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95 DIREITO À MEMÓRIA E A VERDADE: Memórias de histórias de violações de direitos humanos durantes as ditaduras militares no Cone Sul e no Brasil ANNA FLáVIA ARRUDA LANNA BARRETO 1 RESUMO O objetivo desta pesquisa é analisar o conteúdo do Fundo Clamor, lo- calizado no Centro de Documentação e Informação Científica – CEDIC, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP, entre os anos de 1970-1990 e sua contribuição para o processo de resgate da memória histórica dos casos de sequestro, prisões e tortura de crianças e adolescentes, durante as ditaduras mi- litares no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai. A metodologia adotada é a pesquisa bibliográfica e a pesquisa descritiva analítica documental. Através da consulta e análise dos documentos do Fundo Clamor serão selecionados documentos cujas informações remetam ao desaparecimento de crianças, à pri- são e/ou sequestro de militantes grávidas, procurando descrever a situação da apreensão e encarceramento, contexto histórico, forças repressoras envolvidas na operação de prisão, sequestro e/ou tortura das militantes e das crianças e adolescentes. Além desse acervo, foi realizada uma pesquisa documental dos Arquivos do Terror, no Centro de Documentação e Arquivo para a Defesa dos Direitos Humanos (CDyA) da Corte Suprema de Justiça do Paraguai, que con- tém registros dos trinta e cinco anos da ditadura militar de Alfredo Stroessner no Paraguai. O argumento central desta pesquisa consiste na afirmação de que os arquivos do Comitê em Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados dos Países do Cone Sul, disponíveis no Fundo Clamor, contribuem, de forma sig- nificativa, para o resgate da memória histórica do período ditatorial e para a conquista da cidadania plena nesses países, sendo o Brasil protagonista da im- plantação da Doutrina de Segurança Nacional na América do Sul. Palavras-chaves: Ditadura Cone Sul – Direitos Humanos – Fundo Clamor 1 Professora Adjunta do Curso de Direito da Faculdade UNA de Contagem. Pós-Doutoranda em História (UFMG). Doutora e Mestre (UFMG). Email: annafl[email protected].

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DIREITO À MEMÓRIA E A VERDADE:

Memórias de histórias de violações de direitos humanos durantes as ditaduras militares

no Cone Sul e no Brasil

ANNA FLáVIA ARRUDA LANNA BARRETO1

RESUMO

O objetivo desta pesquisa é analisar o conteúdo do Fundo Clamor, lo-calizado no Centro de Documentação e Informação Científica – CEDIC, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP, entre os anos de 1970-1990 e sua contribuição para o processo de resgate da memória histórica dos casos de sequestro, prisões e tortura de crianças e adolescentes, durante as ditaduras mi-litares no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai. A metodologia adotada é a pesquisa bibliográfica e a pesquisa descritiva analítica documental. Através da consulta e análise dos documentos do Fundo Clamor serão selecionados documentos cujas informações remetam ao desaparecimento de crianças, à pri-são e/ou sequestro de militantes grávidas, procurando descrever a situação da apreensão e encarceramento, contexto histórico, forças repressoras envolvidas na operação de prisão, sequestro e/ou tortura das militantes e das crianças e adolescentes. Além desse acervo, foi realizada uma pesquisa documental dos Arquivos do Terror, no Centro de Documentação e Arquivo para a Defesa dos Direitos Humanos (CDyA) da Corte Suprema de Justiça do Paraguai, que con-tém registros dos trinta e cinco anos da ditadura militar de Alfredo Stroessner no Paraguai. O argumento central desta pesquisa consiste na afirmação de que os arquivos do Comitê em Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados dos Países do Cone Sul, disponíveis no Fundo Clamor, contribuem, de forma sig-nificativa, para o resgate da memória histórica do período ditatorial e para a conquista da cidadania plena nesses países, sendo o Brasil protagonista da im-plantação da Doutrina de Segurança Nacional na América do Sul.

Palavras-chaves: Ditadura Cone Sul – Direitos Humanos – Fundo Clamor

1 Professora Adjunta do Curso de Direito da Faculdade UNA de Contagem. Pós-Doutoranda em História (UFMG). Doutora e Mestre (UFMG). Email: [email protected].

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ABSTRACT

This research aims to analyse the contents of Fundo Clamor, located at the Documentation and Scientific Information Centre – CEDIC, from the Pontifical Catholic University of São Paulo—SP, between the years of 1970 and 1992, as well as its contribution to the process of rescuing historical memory of child and teenager abduction, imprisonment, and torture in the course of military dicta-torships in Brazil, Argentina, Uruguay, and Paraguay. The methodology used is a bibliographical and a descriptive analytic documental research. Through the consultation and analysis of documents from Fundo Clamor, a compilation will be made with information regarding the disappearance of children and the imprisonment and/or abduction of pregnant militants in an attempt to describe the situation of apprehension and incarceration, the historical context, and the repression forces involved in the operation of arrest, kidnapping and/or torture of militants, children, and teenagers. Besides this heritage, a documental resear-ch will be made at Terror Archives, the Centre for Documentation and Archives for the Defence of Human Rights (CDyA) of Paraguay Supreme Justice Court, which contains a register of Alfredo Stroessner’s thirty-five-year-long military dictatorship in Paraguay. The main argument in this research states that the archives from the Committee for the Defence of Refugees Human Rights from the Southern Cone, available at Fundo Clamor, contribute significantly to the rescue of historical memory from the dictatorial period and to the achievement of complete citizenship in these countries, considering that Brazil was the prota-gonist of the National Security Doctrine implantation process in South America.

Keywords: Southern Cone Dictatorship, Human Rights, Fundo Clamor

1. INTRODUÇÃO

Y unas de los golpes eran los que me marco que no se ni donde ni cuando me llevan a arriba con la niña en brazo y también me hacen preguntas, y la niña se pone mal porque me empiezan a pegar estando la niña en mis brazos. Entonces yo para calmarla a niña le doy el pecho. Es más me dolió porque para mi más le torturaron a la niña delante de mí.2

2 Depoimento de Maria Felicita Gimenez prestado à Comision de Verdad y Justicia do Paraguai, no dia 11 de novembro de 2006. Arquivo da Comision de Verdad y Justicia do Paraguai.

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O texto acima se refere ao depoimento de Maria Felicita Gimenez pres-tado à Comision de Verdad y Justicia do Paraguai, no dia 11 de novembro de 2006. Ela foi presa e torturada durante a ditadura do general Strossner, junto com sua filha. Ações como essas eram utilizadas em técnicas de interrogató-rio para obtenção de informações consideradas essenciais para o Estado de Segurança Nacional vigente nos países do Cone Sul e no Brasil.

O avanço de denúncias e pesquisas nessa área apontou para a prática dessa modalidade de “terrorismo de estado” em outros países do Cone Sul. Dados do relatório da Secretaria Especial de Direitos Humanos do Brasil apontam como saldos das ditaduras do Cone Sul os seguintes números.

No Brasil foram 50 mil pessoas presas, 20 mil torturados, 356 mortos e desaparecidos, 4 crianças provavelmente sequestradas. No Uruguai fo-ram 166 desaparecidos, 131 mortos, 12 bebês sequestrados, 55 mil deti-dos. No Paraguai foram de 1 mil a 2 mil mortos e desaparecidos, 1 milhão de exilados. No Chile foram 1.185 desaparecidos, 2.011 mortos (embora estatísticas extraoficiais falem em até 10 mil assassinados), 42.486 presos políticos apenas em 1976. Na Argentina foram 30 mil mortos e desapa-recidos e 230 crianças sequestradas (BRASIL, 2009, p.101).

