memÓrias do cativeiro e do jongo no...

15
1 MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALE HISTÓRICO DO RIO PARAÍBA DO SUL SÃO PAULO 1 . Diego da Costa Vitorino (Fundação da UFSCar) Dulce Consuelo Andreatta Whitaker (UNESP FCL-Ar. e UNIARA) Introdução: Esta pesquisa, feita através de observação direta e contato próximo com os sujeitos participantes, foi uma tentativa de captar a força e a persistência da cultura afrobrasileira, que permanece na memória como marca de identidade. Para isso, nós desenvolvemos uma etnografia que teve como lócus a educação na escola e na comunidade de uma pequena cidade chamada Bananal, localizada no Estado de São Paulo 2 . Nesse sentido, não nos interessa aqui evocar a contribuição dos negros à cultura hegemônica, como seria, portanto, trazer para a discussão os grandes intelectuais negros que, apesar de importantes, sem dúvida, se ocidentalizaram e, alguns, podem chegar a ser literalmente branqueados, como foi o caso de Machado de Assis em algumas reproduções fotográficas. Também não interessou-nos a contribuição afroamericana e africana que necessitou do sincretismo para sobreviver dentro da cultura hegemônica, tal foi o caso da religião e da música popular. São aspectos importantes, mas bastante enfatizados e não só no senso comum, como também em trabalhos científicos e se apresentam como as “contribuições” afrobrasileira, que “desaparecem” no turbilhão histórico que acelera a cultura. Procuramos a resistência e, neste contexto, Bananal, situada no Vale Histórico do Rio Paraíba do Sul, se apresentou como um cenário possível. Uma hipótese testada nesta pesquisa está expressa no título de minha tese de doutoramento: “Um Divórcio entre a Escola e a Comunidade? Bananal/SP um “laboratório” a céu aberto no Vale Histórico do Rio Paraíba do Sul” (VITORINO; 2014), desenvolvida sob a orientação de Dulce Whitaker. A hipótese acabou se tornando uma questão de tese, o que nos levou a identificá-la pela noção do divórcio entre a instituição escolar e a comunidade. 1 V ENADIR, GT 8 – Festejos, rituais e a salvaguarda dos direitos culturais. 2 Segundo dados do Censo Populacional de IBGE (2010), a população de Bananal era de 10.223 habitantes na época. Está situada como cidade da Região Administrativa de São José dos Campos, Estado de São Paulo. Disponível em: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=350490&search=sao-paulo|bananal (Acesso em 03.08.17)

Upload: others

Post on 03-Dec-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

1

MEMOacuteRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALE

HISTOacuteRICO DO RIO PARAIacuteBA DO SUL ndash SAtildeO PAULO1

Diego da Costa Vitorino (Fundaccedilatildeo da UFSCar)

Dulce Consuelo Andreatta Whitaker (UNESP ndash FCL-Ar e UNIARA)

Introduccedilatildeo

Esta pesquisa feita atraveacutes de observaccedilatildeo direta e contato proacuteximo com os sujeitos

participantes foi uma tentativa de captar a forccedila e a persistecircncia da cultura afrobrasileira que

permanece na memoacuteria como marca de identidade Para isso noacutes desenvolvemos uma

etnografia que teve como loacutecus a educaccedilatildeo na escola e na comunidade de uma pequena cidade

chamada Bananal localizada no Estado de Satildeo Paulo2

Nesse sentido natildeo nos interessa aqui evocar a contribuiccedilatildeo dos negros agrave cultura

hegemocircnica como seria portanto trazer para a discussatildeo os grandes intelectuais negros que

apesar de importantes sem duacutevida se ocidentalizaram e alguns podem chegar a ser

literalmente branqueados como foi o caso de Machado de Assis em algumas reproduccedilotildees

fotograacuteficas

Tambeacutem natildeo interessou-nos a contribuiccedilatildeo afroamericana e africana que necessitou do

sincretismo para sobreviver dentro da cultura hegemocircnica tal foi o caso da religiatildeo e da

muacutesica popular Satildeo aspectos importantes mas bastante enfatizados ndash e natildeo soacute no senso

comum como tambeacutem em trabalhos cientiacuteficos ndash e se apresentam como as ldquocontribuiccedilotildeesrdquo

afrobrasileira que ldquodesaparecemrdquo no turbilhatildeo histoacuterico que acelera a cultura Procuramos a

resistecircncia e neste contexto Bananal situada no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul se

apresentou como um cenaacuterio possiacutevel

Uma hipoacutetese testada nesta pesquisa estaacute expressa no tiacutetulo de minha tese de

doutoramento ldquoUm Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um ldquolaboratoacuteriordquo a

ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sulrdquo (VITORINO 2014) desenvolvida sob a

orientaccedilatildeo de Dulce Whitaker A hipoacutetese acabou se tornando uma questatildeo de tese o que nos

levou a identificaacute-la pela noccedilatildeo do divoacutercio entre a instituiccedilatildeo escolar e a comunidade

1 V ENADIR GT 8 ndash Festejos rituais e a salvaguarda dos direitos culturais

2 Segundo dados do Censo Populacional de IBGE (2010) a populaccedilatildeo de Bananal era de 10223 habitantes na

eacutepoca Estaacute situada como cidade da Regiatildeo Administrativa de Satildeo Joseacute dos Campos Estado de Satildeo Paulo Disponiacutevel em httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplang=ampcodmun=350490ampsearch=sao-paulo|bananal (Acesso em 030817)

2

Poderiacuteamos afirmar que existiria na escola de Bananal como na maioria dos sistemas

de ensino a ideia de que ela deva romper com os saberes populares Seraacute que a escola

tambeacutem acreditaria na ideia de que a construccedilatildeo do conhecimento socialmente valorizado se

encontra apenas nos livros e na cultura dita ldquoeruditardquo e que se constroacutei somente atraveacutes da

leitura dos claacutessicos Entender a relaccedilatildeo escola e comunidade foi fundamental para a

elaboraccedilatildeo do estudo realizado

Romper com a cultura popular eacute o que propotildeem alguns pedagogos brasileiros de

renome entendendo que a escola deveria fornecer aos filhos das camadas de trabalhadores

todos os conteuacutedos que estatildeo no alcance das classes abastadas o que facilitaria (em suas

concepccedilotildees) a integraccedilatildeo dessas camadas na sociedade de classes

Diante de tais dilemas haacute outras correntes teoacutericas sobretudo a pedagogia

revolucionaacuteria de Paulo Freire que colocou em questatildeo o processo de alfabetizaccedilatildeo dos

grupos subalternos na Ameacuterica Latina e em alguns paiacuteses Africanos e ainda hoje se

apresenta como uma pedagogia capaz de desvelar as contradiccedilotildees apresentadas pela dialeacutetica

opressor X oprimido

O que se observa eacute que inserida em uma realidade riquiacutessima tanto pelo ponto de

vista da natureza preservada como pelas memoacuterias subalternas como as dos negros a

educaccedilatildeo escolar de Bananal (formal e puacuteblica) se apresenta distante burocratizada e alheia

aos elementos da comunidade que poderiam formar um curriacuteculo atraente e eficiente no

ensino-aprendizagem das crianccedilas

As praacuteticas tradicionais presentes na comunidade satildeo sistematicamente ignoradas

pela escola no processo de ensino-aprendizagem de seus estudantes aleacutem de algumas vezes

serem consideradas como crendices mitos folclore ou saberes inexpressivos para a

escolarizaccedilatildeo As memoacuterias sociais dos negros e dos povos da floresta (como os da Serra da

Bocaina) satildeo muitas vezes descartadas pela escola de ensino fundamental em Bananal

As memoacuterias do cativeiro

Inicialmente para entendermos como essas memoacuterias do cativeiro se constituiacuteram

precisamos compreender os desdobramentos decorrentes das rotas do traacutefico negreiro Sul

Atlacircntica na formaccedilatildeo demograacutefica e cultural desta parte do Estado de Satildeo Paulo Apesar dos

historiadores admitirem que os dados sobre o traacutefico de africanos para o Brasil entre os

seacuteculos XVI e XVII satildeo pouco consistentes haacute que reconhecer a relaccedilatildeo profunda entre a

Aacutefrica Central Ocidental (e quem sabe a Aacutefrica Central Oriental) e o nosso paiacutes

(ALENCASTRO 2000 SLENES 2007 KNIGHT 2011 VANSINA 2011)

3

Como se pode constatar no iniacutecio da obra de Alencastro (2000) a formaccedilatildeo do Brasil

ocorrou fora do territoacuterio nacional mais precisamente no eixo Sul Atlacircntico

Desde o final do seacuteculo XVI surge um espaccedilo aterritorial um arquipeacutelago

lusoacutefono composto dos enclaves da Ameacuterica portuguesa e das feitorias de

Angola Eacute daiacute que emerge o Brasil no seacuteculo XVIII Natildeo se trata ao longo

dos capiacutetulos de estudar de forma comparativa as colocircnias portuguesas no

Atlacircntico O que se quer ao contraacuterio eacute mostrar como essas duas partes

unidas pelo oceano se completam num soacute sistema de exploraccedilatildeo colonial

cuja singularidade ainda marca profundamente o Brasil contemporacircneo

(ALENCASTRO 2000 paacuteg 9) (Grifo meu)

Com isso queremos estabelecer as conexotildees mais especiacuteficas da Aacutefrica central

ocidental e a formaccedilatildeo de uma cosmogonia negra no Brasil As historiografias aqui

referenciadas satildeo o alicerce para a compreensatildeo de histoacuterias que se formaram a partir da

tradiccedilatildeo oral dos grupos africanos traficados pelas rotas oceacircnicas em direccedilatildeo agrave Ameacuterica

Vansina (2011) afirma que os brasileiros passaram a dominar totalmente o comeacutercio

de escravos em Angola de 1648 a 1730 Aleacutem do tracircnsito de pessoas e ideias da Aacutefrica para o

Novo Mundo muitas plantas saiacuteam da Ameacuterica para a Aacutefrica confirma o autor milho

amendoim mandioca feijatildeo e tabaco Estabelecia-se portanto uma lucrativa rota comercial

e sobretudo criava-se entre o Brasil e a Aacutefrica central ocidental uma dependecircncia econocircmica

e social sem igual

Segundo o autor desde o fim do seacuteculo XVII a coroa portuguesa jaacute natildeo possuiacutea o

controle do comeacutercio de escravos que ficou na matildeo de quimbares ovimbares (melhor

identificados como afro-portugueses) aleacutem do domiacutenio dos brasileiros em Luanda e

Benguela

Com o decliacutenio dos Estados africanos no seacuteculo XVIII houve o fortalecimento das

redes comerciais o que possibilitou o traacutefico de mais de 6 milhotildees de africanos para outros

continentes somente neste seacuteculo ndash dos quais 18 milhatildeo vieram para o Brasil ou seja 313

(VANSINA 2011)

O mesmo autor considera que a mortalidade atingia de 10 a 15 dos que embarcavam

rumo ao Novo Mundo ndash a oscilaccedilatildeo do percentual estaacute atrelada ao grau de amontoamento em

que os africanos eram transportados Com base nesses dados sobre o traacutefico o autor eacute enfaacutetico

ao afirmar que Angola dependia economicamente do Brasil e por volta de 1800 88 dos

rendimentos desta naccedilatildeo africana provinham do traacutefico de pessoas para o territoacuterio brasileiro

Jaacute Knight (2011) um africanista que estudou a diaacutespora nos explica que sendo

escravos ou homens livres os africanos e afro-americanos contribuiacuteram para domesticar

grande parte de toda a extensatildeo selvagem do continente americano chegando a afirmar

4

ldquoQualquer que tenha sido o nuacutemero de africanos em tal ou qual paiacutes a Aacutefrica imprimiu na

Ameacuterica a sua marca profunda e indeleacutevelrdquo (KNIGHT 2011 877) (Grifo meu)

Satildeo estas as marcas que sobrevivem em Bananal-SP Para Knight (2011) a diaacutespora

africana foi muito maior na Ameacuterica que na Europa e na Aacutesia Na Ameacuterica no iniacutecio do

seacuteculo XIX a populaccedilatildeo de afro-americanos chegava a 85 milhotildees entre homens livres e

escravos Desses dois milhotildees encontravam-se nos EUA outros dois milhotildees nas Antilhas

E segundo o mesmo autor o Brasil abrigava 25 milhotildees no seacuteculo XIX e na Ameacuterica

espanhola continental o montante chegava a 13 milhatildeo de afro-americanos Para Knight

(2011) os africanos influenciaram fortemente as regiotildees rurais de grande latifuacutendio e toda a

margem atlacircntica da Ameacuterica desenvolvendo os mais variados tipos de produccedilatildeo e

desempenharam todos os papeacuteis sociais

Eles foram pioneiros e conquistadores piratas e bucaneiros gauacutechos

llaneros bandeirantes proprietaacuterios de escravos negociantes domeacutesticos e

escravos Eles melhor se distinguiram em certos ofiacutecios comparativamente a

outros mas no entanto o acesso agraves mais elevadas posiccedilotildees sociais lhes fora

interditado pela lei Apoacutes o seacuteculo XVII entretanto os africanos eram os

uacutenicos escravos legais nas duas Ameacutericas e as populaccedilotildees africanas no seio

das sociedades americanas estariam predestinadas a carregar durante

longo periacuteodo os estigmas desta condiccedilatildeo Antes da aboliccedilatildeo definitiva da

escravatura no Brasil em 1888 a maioria dos africanos das Ameacutericas era

escrava e eram eles quem cumpriam a maior parte dos trabalhos manuais e

dos serviccedilos que exigiam um esforccedilo fiacutesico frequentemente estafante sem os

quais as colocircnias possessotildees e naccedilotildees natildeo teriam sido capazes de alcanccedilar

a prosperidade econocircmica (KNIGHT 2011 877)

Como jaacute afirmamos os dados da escravidatildeo que abasteceram a Ameacuterica satildeo bastante

controversos entretanto Knight (2011) afirma que P D Curtin eacute quem melhor oferece uma

imagem global deste fluxo chegando a uma cifra de 10 milhotildees de escravizados Retificando

este total haacute a pesquisa de E D Genovese entre outros pesquisadores que aumentou esta

estimativa para 2 a 3 ou seja cerca de 12 a 13 milhotildees

Independente do total o Brasil foi o maior importador chegando a 38 dos africanos

escravizados vindos para a Ameacuterica Poreacutem antes da introduccedilatildeo de parte desses africanos

escravizados na cidade de Bananal e em toda parte leste do Estado de Satildeo Paulo para o

trabalho na lavoura de cafeacute a demografia na regiatildeo era bastante diferente

Bananal e o Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul (Silveiras Areias Arapeiacute Satildeo Joseacute

do Barreiro) foi a primeira regiatildeo a produzir cafeacute no Estado de Satildeo Paulo afirma Motta

(1999) No fim do seacuteculo XVIII eram poucas as propriedades que produziam cafeacute na regiatildeo e

a agricultura desenvolvida era para subsistecircncia produzia-se milho mandioca galinhas e

5

porcos Antes no seacuteculo XVI essa regiatildeo era ocupada por iacutendios Puris de liacutengua Jecirc

(MOTTA 1999 GRACcedilA 2006)

Foi nas lavouras de cafeacute que muitos agricultores descendentes de pobres habitantes

que povoaram o Vale do Paraiacuteba paulista no seacuteculo XVII enriqueceram entre as deacutecadas de

1800 a 1830 formando algumas das principais fortunas da eacutepoca ndash chegando alguns a se

tornarem barotildees no periacuteodo da histoacuteria Imperial do Brasil cujos tiacutetulos foram outorgados por

Dom Pedro II

Foi atraveacutes da anaacutelise dos dados sobre a vida na senzala que possibilitou Motta (1999)

criar a noccedilatildeo de corpos escravos Segundo o autor ndash pautando-se na lista nominativa de 1801

ndash a cidade de Bananal natildeo contava com grandes planteacuteis no iniacutecio do seacuteculo XIX Para ele a

evoluccedilatildeo dos padrotildees de propriedade de cativos seguiu os efeitos da maior produtividade do

cafeacute que ocorrera no iniacutecio da segunda metade do seacuteculo XIX (MOTTA 1999 109)

Os dados do autor colocam em relaccedilatildeo economia e a demografia da cidade no periacuteodo

