS

O superintendente do Mercado Central, administrador Luis Carlos Braga foi

inicialmente contratado para prestar uma consultoria e está no Mercado há 17 anos:

O mercado, até 93, sempre foi administrado pelos comerciantes. Eles não tinham muita

experiência administrativa. O mercado precisava de profissionalizar. Eu fui contratado para fazer

uma auditoria. Após esta consultoria, ele me contrataram ... este trabalho consistiu em mudar

alguns métodos financeiros e contábeis do mercado central [...] nós em conjunto começamos a

informatizar o mercado, investir em segurança [...] para mim como profissional foi muito

importante, após 17 anos eu vejo e participo desta alterações que eu implantei.15

De uma família numerosa, caçula, com 12 irmãos, dois falecidos, Braga teve

apoio do seu pai para completar os estudos e na sua formação como cidadão. Começou

a trabalhar cedo, com 12 anos de idade. Treinou datilografia, era muito ágil com a

máquina de escrever e tornou-se instrutor na própria escola. Esta habilidade contribuiu

para seu ingresso no mercado de trabalho. Como administrador, trabalhou em várias

empresas multinacionais, como a Fiat e a Price Waterhouse, onde teve sua formação na

área de controladoria. Chegou a morar em Uberlândia, na volta a Belo Horizonte, foi

convidado a prestar consultoria no Mercado Central.

Braga modificou o sistema financeiro do Mercado Central, com aprovação da

Diretoria executiva. Mudou também o sistema de pagamento dos funcionários, que era

em dinheiro, envelope, implantando o sistema informatizado através de boleto bancário.

15

A história e citações do superintendente, Luis Carlos Braga, têm origem na entrevista concedida aos

professores Maria Lucia Ferreira e Pedro Fiúza, na sala da diretoria do Mercado Central de Belo

Horizonte, em 12/06/2009.

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Além disto, mudou a cobrança, que passou a ser feita através de teleprocessamento, com

boleto bancário. Verificou a necessidade de melhorar a segurança interna do mercado,

com o crescimento da demanda e efetuou mudanças, como, por exemplo, o uso de

radiotransmissores. Através do estudo da legislação e reuniões com os lojistas e

diretores, estabeleceu uma parceria com uma escola de informática, fazendo

treinamento dos funcionários. Também reformulou o gerenciamento do estacionamento

e procurou uma otimização da parte turística, participando de diversos contatos com

autoridades, tendo em vista o lugar ocupado pelo Mercado no roteiro turístico nacional:

“Logicamente, que todas estas mudanças, a gente como profissional, a gente tem a

visão, aí a gente propõe, a diretoria decide. Junto com a proposta, é preciso apresentar

resultados”.

Outra ação importante foi a reformulação dos banheiros, separando os

banheiros de funcionários e banheiros para clientes, pagos. A receita é revertida na

própria administração dos banheiros, oferecendo uma melhor qualidade dos serviços

para os clientes.

No Mercado, desde 1994, Luis C. Braga tem uma dedicação exclusiva, como

superintendente, responsável por 180 funcionários, numa estrutura que conta com 400

lojas. Além disto, também é parte de sua dedicação cuidar da imagem do mercado e da

comunicação internamente e com entidades, autoridades, fornecedores e clientes

potenciais:

Qual foi nosso desafio: inovar a administração interna, mas manter as características do mercado.

Lá em baixo, você conversa, toma um cafezinho, pede para entregar em casa [...] O mercado

inovou principalmente na parte da administração, pois nós tivemos que acompanhar o mundo.

Hoje, nós temos internet, intranet, justamente para comunicação rápida, nós temos o site que é

visitado, o Mercado é conhecido pelo mundo todo, até por quem não conhece aqui ainda, mas

conhece pelo nosso site.

Para Braga, a inovação não cessa, pois além de manter o que já foi

conquistado, o Mercado deve se modernizar, sem perder suas características distintivas,

sua cultura de negócios e de atendimento ao cliente:

O mercado tem que se preocupar agora na manutenção da sua administração, a modernização.