No final dos anos de 1970, quando a ditadura militar brasileira anuncia-va as primeiras medidas de distensão democrática, os regimes militares dos países do Cone Sul praticavam medidas de recrudescimento do autoritarismo e de intensificação do aparato repressivo. Prisões arbitrárias, eliminação su-mária de militantes políticos, cassações, exílio, banimentos políticos, invasões de domicílios, sequestros e desaparecimento de crianças filhas de militantes políticos ou opositores do regime eram práticas que endossavam a repressão política nos países do Cone Sul e usurparam os direitos humanos de milha-res de brasileiros, chilenos, argentinos, paraguaios e uruguaios. Essas práti-cas foram denunciadas por sobreviventes, refugiados e familiares de presos políticos durante os anos de 1970 e 1990, ao Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul (Clamor), com sede na cidade de São Paulo, Brasil.

O objetivo deste artigo é apresentar uma análise dos casos de sequestro, tortura e desaparecimento de crianças e adolescentes, filhas de militantes polí-ticos durante as ditaduras militares no Cone Sul e Brasil, registrados no Fundo Clamor, localizado no Centro de Documentação e Informação Científica

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– CEDIC, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP, entre os anos de 1970-1990 e sua contribuição para o processo de resgate da memória his-tórica dos casos de sequestro, prisões e tortura de crianças e adolescentes, durante as ditaduras militares no Brasil, Argentina, Chile, Uruguai e Paraguai.

A metodologia empregada na realização desta pesquisa3 é composta de pesquisa bibliográfica e a pesquisa descritiva analítica documental. Através da consulta e análise dos documentos do Fundo Clamor foram selecionados documentos cujas informações remetem ao desaparecimento, sequestro e tor-tura de crianças e adolescentes; à prisão e/ou sequestro de militantes grávidas, procurando descrever a situação da apreensão e encarceramento, forças re-pressoras envolvidas na operação de prisão. Além desse acervo, foi realizada uma pesquisa documental do Arquivo do Terror, no Centro de Documentação e Arquivo para a Defesa dos Direitos Humanos (CDyA) da Corte Suprema de Justiça do Paraguai, que contém registros dos trinta e cinco anos da ditadura militar de Alfredo Stroessner no Paraguai.

O argumento central desta pesquisa consiste na afirmação de que os arquivos do Comitê em Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados dos Países do Cone Sul (CLAMOR), disponíveis no Fundo Clamor e nos Arquivos do Terror, contribuem, de forma significativa, para o resgate da memória his-tórica do período ditatorial e para a conquista da cidadania plena nesses pa-íses, sendo o Brasil protagonista da implantação da Doutrina de Segurança Nacional na América do Sul.

2. O FUNDO CLAMOR

O fundo Clamor encontra-se distribuído em 106 caixas arquivo, 28 pastas para periódicos e 1 pasta para arquiteto. Reúne documentos textuais, orais e iconográficos. Os documentos foram adquiridos através de doação do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (CESEP), em 1993.

Esta documentação foi reunida durante a atuação do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os países do Cone Sul4 (CLAMOR), fundado em

3 Esta pesquisa está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal de Minas Gerais, em nível de Pós-Doutorado, com a supervisão da professora doutora Heloísa Maria Murgel Starling.

4 Organização civil, informal e clandestina, fundada na cidade de São Paulo em 1978 e encerra-da em 1991.

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1978 por três pessoas ligadas a defesa dos direitos humanos: Jan Rocha, Luiz Eduardo Greenhalgh e Jaime Wright. Os três se reuniram em São Paulo para verificar a possibilidade de divulgação das atrocidades cometidas contra os direitos humanos dos argentinos, uruguaios, paraguaios, chilenos e brasilei-ros durante o regime militar desses países. Procuraram o Cardeal Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns para comunicar a presença no Brasil de refugiados políticos que relatavam histórias de desrespeito aos direitos humanos. Dom Paulo acolheu a ideia e solicitou que o Comitê, por motivos de segurança, permanecesse vinculado a Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados, da Arquidiocese de São Paulo.

O nome “Clamor” foi o nome dado ao boletim do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para países do Cone Sul, cujo primeiro volume foi publi-cado em junho de 1978. O nome foi inspirado no Salmo 88,2 – “Ó Senhor, deus da minha salvação, diante de ti clamo, de dia e de noite. Chegue a minha oração perante a tua face; inclina teu ouvido a meu clamor”. A intenção dos fundadores do Comitê era denunciar as contínuas violações dos direitos hu-manos ocorridas na América Latina.

A imagem que marcava o símbolo do Clamor era um desenho de uma chama que brilha através das grades de uma prisão, criado pelo ex-preso po-lítico Manoel Cirilo de Oliveira Neto, que foi libertado em 1979. Além do símbolo, o Comitê também possuía um slogan “Direitos Humanos não tem fronteiras”. Com esse slogan o Comitê percorreu todos os países do Cone Sul e buscou auxílio financeiro e político junto a organismos internacionais como o Conselho Mundial das Igrejas, a Anistia Internacional, Nações Unidas e Banco Mundial.

Segundo correspondências e testemunhos que chegavam ao Clamor, as principais violências cometidas pelos órgãos da repressão eram assassinatos, torturas, desaparecimentos e sequestros de familiares de militantes políticos, sobretudo, de crianças, filhas de militantes grávidas que eram presas pela polí-cia destes países ou através da ação conjunta das forças repressoras dos países do Cone Sul, normalmente gerenciada por integrantes da Operação Condor5. Havia listas de adoções nos presídios para os bebês que viessem a nascer de mulheres que foram presas grávidas. As mulheres eram torturadas e, após o

5 Ação conjunta das forças repressoras dos países Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai, Uruguai, criada em 1975. A função principal dessa operação era neutralizar e reprimir os grupos que se opunham aos regimes militares montados na América do Sul. O nome da operação faz referência a uma ave andina, símbolo de astúcia na caça às suas presas.

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parto, eram mortas e suas crianças eram entregues para a adoção, muitas delas para famílias de militares. Ao todo, o Comitê ajudou a localizar vinte e sete crianças desaparecidas.

Segundo denúncias realizadas por militantes políticos e pelos integran-tes do grupo Clamor, o Brasil não só exportou conhecimento de violência policial e militar como também fazia parte de uma conexão com outros ór-gãos de repressão situados nos países do Cone Sul. Uma prova disso seria a existência de computadores com terminais ligados nos principais aeroportos do continente para seguir a movimentação daqueles que eram considerados subversivos ou inimigos da Pátria.6

3. OS ARQUIVOS DO TERROR

A base de dados do Arquivo do Terror contém cerca de 60.000 registros dos documentos localizados no Centro de Documentação e Arquivo para a Defesa dos Direitos Humanos (CDyA) do Supremo Tribunal de Justiça do Paraguai . Esta base de Base de dados foi desenvolvida através do Projeto Memória Histórica, Democracia e Direitos Humanos (MHDDH), acordo firmado entre o Supremo Tribunal de Justiça, da Universidade Católica de Assunção e da ONG The National Security Archive . Cada registro inclui o código para imagens de microfilme, data do documento, tipo de documen-to, linha e nome; e se for o caso, a origem, as organizações e localização ge-ográfica. São fichas policiais, listas de entradas e saídas de presos, notas do chefe de investigações, informes confidenciais, controle de partidos políticos, publicações periódicas, listas de suspeitos, informações sobre agremiações e grupos considerados subversivos, controle de sindicatos e objetos como livros e cédulas de identidade.

