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MEMÓRIAS DE MARCO Carlos Funghi 1

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MEMÓRIAS DE MARCO

Carlos Funghi

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Prefácio: Túlio Tissot.

Revisão: Maria Luiza Torres de Barros.Daniel Barros de Azevedo.

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Pessoas

Que me fazem cresceratravés de sua paciência e estímulo:

Meus filhos: Danilo Tula Gutemberg Breno Tuly (sobrinho-filho).

Luana: mãe de meus filhos.

Celene: minha mulher.

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Prefácio

A experiência de vida de Carlos Funghi é material para mil livros.Divertido e nostálgico.Ler Memórias de Marco é estar de frente com a luta de um brasileiro que foi travando batalhas e superando obstáculos no curso da sua vida. Mesmo antes de ler esta obra, saiba de antemão, que Marco é um vencedor!

Túlio Tissot

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Na chácara

Em que eu e Celene hoje vivemos, na paz de uma tarde boa, depois de muita lida, sentei-me a olhar a natureza, e naquele início de crepúsculo, acompanhado de uma cerveja geladinha, comecei a lembrar dos meus pais que há muito viajaram fora do combinado. Na saudade natural que essas reminiscências trazem, lembrei-me em seguida da infância vivida na vila Santa Rita, em Belo Horizonte. Lugar pobre materialmente, mas que enriqueceu, minha existência, fazendo palco para a maior parte de minha vida.

Comentando com Celene algumas lembranças que me vieram naquele momento, ela disse em seguida:

- Por que você não escreve suas memórias?- É que nunca me aconteceram coisas importantes!- Tudo é importante. - ela retrucou.Importantes ou não, tomei ânimo e coloquei algumas no papel. Não todas, porque

as memórias são iguais nossas salas de visitas. Nas salas estão nossas partes melhores, mais polidas. As piores ficam no porão. E, como diria meu vizinho e poeta Diovani Mendonça, servem no mínimo prá distrair dor de dente...

...

Não há

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Melhor memória de se buscar que a de nossos filhos, quando ainda doces crianças:

Danilo, aos quatro anos, espiando sua mãe fazer uns versos. - Mamãe, eu também fiz um verso: a terra, a lua; o mar flutua...

...

Tula, aos três anos, feliz porque iríamos passear... Enquanto a mãe acabava de aprontar o mais velho, eu ia recostado em uma rede. Ela deitada comigo. Ao lado do alpendre onde estávamos havia um muro. Ela perguntava:

- Mamãe vai passiá, papai?- Vai!- Danilo vai?- Vai!- Papai vai? - Vou!- O muro vai?- O muro não!- Puquê?- Hum... Acho que ele tá com sono!- Põe ele na rede!

...Gutemberg, aos dois anos, nunca falava.Estávamos subindo a rua de nossa casa em Itajubá - cidade onde moramos por

um tempo. O lado esquerdo dava para uma enorme fazenda, onde os bois pastavam. De repente, ele que estava recostado em meu ombro, retesou o corpo e disse a primeira frase completa, em alto e bom som:

- O boi come capim!- Eu, na felicidade daquele momento, exclamei: - Não Pedro Bó, come vidro!

...Quando fui viver com Celene, ela já tinha um filho que estava na adolescência,

Breno. Eu possuía uma pequena fabriqueta de pães integrais, para ajudar nas despesas. Disse à ele:

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- Breno, você bem que poderia me ajudar conseguindo uns novos fregueses!Respondeu-me no alto dos seus l4 anos:- Sabe o que é Marco, ultimamente perdi todos os meus contatos...

...

Tuly, sobrinho que em meu coração se fez filho... Quando ainda pequenino contei-lhe que eu tinha um chefe de cozinha nos Estados Unidos, que vivia a repetir:

- Mucho trabajo! Poca plata!Ele nunca mais esqueceu. Hoje, homem feito,

sempre quando chega em nossa casa, grita a senha:- Mucho trabajo!Respondo a contra-senha:- Poca Plata!..

...

Capítulo I

O Começo

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Nasci em uma fria madrugada de segunda–feira, 06 de junho de 1948, três anos após o término da Segunda Guerra Mundial. Não me recordo, naturalmente, do estado de espírito das pessoas adultas daquela época por encontrar-me em tenra idade, mas recordo dos meus primeiros cadernos escolares, os quais, longe de um perfil didático, traziam estampados nas suas capas, grosseiros desenhos de aviões de guerra jogando bombas na terra. Outros mostravam soldados empunhando bandeiras e fuzis. Enfim, tudo o que uma criança não precisava aprender em suas primeiras incursões de aprendizado.

As impressões que trago da infância sempre me pareceram extremamente pesadas para uma criança; tudo triste em demasia, tudo úmido. Meus sonhos, carregados de pesadelos; muitos fantasmas.

Tivemos, eu e meus irmãos, uma infância fechada, onde tudo era proibido. Todas as pessoas estavam erradas em seu modo de vida, segundo o padrão de nossa casa. Isto gerou em todos nós uma falsa concepção de segurança, uma distorcida visão de valores, acarretando daí sérias dificuldades que tivemos ao enfrentar a vida fora de casa.

Fui uma criança sonhadora e embora distingüisse a realidade da coisas, teimava em não vê-la. O que existia de fato era tão somente uma coisa grosseira e incômoda que precisava rapidamente ser varrida da mente. Sonhar era o ar necessário que eu precisava para continuar a viver, a compensação pelo peso que sentia da vida. Os sonhos que nos entorpecem, às vezes também nos salvam...

Encontrei crianças várias em minha vida, muitas agressivas, outras espantosamente sensíveis, boas, querendo também alguma compreensão. Com estas, tranqüilas, fui tecendo minhas primeiras impressões, procurando entender o mundo que me cercava. Falávamos de um universo que não conhecíamos, imaginávamos tudo bom e justo como nossas cabeças pequenas e infantis... Mas os primeiros filmes de bang-bang, o conhecimento do homem-mau, a noção de uma justiça insípida mostrada nos filmes, tudo isso aliado aos gritos da criançada nos cinemas pulguentos ao final de cada história, ia aos poucos alterando esse sentimento do bom e justo.

Já fora do cinema, entre comentários, exercíamos os gestos do mocinho, a fala de um inglês inventado mas que o outro, prontamente entendia:

- Onximori neriuou. O interlocutor prontamente respondia:- Guetimor iuneriau...

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Tudo isso regado a tiros de revolver de espoleta, socos aplicados aos travesseiros, estrela de xerife feita com tampinha de cerveja e pilhas de revistas em quadrinhos, gênero faroeste, quase sempre censuradas pela mãe que, ao final, comparecia com trocados para a aquisição das dita-cujas. Essas revistas ou gibis, colecionadas e, aos domingos na matinê, trocadas por outras não lidas com a molecada, eram compostas dos eternos chavões e clichês. Assim, quando um bandido valentão enfrentava o mocinho e no primeiro soco o vilão se desmontava, o mocinho dizia:

- Queixo de vidro hein? Os personagens usavam as mesmas roupas. Quando o mocinho, numa luta, caía

em algum precipício, no meio da queda aparecia sempre um galho salvador e ele exclamava :

- Ufa, que sorte este galho!Os índios tratados como vilões e velhacos, assim como hoje são vistos nossos

favelados, falavam nos gibis um português clássico e em desuso, para distinguir da linguagem dos brancos, tipo:

- Ò irmão branco, por Manitu, que estais fazendo aqui? Ide de volta e dizei ao vosso povo...

Hoje, em cima de meus quase 60 anos, posso rever o mal que tudo aquilo representou para a minha geração; quanta violência padronizada em nossa sociedade, que teve seus alicerces plantados a partir dos anos 50! Tudo feito para saciar a voracidade da indústria cinematográfica americana do lucro rápido. Para se ter uma idéia de como essa violência se instalava em nossas vidas, lembro-me de uma passagem : estávamos nos preparando para o casamento de nossa irmã Mara. Apesar dos parcos recursos financeiros, meu pai se desdobrou para fazer uma grande festa, de arromba . Convocou a família para a confecção dos salgados e doces. Certa noite, como estava tarde para algumas primas e tias voltarem para casa, ordenou a mim e ao primo Demétrio, que buscássemos dois “carros-de-praça” para que os parentes voltassem à suas casas. Quando encontramos os carros, disse ao meu primo: - Vá você na frente, que eu vou no carro de trás. O primo, que era pobre também, quase não cabia em si de contentamento. Quando entrei no segundo carro, disse ao motorista:

- Siga aquele taxi ! Ao chegarmos em nossa casa, desci do carro, me aproximei dele que também já

havia descido do seu e, sem mais nem menos, desferi-lhe um tremendo soco na boca do

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estômago. Ele começou a vomitar se contorcendo de dor e com dificuldade me perguntou: - Porque você fez isso?

- É para você aprender – respondi-lhe... Na outra noite ele voltou com sua mãe para continuar a feitura dos doces e nada disse, como se nada tivesse acontecido. À essa altura eu já completava 24 horas de arrependimento por aquele gesto insano, mais ainda ao perceber que ele não me guardava mágoas. Essa sensação de injustiça perseguiu-me por muito tempo. Foi uma impressão forte para uma criança de 10 anos...

Mas felizmente nem tudo era violência, ao lado dessas induções plantadas em nossa geração, havia ainda também alguma pureza, não estávamos contaminados pela televisão que chegou em nossa cidade a partir de l955.

Ainda no dia do casamento de minha irmã, aconteceram situações que me trazem saudades. Uma enorme gambiarra de lâmpadas instaladas no pequeno pátio da nossa casa, açoitava a escuridão da noite que já se instalara após a cerimônia religiosa. Uma profusão de convidados começava a chegar para a festa. Era também um período em que os candidatos às próximas eleições para prefeito já estavam em plena campanha eleitoral. Os noivos receberam de presente do então prefeito Amintas de Barros, um jogo de chá de legítima porcelana chinesa, o que era, à época, um pequeno luxo. Essa proximidade com o prefeito se dava por duas razões: primeiro porque meu pai era funcionário da prefeitura; segundo, porque trabalhara na campanha do Amintas. Este incluíra meu velho no rol das pessoas que muito contribuíram para sua vitória. Lembro-me de que, após sua posse, o recém-eleito ofereceu um churrasco comemorativo em sua homenagem. Meu pai me levou. O prefeito, um advogado saído de algum burgo, com sua fala interiorana, rasgou um discurso matuto – sem dó nem piedade – fazendo Camões revirar em sua tumba:

- Ganhei essa cruiz que é a prefeitura e ocêis há de me ajudá a carregá ela. Vô também carçá e asfartá esse bairro todo. Realmente ele cumpriu a promessa. Sua casa, também no bairro, nunca ficou pronta antes de sua eleição. Empossado, ele a transformou numa mansão. Na rua onde morava, o prefeito mandou construir uma fonte luminosa, um verdadeiro luxo para os padrões da época.

Compareceram ainda à festa outro futuro prefeito, Jorge Carone. Também Sérgio Luiz, segundo expressão da época, um garoto propaganda da extinta TV Itacolomi.

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Havia ainda a presença de um artista do qual não me recordo o nome, e que fazia um programa intitulado A garrafa do Diabo, de grande audiência na cidade. Combinava temas psicológicos e filosóficos e, através de um truque, fazia a cara do diabo - que era a deste tal artista - aparecer dentro de uma garrafa, onde ele conversava com os personagens, tentando influenciar suas decisões. Era um excelente ator, o qual caprichosamente eu não quis pesquisar sobre sua vida e nome, com o intuito de não remexer muito nas pedras desse mosaico de reminiscências. Tia Anacruse, irmã de minha mãe, era uma mulher à frente do seu tempo, pelo temperamento e inteligência. Recitava versos os quais eu não entendia. Ela fazia uma espécie de desafio com o ator da garrafa do diabo. Eu mal podia acreditar: aquele homem famoso, no quarto de minha mãe...cômodo que improvisadamente transformara-se numa rica exposição de bombons, que seriam gentilmente ofertados ao final da festa aos convidados . O ator não se fazia de rogado e respondia os versos da tia com outros versos. Eu ficava como um tonto dando risinhos ao ouvir aquela manifestação de beleza e cultura. Alguns dias depois minha tia, ao se recordar daquela noite, censurou-me pelos risinhos, uma tremenda injustiça eu achei, por ela não entender o que se passara comigo, o que eu também não sabia explicar.

Meu pai contratara para essa festa, o Conjunto do Arnoud, um grupo local que por mais singelo que possa parecer hoje, causou-me enorme impressão. Era composto de uma bateria tocada pelo próprio Arnoud. Uma curiosidade: o prato metálico da bateria, não tendo um material de qualidade, não causava boa ressonância. Para suprir essa deficiência, ele mandara furar toda a extensão do prato e colocar arrebites bambos que trepidavam quando ele batia, causando um chiado forte suprindo, de certo modo, sua tibieza. Contava ainda com uma maraca, um bongô, um trumpete, um sax, um acordeão e um violão.

Em meio à festa encontrei Roberto Cestari Vinout, um menino que morou com sua família num pequeno barracão que meu pai alugava. Meu velho, querendo conferir algum status insistia em chamar o barracão, de chalé.

Seus pais, o Sr. José Vinaut, um descendente de suíços e sua mulher, dona América Cestari, decendente de italianos, formavam uma família típica dos anos 50: pessoas pobres, cinco filhos. O marido, a única fonte de renda da família; ela, dona de casa dedicada a trabalhar para criar a extensa prole , bem ao estilo da época. Os outros filhos eram Miriam, uma adolescente imperdigada; Jane, menina que andava com as roupas encardidas, muito magra e que, posteriormente, tornara-se afilhada de minha

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mãe; os gêmeos Rui e Davi, os quais a família toda pronunciava Ruimdavi , mas era uma pronúncia natural, sem troça, como lhes saía. O nome da minha mãe também não escapava à má pronúncia. Chamava-se Tônica, mas atendia sempre por Nica, isto é, dona Nica. Para os Cestari Vinaut era Dolanica. Uma família aos moldes italianos: expansiva, barulhenta, muito alegrea e emotiva.

Quando a mãe batia em algum deles, saiam gritando: - Pestalozzi! Pestalozzi! – referência a uma escola para excepcionais.Minha mãe esconjurava seus modos e dizia, como costumava fazer aos outros:-Esse povo não serve. Porém, aos poucos, ela também foi se afeiçoando à família e os preconceitos foram

vencidos. Roberto foi um menino que muito marcou minha infância. Inteligente, esperto,

extremamente alegre. Tinha uma das vistas um pouco estrábica – o que não passou despercebido pela molecada impiedosa do bairro os quais o chamavam de Roberto Visguento. Nunca o vi reclamar disso, encarava tudo com normalidade. A energia da vida brotava-lhe abundantemente e ele sorria e pulava, fugindo para a rua. Nunca podia acompanhá-lo, minha mãe quase sempre proibia, só abrindo exceção aos domingos para irmos à matinê assistir nossos faroestes. Após 3 anos eles se foram e o vazio que ficou no chalé, definitivamente se instalou em mim. Doeu-me forte quando, um dia, andando pela casa recém desocupada, reconheci a marca de sapato num remendo de cimento que seu pai fizera na frente do chalé e ele inadvertidamente pisara quando ainda estava fresco. Foi seu último presente deixado ali, congelado no tempo. Dava para sentir toda a sua alegria da vida naquela pequena marca. No casamento de minha irmã, eu atarefado ajudando a servir os convidados, escutei aquela voz amiga gritando-me:

- Ô Marco... Cumprimentei-o rapidamente e continuei embolado na festa, acabando por não

lhe dar mais atenção. Nunca mais o vi. Sua irmã Jane ainda encontrei em l967 no casamento de minha outra irmã Leni. Jane transformou-se numa moça muito bonita, dona de um corpo escultural. Anos depois, seus pais vieram nos visitar em uma tarde do ano de l990. Coincidentemente eu estava na casa de minha mãe e, quando a campanhia tocou, ao atendê-los não os reconheci: D. América, o Sr. José e Míriam. Estavam bem mudados pelo tempo, daí minha dificuldade. Ficaram ricos, tranformando-se em grandes atacadistas da cidade de Goiânia.

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Hoje não gostaria de encontrar-me com Roberto, não seria mais a criança do meu passado que ajudou-me a ser mais alegre, um pouco mais atrevido, mais ousado...

Corria o ano de l962 o mês de junho, e havia em minha cabeça muitos sonhos para aquele período. O casamento de minha irmã, o meu aniversário e o Brasil sendo bi-campeão mundial de futebol. Havia também o álbum de figurinhas da seleção brasileira, que prometia a cada página completada, prêmios fabulosos para as nossas sempre pobres vidas. Minha mãe sonhava em conseguir um liquidificador; eu, uma bicicleta. Mas quem ganhava com isso, eram os promotores, a DBE, distribuidora de brindes esportivos. Nunca conseguíamos ganhar nada, pois sempre faltava uma figurinha para completar a página. Depois de muitas frustrações, desistimos...

...

Abro um capítulo

Em especial memória de meus avós maternos

Pietro e Marione Esperanzeto,

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razão de meu orgulho em ser seus descendentes…

Capítulo Especial

A casa Paterna

Os móveis da casa de meus pais eram pesados e escuros, presente de casamento do meu avô materno, um Italiano marceneiro, Pietro Esperanzetto, ateu até um certo período de sua vida. Odiava os padres que muito contribuíram para sua saída da Itália. Foi para os Estados Unidos com a família e viveu por lá durante 03 anos , época em que minha mãe, Tônica Esperanzetto, veio ao mundo, tornando-se americana e falando a língua paterna.

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Certo dia meu avô achou que aquela terra não servia para criar família e veio a dar com os costados em terras brasileiras. Princípio do século XX, quando o Brasil importava mão-de-obra estrangeira, principalmente a italiana , substituindo assim a mão de obra do trabalho escravo que a pouco tempo deixara de existir. Veio para Belo Horizonte, cidade recém construída, encontrando aqui grande número de Patrícios que eram contratados principalmente como artífices e faziam acabamentos nas casas da elite recém instalada na nova capital, como também em prédios públicos. Homem prático e sensível, muito sofreu quando vivia no sul da Itália, lavrando a terra e sendo explorado, o que não lhe roubou a sensibilidade. Músico, foi maestro da banda italiana em Belo Horizonte. Na vinda de Santos Dumont na Capital, por ocasião das homenagens ao ilustre pai do 14 bis, regeu a banda italiana na jovem Belo Horizonte.

Até esse período da sua vida tinha sido ateu. Falava uma mistura de italiano e português :

- Se Dio existe, me manda um raio nessa cadeira! – apontando para a que estava sentado.

Um dia conheceu outro italiano, o Sr. Romano Mare, espírita Kardecista, que aos poucos foi lhe convencendo a tornar-se adepto da doutrina. Segundo minha mãe, nas sessões espíritas que fazia na sua casa, vovô que usava avental e chapéu, não os tirava à hora da reunião. Vovó Marione Solo, interferia:

- Tira o chapéu Pietro, o espírito de fulano de tal está aí. Ele replicava:- Tô em mia casa, se quisé, vai te que se assim...

...Não conheci vovô Pietro nem vovó Marione. Ela, também italiana, criou onze filhos.