De 1830 a 1850 Motta (1999) afirma ser o apogeu da produtividade de cafeacute e do poder

econocircmico dos cafeicultores de Bananal E esses dados nos levaram a um argumento de tese

importante a grande presenccedila de famiacutelias negras em Bananal (maior que a de outras cidades

da regiatildeo como Lorena) foi o que possibilitou com que as memoacuterias do cativeiro e do Jongo

ainda permanecessem guardadas nas memoacuterias de seus habitantes

Na contramatildeo da histoacuteria oficial que ilustra a vida da elite cafeeira no seacuteculo XIX a

bibliografia utilizada aqui tem como objetivo situar a vida daqueles que foram excluiacutedos de

educaccedilatildeo melhores condiccedilotildees de vida e dos salotildees de baile imperial As memoacuterias do

cativeiro e do Jongo trazem agrave tona a cosmogonia trazida pelos negros na diaacutespora a partir do

prisma da musicalidade e dos saberes que nos remete sempre ao contexto da senzala no

seacuteculo XIX

A senzala e o terreiro de cafeacute foram os locais onde a visatildeo de mundo desses corpos

escravizados foi transmitida atraveacutes da oralidade3 Por isso ao inveacutes de analisar a vida nos

salotildees nobres construiacutedos para o baile das elites do Impeacuterio propomos o inverso analisar a

vida da comunidade pobre e negra ontem e hoje

A famiacutelia negra e a manutenccedilatildeo da memoacuteria social

Para conhecermos mais sobre as memoacuterias do cativeiro recorri agrave histoacuteria oral relatada

pela histoacuteria de vida de alguns interlocutores descendentes de famiacutelias negras de Bananal

3 As religiotildees afrobrasileiras natildeo foram analisadas na tese de Vitorino (2014) O terreiro que se analisou foi o

quintal da propriedade rural cenaacuterio de festejos e da cultura popular e natildeo o Terreiro de Umbanda ou de Candombleacute

6

cujos saberes e tradiccedilotildees foram aprendidos com as geraccedilotildees mais velhas e guardados na

memoacuteria

Uma interlocutora nascida em Bananal no momento da pesquisa com 78 anos narrou-

nos as histoacuterias de sua avoacute materna que nasceu livre devido agrave lei do Ventre Livre e faleceu

aos 105 anos proacuteximo a fazenda escravocrata onde seus familiares tinham sido escravos Ao

trazer agrave tona a memoacuteria de sua avoacute que viveu na fazenda Coqueiros dona Tereza resgatou as

memoacuterias do cativeiro a visatildeo de mundo dos africanos e afrobrasileiros ou seja a

cosmogonia e as condiccedilotildees de vida que esses escravizados enfrentavam nas lavouras de cafeacute

As memoacuterias do cativeiro ndash ainda hoje se mantecircm nas memoacuterias dos sujeitos da

comunidade e pode ser acessada pela histoacuteria oral Tais memoacuterias soacute satildeo possiacuteveis de se

resgatar pelo registro das narrativas das famiacutelias negras uma vez que a literatura sobre o

periacuteodo colonial direcionou na maioria das vezes seus esforccedilos a conhecer a vida da classe

dominante da eacutepoca e natildeo a histoacuteria de vida dos corpos escravos

Para isso recorremos agrave histoacuteria de vida da avoacute materna de dona Tereza e alguns relatos

de dona Mariinha Basiacutelio sobre Jorge Basiacutelio seu avocirc paterno tambeacutem morada de Bananal

Para a anaacutelise das memoacuterias do cativeiro da senzala e do terreiro no Brasil colonial agrego

aos dados historiograacuteficos acima expostos essas duas narrativas sobre a escravidatildeo coletadas

em 17 de marccedilo e 14 de maio de 2012 respectivamente

Os avoacutes maternos de dona Tereza se chamavam Camila Maria Joseacute e Militatildeo Miguel

de Oliveira sua bisavoacute foi Pracide Maria Joseacute e seu bisavocirc era Antocircnio Numa passagem esta

muito mais significativa em sentidos e percepccedilotildees da memoacuteria do cativeiro dona Tereza

conta como foi o final da vida de sua bisavoacute

Inicialmente soubemos desta histoacuteria pela atual proprietaacuteria da fazenda Coqueiros

Maria Elizabeth Brum A partir destas informaccedilotildees chegamos a Maria Tereza de Paula (dona

Tereza) que narrou as memoacuterias da avoacute sobre a sua bisavoacute Dona Tereza conta-nos como foi

o final da vida de sua bisavoacute

Essa aiacute que ela contava [a histoacuteria] era da matildee dela Eacute do tempo da minha

bisavoacute que trabalhava laacute [fazenda Coqueiros] Ela foi cozinheira laacute muito

tempo Entatildeo dizia que todo mundo gostava dela tanto que eles natildeo

queriam outra cozinheira Daiacute ela engravidou e ganhou o neneacutem a noite No

outro dia ela natildeo foi trabalhar Mandou entatildeo avisar que ela natildeo ia

trabalhar Mas a patroa disse ldquo-Ah natildeo Tem que vir Porque vocecirc tem que

vir fazer a comidardquo Mas ela natildeo estava aguentando Fizeram ela ir e ela foi

Deixou o neneacutem e foi Chegando laacute comeccedilou a se sentir mal e se desmontou

laacute na cozinha Punha ela de peacute e ela caiacutea Aiacute os fazendeiros disseram assim

ldquo-Se vocecirc natildeo estaacute aguentando Quer morrer Entatildeo morrerdquo Aiacute os patrotildees

dela comeccedilaram a bater nela e naquele tempo natildeo podia falar nada Como

ela estava fraquinha acabou morrendo Depois enterrou ela laacute Natildeo tem

7

uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que

enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar

dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e

tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse

menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha

avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)

Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras

pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de

Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma

dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles

A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir

dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de

manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos

castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma

simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a

referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm

correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social

(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria

obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo

dialeacutetica

Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu

status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da

realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de

protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores

rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de

transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio

Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade

tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e

afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura

popular

O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os

corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de

construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do

latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor

que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande

8

Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais

passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a

estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade

Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas

assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados

qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a

seguir

Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como

Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio

desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de

Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as

memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores

O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio

eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []

E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor

antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na

hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela

acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele

chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha

nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai

natildeo deixou ele ensinar

Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que

seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento

das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja

eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com

os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu

trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo

Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento

da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa

que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da

interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele

tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a

reza proibida

Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de

inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas

vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com

a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou

correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute

9

verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai

tinha medo

O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e

frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo

era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber

mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo

Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta

(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por

onde ou como comeccedilar

Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem

numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de

longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os

homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho

onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens

chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu

siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc

todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias

estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na

beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram

ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava

Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele

[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os

homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei

quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu

pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele

nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele

(Grifos meus)

Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc

benzia muitas pessoas

Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou

muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele

era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem

para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal

do vizinho comer umas galinhas [Risos]

Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo

Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos

Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A

gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos

amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que

ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava

sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele

casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho

da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz

Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se

ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser

10

amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele

naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda

que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma

causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam

mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha

cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma

rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou

a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso

muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e

foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado

Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia

acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava

com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha

avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)

A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza

pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos

de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir

das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo

Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os

entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a

construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de

dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de

organizaccedilatildeo social e poliacutetica

Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e

afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as

memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura

tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria

no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias

As memoacuterias do Jongo em Bananal

A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por

homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima

a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de

bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de

candongueiro

Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre

jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados

pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E

o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar

11

danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato

entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores

Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma

uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos

terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da

aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros

disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo

O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo

da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto

entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem

que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa

conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine

dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em

Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes

O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns

pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)

Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de

pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio

imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura

PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o

Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4

Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde

ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que

em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens

cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo

Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do

Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical

negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela

identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de

praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001

166-167)

4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)

httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf

12

O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de

Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que

desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza

e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra

Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)

Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de

consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a

forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre

o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5

Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas

rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa

interlocutora canta um ponto

Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute

estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto

Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por

exemplo

Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo

Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]

E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando

outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens

era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando

Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando

das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A

entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como

algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se

recordar do segundo ponto

[cantando]

ldquoBate tambor grande

Repilica o candongueiro

Tambor grande eacute minha cama

O pequeno eacute meu travesseirordquo

Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela

arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto

5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como

o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente

13

para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito

para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas

As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)

memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem

de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre

1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das

manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros

das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central

Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde

aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do

periacuteodo

Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres

tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim

Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia

pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu

natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque

tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas

noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito

O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de

subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos

espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas

tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados

do seacuteculo XIX

O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que

compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a

senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se

oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil

Imperial (1808 ndash 1889)

Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES

2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de

Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos

santos catoacutelicos como afirma dona Tereza

Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento

da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que

satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase

igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 2: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

2

Poderiacuteamos afirmar que existiria na escola de Bananal como na maioria dos sistemas

de ensino a ideia de que ela deva romper com os saberes populares Seraacute que a escola

tambeacutem acreditaria na ideia de que a construccedilatildeo do conhecimento socialmente valorizado se

encontra apenas nos livros e na cultura dita ldquoeruditardquo e que se constroacutei somente atraveacutes da

leitura dos claacutessicos Entender a relaccedilatildeo escola e comunidade foi fundamental para a

elaboraccedilatildeo do estudo realizado

Romper com a cultura popular eacute o que propotildeem alguns pedagogos brasileiros de

renome entendendo que a escola deveria fornecer aos filhos das camadas de trabalhadores

todos os conteuacutedos que estatildeo no alcance das classes abastadas o que facilitaria (em suas

concepccedilotildees) a integraccedilatildeo dessas camadas na sociedade de classes

Diante de tais dilemas haacute outras correntes teoacutericas sobretudo a pedagogia

revolucionaacuteria de Paulo Freire que colocou em questatildeo o processo de alfabetizaccedilatildeo dos

grupos subalternos na Ameacuterica Latina e em alguns paiacuteses Africanos e ainda hoje se

apresenta como uma pedagogia capaz de desvelar as contradiccedilotildees apresentadas pela dialeacutetica

opressor X oprimido

O que se observa eacute que inserida em uma realidade riquiacutessima tanto pelo ponto de

vista da natureza preservada como pelas memoacuterias subalternas como as dos negros a

educaccedilatildeo escolar de Bananal (formal e puacuteblica) se apresenta distante burocratizada e alheia

aos elementos da comunidade que poderiam formar um curriacuteculo atraente e eficiente no

ensino-aprendizagem das crianccedilas

As praacuteticas tradicionais presentes na comunidade satildeo sistematicamente ignoradas

pela escola no processo de ensino-aprendizagem de seus estudantes aleacutem de algumas vezes

serem consideradas como crendices mitos folclore ou saberes inexpressivos para a

escolarizaccedilatildeo As memoacuterias sociais dos negros e dos povos da floresta (como os da Serra da

Bocaina) satildeo muitas vezes descartadas pela escola de ensino fundamental em Bananal

As memoacuterias do cativeiro

Inicialmente para entendermos como essas memoacuterias do cativeiro se constituiacuteram

precisamos compreender os desdobramentos decorrentes das rotas do traacutefico negreiro Sul

Atlacircntica na formaccedilatildeo demograacutefica e cultural desta parte do Estado de Satildeo Paulo Apesar dos

historiadores admitirem que os dados sobre o traacutefico de africanos para o Brasil entre os

seacuteculos XVI e XVII satildeo pouco consistentes haacute que reconhecer a relaccedilatildeo profunda entre a

Aacutefrica Central Ocidental (e quem sabe a Aacutefrica Central Oriental) e o nosso paiacutes

(ALENCASTRO 2000 SLENES 2007 KNIGHT 2011 VANSINA 2011)

3

Como se pode constatar no iniacutecio da obra de Alencastro (2000) a formaccedilatildeo do Brasil

ocorrou fora do territoacuterio nacional mais precisamente no eixo Sul Atlacircntico

Desde o final do seacuteculo XVI surge um espaccedilo aterritorial um arquipeacutelago

lusoacutefono composto dos enclaves da Ameacuterica portuguesa e das feitorias de

Angola Eacute daiacute que emerge o Brasil no seacuteculo XVIII Natildeo se trata ao longo

dos capiacutetulos de estudar de forma comparativa as colocircnias portuguesas no

Atlacircntico O que se quer ao contraacuterio eacute mostrar como essas duas partes

unidas pelo oceano se completam num soacute sistema de exploraccedilatildeo colonial

cuja singularidade ainda marca profundamente o Brasil contemporacircneo

(ALENCASTRO 2000 paacuteg 9) (Grifo meu)

Com isso queremos estabelecer as conexotildees mais especiacuteficas da Aacutefrica central

ocidental e a formaccedilatildeo de uma cosmogonia negra no Brasil As historiografias aqui

referenciadas satildeo o alicerce para a compreensatildeo de histoacuterias que se formaram a partir da

tradiccedilatildeo oral dos grupos africanos traficados pelas rotas oceacircnicas em direccedilatildeo agrave Ameacuterica

Vansina (2011) afirma que os brasileiros passaram a dominar totalmente o comeacutercio

de escravos em Angola de 1648 a 1730 Aleacutem do tracircnsito de pessoas e ideias da Aacutefrica para o

Novo Mundo muitas plantas saiacuteam da Ameacuterica para a Aacutefrica confirma o autor milho

amendoim mandioca feijatildeo e tabaco Estabelecia-se portanto uma lucrativa rota comercial

e sobretudo criava-se entre o Brasil e a Aacutefrica central ocidental uma dependecircncia econocircmica

e social sem igual

Segundo o autor desde o fim do seacuteculo XVII a coroa portuguesa jaacute natildeo possuiacutea o

controle do comeacutercio de escravos que ficou na matildeo de quimbares ovimbares (melhor

identificados como afro-portugueses) aleacutem do domiacutenio dos brasileiros em Luanda e

Benguela

Com o decliacutenio dos Estados africanos no seacuteculo XVIII houve o fortalecimento das

redes comerciais o que possibilitou o traacutefico de mais de 6 milhotildees de africanos para outros

continentes somente neste seacuteculo ndash dos quais 18 milhatildeo vieram para o Brasil ou seja 313

(VANSINA 2011)

O mesmo autor considera que a mortalidade atingia de 10 a 15 dos que embarcavam

rumo ao Novo Mundo ndash a oscilaccedilatildeo do percentual estaacute atrelada ao grau de amontoamento em

que os africanos eram transportados Com base nesses dados sobre o traacutefico o autor eacute enfaacutetico

ao afirmar que Angola dependia economicamente do Brasil e por volta de 1800 88 dos

rendimentos desta naccedilatildeo africana provinham do traacutefico de pessoas para o territoacuterio brasileiro

Jaacute Knight (2011) um africanista que estudou a diaacutespora nos explica que sendo

escravos ou homens livres os africanos e afro-americanos contribuiacuteram para domesticar

grande parte de toda a extensatildeo selvagem do continente americano chegando a afirmar

4

ldquoQualquer que tenha sido o nuacutemero de africanos em tal ou qual paiacutes a Aacutefrica imprimiu na

Ameacuterica a sua marca profunda e indeleacutevelrdquo (KNIGHT 2011 877) (Grifo meu)

Satildeo estas as marcas que sobrevivem em Bananal-SP Para Knight (2011) a diaacutespora

africana foi muito maior na Ameacuterica que na Europa e na Aacutesia Na Ameacuterica no iniacutecio do

seacuteculo XIX a populaccedilatildeo de afro-americanos chegava a 85 milhotildees entre homens livres e

escravos Desses dois milhotildees encontravam-se nos EUA outros dois milhotildees nas Antilhas

E segundo o mesmo autor o Brasil abrigava 25 milhotildees no seacuteculo XIX e na Ameacuterica

espanhola continental o montante chegava a 13 milhatildeo de afro-americanos Para Knight