Durante a Ditadura Militar do general Alfredo Stroessner, milhares de paraguaios foram detidos, torturados, exilados e muitos desaparecidos. A di-tadura paraguaia (1954-1989) gerou traumas e ressentimentos ainda presen-tes na população. Como todas as ditaduras latino-americanas, ela violou os direitos humanos, cerceou liberdades e promoveu mortes e desaparecimentos de cidadãos em nome da Segurança Nacional.

6 Estas informações foram retiradas de documentos encontrados no Fundo Clamor, Arquivo do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, do Centro de Documentação e Informação Científica – CEDIC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP.

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Uma das vítimas da ditadura paraguaia durante o governo do general Stroessner foi o advogado Martín Almada que, desejoso de conhecer detalhes das acusações que o colocara preso entre 1974 a 1977 e da morte de sua es-posa, solicitou um habeas data às autoridades judiciais paraguaias. Em 1992, atendendo ao pedido de habeas data7 do advogado, as autoridades encontra-ram em Lambaré, cidade que fica a vinte quilômetros de Assunção, um acervo composto de cerca de 60.000 registros de documentos contendo informações sobre a ditadura do general Stroessner. Entre os documentos encontrados ressaltam-se os documentos relativos ao funcionamento da Operação Condor com a ação conjunta dos países Brasil, Paraguai, Chile, Uruguai, Argentina. Segundo López (2010), antes de assumir a presidência, Stroessner se reuniu secretamente com membros do Comando Sul dos Estados Unidos. Nesta reu-nião foi assinado um pacto com altos oficiais americanos e brasileiros, como parte do plano dos aliados anticomunistas durante a Guerra Fria e a Doutrina de Segurança Nacional, implantada na década de 1960, por meio da ditadura militar brasileira.

4. MEMÓRIAS RESGATADAS

Dos ninos, (1) Anatole Boris Julien Grisona, nacido em El Uruguay el 22/09/72, y (2) Eva Lucía Julien Grisona, nacida en la Argentina el 07/05/75, secuestradas el 26/09/76 en Buenos Aires, em una operación conjunta de las fuerzas policiales uruguayas y argentinas, fueron encon-tradas en la ciudad de Valparaíso, Chile. Los ninos están bien. Sus padres, Roger Julien Cáceres (uruguayo) y Victoria Grisona (argentina), secues-trados en esa misma operación, continúan desaparecidos. La familia ente-ra fue secuestrada de su residencia em Partido de San Martín, Provincia de Buenos Aires8.

7 O habeas data assegura o direito de toda pessoa ter acesso a informação e aos dados sobre si mesma.

8 Boletín de Prensa del 31/07/1979. Fundo Clamor, pasta 1, plástico 60. Arquivo do Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul, do Centro de Documentação e Informação Científica – CEDIC – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo / SP.

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O texto acima se refere a uma denúncia feita pelo Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul - CLAMOR9, em 1979, a respei-to do desaparecimento das crianças uruguaias Anatole Boris Julien Grisona (4 anos) e Eva Lucía Victoria Julien Grisona (1 ano e 4 meses) que foram sequestradas no dia 26 de setembro de 1976 junto com seus pais na Argentina e deportadas ilegalmente para o Chile. Durante a operação de sequestro, os pais dessas crianças foram mortos e seus filhos foram levados para centros de interrogatórios. Posteriormente foram abandonados numa praça, na cidade de Valparaíso (Chile) e entregues a um orfanato por uma assistente social que passava no local (LIMA, 2003).

A partir de setembro de 1976 os familiares de Anatole e Eva Lucía inicia-ram uma busca desesperada para reencontrar as crianças. Segundo a historia-dora Ananda Simões Fernandes, esta prática se trata de uma “modalidade de Terrorismo de Estado das ditaduras de Segurança Nacional” (FERNANDES, 2011, p. 48), sobretudo na Argentina, que durante a vigência do regime militar (1976-1983) contou com o alarmante número de 230 crianças sequestradas (BRASIL, 2009).

No caso argentino, a maioria das crianças sequestradas tinha suas iden-tidades omitidas e eram posteriormente adotadas ilegalmente por famílias ligadas direta ou indiretamente à repressão. Muitas crianças sequestradas junto com seus pais foram adotadas por oficiais da repressão. Exemplo dessa situação é o caso da criança Mariana Zaffaroni, sequestrada quando tinha de-zoito meses de idade, junto com seus pais Jorge Roberto Zaffaroni Castilla e María Emilia Islas de Zaffaroni em Buenos Aires, no dia 27 de setembro de 1976, por forças da repressão argentina e uruguaia. A partir dessa data os familiares de Mariana iniciaram uma busca para encontrá-la. No dia 20 de maio de 1983 o jornal argentino “Clarin” de Buenos Aires publicou um apelo, com a foto da menina, solicitando a quem tivesse qualquer informa-ção de Mariana, que entrasse em contato com as Abuelas da Plaza de Mayo10 ou com o grupo Clamor em São Paulo. Vinte dias após o apelo chegou uma carta anônima da Argentina enviada ao grupo Clamor. A carta informava que

9 Comitê em Defesa dos Direitos Humanos dos Refugiados dos Países do Cone Sul criado em 1977, apoiado pelo Arcebispo de São Paulo - Cardeal Paulo Evaristo Arns e vinculado à Comissão Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados. Seu objetivo era prestar proteção e assistência aos refugiados dos países do Cone Sul - Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai.

10 Organização de direitos humanos argentina, fundada em 1977, que tem como finalidade lo-calizar e restituir às suas famílias legítimas todos os filhos sequestrados e desaparecidos durante a última ditadura militar argentina (1976-1983).

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Miguel Angel Furci, membro do Serviço de Inteligência do Estado (SIDE), estaria com Mariana em um subúrbio de Buenos Aires. A menina havia sido registrada como filha legítima do casal Furci, sendo registrada dois anos após o seu nascimento (LIMA, 2003).

Casos como esses se tornaram uma política de estado na Argentina e foram praticados nos demais países do Cone Sul e no Brasil com a cooperação das forças repressoras desses países. Geralmente as crianças e adolescentes eram sequestradas junto com seus pais, quando da prisão e/ou sequestro dos mesmos. Posteriormente eram encaminhadas para centros de detenção e pre-sas juntos com seus pais (QUADRAT, 2003). Exemplo dessa situação é o caso da brasileira Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, que foi seques-trada em sua residência no dia 13 de dezembro de 1968, dia da promulgação do Ato Institucional Nº 5 em Pariconha, interior de Alagoas, junto com seus filhos André (3 anos) e Priscila (2 anos). Ela e seus filhos ficaram presos du-rante quatro meses (BRASIL, 2009, p.30).

Assim como o caso de Maria Auxiliadora, várias outras crianças e ado-lescentes foram presos e, algumas vezes, torturados junto com seus pais, como é o caso do adolescente Ivan Seixas (16 anos) filho do operário paranaense Joaquim Alencar de Seixas. Ambos foram presos em 16 de abril de 1971 e leva-dos para as dependências da 37ª Delegacia de Polícia e posteriormente para o Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna de São Paulo (DOI-CODI/SP). Ambos militavam no Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT) quando foram presos. Pai e filho foram torturados juntos e após o assassinato de Joaquim Alencar de Seixas, sua re-sidência foi invadida, sua mulher e filhas foram presas. Ivan passou seis anos preso sem responder a um julgamento (BRASIL, 2009, p. 44).