A filha mais velha, Ermenciata, a tia Ermenciata, nascera do primeiro casamento que teve na Itália.

Marione conhecera Pietro ainda em solo europeu. Dessa união vieram ao mundo dez filhos. Como a música estava no sangue de meu avô, resolveu colocar os nomes em meus tios usando as expressões musicais, que são originariamente italianas: Tia Anacruse, minha mãe Tônica, tia Ligadura, tia Harmônica, tia Mínima.

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Os tios Ritornello, Stacatto, Rubato, Alegro e finalmente, tio Solfejo. Segundo minha mãe, vovó Marione primava por seu bom coração, pois mesmo vivendo com enormes dificuldades materiais, nunca deixava de ajudar quem quer que fosse. Gostava de fazer uma “fezinha” no jogo do bicho. Para buscar intuição e acertar no palpite ficava olhando as nuvens esperando que tomassem a forma de um animal qualquer e assim lhe inspirar à hora de fazer o jogo. Seu filho Ritornello suicidou-se ainda rapaz; apaixonara-se por uma prima. Como a igreja católica decidia essas questões naquela época, tentara uma licença especial com o bispo da metrópole. Sem sucesso, escreveu diretamente ao papa e novamente teve negada a permissão. Sempre metódico, organizou suas poucas coisas e em seguida tomou duas colheres de arsênico. Saiu em seguida e visitou os irmãos casados, despediu-se normalmente como sempre fazia e voltou para casa. Trancou-se no quarto e aguardou em lenta agonia sua última hora. Vovô por fim notando alguma coisa de estranho bateu à porta do quarto do filho. Não ouvindo nenhuma resposta, acabou por arrombar a porta. Encontrou-o já morto. Em desespero sacudia-o exclamando:

- Burro! Burro!... Em todas as famílias os filhos nunca saem com as mesmas características, o mesmo gênio, a mesma personalidade; os filhos de Pietro – como não poderia deixar de ser – também saíram, cada qual o mais distante do outro: Ermenciata era orgulhosa, dona de enorme altivez. Stacatto, como o nome bem sugere, possuía o gênio explosivo junto a um enorme talento musical. Tocava clarinete. Certa vez meu avô discordou dele por algum motivo sobre música e num ímpeto de raiva, o pai tomou-lhe o clarinete e quebrou-o em pedaços e disse-lhe: - Cê num toca mai!

O tio engoliu a raiva, esperou o pai sair e começou pacientemente a colar os cacos de sua querida clarineta. Seu sonho era um dia tocar na banda italiana, e apesar das intermináveis brigas com o pai, um dia ser regido por ele. Esperava o velho sair para ensaiar a banda e voltava para o trabalho de recuperar o instrumento. Até que um dia terminou a empreitada e sempre na saída do pai ia treinar. Uma noite quando estudava, meu avô voltara mais cedo do ensaio. Entrou, ouviu um som de clarinete, escutou um pedaço da execução e acabando de entrar em casa argüiu a mulher:

- Má quem tá tocando? Vovô Marione quase sem cor no rosto gaguejou:

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- É...é o Staccato. Vovô entrou de supetão no quarto onde o tio estudava. Esse levou um tremendo

susto. Vovô lhe perguntou:- Cê inda qué tocá na banda? O tio assustado balbuciou: - Sim...De todos, o filho mais excêntrico, estranho, foi sem dúvida o tio Rubato. Seu nome

vem do momento em que se quer força, energia, no trecho musical. Assim ele era. Segundo minha mãe, Rubato era o filho mais querido do velho e esse tio tinha um

projeto de vida: salvar a humanidade... Lia montanhas de livros. Física, química, filosofia, mecânica, astronomia, medicina, etc. Queria descobrir o princípio de como chegar a construir um moto contínuo, por mais que a ciência oficial tivesse sempre negado essa possibilidade. Ele sempre dizia:

- Ainda vou construir um moto contínuo e as pessoas terão cada um o seu próprio gerador, produzir a sua eletricidade, sem depender do poder econômico.

Gastou a vida nessa procura e sempre dizia: - Sinto que estou quase descobrindo o princípio...

Era também espírita fanático, quase chegando à loucura se alguém discordasse da teoria Kardecista. Os filhos nunca freqüentaram uma escola como as outras crianças; ele os ensinava a ler e escrever em casa. Cresceram desajustados, cheios de complexos, embora pessoas sensíveis e inteligentes. A pobreza era enorme. Viviam de bicos feitos em uma pequena serralheria montada nos fundos da casa. Os cômodos eram divididos com saquinhos plastificados de leite e costurados um a um. Sua mulher Marta, era a personificação da mágoa. Detestava a família Esperanzetto.

Aos dezessete anos fui passar alguns dias na casa deles. Faziam sessões espíritas todas as noites. Havia um homem de nome Anselmo, o qual devotava eterna gratidão ao meu tio. Isso porque no seu tempo a tuberculose grassava, matando sem dó nem piedade. Ainda não existiam antibióticos para a cura da doença. Meu tio com pressupostos conhecimentos de homeopatia, conseguira a cura do nosso Anselmo. Esse tornou-se o próprio Sancho Pança do tio Dom Quixote. Servia-o a hora e como ele bem o entendesse. Estávamos no período da guerra dos 06 dias no Oriente Médio. Os Israelenses tomavam a colina de Golã, isso com o aval dos Estados Unidos. À época, o

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presidente norte-americano era Lyndon Johnson. Tio Rubato então ficava furioso com ele pela ingerência política na questão árabe-israelense. O tio dizia:

- Vamos fazer uma sessão mediúnica e trazer o espírito desse caboclinho aqui...Ele acreditava que poderia induzir o espírito de pessoas a incorporarem no

médium local. No caso, era o nosso Anselmo, que segundo um expressão da Umbanda, seria o “cavalo” que iria receber o presidente. Para isso, o tio preparava de antemão uma bacia cheia de carvão e deixava ao lado do Anselmo. Calculava o fuso-horário dizendo:

Agora são 20 horas, portanto 22 em Washington – hora de velho já estar na cama! E começava a induzir o Anselmo:

- Anda rapaz, traz o homem aí que preciso ter uma conversinha com ele. Passados alguns minutos, o nosso médium começava, num ritual de gemidos e estrebuchos, a dar a entender que uma outra entidade já estava ali presente. O tio então entrava em ação falando no ouvido do médio:

- Você já tá aí né... seu presidente de merda! Fica provocando guerra entre os povos! Seu filho da puta! Vou te dar uma coça que prá você aprender a deixar os outros sossegados...

Tio Rubato colocava-se em torno do Anselmo, puxava-lhe os braços para traz em forma de um xis. Dava para escutar uns estalinhos vindo da ossada e músculos do pobre coitado. Em seguida o tio forte que era, pegava-o como se fosse um saco de batatas, virava-o de cabeça para baixo e socava-lhe a cabeça quase careca na bacia de carvão, como se ele fosse um pilão. Segundo ele, aquilo era necessário para descarregar as energias do espírito e então este ficar mais livre da influência de outros espíritos obsessores, podendo, enfim, colaborar melhor e espontaneamente com todo o processo. Por fim, reconduzia Anselmo para a cadeira e dizia ao suposto espírito ali incorporado:

- Você vai embora agora dormir e volta amanhã para continuar-mos a nossa conversa. Não se esqueça que eu estou de olho em você.

Terminada a sessão, o pobre Anselmo mais parecia um mulambo, extenuado, a roupa toda em desalinho e dizia ao tio:

- Mas Rubato, será que precisa desse processo todo mesmo?O tio então explicava:- Claro que sim, porque quando você subjuga a matéria do médium, submete

também o espírito ali incorporado.No outro dia, levantava cedo e corria à banca de jornal. Comprava e folheava o

exemplar à procura de reportagem sobre a guerra. Lia e depois comentava:

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- A guerra já está retrocedendo um pouco, não podemos distrair e descontinuar o nosso trabalho. O Lindon Johnson até que não é mal sujeito, tá é mal acompanhado, principalmente pelos espíritos obsessores.

Na outra noite, começava então tudo de novo e dava pena ver a expressão de desânimo do Anselmo. Isso aconteceu por mais uma semana, até que o tio cansado da empreitada, mudou de curso arranjando um novo motivo para se entreter...

Alguns anos depois, já era l976. Eu havia casado e nesse período trabalhava com um táxi. Certa noite alguém bateu à porta de minha casa. Quando fui atender, surgiu ninguém mais ninguém menos que o velho tio Rubato. Entrou e já foi logo atacando:

- Sabe, estive pensando, preciso de dinheiro para adiantar mais minhas pesquisas. Onde obtê-lo? Você já ouviu falar sobre Peter Lund?

- Não - respondi.- Bem – prosseguiu – Peter Lund era um Dinamarquês paleontólogo e desenganado

pela medicina, sofria de tuberculose. Dom Pedro II sabendo disso, quis tirar alguma vantagem do fato. Sabedor das propriedades curativas das águas de Lagoa Santa, mandou fazer ao ilustre cientista uma proposta: daria-lhe uma polpuda pensão vitalícia e ele viria morar nos arredores de Lagoa Santa. Enquanto o cientista tentava se curar do mal que o afligia, em troca, pesquisaria a região para o governo. A resposta fora imediata e logo Peter Lund já estava instalado na região.

- Sim – aquiesci como se confirmasse a história.- Mas... e daí ?- Daí é que o velho realmente curou-se da enfermidade e começou a escavar a

região, tendo descoberto as grutas da Lapinha e Maquiné. Descobriu muitas ossadas de animais pré-históricos, objetos do período paleolítico fazendo a região famosa, o que sem dúvida deve ter agradado em muito a Pedro II. Depois o cientista morreu.

- Bem, mas onde a gente entra nisso?- Acontece que ele, o cientista, era um homem solteiro e vivia mais em cavernas

do que em locais comuns. O que me leva a conclusão de que ele deve ter guardado suas economias em algum lugar, porque bancos não existiam naquele lugar. Talvez uma pesquisa ao redor onde ele viveu, possa nos dizer onde se encontra o seu dinheiro. Descobri que existe um lugarejo chamado Peter Lund, depois de Taquarassu, passando antes por Santa Luzia. O que precisamos é ir até lá e fazer uma busca como quem não quer nada.

- Mas onde eu entro nisso? - Perguntei-lhe.

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- Você tem o carro que pode nos levar até lá. Além disso, pode auxiliar com sua intuição que é muito boa. Iríamos eu, você meus filhos Neco, Nanci e Nelita. Nina não quer ir.

- Acontece tio, que vivo do meu carro e um dia sem trabalhar na praça pesa muito!- Te pago o dia, quanto você fatura num desses bem rodados?- Hum... mais ou menos 300... 350 mil cruzeiros.- Te dou os 350 mais o lanche que a gente leva. Topa?- Está bem. No outro dia estávamos na estrada que levava a Peter Lund. No fusca além de mim

e do tio, estavam os primos, as picaretas e pás, sanduíches de pão com salame e limonada quase morna. Chegamos na pequena cidade, na verdade um lugarejo com uma estação de trens antiga, dos tempos da Maria Fumaça. Tinha uma pequena praça com alguns velhos tomando banho de sol. O tio fez algumas perguntas sobre Peter Lund e esses responderam que os pais deles conheceram o cientista e que para eles, era um sujeito esquisito.

Por exemplo: ele resolvera clinicar no lugarejo. De manhã antes de iniciar as consultas, punha o dedo indicador na boca e conforme o lado em que soprasse o vento ele não atendia ninguém. Em outra, quando estava atendendo a um paciente, algumas vacas de cincerro no pescoço perto da sala do consultório começaram a fazer barulho, mandou procurar o dono das vacas, fez-lhe uma oferta, comprou as vacas doou-as à população com a condição de mandá-las para bem longe dali. A essa observação o tio depois comentara com a gente:

- Dinheiro para comprar vacas hein... – estamos no caminho certo.Após algumas informações, encontramos o cemitério. Ao lado deste existia a

moradia do zelador. Batemos palma e alguns minutos depois apareceu um senhor atencioso mas de aparência matuta. O tio disse-lhe então que tínhamos o intuito de fazer uma pesquisa sobre a vida de Peter Lund e visitar a tumba do famoso cientista. O zelador então explicou:

- Visitá a sepurtura ocêis pode, só que ossada num tem.Explicara que depois de sua morte, algum tempo depois a Dinamarca reclamara o

traslado de seus restos mortais. A pequena cidade então conservou a sepultura e um pequeno busto para não perder de vez tão importante referência. Esse inesperado tirou um pouco o entusiasmo do pequeno grupo de caçadores de tesouro. Mas o tio não: ele

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nunca desanimava. O zelador deixou a chave conosco para que pudéssemos ficar a vontade e foi para sua casa. Tão logo este desapareceu de vista o tio disse-me:

- Marco, sente-se aí e concentre-se. Veja se sente alguma intuição.Sentei-me, mas o que me veio foi uma enorme vontade de rir. Meus primos ali na

minha frente com ares patéticos de picareta e pá nas mãos esperando uma dolorosa, uma desesperada intuição...

Eu disse então em tom imperativo:- Cavem ali_ apontando para uma parte qualquer de um barranco no fundo do

cemitério e que servia-lhe de proteção natural. Cavaram, cavaram. A natureza os ajudara pois havia chovido na véspera. Não tendo encontrado nada a não ser terra, pararam extenuados. Foi então que dei outra ordem:

- Agora, cavem naquele canto – apontando para outro lado do barranco.Nova decepção. Tentaram ainda em alguns outros pontos e só colheram o suor dos rostos. Tio Rubato então disse:

- É... A turma do Barrabás me derrotou novamente, vamos embora.Em tempo: a turma do Barrabás era uma referência ao personagem arruaceiro que

fora trocado por Cristo na hora da crucificação segundo os evangelhos. O tio dizia que turma dele no mundo espiritual era a turma do bem e a do Barrabás, a do mal. Como a turma do bem era menor, sempre levava uma coça da turma do mal. Ao sairmos do cemitério, ele ainda parou, olhou para o chão apanhou um pouco de um tipo qualquer de capim e disse: - Vou levar esse capim e mandar analisar; veio-me uma intuição que ele cura câncer... Voltamos e deixando-os em sua casa, sua mulher Marta veio em nosso encontro, perguntando: - Como é, trouxe o ouro?

Antes que ele pudesse arranjar uma explicação qualquer, ela concluiu em tom sarcástico apontando para o próprio antebraço .

- Isso aqui seu Rubato, é que traz o ouro...O tio sem muita convicção ainda rebateu:- Você é uma ignorante, não entende nada!Fui embora para casa cansado, com o dinheiro no bolso recebido pela viagem, mas

no fundo chateado comigo mesmo. Parecia-me ter-lhes furtado aquela quantia que tanta

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falta faria àquelas bocas quase famintas. Mas havia também minha família que igualmente esperava o pão de cada dia. Já havia se passado uma semana quando certa noite alguém bateu palma em minha porta. Era a palma inconfundível do tio. Essa visita certamente iria me roubar horas de sono, pois quando ele aparecia, seus assuntos eram intermináveis e ainda por cima eu tinha que levá-lo em sua casa – geralmente de graça – pois ele nunca me disse, mas parecia estar implícito que, durante o dia eu era motorista de táxi; à noite, eu era sobrinho, portanto a corrida até a sua casa, deveria ser de graça.

Voltando, Tio Rubato sentou-se, tirou do bolso o que parecia ser um pequeno pêndulo de madeira atado a um pedaço de barbante encardido e começou a balançá-lo de um lado para o outro dizendo:

- Sabe, esse pêndulo e fantástico, me diz muitas coisas quando lhe consulto. Por exemplo: quando perguntei como seria possível conseguir o dinheiro para as pesquisas, ele me deu a intuição.

- E qual foi a que ele lhe deu?- Tiradentes quando participou da conjuração Mineira não tinha dinheiro para

tantos movimentos, tantas andanças pelo país afora. Era um simples alferes da cavalaria. Portanto, quem financiava todo esse movimento? Eram os Inconfidentes, pessoal abastado que certamente lhe passava as quantias - muito provavelmente em moedas de ouro. Quando ele foi pego, esse ouro deveria estar guardado em algum lugar em Vila Rica ou Ouro Preto - como queira. Precisamos pesquisar isso de perto...

- É, quem sabe um dia...- respondi já me esquivando.Depois disso comecei a distanciar dele. Sua presença começou a incomodar-me.

Ele por fim entendeu e afastou-se. Doze anos depois, eu já trabalhava na Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, quando um dia uma mulher, também funcionária que eu conhecia somente de vista, parou-me e perguntou-me:

- Vi seu sobrenome no quadro de funcionários...Esperanzetto. Você por acaso é parente do Rubato Esperanzetto?

- Sim. Sou sobrinho dele.- Sabe como ele morreu?- Não. Há muitos anos não tenho contato com a família.

- Pois é – continuou ela – sou sobrinha da falecida tia Marta, esposa do Sr.Rubato. Seu tio tinha um problema sério de hérnia, a qual ele nunca tratou. Quando a coisa complicou levaram-no para o hospital quase à força. Foi operado, mas no dia seguinte à

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operação, fugiu da enfermaria e a coisa complicou. Quando conseguiram retornar com ele para o hospital ele já estava mal. Para completar dizia a todos que estava grávido e de seus mamilos realmente saía leite... Nunca mais vi os primos.

...

Capítulo II

A Era do Rádio

Em l922, o rádio fez sua estréia no Brasil. Segundo Edgard Roquette Pinto, pioneiro da radiofonia nacional, fora uma curiosidade sem maiores conseqüências.

Implantado em nosso país, tinha como uma de suas metas uma singela finalidade: levar cultura ao homem do campo. Transmitia no princípio programas de música clássica. Fico hoje imaginando, como seria essa receptividade do homem do campo. Pense um roceiro daquela época pudesse comprar um rádio que custava caro, se pusesse a ouvir um Verdi, um Pucini, dizendo para a esposa:

- Ô muié, leva a criançada pru terrero! Cê num tá vendo qui eu tô escutando A Cavalgada das Valquírias, de Wagner?

O rádio foi percebido pela nascente mídia, que rapidamente o transformou de veículo de cultura em veículo de lazer, introduzindo programas de entretenimento e as propagandas em forma de locução ou em jingles.

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Algumas letras guardei de memória, de tanto escutá-las no rádio em minha meninice. Havia um humor limpo, o povo participava mais da vida nacional. Numa época de tanta censura as sátiras eram um caminho, o rádio o veículo.

Quando o Pacto de Munique (assinado pela Inglaterra, França, Itália e Alemanha), deu a Tchecoslováquia de presente a Hitler, Ary Barroso, satirizou o acordo com sua marchinha:

Uma pitada de massa de tomateAll rigth, all rigthE três gotinhas de molho inglêsSó três! Só três!Algumas gramas de petit- poisFrançois! François!E ficou pronto o pirão do chancelerQue papou de colher!Que papou de colher!

Em casa, eu e minhas irmãs em volta do nosso rádio de cabeceira, um velho Mullard, valvulado, nos deliciávamos com esses programas. Quantos cantores despontaram para o sucesso através dos programas de auditório, tais como, Emilinha Borba, Marlene, Francisco Alves, as irmãs Carmen e Aurora Miranda, e tantas outras.