(2011) os africanos influenciaram fortemente as regiotildees rurais de grande latifuacutendio e toda a

margem atlacircntica da Ameacuterica desenvolvendo os mais variados tipos de produccedilatildeo e

desempenharam todos os papeacuteis sociais

Eles foram pioneiros e conquistadores piratas e bucaneiros gauacutechos

llaneros bandeirantes proprietaacuterios de escravos negociantes domeacutesticos e

escravos Eles melhor se distinguiram em certos ofiacutecios comparativamente a

outros mas no entanto o acesso agraves mais elevadas posiccedilotildees sociais lhes fora

interditado pela lei Apoacutes o seacuteculo XVII entretanto os africanos eram os

uacutenicos escravos legais nas duas Ameacutericas e as populaccedilotildees africanas no seio

das sociedades americanas estariam predestinadas a carregar durante

longo periacuteodo os estigmas desta condiccedilatildeo Antes da aboliccedilatildeo definitiva da

escravatura no Brasil em 1888 a maioria dos africanos das Ameacutericas era

escrava e eram eles quem cumpriam a maior parte dos trabalhos manuais e

dos serviccedilos que exigiam um esforccedilo fiacutesico frequentemente estafante sem os

quais as colocircnias possessotildees e naccedilotildees natildeo teriam sido capazes de alcanccedilar

a prosperidade econocircmica (KNIGHT 2011 877)

Como jaacute afirmamos os dados da escravidatildeo que abasteceram a Ameacuterica satildeo bastante

controversos entretanto Knight (2011) afirma que P D Curtin eacute quem melhor oferece uma

imagem global deste fluxo chegando a uma cifra de 10 milhotildees de escravizados Retificando

este total haacute a pesquisa de E D Genovese entre outros pesquisadores que aumentou esta

estimativa para 2 a 3 ou seja cerca de 12 a 13 milhotildees

Independente do total o Brasil foi o maior importador chegando a 38 dos africanos

escravizados vindos para a Ameacuterica Poreacutem antes da introduccedilatildeo de parte desses africanos

escravizados na cidade de Bananal e em toda parte leste do Estado de Satildeo Paulo para o

trabalho na lavoura de cafeacute a demografia na regiatildeo era bastante diferente

Bananal e o Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul (Silveiras Areias Arapeiacute Satildeo Joseacute

do Barreiro) foi a primeira regiatildeo a produzir cafeacute no Estado de Satildeo Paulo afirma Motta

(1999) No fim do seacuteculo XVIII eram poucas as propriedades que produziam cafeacute na regiatildeo e

a agricultura desenvolvida era para subsistecircncia produzia-se milho mandioca galinhas e

5

porcos Antes no seacuteculo XVI essa regiatildeo era ocupada por iacutendios Puris de liacutengua Jecirc

(MOTTA 1999 GRACcedilA 2006)

Foi nas lavouras de cafeacute que muitos agricultores descendentes de pobres habitantes

que povoaram o Vale do Paraiacuteba paulista no seacuteculo XVII enriqueceram entre as deacutecadas de

1800 a 1830 formando algumas das principais fortunas da eacutepoca ndash chegando alguns a se

tornarem barotildees no periacuteodo da histoacuteria Imperial do Brasil cujos tiacutetulos foram outorgados por

Dom Pedro II

Foi atraveacutes da anaacutelise dos dados sobre a vida na senzala que possibilitou Motta (1999)

criar a noccedilatildeo de corpos escravos Segundo o autor ndash pautando-se na lista nominativa de 1801

ndash a cidade de Bananal natildeo contava com grandes planteacuteis no iniacutecio do seacuteculo XIX Para ele a

evoluccedilatildeo dos padrotildees de propriedade de cativos seguiu os efeitos da maior produtividade do

cafeacute que ocorrera no iniacutecio da segunda metade do seacuteculo XIX (MOTTA 1999 109)

Os dados do autor colocam em relaccedilatildeo economia e a demografia da cidade no periacuteodo

De 1830 a 1850 Motta (1999) afirma ser o apogeu da produtividade de cafeacute e do poder

econocircmico dos cafeicultores de Bananal E esses dados nos levaram a um argumento de tese

importante a grande presenccedila de famiacutelias negras em Bananal (maior que a de outras cidades

da regiatildeo como Lorena) foi o que possibilitou com que as memoacuterias do cativeiro e do Jongo

ainda permanecessem guardadas nas memoacuterias de seus habitantes

Na contramatildeo da histoacuteria oficial que ilustra a vida da elite cafeeira no seacuteculo XIX a

bibliografia utilizada aqui tem como objetivo situar a vida daqueles que foram excluiacutedos de

educaccedilatildeo melhores condiccedilotildees de vida e dos salotildees de baile imperial As memoacuterias do

cativeiro e do Jongo trazem agrave tona a cosmogonia trazida pelos negros na diaacutespora a partir do

prisma da musicalidade e dos saberes que nos remete sempre ao contexto da senzala no

seacuteculo XIX

A senzala e o terreiro de cafeacute foram os locais onde a visatildeo de mundo desses corpos

escravizados foi transmitida atraveacutes da oralidade3 Por isso ao inveacutes de analisar a vida nos

salotildees nobres construiacutedos para o baile das elites do Impeacuterio propomos o inverso analisar a

vida da comunidade pobre e negra ontem e hoje

A famiacutelia negra e a manutenccedilatildeo da memoacuteria social

Para conhecermos mais sobre as memoacuterias do cativeiro recorri agrave histoacuteria oral relatada

pela histoacuteria de vida de alguns interlocutores descendentes de famiacutelias negras de Bananal

3 As religiotildees afrobrasileiras natildeo foram analisadas na tese de Vitorino (2014) O terreiro que se analisou foi o

quintal da propriedade rural cenaacuterio de festejos e da cultura popular e natildeo o Terreiro de Umbanda ou de Candombleacute

6

cujos saberes e tradiccedilotildees foram aprendidos com as geraccedilotildees mais velhas e guardados na

memoacuteria

Uma interlocutora nascida em Bananal no momento da pesquisa com 78 anos narrou-

nos as histoacuterias de sua avoacute materna que nasceu livre devido agrave lei do Ventre Livre e faleceu

aos 105 anos proacuteximo a fazenda escravocrata onde seus familiares tinham sido escravos Ao

trazer agrave tona a memoacuteria de sua avoacute que viveu na fazenda Coqueiros dona Tereza resgatou as

memoacuterias do cativeiro a visatildeo de mundo dos africanos e afrobrasileiros ou seja a

cosmogonia e as condiccedilotildees de vida que esses escravizados enfrentavam nas lavouras de cafeacute

As memoacuterias do cativeiro ndash ainda hoje se mantecircm nas memoacuterias dos sujeitos da

comunidade e pode ser acessada pela histoacuteria oral Tais memoacuterias soacute satildeo possiacuteveis de se

resgatar pelo registro das narrativas das famiacutelias negras uma vez que a literatura sobre o

periacuteodo colonial direcionou na maioria das vezes seus esforccedilos a conhecer a vida da classe

dominante da eacutepoca e natildeo a histoacuteria de vida dos corpos escravos

Para isso recorremos agrave histoacuteria de vida da avoacute materna de dona Tereza e alguns relatos

de dona Mariinha Basiacutelio sobre Jorge Basiacutelio seu avocirc paterno tambeacutem morada de Bananal

Para a anaacutelise das memoacuterias do cativeiro da senzala e do terreiro no Brasil colonial agrego

aos dados historiograacuteficos acima expostos essas duas narrativas sobre a escravidatildeo coletadas

em 17 de marccedilo e 14 de maio de 2012 respectivamente

Os avoacutes maternos de dona Tereza se chamavam Camila Maria Joseacute e Militatildeo Miguel

de Oliveira sua bisavoacute foi Pracide Maria Joseacute e seu bisavocirc era Antocircnio Numa passagem esta

muito mais significativa em sentidos e percepccedilotildees da memoacuteria do cativeiro dona Tereza

conta como foi o final da vida de sua bisavoacute

Inicialmente soubemos desta histoacuteria pela atual proprietaacuteria da fazenda Coqueiros

Maria Elizabeth Brum A partir destas informaccedilotildees chegamos a Maria Tereza de Paula (dona

Tereza) que narrou as memoacuterias da avoacute sobre a sua bisavoacute Dona Tereza conta-nos como foi

o final da vida de sua bisavoacute

Essa aiacute que ela contava [a histoacuteria] era da matildee dela Eacute do tempo da minha

bisavoacute que trabalhava laacute [fazenda Coqueiros] Ela foi cozinheira laacute muito

tempo Entatildeo dizia que todo mundo gostava dela tanto que eles natildeo

queriam outra cozinheira Daiacute ela engravidou e ganhou o neneacutem a noite No

outro dia ela natildeo foi trabalhar Mandou entatildeo avisar que ela natildeo ia

trabalhar Mas a patroa disse ldquo-Ah natildeo Tem que vir Porque vocecirc tem que

vir fazer a comidardquo Mas ela natildeo estava aguentando Fizeram ela ir e ela foi

Deixou o neneacutem e foi Chegando laacute comeccedilou a se sentir mal e se desmontou

laacute na cozinha Punha ela de peacute e ela caiacutea Aiacute os fazendeiros disseram assim

ldquo-Se vocecirc natildeo estaacute aguentando Quer morrer Entatildeo morrerdquo Aiacute os patrotildees

dela comeccedilaram a bater nela e naquele tempo natildeo podia falar nada Como

ela estava fraquinha acabou morrendo Depois enterrou ela laacute Natildeo tem

7

uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que

enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar

dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e

tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse

menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha

avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)

Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras

pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de

Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma

dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles

A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir

dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de

manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos

castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma

simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a

referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm

correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social

(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria

obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo

dialeacutetica

Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu

status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da

realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de

protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores

rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de

transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio

Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade

tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e

afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura

popular

O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os

corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de

construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do

latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor

que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande

8

Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais

passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a

estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade

Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas

assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados

qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a

seguir

Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como

Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio

desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de

Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as

memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores

O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio

eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []

E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor

antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na

hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela

acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele

chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha

nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai

natildeo deixou ele ensinar

Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que

seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento

das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja

eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com

os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu

trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo

Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento

da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa

que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da

interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele

tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a

reza proibida

Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de

inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas

vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com

a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou

correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute

9

verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai

tinha medo

O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e

frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo

era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber

mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo

Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta

(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por

onde ou como comeccedilar

Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem

numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de

longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os

homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho

onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens

chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu

siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc

todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias

estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na

beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram

ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava

Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele

[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os

homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei

quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu

pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele

nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele

(Grifos meus)

Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc

benzia muitas pessoas

Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou

muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele

era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem

para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal

do vizinho comer umas galinhas [Risos]

Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo

Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos

Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A

gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos

amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que

ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava

sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele

casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho

da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz

Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se

ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser

10

amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele

naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda

que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma

causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam

mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha

cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma

rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou

a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso

muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e

foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado

Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia

acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava

com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha

avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)

A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza

pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos

de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir

das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo

Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os

entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a

construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de

dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de

organizaccedilatildeo social e poliacutetica

Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e

afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as

memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura

tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria

no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias

As memoacuterias do Jongo em Bananal

A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por

homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima

a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de

bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de

candongueiro

Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre

jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados

pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E

o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar

11

danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato

entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores

Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma

uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos

terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da

aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros

disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo

O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo

da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto

entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem

que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa

conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine

dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em

Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes

O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns

pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)

Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de

pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio

imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura

PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o

Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4

Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde

ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que

em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens

cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo

Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do

Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical

negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela

identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de

praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001

166-167)

4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)

httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf

12

O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de

Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que

desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza

e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra

Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)

Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de

consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a

forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre

o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5

Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas

rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa

interlocutora canta um ponto

Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute

estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto

Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por

exemplo

Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo

Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]

E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando

outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens

era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando

Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando

das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A

entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como

algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se

recordar do segundo ponto

[cantando]

ldquoBate tambor grande

Repilica o candongueiro

Tambor grande eacute minha cama

O pequeno eacute meu travesseirordquo

Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela

arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto

5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como

o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente

13

para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito

para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas

As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)

memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem

de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre

1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das

manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros

das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central

Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde

aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do

periacuteodo

Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres

tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim

Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia

pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu

natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque

tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas

noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito

O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de

subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos

espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas

tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados

do seacuteculo XIX

O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que

compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a

senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se

oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil

Imperial (1808 ndash 1889)

Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES

2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de

Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos

santos catoacutelicos como afirma dona Tereza

Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento

da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que

satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase

igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 3: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

3

Como se pode constatar no iniacutecio da obra de Alencastro (2000) a formaccedilatildeo do Brasil

ocorrou fora do territoacuterio nacional mais precisamente no eixo Sul Atlacircntico

Desde o final do seacuteculo XVI surge um espaccedilo aterritorial um arquipeacutelago

lusoacutefono composto dos enclaves da Ameacuterica portuguesa e das feitorias de

Angola Eacute daiacute que emerge o Brasil no seacuteculo XVIII Natildeo se trata ao longo

dos capiacutetulos de estudar de forma comparativa as colocircnias portuguesas no

Atlacircntico O que se quer ao contraacuterio eacute mostrar como essas duas partes

unidas pelo oceano se completam num soacute sistema de exploraccedilatildeo colonial

cuja singularidade ainda marca profundamente o Brasil contemporacircneo

(ALENCASTRO 2000 paacuteg 9) (Grifo meu)

Com isso queremos estabelecer as conexotildees mais especiacuteficas da Aacutefrica central

ocidental e a formaccedilatildeo de uma cosmogonia negra no Brasil As historiografias aqui

referenciadas satildeo o alicerce para a compreensatildeo de histoacuterias que se formaram a partir da

tradiccedilatildeo oral dos grupos africanos traficados pelas rotas oceacircnicas em direccedilatildeo agrave Ameacuterica

Vansina (2011) afirma que os brasileiros passaram a dominar totalmente o comeacutercio

de escravos em Angola de 1648 a 1730 Aleacutem do tracircnsito de pessoas e ideias da Aacutefrica para o

Novo Mundo muitas plantas saiacuteam da Ameacuterica para a Aacutefrica confirma o autor milho

amendoim mandioca feijatildeo e tabaco Estabelecia-se portanto uma lucrativa rota comercial

e sobretudo criava-se entre o Brasil e a Aacutefrica central ocidental uma dependecircncia econocircmica

e social sem igual

Segundo o autor desde o fim do seacuteculo XVII a coroa portuguesa jaacute natildeo possuiacutea o

controle do comeacutercio de escravos que ficou na matildeo de quimbares ovimbares (melhor

identificados como afro-portugueses) aleacutem do domiacutenio dos brasileiros em Luanda e

Benguela

Com o decliacutenio dos Estados africanos no seacuteculo XVIII houve o fortalecimento das

redes comerciais o que possibilitou o traacutefico de mais de 6 milhotildees de africanos para outros

continentes somente neste seacuteculo ndash dos quais 18 milhatildeo vieram para o Brasil ou seja 313

(VANSINA 2011)

O mesmo autor considera que a mortalidade atingia de 10 a 15 dos que embarcavam

rumo ao Novo Mundo ndash a oscilaccedilatildeo do percentual estaacute atrelada ao grau de amontoamento em

que os africanos eram transportados Com base nesses dados sobre o traacutefico o autor eacute enfaacutetico

ao afirmar que Angola dependia economicamente do Brasil e por volta de 1800 88 dos

rendimentos desta naccedilatildeo africana provinham do traacutefico de pessoas para o territoacuterio brasileiro

Jaacute Knight (2011) um africanista que estudou a diaacutespora nos explica que sendo

escravos ou homens livres os africanos e afro-americanos contribuiacuteram para domesticar

grande parte de toda a extensatildeo selvagem do continente americano chegando a afirmar

4

ldquoQualquer que tenha sido o nuacutemero de africanos em tal ou qual paiacutes a Aacutefrica imprimiu na

Ameacuterica a sua marca profunda e indeleacutevelrdquo (KNIGHT 2011 877) (Grifo meu)

Satildeo estas as marcas que sobrevivem em Bananal-SP Para Knight (2011) a diaacutespora

africana foi muito maior na Ameacuterica que na Europa e na Aacutesia Na Ameacuterica no iniacutecio do

seacuteculo XIX a populaccedilatildeo de afro-americanos chegava a 85 milhotildees entre homens livres e

escravos Desses dois milhotildees encontravam-se nos EUA outros dois milhotildees nas Antilhas

E segundo o mesmo autor o Brasil abrigava 25 milhotildees no seacuteculo XIX e na Ameacuterica

espanhola continental o montante chegava a 13 milhatildeo de afro-americanos Para Knight