No dia 30 de setembro de 1969, Virgílio Gomes da Silva Filho foi preso junto com sua mãe e mais dois irmãos. No dia anterior seu pai Virgílio havia caído nas mãos dos agentes da repressão e foi assassinado. Sua mãe e irmãos foram presos quando estavam hospedados em uma casa praiana em São Sebastião / SP. Na época, seu irmão mais velho Vlademir tinha oito anos, Virgílio seis anos e Isabel, sua irmã mais nova, tinha somente quatro meses. Todos foram detidos na sede da Operação Bandeirantes (OBAN). As três crianças foram arrancadas de sua mãe Ilda e levadas para o Juizado de Menores, onde permaneceram por dois meses. Antes disso passaram por vá-rios interrogatórios. Ilda permaneceu presa até o ano de 1979, permanecendo incomunicável a maior parte do tempo. As crianças foram separadas e cada

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uma delas foi morar com um tio. Às vezes elas se reuniam e ficavam paradas em frente a um poste onde sua mãe, ainda presa, poderia avistá-los. Após ser libertada e reunir sua família, Ilda e seus filhos foram morar em Cuba onde permaneceram até concluírem o curso universitário (PIMENTA, 2009).

A história da prisão de Criméia Schimit de Almeida, mãe de João Carlos Gradois, revela mais um episódio dessa história de prisão, sequestro, tortu-ra de crianças nos cárceres militares brasileiros. Presa nas dependências da Operação Bandeirantes em São Paulo quando estava grávida de oito meses de João Carlos, Criméia foi submetida a espancamentos e choques elétricos. Após o parto, permaneceu presa com o bebê durante cinquenta e dois dias (BRASIL, 2009, p. 66).

Em 19 de fevereiro de 2013 morreu em São Paulo Carlos Alexandre Azevedo, torturado quando tinha apenas um ano e oito meses de vida no Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), em 1974. Carlos era filho do jornalista Dermi Azevedo, militante e um dos fundadores do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (MDNH). No dia 14 de janeiro de 1974, Carlos Alexandre e sua mãe foram levados à sede do Deops paulista, onde seu pai estava preso. Durante o interrogatório de Dermi, os policiais jogaram Carlos Alexandre no chão e machucaram sua cabeça. A tortura deixou sequelas em Carlos que viveu toda a sua vida submetida a tratamentos com antidepressi-vos e antipsicóticos. No dia 19 de fevereiro de 2013, Carlos Alexandre pôs fim à sua vida com uma overdose de medicamentos (BECKER, 2013).

Ações como essas eram utilizadas em técnicas de interrogatório para obtenção de informações consideradas essenciais para o Estado de Segurança Nacional vigente nos países do Cone Sul e no Brasil. Conforme denúncia do relatório Nunca Mais da Argentina:

… Por eu responder de forma negativa, começaram a bater na minha companheira com um cinto, puxavam seus cabelos e davam chutes nos pequenos Celia Lucía, de 13 anos, Juan Fabián, de oito anos, Verónica Daniela, de três anos, e Silvina, de somente vinte dias… As crianças eram empurradas de um lado ao outro e perguntadas se iam amigos à casa. Depois de maltratar minha companheira, pegaram a neném de somente vinte dias; pegaram-na pelos pés, de cabeça para baixo, e começaram a bater nela, gritando à mãe: “… se você não falar, vamos matá-la”. As crianças choravam e o terror era imenso. A mãe suplicava, gritando, que não mexessem com a neném. Então decidiram fazer o “submarino” na

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minha companheira na frente das crianças, enquanto me levavam para outro quarto. Até o dia de hoje não soube nada de minha companheira... (CONADEP, 1986, p. 230).

Nenhuma das crianças que tiveram os pais assassinados, clandestinos ou encarcerados teve o direito de desfrutar da convivência familiar, escolar ou comunitária. Seus relacionamentos eram marcados por restrições e segredos. Os finais de semana eram passados em cadeias, únicas ocasiões que podiam visitar seus pais.

Há ainda casos em que militantes grávidas eram sequestradas e após a ocorrência dos partos, geralmente em centros clandestinos, as crianças eram retiradas das mães com a falsa informação de que seriam entregues aos avós. Após a separação, as mães, geralmente, eram executadas (QUADRAT, 2003). Várias das crianças nascidas em cativeiro continuam desaparecidas. Essa me-todologia repressiva foi adotada nos países do Cone Sul da América Latina como estratégia para dissimular uma cultura do medo e da incerteza, como recurso para intimidar os opositores dos regimes ditatoriais nos países do Cone Sul.

O sequestro de crianças filhos de presos políticos e a apropriação de suas identidades configura-se como crimes de lesa-humanidade e, portanto são imprescritíveis. Sendo assim, pesquisar essa temática é garantir que arbi-trariedades como estas não passem despercebidas pelas sociedades vitimadas pelos governos ditatoriais, sobretudo onde esses desaparecimentos, prisões e torturas se fizeram mais frequentes. Estudar esse assunto é garantir aos fa-miliares dos desaparecidos políticos e a sociedade civil desses países o direito do conhecimento e da memória dos fatos que, de forma, inóspita e brutal, retiraram do convívio familiar milhares de crianças e adolescentes, vítimas inocentes desse “terrorismo de estado”.

5. A REPRESSÃO NAS DITADURAS DO CONE SUL

Após anos de desrespeito sumário aos direitos humanos dos povos sul--americanos, sobretudo nos períodos das ditaduras civis e militares, que con-taram com diversos golpes de estado e a tomada pela força do poder, com a prática hedionda da tortura, do desaparecimento, sequestro e ocultação de identidades de milhares de militantes políticos contrários aos regimes

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instalados, vários cidadãos, familiares de desaparecidos políticos, ainda aguardam a efetiva igualdade de direitos à memória, ao conhecimento dos fatos, a identificação dos entes queridos. Naquele contexto, o desrespeito aos direitos humanos tinha um alvo específico: opositores políticos e ideológicos das ditaduras instaladas nos países do Cone Sul (Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai) e no Brasil.

A ação das forças repressoras desses países procurou, por meio da mani-pulação dos meios de comunicação e educação, silenciar qualquer manifesta-ção contrária aos interesses econômicos, políticos e ideológicos dos partidá-rios das ditaduras instaladas após a segunda metade do século XX. Baseado na ideologia de cunho geopolítico expressa na Doutrina de Segurança Nacional11, o inimigo era caçado e eliminado. O aparato militar repressivo se voltou para a população, em especial para os subversivos e a guerrilha urbana. O discurso progressista e revolucionário da sociedade civil foi progressivamente substi-tuído, ou melhor, “emudecido pelo alarido conservador, pela voz da Ordem, da Moralidade, da Pátria, da Família” (HOLLANDA, 1985, p. 14). Os golpes civis e militares nos países do Cone Sul, na segunda metade do século XX, romperam com as perspectivas revolucionárias dos setores oposicionistas da sociedade civil que sonhavam com a construção de uma nova sociedade. Os ânimos socialistas foram silenciados pelo discurso da Ordem e da Segurança Nacional, da tradição, família e propriedade. Movimentos populares, estu-dantis e segmentos progressistas da sociedade civil, estupefatos, passaram da euforia à dúvida, da ofensiva ao recuo12.