Acompanhávamos as novelas com vivo interesse, e às sextas -feiras à noite, não perdíamos o programa de humor, o Balança-Mas-Não-Cai, que fazia grande sucesso. Lá estava Chico Anísio com o quadro A Escolinha do Professor Raimundo, isso em l958.

Quem dessa faixa etária, não se lembra da novela que durou anos: Jerônimo, o heroi do sertão, com seu fogoso cavalo o Príncipe, e o inseparável ajudante o Moleque Saci com o cavalo Goiabada.

Nosso herói tinha também uma noiva com quem nunca se casava, Aninha. Era uma perseguição sem fim aos bandoleiros do nosso sertão. A novela era transmitida todos os dias às l8 horas.

Sentia uma espécie de angústia com essa novela, não sei se porque era levada ao ar em uma hora de crepúsculo, ou se pelo enredo. Mas ouvia, afinal, era o nosso único herói do gênero faroeste.

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A Rio Gráfica editora lançou, após o sucesso da novela, a revista em quadrinho Jerônimo, O Herói do Sertão, onde ele aparecia vestido de preto, com uma camisa de mangas compridas, sem gola e apertada. O moleque Saci sempre usava uma blusa xadrez de mangas compridas. Era um neguinho de cabelos encarapinhados e uma expressão doce que em nada lembrava uma pessoa que vivesse entre tiros e tocaias...

Eu ficava embevecido com a maravilha que era o rádio. Quando à noite ninguém ia para a sala de casa, eu apagava a luz e ficava olhando o brilho abrasado das válvulas. Parecia um prédio com todos os apartamentos em luz acessa. Quem conheceu uma válvula, pode entender o que tento explicar. Em minha ignorância à época, com relação ao processo de transmissão do som, achava que as vozes dos locutores vinham pelo fio e entrava dentro das válvulas.

Depois aprendi a confeccionar o chamado rádio galena. Consistia de um pequeno pedaço de pedra galena, um mineral que possui a propriedade de um condensador variável isto é, um artefato que faz com que o rádio sintonize várias freqüências, possibilitando a troca de emissoras. Tudo acoplado a uma antena presa a dois bambus, o mais alto possível, e interligado a uma bobina, feita de fio de cobre, enrolada em uma lata de talco, pedaços de telefone, que faziam o nosso fone de ouvido. Era uma beleza escutar o radinho, uma verdadeira magia. O locutor ali, invadindo com sua voz nossas engenhocas.

Minhas irmãs Mara e Leni sabiam quase todas as letras das canções de sucesso. Existia uma revista especializada no ramo, a revista do rádio, com as músicas e também as eternas fofocas dos bastidores.

Nesse período as marchinhas de carnaval eram o caminho predileto para as sátiras. Havia uma que falava da revista do rádio:

Ela é fã da EmilinhaE do César de Alencar Grita o nome do CaubiE se põe a desmaiarPega a revista do rádioE começa a folearÉ uma nota aqui, é uma nota alíE o dia inteirinho ela não faz nadaEnquanto isso na minha casa

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Ninguém arranja uma empregada...

Quando ainda existia, a Feira Permanente de Amostras, que foi demolida para a construção do nosso terminal rodoviário, abrigava o auditório da Rádio Inconfidência. O acesso era gratuito. Eu gostava de matar aula quando estudava à noite e ir para lá assistir ao vivo, a transmissão das novelas. Os atores no palco, um microfone de pé para cada um. Traziam nas mãos os scripts, se errassem, ia para o ar assim mesmo. As paredes eram revestidas com eucatex perfurado, um tipo de chapa de papelão prensado, que evitava o retorno do som. Quando um ator, durante a transmissão da novela, precisava demonstrar que alguém chegava, ele mesmo pisava forte no assoalho do palco, o som de um beijo que o personagem supostamente daria na amada, era um som tirado dele beijando o dorso de sua própria mão...

As propagandas, muitas eram cantadas ali no palco. Lembro de uma prima de meu pai, Doroty: estava sempre pegando um bico nos comerciais. Havia uma que mais me fazia lembrar dela, a propaganda do fubá Pramar.

Usando a melodia do chorinho, O Tico-Tico No Fubá, colocaram a letra:

Um pacotinho láUm pacotinho cáUm pacotinho de Fubá Pramar...

Quantas vezes morria de rir com Mauro Gonçalves, o Zacarias dos Trapalhões, que começou sua carreira artística aqui em Belo Horizonte, com o personagem Caticó.

Aos domingos, voltava lá pela manhã para assistir o programa Gurilândia, com o inesquecível apresentador, Aldair Pinto, sob o patrocínio de:

Sapataria Leila, Leila, Leila, cada degrau, um cruzeiro de economia! ( A loja era no segundo andar).

Na madrugada de 24 agosto de l954, o Repórter Esso entrava com seu prefixo:

Amigo ouvinte, aqui fala o Repórter Esso, testemunha ocular da história...

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Heron Domingues noticiava o suicídio de Getúlio Vargas. Fora uma comoção nacional. Morrera o Pai dos pobres. O povo assim o chamava. O rádio já estava mais que presente quando uma batida sincopada no violão de João Gilberto, fez nascer a Bossa Nova. Era o ano de l958, e o termo passava a designar tudo o que era diferente.

Nesse período, estive adoentado com sarampo. O Dr. José Ferreira Quintão médico e amigo da família veio à nossa casa para me fazer uma consulta. Disse:

- Vamos fazer diferente, não irei auscutá-lo na cama, sente-se nessa cadeira - apontando para uma que estava na cozinha - Isso é Bossa Nova – arrematou entre risos.

O rádio estava presente em l960 quando concorreram à presidência, Jânio Quadros, Adhemar de Barros e o Marechal Teixeira Lott. João Goulart e Milton Campos eram candidatos a vice. Naquela época faziam as campanhas em separado, ou seja, o candidato a presidente não trazia seu vice já engajado em sua chapa. Hoje, quando o candidato a presidente vence, o seu vice está automaticamente eleito. Naquele tempo, o presidente vencedor tinha que aceitar o vice eleito, mesmo que esse viesse de outro partido e com outra ideologia.

O rádio esteve presente em nossas vidas. Perdeu um pouco de espaço com o advento da televisão, mas não perdeu a magia. Quando ele ainda reinava soberano, tinha alguma coisa em comum com os livros: o inimaginável. Com a mesma história milhões de ouvintes criavam milhões de rostos e lugares.

A partir da década de 70, com a criação do transistor, as válvulas foram aposentadas e aparelhos mais potentes e com uma qualidade de som superior, chegaram aos consumidores. Surgiram as modulações em FM, o que modificou completamente a filosofia dos programas.

Hoje, com um pouco mais de humildade, ele ainda é o companheiro do vigia noturno, o irmão inseparável dos cegos. Na incessante e crescente tecnologia, luta por seu espaço entre os computadores e os sofisticados aparelhos de som.

Sua mais importante missão já foi cumprida décadas atrás, quando foi elemento de verdadeira integração nacional. Realizou sua tarefa, sem descaracterizar culturas locais, ao contrário do que fez a televisão, nos fazendo todos japoneses, quase todos iguais, dizendo as mesmas banalidades.

A alma do rádio nos é revelada através das irmãs Carmen e Aurora Miranda em versos síntese:

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Nós somos as cantoras do rádioLevamos a vida a cantarDe noite embalamos teu sonoDe manhã nos vamos te acordarNós somos as cantoras do rádioNossas canções cruzando o espaço azul Vão reunindo num grande abraçoCorações de norte a sul.

...Capítulo III

As Festas

Como haviam tantas em minha primeira infância... Nos anos cinqüenta, tanto em minha casa como nas de nossos parentes, existiam em profusão. Mas também assim era por toda parte em nossa cidade. Não existia a variedade de ofertas para diversões como hoje. Fora os cinemas, eram os bailes, as festinhas caseiras, os aniversários. Nos casamentos, quase uma questão de honra haver uma boa mesa e bebidas distribuídas com toda fartura aos felizes comensais.

Em nossa casa, faltou muitas vezes o café com pão das duas horas da tarde, mas não faltavam recursos para uma festinha, mesmo que não fosse aniversário de ninguém ou algum casamento à vista. Nesses dias, nós irmãos, em casa, gostávamos. Ou não sei bem, se somente eu gostava. Porém, existia um certo temor das extravagâncias que geralmente nosso pai cometia. Minha mãe detestava essas reuniões. Sofria sempre com a tirania do velho, fosse no preparo das comidas, fosse na implicância sistemática que ele exercia sobre ela. Mas havia o lado alegre com a chegada dos primos e tios.

Tio Pércio, marido de tia mínima, era um espetáculo á parte nesses dias. Possuía um defeito físico, tendo nascido com uma perna mais curta que a outra. Usava para compensar , uma bota com um enorme salto. Isso porém, não impedia que ele mancasse ao caminhar. Ainda assim, era o que mais dançava com as outras tias. No auge da alegria, ele sempre de terno e gravata, ao rodopiar bailando, levantava a perna menor, como um cachorrinho ao fazer xixi no poste e gritava eufórico:

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- Chula!Nós crianças, ríamos felizes com aquele gesto caricaturesco. Às vezes os encontros

eram em sua casa. Ligava uma enorme radiola que havia em sua sala e sempre começava com a mesma música, parecendo um prefixo: Arrivederci Roma - era o nome de uma canção Italiana.

Em uma outra sala da casa que possuía, havia um móvel escuro e comprido, todo entalhado, uma peça cara e luxuosa. Em cima dela havia uma estatueta negra de uma índia, agachada, com um arco retesado e uma flecha apontando para frente, com se fosse abater uma caça. Minha irmã Cecy, tinha verdadeiro pavor dessa peça. Em seus diminutos três aninhos, achava que a índia estava viva. Chorava desesperada. Tia Mínima, para lhe superar o medo dizia tomando-a pelo braço:

- Veja Cecy, não tenha medo, ela não é de verdade, é feita de massa.

– É de massa? - perguntava para se certificar que ouvira bem a explicação que lhe trazia algum alívio.

Mesmo assim não arriscava a se aproximar sozinha da índia. Ficava de longe, perto da porta e, quem passasse, ela apontava para a estatueta e exclamava:

- É de massa! É de massa!Certa vez, nossa mãe fizera uma galinha ensopada para o almoço, tendo

adicionado um pouco mais de pimenta ao molho. Avisou com antecedência:- Cuidado, a pimenta está brava! Cecy, à primeira porção que levou à boça, cuspiu tudo, pedindo água para lavar o

ardor da pimenta. A frase saiu invertida, dado o seu desespero:- Água! Pimenta na boca da galinha!Em um de nossos inesquecíveis natais, ganhara de presente um boneco enorme,

ou melhor, um bebê. Nosso pai então lhe explicou:- Tenha muito cuidado em não chegar o boneco perto do fogo, que ele é feito de

um material chamado celulóide. O fogo pode chegar até ao teto.Exagerava para que ela se impressionasse e se mantivesse afastada do fogão.

Todas as pessoas que por acaso chegassem em nossa casa, ela corria e mostrava o boneco, dando as devidas explicações:

- É de celulóide, se pegar fogo, vai até no teto! - apontando com os dedos gordinhos, o forro de madeira do teto.

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Outra casa em que sempre havia baile, era na do primo de mamãe, o alegre Manduca. Sua mãe, irmã de vovó Marione, a tia Émi, morou muitos anos em Goiás e tinha uma pronúncia roceira muito acentuada. Nossa mãe contava que, alguns dias depois do meu nascimento, quando ela me dava o banho, tia Émi estava presente. Fiz um movimento brusco e virei o corpo na bacia. A tia, aos gritos exclamava:

- Tônica, Tônica, isso é caso prá jornali! Mamãe, contava que ela sempre ao vir a

Belo Horizonte, dizia:- O que mais gosto quando venho aqui, é passear no centro, e ver as lojas com

suas bela litrine. Quando o primo Manduca casou, trouxe-a de Goiás para morar com ele. Nos bailes

em sua casa, lá estava a tia, sentada, segundo ela, apreceiando as dança.Dançavam não só os adultos, nós crianças também. Aos seis anos, eu possuía um

terno só para essas ocasiões. Era bege e de calças curtas; camisa social e gravata xadrez vermelho e azul. O nó era fixo e para sustentá-la ao pescoço, havia um elástico. Durante o baile, meu pai, no auge da euforia que aqueles momentos lhe proporcionavam, ia me gritando:

- Marco, Marco, olhe o ritmo, isso não é uma valsa, é um bolero!Nós meninos, dançávamos com as primas da nossa idade. Ou melhor, dançávamos

todos: tios, pais, vizinhos... E lá estava novamente o grito de guerra do tio Pércico:- Chula!.. Porém a melhor festa em l954 em nossa casa, foi no nascimento de nossa

irmanzinha Mariana, dois anos mais nova que Cecy. Nascera prematuramente, com sete meses. Achávamos que ela não resistiria, tamanha fragilidade e pequenez. Não tinha forças nem para sugar o seio materno. Nossa mãe lhe dava o leite em uma pequenina colherinha de café. Seu choro, quando acontecia, parecia mais um gatinho miando. Porém, aos poucos foi se tornando forte e superando aqueles primeiros dias difíceis. Aos dois anos de idade, parecia uma bonequinha, com os cabelos loiros e toda cacheadinha. Era o dodói da casa, o que naturalmente despertava os ciúmes de Cecy, que vivia querendo enfiar o dedo nos olhos dela. Mariana era o retrato da inocência. Ainda nessa idade, tropeçara em uma banqueta, um móvel de assento oco, onde se guardava em seu interior, linhas de costura, agulhas e tesoura. Tinha as quinas de madeira. Ao bater a cabeça, a peça cortou-lhe ao meio o lóbulo da orelha esquerda. O sangue jorrou forte para o desespero de nossa mãe. Levou-a em seguida ao pronto socorro. Ficamos em casa

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penalizados, esperando impacientemente que voltassem logo. Quando finalmente nossa mãe chegou com ela nos braços e dormindo, foi um verdadeiro alívio. Estava descorada, com um enorme curativo envolvendo toda a orelha. Não sei bem o que aconteceu, mas parece que a anestesia não pegou o suficiente. Costuraram assim mesmo. Mamãe contou-nos que ela gritava tanto e esfregando com tamanho desespero um pezinho no outro, acabou por soltar a sola de um dos pés do sapato. Quando acordou em seu berço olhava um a um de nós, parecendo ainda fora de si. Aos poucos superou aquele momento e, todas as vezes que via a banqueta exclamava assustada:

- Manqueta! Manqueta!Cresceu alegre e forte, hoje uma senhora especialista em massoterapia, onde vai

servindo um e outro com todo desprendimento. As festas já se foram, nossa meninice evolou-se num piscar de olhos, mas

conservou-se nas doces lembranças, as quais, quando queremos, tocamos magicamente em seus cordéis, e antigas traquinagens novamente voam livres como um gênio liberto de sua garrafa...

...

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Capítulo IV

O Curso Chopin

Quando retomei estes meus escritos no computador, propositadamente inseri o cd player e escolhi a faixa de Mozart, a Pequena Serenata Noturna, porque estou retornando ao longínquo ano de 1956.

Meu pai estava me levando para fazer a matrícula no primeiro ano escolar no Curso Chopin, um estabelecimento particular localizado no bairro do Prado em Belo Horizonte. Era uma escola que gozava de sólida reputação, freqüentada pelos filhos da classe média emergente, rígida, disciplinar, um tanto aos moldes militares, uma extravagância para os nossos parcos recursos: eu estudar ali! Ainda mais que o velho não oferecera a mesma chance aos outros irmãos que estudaram em escolas públicas.

Quando estávamos quase chegando ao Curso, passamos pela porta da casa do escritor Jorge Azevedo e lá de dentro vinha o som forte e vibrante da música de Mozart. Nunca a havia escutado antes, mas achei-a alegre, assim como eu me encontrava, prestes a conhecer um mundo novo de livros e cadernos, de colegas que eu quase não tive. Meu pai efetivou a matrícula, pegou a lista de materiais e fomos comprar o uniforme no Mundo Colegial. O cheiro da loja, assim como o cheiro da pasta de couro e a merendeira comprada na Malas Boa Viagem me levaram a uma euforia jamais experimentada. Uma nova vida se descortinava aos meus oito anos de idade. Os cadernos encapados com papel impermeável vermelho, as enormes etiquetas classificando cada disciplina escolar e o luxo supremo: meu primeiro livro de leitura, O Livro de Lili. Eu não entendia uma palavra do que estava escrito nele, pois naquela época não se alfabetizava antes do primeiro ano. Quase não havia o pré-escolar naquele tempo, que era chamado de Jardim da Infância, onde as crianças desenvolviam mais a socialização. O Livro de Lili, fruto da criatividade de Anita Fonseca, foi considerado revolucionário na época, com uma nova visão pedagógica, introduzindo fichas com frases inteiras para

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que as crianças copiassem, condicionando-as a uma visão mais panorâmica da lição do que o superado sistema do antigo b com a, ba.

Somente em um detalhe o livro pecava: a bonequinha Lili, que ilustrava o livro, nada tinha a ver fisicamente com as crianças brasileiras: Na aparência de uma criança nórdica, bochechas rechonchudas e vermelhas, cachinhos loiros e as roupinhas dentro de um padrão europeu, ainda assim não deixava de encantar. A primeira lição vinha:

Olhem para mim,Eu me chamo Lili.Você gosta de doce?Eu gosto tanto de doce!

Porém, era da segunda lição que eu mais gostava:

Olhem a minha meia;A minha meia está furadaEu não sei coser Como há de ser?

A professora era a Dona Celina Muzzi. Eu entendia Dona Celina Música. De música ela não tinha nada. Era extremamente baixa, muito branca e o rosto e braços tomados de sarda. Já foi dando, de cara, os avisos: proibido conversar em sala de aula! Proibido pedir material emprestado ao colega! Proibido colar exercícios dos outros alunos! Proibido rabiscar a carteira...

Aquelas duas últimas proibições me deixaram confuso: o que seria colar o exercício do colega? Eu não tinha cola, pois não fazia parte da lista de material. Rabiscar carteira? Eu não tinha carteira, lembrei-me da enorme carteira de guardar dinheiro que meu pai usava. E agora? Como eu ia fazer sem cola e sem carteira? Comecei a entrar em pânico, mais ainda quando ela começou a gritar mandando que abríssemos o Livro de Lili e o caderno de atividades e começássemos a copiar a primeira ficha. Não sei como mas aquela tarde passou. Às 17 horas soou a campanhia e à saída, com a criançada aos atropelos, avistei minha irmã Leni que recebera a incumbência de me levar e buscar todos os dias.

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Quando cheguei em casa, meu pai estava a consertar um velho chuveiro Canhos e, aos risos, explicou, para meu alívio, o que era colar exercício e rabiscar carteira.