(2011) os africanos influenciaram fortemente as regiotildees rurais de grande latifuacutendio e toda a

margem atlacircntica da Ameacuterica desenvolvendo os mais variados tipos de produccedilatildeo e

desempenharam todos os papeacuteis sociais

Eles foram pioneiros e conquistadores piratas e bucaneiros gauacutechos

llaneros bandeirantes proprietaacuterios de escravos negociantes domeacutesticos e

escravos Eles melhor se distinguiram em certos ofiacutecios comparativamente a

outros mas no entanto o acesso agraves mais elevadas posiccedilotildees sociais lhes fora

interditado pela lei Apoacutes o seacuteculo XVII entretanto os africanos eram os

uacutenicos escravos legais nas duas Ameacutericas e as populaccedilotildees africanas no seio

das sociedades americanas estariam predestinadas a carregar durante

longo periacuteodo os estigmas desta condiccedilatildeo Antes da aboliccedilatildeo definitiva da

escravatura no Brasil em 1888 a maioria dos africanos das Ameacutericas era

escrava e eram eles quem cumpriam a maior parte dos trabalhos manuais e

dos serviccedilos que exigiam um esforccedilo fiacutesico frequentemente estafante sem os

quais as colocircnias possessotildees e naccedilotildees natildeo teriam sido capazes de alcanccedilar

a prosperidade econocircmica (KNIGHT 2011 877)

Como jaacute afirmamos os dados da escravidatildeo que abasteceram a Ameacuterica satildeo bastante

controversos entretanto Knight (2011) afirma que P D Curtin eacute quem melhor oferece uma

imagem global deste fluxo chegando a uma cifra de 10 milhotildees de escravizados Retificando

este total haacute a pesquisa de E D Genovese entre outros pesquisadores que aumentou esta

estimativa para 2 a 3 ou seja cerca de 12 a 13 milhotildees

Independente do total o Brasil foi o maior importador chegando a 38 dos africanos

escravizados vindos para a Ameacuterica Poreacutem antes da introduccedilatildeo de parte desses africanos

escravizados na cidade de Bananal e em toda parte leste do Estado de Satildeo Paulo para o

trabalho na lavoura de cafeacute a demografia na regiatildeo era bastante diferente

Bananal e o Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul (Silveiras Areias Arapeiacute Satildeo Joseacute

do Barreiro) foi a primeira regiatildeo a produzir cafeacute no Estado de Satildeo Paulo afirma Motta

(1999) No fim do seacuteculo XVIII eram poucas as propriedades que produziam cafeacute na regiatildeo e

a agricultura desenvolvida era para subsistecircncia produzia-se milho mandioca galinhas e

5

porcos Antes no seacuteculo XVI essa regiatildeo era ocupada por iacutendios Puris de liacutengua Jecirc

(MOTTA 1999 GRACcedilA 2006)

Foi nas lavouras de cafeacute que muitos agricultores descendentes de pobres habitantes

que povoaram o Vale do Paraiacuteba paulista no seacuteculo XVII enriqueceram entre as deacutecadas de

1800 a 1830 formando algumas das principais fortunas da eacutepoca ndash chegando alguns a se

tornarem barotildees no periacuteodo da histoacuteria Imperial do Brasil cujos tiacutetulos foram outorgados por

Dom Pedro II

Foi atraveacutes da anaacutelise dos dados sobre a vida na senzala que possibilitou Motta (1999)

criar a noccedilatildeo de corpos escravos Segundo o autor ndash pautando-se na lista nominativa de 1801

ndash a cidade de Bananal natildeo contava com grandes planteacuteis no iniacutecio do seacuteculo XIX Para ele a

evoluccedilatildeo dos padrotildees de propriedade de cativos seguiu os efeitos da maior produtividade do

cafeacute que ocorrera no iniacutecio da segunda metade do seacuteculo XIX (MOTTA 1999 109)

Os dados do autor colocam em relaccedilatildeo economia e a demografia da cidade no periacuteodo

De 1830 a 1850 Motta (1999) afirma ser o apogeu da produtividade de cafeacute e do poder

econocircmico dos cafeicultores de Bananal E esses dados nos levaram a um argumento de tese

importante a grande presenccedila de famiacutelias negras em Bananal (maior que a de outras cidades

da regiatildeo como Lorena) foi o que possibilitou com que as memoacuterias do cativeiro e do Jongo

ainda permanecessem guardadas nas memoacuterias de seus habitantes

Na contramatildeo da histoacuteria oficial que ilustra a vida da elite cafeeira no seacuteculo XIX a

bibliografia utilizada aqui tem como objetivo situar a vida daqueles que foram excluiacutedos de

educaccedilatildeo melhores condiccedilotildees de vida e dos salotildees de baile imperial As memoacuterias do

cativeiro e do Jongo trazem agrave tona a cosmogonia trazida pelos negros na diaacutespora a partir do

prisma da musicalidade e dos saberes que nos remete sempre ao contexto da senzala no

seacuteculo XIX

A senzala e o terreiro de cafeacute foram os locais onde a visatildeo de mundo desses corpos

escravizados foi transmitida atraveacutes da oralidade3 Por isso ao inveacutes de analisar a vida nos

salotildees nobres construiacutedos para o baile das elites do Impeacuterio propomos o inverso analisar a

vida da comunidade pobre e negra ontem e hoje

A famiacutelia negra e a manutenccedilatildeo da memoacuteria social

Para conhecermos mais sobre as memoacuterias do cativeiro recorri agrave histoacuteria oral relatada

pela histoacuteria de vida de alguns interlocutores descendentes de famiacutelias negras de Bananal

3 As religiotildees afrobrasileiras natildeo foram analisadas na tese de Vitorino (2014) O terreiro que se analisou foi o

quintal da propriedade rural cenaacuterio de festejos e da cultura popular e natildeo o Terreiro de Umbanda ou de Candombleacute

6

cujos saberes e tradiccedilotildees foram aprendidos com as geraccedilotildees mais velhas e guardados na

memoacuteria

Uma interlocutora nascida em Bananal no momento da pesquisa com 78 anos narrou-

nos as histoacuterias de sua avoacute materna que nasceu livre devido agrave lei do Ventre Livre e faleceu

aos 105 anos proacuteximo a fazenda escravocrata onde seus familiares tinham sido escravos Ao

trazer agrave tona a memoacuteria de sua avoacute que viveu na fazenda Coqueiros dona Tereza resgatou as

memoacuterias do cativeiro a visatildeo de mundo dos africanos e afrobrasileiros ou seja a

cosmogonia e as condiccedilotildees de vida que esses escravizados enfrentavam nas lavouras de cafeacute

As memoacuterias do cativeiro ndash ainda hoje se mantecircm nas memoacuterias dos sujeitos da

comunidade e pode ser acessada pela histoacuteria oral Tais memoacuterias soacute satildeo possiacuteveis de se

resgatar pelo registro das narrativas das famiacutelias negras uma vez que a literatura sobre o

periacuteodo colonial direcionou na maioria das vezes seus esforccedilos a conhecer a vida da classe

dominante da eacutepoca e natildeo a histoacuteria de vida dos corpos escravos

Para isso recorremos agrave histoacuteria de vida da avoacute materna de dona Tereza e alguns relatos

de dona Mariinha Basiacutelio sobre Jorge Basiacutelio seu avocirc paterno tambeacutem morada de Bananal

Para a anaacutelise das memoacuterias do cativeiro da senzala e do terreiro no Brasil colonial agrego

aos dados historiograacuteficos acima expostos essas duas narrativas sobre a escravidatildeo coletadas

em 17 de marccedilo e 14 de maio de 2012 respectivamente

Os avoacutes maternos de dona Tereza se chamavam Camila Maria Joseacute e Militatildeo Miguel

de Oliveira sua bisavoacute foi Pracide Maria Joseacute e seu bisavocirc era Antocircnio Numa passagem esta

muito mais significativa em sentidos e percepccedilotildees da memoacuteria do cativeiro dona Tereza

conta como foi o final da vida de sua bisavoacute

Inicialmente soubemos desta histoacuteria pela atual proprietaacuteria da fazenda Coqueiros

Maria Elizabeth Brum A partir destas informaccedilotildees chegamos a Maria Tereza de Paula (dona

Tereza) que narrou as memoacuterias da avoacute sobre a sua bisavoacute Dona Tereza conta-nos como foi

o final da vida de sua bisavoacute

Essa aiacute que ela contava [a histoacuteria] era da matildee dela Eacute do tempo da minha

bisavoacute que trabalhava laacute [fazenda Coqueiros] Ela foi cozinheira laacute muito

tempo Entatildeo dizia que todo mundo gostava dela tanto que eles natildeo

queriam outra cozinheira Daiacute ela engravidou e ganhou o neneacutem a noite No

outro dia ela natildeo foi trabalhar Mandou entatildeo avisar que ela natildeo ia

trabalhar Mas a patroa disse ldquo-Ah natildeo Tem que vir Porque vocecirc tem que

vir fazer a comidardquo Mas ela natildeo estava aguentando Fizeram ela ir e ela foi

Deixou o neneacutem e foi Chegando laacute comeccedilou a se sentir mal e se desmontou

laacute na cozinha Punha ela de peacute e ela caiacutea Aiacute os fazendeiros disseram assim

ldquo-Se vocecirc natildeo estaacute aguentando Quer morrer Entatildeo morrerdquo Aiacute os patrotildees

dela comeccedilaram a bater nela e naquele tempo natildeo podia falar nada Como

ela estava fraquinha acabou morrendo Depois enterrou ela laacute Natildeo tem

7

uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que

enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar

dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e

tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse

menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha

avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)

Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras

pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de

Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma

dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles

A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir

dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de

manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos

castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma

simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a

referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm

correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social

(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria

obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo

dialeacutetica

Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu

status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da

realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de

protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores

rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de

transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio

Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade

tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e

afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura

popular

O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os

corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de

construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do

latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor

que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande

8

Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais

passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a

estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade

Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas

assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados

qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a

seguir

Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como

Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio

desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de

Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as

memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores

O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio

eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []

E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor

antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na

hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela

acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele

chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha

nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai

natildeo deixou ele ensinar

Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que

seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento

das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja

eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com

os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu

trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo

Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento

da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa

que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da

interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele

tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a

reza proibida

Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de

inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas

vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com

a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou

correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute

9

verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai

tinha medo

O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e

frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo

era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber

mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo

Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta

(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por

onde ou como comeccedilar

Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem

numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de

longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os

homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho

onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens

chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu

siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc

todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias

estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na

beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram

ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava

Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele

[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os

homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei

quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu

pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele

nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele

(Grifos meus)

Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc

benzia muitas pessoas

Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou

muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele

era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem

para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal

do vizinho comer umas galinhas [Risos]

Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo

Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos

Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A

gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos

amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que

ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava

sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele

casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho

da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz

Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se

ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser

10

amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele

naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda

que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma

causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam

mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha

cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma

rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou

a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso

muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e

foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado

Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia

acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava

com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha

avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)

A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza

pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos

de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir

das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo

Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os

entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a

construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de

dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de

organizaccedilatildeo social e poliacutetica

Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e

afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as

memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura

tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria

no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias

As memoacuterias do Jongo em Bananal

A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por

homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima

a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de

bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de

candongueiro

Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre

jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados

pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E

o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar

11

danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato

entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores

Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma

uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos

terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da

aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros

disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo

O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo

da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto

entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem

que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa

conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine

dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em

Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes

O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns

pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)

Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de

pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio

imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura

PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o

Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4

Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde

ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que

em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens

cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo

Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do

Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical

negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela

identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de

praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001

166-167)

4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)

httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf

12

O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de

Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que

desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza

e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra

Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)

Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de

consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a

forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre

o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5

Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas

rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa

interlocutora canta um ponto

Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute

estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto

Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por

exemplo

Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo

Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]

E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando

outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens

era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando

Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando

das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A

entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como

algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se

recordar do segundo ponto

[cantando]

ldquoBate tambor grande

Repilica o candongueiro

Tambor grande eacute minha cama

O pequeno eacute meu travesseirordquo

Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela

arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto

5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como

o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente

13

para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito

para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas

As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)

memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem

de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre

1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das

manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros

das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central

Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde

aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do

periacuteodo

Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres

tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim

Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia

pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu

natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque

tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas

noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito

O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de

subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos

espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas

tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados

do seacuteculo XIX

O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que

compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a

senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se

oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil

Imperial (1808 ndash 1889)

Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES

2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de

Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos

santos catoacutelicos como afirma dona Tereza

Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento

da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que

satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase

igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 4: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

4

ldquoQualquer que tenha sido o nuacutemero de africanos em tal ou qual paiacutes a Aacutefrica imprimiu na

Ameacuterica a sua marca profunda e indeleacutevelrdquo (KNIGHT 2011 877) (Grifo meu)

Satildeo estas as marcas que sobrevivem em Bananal-SP Para Knight (2011) a diaacutespora

africana foi muito maior na Ameacuterica que na Europa e na Aacutesia Na Ameacuterica no iniacutecio do

seacuteculo XIX a populaccedilatildeo de afro-americanos chegava a 85 milhotildees entre homens livres e

escravos Desses dois milhotildees encontravam-se nos EUA outros dois milhotildees nas Antilhas

E segundo o mesmo autor o Brasil abrigava 25 milhotildees no seacuteculo XIX e na Ameacuterica

espanhola continental o montante chegava a 13 milhatildeo de afro-americanos Para Knight

(2011) os africanos influenciaram fortemente as regiotildees rurais de grande latifuacutendio e toda a

margem atlacircntica da Ameacuterica desenvolvendo os mais variados tipos de produccedilatildeo e

desempenharam todos os papeacuteis sociais

Eles foram pioneiros e conquistadores piratas e bucaneiros gauacutechos

llaneros bandeirantes proprietaacuterios de escravos negociantes domeacutesticos e

escravos Eles melhor se distinguiram em certos ofiacutecios comparativamente a

outros mas no entanto o acesso agraves mais elevadas posiccedilotildees sociais lhes fora

interditado pela lei Apoacutes o seacuteculo XVII entretanto os africanos eram os

uacutenicos escravos legais nas duas Ameacutericas e as populaccedilotildees africanas no seio

das sociedades americanas estariam predestinadas a carregar durante

longo periacuteodo os estigmas desta condiccedilatildeo Antes da aboliccedilatildeo definitiva da

escravatura no Brasil em 1888 a maioria dos africanos das Ameacutericas era

escrava e eram eles quem cumpriam a maior parte dos trabalhos manuais e

dos serviccedilos que exigiam um esforccedilo fiacutesico frequentemente estafante sem os

quais as colocircnias possessotildees e naccedilotildees natildeo teriam sido capazes de alcanccedilar

a prosperidade econocircmica (KNIGHT 2011 877)

Como jaacute afirmamos os dados da escravidatildeo que abasteceram a Ameacuterica satildeo bastante

controversos entretanto Knight (2011) afirma que P D Curtin eacute quem melhor oferece uma

imagem global deste fluxo chegando a uma cifra de 10 milhotildees de escravizados Retificando

este total haacute a pesquisa de E D Genovese entre outros pesquisadores que aumentou esta

estimativa para 2 a 3 ou seja cerca de 12 a 13 milhotildees

Independente do total o Brasil foi o maior importador chegando a 38 dos africanos

escravizados vindos para a Ameacuterica Poreacutem antes da introduccedilatildeo de parte desses africanos

escravizados na cidade de Bananal e em toda parte leste do Estado de Satildeo Paulo para o

trabalho na lavoura de cafeacute a demografia na regiatildeo era bastante diferente

Bananal e o Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul (Silveiras Areias Arapeiacute Satildeo Joseacute

do Barreiro) foi a primeira regiatildeo a produzir cafeacute no Estado de Satildeo Paulo afirma Motta

(1999) No fim do seacuteculo XVIII eram poucas as propriedades que produziam cafeacute na regiatildeo e

a agricultura desenvolvida era para subsistecircncia produzia-se milho mandioca galinhas e

5

porcos Antes no seacuteculo XVI essa regiatildeo era ocupada por iacutendios Puris de liacutengua Jecirc

(MOTTA 1999 GRACcedilA 2006)

Foi nas lavouras de cafeacute que muitos agricultores descendentes de pobres habitantes

que povoaram o Vale do Paraiacuteba paulista no seacuteculo XVII enriqueceram entre as deacutecadas de