Vale ressaltar que o crescente descontentamento da sociedade civil nos países do Cone Sul e no Brasil estava inserido no contexto da Guerra Fria, em um mundo marcado pela bipolaridade ideológica entre os blocos liderados pelos Estados Unidos da América (EUA) que patrocinavam o capitalismo e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) que defendiam o so-cialismo. Neste contexto é importante destacar o impacto causado nos EUA pela Revolução Cubana, em 1959, com a implantação de um regime socia-lista em um país próximo geograficamente dos EUA. Com a instalação do socialismo em Cuba, os interesses dos dirigentes dos EUA e dos demais pa-íses do Cone Sul são ameaçados por uma ideologia contrária aos interesses

11 A respeito da Doutrina de Segurança Nacional e seu papel no golpe de 64, ver: TOLEDO, 1977; DREIFUSS, 1981; STARLING, 1986; SODRÉ, 1992.

12 A respeito do grau de radicalização do Regime Militar Brasileiro, entre os anos de 1964 a 1968, consultar: FON, 1979; ARQUIDIOCESE, 1987; ALVES,1989.

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norte-americanos e militares, cujos princípios socialistas e revolucionários questionavam os pilares que sustentavam o desenvolvimento econômico des-ses setores. Os interesses dos EUA na América Latina haviam sido abalados desde a Revolução Cubana, o que levou a “superpotência considerar a política interna de cada país da região como extensão de sua própria política externa” (PADRÓS, 2005, p. 47).

A Guerra Fria entre URSS e EUA que dominou o cenário internacional na segunda metade do século XX fez com que gerações inteiras se criassem à sombra de batalhas nucleares globais, que acreditavam que podiam estourar a qualquer momento e devastar a humanidade. O medo da destruição mútua inevitável impediria um lado ou outro de dar o sempre pronto sinal para o planejado suicídio da civilização. A peculiaridade da Guerra Fria era a de que, em termos objetivos, não existia perigo iminente de guerra mundial.

Para a América Latina, o grande impacto da Guerra Fria não foi às armas nucleares e nem a corrida armamentista, mas sim a “guerra de contrainsurgên-cia”, baseada na Doutrina de Segurança Nacional, que tinha como objetivo eli-minar possíveis revoluções sociais nas áreas de influência ideológica dos EUA. De acordo com o Secretário do governo Kennedy, Robert Mc Namara, três tipos de guerras eram consideradas naquele contexto de Guerra Fria: a guerra atômica, a guerra convencional, a guerra não convencional. O último tipo de guerra foi interpretado como uma estratégia do Movimento Comunista Internacional na conquista de adeptos para o socialismo. Nesse sentido, o novo desafio para o EUA era conter a guerra não convencional ou guerra re-volucionária através da instalação da Doutrina de Segurança Nacional e dos regimes ditatoriais na América do Sul (REIS, 2012, p. 34).

5.1. A DITADURA MILITAR NO PARAGUAI

A instituição de ditaduras nos países do Cone Sul teve início em maio de 1954, no Paraguai, com o golpe de estado do general Alfredo Stroessner, apoiado pela Junta de Governo do Partido Colorado e por grande parte da população, que depôs o presidente Frederico Chávez e nomeou como pre-sidente interino Toman Romero Pereira, para depois convocar eleições. No mesmo ano, no dia 11 de julho, o general Alberto Stroessner, candidato único do Partido Colorado, que apoiou o golpe, ganhou as eleições presidenciais. Em 15 de agosto de 1954, Stroessner tornou-se Presidente do Paraguai. A par-tir de então, tem-se início, um regime ditatorial unipessoal, que contou com

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práticas de torturas aos seus opositores e com a criação de um sistema de delação que levou milhares de paraguaios aos cárceres e ao desaparecimento.

Além do Partido Colorado, o general Stroessner contou com o apoio da oligarquia agropecuária e dos Estados Unidos. A instalação da ditadura militar no Paraguai fazia parte da “guerra de contrainsurgência”, desencade-ada pelos EUA na América Latina e era baseada na Doutrina de Segurança Nacional. Segundo Miguel López (2010), pouco após Stroessner assumir a presidência, ele assinou um acordo com os altos oficiais americanos e bra-sileiros, onde se comprometia a barrar qualquer ameaça ou crescimento de partidários do comunismo.

Para barrar o avanço do comunismo no Paraguai a ditadura do gene-ral Stroessner impôs a filiação partidária ao Partido Colorado como condi-ção primordial para se conseguir acesso aos cargos públicos e ingressar nas Universidades. Além disso, a exigência de filiação ao Partido Colorado se fez também por parte das empresas privadas na contratação de pessoal, cujos proprietários eram aliados do governo. Assim, o Partido Colorado se tornou a base social da ditadura paraguaia e os partidos, sindicatos e movimentos estudantis eram formados basicamente por colorados. Esta estratégia deixou a oposição ao regime cada vez mais debilitada (VERA, 2010).

Com a desaceleração econômica nos anos de 1980, a ditadura militar paraguaia começou a perder força e apoio. Nos dias 2 e 3 de fevereiro de 1989 um novo golpe, planejado por alguns setores do Partido Colorado, destituiu Stroessner da presidência.

5.2. O REGIME MILITAR BRASILEIRO

Na sequência de instituição de regimes ditatoriais na América do Sul, o Brasil foi o próximo país a sofrer um golpe militar que derrubou um presidente civil eleito democraticamente. Em 31 de março de 1964 o regime militar im-plantando no Brasil depôs o governo constitucional do presidente João Goulart e emitiu diversos Atos Institucionais que aumentaram o poder da Presidência da República e limitaram os direitos individuais dos cidadãos. A imprensa, os sindicatos e as organizações estudantis ficaram sobre forte censura do Estado.

O período do Regime Militar Brasileiro foi marcado pela influência da Doutrina de Segurança Nacional e explicitou um conjunto de políticas que, sob a máxima “desenvolvimento com segurança”, articulou medidas de efetivo controle social com estratégias econômicas de maior inserção do Brasil na

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ordem capitalista internacional. A realização da lógica “estabilidade e cres-cimento econômico” só foi possível devido à eliminação pela via da coerção do conflito no interior da sociedade. Gradativamente, o ciclo de repressão estendeu-se aos indivíduos considerados suspeitos no interior da esfera do Estado e, com as manifestações estudantis de 1968, à classe média. Em todo o Brasil, a repressão aos grupos “subversivos” se fez presente.

As primeiras medidas do regime militar, durante o governo do general Castelo Branco, apresentaram uma clara intenção de eliminar a oposição ao regime militar. O governo Castelo fez uso intenso de práticas policiais e mi-litares de detenção em massa com bloqueio de ruas, busca de casa em casa e checagem individual; de prisões de massa; da prática da tortura como forma de interrogatório em diversas guarnições militares. Entre os anos de 1964 a 1967 o governo interveio nos sindicatos e nas entidades estudantis, proibiu a realização de greves, instaurou a censura nos meios de comunicação, criou o Sistema Nacional de Informações, cassou mandatos e suspendeu por dez anos os direitos políticos dos parlamentares oposicionistas (ALVES, 1989).

O ano de 1968 foi um marco de ambivalência no regime militar. Neste ano verificou-se tanto a efervescência dos movimentos oposicionistas como a intensificação da repressão do Estado13. Em 1968, o governo do general Costa e Silva, em resposta a eclosão de um amplo movimento social de protesto e de oposição à ditadura, decretou o Ato Institucional nº 5, considerado, por muitos autores, como um “golpe dentro do golpe” (ALVES, 1989, p. 51). O Ato Institucional Nº 5 proibiu as greves, ampliou o poder do executivo para efetuação de prisões sem mandatos judiciais e promoveu novas cassações.