Comecei com o passar dos dias a sentir um enorme medo daquela escola repressora e, aos prantos, pedir a minha mãe para não ir às aulas. Chorava quase todo o período em um canto da sala. Do outro lado, minha prima Giza fazia coro, chorando o seu tanto. Dona Celina se desesperava e dizia em tom de deboche:

- Tá chorando, vou chamar a mamãe... A palavra mamãe dita por ela me trazia a lembrança e a saudade de casa e o choro aumentava. Os colegas riam, se deliciando da cena. Até que um dia dei uma pausa. Estava sentado ao lado de outro aluno, o Célio Torquato que, de repente começou a fazer-me cócegas debaixo do braço. Eu naturalmente ri, quando dona Celina, vendo–me naquele risinho frouxo, aproximou-se e tascou-me um caprichado puxão de orelhas. Voltei ao choro o resto do ano... Também ali estudavam meus primos Gessé e Celton, irmãos da Giza. Eram dois capetas na acepção da palavra. Gessé era mais velho uns dois anos e já estava na terceira série. Celton, na segunda. Um dia ele resolveu que não queria mais ficar na sala de aula.

Disse à professora:- Vou é voltar para o primeiro ano, quero ficar com o meu primo Marco. Dito isso,

passou a mão em seu material escolar e entrou sem mais nem menos para a minha sala, sentou-se a meu lado e começou a copiar a matéria que estava no quadro. Deu enorme trabalho removê-lo dali. Só se convenceu a voltar para a sua turma, após o diretor e dono da escola o professor Tasso Prado Galhano, levá-lo à secretaria e oferecer-lhe uma nota de cinco cruzeiros.

Quando passei para o segundo ano, lá estava ainda o primo. Havia tomado bomba.Terminado o ano fui aprovado para a terceira série. O primo gostara muito da

segunda , ficou mais um ano por lá, para desespero do tio Jaime, seu pai.Os primos Gessé e Celton a partir dessa época, foram os meus grandes

companheiros. Moravam perto da escola, nos fundos da casa do vovô Marcelo e da vovó Antônia, meus avós paternos. Estávamos os três sempre em sua casa. Os irmãos infernizando a vida de todo o mundo, e eu achando aquilo tudo muito engraçado, com a diferença de que eu não tinha coragem e vocação para fazer as traquinagens que eles todos os dias aprontavam. Gessé era sempre quem maquinava a próxima atração. Celton, menos criativo, apenas executava os planos do irmão. Defecavam nos alpendres dos vizinhos, passavam pimenta malagueta nos ânus das galinhas do vovô.

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Celton ganhou de aniversário uma espingarda com jato de água . O irmão então teve logo mais uma de suas idéias brilhantes. Na casa de meus avós moravam agregados à família, Maria – uma senhora viúva que trabalhava no serviço da casa – e seu filho Jonas. Ele tinha um papagaio que falava. Era uma beleza.

Gessé então disse:- Celton, quando chegar a noite, mais ou menos às nove horas, a Maria e o Jonas já

foram deitar. Você vai até a cozinha da vovó onde está a gaiola do louro e dá uns tiros de água nele.

Ordem dada, ordem executada. Eu estava na casa da vovó com meu pai – que ficou com meu avô na sala conversando sobre política – sem ouvir o barulho do louro esperneando com o banho de água fria. Assim foi por mais alguns dias. Chegava a noite e o Gessé dava a ordem:

- Já está na hora do louro levar mais uns tiros.Duas semanas depois, o louro morreu de gripe. O Jonas desconsolado exclamava:- O que será que aconteceu com o meu louro, estava tão bem...Celton olhava para mim com um risinho de meio lábio. Todas as vezes que ele

fazia uma travessura suas narinas se dilatavam e lá vinha aquela expressão conhecida. Ele tinha um misto de coragem e inconseqüência, não se importava aonde ia parar com seus atos, o importante era levar a cabo o que lhe viesse à mente.

Certa vez desrespeitou a professora em sala de aula e, ainda por cima, bebeu tinta de caneta. Eram canetas com uma bombinha de borracha, onde ficava depositada a tinta de escrever. Sua boca ficou toda suja com o líquido, escorrendo pelos cantos. A punição veio bem ao estilo da escola. Colocaram-lhe um vestido cheio de florzinhas, e levaram-no de sala em sala pelas mãos do diretor. Chegando nas salas-de aula, o professor Tasso obrigava-o a cumprimentar a professora e os alunos. Era um horror ver aquela cena: a boca escorrendo tinta, o vestido desajeitado. O diretor então dizia:

- Vamos, cumprimente a professora e os alunos!Ele não fez por menos, cumprimentou a todos e, para maior desespero do diretor

ainda, ao cumprimentar a professora, fez uma mesura como se fosse uma donzela recatada, dobrando uma das pernas e segurando o vestido pelas pontas...

Outra vez foi parar preso num quartinho, debaixo de uma escadaria, onde guardavam engradados de refrigerantes da cantina da escola. Era um lugar fétido e totalmente escuro. Ficou por lá até a noite. À tardinha, já começando a escurecer, me aproximei da porta da prisão improvisada e perguntei:

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- Você tá com medo?- Tô, avisa pra mamãe!Corri até a sua casa e contei para tia Lindéia, sua mãe, o que acontecera. Ela se

condoeu mas achou que seria bom ele ficar algumas horas ali para ver se emendava. Nunca se emendou mas, aos poucos ajudou, com sua rebeldia, a quebrar de certo modo aquele sistema nazista. O curso Chopin nunca mais foi o mesmo depois do primo Celton...

A educação dos nossos jovens costuma caminhar pelos extremos: total castração ou total alienação.

...

Capítulo V

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O Prado

O bairro do Prado sempre foi o lugar que amei em nossa cidade, revestido de nobreza e vibração incomuns. Porém, jamais consegui morar ali; com o passar do tempo foi se tornando muito valorizado, os prédios e casas tomaram preços proibitivos. Quando criança, meus pais me levavam para passear na casa dos avós. Lembro que eu gostava de dar voltas no quarteirão. Sentia magia no ar: o cheiro das damas-da-noite; as árvores de fícus; os alpendres com as paredes da frente em forma de arco; casas revestidas de mica misturada no reboco e, quando era noite de lua cheia, suas paredes cintilavam uma luz prateada. Mas o que mais me fascinava era sentar no passeio em frente a alguma casa de quem estivesse a estudar piano. Era comum nesses anos as famílias mais abastadas terem o instrumento em casa para os filhos estudarem. Até os nomes das ruas para mim soavam encantadores. Nomes de pedras preciosas: ruas Topázio, Ametista, Pedra Bonita, Safira...

Foi no bairro Prado que também houveram as primeiras corridas de cavalos em Belo Horizonte, onde hoje é o quartel da cavalaria da polícia. Lembro-me de minha mãe, olhando da nossa casa, na Vila Santa Rita, hoje bairro Padre Eustáquio, tentando visualizar de longe aquela hipodromia. Ela dizia:

- Como eu gostaria de ter um binóculo e ficar daqui de casa vendo as corridas.Anos depois, quando eu já estava adulto, fui trabalhar nos Estados Unidos e, nos

primeiros salários recebidos comprei o melhor binóculo que havia então. Sua alegria quando voltei e lhe trouxe o presente foi indescritível.

Também foi no bairro Prado que pousou pela primeira vez na cidade, um Bleriot, teco-teco pequeno e frágil que trouxe grande orgulho à provinciana Belo Horizonte.

Passava onde moravam meus avós, na rua Coronel Pedro Jorge, um pequeno lotação para 17 passageiros, o Pradinho, onde não havia cobrador de passagens. O próprio motorista o fazia, deixando o dinheiro jogado no painel do coletivo sem que houvesse um assalto sequer. Dava gosto ver aquele pequeno ônibus descendo a rua, limpinho, os passageiros em perfeita educação e urbanidade.

Para minha tristeza, meu pai foi o único filho do vovô que, depois de casado, mudou do Prado para outro lugar. Havia a explicação de que fora na Vila Santa Rita que ele tivera condição de comprar um terreno. Seus irmãos tiveram as mesmas dificuldades mas nunca saíram do Prado. Era duro deixar a casa dos avós e voltar para Vila, com suas

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casas humildes em eterno desalinho, as pessoas ainda em um nível atrasado de vida, as ruas sem calçamento e esgotos.

Vovó Antônia, de vez em quando, ia à nossa casa. Vovô Marcelo raramente nos visitava. Para ser mais exato, durante toda a sua vida, não passou de umas quatro ou cinco visitas. A última fora no casamento da minha irmã Leni, em junho de 1967 e, no mesmo ano ele viria a falecer.

Era um homem rígido, muito honesto, funcionário-chefe de algum departamento na Imprensa Oficial de MG, cargo que ele exerceu com muito orgulho até a sua aposentadoria. Aparentava uns rasgos de nobreza, tendo nascido em família abastada e que depois veio a perder suas posses.

Seu pai, um fazendeiro atacadista de café, possuía grande fortuna e vários imóveis no centro de Belo Horizonte. Aos poucos foi delegando os negócios ao seu filho mais velho, irmão de vovô. Esse, sem que o pai soubesse ou desse conta, foi desviando os bens para seu nome. Certo dia, quando meu bisavô chegou da fazenda e foi para o enorme depósito de café à rua Guaicurus, encontrou a porta semi-aberta. Foi com enorme espanto que ele não encontrou sequer uma saca de café. Descobriu também que existia uma enorme dívida para com os produtores, os quais lhe forneciam praticamente toda a produção para que ele a negociasse, atacadista de renome que era. Daí para a falência total foi um pulo rápido. Vendeu tudo o que tinha, inclusive sua fazenda, para quitar as dívidas que o filho lhe deixara. Vovô era criança nessa época e, cedo começara sua luta pela sobrevivência.

De seu casamento com vovó Antônia nasceram oito filhos, sendo que o primeiro morreu prematuramente. Os outros foram, meu pai Eráclito, os tios Jaime e Zeca, e as tias: Laudete, Érica, Téta e Vera , que sempre tratávamos por tia Vé.

Dos três homens o mais ousado era o Tio Jaime. Parecia nada temer. Fez de tudo na vida: lapidação de pedras preciosas, foi dono de uma pequena mina de ouro em São João Del Rey. Depois possuiu uma britadeira na Serra do Cipó, produzindo britas para a construção civil. Dali, através de um primo, o Senador Patrício Pederneiras, ajeitou-se no serviço público, tendo trabalhado até a aposentadoria no Senado Federal. Meu pai tinha grande afinidade com ele embora, de vez em quando, algumas rusgas surgissem dentro dessa relação. Papai às vezes exclamava:

- O Jaime é muito potoqueiro – referindo-se às suas intermináveis bravatas onde ele era, disparado, o melhor em tudo, segundo suas próprias versões.

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Ficou viúvo em 1973, casou-se novamente com uma prima solteirona e rica. O casamento não durou muitos anos. A incompatibilidade de gênios surgiu cedo na relação. Havia ainda a questão financeira, segundo as más línguas, pois ela não gostava de dispender de suas gordas burras. Para se ter uma idéia de como essa relação caminhava, certa vez o tio fez a ela um convite:

- Bem que poderíamos fazer uma viagem à Europa. O que você acha?- Acho ótima a idéia. – respondeu a mulher. – Só tem um detalhe: cada um paga a

sua passagem!Aquilo soou como uma bomba no tio. - Ah, é assim? Pois muito bem, veremos...Em seguida, ligou para o neto que leva o mesmo nome dele, e convidou:- Jaiminho, quer ir com o avô passear na Europa?- Claro vô!E lá se foram os dois: Itália, Portugal, Inglaterra, etc. A dona das gordas burras veio para Belo Horizonte secar os prantos nos ombros da

parentália dela...A relação tortuosa entre eles ainda durou algum tempo, até que parar em frente a

um juiz espantado e que nunca em sua carreira desfizera um casamento de pares tão idosos.

Quando visitei o tio em Brasília, este já se encontrava com seus 89 anos. Contou-me potocas novas. Quando lhe fiz a observação de que a cidade estava estava muito arborizada, diferente dos tempos de sua inauguração, lembrei-lhe também que o presidente Juscelino Kubitschek contratara um técnico em arborização, um estrangeiro que, dada à sua larga experiência em plantios, predisse:

- Somente daqui a trinta anos vocês verão os frutos deste trabalho, tamanha a pobreza do solo.

E ali estava a sua assertiva realizada.- Brasília nunca esteve tão bela, tão verde. – arrematei. O tio emendou:- Antes do presidente contratar este técnico estrangeiro para a empreitada, me

procurou primeiro: só você, Jaime, com sua experiência, poderá enfrentar este desafio! - Não, meu caro presidente, não sou a pessoa talhada para a missão. Existe um técnico estrangeiro com um perfil maior que o meu. Foi aí que ele chamou o homem.

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Na segunda noite da minha visita, fui agraciado com mais um mimo do tio. Revelou-me um segredo de estado:

- Já fui homem de confiança do Presidente do Senado, o..., o..., esqueci o nome, mas não importa. Eu ficava ali no Senado rondando, rondando, rondando, como quem não quer nada. Sentava-me em frente, onde estivesse um grupo de Senadores conversando. Pegava um jornal, colocava-o na frente do rosto, tendo o cuidado de fazer antes um furo nele, para que eu pudesse vê-los sem ser visto. Como eu era um mestre em leitura labial, capitava toda a conversava do grupo e depois fazia o meu relatório para o presidente da casa.

Quantas conspirações devem ter sido evitadas, neste Brasil de meu Deus, pela nobre graça e competência do meu prezado tio. Senti então que eu estava na hora de voltar para casa...

Tio Zeca era o oposto dos irmãos. Minha mãe contava que, quando o conheceu era um moleque, sempre descalço, de bodoque no bolso. Apaixonou-se por Noca, moça vizinha, que morava na mesma rua da casa de vovô. Tornou-se adulto da noite para o dia. Casaram-se, tiveram muitos filhos. Freqüento a casa deles semanalmente, ministrando aulas de violão para a prima Teca. Lá está aquele casal firme. Ela, Noca, um esteio, dona de uma personalidade e fibras sem limites. O tio, uma expressão generosa, tranqüila, alma sem jaça.

Na casa de vovô haviam dois retratos: um de seu pai, um homem de longas barbas, fisionomia fechada, que me inspirava um certo temor quando criança, a quem meu irmão Céres chamava de vovô bicho. O outro era do pai de vovó Antonia: calmo, tranqüilo, assim como vovó. Era um contraste de expressões habitando a mesma parede. Ao lado dos retratos, havia na sala um relógio com um pêndulo que, a cada hora, batia um sino em alto som. Durante o dia tudo normal. Porém à noite, quando colocavam-me para dormir na sala, ao ouvir o relógio com o ritual de badaladas, meu coração parecia querer saltar pela boca tamanho o pavor. Parecia-me, na imaginação de criança, que os quadros bisavós saiam da parede e ficavam flutuando pela sala.

Antes de dormir era preciso rezar o terço em família. Quem estivesse em casa era obrigado a participar. Ajoelhávamos em torno da cama de casal e começávamos o terço. Eu gostava quando era tia Vé quem iria puxar o terço. Ela fazia-o rápido. Mas dava-me enorme impaciência, quando ao final da ladainha, e meus joelhos não agüentavam mais, vovó começava com os pedidos:

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- Uma ave-maria para os presos...Uma ave-maria para os enfermos nos leitos dos hospitais...Uma ave-maria para as crianças abandonadas...Uma ave-maria para os nossos governantes...

Quando já estávamos lá pelo décimo segundo pedido de ave-marias, vovô se impacientava:

- Vê se acaba logo, Antônia, com tantas ave-marias!Depois do terço o café com leite e biscoito Maria.- Boa noite, vó! Boa noite, vô!- Boa noite meu filho, durma com Deus e os anjos!- Amém!...Quando ainda hoje passo pela rua Coronel Pedro Jorge, posso vê-los subindo a

passos lentos o caminho da Igreja Cura Dar’s. Ele de terno cinza, chapéu de feltro, bengala com acabamento dourado em baixo, um andar pausado e nobre. Ela com o vestido claro de florzinhas estampadas azuis, e o cheiro doce do seus inseparáveis talcos.

- Boa noite meus queridos. Durmam com Deus e os anjos!- Amém...A casa saudosa ainda está lá. Num arranjo entre os irmãos, facilitaram o preço, e

tia Érica que não tinha a sua, pode comprá-la. Vive nela e, deste modo, se faz depositária de tantas reminiscências.

Depois que vovó se foi nunca mais entrei lá. O sopro doce daquelas horas passou. O relógio de parede já não tique-taquiteia mais...

...

Capítulo VI

Barro Preto

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Terminados os quatro anos do curso Chopin, fui matriculado no colégio Arquidiocesano para fazer o curso de admissão ao ginásio. Este tinha a duração de um ano, e ao fim, se tivéssemos média suficiente poderíamos ingressar finalmente no ginásio, numa etapa que durava quatro anos de estudos, correspondendo ao segundo período do ensino fundamental da atualidade. Contudo, o ensino naquela época era mais abrangente. Havia uma qualidade superior em relação ao modelo de hoje. Aprendíamos o básico do Francês, latim, inglês, artes industriais, além da grade de matérias comuns. As provas eram escritas, pois ainda não haviam sido introduzidas as questões de múltipla escolha. Além das provas cursivas, passávamos também pelas terríveis provas orais.

Fora um alívio deixar para trás o curso Chopin, mas o Arquidiocesano não ficava devendo em matéria de rigidez. Por ser um colégio pertencente ao clero, tinha como diretor um padre que também era capelão da polícia militar, o padre Luiz. Quem se encarregava da disciplina era o sargento Melgaço. Andava sempre aos gritos, como se estivéssemos no quartel. Havia também um eterna disputa com outro colégio pela primazia da cidade: o colégio Anchieta. Marchávamos o ano inteiro nos preparando para o desfile do dia sete de setembro, o dia da Proclamação da Independência do Brasil.

No Arquidiocesano as coisas também eram difíceis, mas eu já estava mais maduro em relação aos quatro anos anteriores, além de ter a companhia – mais uma vez – do primo Celton.

Desfilamos os últimos quatro meses antes do dia sete de setembro, treinando incessantemente. Tínhamos que vencer o colégio Anchieta. Mandaram confeccionar uma nova camisa de uniforme que seria usada no desfile e posteriormente incorporada ao nosso uniforme diário. Compramos especialmente para o desfile, luvas brancas, calça de brim caqui e sapatos Vulcabrás novos.

Éramos puro orgulho em nossos uniformes novos, já em fila, marchando à saída do colégio, na avenida Augusto de Lima, seguindo a banda, em direção ao centro da cidade. Quando chegamos ao local onde iríamos iniciar o nosso desfile, colocaram-nos em posição de sentido, como se fossemos soldados. Ali deixaram-nos por mais de uma hora, debaixo de um sol escaldante. Quando já estava quase na hora de entramos na avenida, para iniciar o nosso desfile, comecei a sentir uma leve tontura, que aos poucos foi aumentando. Só me lembro de estar caindo para trás, não vendo mais nada. Quando

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acordei, na cama de uma pequena enfermaria do colégio, percebi que não participei do desfile. Tanto esforço e expectativas para desmaiar na hora. Voltei para casa com uma terrível sensação de frustração. E o pior ainda estava por vir: o primo Celton começou a espalhar na família que, quando cai, bati com a bunda no chão e esta ficou roxa. Em toda oportunidade ele vinha: bunda roxa pra cá , bunda roxa pra lá. Tudo isso, aos risos de minha mãe – o que mais me incomodava. Depois ele criou uma variante: roxil...