Me preocupa a continuidade da cultura do mercado. Eu vejo os baluartes do Mercado passando

os negócios para os filhos, eu gostaria de ver a próxima geração mantendo sem perder as

características.

Falar com Luis Carlos Braga e conhecer suas ações empreendedoras na gestão

do Mercado Central nos remete à grandiosidade do Mercado Central, feito por pequenos

e grandes empreendimentos individuais, mas, sobretudo, por uma associação de

esforços e uma coordenação conjunta, direcionada por uma administração cada vez mais

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profissional, sem perder a presença dos lojistas na presidência, no conselho e nas

diretorias, aliando o tradicional e o novo, em cada loja e também na sua administração

geral.

WILMAR

Wilmar Clarindo de Souza começou com uma barraca e é dono da assinatura

de número 11 de matrícula na ata de arrematação, em 1964, do terreno da antiga feira

que pertencia à prefeitura municipal e que se tornaria o Mercado Central de Belo

Horizonte:

Em 1964 a prefeitura colocou o terreno em hasta pública através do edital comunicando o leilão

para o dia 30 de janeiro, podia participar qualquer pessoa e quem desse o melhor lance,

comprava. O edital era para quem desse mais e pagasse a vista. Ficamos insatisfeitos, pois

achávamos que deveríamos ter a preferência para a compra por estarmos aqui há tantos anos.

Então nos reunimos, contratamos um advogado, entramos na justiça e pedimos para que

tivéssemos essa preferência para a compra do terreno que o prefeito Jorge Carone Filho, havia

nos negado. Então criamos a Cooperativa de Construção Ltda. dos Ocupantes do Mercado

Municipal para fazer a compra.

O Juiz além de nos dar a preferência da compra, ainda nos deu vinte meses para pagar, tendo que

pagar 20% de entrada. No dia do pregão, fomos todos à prefeitura, enchemos a sala da prefeitura

e arrematamos com o lance mínimo. Aí veio a luta e o sacrifício para arranjar os tais 20% da

entrada e pagamos em vinte meses o terreno.

A divisão foi feita por metro quadrado. Quem tinha dez metros comprou dez metros. Pelo edital

de hasta pública, dentro do tempo de cinco anos, teríamos que iniciar a construção das lojas do

mercado, na época liderados pelo Sr Olímpio Marteleto. Fizemos a primeira estrutura e somente

muitos anos depois, o estacionamento.

Em 1972 tentamos por diversas vezes registrar essa Cooperativa e por motivos diversos não

conseguíamos, então decidimos transformá-la em Sociedade Civil, também presidida pelo Sr

Olímpio, demos continuidade a construção que não havia terminada, onde foi eleito um conselho

de administração com 31 membros, dos quais eu era um deles sendo 28 conselheiros e o restante

eleitos como diretores que administrariam o mercado. Em 1977 houve uma renovação do

conselho e da diretoria e eu assumi como diretor financeiro, juntamente com o Olímpio

Marteleto até 1982, quando continuei somente como conselheiro que sou até hoje. Em 2007 fui

eleito diretor secretário até março de 2009 e hoje continuo como conselheiro. Trinta e oito anos

como conselheiro.16

Nascido em doze de agosto de 1938, trabalhou 50 anos no Mercado, 30 dos

quais vendendo legumes e outros 20 anos vendendo material elétrico. Souza começou

em 1957, com 18 anos e manteve uma loja de legumes até 1987.

Inicialmente com uma loja, com o passar do tempo adquiriu outras ligadas ao

mesmo ramo. Trabalhou somente com funcionários, nunca trouxe familiares, como

16

A história e citações do conselheiro do Mercado Central Wilmar Clarindo de Souza, têm origem na

entrevista concedida aos professores Rita de Cássia Prates Guimarães e Leonídes Azevedo, na sala da

diretoria do Mercado Central de Belo Horizonte, em 22/06/2009.