1800 a 1830 formando algumas das principais fortunas da eacutepoca ndash chegando alguns a se

tornarem barotildees no periacuteodo da histoacuteria Imperial do Brasil cujos tiacutetulos foram outorgados por

Dom Pedro II

Foi atraveacutes da anaacutelise dos dados sobre a vida na senzala que possibilitou Motta (1999)

criar a noccedilatildeo de corpos escravos Segundo o autor ndash pautando-se na lista nominativa de 1801

ndash a cidade de Bananal natildeo contava com grandes planteacuteis no iniacutecio do seacuteculo XIX Para ele a

evoluccedilatildeo dos padrotildees de propriedade de cativos seguiu os efeitos da maior produtividade do

cafeacute que ocorrera no iniacutecio da segunda metade do seacuteculo XIX (MOTTA 1999 109)

Os dados do autor colocam em relaccedilatildeo economia e a demografia da cidade no periacuteodo

De 1830 a 1850 Motta (1999) afirma ser o apogeu da produtividade de cafeacute e do poder

econocircmico dos cafeicultores de Bananal E esses dados nos levaram a um argumento de tese

importante a grande presenccedila de famiacutelias negras em Bananal (maior que a de outras cidades

da regiatildeo como Lorena) foi o que possibilitou com que as memoacuterias do cativeiro e do Jongo

ainda permanecessem guardadas nas memoacuterias de seus habitantes

Na contramatildeo da histoacuteria oficial que ilustra a vida da elite cafeeira no seacuteculo XIX a

bibliografia utilizada aqui tem como objetivo situar a vida daqueles que foram excluiacutedos de

educaccedilatildeo melhores condiccedilotildees de vida e dos salotildees de baile imperial As memoacuterias do

cativeiro e do Jongo trazem agrave tona a cosmogonia trazida pelos negros na diaacutespora a partir do

prisma da musicalidade e dos saberes que nos remete sempre ao contexto da senzala no

seacuteculo XIX

A senzala e o terreiro de cafeacute foram os locais onde a visatildeo de mundo desses corpos

escravizados foi transmitida atraveacutes da oralidade3 Por isso ao inveacutes de analisar a vida nos

salotildees nobres construiacutedos para o baile das elites do Impeacuterio propomos o inverso analisar a

vida da comunidade pobre e negra ontem e hoje

A famiacutelia negra e a manutenccedilatildeo da memoacuteria social

Para conhecermos mais sobre as memoacuterias do cativeiro recorri agrave histoacuteria oral relatada

pela histoacuteria de vida de alguns interlocutores descendentes de famiacutelias negras de Bananal

3 As religiotildees afrobrasileiras natildeo foram analisadas na tese de Vitorino (2014) O terreiro que se analisou foi o

quintal da propriedade rural cenaacuterio de festejos e da cultura popular e natildeo o Terreiro de Umbanda ou de Candombleacute

6

cujos saberes e tradiccedilotildees foram aprendidos com as geraccedilotildees mais velhas e guardados na

memoacuteria

Uma interlocutora nascida em Bananal no momento da pesquisa com 78 anos narrou-

nos as histoacuterias de sua avoacute materna que nasceu livre devido agrave lei do Ventre Livre e faleceu

aos 105 anos proacuteximo a fazenda escravocrata onde seus familiares tinham sido escravos Ao

trazer agrave tona a memoacuteria de sua avoacute que viveu na fazenda Coqueiros dona Tereza resgatou as

memoacuterias do cativeiro a visatildeo de mundo dos africanos e afrobrasileiros ou seja a

cosmogonia e as condiccedilotildees de vida que esses escravizados enfrentavam nas lavouras de cafeacute

As memoacuterias do cativeiro ndash ainda hoje se mantecircm nas memoacuterias dos sujeitos da

comunidade e pode ser acessada pela histoacuteria oral Tais memoacuterias soacute satildeo possiacuteveis de se

resgatar pelo registro das narrativas das famiacutelias negras uma vez que a literatura sobre o

periacuteodo colonial direcionou na maioria das vezes seus esforccedilos a conhecer a vida da classe

dominante da eacutepoca e natildeo a histoacuteria de vida dos corpos escravos

Para isso recorremos agrave histoacuteria de vida da avoacute materna de dona Tereza e alguns relatos

de dona Mariinha Basiacutelio sobre Jorge Basiacutelio seu avocirc paterno tambeacutem morada de Bananal

Para a anaacutelise das memoacuterias do cativeiro da senzala e do terreiro no Brasil colonial agrego

aos dados historiograacuteficos acima expostos essas duas narrativas sobre a escravidatildeo coletadas

em 17 de marccedilo e 14 de maio de 2012 respectivamente

Os avoacutes maternos de dona Tereza se chamavam Camila Maria Joseacute e Militatildeo Miguel

de Oliveira sua bisavoacute foi Pracide Maria Joseacute e seu bisavocirc era Antocircnio Numa passagem esta

muito mais significativa em sentidos e percepccedilotildees da memoacuteria do cativeiro dona Tereza

conta como foi o final da vida de sua bisavoacute

Inicialmente soubemos desta histoacuteria pela atual proprietaacuteria da fazenda Coqueiros

Maria Elizabeth Brum A partir destas informaccedilotildees chegamos a Maria Tereza de Paula (dona

Tereza) que narrou as memoacuterias da avoacute sobre a sua bisavoacute Dona Tereza conta-nos como foi

o final da vida de sua bisavoacute

Essa aiacute que ela contava [a histoacuteria] era da matildee dela Eacute do tempo da minha

bisavoacute que trabalhava laacute [fazenda Coqueiros] Ela foi cozinheira laacute muito

tempo Entatildeo dizia que todo mundo gostava dela tanto que eles natildeo

queriam outra cozinheira Daiacute ela engravidou e ganhou o neneacutem a noite No

outro dia ela natildeo foi trabalhar Mandou entatildeo avisar que ela natildeo ia

trabalhar Mas a patroa disse ldquo-Ah natildeo Tem que vir Porque vocecirc tem que

vir fazer a comidardquo Mas ela natildeo estava aguentando Fizeram ela ir e ela foi

Deixou o neneacutem e foi Chegando laacute comeccedilou a se sentir mal e se desmontou

laacute na cozinha Punha ela de peacute e ela caiacutea Aiacute os fazendeiros disseram assim

ldquo-Se vocecirc natildeo estaacute aguentando Quer morrer Entatildeo morrerdquo Aiacute os patrotildees

dela comeccedilaram a bater nela e naquele tempo natildeo podia falar nada Como

ela estava fraquinha acabou morrendo Depois enterrou ela laacute Natildeo tem

7

uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que

enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar

dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e

tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse

menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha

avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)

Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras

pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de

Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma

dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles

A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir

dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de

manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos

castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma

simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a

referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm

correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social

(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria

obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo

dialeacutetica

Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu

status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da

realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de

protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores

rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de

transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio

Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade

tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e

afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura

popular

O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os

corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de

construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do

latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor

que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande

8

Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais

passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a

estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade

Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas

assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados

qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a

seguir

Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como

Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio

desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de

Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as

memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores

O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio

eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []

E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor

antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na

hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela

acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele

chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha

nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai

natildeo deixou ele ensinar

Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que

seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento

das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja

eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com

os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu

trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo

Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento

da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa

que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da

interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele

tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a

reza proibida

Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de

inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas

vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com

a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou

correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute

9

verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai

tinha medo

O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e

frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo

era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber

mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo

Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta

(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por

onde ou como comeccedilar

Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem

numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de

longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os

homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho

onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens

chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu

siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc

todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias

estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na

beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram

ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava

Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele

[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os

homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei

quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu

pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele

nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele

(Grifos meus)

Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc

benzia muitas pessoas

Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou

muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele

era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem

para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal

do vizinho comer umas galinhas [Risos]

Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo

Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos

Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A

gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos

amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que

ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava

sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele

casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho

da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz

Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se

ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser

10

amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele

naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda

que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma

causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam

mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha

cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma

rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou

a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso

muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e

foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado

Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia

acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava

com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha

avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)

A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza

pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos

de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir

das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo

Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os

entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a

construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de

dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de

organizaccedilatildeo social e poliacutetica

Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e

afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as

memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura

tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria

no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias

As memoacuterias do Jongo em Bananal

A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por

homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima

a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de

bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de

candongueiro

Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre

jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados

pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E

o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar

11

danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato

entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores

Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma

uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos

terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da

aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros

disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo

O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo

da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto

entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem

que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa

conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine

dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em

Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes

O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns

pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)

Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de

pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio

imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura

PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o

Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4

Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde

ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que

em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens

cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo

Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do

Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical

negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela

identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de

praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001

166-167)

4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)

httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf

12

O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de

Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que

desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza

e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra

Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)

Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de

consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a

forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre

o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5

Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas

rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa

interlocutora canta um ponto

Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute

estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto

Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por

exemplo

Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo

Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]

E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando

outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens

era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando

Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando

das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A

entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como

algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se

recordar do segundo ponto

[cantando]

ldquoBate tambor grande

Repilica o candongueiro

Tambor grande eacute minha cama

O pequeno eacute meu travesseirordquo

Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela

arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto

5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como

o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente

13

para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito

para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas

As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)

memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem

de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre

1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das

manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros

das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central

Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde

aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do

periacuteodo

Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres

tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim

Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia

pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu

natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque

tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas

noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito

O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de

subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos

espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas

tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados

do seacuteculo XIX

O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que

compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a

senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se

oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil

Imperial (1808 ndash 1889)

Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES

2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de

Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos

santos catoacutelicos como afirma dona Tereza

Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento

da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que

satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase

igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 5: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

5

porcos Antes no seacuteculo XVI essa regiatildeo era ocupada por iacutendios Puris de liacutengua Jecirc

(MOTTA 1999 GRACcedilA 2006)

Foi nas lavouras de cafeacute que muitos agricultores descendentes de pobres habitantes

que povoaram o Vale do Paraiacuteba paulista no seacuteculo XVII enriqueceram entre as deacutecadas de

1800 a 1830 formando algumas das principais fortunas da eacutepoca ndash chegando alguns a se

tornarem barotildees no periacuteodo da histoacuteria Imperial do Brasil cujos tiacutetulos foram outorgados por

Dom Pedro II

Foi atraveacutes da anaacutelise dos dados sobre a vida na senzala que possibilitou Motta (1999)

criar a noccedilatildeo de corpos escravos Segundo o autor ndash pautando-se na lista nominativa de 1801

ndash a cidade de Bananal natildeo contava com grandes planteacuteis no iniacutecio do seacuteculo XIX Para ele a

evoluccedilatildeo dos padrotildees de propriedade de cativos seguiu os efeitos da maior produtividade do

cafeacute que ocorrera no iniacutecio da segunda metade do seacuteculo XIX (MOTTA 1999 109)

Os dados do autor colocam em relaccedilatildeo economia e a demografia da cidade no periacuteodo

De 1830 a 1850 Motta (1999) afirma ser o apogeu da produtividade de cafeacute e do poder

econocircmico dos cafeicultores de Bananal E esses dados nos levaram a um argumento de tese

importante a grande presenccedila de famiacutelias negras em Bananal (maior que a de outras cidades

da regiatildeo como Lorena) foi o que possibilitou com que as memoacuterias do cativeiro e do Jongo

ainda permanecessem guardadas nas memoacuterias de seus habitantes

Na contramatildeo da histoacuteria oficial que ilustra a vida da elite cafeeira no seacuteculo XIX a

bibliografia utilizada aqui tem como objetivo situar a vida daqueles que foram excluiacutedos de

educaccedilatildeo melhores condiccedilotildees de vida e dos salotildees de baile imperial As memoacuterias do

cativeiro e do Jongo trazem agrave tona a cosmogonia trazida pelos negros na diaacutespora a partir do

prisma da musicalidade e dos saberes que nos remete sempre ao contexto da senzala no

seacuteculo XIX

A senzala e o terreiro de cafeacute foram os locais onde a visatildeo de mundo desses corpos

escravizados foi transmitida atraveacutes da oralidade3 Por isso ao inveacutes de analisar a vida nos

salotildees nobres construiacutedos para o baile das elites do Impeacuterio propomos o inverso analisar a

vida da comunidade pobre e negra ontem e hoje

A famiacutelia negra e a manutenccedilatildeo da memoacuteria social

Para conhecermos mais sobre as memoacuterias do cativeiro recorri agrave histoacuteria oral relatada

pela histoacuteria de vida de alguns interlocutores descendentes de famiacutelias negras de Bananal

3 As religiotildees afrobrasileiras natildeo foram analisadas na tese de Vitorino (2014) O terreiro que se analisou foi o

quintal da propriedade rural cenaacuterio de festejos e da cultura popular e natildeo o Terreiro de Umbanda ou de Candombleacute

6

cujos saberes e tradiccedilotildees foram aprendidos com as geraccedilotildees mais velhas e guardados na

memoacuteria

Uma interlocutora nascida em Bananal no momento da pesquisa com 78 anos narrou-

nos as histoacuterias de sua avoacute materna que nasceu livre devido agrave lei do Ventre Livre e faleceu

aos 105 anos proacuteximo a fazenda escravocrata onde seus familiares tinham sido escravos Ao

trazer agrave tona a memoacuteria de sua avoacute que viveu na fazenda Coqueiros dona Tereza resgatou as

memoacuterias do cativeiro a visatildeo de mundo dos africanos e afrobrasileiros ou seja a

cosmogonia e as condiccedilotildees de vida que esses escravizados enfrentavam nas lavouras de cafeacute

As memoacuterias do cativeiro ndash ainda hoje se mantecircm nas memoacuterias dos sujeitos da

comunidade e pode ser acessada pela histoacuteria oral Tais memoacuterias soacute satildeo possiacuteveis de se

resgatar pelo registro das narrativas das famiacutelias negras uma vez que a literatura sobre o

periacuteodo colonial direcionou na maioria das vezes seus esforccedilos a conhecer a vida da classe

dominante da eacutepoca e natildeo a histoacuteria de vida dos corpos escravos

Para isso recorremos agrave histoacuteria de vida da avoacute materna de dona Tereza e alguns relatos

de dona Mariinha Basiacutelio sobre Jorge Basiacutelio seu avocirc paterno tambeacutem morada de Bananal

Para a anaacutelise das memoacuterias do cativeiro da senzala e do terreiro no Brasil colonial agrego

aos dados historiograacuteficos acima expostos essas duas narrativas sobre a escravidatildeo coletadas

em 17 de marccedilo e 14 de maio de 2012 respectivamente

Os avoacutes maternos de dona Tereza se chamavam Camila Maria Joseacute e Militatildeo Miguel

de Oliveira sua bisavoacute foi Pracide Maria Joseacute e seu bisavocirc era Antocircnio Numa passagem esta

muito mais significativa em sentidos e percepccedilotildees da memoacuteria do cativeiro dona Tereza

conta como foi o final da vida de sua bisavoacute

Inicialmente soubemos desta histoacuteria pela atual proprietaacuteria da fazenda Coqueiros

Maria Elizabeth Brum A partir destas informaccedilotildees chegamos a Maria Tereza de Paula (dona

Tereza) que narrou as memoacuterias da avoacute sobre a sua bisavoacute Dona Tereza conta-nos como foi

o final da vida de sua bisavoacute

Essa aiacute que ela contava [a histoacuteria] era da matildee dela Eacute do tempo da minha

bisavoacute que trabalhava laacute [fazenda Coqueiros] Ela foi cozinheira laacute muito

tempo Entatildeo dizia que todo mundo gostava dela tanto que eles natildeo

queriam outra cozinheira Daiacute ela engravidou e ganhou o neneacutem a noite No

outro dia ela natildeo foi trabalhar Mandou entatildeo avisar que ela natildeo ia

trabalhar Mas a patroa disse ldquo-Ah natildeo Tem que vir Porque vocecirc tem que

vir fazer a comidardquo Mas ela natildeo estava aguentando Fizeram ela ir e ela foi

Deixou o neneacutem e foi Chegando laacute comeccedilou a se sentir mal e se desmontou

laacute na cozinha Punha ela de peacute e ela caiacutea Aiacute os fazendeiros disseram assim

ldquo-Se vocecirc natildeo estaacute aguentando Quer morrer Entatildeo morrerdquo Aiacute os patrotildees

dela comeccedilaram a bater nela e naquele tempo natildeo podia falar nada Como

ela estava fraquinha acabou morrendo Depois enterrou ela laacute Natildeo tem

7

uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que

enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar

dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e

tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse

menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha

avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)

Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras

pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de

Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma

dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles

A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir

dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de

manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos

castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma

simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a

referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm

correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social

(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria

obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo

dialeacutetica

Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu

status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da

realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de

protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores

rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de

transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio

Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade

tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e

afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura

popular

O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os

corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de

construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do

latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor

que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande

8

Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais

passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a

estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade

Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas

assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados

qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a

seguir

Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como

Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio

desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de

Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as

memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores

O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio

eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []

E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor

antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na

hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela

acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele

chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha

nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai

natildeo deixou ele ensinar

Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que

seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento

das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja

eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com

os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu

trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo

Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento

da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa

que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da

interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele

tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a

reza proibida

Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de

inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas

vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com

a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou

correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute

9

verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai

tinha medo

O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e

frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo

era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber

mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo

Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta

(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por

onde ou como comeccedilar

Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem

numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de

longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os

homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho

onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens

chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu

siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc

todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias

estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na

beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram

ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava

Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele

[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os

homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei

quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu

pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele

nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele

(Grifos meus)

Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc

benzia muitas pessoas

Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou

muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele

era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem

para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal

do vizinho comer umas galinhas [Risos]

Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo

Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos

Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A

gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos

amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que

ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava

sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele

casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho

da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz

Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se

ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser

10

amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele

naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda

que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma

causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam

mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha

cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma

rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou

a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso

muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e

foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado

Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia

acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava

com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha

avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)

A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza

pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos

de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir

das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo

Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os

entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a

construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de

dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de

organizaccedilatildeo social e poliacutetica

Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e

afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as

memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura

tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria

no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias

As memoacuterias do Jongo em Bananal

A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por

homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima

a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de

bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de

candongueiro

Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre

jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados

pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E

o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar

11

danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato

entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores

Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma

uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos

terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da

aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros

disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo

O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo

da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto

entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem

que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa

conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine

dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em

Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes

O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns

pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)

Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de

pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio

imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura

PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o

Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4

Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde

ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que

em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens

cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo

Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do

Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical

negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela

identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de

praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001

166-167)

4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)

httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf

12

O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de

Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que

desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza

e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra

Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)

Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de

consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a

forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre

o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5

Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas

rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa

interlocutora canta um ponto

Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute

estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto

Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por

exemplo

Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo

Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]

E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando

outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens

era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando

Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando

das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A

entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como

algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se

recordar do segundo ponto

[cantando]

ldquoBate tambor grande

Repilica o candongueiro

Tambor grande eacute minha cama

O pequeno eacute meu travesseirordquo

Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela

arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto

5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como

o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente

13

para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito

para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas

As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)

memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem

de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre

1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das

manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros

das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central

Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde

aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do

periacuteodo

Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres

tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim

Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia

pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu

natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque

tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas

noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito

O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de

subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos

espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas

tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados

do seacuteculo XIX

O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que

compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a

senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se

oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil

Imperial (1808 ndash 1889)

Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES

2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de

Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos

santos catoacutelicos como afirma dona Tereza

Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento

da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que

satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase

igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 6: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

6

cujos saberes e tradiccedilotildees foram aprendidos com as geraccedilotildees mais velhas e guardados na

memoacuteria

Uma interlocutora nascida em Bananal no momento da pesquisa com 78 anos narrou-

nos as histoacuterias de sua avoacute materna que nasceu livre devido agrave lei do Ventre Livre e faleceu

aos 105 anos proacuteximo a fazenda escravocrata onde seus familiares tinham sido escravos Ao

trazer agrave tona a memoacuteria de sua avoacute que viveu na fazenda Coqueiros dona Tereza resgatou as

memoacuterias do cativeiro a visatildeo de mundo dos africanos e afrobrasileiros ou seja a

cosmogonia e as condiccedilotildees de vida que esses escravizados enfrentavam nas lavouras de cafeacute

As memoacuterias do cativeiro ndash ainda hoje se mantecircm nas memoacuterias dos sujeitos da

comunidade e pode ser acessada pela histoacuteria oral Tais memoacuterias soacute satildeo possiacuteveis de se

resgatar pelo registro das narrativas das famiacutelias negras uma vez que a literatura sobre o

periacuteodo colonial direcionou na maioria das vezes seus esforccedilos a conhecer a vida da classe

dominante da eacutepoca e natildeo a histoacuteria de vida dos corpos escravos

Para isso recorremos agrave histoacuteria de vida da avoacute materna de dona Tereza e alguns relatos

de dona Mariinha Basiacutelio sobre Jorge Basiacutelio seu avocirc paterno tambeacutem morada de Bananal

Para a anaacutelise das memoacuterias do cativeiro da senzala e do terreiro no Brasil colonial agrego

aos dados historiograacuteficos acima expostos essas duas narrativas sobre a escravidatildeo coletadas

em 17 de marccedilo e 14 de maio de 2012 respectivamente

Os avoacutes maternos de dona Tereza se chamavam Camila Maria Joseacute e Militatildeo Miguel

de Oliveira sua bisavoacute foi Pracide Maria Joseacute e seu bisavocirc era Antocircnio Numa passagem esta

muito mais significativa em sentidos e percepccedilotildees da memoacuteria do cativeiro dona Tereza

conta como foi o final da vida de sua bisavoacute

Inicialmente soubemos desta histoacuteria pela atual proprietaacuteria da fazenda Coqueiros

Maria Elizabeth Brum A partir destas informaccedilotildees chegamos a Maria Tereza de Paula (dona

Tereza) que narrou as memoacuterias da avoacute sobre a sua bisavoacute Dona Tereza conta-nos como foi

o final da vida de sua bisavoacute

Essa aiacute que ela contava [a histoacuteria] era da matildee dela Eacute do tempo da minha

bisavoacute que trabalhava laacute [fazenda Coqueiros] Ela foi cozinheira laacute muito

tempo Entatildeo dizia que todo mundo gostava dela tanto que eles natildeo

queriam outra cozinheira Daiacute ela engravidou e ganhou o neneacutem a noite No

outro dia ela natildeo foi trabalhar Mandou entatildeo avisar que ela natildeo ia

trabalhar Mas a patroa disse ldquo-Ah natildeo Tem que vir Porque vocecirc tem que

vir fazer a comidardquo Mas ela natildeo estava aguentando Fizeram ela ir e ela foi

Deixou o neneacutem e foi Chegando laacute comeccedilou a se sentir mal e se desmontou

laacute na cozinha Punha ela de peacute e ela caiacutea Aiacute os fazendeiros disseram assim

ldquo-Se vocecirc natildeo estaacute aguentando Quer morrer Entatildeo morrerdquo Aiacute os patrotildees

dela comeccedilaram a bater nela e naquele tempo natildeo podia falar nada Como

ela estava fraquinha acabou morrendo Depois enterrou ela laacute Natildeo tem

7

uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que

enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar

dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e

tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse

menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha

avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)

Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras

pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de

Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma

dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles

A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir

dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de

manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos

castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma

simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a

referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm

correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social

(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria

obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo

dialeacutetica

Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu

status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da

realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de

protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores

rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de

transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio

Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade

tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e

afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura

popular

O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os

corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de

construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do

latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor

que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande

8

Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais

passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a

estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade

Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas

assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados

qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a

seguir

Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como

Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio

desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de

Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as

memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores

O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio

eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []

E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor

antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na

hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela

acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele

chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha

nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai

natildeo deixou ele ensinar

Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que

seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento

das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja

eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com

os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu

trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo

Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento

da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa

que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da

interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele

tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a

reza proibida

Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de

inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas

vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com

a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou

correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute

9

verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai

tinha medo

O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e

frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo

era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber

mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo

Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta

(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por

onde ou como comeccedilar

Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem

numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de

longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os

homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho

onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens

chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu

siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc

todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias

estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na

beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram

ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava

Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele

[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os

homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei

quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu

pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele

nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele

(Grifos meus)

Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc

benzia muitas pessoas

Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou

muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele

era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem

para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal

do vizinho comer umas galinhas [Risos]

Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo

Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos

Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A

gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos

amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que

ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava

sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele

casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho

da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz

Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se

ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser

10

amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele

naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda

que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma

causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam

mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha

cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma

rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou

a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso

muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e

foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado

Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia

acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava

com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha

avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)

A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza

pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos

de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir

das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo

Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os

entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a

construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de

dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de

organizaccedilatildeo social e poliacutetica

Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e

afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as

memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura

tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria

no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias

As memoacuterias do Jongo em Bananal

A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por

homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima

a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de

bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de

candongueiro

Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre

jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados

pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E

o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar

11

danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato

entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores

Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma

uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos

terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da

aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros

disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo

O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo

da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto

entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem

que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa

conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine

dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em

Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes

O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns

pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)

Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de

pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio

imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura

PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o

Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4

Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde

ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que

em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens

cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo

Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do

Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical

negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela

identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de

praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001

166-167)

4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)

httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf

12

O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de

Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que

desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza

e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra

Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)

Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de

consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a

forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre

o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5

Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas

rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa

interlocutora canta um ponto

Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute

estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto

Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por

exemplo

Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo

Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]

E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando

outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens

era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando

Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando

das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A

entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como

algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se

recordar do segundo ponto

[cantando]

ldquoBate tambor grande

Repilica o candongueiro

Tambor grande eacute minha cama

O pequeno eacute meu travesseirordquo

Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela

arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto

5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como

o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente

13

para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito

para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas

As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)

memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem

de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre

1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das

manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros

das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central

Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde

aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do

periacuteodo

Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres

tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim

Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia

pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu

natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque

tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas

noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito

O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de

subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos

espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas

tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados

do seacuteculo XIX

O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que

compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a

senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se

oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil

Imperial (1808 ndash 1889)

Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES

2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de

Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos

santos catoacutelicos como afirma dona Tereza

Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento

da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que

satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase

igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 7: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

7

uma escada que desce assim da cozinha[explicou d Tereza] Dizem que

enterrou ela por ali mesmo Diz que era para ela natildeo esquecer que o lugar

dela era na cozinha Aiacute as outras ldquoirmatildesrdquo que tivesse amamentando e

tivesse crianccedila acabaram de criar o neneacutem Que era um menino Esse

menino tambeacutem natildeo foi escravo Porque logo acabou a escravidatildeo Minha

avoacute ouvia essa histoacuteria porque ela era filha da que morreu (grifo meu)

Dona Tereza revela situaccedilotildees do cotidiano de vida e morte de familiares e outras

pessoas escravizadas No foco da passagem temos sua bisavoacute Pracide que segundo o relato de

Camila Maria Joseacute teve seu corpo enterrado na cozinha da fazenda Coqueiros como forma

dos senhores demonstrarem aos escravizados a relaccedilatildeo de hierarquia entre barotildees e eles

A irmandade relatada entre os escravizados surge como uma forccedila coletiva a partir

dos laccedilos de uma famiacutelia extensa que eacute composta pelos integrantes da senzala a fim de

manter a unidade do grupo frente aos mandos e desmandos dos senhores Estes atraveacutes dos

castigos e humilhaccedilotildees procuravam destruir a solidariedade de grupo com uma arma

simboacutelica bastante eficaz o medo No cenaacuterio arquitetocircnico da memoacuteria eacute constante a

referecircncia agrave senzala ao terreiro e a casa-grande de modo que estes trecircs espaccedilos tecircm

correspondecircncia agrave hierarquia da estrutura social A casa-grande era o local de prestiacutegio social

(o espaccedilo de quem manda) e a senzala era o local da subserviecircncia ou seja de quem deveria

obedecer mas tambeacutem da resistecircncia Haacute portanto entre casa-grande e senzala uma relaccedilatildeo

dialeacutetica

Na casa-grande os descendentes dos antigos agricultores corriam para transformar seu

status social importando da Europa mercadorias e costumes que nunca fizeram parte da

realidade brasileira Estes costumes e haacutebitos acabavam tornando esses sujeitos cheios de

protocolos O objetivo desse sincretismo era se afastar dos haacutebitos simples dos trabalhadores

rurais comum na regiatildeo atraveacutes da aquisiccedilatildeo de um verniz ou polimento capaz de

transformar agricultores em barotildees da corte do Impeacuterio

Na senzala a resistecircncia dos sujeitos escravizados procurou transmitir pela oralidade

tradiccedilotildees e valores que satildeo ancestrais Neste espaccedilo compartilhado por africanos e

afrobrasileiros surgiram costumes e modos de vida que iratildeo se arraigar em nossa cultura

popular

O terreiro de cafeacute da propriedade agriacutecola natildeo era apenas local de trabalho Nele os

corpos escravizados manifestavam suas crenccedilas e cultura Por isso eacute tambeacutem espaccedilo de

construccedilatildeo das identidades e memoacuterias desse grupo social Era nos terreiros (no quintal do

latifuacutendio) onde os jongueiros entoavam seus pontos seguidos do coro e o som do tambor

que se deslocava por entre a senzala e a casa-grande

8

Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais

passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a

estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade

Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas

assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados

qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a

seguir

Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como

Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio

desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de

Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as

memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores

O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio

eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []

E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor

antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na

hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela

acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele

chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha

nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai

natildeo deixou ele ensinar

Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que

seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento

das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja

eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com

os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu

trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo

Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento

da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa

que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da

interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele

tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a

reza proibida

Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de

inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas

vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com

a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou

correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute

9

verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai

tinha medo

O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e

frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo

era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber

mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo

Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta

(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por

onde ou como comeccedilar

Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem

numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de

longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os

homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho

onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens

chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu

siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc

todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias

estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na

beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram

ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava

Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele

[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os

homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei

quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu

pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele

nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele

(Grifos meus)

Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc

benzia muitas pessoas

Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou

muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele

era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem

para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal

do vizinho comer umas galinhas [Risos]

Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo

Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos

Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A

gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos

amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que

ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava

sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele

casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho

da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz

Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se

ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser

10

amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele

naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda

que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma

causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam

mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha

cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma

rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou

a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso

muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e

foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado

Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia

acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava

com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha

avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)

A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza

pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos

de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir

das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo

Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os

entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a

construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de

dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de

organizaccedilatildeo social e poliacutetica

Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e

afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as

memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura

tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria

no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias

As memoacuterias do Jongo em Bananal

A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por

homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima

a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de

bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de

candongueiro

Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre

jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados

pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E

o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar

11

danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato

entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores

Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma

uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos

terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da

aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros

disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo

O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo

da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto

entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem

que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa

conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine

dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em

Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes

O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns

pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)

Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de

pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio

imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura

PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o

Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4

Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde

ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que

em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens

cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo

Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do

Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical

negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela

identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de

praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001

166-167)

4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)

httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf

12

O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de

Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que

desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza

e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra

Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)

Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de

consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a

forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre

o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5

Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas

rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa

interlocutora canta um ponto

Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute

estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto

Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por

exemplo

Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo

Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]

E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando

outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens

era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando

Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando

das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A

entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como

algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se

recordar do segundo ponto

[cantando]

ldquoBate tambor grande

Repilica o candongueiro

Tambor grande eacute minha cama

O pequeno eacute meu travesseirordquo

Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela

arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto

5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como

o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente

13

para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito

para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas

As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)

memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem

de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre

1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das

manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros

das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central

Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde

aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do

periacuteodo

Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres

tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim

Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia

pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu

natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque

tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas

noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito

O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de

subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos

espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas

tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados

do seacuteculo XIX

O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que

compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a

senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se

oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil

Imperial (1808 ndash 1889)

Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES

2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de

Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos

santos catoacutelicos como afirma dona Tereza

Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento

da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que

satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase

igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 8: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