Ficamos em relação aos outros colégios da cidade em segundo lugar. Em primeiro: o colégio ANCHIETA! O prédio da escola era situado ao lado da igreja de São Sebastião no Barro Preto. Foi demolido. Fizeram em seu lugar um estacionamento para automóveis, o que certamente aufere mais lucros para a Igreja hoje em dia. Há um enorme movimento na área, que veio a se transformar num centro de pequenas fábricas de confecções.

Tudo mudou no Barro Preto, que deixou de ser um bairro tranqüilo. Suas casas deram lugar a um intenso comércio, com lojas variadas, agências de bancos, camelôs disputando vaga na calçada. Uma agitação enorme, acrescida da transferência do fórum, que ficava no centro da cidade e posteriormente veio para a região. Para a sua construção, demoliram o antigo Colégio Militar, de longa tradição. Seu piso, todo de tábua corrida, as portas das salas de aula, de duas bandas, altíssimas. Uma construção austera, bem aos moldes militares. Entretanto, ainda se encontra ali, de certa forma, resistindo às mudanças, a sede do Cruzeiro Esporte Clube, que já foi campo de futebol e que ainda conta com um aglomerado de lojas alugadas, que faz mais uma renda para o clube.

Havia ainda a linha de bondes que servia o bairro Calafate e passava em frente ao colégio. Quando terminavam as aulas, gostávamos de deitar no chão e colar o ouvido nos trilhos para escutar se já vinha o bonde. Isso imitando os filmes de faroeste, onde os bandidos repetiam o mesmo gesto, buscando saber se estava aproximando a diligência que iria ser assaltada.

Em 1960 tio Jaime e os primos mudaram para um sobrado de dois andares junto à praça Clemente de Faria, também no Barro Preto, a poucos quarteirões do nosso colégio. O tio, que sempre buscava do bom e do melhor para a sua família, resolveu comprar para o Celton um par de sapatos Clark. Era o que havia de mais caro em matéria de sapatos, conferindo um certo status ao feliz proprietário. Mas o primo não pensava assim: implicou com o sapato e não queria usá-lo. Seu pai, no entanto, obrigou-o calçá-lo e ir com ele para o colégio. Ele foi, mas no segundo dia , esperou pela passagem do bonde

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do Calafate, subiu em seu estribo de madeira – uma espécie de degrau que dava acesso ao interior – e permaneceu ali. Depois que o bonde começou a se movimentar, Celton esticava a perna raspando o bico do sapato no chão. Em poucos segundos, a frente do pé direito do Clark havia desaparecido, por pouco não lhe arrancando o dedos . Chegou em casa feliz, com o esquerdo perfeito e o direito destruído. As surras que o pai lhe aplicava, não modificavam o caráter rebelde.

O sobrado de paredes brancas, ainda permanece lá, junto à praça, teimoso, desafiando os novos tempos. À medida em que a cidade vai se transformando, as construções antigas vão tombando como soldados num campo de batalha. Novos prédios se impõem, desvestindo as memórias e os nossos mundos. Quando passo pela cidade e vejo tantas mudanças, sinto-me como um intruso, como se estivesse entrado na casa de alguém sem ser chamado.

Mudanças são sempre necessárias, mas operá-las em um país subdesenvolvido, sem compromisso com sua história, é passar uma borracha no que foi. Isso acontece também com os nomes dos lugares públicos. Alguém toma posse em uma nova função e, para deixar sua marca pessoal, ele rompe, com uma caneta, o que as pessoas e suas experiências levaram anos para construir. Um bom exemplo é o nosso INSS. Chamava-se INPS; depois tranformou-se em INAMPS. Segundo meu pai, a mudança que ocorreu foi somente a de uma sigla mais anasalada: INAMMMMPS. Mas o povo costuma ser sábio. Ainda, teimosamente, chamam o prédio onde trabalho, o PAM Carlos Prates, de prédio do INPS... Meu chefe diz que tem ataque de nervos quando escuta alguém pronunciar... INPS.

Fica uma equação para a turma da terceira idade: conservar a memória do passado, sinalizando para as gerações que chegam, estimulando a quem possa repensar o presente, mas sem permanecer enclausurado no que foi, sem deixar de se abrir às coisas boas, que inegavelmente existem. É preciso não correr o risco de vedar as portas do diálogo, das trocas...

Conheci as canções dos tempos de minha mãe. Mas isso era um tempo em que a mídia ainda engatinhava. Hoje, eles querem coisas novas a todo momento. É proibido tocar no passado. Precisam do novo para vender; mesmo que ele venha contorcido, mesmo que venha sem a graça espontânea do povo. Não importa que não tenha alegria e criatividade, que não conte nossos acertos ou mazelas.

Ainda em l960, estávamos os primos e irmãs dançando alegremente ao som de um pequeno toca- discos que tia Vé havia comprado. Dançamos muito e ficamos suados.

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Como era noite, ao nos prepararmos para ir embora, vó Antônia, encheu nossas roupas de jornal, para que, ao sairmos no sereno, não -pegássemos pneumonia. Isso porque em sua época não havia antibióticos para a cura da tuberculose. Compreendi, aceitando de bom grado, o carinhoso jornal, sem romper com seu passado. Sabia que ela não ignorava os novos medicamentos, mas também não abria mão de sua experiência.

Tudo o que a mídia quer é um deserto de robôs sem almas... ...

Capítulo VII

Os vizinhos

Antes de prosseguir em outras partes dessas lembranças, não poderia deixar de citar alguns vizinhos da nossa vila Santa Rita, muitos dos quais já se foram desta vida.

A primeira é a saudosa Dona Fininha. Filha de índios, segundo ela mesma dizia, pegos a laço pelas bandas de Goiás. Extremamente católica e supersticiosa, achava que o capeta estava sempre por perto atazanando sua vida. Seu marido, o Sr. Cristino, bebia noite e dia, desequilibrando a sofrida família.

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Entre seus filhos, havia uma que estudava o curso normal, vindo mais tarde a tornar-se professora. Seu nome, Lila. Logo no primeiro ano do meu curso primário, estudei em sua casa, em aulas de reforço. Pessoa afável, conseguia levar avante seu projeto de formar-se, não sem enormes dificuldades, tanto financeira como emocionalmente falando. De um lado o pai, na eterna bebedeira, do outro a mãe, que aliada às superstições também aparentava as suas excentricidades. Jogava sal no fogo, e quando esse dava uns estalinhos, a começava a gritar:

- É o Demo! É o Demo! Vade retro Satanás!Certa vez, minha irmã Leni, quatro anos mais velha que eu (tinha 12 anos nessa época), propôs:

- Vamos fazer um feitiço de mentira prá Dona Fininha?

- Vamos! – respondi. Sabíamos de seus temores de feitiços e não

perdemos tempo! Pegamos uma enorme folha de papel de embrulho, conhecida como papel manilha e desenhamos alguns símbolos usados nos despachos que comumente eram encontrados nas encruzilhadas da Vila Santa Rita, principalmente nas sextas- feiras. Os desenhos eram: um cachimbo, algumas estrelinhas e três cruzes. Leni ainda acrescentou uma garrafa com água parecendo aguardente e algumas penas de galinha. Quando eram mais ou menos 22 horas, com a rua mergulhada em completa escuridão (não havia nesse tempo iluminação pública na vila), montamos o arremedo de despacho em um barranco bem em frente ao portão de sua casa e fomos embora dormir. No outro dia foi um reboliço total. Dona Fininha toda excitada, gritava palavras desconexas. Não sabia como se livrar do despacho. Lá do quintal de nossa casa nos deliciávamos com a cena. Por fim, ela criou uma saída: pegou o material, um a um, com a mão esquerda. Acreditava que trocando de mão se livrava de pegar feitiço, tudo acompanhado de muitas rezas para reforçar a defesa...

Lila começou a se destacar no curso normal como ótima aluna. A diretoria da escola em que estudava acompanhava de perto sua luta para se formar, apoiando-a.

Nessa época havia um programa na extinta TV Itacolomi, chamado Esta é sua vida! Fazia enorme sucesso, explorando a linha dramalhão suburbano. O povo muito simples não perdia um só programa, o que dava altos índices de audiência para a emissora, apesar dela não ter concorrentes, mas que certamente elevava grandemente o custo dos comerciais.

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Não demorou muito e descobriram a nossa Lila.. Fizeram um programa sobre sua vida. O bairro ficou em polvorosa, esperando o dia do programa. Lá em casa ainda não havia televisão. A mais próxima era na casa de dona Rosaura, mulher que minha mãe detestava. Colocava-lhe os piores defeitos. Implicava até com a tinta que ela usava para tingir os cabelos. Dizia:

- Essa sirigaita quando pinta os cabelos cor de cobre, parece mais um tacho!Chegara o dia do tal programa. Mamãe, como todos nos, também estava eufórica. Contava os dias que faltavam para assistir a apresentação. A saída foi se render aos doces cabelos cor de cobre de dona Rosaura. Primeiro mandou que eu fosse perguntar a ela se poderíamos ir a sua casa assistir o programa. Dona Rosaura gentilmente disse que seria uma prazer receber-nos. Completou, mandando dizer à nossa mãe, que só não reparasse a casa de pobre, que certamente estaria cheia, já que outros vizinhos também já tinham feito semelhante pedido.

Às oito da noite estávamos todos em frente ao aparelho de tv, uma Philips em preto e branco, valvulada. Foi um sucesso o programa. Todos nós choramos muito diante do exposto da vida de Lila. Já sabíamos tudo de cor, vizinhos íntimos que éramos de sua casa. Nunca antes chorávamos por seus problemas. Mas ali, sua vida exposta por um famoso apresentador da Itacolomi, bem que ela mereceu as lágrimas e os comentários da inocente platéia:

- Ela está igualzinha como a conhecemos aqui na vila.

- Huumm... acho que está mais morena.- Claro, a televisão é em preto e branco!Ao terminar o programa, dona Rosaura ainda

queria servir um cafezinho. Mamãe prontamente recusou. Dona Rosaura ainda nos convidou a voltarmos a sua casa para uma visita mais demorada e sem muita gente, como naquela noite. Mamãe agradeceu dizendo que viria sim. Na volta ainda comentou entre dentes:

- Vê lá se vou tomar café na casa dessa sirigaita...

Outra que nunca esqueci foi dona Lulu. Seu marido, um camioneiro de fala mansa, alugou o barracão de meu pai. Viajava e sumia por meses. Não pagava o aluguel, o que

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deixava meu pai irado. Quando finalmente voltava, acertava um mês e prometia logo quitar o restante atrasado. Depois sumia de novo e não pagava o combinado. Dona Lulu e suas duas filhas só não morriam de fome porque sua irmã, que morava no Serro, mandava-lhe algum dinheiro. Mulher beata, cantava de cor todos os hinos católicos. O rádio de cabeceira de sua casa vivia sintonizado em programas da igreja.

Quando chegava a semana santa, então, ficava histérica. Pedia à sua filha Cidinha que lhe pegasse o breviário. Seu português saía assim:

- Cidinha, dê cá qui o breviário!Quando na Sexta-feira Santa davam as quinze

horas, a Rádio Aparecida transmitia todos os anos uma espécie de novela, encenando o que seria o momento em que Pilatos julgava Cristo. Ela então me chamava aos gritos:

- Corre Marco, vem ouvir, já vai começar o julgamento. Eu, nos meus doces oito anos de idade, corria até sua casa e em franca reverência

escutava a fala de Pilatos:- Não vejo crime algum nesse homem!

Comentei entusiasmado, como se não conhecesse o final da história.

- Ah! Acho que ele vai escapar! Dona Lulu pôs a mão no queixo e exclamou

tristemente:- Quem dera, meu filho, quem dera. Já estaríamos todos salvos...Outra vizinha que já se foi: era dona Heralda. Também muito católica, sentava-se

na sala com seu livrinho de rezas. Um olho no livro, outro na televisão. Seu marido, o Seu Zezé, pedreiro calmo e educado, nunca sentava em uma cadeira. Quando as visitas chegavam em sua casa, ficava agachado batendo palmas em forma de agradecimento.

Às quartas-feiras, impreterivelmente, lá estava o casal frente à televisão para assistirem o programa de luta livre, chamado à época de tele-catch. Acreditavam que as lutas eram prá valer. Quando um lutador dava um golpe no adversário, dona Heralda exclamava:

- Óia, óia!Seu Zezé, então agachado, imitava um golpe de

Karatê, com a mão no ar, de cima para baixo, emitindo um som:- Ihhh!

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Certo dia sofreu um acidente, caindo de um prédio em que trabalhava na construção. Morreu instantaneamente. Foi um golpe para todos. No enterro, dona Heralda, desesperada exclamava a todo instante:

- Num é pussive! Num é pussive!A pobre mulher nunca superou a perda do companheiro. Quando assassinaram o

presidente americano Kennedy, ela associando suas dificuldades com a mulher do presidente exclamou:

- Oh meu Deus, que haverá de sê dessa muié, com essas criança prá criá!Hoje, muitas dessas casas ainda estão lá de pé testemunhando aquele tempo.

Parece-me que tudo tenha sido um sonho de uma longa noite. Assim, faço uma catarse meio aristotélica. Minha tragédia grega vai se depurando e valores mal assentados se realinham. Esse é o real valor de se repassar nossas memórias...

...

Capítulo VIII

O Tempo

Quando ainda era o ano de l958, meu irmão Céres fazia o serviço militar na cidade de Juiz de Fora. Em uma de suas licenças para vir em casa, trouxe-me de presente um relógio de pulso que ele comprara de um colega de farda. Era de segunda-mão, mas, para mim, como se tivesse sido comprado na loja, pois, naquela época, as coisas eram difíceis, muito caras.

Os relógios digitais ainda não existiam, eram mecânicos, à corda. A marca, um Norma, com ponteiros em algarismos romanos. Acordei em uma manhã de domingo, com meu irmão perto de minha cama, tinha acabado de chegar da viagem, abriu a mala e me entregou o presente. Que alegria colocar no pulso aquela pequena jóia. Sua pulseira era

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de couro, revestida de pelica preta. Saí da cama e depois do agradecimento, fui dar uma volta com o danado. O braço esquerdo parecia estar engessado, tão pouco movimento eu fazia com medo de danificá-lo. Meu irmão já tinha dado corda quando me entregou, o que daria para ele funcionar pelo menos 24 hs. Mas a todo momento, dava mais um pouquinho, até que a mola endureceu e não coube mais. Mostrei-o orgulhoso à meninada da rua, que exclamava:

- Puxa vida!Um outro:- Seu irmão deve ser rico!E outro: - Nunca vi relógio com nome de mulher!Essa última observação me desconsertou. Só me lembro de ter retrucado:- Invejoso!Voltei para casa meio sem graça, pois aquela voz continuava a soar em meus

ouvidos:- Relógio com nome de mulher...Minha redenção veio uma semana depois, quando tia Harmônica veio à nossa

casa, e mostrei-lhe o relógio. Ela disse:- É a mesma marca do relógio da Igreja Nossa Senhora Das Dores, ali na Floresta. –

o bairro onde residia.Criei alma nova. Na primeira oportunidade que tive de ir à casa dela com minha

mãe, corri até a entrada da igreja e fiquei observando. Lá em cima, todo majestoso estava o irmão do meu Norma. Passei a achar o nome normal...

Um ano antes, meu irmão trabalhava na Secretaria do Algodão, numa repartição pública do estado que ficava no antigo prédio da Feira de Amostras.

Certa vez ele disse:- Vou te levar qualquer dia para conhecer o relógio da torre da Feira de Amostras.O prédio tinha três andares. Ficava imaginando como seria por dentro daquele

enorme relógio que poderia ser visto a longa distância na avenida Afonso Pena.Quando chegou o esperado dia, subimos até o topo e penetramos numa sala

escura. Que susto ver de perto aquela máquina enorme! As engrenagens eram maiores que um pneu de automóvel. Um barulho de motor elétrico se fazia ouvir; era o que impulsionava o sistema. De uma pequena janela ao lado do mostrador, se via a avenida Afonso Pena. Me senti um herói lá em cima, pois aquele relógio era sem dúvida um dos

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cartões postais da cidade. Desci bastante impressionado com o que acabara de ver. Daquele dia em diante nascia em mim uma nova paixão depois dos rádios.

Tinha apenas nove anos e o nível de informações àquela época era bem reduzido. Não havia a disponibilidade que se tem hoje. De certa maneira, pensava que o tempo era regulado por relógios e não pela rotação do planeta em relação ao sol. Por esse prisma, por mais obtuso que seja, dá para entender porque eu olhava os relógios com enorme reverência.Eles porém jamais conseguiram impedir que certos tempos e fatos mudassem...

Em 1963 meu pai decidiu que não custearia mais meus estudos. Minha mãe se matava para achar uma solução. Ela veio. Sua irmã, tia Anacruse, bancaria as mensalidades por um ano. Minha matrícula foi efetivada para a noite, no Colégio Brasileiro, situado à avenida Paraná, a fim de que eu conseguisse arranjar um emprego durante o dia e ajudasse em casa com mais algum dinheiro.

Encontrei nessa escola um novo mundo, mais realista. Os alunos, quase todos oriundos da classe média baixa, trabalhavam e sustentavam-se na escola. Eram mais grosseiros, menos educados no trato.

Fora um ano de muitas greves estudantis. Gostava delas. Oportunidade para não ir à escola. Detestava aquele ambiente, detestava os professores.

Numa certa noite de aula, estourou outra greve estudantil. Os grevistas iam se multiplicando à medida que novos alunos de outras escolas aderiam ao movimento. Chegaram ao Colégio Brasileiro e exigiram que também participasse. O diretor titubeava em nos liberar, até que uma enorme pedra, vindo da rua, estilhaçou a vidraça da nossa sala de aula. Fora atirada por algum grevista mais radical, quase atingindo a cabeça de um colega, aluno de minha classe, o que foi o bastante para que saíssemos correndo das dependências da escola, esquecendo-nos do diretor.

Saí todo feliz, imaginando acompanhar o movimento pelas ruas da cidade. Porém, meu irmão, sabedor daquele alvoroço todo, correu para a porta do colégio esperando-me passar e levando-me para casa. Para minha frustração, fiz greve de pijama...

Alguns meses depois, minha mãe conseguiu um trabalho para mim numa loja de camisas, a Casa das Camisas, situada à rua São Paulo. Naquela época os homens ainda usavam terno em quase todas ocasiões. Por esse motivo, o negócio de camisas movimentava muito dinheiro e, conseqüentemente, gerava empregos.

Foi outra nova e dura experiência. Trabalhando com patrões insensíveis e arrogantes, fazia serviços gerais, varria a loja, entregava encomendas no centro da

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cidade. À noite ia para o colégio. Sentia que o tempo passava, mas só por fora, lá dentro a criança teimava em não querer se tornar adolescente.