O fator conjuntural que mais contribuiu para a edição do AI-5 foi a in-tensificação da contestação ao regime pelos sindicatos e movimento estudan-til como também por alguns segmentos do MDB.

Os três fatores utilizados como pretextos pelas Forças Armadas para desencadearem nova escalada repressiva com o Ato Institucional nº 5, foram: as denúncias sustentadas dentro do próprio partido de oposição criado pelo regime, o crescimento das manifestações de rua e o surgi-mento de grupos de oposição armada, que justificavam sua decisão com o argumento de que os canais institucionais seriam incapazes de fazer frente ao poder ditatorial (ARQUIDIOCESE, 1987, p.62).

13 A respeito dos movimentos de oposição ao Regime Militar, consultar: MARTINS, 1987; GORENDER, 1987; PERRONE, 1988; VENTURA, 1988; REIS E MORAIS, 1988.

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Entre os anos de 1969 a 1973, observou-se a ocorrência das guerrilhas rural e urbana que acirraram ainda mais a ação repressiva das forças arma-das. Inúmeros militantes das organizações de esquerda foram presos e mui-tas vezes, torturados. Muitos morreram, desapareceram e foram banidos do país. Grupos da sociedade civil e, principalmente pessoas que lutavam pela liberdade, pela restauração das garantias constitucionais e por melhorias nas condições de vida, foram excluídas do cenário político, social e familiar da sociedade brasileira. Este período marcou a fase de endurecimento do regime militar brasileiro. Além da repressão física, os grupos de oposição ao Regime Militar conviviam com uma constante intimidação ideológica e psicológica, promovida pela campanha de repressão (ALVES, 1989).

Para Ana Vasquez e Ana Araújo (1988), o objetivo da tortura não era apenas a obtenção de informações, mas, sobretudo, a anulação daquelas pes-soas, de forma permanente e definitiva. O principal alvo da repressão eram os movimentos operários, camponeses, estudantil e organizações de esquerda.

De abuso cometido pelos interrogadores sobre o preso, a tortura no Brasil passou, com o Regime Militar, à condição de “método científico”, incluído em currículos de formação de militares. O ensino deste método de arrancar confissões e informações não era meramente teórico. Era prático, com pessoas realmente torturadas, servindo de cobaias neste macabro aprendizado (ARQUIDIOCESE, 1987, p. 24).

Em 1974, o desgaste da legitimidade do regime ficou visível na vitória

eleitoral do MDB sobre a ARENA para o Senado Federal, refletindo uma mu-dança de estratégia dos setores oposicionistas, que passaram a apoiar os par-tidos de oposição oficial (ALVES, 1989). Mas, o regime militar foi solapado quando a sociedade civil encontrou condições de manifestar. Nas décadas de 1970 e 1980 as ruas das cidades foram progressivamente tomadas pelos mais diversos movimentos por liberdades e direitos: sindicais, estudantis, das mu-lheres, das igrejas, dos negros.

Em 1985, através da realização de eleições indiretas para presidência e a vitória do civil Tancredo Neves deu-se o fim de vinte e um anos de ditadura militar no Brasil. Vítima de uma enfermidade aguda, Tancredo faleceu antes de assumir a presidência do Brasil. Seu vice, José Sarney, um ex-arenista, as-sume o comando da Presidência da República do Brasil.

Segundo Padrós (2009, p, 17), o Brasil se tornou laboratório de práticas

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repressivas e foco disseminador das mesmas (torturas, esquadrões da morte, sequestro, desaparecimento de pessoas). Nos países do Cone Sul, depois do Brasil e do Paraguai de Stroessner, foi a vez da Argentina (1966), Uruguai e Chile (1973) e novamente a Argentina.

5.3. A DITADURA ARGENTINA

Na Argentina, a repressão foi extremamente violenta. A ditadura teve duas etapas. A primeira, de 1966 a 1973, que durou sete anos. A segunda, iniciada em 1976, foi o período que a violência de estado atingiu uma escala sem precedentes na América Latina. Somente em 1983 o país recuperou a democracia.

No dia 28 de junho de 1966, o presidente eleito legalmente na Argentina, Arturo Illia é deposto e o general Juan Carlos Onganía assume a Presidência da República. Assim como no Brasil, os mentores do golpe denominaram esse período de tomada de poder como Revolução Argentina. Em seguida, entrou em vigor no país o Estatuto da Revolução Argentina que procurou legalizar as atividades dos militares. O objetivo era garantir a permanência dos militares no poder por tempo indeterminado. Segundo Anthony W. Pereira, a ditadura argentina expressa uma “quebra radical com a legalidade anteriormente vi-gente e num ataque em grande medida extrajudicial aos oponentes do regime” (PEREIRA, 2010, p. 44). A nova “constituição” proibia a atividade dos parti-dos políticos e cancelava quase todos os direitos civis, sociais e políticos dos cidadãos, em função de um constante Estado de Sítio.

No final dos anos de 1960 ações armadas dirigidas contra os milita-res, através de guerrilhas como os Motoneros e o Ejército Revolucionário Del Pueblo (ERP), tornaram-se alvo de preocupação do governo. Em 1973, com a saída dos militares do poder e a restauração de um governo peronista, houve a intensificação da repressão. Primeiro sem Peron, depois com o líder no poder e posteriormente, após sua morte, no governo de sua terceira esposa, Maria Estela Martinez de Perón, a violência política continuou através dos grupos paramilitares. Sob o comando do general José Lopez Rega, teve início uma guerra suja contra a esquerda armada. Segundo Pereira “o golpe de 1976 foi em parte provocado pelo desejo dos militares de expandir a guerra suja para abranger todo o país” (PEREIRA, 2010, p. 61). Sendo assim, diferente do Brasil e do Chile, a repressão militar na Argentina começou antes da instituição do regime militar.

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A repressão argentina concentrou-se em Buenos Aires, responsável por quase metade dos desaparecimentos políticos. Contudo, outras cidades como Córdoba, La Plata e Mendoza tiveram intensa atuação das forças armadas ar-gentinas nas práticas repressivas. Os principais alvos da repressão eram os sin-dicalistas, membros do partido peronista, intelectuais, estudantes e jornalistas.

Segundo Samantha Quadrat (2002), a repressão na Argentina se estrutu-rava no modelo de sequestro, desaparecimento e tortura. As pessoas suspeitas de subversão, inimigos internos ou simpatizantes de governos nacionalistas eram sequestradas em suas residências ou na saída do trabalho, por grupos fortemente armados conforme atestam a maior parte dos casos de registros de desaparecimentos na Argentina, denunciados pelas Madres e Abuelas de Praza de Mayo. Após sequestrada, a pessoa era conduzida aos centros clan-destinos de detenção e tortura que sempre tiveram sua existência negada pelo governo militar argentino. Segundo informações do Nunca Mais argentino, da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) na Argentina, existiam cerca de 340 centros espalhados em todo o território ar-gentino (CONADEP, 1986). Esses locais constituíram na base material indis-pensável para o desaparecimento em massa de opositores do regime militar argentino. Um dos mais famosos era a Oficina Orletti, uma antiga oficina me-cânica que foi convertida em centro clandestino de detenção e tortura, servin-do de cárcere principalmente para prisioneiros argentinos, uruguaios e chile-nos. Oficiais uruguaios e chilenos também frequentavam a Oficina Orletti e participavam das sessões de interrogatórios e tortura contra prisioneiros.