8

Neste contexto as diferenccedilas entre os grupos sociais puramente socioculturais

passavam a ser hierarquizadas com base em crenccedilas evolucionistas que justificavam a

estrutura social forjada pela elite agraacuteria da localidade

Outra questatildeo de grande importacircncia foi a existecircncia de muitas famiacutelias escravas

assim como salientam as historiografias de Motta (1999) e Slenes (2007) Encontramos dados

qualitativos sobre essa questatildeo em relatos da famiacutelia de Mariinha Basiacutelio como veremos a

seguir

Segundo dona Maria Aparecida Souza da Costa ndash conhecida em Bananal como

Mariinha Basiacutelio ndash com 65 anos na eacutepoca da entrevista e moradora do bairro do Educandaacuterio

desde muito jovem seu avoacute era um grande rezador Chegamos a ela atraveacutes de uma amiga de

Bananal que levou a seacuterio a nossa procura na comunidade por pessoas que guardassem as

memoacuterias do cativeiro O pai e avocirc paterno de Mariinha Basiacutelio foram rezadores

O meu pai e o meu avocirc pai e filho o Joatildeo Jorge Basiacutelio e o Jorge Basiacutelio

eram rezadores Meu pai rezava muito pra defunto terccedilos de Satildeo Joatildeo []

E o meu avocirc era mais de rezar por accedilotildees para curar [] Era um benzedor

antigo que ele benzia uma dor de cabeccedila sumia a sua dor de cabeccedila na

hora se tinha uma mulher sangrando ele rezava e o sangramento dela

acabava isso eu cheguei a ver Se tinha uma crianccedila vomitando ele

chegava rezava e no dia seguinte vocecirc podia ver que a crianccedila natildeo tinha

nada e ainda tinha essa reza pesada dele que ele quis ensinar mas meu pai

natildeo deixou ele ensinar

Na passagem a interlocutora aproveita para salientar a eficaacutecia das rezas e sugere que

seu avocirc era bastante requisitado entre os da comunidade a fim de acabar com o sofrimento

das pessoas Percebe-se portanto que ao contraacuterio do que ocorre com os sacerdotes (cuja

eficaacutecia proveacutem da assimilaccedilatildeo da doutrina e sua vinculaccedilatildeo com a instituiccedilatildeo religiosa) com

os benzedores a eficaacutecia simboacutelica de seus atos decorre da afirmaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seu

trabalho frente ao grupo para o qual estaacute a serviccedilo

Mariinha recorda que seus avoacutes paternos eram negros Insistimos num certo momento

da entrevista para que dona Mariinha fale sobre a reza que lhe era proibido saber Reza essa

que de fato era uma das brigas entre Jorge e Joatildeo Jorge Basiacutelio ndash respectivamente avocirc e pai da

interlocutora Ela fala da relaccedilatildeo entre avocirc e pai ldquomeu pai era muito eneacutergico e meu avocirc ele

tinha costume de passar no quintal e roubar galinhardquo Num outro momento ela fala sobre a

reza proibida

Eacute a reza que era para espantar o inimigo Ele chamava os da poliacutecia de

inimigos Poderiam eles ir procurar ele que natildeo encontravam E por duas

vezes ele mostrou - Aqui fia [o avocirc dizia a Mariinha] ele conversava com

a gente e dizia - hohoho fia eacute aqui que eu fiquei Os homens passou

correndo e me deixou aqui igual a um toco E o pai confirmava e eacute

9

verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai

tinha medo

O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e

frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo

era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber

mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo

Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta

(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por

onde ou como comeccedilar

Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem

numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de

longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os

homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho

onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens

chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu

siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc

todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias

estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na

beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram

ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava

Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele

[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os

homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei

quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu

pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele

nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele

(Grifos meus)

Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc

benzia muitas pessoas

Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou

muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele

era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem

para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal

do vizinho comer umas galinhas [Risos]

Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo

Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos

Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A

gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos

amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que

ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava

sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele

casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho

da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz

Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se

ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser

10

amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele

naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda

que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma

causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam

mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha

cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma

rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou

a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso

muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e

foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado

Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia

acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava

com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha

avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)

A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza

pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos

de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir

das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo

Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os

entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a

construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de

dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de

organizaccedilatildeo social e poliacutetica

Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e

afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as

memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura

tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria

no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias

As memoacuterias do Jongo em Bananal

A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por

homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima

a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de

bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de

candongueiro

Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre

jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados

pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E

o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar

11

danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato

entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores

Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma

uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos

terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da

aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros

disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo

O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo

da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto

entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem

que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa

conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine

dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em

Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes

O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns

pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)

Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de

pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio

imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura

PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o

Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4

Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde

ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que

em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens

cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo

Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do

Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical

negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela

identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de

praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001

166-167)

4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)

httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf

12

O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de

Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que

desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza

e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra

Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)

Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de

consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a

forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre

o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5

Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas

rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa

interlocutora canta um ponto

Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute

estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto

Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por

exemplo

Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo

Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]

E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando

outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens

era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando

Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando

das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A

entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como

algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se

recordar do segundo ponto

[cantando]

ldquoBate tambor grande

Repilica o candongueiro

Tambor grande eacute minha cama

O pequeno eacute meu travesseirordquo

Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela

arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto

5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como

o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente

13

para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito

para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas

As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)

memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem

de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre

1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das

manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros

das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central

Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde

aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do

periacuteodo

Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres

tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim

Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia

pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu

natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque

tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas

noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito

O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de

subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos

espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas

tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados

do seacuteculo XIX

O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que

compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a

senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se

oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil

Imperial (1808 ndash 1889)

Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES

2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de

Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos

santos catoacutelicos como afirma dona Tereza

Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento

da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que

satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase

igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 9: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

9

verdade Por isso que o pai natildeo gostava muito dele junto com a gente pai

tinha medo

O pai de Mariinha aleacutem do medo como ela mesma diz era muito catoacutelico e

frequentava a Folia de Reis como instrumentista Certamente a reza para espantar o inimigo

era mal interpretada pelo pai Insisto na conversa novamente devido agrave curiosidade de saber

mais sobre a reza proibida e ela fala mais sobre o avocirc Pergunto ldquo- Mas o que tem o inimigo

Quem erardquo sem saber o que ela iria me responder Apesar do certo embaraccedilo da resposta

(interrompida por uma visita que chegava em sua casa) Mariinha diz mesmo natildeo sabendo por

onde ou como comeccedilar

Estavam atraacutes dele por duas vezes isso aconteceu Ele matou um homem

numa briga e a poliacutecia foi pra pegar ele [] Ele disse que viu a poliacutecia de

longe laacute na Serra do Turvo Inclusive na terra que hoje eacute minha [] Os

homens que ele via de longe (no do caminho do Cesaacuterio) []eacute o caminho

onde eu passo e onde o meu avocirc escondeu e de onde ele viu os homens

chegando Porque eacute assim subindo aqui se vai laacute pro lado do Aliacutepio e o meu

siacutetio eacute o uacuteltimo virado laacute do outro lado Quando se sobe de laacute a agente vecirc

todo mundo que taacute subindo Dizia ele que naquele caminho eacute que as poliacutecias

estavam subindo [] ele sabia onde eles estavam indo Ele encostou na

beira do caminho e rezou Fez a oraccedilatildeo e as poliacutecias passaram e natildeo viram

ele Fizeram a volta e saiacuteram do outro lado onde meu pai morava

Perguntaram para o meu pai e ele falou ldquo- Meu pai taacute em casa Depois ele

[o avocirc] chegou rindo ldquo- Enganei os homens Hum hum enganei os

homens Os homens foram laacute pra me pegar Eu rezei aquela oraccedilatildeo e fiquei

quietinhordquo Ele sempre falava ldquo-Eu preciso ensinar essa oraccedilatildeordquo Mas meu

pai falava - Se o Sr comeccedilar essa oraccedilatildeo eu vou brigar com o senhor Ele

nunca ensinou minha matildee tinha loucura pra aprender essa oraccedilatildeo dele

(Grifos meus)

Depois de insistir tanto mudamos de assunto Perguntamos agrave Mariinha se seu avocirc

benzia muitas pessoas

Ele curava e curou muito meu filho Eu posso te garantir que ele curou

muita gente Era uma pessoa muito boa tirando as bebidas dele O resto ele

era maravilhoso muito bom muito prestativo gostava muito de fazer o bem

para os outros Mas quando ele bebia umas cachaccedilas ele ia para o quintal

do vizinho comer umas galinhas [Risos]

Tem um instante da entrevista que pergunto sobre as histoacuterias do tempo da escravidatildeo

Ela conta que seu avocirc ldquopegou muitordquo a escravidatildeo e morreu aos 90 anos

Vocirc contava que meu tio nasceu na semana da libertaccedilatildeo meu tio Joaquim A

gente ainda brincava com ele - Eh tio Joaquim o Sr se livrou dos

amarrados - Se livrou do sapatatildeo de ferro E o vovocirc contava pra gente que

ele era muito judiado Ele falava pra gente que ele sofreu muito que ficava

sem comer Que ele apanhou muito Ele casou ndash natildeo sei a idade que ele

casou ndash mas esse tio que nasceu na semana da libertaccedilatildeo eacute o tio mais velho

da casa O tio Joaquim brincava que graccedilas a Deus ele era um negro feliz

Porque ele natildeo pegou a escravidatildeo E o vovocirc sempre falava pra ele que se

ele pegasse a escravidatildeo ele ia dar valor [] Ele dizia que ele chegou a ser

10

amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele

naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda

que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma

causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam

mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha

cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma

rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou

a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso

muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e

foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado

Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia

acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava

com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha

avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)

A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza

pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos

de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir

das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo

Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os

entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a

construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de

dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de

organizaccedilatildeo social e poliacutetica

Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e

afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as

memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura

tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria

no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias

As memoacuterias do Jongo em Bananal

A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por

homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima

a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de

bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de

candongueiro

Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre

jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados

pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E

o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar

11

danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato

entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores

Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma

uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos

terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da

aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros

disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo

O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo

da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto

entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem

que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa

conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine

dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em

Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes

O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns

pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)

Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de

pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio

imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura

PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o

Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4

Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde

ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que

em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens

cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo

Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do

Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical

negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela

identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de

praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001

166-167)

4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)

httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf

12

O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de

Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que

desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza

e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra

Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)

Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de

consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a

forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre

o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5

Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas

rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa

interlocutora canta um ponto

Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute

estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto

Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por

exemplo

Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo

Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]

E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando

outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens

era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando

Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando

das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A

entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como

algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se

recordar do segundo ponto

[cantando]

ldquoBate tambor grande

Repilica o candongueiro

Tambor grande eacute minha cama

O pequeno eacute meu travesseirordquo

Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela

arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto

5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como

o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente

13

para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito

para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas

As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)

memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem

de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre

1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das

manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros

das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central

Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde

aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do

periacuteodo

Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres

tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim

Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia

pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu

natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque

tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas

noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito

O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de

subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos

espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas

tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados

do seacuteculo XIX

O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que

compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a

senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se

oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil

Imperial (1808 ndash 1889)

Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES

2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de

Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos

santos catoacutelicos como afirma dona Tereza

Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento

da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que

satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase

igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 10: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

10

amarrado vaacuterias vezes Uma vez ele contou pra noacutes que puseram ele

naquele castigo do ralo Vocecirc jaacute ouviu falar no castigo do ralo Eacute uma roda

que quando eles queriam castigar um escravo mas tinha que ser uma

causa justa bom natildeo tinha causa justa porque eles castigavam

mesmoMas eles punham eles sentados naquele ralo e aquele ralo tinha

cada prego Eu cheguei a conhecer o ralo Tinha vaacuterios pregos Uma

rodada soacute e a pessoa que sentava naquilo saia em sangue vivo E ele chegou

a ir para a roda da escravidatildeo [] Ele contava que foi muito doloroso

muita fome ele passou muitas prisotildees Ele fugiu duas vezes Pegaram ele e

foi pior depois porque depois que pegavam o fugitivo apanhava dobrado

Mas depois algueacutem vendeu ele Ele foi vendido quando a escravidatildeo jaacute ia

acabando Ele foi vendido junto com a famiacutelia e tudo quando ele jaacute estava

com a minha avoacute Ele jaacute estava casado com a minha avoacute soacute que a minha

avoacute natildeo era da mesma fazenda dele(Grifo meu)

A partir dessas histoacuterias dos tempos da escravidatildeo de Mariinha e de dona Tereza

pode-se falar em memoacuterias do cativeiro assim como concluiu a historiadora Hebe M Mattos

de Castro em suas pesquisas no Vale do Paraiacuteba (SP e RJ) A histoacuteria-oral construiacuteda a partir

das histoacuterias de vida dessas duas famiacutelias foi fundamental para tal descriccedilatildeo

Nestas duas entrevistas observa-se que foi o estreitamento dos laccedilos familiares entre os

entrevistados e seus interlocutores primaacuterios (seus parentes ndash avoacute e avocirc) que permitiu a

construccedilatildeo destas memoacuterias Jorge Basiacutelio avocirc de Mariinha e Pracide Maria Joseacute bisavoacute de

dona Tereza satildeo exemplos de que na senzala existia cultura tradiccedilotildees e noccedilotildees de

organizaccedilatildeo social e poliacutetica

Apesar de o escravismo estar calcado na humilhaccedilatildeo e desumanizaccedilatildeo do africano e

afrobrasileiro a ideologia dominante natildeo conseguiu apagar as tradiccedilotildees as identidades e as

memoacuterias trazidas de aleacutem-mar que em territoacuterio brasileiro enriqueceu a nossa cultura

tradicional ndash seja na arte na muacutesica nos festejos (como por exemplo o Jongo) na culinaacuteria

no modo de vida na visatildeo de mundo na cultura e na educaccedilatildeo das geraccedilotildees dessas famiacutelias

As memoacuterias do Jongo em Bananal

A partir de agora trataremos das memoacuterias do Jongo A roda de Jongo eacute composta por

homens e mulheres que formam um ciacuterculo Tradicionalmente a composiccedilatildeo ocorria proacutexima

a uma fogueira fundamental para a afinaccedilatildeo do couro dos tambores o maior chamado de

bumbucaxambutambor (dependendo da regiatildeo no Vale do Paraiacuteba) e o menor de

candongueiro

Em uma das entrevistas realizadas em Bananal fica explicita a figura do mestre

jongueiro aquele que coordena a roda e a afinaccedilatildeo dos instrumentos Os pontos satildeo entoados

pelo jongueiro ou jongueira que vai ao centro da roda (qualquer um pode lanccedilar seu ponto) E

o coro responde repetindo o uacuteltimo verso do ponto Mulheres e homens aleacutem de cantar

11

danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato

entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores

Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma

uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos

terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da

aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros

disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo

O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo

da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto

entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem

que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa

conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine

dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em

Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes

O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns

pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)

Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de

pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio

imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura

PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o

Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4

Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde

ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que

em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens

cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo

Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do

Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical

negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela

identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de

praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001

166-167)

4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)

httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf

12

O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de

Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que

desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza

e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra

Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)

Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de

consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a

forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre

o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5

Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas

rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa

interlocutora canta um ponto

Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute

estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto

Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por

exemplo

Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo

Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]

E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando

outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens

era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando

Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando

das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A

entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como

algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se

recordar do segundo ponto

[cantando]

ldquoBate tambor grande

Repilica o candongueiro

Tambor grande eacute minha cama

O pequeno eacute meu travesseirordquo

Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela

arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto

5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como

o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente

13

para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito

para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas

As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)

memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem

de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre

1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das

manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros

das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central

Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde

aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do

periacuteodo

Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres

tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim

Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia

pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu

natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque

tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas

noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito

O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de

subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos

espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas

tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados

do seacuteculo XIX

O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que

compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a

senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se

oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil

Imperial (1808 ndash 1889)

Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES

2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de

Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos

santos catoacutelicos como afirma dona Tereza

Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento

da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que

satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase

igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 11: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

11

danccedilam no meio da roda (nossos interlocutores afirmam que isso ocorria sem nenhum contato

entre si) rodopiando seus corpos que eram levados pelo som dos tambores

Os escravizados celebraram o fim do escravismo com muita muacutesica e danccedila afirma

uma entrevistada A avoacute de dona Tereza Camila Maria danccedilou muito Jongo que ocorria nos

terreiros das fazendas em Bananal Recordando as histoacuterias dessa avoacute sobre o dia da

aboliccedilatildeo dona Tereza nos revelou ldquoIh Ela dizia que fizeram festa Dizia que os fazendeiros

disseram - Vocecircs podem fazer festa Pode danccedilar Dizem que eles soacute danccedilavam Jongordquo