O que minha mãe não conseguia enxergar é que, pelo modelo de educação que nos dera em casa, privando a mim e aos irmãos de um maior convívio com outras pessoas, quebrava nossa segurança, não permitindo que vivenciássemos as diferenças, que trocássemos experiências, forjando em cada um de nós um caráter mais rico e forte, com mais iniciativas. Depois atirava os filhos despreparados numa sociedade egoísta e competitiva. Porém, em sua boa fé de mãe zelosa, acreditava estar sempre fazendo o melhor. Eu queria a todo custo deixar aquele emprego mas ela não permitia. Um dia inventei uma mentira, e disse à ela que meus patrões, que eram dois, iriam me dispensar do serviço. Na loja pedi para que me demitissem. Porém, eu tinha que cumprir o aviso prévio. Aí a coisa complicou. Como eu era menor, minha mãe teria que assinar por mim o papel do aviso. Nele, vinha constando que era eu quem pedia para sair.

Levei o documento para ela assinar, já esperando pelo pior. Disse a ela:- É só uma formalidade, basta a senhora assinar aqui. - apontando a linha da

rubrica. Mas ela não era boba. Antes, leu o conteúdo:- Tem alguma coisa errada aqui! – exclamou.- Tem não mãe, é assim mesmo.- Tá errado sim! Pelo que está escrito aqui, você é quem está pedindo dispensa!- Imagina... - balbuciei meio frouxo, ainda tentando convencê-la. -Só assino depois que conversar com os patrões.- Mas, mãe!- Não tem mais nem menos, amanhã vou por essa história em pratos limpos!Aquela noite foi uma das mais longas de minha vida. Ao deitar, não conseguia

conciliar o sono. O tempo parecia ter se voltado contra mim. Lembrei do relógio que meu irmão me presenteara anos atrás, o meu Norma que não existia mais. No escuro do quarto, vislumbrava na mente o relógio da Feira de Amostras. Aqueles eram tempos amigos, o dessa interminável noite, um carrasco esperando em minha lenta agonia, a hora da imolação. Sim, imolação naquele momento não era apenas uma força de expressão. Conhecia na pele, toda a força e fereza de minha mãe, que apesar de seu zelo e amor pelos filhos, era ainda remanescente da escola do chicote.

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Sentindo-me terrivelmente só, consegui afinal adormecer, mas logo amanheceu. Minha mãe levantou, preparou nosso café e foi logo dizendo:

- Apronte que nos já vamos para a loja.Sem outra escolha me vesti e em poucos minutos já estávamos descendo a rua de

casa a caminho do ponto do ônibus.Ao chegarmos à loja ela foi direto ao escritório. Fiquei na entrada onde dava para

ver que ela conversava com um dos patrões. De vez em quando me lançava de lá um olhar furibundo. Momentos depois saiu, veio em minha direção e disse:

- Vamos para casa, lá a gente conversa.Fomos calados durante o trajeto de volta. Ao chegar, foi logo ao assunto:- Nunca passei tanta vergonha, a respeito do que você fez. Pedi muitas desculpas

pelo seu ato, ao seu patrão. Agora não tem mais jeito, o emprego está perdido. Mas você vai arranjar outro e depressa. Não vou te bater hoje, mas o nosso acerto vem no próximo mês, quando termina o ano letivo. Como sei que você vai mal na escola e não tem média para passar de ano, ao final dos exames, se você não for aprovado, aí nos vamos ajuntar tudo, faço uma correção só.

Novamente o tempo parecia estar contra mim; a questão de não ter estudado suficientemente, o fato de ter pedido dispensa no emprego, a culpa, a meu ver, era dele: do tempo. Por que aquilo tudo não passava logo? Desesperava em saber que era só contar os dias que faltavam para aquele ciclo se fechar.

Fechou. Os resultados finais chegaram. Consegui a proeza de perder média em todas as matérias. No dia em que levei para ela aquele boletim, com as notas todas em vermelho, parecia mais um manifesto comunista.

Curiosamente, ela não me fez a tal correção prometida naquele dia. Passaram vários, eu já estava até mais otimista, achando que ela havia esquecido.

Foi só eu relaxar a guarda e a tal correção chegou, assim como um ladrão na madrugada, no silêncio, sem eu esperar.

Foi num quarto escuro, com as janelas do quarto fechadas, para, segundo ela, ninguém escutar, que a velha mangueira vermelha, trançada de arames por dentro, cantou mais uma vez a sua velha canção:

-Vuuup, vuuup, vuuup...

...

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Capítulo IX

Novos Tempos

Em l963 minha irmã Leni e minha mãe encontraram num anúncio de jornal, uma possibilidade de emprego para mim. Tratava-se de um laboratório farmacêutico, o laboratório Espasil. Fomos até lá, mas haviam outros candidatos. Esperamos nossa vez para a entrevista. Quando chamados, encontrei um gerente com um aspecto severo, bigodinho fino, os cabelos negros com uma forte entrada na testa, a pele muito alva. Lembrava o Amigo a Onça , personagem criado por Péricles, cartunista da extinta revista O Cruzeiro. Ele disse :

- Nome completo e endereço.Respondi a essa e outras perguntas de praxe, como idade, escolaridade, por que

eu queria aquele emprego. Pensei comigo:- Quem quer o emprego é minha mãe e minha irmã.Mandou que eu aguardasse em outra sala, para ver quem seria o escolhido. Meia

hora depois falou que eu entrasse novamente em sua sala e sem muitas delongas, foi dizendo:

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- Resolvi dar uma chance ao senhor. O serviço aqui é embalar os remédios em caixas de madeira, levá-los em um carrinho de mão, despachá-los aos clientes no interior através dos ônibus na rodoviária ou remetê-los através dos trens, na Praça da Estação. O tratamento usado aqui é o de senhor ou senhora, independente da idade. Entendeu, senhor Marco? O salário pago é o correspondente ao salário de menor.

Naquela época havia a carteira de trabalho para menor. O salário, a metade do salário mínimo.

- Não toleramos brincadeiras em serviço, atrasos e ineficiência. Certamente o sr. passará por um período de experiência. Se aprovado, continua; se não, é dispensado. O sr. está de acordo?

Minha irmã, respondeu o sim por mim.- Muito bem, pode começar amanhã às 8:00 em ponto.Saí dalí pensando no que me aguardava. Chegando em casa, minha mãe recebeu

com felicidade a notícia. Fez as recomendações de sempre, arrematando:- Ai de você se me falhar outra vez!No outro dia, às 8:00 em ponto, eu já estava dentro do laboratório, sendo

apresentado aos novos colegas. Ao meu lado, o gerente de bigodinho fino, o Sr. Alberto Pinto Coelho de Vasconcelos. Falou:

- Esse é o senhor Francelino, o encarregado do depósito, o seu chefe imediato. O Sr. Francelino contava apenas com dezoito anos. Era uma pessoa simpática,

altamente eficiente, como vim a perceber no dia-a-dia.- Esse é o seu colega de função, o Sr. Alcides Novais, o qual irá lhe ensinando o

serviço.O Sr. Alcides era da minha idade, l5 anos. Achei um absurdo ter que chamá-lo de

senhor. Era um rapazinho educado, atencioso, e trabalhava muito fazendo as embalagens.

A primeira caixa que fui embalar os remédios teve a supervisão direta do Sr. Vasconcelos. Coloquei tudo como me explicou o Sr. Alcides. Quando fui pregar a tampa, o gerente ficou de pé ao meu lado observando como eu faria. Na primeira martelada já deu um grito:

- Não é pelo meio do cabo que se segura um martelo, Sr. Marco! É pelo extremo!Aquele grito me desorientou mais ainda. Amassei uns três pregos de cara. O

homem ficou vermelho, continuando a gritar:- Não é assim sr. Marco!

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Depois de uma hora de tortura, ele se cansou e foi para o escritório atazanar as duas moças que tiravam as notas fiscais das mercadorias. Foi então que o sr. Francelino disse:

- Não esquente a cabeça, ele é assim com todos nós. Enfim, terminou o dia. Fui para casa jantar, cansado. Depois, ir às pressas para o

colégio Padre Eustáquio. Era lá que eu tentava fazer o ginásio. Sentia um sono tremendo, quase não conseguia me concentrar nas matérias. Pensava comigo: Quando eu iria finalmente ser o dono de minha própria vida? No fim do mês não tinha nem mesmo o consolo de ficar com o pagamento. Era obrigado a entregar tudo à minha mãe, que somente me passava o dinheiro da mensalidade para eu pagar a escola, o resto era para a casa. Nos fins de semana ia ao cine Padre Eustáquio ou cine Progresso com os trocados que ela me dava para a entrada. Esse gosto pelo cinema ia ficando para trás, ou melhor, desencantei-me desde que fizera l4 anos. Isto pelo fato de que, antigamente, havia a censura, l4 e l8 anos à noite. Quando tinha l3 eu ficava louco de vontade de entrar e ver o mesmo cinema que eu tanto conhecia, só que durante o dia. À noite, era uma espécie de atestado que finalmente se estava virando homem adulto.

Tanto eu queria, que resolvi adiantar um pouco as coisas. Peguei minha caderneta de freqüência escolar, e resolvi alterar a data de nascimento. Elas eram preenchidas na escola com as canetas tinteiro, que não podiam ver água, sob o risco de borrar toda a escrita. Raspei com uma lâmina de barbear a data e em seguida mudei de l948, para l947. Só que quando raspei o papel, o local ficou ferido. Quando fiz o 47, a tinta espalhou por toda a área. Não dava para mostrar aquilo para o porteiro, pensei. A vontade, porém, era enorme de conseguir entrar. Certa noite, me armei de coragem e fui tentar. Comprei o ingresso, cheguei ao porteiro tremendo muito e entreguei o bilhete. Para minha surpresa ele recolheu o papel abriu a passagem para que eu entrasse e pronto. Como num passe de mágica eu estava lá dentro. O interior da sala de exibição parecia ter se transformado. Alguma força sobrenatural operava um milagre naquele local. Já não era mais o cine das matinês que eu tão bem conhecia. Senti-me como transportado por uma nave espacial.

Ao lembrar daquela noite, procuro dentro de mim o que possa ainda encontrar da sensação vivida. Como o proibido nos fascina e provoca! Inverte muitas vezes o senso comum, colocando-nos na contra mão das regras e conceitos. Eram estes os sentimentos vividos naquela hora. Com tão pouco, burlei tanto. Pela primeira vez em minha vida, pude ser eu, como entendi àquela época. Estava com o íntimo em paz. Senti-me gigante.

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Sentei e não vi o filme, olhava para os lados e para cima. O semblante das pessoas, meus colegas da noite. Ali todos surgiam especialmente diferentes... Terminado o filme, desci a rua em direção à minha casa. Passos firmes, passos de homem feito, forjado na ousadia. Não me vinham sentimentos contrários de burla.

Ao entrar minha mãe perguntou onde eu estava. Menti satisfeito, dizendo ter ido à casa de um colega qualquer. Conciliar o sono foi uma dificuldade, a sensação boa não queria ir dormir.

Repeti a façanha mais duas vezes com sucesso. Sentia-me o dono do cine à noite. Tanto, que comecei a incentivar outros meninos a fazerem o mesmo.

- É fácil, não tem erro, já estou acostumado. Se quiserem, vou com vocês para dar coragem...

Valter, um menino baixinho de l3 anos de idade, parecia ter l0. Era o que mais queria tentar. Éramos quatro à noite em que marcamos para a tentativa. Compramos os ingressos e antes de enfrentar o porteiro, fiz as recomendações:

- Nada de tremer quando entregar o bilhete. Façam cara séria e não olhem para o porteiro. Vou passar por último, para dar cobertura pro Valter.

Foram entrando um a um sem problemas, até o baixinho do Valter passou. Na minha vez, o porteiro disse:

- Você! documento!- Ihhh, moço esqueci em casa!- Ahhh, então vá em casa buscar e me prove que você tem l4. - Mas...- E por favor saia da fila, que você está atrapalhando a entrada das pessoas!Ainda pude ver a cara dos meninos: um misto de pena e de deboche. Não voltei mais ao cine. Meus interesses, agora não sabia mais quais eram. Sentia mudanças físicas e

psíquicas. Uma enorme inquietação e revolta contra tudo e todos se operava em mim. Via na figura de minha mãe uma inimiga terrível.

Comecei a rabiscar as pinturas dos carros na rua, quando ia fazer algum serviço externo para o laboratório. Andava sempre com um prego no bolso. Em seguida fui sofisticando os rabiscos. Depois passei a assinar quando acabava de arranhar algum: El Rabiscador.

Mas o nascente herói delinqüente teve vida curta. Quando um dia estava a terminar mais uma obra de arte, um senhor que eu não tinha visto, veio correndo em

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minha direção gritando:- Ah, é você, seu filho da puta! Levantei-me e subi a rua Goitacazes, entre rua da Bahia e Espírito Santo, em

correria. O homem, um senhor de uns 40 anos aproximadamente, veio atrás. Fiquei com as pernas bambas, mas consegui continuar correndo. Desvencilhei-me dele, dando algumas voltas pelos quarteirões e finalmente retornando ao laboratório. El Rabiscador terminava melancolicamente sua trajetória depois dessa carraspana. Os dias transcorriam penosamente. Para completar, aos sábados tínhamos que trabalhar até às l2:00. Era o dia de lavar o carro do gerente, um Ford velho, l948.

Terminado o expediente, voltava para casa, e depois do almoço, ficava por ali perto, conversava com um ou outro vizinho até que, chegando a noite, encontrava um colega, o Odair, também de minha idade. Vestíamos paletó social. Ele tinha um marron claro, eu, um bege. Colocávamos gravatas de nossos irmãos. As calças, qualquer cor, não combinando nada com nada. Enfim, íamos à pracinha da igreja Padre Eustáquio, fazer o footing e ver as mesmas meninas da semana passada, que também ficavam naquele interminável vai e vem. Os rapazes postavam-se ao longo da praça, e elas iam e voltavam inúmeras vezes, fazendo uma interminável passarela que, se fosse medir, dariam muitos quilômetros percorridos. Olhávamos, olhávamos, mas não falávamos com elas, nossa timidez não deixava. Outros rapazes ficavam a colocar defeitos nas moças, já que não conseguiam conquistá-las. Eram os piores adjetivos aplicados às pobres moças, tais como: bisu, uma gíria dirigida às mais feias. Bicicleta de aluguel, àquelas mais namoradeiras. Continental, que era uma marca de cigarros, às que andavam de boca em boca.

Às 9:00 da noite, a criança voltava dentro de nós. Corríamos ao carrinho de pipocas, e com a boca cheia, esquecíamos momentaneamente as meninas. Com a praça já se esvaziando, entre 9:30 e l0:00, voltávamos para casa entre os mesmos comentários:

- Cê viu a bola que ela me deu?- Aquela outra também ficou me olhando...Tínhamos carteira de sapo. Era plastificada, com retrato 3x4 e os seguintes

dizeres: Ao portador dessa, é permitido o acesso em festas e conversa alheia, mesmo sem ser convidado. Andávamos com ela no bolso, como se fosse um documento oficial.

Depois, surgiu uma outra versão, a carteira de Penetra de Classe. Isto porque, naquela época, era considerado um valor a ousadia de quem penetrasse nas festas sem

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ser convidado. Muitos saiam esfolados quando eram descobertos, mas nunca desistiam da empreitada. Daí, a tal carteirinha. Existia até uma piada na época, que ilustrava esse comportamento. Em uma tal festa, a dona da casa desligou o som e disse:

- Os convidados da noiva ficam a minha esquerda, os do noivo à direita.Separados os comensais, falou:- Todo mundo para fora, a festa é de batizado!A puberdade chegava com toda a sua força. As transformações psíquicas pela

qual passávamos não eram entendidas; nem por nós mesmos, muito menos pela família, como se os mais velhos também não tivessem enfrentado essas mudanças em seu tempo. Sentia-me marginalizado, descompassado dos demais, sem saber para onde ir. Tive um dia a idéia de procurar ajuda. Nesse tempo não se falava em psicólogos, terapia, análise. No máximo era rezar, afastar as tentações.

Procurei o padre Osvaldo, uma pessoa disponível e carismática. Ele dirigia o Clube dos Tarcísios, uma espécie de agremiação para jovens, que atuava junto à igreja dos Sagrados Corações ou, como é chamada popularmente, Igreja do Padre Eustáquio. O padre recebeu-me, escutou minhas queixas e em seguida disse:

- Os conflitos pelos quais você está passando são normais para um jovem da sua idade. É a adolescência, um período de intensas transformações. Não se pode contrariar o ciclo da natureza, afinal ela vem para o nosso crescimento e isso tem um preço, que é o desconforto e a insegurança. Depois passa, e quando isso acontecer você vai se encontrar mais consciente, mais senhor de si. Vou te emprestar um livro que irá lhe ajudar a entender esse momento.

Era o Diário de Dani, escrito por Michel Quoist, sobre a vida de um adolescente. Prontamente me identifiquei com as suas incertezas e os problemas diários. Mas o que mais me fascinou na leitura, foi quando ele descreveu o dia em que conseguiu andar de teco-teco, sobrevoando sua cidade natal e se sentindo como um pássaro livre, largando em terra todos os seus problemas. Esse pequeno vôo lhe trouxe uma nova percepção das coisas e lugares, fazendo seus problemas tornarem-se diminutos, assim como tudo o que estava lá em baixo.

Foi o bastante para despertar em mim a vontade louca de andar de teco-teco. Queria imitar o personagem a todo custo. Naquele tempo, andar de avião era um luxo para poucos, mas eu não sossegava, queria a qualquer custo fazer o que parecia impossível. E numa conversa com outro vizinho, o Alemão, um rapaz mais velho, já com l8 anos, que a possibilidade começou a se materializar. O Alemão disse:

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- Eu também tenho uma vontade danada de andar de teco-teco, mas tenho medo.- Medo é o que não me falta, mas a vontade é maior. – eu disse.- Vamos no campo do Aero-sita domingo que vem para ver os aviões? - Vamos. - respondi.No fim da semana, lá estávamos, maravilhados com aquele outro mundo. O Aero-

sita era uma escola que formava pilotos para o início da carreira na aviação comercial. Ainda hoje existe no bairro. Com o crescimento da cidade, ele tem seus dias contados naquele local, pelo risco que representa para a população vizinha, onde muitos acidentes fatais já aconteceram. Naquela época, porém, ali era quase deserto, ventava muito, emprestando um certo misticismo ao local.

Meu amigo Alemão, um sujeito extrovertido, travou logo conversa com um piloto veterano, que tinha seu próprio avião, o Tanis. Conversa vai, conversa vem, o piloto disse:

- Levo vocês, um de cada vez, para um vôo pela cidade pelo preço de um salário mínimo. É só para pagar a gasolina, pois lucro não dá, tenho que decolar duas vezes, o que força muito o avião.

Alemão então respondeu que iriámos pensar e no próximo domingo daríamos uma resposta. Na volta ele me fez uma proposta:

- Pago sua parte e divido em dois pagamentos; você fica me devendo...- Vou ver com minha mãe, durante a semana dou uma resposta. Atraquei-me com

a velha a semana inteira, para lhe arrancar o consentimento. Afinal, argumentava, iria pagar com o dinheiro do meu trabalho.

- É muito dinheiro para nós - ela contra atacava.Mas, eu não iria desistir da oportunidade que batera em minha porta.