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outros fizeram. Seus filhos não quiseram ser comerciantes: “até porque era uma vida

muito sacrificada, trabalhava-se de madrugada e eu nunca os obriguei a me acompanhar,

apesar de gostarem muito do mercado, cada um tem sua vida fora daqui”.

A venda de hortifrutigranjeiros exigia noites em claro, nos tempos em que o

Mercado Central era um centro distribuidor, para o qual afluíam os produtores com seus

carregamentos:

Em 57 quando vim, o mercado era descoberto, as barracas eram todas de madeira, toda descarga

dos produtos hortifrutis eram feitas aqui nos arredores e não existia o Ceasa. Ficávamos a noite

inteira esperando as mercadorias chegar pra poder comprar e iniciar o comércio às cinco horas da

manhã. Aqui era o nosso “CEASA”. Depois da inauguração do CEASA em 1974, tínhamos que

ir ao Ceasa para comprar, o que tornou o nosso trabalho mais difícil por causa do deslocamento e

de ter que arrumar o transporte dos legumes de lá para o mercado. Cada um fazia isso

individualmente.

Wilmar participou, nas suas próprias palavras, “de quase tudo que diz respeito

ao mercado”. No início eram aproximadamente 700 associados, atualmente são cerca de

355. Para Wilmar isto foi importante para uma melhora da gestão: “Não é lei, mas 90%

das venda das lojas é para quem está aqui dentro, porque entendemos que quem está lá

fora, não sabe perceber o verdadeiro valor desse espaço”.

Ele lembra as dificuldades, os tempos de construção, a falta de recursos, de

financiamento, sem ajuda do poder público: “não temos um prego do governo aqui, tudo

foi esforço e união dos associados, sempre incentivados pelas diretorias, cada um na sua

época de gestão. Tivemos a felicidade de só termos tido diretores competentes e

honestos a frente do Mercado Central”.

Wilmar menciona o insucesso de outros Mercados abertos nos bairros de Belo

Horizonte pela administração municipal, em Santa Tereza, na Barroca, no Cruzeiro:

“acabaram não sei se por incompetência do próprio governo, mas sei que o motivo do

nosso sucesso foi nossa própria união. Éramos muito unidos, mesmo trabalhando numa

época difícil que foi a ditadura. Podemos dizer que o sucesso e o fortalecimento do

Mercado se devem em razão de uma liderança forte de cada gestão, Sr Olímpio e outros

que vieram, diretores comprometidos ajudados também pela confiança dos associados.

Porque todo mês você tinha que chegar com o dinheirinho ali, tinha que ter aquela

quantia ali para pagar os compromissos, isso aqui foi feito contato, tostão por tostão”.

Para Wilmar, a necessidade cria a motivação, o gostar pelo que se faz:

“A motivação dos gestores era a mesma dos associados, uma vez que todos eram associados, o

Sr Olímpio, por exemplo, tinha e tem um patrimônio grande aqui dentro. Éramos comerciantes e

queríamos assegurar o patrimônio, cuidar para não perder e estar fortalecendo o comércio”.

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Fazendo um balanço dos riscos e a necessidade de melhorar o atendimento

constantemente, Wilmar acentua a característica bem conhecida do Mercado Central de

aproximar lojistas e clientes em um círculo de amizade:

Estávamos sempre nos preocupando em melhorar nossa casa para receber o cliente e para que ele

tivesse vontade de voltar, traga a família, um outro amigo. Fazer amizade, torná-los nossos

amigos. Tenho uma série de amigos que começaram como meus clientes e hoje eles, seus filhos

e netos freqüentam minha casa. Posso dizer que tenho diferentes gerações de clientes, avô, pai e

netos, pessoas que vem, pergunta das minhas coisas, pergunta da minha família eu pergunto da

dele e agente conversa, ele compra, as vezes não e assim vai. A minha vida sempre foi isso aqui

e eu adoro.