O Jongo foi um ritmo bastante popular entre os negros africanos e brasileiros no tempo

da escravidatildeo e se tornou um ritmo comum nos festejos tradicionais tanto entre eles quanto

entre o restante da populaccedilatildeo natildeo negra da cidade de Bananal-SP Haacute de se pontuar tambeacutem

que o ritmo foi ganhando novos adeptos ao longo do tempo o que foi constatado numa

conversa com outra interlocutora de descendecircncia italiana chamada Joana Dacutearc Sabadine

dos Santos que dizia frequentar junto de sua famiacutelia as rodas O Jongo foi praticado em

Bananal ateacute 1970 E hoje ele ainda se manteacutem na memoacuteria de seus habitantes

O Jongo eacute uma importante expressatildeo da nossa cultura e foi estudado por alguns

pesquisadores tais como a folclorista Maria de Lourdes Borges Ribeiro (Lourdes Borges)

Stein (1961) Lara amp Pacheco (2007) entre outros Aleacutem de se haver um conjunto de

pesquisas sobre o Jongo em novembro de 2005 essa manifestaccedilatildeo foi elevada a patrimocircnio

imaterial apoacutes longo estudo do CNFCP ndash Centro Nacional do Folclore e Cultura

PopularIPHAN ndash Instituto do Patrimocircnio Histoacuterico e Artiacutestico Nacional que produziu o

Dossiecirc IPHAN nordm 5 (BRASIL 2007) que inventariou a Jongo no Sudeste4

Pergunto como e onde se formavam as rodas de Jongo ndash ao que dona Tereza responde

ldquoLaacute na casa dos meus pais Tinha tambeacutem uma famiacutelia laacute perto da fazenda Bom Retiro que

em toda veacutespera de Satildeo Pedro fazia festa e tinha Jongo Todo o ano tinha Os homens

cantavam e as mulheres cantavam Os homens cantavam e as mulheres respondiamrdquo

Para Gilroy (2001) a antifonia no canto (o chamado e a resposta) ndash caracteriacutestica do

Jongo e descrita por dona Tereza no trecho acima ndash eacute a principal marca da tradiccedilatildeo musical

negra da diaacutespora Para o autor as performances musicais negras satildeo experienciadas pela

identidade de maneira intensa ldquoe agraves vezes reproduzida por meio de estilos negligenciados de

praacutetica significante como a miacutemica gestos expressatildeo corporal e vestuaacuteriosrdquo (GILROY 2001

166-167)

4 Dossiecirc disponiacutevel para consulta na paacutegina (acesso em 02092017)

httpwwwcnfcpgovbrpdfPatrimonio_ImaterialDossie_Patrimonio_ImaterialDossie_Jongopdf

12

O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de

Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que

desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza

e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra

Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)

Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de

consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a

forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre

o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5

Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas

rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa

interlocutora canta um ponto

Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute

estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto

Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por

exemplo

Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo

Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]

E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando

outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens

era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando

Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando

das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A

entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como

algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se

recordar do segundo ponto

[cantando]

ldquoBate tambor grande

Repilica o candongueiro

Tambor grande eacute minha cama

O pequeno eacute meu travesseirordquo

Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela

arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto

5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como

o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente

13

para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito

para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas

As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)

memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem

de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre

1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das

manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros

das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central

Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde

aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do

periacuteodo

Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres

tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim

Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia

pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu

natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque

tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas

noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito

O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de

subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos

espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas

tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados

do seacuteculo XIX

O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que

compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a

senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se

oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil

Imperial (1808 ndash 1889)

Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES

2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de

Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos

santos catoacutelicos como afirma dona Tereza

Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento

da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que

satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase

igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 12: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

12

O historiador americano Stein (1961) foi o primeiro pesquisador a gravar pontos de

Jongo na cidade de Vassouras em 1949 ndash Vale do Paraiacuteba fluminense no momento em que

desenvolveu sua historiografia sobre a economia brasileira no seacuteculo XIX na obra Grandeza

e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Suas gravaccedilotildees estatildeo hoje publicadas na obra

Memoacuteria do Jongo de Lara amp Pacheco (2007)

Segundo os jongueiros locais o som dos tambores eacute capaz de despertar niacuteveis de

consciecircncia distintos naqueles que danccedilam Satildeo inuacutemeros os relatos que deixam impliacutecito a

forccedila maacutegica do som dos tambores pois eles satildeo considerados os elementos de conexatildeo entre

o plano material e o metafiacutesico segundo a cosmogonia negra (SLENES 2007)5

Observa-se pelas entrevistas que eram inuacutemeras as famiacutelias que organizavam suas

rodas de Jongo Demonstra-se que a manifestaccedilatildeo era algo recorrente No trecho abaixo nossa

interlocutora canta um ponto

Mais o Jongo era bonito Quando era ali para a meia-noite e a gente jaacute

estava com sono escutava aquelas vozes daquelas mulheres cantando alto

Mais aquilo era muito bom Os homens cantavam e elas respondiam por

exemplo

Os homens diziam ldquoCai sereno cairdquo

Elas respondiam ldquoNo cabelo de Mariardquo [risos]

E ficava aquilo Quando estavam danccedilando era de dois casais soacute Quando

outra dama queria danccedilar ela entrava e a outra dama saiacutea E os homens

era a mesma coisa Pulava laacute e o outro saiacutea pra deixar o outro danccedilando

Dona Tereza se lembrava de muitos detalhes e em certo momento acabou nos falando

das roupas ldquoEram tudo comprida Quando girava aquelas saia rodada voava assimrdquo A

entrevistada ao nos informar sobre a danccedila traz agrave tona tanto memoacuterias de sua avoacute como

algumas vivecircncias de sua infacircncia nas rodas de Jongo Satildeo essas vivecircncias que a fazem se

recordar do segundo ponto

[cantando]

ldquoBate tambor grande

Repilica o candongueiro

Tambor grande eacute minha cama

O pequeno eacute meu travesseirordquo

Em Bananal encontramos um cenaacuterio importante do Brasil oitocentista (tanto pela

arquitetura como pelos costumes e tradiccedilotildees) e fizemos dele nosso laboratoacuterio a ceacuteu aberto

5 Em meu Caderno de Campo registrei um relato comum entre os jongueiros em todo o Vale do Paraiacuteba (como

o que ocorreu a folclorista Lourdes Borges) que depois de encerrada a apresentaccedilatildeo de Jongo no lugar dos tambores abriam-se buracos no chatildeo tal era a animaccedilatildeo da roda de Jongo Em outros relatos a poeira do chatildeo se levantava quase que magicamente

13

para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito

para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas

As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)

memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem

de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre

1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das

manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros

das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central

Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde

aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do

periacuteodo

Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres

tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim

Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia

pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu

natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque

tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas

noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito

O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de

subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos

espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas

tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados

do seacuteculo XIX

O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que

compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a

senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se

oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil

Imperial (1808 ndash 1889)

Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES

2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de

Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos

santos catoacutelicos como afirma dona Tereza

Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento

da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que

satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase

igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 13: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

13

para o estudo da escola da memoacuteria social e da cultura popular Este foi o cenaacuterio perfeito

para reviver a memoacuteria do Jongo e dos Jongueiros atraveacutes de cinco entrevistas realizadas

As memoacuterias do Jongo em Bananal satildeo basicamente de trecircs periacuteodos diferentes a)

memoacuterias do periacuteodo poacutes-aboliccedilatildeo b) memoacuterias do iniacutecio do seacuteculo XX ndash sob a nova ordem

de trabalho c) as memoacuterias quando o Jongo passa a ser praticado na Praccedila do Rosaacuterio entre

1940 a 1970 De manifestaccedilatildeo cultural proibida no seacuteculo XIX o Jongo se torna reflexo das

manifestaccedilotildees da cultura popular no momento em que deixa de ocorrer apenas nos terreiros

das fazendas e passa a ser apresentado na praccedila central

Dona Tereza se refere ao periacuteodo em que o Jongo ocorria na Praccedila do Rosaacuterio onde

aliaacutes estaacute localizado o Solar Manoel de Aguiar Vallim um dos maiores escravocratas do

periacuteodo

Conforme eles iam batendo no tambor o pessoal danccedilava As mulheres

tambeacutem danccedilavam com os homens Mas dizem que a danccedila deles era assim

Ningueacutem punha a matildeo no outro Eles danccedilavam um aqui e outro ali Um ia

pra laacute e o outro vinha pra caacute Eu sei que eles danccedilavam a noite inteira Eu

natildeo sou do tempo da escravidatildeo mas eu ainda cheguei ver o Jongo Porque

tinha muita gente antiga A gente [os mais novos] jaacute gostava do forroacute Mas

noacuteis no forroacute ouvia o Jongo e noacuteis achava bonito

O Jongo foi uma manifestaccedilatildeo proacutepria da senzala praticada como uma forma de

subterfuacutegio da vida no sistema escravocrata mas foi ao longo do seacuteculo XX ganhando novos

espaccedilos (cenaacuterios) e adeptos O Jongo se tornou referecircncia de musicalidade na senzala mas

tambeacutem na cultura popular no seacuteculo XX E era um contraponto aos salotildees nobres de meados

do seacuteculo XIX

O terreiro (o quintal da propriedade agroexportadora de cafeacute) espaccedilo puacuteblico que

compartilhavam escravizados e senhores foi sempre o intermeacutedio entre o salatildeo nobre e a

senzala No salatildeo como se pode afirmar pela obra de Castro amp Schnoor (1995) tocava-se

oacutepera e danccedilava-se valsa No terreiro tocava-se e danccedilava-se o Jongo no periacuteodo do Brasil

Imperial (1808 ndash 1889)

Em todos os 13 de maio ocorriam rodas de Jongo no Vale do Paraiacuteba (SLENES

2007) O ritmo surgiu das senzalas e se tornou coacutedigo cultural antes do Samba As rodas de

Jongo eram realizadas em festas de casamento nas festas juninas para comemorar os dias dos

santos catoacutelicos como afirma dona Tereza

Zezinho do Sancho Joseacute Cacircndido de Santa Rosa nascido em Bananal e no momento

da entrevista (11 de abril de 2012) com 62 anos menciona as particularidades do Jongo que

satildeo a tradiccedilatildeo oral e o modo astuto de se criticar o sistema social ldquoEle eacute uma coisa quase

igual a um coacutedigo que eu aprendi muito com minha tia e os antigos Os negros queriam falar

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 14: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

14

uma coisa para que os patrotildees natildeo ficassem sabendo cantavam o Jongo e cada palavra

significava uma coisardquo

Neste trecho Zezinho do Sancho confirma as hipoacuteteses de Gilroy (2001) quando este

autor afirma que a muacutesica na diaacutespora adquire traccedilos de uma cultura de resistecircncia ou de

contracultura Segundo o autor subjugados agrave dinacircmica escravista ldquoa muacutesica se torna vital no

momento em que a indeterminaccedilatildeopolifonia linguiacutestica e semacircntica surgem em meio agrave

prolongada batalha entre senhores e escravosrdquo (GILROY 2001 160)

Eacute comum os pontos serem interpretados pelos jongueiros Aleacutem disso encontramos

variaccedilotildees de um mesmo ponto em diferentes cidades do Vale do Rio Paraiacuteba do Sul6 como eacute

o caso do ponto a seguir cantado por Zizinho Joseacute Maria Nogueira com 65 anos no

momento da entrevista (que muito nos falou sobre o mestre-jongueiro Sebastiatildeo Rosa seu

pai e sua matildee tambeacutem jongueira Sebastiana Nogueira Rosa)

[cantando]

No meio de tanto pau

Embauacuteba eacute coronel

[Damas] Embauacuteba eacute coronel7

Zizinho foi quem me explicou que todo ponto pode ser desatado Isso significa que

quando desvelada as entrelinhas de um ponto se consegue perceber qual eacute a criacutetica ou

dinacircmica que o verso faz sobre a realidade cotidiana No ponto acima temos uma criacutetica

social A embauacuteba na realidade representaria a figura do coronel mas que natildeo passa de um

ser humano comum como a aacutervore em questatildeo eacute comum ao bioma da mata Atlacircntica

Zezinho do Sancho foi quem nos desatou o ponto a seguir ldquoO tatu taacute de cangaia

Coro mantimento de quem eacute mantimento de quem eacuterdquo Disse-nos Zizinho (em entrevista no

dia 02 de maio de 2012) que o tatu representaria uma mulher graacutevida cuja comunidade

desconheceria o pai da crianccedila O ponto descortina as dinacircmicas sociais ou costumes

Zizinho e Zezinho deixam evidente que os pontos satildeo matreiros e carregados de

ldquosignificados argutos e humor astucioso () [de gente que aprendeu] a arte do subterfuacutegio e

da ironia como um meio termo entre a submissatildeo e a revoltardquo (SLENES 2007 112) Algo

que tambeacutem havia sido percebido por Stein (1961) O Jongo revela tambeacutem as entrelinhas

das relaccedilotildees de poder

6 Segundo Lara amp Pacheco (2007) foi Lourdes Borges a primeira a coletar uma variaccedilatildeo desse verso de Jongo

no Vale do Paraiacuteba paulista no municiacutepio de Cunha 7 A Embauacuteba eacute uma aacutervore bastante comum na regiatildeo de mata Atlacircntica Por ser uma espeacutecie pouco exigente

quanto ao solo eacute possiacutevel encontraacute-la mesmo em aacutereas de pouca preservaccedilatildeo ambiental Aliaacutes a abundacircncia desta espeacutecie de aacutervore indica essa pouca preservaccedilatildeo jaacute que prolifera apoacutes desmatamentos

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014

Page 15: MEMÓRIAS DO CATIVEIRO E DO JONGO NO VALEnadir.fflch.usp.br/sites/nadir.fflch.usp.br/files/upload/paginas/DIEGO.… · Antes, no século XVI, essa região era ocupada por índios

15

Referecircncias

ALENCASTRO L F O Trato dos Viventes a formaccedilatildeo do Brasil no Atlacircntico Sul Satildeo

Paulo Companhia das Letras 2000

CASTRO H M M amp SCHNOOR E (org) Resgate uma janela para o oitocentos Rio de

Janeiro Topbooks 1995

GILROY P O Atlacircntico Negro modernidade e dupla consciecircncia Satildeo Paulo Editora 34

Rio de Janeiro Universidade Candido Mendes Centro de Estudos Afro-Asiaacuteticos

2001

GRACcedilA P (org) Estacircncia Turiacutestica e Ecoloacutegica de Bananal Terra dos Barotildees do Cafeacute Satildeo

Paulo Noovha Ameacuterica 2006

KNIGHT F W A Diaacutespora Africana In ADE AJAYI JF (editor) Aacutefrica do Seacuteculo XIX agrave

Deacutecada de 1880 Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol VI - Coleccedilatildeo Histoacuteria

Geral da Aacutefrica) 2011

LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley

Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca 2007

MOTTA J F Corpos Escravos Vontades Livres posse de cativos e famiacutelia escrava em

Bananal (1801-1829) Satildeo Paulo FAPESP AnnaBlume 1999

SLENES R Eu venho de muito longe eu venho cavando jongueiros cumba na senzala

centro-africana In LARA SH amp PACHECO G (org) Memoacuteria do Jongo As

gravaccedilotildees histoacutericas de Stanley Stein Vassouras 1949 Rio de Janeiro Folha Seca

2007

STEIN S J Grandeza e Decadecircncia do Cafeacute no Vale do Paraiacuteba Satildeo Paulo Brasiliense

1961

VANSINA J O Reino do Congo e seus vizinhos In OGOT BA (editor) Aacutefrica do seacuteculo

XVI ao XVIII Satildeo Paulo Cortez Brasiacutelia UNESCO (vol V - Coleccedilatildeo Histoacuteria Geral

da Aacutefrica) 2011

VITORINO D C Um Divoacutercio entre a Escola e a Comunidade BananalSP um

ldquolaboratoacuteriordquo a ceacuteu aberto no Vale Histoacuterico do Rio Paraiacuteba do Sul Araraquara ndash SP

Tese de Doutorado FCL-ArUNESP 2014