- Deixa, deixa! - Não e não! Deixou, milagrosamente deixou!

No outro domingo, lá estávamos os dois, rindo a toa, mais de medo do que alegria. Argumentei ainda com Alemão:

- Mas será que a gente precisa mesmo ir?- Viemos até aqui, não dá prá desistir – respondeu.- Então vai você primeiro – falei.

A essa altura, Tanis já estava com o avião ligado e gritava:- Como é, vem ou não?

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Alemão olhou para mim, deu um grito e saiu em louca corrida em direção ao teco-teco que, furioso, jogava poeira para todos os lados. Entrou pela portinhola da pequena aeronave, afivelou o cinto e em minutos o aparelho taxeava a pista. Rugia como um animal bravio. Em seguida, vencendo as leis físicas que teimavam em mantê-lo no solo, foi se fazendo leve no espaço e sumindo como um distante passarinho.

Foi um pequeno vôo de l5 minutos, mas parecia ter passado uma eternidade, quando finalmente apareceram novamente no ar como se tivessem surgido do nada.

O avião desceu suavemente, pousando no mesmo lugar em que recolhera meu amigo, demonstrando a perícia do piloto, que em seguida me chamou:

- Vem logo!Corri para o avião, sem muita convicção e no caminho passei por Alemão que

vinha correndo em sentido contrário. Falou rapidamente:- Vai sem medo! É bom demais!Entrei, sentei-me na pequenina poltrona, prendi o cinto de segurança e lá

estávamos, buscando a cabeceira da pista. O teco-teco começou então uma louca correria e em breve o chão começou a ficar cada vez mais lá em baixo. Segurei firme no banco e só olhava para os lados, pelo canto dos olhos, a cabeça não tinha coragem suficiente para virar. Aos poucos porém fui relaxando e comecei a curtir o vôo. A cidade agora parecia insignificante. Uma enorme sensação de liberdade me invadiu. Parecia que ali em cima era o meu verdadeiro lugar. Passamos pela Serra do Curral e virando para a esquerda, logo estávamos sobrevoando a lagoa da Pampulha.

O pequeno aparelho parecia uma palha de arroz solta ao vento. Suas paredes eram de um material parecido com uma lona de caminhão, que tremia com a ação do vento. Foi quando Tanis falou do banco da frente:

- Observe que coisa gostosa!Alterou a rotação do motor do avião para menos, assim como se tivesse colocado um carro em ponto morto. A diminuta aeronave imediatamente entrou em uma queda vertiginosa. O frio que senti na boca do estômago não dá para descrever. Fiquei quase sem fala. Ele ainda acrescentou:

- É ou não é gostoso!- Éééééééééeéé!... – respondi.

Em seguida retomou a rotação normal do motor e prosseguimos com o passeio. Lembrei em seguida do Diário de Dani e a sua descrição do vôo. Eu estava ali,

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comprovando o que o personagem relatara. Experimentava uma sensação de interação jamais conhecida.

Por fim retornamos ao aeroporto e pousamos suavemente. Desci meio bambo e feliz. Voltamos para casa e essa aventura foi contada aos colegas por mais de uma semana.

Hoje com o corriqueiro dos vôos domésticos essa experiência pode não parecer algo fora do normal. Mas isso foi há 45 anos atrás...

...

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Capítulo X

A Revolução de 64

Quando iniciou a Revolução, eu não tinha a menor idéia do que representava ou no que iria implicar. Entre tantas mudanças em minha vida, punha-me agora a tomar conhecimento e gosto pelos livros.

Comecei por fazer uma carteirinha de sócio da biblioteca do Sesc. Só que eu não tinha uma idéia do que ler e por onde começar. Ao acaso escolhi um Hamlet. Não entendi quase nada da obra, porém sentia que estava fazendo algo importante e prossegui.

Aos poucos fui selecionando, criando minhas preferências, e me apaixonando pela literatura Brasileira. Entrei de cabeça na obra de Machado de Assis.

O fascínio foi tal que comecei a me transportar para o mundo criado por ele. Sentia uma saudade do século dezenove. Ia aos domingos ao nosso museu ,o Abílio Barreto, subia ao segundo andar da casa, e ali ficava imaginando como seria o passado próximo.

Os aposentos de dormir, tal se encontram hoje, arrumados com suas camas e louças de primeira higiene, o piso de tábuas corridas...

Sentava no banco da sacada e podia ouvir as damas indo e vindo com o farfalhar de seus vestidos sedosos.

As fotos que existem da antiga fazenda dos Leitão, hoje nosso museu, com suas paredes esburacadas, muita sujeira à volta, em nada lembra o que se vê hoje por ali. Tudo muito bem cuidado, criando uma atmosfera propícia à imaginação.

Associava aquele ambiente do museu à casa que Bentinho, personagem central de Dom Casmurro, mandara construir, refazendo igual a de sua infância, com o intuito de unir as pontas da vida.

Hoje, de certo modo, ao escrever essas memórias acho que também começo a querer unir as pontas da minha. Os porquês podem ser vários: saudosismo, preguiça da mente em caminhar para o desconhecido, embora eu viva a pregar a necessidade de se

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abrir para o novo. Talvez porque a vida em nosso país está se tornando tão incerta que vou criando um casulo de mim mesmo e em mim mesmo...

Depois de Machado de Assis, embrenhei no mundo de José de Alencar, Aluísio Azevedo, Lima Barreto, e muitos outros. Cheguei ao ponto de ficar procurando casas antigas pela cidade afora, vivendo uma fantasia doída, sem entender o que se passava comigo.

Ao mesmo tempo, independente dos meus sonhos, uma outra realidade corria veloz: a revolução de 64. Lembro-me de uma certa tarde, quando estávamos todos no Laboratório Espasil trabalhando, o gerente ligou um rádio no escritório e pegou um trecho da fala do Governador da Guanabara, Carlos Lacerda, no momento em que o almirante Aragão, comandante dos fuzileiros navais tentava invadir o palácio:

- Almirante Aragão, canalha, incestuoso, não te aproximes que eu te mato com o meu revólver.

A essa fala, o gerente achou por bem nos dispensar, mandando todo mundo direto para casa. A coisa começava a pegar fogo.

No auge de minha alienação, achei a revolução muito propícia. Se não fosse ela, eu não estaria agora indo para casa feliz da vida. O centro da cidade estava em um delírio coletivo. Gente andando depressa, vozes agitadas, comentários sobre os últimos acontecimentos. De um modo geral, o povo apoiava a revolução, sem ninguém saber ao certo no que iria dar aquilo tudo. As mulheres rezadeiras balançando terços à passagem das tropas do exército que se deslocavam para o Rio de Janeiro, carros de polícia por todos os lados.

Esse dia trouxe para mim um outro marco significativo: vivia tentando aprender a tocar uma gaita de boca e nunca saía nada. Naquela tarde, quando cheguei em casa, depois de almoçar, sentei no quarto onde estavam quase todos os meus irmãos reunidos e comecei a soprar a gaitinha. Para minha surpresa, intuitivamente, começou a sair a música Noite Feliz, o velho clássico natalino de Franz Gruber. Os manos pararam de conversar e me olhando boquiabertos perguntaram:

- Como você conseguiu?- Não sei, respondi, só sei que saiu. Para não esquecer, ainda toquei mais umas 180 vezes. Depois ninguém lá em casa

suportava mais a tal musiquinha. Aí embalei, vieram em seguida as canções: Al Dilá, Moon River, Fascinação, Ouça, etc...

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A revolução prendendo gente, torturando e matando e eu tocando a gaitinha, complôs sendo descobertos, pessoas que entregavam antigos desafetos aos policiais aproveitando o momento, assim como na inquisição, o Brasil sendo virado de cabeça para baixo e eu tocando minha gaitinha...

Depois de algum tempo é que comecei a compreender a extensão de toda aquela loucura. Meu fôlego acabara, encostei a gaitinha. O fôlego da revolução aumentara. Torturadores tomaram gosto pelo ofício, esquecendo que naquela miséria estavam seus irmãos compatriotas.

Existia naquela época mais ordem social, se comparada aos dias de hoje. No restante, o mesmo filme a que assistimos agora. Falcatruas, lesa-pátria, corrupção, engodo e outras mazelas. Durou até os anos 80. Tivemos um salto inimaginável, astronômico, da dívida externa. Isto sob os auspícios dos Estados Unidos, os grandes beneficiados dessa miséria que se instalou em toda a América do Sul. Perpetuou o vício da impunidade, aniquilou com o que restava da incipiente cultura brasileira...

Mas agora, uma nova energia começava a ser soprada aos quatro cantos do planeta. Uma revolução nos costumes brotara quase que repentinamente em todos os países. Estava para entrar a era de aquário. Para os materialistas, nada de mais, para os esotéricos, uma mudança radical. Segundo estes, a nova fase traria energias que iriam abalar os alicerces da sociedade humana....

Independente de conceitos materialistas ou esotéricos, o fato é que as mudanças estavam chegando. Brotava nos jovens uma inquietação, uma não mais aceitação do estabelecido, um caldo fervendo e engrossando. A partir dos anos 50, a rebeldia expressada através do rock americano, dava as primeiras amostras do que estava surgindo. No Brasil, Cely Campelo dava o tom, com sua voz aguda e doce, nas inúmeras versões de sucessos americanos. Tudo ao mesmo tempo misturado ao sucesso da bossa nova que navegava em outras águas. Porém, a explosão começou prá valer alguns anos depois.

Em 64, os Beatles surgiam com sua música mágica, então o mundo experimentou uma transformação jamais vista. Roupas, cabelo, novas gírias, conceitos novos brotando no ar, em cada casa, em cada esquina...

A reação dos mais velhos foi de um espanto total. Tentaram reprimir seus filhos, porém nada mais segurava aquele imenso caudal de energias que se renovava quase que instantaneamente.

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As mulheres por fim começavam a encontrar a sua expressão de liberdade. O símbolo dessa mudança chamava-se Janes Joplin. Com sua voz rouca , apresentava-se em shows de camiseta sem manga e sem soutien. O mundo virava maravilhosamente de cabeça para baixo...

Eu andava nas nuvens. Comecei a aprender alguns acordes no violão. Consegui com muita dificuldade acompanhar Pingos de chuva, de Demétrios. Depois veio Filme Triste, cantada na voz de Evinha.

Não parei mais, tocava no violão que meu irmão comprara há tempos e o encostara, depois de tentar aprender samba-canção. Com a turma da esquina, fui avançando, mais e mais.

Em l965, ainda trabalhando no laboratório, fui, com o Sr. Francelino, após o expediente, no cine Metrópole assistir o esperado filme dos Beatles, Help. O tradicional cinema já não existe mais. Localizado na rua da Bahia com rua goitacazes, foi demolido alguns anos depois, onde construíram uma agência do Banco Bradesco.

Naquele dia, o que se via à porta do cinema era uma cena tocante. Rapazes e moças quase que num transe, gritavam sem parar, ainda na fila para comprar ingressos. A enorme massa humana se esticava pelo quarteirão afora. O cinema já não agüentava atender ao público que parecia a cada instante brotar do chão. Por fim chegou a nossa vez. Compramos os ingressos e entramos. Lá dentro a balbúrdia continuava. Quando começou a sessão o cinema quase veio abaixo. Aparecem os Beatles em uma casa luxuosa, cada um deitado em uma cama num enorme aposento. Só que as camas eram vazadas, construídas dentro do chão, abaixo do nível do piso. Aquilo foi demais para as nossas pobres cabeças provincianas.

Quando começaram a tocar, quase não se ouviam as músicas, tamanha a gritaria histérica de homens e mulheres. Os que já conheciam as letras das canções, cantavam juntos. Naquele momento os Beatles não eram seres mortais como nós. Eram deuses nos conduzindo por um vale largo e sonoro, repleto de brilho e sonho.

Comecei então a gritar também. O Sr. Francelino, mais recatado, ficava me dizendo:

- Comporte-se Sr. Marco! Eu não me comportava, como me comportar diante daquela poesia jamais vista ou

imaginada? Terminado o filme, fui para casa anestesiado pela música dos Beatles. Nesse dia acabei de comprovar que realmente uma grande mudança estava instalada em nós

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jovens. Todos à procura de uma nova ordem, de um novo paradigma para as nossas vidas.

Acabei por fazer mais algumas novas amizades em nosso bairro com outros rapazes que também só respiravam música. Era uma troca diária e, depois do trabalho, corria à turma para ver se alguém aprendera alguma nova canção. Assim, o que um aprendia, passava para o outro.

Pensamos em tentar montar uma banda. Naquela época dizíamos conjunto musical. Nossos conhecimentos eram escassos, assim como nossos bolsos mas, a vontade, enorme. A cada dia surgia em nossa cidade um grupo novo: Barranqueiros, Blue Star, The Rolling Skates, Pêndulo,etc

Começamos a ensaiar somente com violões. Depois tivemos uma bateria comprada, feita em casa, nascida de umas caixas de madeira redondas de sabão em pó, marca Revel. Tinha um prato que emitia um som de lata. Assim foi nascendo o conjunto: As coisas Lindas, um nome traduzido literalmente de um conjunto inglês, The Prety Things.

Os nomes eram quase todos ingleses, daí a idéia que tivemos em tentar fugir um pouco disso. Naquele enorme caldeirão de energias em que a nossa geração fervia, não consegui continuar os estudos. A música me absorvia completamente. Não fui o único a cometer a loucura de descuidar do preparo acadêmico, pensar um pouco mais no futuro profissional. Poucos conseguiram conciliar uma coisa e outra, naquele período: viver o sonho e ao mesmo tempo ter os pés no chão.

Em l966, deixei o trabalho no laboratório Espasil. Fui trabalhar como pesquisador para uma empresa publicitária, eu e meu primo Celton, mas era um trabalho temporário, sem vínculo empregatício. Nesse tempo consegui me libertar do jugo materno, fazendo o que achava estar certo, e quebrando a cabeça aqui e alí.

Em l967, nosso grupo musical aos poucos foi tomando forma. Resolvemos fazer uma apresentação no casamento de minha irmã Leni. Armamos um tablado que nos serviria de palco, acertamos os poucos aparelhos que já possuíamos e começamos a tocar. Só que não levamos em consideração um detalhe importante. Meu pai mandara esticar por todo o pátio da casa, enormes gambiarras de lâmpadas a fim de clarear todos os cantos. Isto aliado a outras inúmeras lâmpadas espalhadas por toda a casa. Naquela época a voltagem residencial era fraca, fazendo com que qualquer carga extra comprometesse todo o sistema. Não escapamos do problema. Ao começarmos a tocar, o som quase sumiu, mesmo tendo aberto os volumes dos amplificadores ao máximo. Ficou

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um som chocho, sem vida. Insistimos mais um pouco e depois desistimos vendo que não iria dar certo. Por sorte havia uma radiola – o aparelho de som da época – instalada perto do nosso palco, justamente para dar suporte. Liguei-a e coloquei um LP dos Beatles. Dando uma volta entre as pessoas que estavam no pátio, coloquei-me por fim atrás da tia Érica e de seu marido Josias. Sentados que estavam em cadeiras espalhadas pelo pátio, não perceberam minha presença. Também não viram que havíamos deixado de tocar há alguns minutos e colocado o disco.

Josias disse então à tia:- Os meninos até que estão tocando direitinho né? - E não é que estão mesmo, os danadinhos! - arrematou a tia.Era o mês de junho. Eu penava agora, fazendo o serviço militar. Como era difícil

viver o mundo da música e ser militar! Vivia arranjando um jeito de escapar dos serviços de guarda no quartel para poder ensaiar, ou mesmo nos dias em que conseguíamos algum baile para tocar. Comecei a criar propositadamente uma imagem de moleirão, incompetente, procurando com isso escapulir de algumas responsabilidades diárias. Além de tudo, a moda da época era usar cabelos compridos e eu, no conjunto musical, era o único de cabelo raspadinho. Às vezes ouvia algum comentário quando estávamos tocando em algum baile:

- Hum, esse conjunto tem milico! Fui criando mais e mais a fama de não fazer nada certo entre os sargentos, e isso

me valia alguma condescendência entre eles. Espalhei para os colegas que eu era uma pessoa muito doente que não podia com muitos exercícios físicos. Quando me obrigavam a fazer e não havia como negar, então eu era o último a chegar. Fazíamos treinamentos em que nós, os recrutas, vez ou outra comandávamos a tropa:

- Ordinário! Marche! Olhar à direita! Atenção pelotão! Alto!Esses exercícios eram praticados no pátio do quartel. Caso passasse algum superior e o pelotão estivesse em marcha, ao passar pela patente, dizia-se:

- Atenção pelotão: olhar à direeeiiita! Ou esquerda, conforme o sentido em que ele vinha. Certo dia, coube a mim o

comando. Eu estava gostando daquilo, dando ordem para os meganhas, quando apontou à frente um tenente coronel, todo engalanado de estrelinhas. Vinha à nossa esquerda.

Dessa vez eu quis fazer a coisa certa, mas não foi como saiu. Preparei o pelotão: - Atenção pelotão! Olhar à direeeiiita!

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Ficamos todos com a cabeça virada ao contrário dele e encarando uma lixeira enorme que havia à direita. A tropa aos risos, eu desorientado, até que por fim consegui dar auto e parar o pelotão. Pensei comigo: hoje estou frito, vai subir uma parte para minha companhia. Subir uma parte era uma comunicação de punição disciplinar.

Os recrutas riam rememorando a situação e esperando o que me aconteceria. Curiosamente não aconteceu nada. O tenente coronel não fez caso de minha trapalhada.

Certa vez, uma sexta- feira à tarde, entramos em forma para a leitura do boletim. Nessa leitura saiam os soldados que entrariam em serviço no sábado e no domingo. Faltaram porém dois soldados para completar o pessoal que iria dar guarda àquela noite no alojamento. Quando foi lida a relação, lá estava o meu nome para o serviço daquela noite. Eu tinha um ensaio marcado para às 20hs com o meu grupo. Iríamos tocar no sábado. Fiquei em desespero; o que fazer? Era proibido pagar colega para tirar serviço. Mas pagávamos assim mesmo. Às vezes descobriam, outras não. Quando descobriam, dava detenção de uma semana no quartel. Resolvi arriscar. Conversei com um colega que morava na companhia.

- Tira o serviço para mim; te pago quando sair o soldo.- Tudo bem Marco, eu tiro, mas você faz o primeiro horário para eu poder tirar um

cochilo. - Mas você não entende! São l9 horas e eu preciso estar no Sesc para ensaiar às

20! Não posso faltar... - argumentei.- Se quiser é assim, ou então não tiro o serviço.- Está bem!- respondi - Para adiantar já vou trocando a roupa. Quando acabei de

pronunciar a última frase, inexplicavelmente a luz do quartel acabou, ficando tudo na mais total escuridão. Pensei comigo: os deuses estão do meu lado, por isso é que a música é divina. Naquela época havia a farda de instrução, a que era usada no dia-a-dia, e a farda de passeio. Coloquei a gandola de passeio, uma espécie de jaqueta verde, e estando de cuecas, vi uma lanterna se aproximando rapidamente, procurando quem estava de plantão no alojamento. Era o ronda noturno que passava em horas incertas. Peguei rapidamente o capacete de serviço, coloquei-o na cabeça ficando de capacete e cuecas, em posição de sentido e tremendo, esperando o pior. Deu ainda para ouvir o colega que iria tirar o plantão para mim se assustar sentado na beira do beliche.