Umas das formas mais brutais da repressão argentina foi o sequestro de crianças, nascidas geralmente em cativeiros, filhas de mulheres mortas ou presas pela repressão. Em muitos dos casos, as crianças sequestradas eram adotadas por oficiais das forças de repressão. O sequestro dos filhos e o de-saparecimento dos opositores ao regime tinham um claro propósito, desarti-cular a família dos militantes políticos – avos, mães, filhos – instalando um castigo exemplar para aqueles acusados de implantar o caos na Argentina, castigo que deveria servir de advertência para as gerações futuras.

A intensidade da repressão na Argentina revela que o terrorismo de Estado lá aplicado não foi proporcional a ação da subversão. O número de vítimas desse regime reflete a amplitude do genocídio produzido e demonstra que os objetivos dos militares iam além de reprimir.

Segundo Marcelo Fabián Sain (2000, p. 23) “a derrota político-militar das Malvinas marcou o início da ruptura do regime militar inaugurado em 1976.

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A crise na qual mergulharam as Forças Armadas e, em particular, o governo militar converteu-se rapidamente numa crise do regime”. A derrota militar das forças armada somada a sua fragmentação política colocaram em xeque os pres-supostos doutrinários do regime militar argentino e impediu a saída das forças armadas através das esferas governamentais em parâmetros determinados por elas ou canalizados a partir de pactos com os dirigentes civis.

Sobre esse aspecto o processo de transição política na Argentina não ocorreu de forma pactuada como no Brasil, que se desenrolou a partir de uma conciliação entre civis e militares, tendo como produto final a eleição indi-reta para presidente da República. Diferente do Brasil, a transição argentina tratou-se de uma transição por colapso, determinada pela ruptura do regi-me militar que teve como golpe final a derrota da Argentina na Guerra das Malvinas (SAIN, 2000, p. 24).

5.4. A DITADURA ChILENA

Nove anos após o início da ditadura militar brasileira, em 1973 o Chile sofreu um golpe de estado que culminou na execução do presidente de ten-dência socialista Salvador Allende, democraticamente eleito, dentro do pró-prio palácio presidencial de La Moneda. O golpe militar chileno foi orques-trado pela justa militar comandada por Augusto Pinochet. Assim como as demais ditaduras do Cone Sul, o regime militar chileno se caracterizou pela extrema violência contra seus opositores.

Do ponto de vista da legalidade, os militares chilenos aboliram a Constituição, estabeleceram um estado de sítio em todo o território e executa-ram centenas de pessoas sem prévio julgamento. O Exército chileno assumiu o controle da maior parte do território. A prática da tortura era comum nos interrogatórios e os acusados eram julgados por tribunais militares “de tem-pos de guerra”, onde as sentenças eram rapidamente cumpridas, sobretudo nos casos de pena de morte. Os principais alvos eram as pessoas suspeitas de apoiar Salvador Allende e membros dos partidos socialistas e comunistas. A cidade de Santiago foi o principal foco das ações repressivas, mas as mortes e desaparecimentos ocorreram em todo o território chileno.

Segundo Pereira (2010) o regime militar chileno, se comparado ao caso brasileiro, estava pouco preocupado com a atuação das forças armadas dentro dos limites da legalidade, sobretudo nos cinco primeiros anos após o golpe militar. “Nos primeiros meses após o golpe, o número das pessoas

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sumariamente executadas pelo Exército ou pela política (carabineros) pare-ce ter sido muito superior ao das que receberam algum tratamento judicial” (PEREIRA, 2010, p. 60). Os julgamentos eram rápidos e as sentenças, embora severas, eram sumariamente aplicadas. Não havia direito de recurso para os réus, pois a Suprema Corte se recusava a rever os vereditos dos julgamentos realizados em tribunais militares.

Após a instituição do golpe militar chileno, foram criados órgãos de inte-ligência que tinham como objetivo assegurar a permanência do novo regime e reprimir os grupos opositores ou que poderiam apresentar alguma resistência ao regime. É nesse contexto que foi criada a Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), em junho de 1974, que funcionou sob o comando do coronel Manuel Contreras. Tratava-se de um órgão autônomo, centralizado e subordinado di-retamente ao governo. O decreto que criou a DINA permitia a Junta Militar convocar os demais serviços de segurança para participarem das ações do DINA e dava-lhe poderes, para realizar prisões e buscas de prisioneiros em todo o país. Vale ressaltar que a CIA, agência de inteligência dos EUA, foi responsável pelo treinamento de muitos membros da DINA, além da destina-ção de recursos financeiros para o órgão (ANTUNES, 2008, p. 227). A DINA mantinha centros de reclusão clandestinos, onde a prática de tortura contra os prisioneiros era comum. Em 1975 a DINA sediou o sistema da Operação Condor, cooperação entre os regimes militares do Cone Sul inicialmente in-tegrada pela Argentina, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Chile. Uma delegação brasileira compareceu ao encontro, mas a integração do Brasil só aconteceu em 1976.

Durante sua existência, a Operação Condor foi marcada por três fases. A primeira era dedicada à formação de um banco de dados com informações sobre pessoas envolvidas com a subversão em todos os países do Cone Sul que participavam da cooperação. Além disso, na primeira reunião foi prevista a criação de uma central de comunicações com mensagens criptografadas e te-lefones com inversores de voz, além da realização de reuniões regulares entre os chefes de inteligência dos países membros (PRIMERA, 1975).

A segunda fase foi marcada por ações conjuntas realizadas dentro dos países membros. Tais ações possibilitaram a troca de prisioneiros sem qualquer registro oficial de entrada ou saída do país, bem como a localiza-ção de refugiados no exterior. Após vigiar e capturar os alvos, estes eram presos e submetidos a interrogatórios, muito vezes com o uso da prática da tortura. Os interrogatórios eram compartilhados entre os países membros e

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os prisioneiros eram deportados para seus países, onde provavelmente eram executados (DINGES, 2005, p. 36).

A terceira fase da Operação Condor envolvia a formação de equipes espe-ciais dos países membros que viajavam a qualquer parte do mundo para assas-sinar “terroristas” ou aqueles que, segundo os órgãos da repressão, apoiassem organizações “terroristas”. A operação consistia em localizar um terrorista ou simpatizante no exterior, encaminhar uma equipe especial para vigiar o alvo e posteriormente, seria enviada uma segunda equipe para executar a “sanção” contra o mesmo. A ditadura chilena de Pinochet realizou as principais ações dessa terceira fase da Operação Condor, planejando e executando assassinatos na Europa e nos Estados Unidos (CHILBOM, 1976).

Além do Chile, outros países realizaram operações de busca e apreensão de subversivos na Europa e EUA. Um exemplo disso é o Plano Piloto Paris, orquestrado pela Argentina em cooperação com França em 1977. O plano era uma combinação de ações repressivas entre os governos argentino e francês. Os objetivos do plano eram melhorar a imagem da Argentina na Europa, abrir um espaço político dentro dos meios de comunicação para favorecer o projeto político de Massera, detectar militantes e dirigentes populares que estivessem no exterior. O plano era de caráter clandestino e realizava um trabalho parale-lo ao do Centro de Difusion Argentino, criado mediante decreto do Ministério de Relações Exteriores, comandado pelo Vice Almirante Montes. A marinha controlava a Chancelaria Argentina. Na produção do plano para o Centro de Difusão de Paris participaram: Vice-Almirante Montes (Ministro de Relações Exteriores), Capitão Gualter Allara (subsecretário de relações exteriores, Capitão Perez Froio (Sub-Secretário de Imprensa do Ministro de Relações Exteriores), Capitão Jorge Acosta (Chefe da GT 3.3/9), Capitão Jorge Perren (Chefe de Operações da GT 3.3/2), Tenente Pernía (Oficial da Inteligência da GT 3.3/2)14.