Wilmar não teme o futuro reservado ao Mercado Central. Ele confia na

dedicação dos lojistas e da diretoria, no crescimento da clientela, mesmo sem verbas de

publicidade, mas como resultado da mídia espontânea que o Mercado recebe pela sua

importância na comunidade, além da divulgação pelos próprios clientes. Assim como

outros diretores, ele não é a favor do tombamento em discussão nos órgãos municipais:

“O tombamento não é bom para o mercado porque temos visto exemplos de imóveis

tombados abandonados por aí, invadidos por mendigos. Quem sabe o que é bom e o que

é ruim somos nós comerciantes e associados”.

Por outro lado, Wilmar acha fundamental manter a identidade do Mercado

Central, sem transformá-lo em algo com características de um “shopping”. Ele aponta o

regimento como peça importante para garantir a identidade do Mercado:

não queremos ser o shopping, queremos ser mercado, shopping é frio. Aqui é mais popular, o

cliente compra muitas vezes do próprio proprietário, negocia com ele, no shopping você negocia

com o funcionário, no mercado tem mais calor humano. Eu como dono vou tratar o cliente da

melhor maneira possível. O produto do mercado não é mais caro e sim, melhor.

Segundo Wilmar, a diretoria do Mercado tem mantido “um relacionamento

muito bom com associados, prefeitura, SLU e vigilância sanitária. Somos muito

flexíveis e políticos também. Temos um presidente hoje muito atuante que preza esse

bom relacionamento”.

Wilmar afirma que sua formação é completa, com doutorado em Ceasa: “Eu fiz

a faculdade do mercado central e doutorado no CEASA, pois tive negócio lá por mais

de 15 anos. Vislumbrei uma mudança quando estava no atacado lá no CEASA percebi

que o mercado de legumes estava caindo e então resolvi mudar de ramo para material

elétrico”. Os comerciantes do Mercado Central prezam muito esta formação no

trabalho, pois a maioria não teve o tempo e a oportunidade de uma formação escolar

continuada, mas aprenderam e podem ensinar o ofício do comércio, a arte de criar um

dos principais centros comerciais da Região Metropolitana de Belo Horizonte,

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conjugando qualidade, eficiência, inovação, sem perder as origens e as características de

um negócio regional: “ainda somos um grupo de empresários e temos sempre a

preocupação de tratar bem o cliente”.

Wilmar está acostumado com a atenção que o Mercado desperta na Mídia,

entre celebridades e políticos, pois o Mercado tem uma história de freqüentadores

ilustres: “todos os políticos sempre estão vindo aqui. Marcio Lacerda só esse ano já veio

umas dez vezes, o Aécio Neves vem sempre e acho que isso é bom para eles e para nós.

O Pimentel sempre estava vindo trazendo outros políticos de outros estados e países.

Isso é positivo pra todos”.

Com sua vida definitivamente associada à história do Mercado Central, Wilmar

confia no futuro do empreendimento que viu nascer: “Eu amo o Mercado. Minha vida

desde os 17 anos foram dedicados a isso aqui. Nunca trabalhei em outro lugar. Para

qualquer hora que ele precisar de mim, estarei aqui. Sempre tive uma participação muito

ativa, conheço a maioria aqui e acredito que muitos me conheçam. É uma vida muito

difícil porque agente não tem feriados, não tem férias, não tem nada. Minha família

gosta, respeita e freqüenta o mercado. Através daqui criei meus filhos e aqui pretendo

ficar até morrer”.

Esta paixão, este amor declarado por todos os entrevistados, faz do Mercado

Central um empreendimento único. No caso do Mercado, ele não é meramente um

instrumento para criação e ampliação de capital, seus empreendedores vêem o Mercado

como “o” empreendimento, para o qual orientam suas vidas e esperanças, pelo qual

dedicaram suas horas, seus sonhos, poupanças, no qual conquistaram sua formação

como empreendedores e como cidadãos, criaram seus filhos e viram crescer a cidade,

viram seu sacrifício gerar resultados. O Mercado é um caso impar de empreendimento

em que mesmo os que se retiraram dos negócios, por questões de saúde ou idade, pois o

lojista do Mercado não gosta de se aposentar, mesmo assim, eles continuam nas

dependências do Mercado, no conselho diretor, no cotidiano do Mercado, freqüentando

e contribuindo para o sucesso dos lojistas que dão continuidade aos negócios.