5.5. A DITADURA CIVIL E MILITAR NO URUGUAI

No mesmo ano que se instalou a ditadura militar no Chile, o Uruguai também sofreu um golpe militar. Assim como as anteriores, a ideologia do-minante era a Doutrina de Segurança Nacional que norteou o golpe militar em 27 de junho de 1973 e depôs o presidente civil Juan Maria Bordaberry.

14 FUNDO CLAMOR – CEDIC – PUC/ SP, caixa 13, plástico 7.

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Diferente das demais ditaduras, a ditadura uruguaia teve um aspecto civil e militar, tendo em vista a proximidade política do presidente civil Bordaberry com as forças armadas. Naquele ano, com o apoio das forças armadas, o presi-dente uruguaio fecha o Senado, a Câmara dos Deputados e anuncia a criação de Conselho de Estado, substituindo o parlamento. O pretexto para a aplica-ção dessas ações era a necessidade de realizar uma reforma constitucional que enfatizasse os princípios republicanos e democráticos no Uruguai. Em função dessa estratégia, a Convenção Nacional dos Trabalhadores foi colocada na ile-galidade e seus dirigentes foram presos.

A ditadura uruguaia se estendeu até 28 de fevereiro de 1985, após um lento processo de abertura política. Durante os anos de ditadura civil e militar o Uruguai foi marcado pela proibição dos partidos políticos, a ilegalidade dos sindicatos, a censura à imprensa, a destruição das organizações sociais e a perseguição, prisão, sequestro, desaparecimento e eliminação dos opositores ao regime.

Um dos casos mais famosos de desaparecimento é o sequestro dos uru-guaios em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Em novembro de 1978, agentes do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), de Porto Alegre ajuda-ram oficiais da Companhia de Contra-Informações do Exército do Uruguai a sequestrarem Universindo Diaz, Lilian Celiberti e seus dois filhos, Camilo e Francesca. Lilian e Universindo, que eram integrantes de organização de esquerda no Uruguai, estavam exilados no Brasil, preparando um dossiê de denúncia sobre violações dos direitos humanos no Uruguai. Os quatros foram detidos em seu apartamento pela força policial uruguaia, para aguardar a chegada de outros “supostos” subversivos. A operação de sequestro fracassou quando dois jornalistas brasileiros chegaram ao apartamento das vítimas e defrontaram com os policiais e os uruguaios. Os jornalistas denunciaram o sequestro e com a divulgação do caso na imprensa, o fato ganhou repercussão nacional e internacional15.

As experiências ditatoriais nos ensinaram a lutar pela aplicação das leis e regulamentos universais, capazes de proteger os direitos humanos de todos os cidadãos, de forma indistinta, e de garantir-lhes sua vida, liberdade e pro-priedade. Como no Brasil, a existência de regimes autoritários no Cone Sul provocou a existência de repressão, exílios e prisões. Tais acontecimentos le-varam à reação das sociedades civis que exprimiram seu descontentamento de

15 Sobre esse assunto consultar: PADRÓS, 2005; REIS, 2012.

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diversas formas, dentre elas: as manifestações de rua, os movimentos estudan-tis, a luta armada, as organizações de esquerda, os movimentos pela anistia, os movimentos de familiares e desaparecidos políticos, os movimentos em defesa dos direitos humanos, as Madres e Abuelas de Praza de Mayo, os inte-grantes do grupo Clamor.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O motivo que nos leva a realização deste estudo surgiu da constatação de que, apesar do incentivo do governo federal brasileiro no processo de resgate da memória histórica, sobretudo do período do Regime Militar Brasileiro, ainda são muitos os obstáculos e preconceitos que integram o cotidiano de investigações e pesquisas acadêmicas na área. Acreditamos que o resgate do conteúdo deste Fundo e de outros semelhantes é crucial para percebermos a política de cooperação adotada entre os países do Cone Sul e Brasil, bem como o protagonismo brasileiro nas ações de repressão, troca de prisioneiros e treinamento em áreas de inteligência e técnicas de interrogatórios.

A repressão militar no Brasil e nos países do Cone Sul consistia na ins-titucionalização da tortura e das técnicas de interrogatório, bem como no de-senvolvimento de ações e propagandas que tornavam visível a existência do aparato repressivo no país. Neste sentido, além da repressão física, os grupos de oposição aos regimes militares conviviam com uma constante intimidação ideológica e psicológica, promovida pelas campanhas de repressão.

Na lógica dos regimes ditatoriais implantados no Brasil e nos países do Cone Sul, ser delator a serviço da ditadura significava ser patriota e defender a nação. A assimilação da Doutrina de Segurança Nacional pelos militares che-gou a adotar o nacionalismo como sinônimo de anticomunismo, como parte integrante da ideologia capitalista da Guerra Fria promovida pelos Estados Unidos. A Aliança para o Progresso, firmada nos anos de 1960, pelo presi-dente John F. Kennedy e os demais países da América do Sul, deu um impulso econômico para os governos militares desses países, tornando seus governos aliados imponderáveis dos Estados Unidos.

A originalidade da pesquisa encontra-se na produção de um trabalho aca-dêmico que busque analisar as informações contidas no Fundo Clamor e no Arquivo do Terror como contribuição para o resgate da memória histórica do período de autoritarismo político e militar nos países do Cone Sul e no Brasil, sobretudo no diz respeito ao sequestro, desaparecimento e apropriação de

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identidades de centenas de crianças e adolescentes, filhas e filhos de opositores políticos dos regimes ditatoriais instalados nos países do Cone Sul e no Brasil.

Acreditamos que a reconstituição da memória deste período (1970-199), permitirá uma pesquisa fundamental para a recuperação de uma his-tória emudecida pelos discursos autoritários dos órgãos da repressão polí-tica e militar.

Portanto, se trata de uma pesquisa sobre as razões, paixões e desejos implícitos na luta de pessoas em defesa dos direitos humanos de refugiados que, devido as suas convicções políticas, foram usurpados de seus direitos humanos e de cidadãos, em um período de autoritarismo político. Relatar essa história é contar casos de lutas em defesa dos direitos humanos, mas tam-bém de casos de usurpação desses direitos, com a utilização clandestina, mas explícita, de métodos de barbárie, de violência física, psicológica e cultural, capaz de gerar uma cultura do medo alimentada pelo terrorismo de Estado vigente nesses países. Contar essa história é oferecer às gerações presentes e futuras a chance de conhecer seu passado, seus dirigentes, sua força armada, cuja função máxima é a defesa da pátria. Conhecer essa história é garantir o não esquecimento de fatos que desonraram a humanidade, que alimentaram o silêncio e a inação política e social. Recordar esses fatos é oferecer à socieda-de a chance de conhecer seu passado, aprender com ele e, a partir disso, dese-nhar o seu futuro. Afinal, segundo a psicóloga Eclea Bosi “um dos mais cruéis exercícios da opressão é a espoliação das lembranças” (BOSI, 1979, 362).

REFERÊNCIAS

1. ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1989.

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Recebido em: 17/09/2014

Aprovado em: 28/10/2014