CONCLUSÃO

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Os historiadores sabem que as batalhas que permeiam os eventos históricos que

envolvem conflito, os lugares da memória, as personagens biografadas, são travadas em,

no mínimo, dois momentos, o que lhes confere certo ar de permanência e presença. O

primeiro, é o instante mesmo do evento, com suas condições próprias e irrepetíveis de

historicidade. O segundo, quando se disputam as versões de relatos a seu respeito, as

guerras da memória, as querelas historiográficas. As histórias das várias gerações de

empreendedores do Mercado Central contribuem para contar a trajetória de um centro

de compras que adquiriu uma identidade própria, alicerçada na cultura regional de

Minas e no conjunto de lojistas que, através de sua associação, procura aliar inovação e

tradição, preservando as melhores características sem deixar de criar e aproveitar as

novas tecnologias disponíveis.

Controverso, múltiplo, dinâmico, o Mercado Central chegou à maturidade sem

perder a agilidade, garantida na independência financeira e autonomia de suas lojas, mas

também sem abrir mão da fama conquistada junto à comunidade belohorizontina de

aliar ao comércio, o prazer da socialização entre clientes, lojistas e visitantes, a

preservação do atendimento personalizado e o apreço pela cultura mineira.

Na história de cada um destes homens que construíram o Mercado Central,

vemos a presença da família e o amor à educação formal, que muitos lojistas não

puderam adquirir, mas garantiram a seus filhos. Vemos também a presença das

mulheres, poucas à frente dos negócios, mas inúmeras na parceria vencedora.

O empreendedorismo sem glamour, mas bem sucedido, que conjuga

oportunismo, no melhor sentido, perseverança, disciplina, dedicação diária e a visão, a

confiança. Confiança que havia no início, quando um pano estendido no chão já

demarcava uma “loja”, e que existe hoje, de que o Mercado continuará sua trajetória

com as novas gerações, os filhos, os netos e os novos lojistas. Do início de muitos sem

qualquer capital para o investimento de empresas de médio e grande porte. Das frutas e

legumes, aos eletrodomésticos e serviços bancários. O Mercado Central cresceu e se

modernizou. Mas ainda hoje, sua história é viva, porque a base dela são as inúmeras

histórias dos sujeitos que dedicaram e dedicam suas vidas a este empreendimento único,

em que o crescimento do capital não é o fim, mas o meio, em que o negócio em si é a

verdadeira paixão de proprietários que não têm pressa de se aposentar e que, depois de

aposentados, continuam ainda presentes cuidando “da cria”. Talvez alguns novatos não

tenham este mesmo espírito que embalou os pioneiros e seus descendentes, mas os

documentos votados pela maioria, o estatuto, o regulamento, o regimento, procuram

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oficializar o que o Mercado é na prática, para que ele continue sendo único, mesmo

quando for outro, com novas mudanças e inovações, com outros empreendedores. O

Mercado mudou e continuará mudando junto com a sociedade na qual está inserido.

Novos desafios e estratégias mercadológicas alteram a oferta de produtos, a forma de

pagamento e as relações entre seus frequentadores. Por exemplo, as demandas

ambientais que questionam o uso do plástico das embalagens e o clamor social pelo fim

da venda de animais, mantidos em gaiolas e condições inadequadas nas dependências

do Mercado. Incorporando novos serviços, como os bancos, e substituindo antigas

práticas, como a venda de animais de estimação, o Mercado continua sua trajetória. É a

esperança de seus pioneiros e de seus freqüentadores, que o Mercado Central use todas

as tecnologias, mas não perca o perfume, os sons, o ambiente peculiar, que não se torne

um Shopping Center com nome e modelos importados, mas que continue sendo uma

referência de cultura, turismo e comércio de qualidade no centro de Belo Horizonte.

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