– Minha nossa Senhora do Carmo! O ronda se aproximou de mim e como um policial de fronteira, iluminou meu rosto com a pequena lanterna e foi logo perguntando:

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- Nome e número de companhia soldado!- Soldado Marco, número 827 senhor!- Alguma alteração no alojamento?- Nenhuma senhor!- Muito bem! Prossiga com o seu plantão!- Sim senhor! - respondi após breve continência. Em nenhum momento, por uma fração de tempo sequer, ele baixara a lanterninha.

O colega que iria tirar o serviço para mim exclamou atônito: - Isso não aconteceu, eu estou sonhando.A música é divina... - respondi, já vestido saindo para o ensaio. Existiam naquela época, os quadros murais, painéis ilustrativos de situações

vividas dentro dos quartéis ou em campo de guerra. Geralmente vinham dois quadros desenhados com a mesma cena, uma exemplificando o procedimento correto, a outra, a forma errada. O soldado Valter era o desenhista da nossa companhia. Jocosamente, nos exemplos errados, lá estava desenhada a minha cara. Aquilo era motivo de riso constante à hora das instruções em sala de aula. Eu pensava comigo: podem rir à vontade, esse é o meu passaporte para sair de situações as quais vocês irão passar. E assim foi acontecendo. Certa vez, fomos fazer acampamento. Nossa companhia ficou incumbida de esticar linhas telefônicas para as devidas comunicações de campo. Os fios tinham que passar por cima das árvores. Eram copas altíssimas, os colegas foram subindo aqui e ali, esticando os tais fios. Eu estava lá em baixo admirando toda aquela movimentação, quando o sargento Cátinas foi gritando para mim:

- Como é Marco! Vamos subindo logo com esses fios que não temos o dia inteiro! – Ah não, sargento! Não vai dar.– Como não vai dar, seu meleca!– Acontece que tenho vertigens, não posso com altura.– Uh, uh, o soldado tem medo de altura! Suba logo! É uma ordem!– Não consigo alcançar nem aquele primeiro galho, que é o mais baixo. -eu disse,

apontando para a árvore próxima de nós.Deixa de ser molenga soldado! Já que você não presta para nada, faça o seguinte:

vou agachar, você sobe nas minhas costas, eu levanto e você passa o fio pelo galho.- Será que eu consigo, sargento? – Para o seu bem, é melhor que consiga! - vociferou o homem.

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E lá fui eu, em busca do tal galho, de elevador. Os soldados pararam momentaneamente o trabalho para verem a cena patética, eu subindo nas costas do sargento mais bravo da companhia...

Foram muitas fugas de serviços. Até da manobra anual em Água Limpa, que era considerada o ponto alto da formação de um soldado, eu consegui fugir. Meu pai ficava louco quando o jipe da patrulha mista batia lá em casa me procurando e não me encontrava. Tomei muita injeção de glicose nas veias, a cada vez que eu fingia um desmaio e eles me carregavam para a enfermaria pensando que estava mal. De lá, eu fugia à noite. No outro dia era outra confusão, uma nova maneira de achar um meio e burlar aquele sistema cruel, onde filho chora e mãe não ouve.

Vi muitos colegas estragarem a vida, por atos pequenos, banais dentro da caserna. Meninos que éramos aos dezoito anos, uma palavra mal dita, uma brincadeira inocente, conforme o dia em que estivesse para baixo o humor do superior, podia custar caro ao recruta. Vi colega sair da solitária, após um mês no quartinho fétido, totalmente no escuro, recebendo comida por uma janelinha estreita, com o corpo inchado, não suportando a luz do dia, a mente dando sinais vivos, já de alienação. Fiquei sabendo de outro companheiro que desertou, faltando dois meses para a baixa. Foi pego onze anos depois. Pegou anos de cadeia. Por briga a toa entre colegas, vi recruta saindo somente de calção do quartel, em frente a todo o pelotão formado, para entrar no carro da polícia civil e ser levado para ser fichado como criminoso qualquer, e sabe-se lá o que mais possa lhe ter acontecido. Eram os anos cruéis, a face inumana da revolução. Hoje ainda me pergunto: para que aquilo tudo aconteceu? Muita gente se enriquecera com o sistema. Hoje o exército não tem dinheiro nem para manter um soldado o ano inteiro na corporação. Ficam agora poucos meses.

Resolveram me colocar na primeira baixa, a dos bem comportados. Não por causa do meu bom comportamento, mas, segundo o capitão da companhia, para evitar que coisas piores pudessem me acontecer ali dentro. Também já era hora, meu estoque de malandragens já chegara ao fim. Quando eu já ia saindo do quartel, no último dia, com o certificado no bolso, passei pelo soldado Salles, que ficara para o núcleo-base, ou seja, a última baixa no outro ano, considerada pelos superiores como a baixa dos maus- elementos. Ele chegou eufórico, mostrando-me uma porção de atestados médicos:

– Olha Marco! - falou me apontando para os papeis – Entrei na sua! Demorei um ano para entender o seu jogo...

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Saí dali, fui para um botequim, tomei três rabos de galo e um montão de cervejas. Não sei como, juro, fui parar em cima do telhado da casa de um vizinho. Dizem que foi preciso três pessoas para me tirarem de lá. Só me lembro de ter acordado em casa com uma tremenda ressaca.

Saí com um ouvido danificado nos treinamentos de tiro. Ouço um zumbido parecendo uma cigarra, que me acompanha há 40 anos. Tive alguma perda auditiva. Comecei a sentir tonteiras há algum tempo atrás e resolvi procurar um otorrino. Ele examinou, examinou e disse:

- Espere, tem alguma coisa aqui dentro do ouvido.Foi mexendo com uma pinça e por fim retirou de lá um pequeno caroço envolto em

cera. Examinou melhor e descobriu que era uma bola de algodão. Perguntou:- Como esse algodão foi parar aí dentro? Repentinamente lembrei-me que no dia dos treinamentos no estande de tiros,

após terminar, senti muito zumbido. Coloquei então uma bolinha de algodão ali e fui embora. Depois esqueci-me, imaginando que ela tivesse saído sozinha. O que aconteceu é que ela foi envolta pela cera que protegeu meu ouvido de conseqüências piores. Carreguei-a comigo por longos 40 anos. O ouvido não voltou mais ao que era, mas as tonturas desapareceram.

Hoje dou graças pelo fato de meus filhos Danilo e Gutemberg não terem feito o serviço militar. Ficaram livres sabe-se lá de quantas. Agradeço mais uma vez aos deuses da música...

...

Capítulo XI

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O sonho acabou

Terminado o serviço militar em novembro de l967, fiquei desse período até o final de l969, meio à deriva, quer na vida profissional ou na estudantil. Tentava uma coisa e outra, mas nada em que conseguisse dar uma seqüência satisfatória. Trabalhei em uma loja de artigos fotográficos. Depois, tendo conseguido algum financiamento, tentei trabalhar com fotografias em casamentos e batizados. Montei um pequeno estúdio de revelações em preto e branco - o que mais se usava na época - mas me faltava maior tarimba e também mais arrojo na busca de serviços. As igrejas geralmente tinham seus fotógrafos credenciados. Havia naquele tempo um pequeno artefato conhecido como monóculo, que consistia de uma película colorida de filme positivo, igual aos projetores de slides, numa caixinha com uma pequena lente por onde se olhava a foto.

Meu trabalho era fotografar a pessoa, retirar o filme e levar para a revelação em estúdio especializado, já que possuir um laboratório a cores em casa era impraticável, tanto pelo alto custo que representava, como os necessários conhecimentos técnicos, os quais eu não possuía. Já com o laboratório em preto e branco, não havia problemas. Este eu dominava bem, pois já havia trabalhado algum tempo com o primo Marciano, filho da tia Mínima, mesmo antes de entrar para a loja de artigos fotográficos.

Consegui por poucos meses fazer algum dinheiro, mas era desanimador. Eu não andava para frente. No grupo musical praticamente tudo o que se fazia em dinheiro oriundo dos bailes, era para pagar a aparelhagem que compramos. Ganhamos um concurso musical na inauguração do Clube dos Trabalhadores na cidade de Betim. Um prêmio de 500.000 mil cruzeiros e um convite para gravar um compacto simples na recém inaugurada gravadora Bemol. O dinheiro foi destinado para pagar a entrada dos instrumentos, o compacto não saiu. Não tínhamos música própria, ficamos assustados com aquela possibilidade. Fomos ainda convidados a tocar num programa de televisão, o Top Set, na extinta TV Vila Rica, que foi depois comprada e veio a se transformar numa filial da rede Globo, que ficava numa casa antiga da rua Rio de Janeiro. Era uma dificuldade arranjar uma roupa adequada para ir ao programa. Certo dia, não tendo outra camisa a vestir que não as surradas de sempre, a fim de mudar um pouco o pobre visual, vesti uma japona, um tipo de casaco muito usado na época. O problema, era um dia de intenso calor. E lá fui eu para o estúdio tocar. Os colegas que estavam um pouco melhores de vestimenta, estranharam aquele meu frio.

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Perguntavam: - Mas você está com frio mesmo? – Estou, vocês não? – respondi sem graça.O tormento foi quando começamos a apresentação, debaixo daqueles holofotes

terríveis, suando por todos os poros. Os dedos da mão esquerda escorregavam nas cordas de aço da guitarra elétrica. Quando a apresentação terminou e saímos do estúdio e tirei imediatamente a japona, a camisa quase veio junto, empapada que estava de suor. Aí, realmente senti um friozinho. Isso tudo de graça, pois a emissora não pagava nada. Argumentavam que estavam nos divulgando.

Para completar, à noite, quando cheguei na casa da namorada Nina, esta me disse:- Vimos vocês na televisão hoje à tarde, minha irmãzinha caçula até comentou

Olha lá o Marco, ele tá com a japona e a camisa que vem aqui em casa. – Ah é? – respondi – Que coincidência! Uma única vez o conjunto musical me trouxe um lucro financeiro. Cleverson, o

líder do nosso grupo - éramos muito amigos - procurou-me e disse: - Sabe, Marco, a gente fica tocando, tocando e não sobra nada pra nós. Sou doido

para ver a passagem de ano na praia de Copacabana, aqueles fogos de artifício... Bolei um jeito para a gente levantar a grana e curtir no Rio de Janeiro...

O plano era o seguinte: conhecíamos uma diretora de escola de primeiro grau que gostava de dar festas no colégio em que ela trabalhava, com a finalidade de levantar dinheiro para a caixa escolar. Quando fazíamos um baile na escola, ao final, dividíamos o lucro. Cleverson iria até ela e proporia um novo baile. Só que para o resto do grupo ele diria que resolvera aceitar tocar de graça dessa vez, dada a precariedade financeira em que a escola se encontrava. Não custava dar uma mãozinha. Em seguida pediria à diretora que confirmasse ser gratuita nossa apresentação, já que, segundo as más línguas, depois desses bailes na escola, a diretora já havia trocado todos os móveis de sua casa. Entre ela e nós dois, meio-a-meio. Para completar, eu colocaria uma faixa no braço esquerdo, fazendo uma tipóia, uma torção de última hora, que me impediria de tocar. Para eu não ficar de fora da ajuda à escola, humildemente trabalharia no caixa à hora da festa, vendendo as entradas. Achei o plano simples e bem bolado. Só teríamos que convencer o resto da turma. Topei levar para a frente a idéia, afinal eu nunca havia ganhado nada com o grupo. Quanto aos outros integrantes do Coisas Lindas, arranjaríamos uma maneira de lhes compensar posteriormente.

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A diretora aceitou, seus olhinhos faiscaram de alegria, talvez já imaginando o móvel novo da sala de estar. Tudo funcionou perfeitamente, tendo os outros componentes aceitado tocar de graça. À noite da festa lá estava eu, lamentavelmente de tipóia, uma torção inesperada me afastou da guitarra. Pedimos a outro colega que me substituísse àquela noite, o alegre Militão. Para ele, só de estar alí tocando em meu lugar já era uma paga. Mas a diretora não contava com uma coisa: minha japona fora também naquela noite, cheia de bolsos internos, a fim de entrar em ação. A danada era ruim de matemática: dois pra mim, um pra diretora, dois pra diretora, três pra mim...

Fomos de trem Vera Cruz, de poltrona de veludo e carro restaurante, tomando cerveja. Ficamos uma semana no Rio, vimos a maravilha dos fogos de artifício, de bermuda, descalços, garrafa de bebida debaixo do braço. Nossas vozes já arrastadas na cana:

- Felixxxxxxx ano novo companheiro! – Ich! - Felixxxxxxx ano novo pro cê também! O que a gente não faz pra agradar um

amigo!Quando voltamos, Cleverson estava com remorsos por ter mentido para o grupo,

principalmente para seu irmão Renato, nosso baterista. Mas depois ficou tudo bem. Esse confessara a Cleverson que em nossa ausência eles promoveram uma festa sem nosso conhecimento e depois torraram o dinheiro todo na farra. Conclusão: Fingiram que engoliram nossa história. Lobo come lobo.

Acabei por deixar o grupo; cansei-me daquela mexida toda. Gostava da música mas não queria mais aquele caminho que nunca dava retorno, a não ser a satisfação de tocar nos bailes, arranjar namoradinha.

Precisava ganhar dinheiro. Meu pai estava em uma de suas piores fases de agressividade. Bebia demais, era machista ao extremo, maltratava dia e noite nossa mãe. Odiava que eu seguisse a juventude com aquelas roupas e idéias, achava aquilo tudo sujo e destorcido. Só não conseguia ver o que fazia com todos nós. Tinha também seu lado bom e educado, às vezes humano em demasia com todos, as vezes implacável. Vivia dizendo, em sua visão míope, que Roberto Carlos estragou a juventude brasileira. Essa mesma visão o impedia de acreditar que em l969 o homem pousara efetivamente na lua. Dizia que tudo não passara de montagem dos americanos para vencerem a guerra fria contra a Rússia. Tudo isso também pesou em minha decisão de deixar o caminho da música.

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No meio do ano, o conjunto acabou se desfazendo. Cléverson resolveu que iria para os Estados Unidos trabalhar. Sua família estava em sérias dificuldades financeiras. Começou por incentivar-me a fazer o mesmo. Achei em princípio a idéia impraticável. Porém, aos poucos, aquilo foi tomando corpo em mim. O problema é que eu não tinha nem mesmo como arranjar o dinheiro do passaporte. Nesse período, eu já tinha terminado com o estúdio de fotografias e estava desempregado. Foi quando meu pai disse que ia contratar um servente de pedreiro para fazer certas reformas em algumas casas alugadas que meu avô possuía na rua Muriaé. Perguntei a ele se eu não serviria. Tendo dito que sim, comecei o penoso trabalho para o qual eu não estava afeito, mas não desisti. Um mês depois eu havia pago o passaporte e as pequenas despesas iniciais para mandá-lo ao cônsul no Rio de Janeiro tentar o visto de saída do nosso país. Mandei, mas o passaporte voltou sem o visto de saída. O cônsul pediu comprovante mostrando que eu trabalhava regularmente e que estava de férias, segundo declarei na primeira tentativa. Quem me salvou foi meu amigo Leonel que trabalhava em uma empresa de grande conceito no Brasil e até no exterior. Sem cerimônia, pegou os carimbos a que ele tinha acesso no departamento pessoal da empresa e preencheu a papelada toda, dizendo eu ser funcionário da empresa e que estava de férias, com um salário tal e que gozava de excelente conceito. Sei que não foi limpo, mas não achei outro caminho, além disso não prejudiquei ninguém materialmente.

Faltava agora a outra parte, talvez a mais difícil. Conseguir dinheiro para levar em dólares para mostrar no balcão de imigração ao entrar nos Estados Unidos. Tinha ainda que conseguir financiar as passagens de avião, ida e volta. Meu pai tinha condição de fazê-lo, mas não queria. Porém quando algo de significado tem que acontecer em nossas vidas, que possa trazer aprendizado e crescimento, tudo isso aliado à nossa vontade de realizar, a vida conspira a favor.

Fiz amizade com um agente de viagens - que por sinal nunca havia ido aos Estados Unidos. Rolim, era o seu nome. Pessoa afável, eficiente no seu trabalho, foi se inteirando das minhas dificuldades, acabou me emprestando o que seria hoje talvez uns l.500 dólares. Eram suas parcas economias que ele colocava em minhas mãos, para que eu a devolvesse um mês depois de chegar à América.

Meu pai, acabei dobrando sua vontade em um simples diálogo. Conhecia sua vaidade em pensar que exercia controle sobre a vida de todos os filhos. Certo dia disse:

- Sei que você conseguiu o dinheiro para ir, como também um invejável visto de saída do país de quatro anos, o que não é fácil. Mas, se eu lhe disser para você não ir,

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ainda assim me desobedeceria e iria tentar outra forma de resolver a questão das passagens e viajar?

Conhecedor do ego do velho, mais a minha vontade de ir, não titubeei em lascar a resposta que ele queria ouvir:

- Não meu pai, desistiria de tudo e em seguida iria devolver o dinheiro emprestado!

O velho se desmanchou:- Era isso que eu queria ouvir. Amanhã mesmo vamos financiar as passagens.No outro dia já estava com os bilhetes no bolso e a promessa de todo o mês,

mandar para ele o dinheiro das prestações. Marquei para o início de janeiro de l970 o dia do vôo. A ansiedade era enorme, esperando os dias escoarem para finalmente embarcar na aventura. Estávamos no final de dezembro, perto do natal. Nesse período estava namorando a Simone, namorada tomada (no bom sentido) do meu amigo Leonel. Era um namoro bobo, parar passar o tempo. Só que Leonel não se conformava de ter perdido a namoradinha para mim. Não que estivesse apaixonado, mas era o machismo falando mais alto que a razão. Me dizia:

- Tudo bem, somos amigos a mesma coisa, só que quando você for embora, ela volta para mim.

- Tudo bem. - respondi!Leonel também pretendia ir para a América, só que o seu processo de papelada

ainda estava começando. Cleverson já havia ido embora, conseguira entrar no país sem problemas.

O dia D finalmente chegara. Às l6 horas eu já estava no aeroporto da Pampulha para pegar o vôo para o Rio de Janeiro. Naquela época não havia ainda o aeroporto internacional Tancredo Neves. Meu pai estava lá, de terno, emocionado se despedindo de mim. Dizia:

- Eu não teria coragem necessária para fazer o que você está fazendo, muito menos entrar nesse avião aí.

Da escadinha do avião, parei no último degrau e acenei para ele. Lembrei-me de Juscelino Kubitschek, numa foto antiga fazendo aquela clássica pose. Era um avião da Cruzeiro do Sul, uma carroça velha que sacudia toda, meio às turbulências encontradas naquela estrada de ar. Lá de cima dava para ver o traçado da rodovia que ligava Belo Horizonte ao Rio. Da altura em que estávamos, talvez uns trezentos e cinqüenta metros, ela mais se assemelhava a uma cobra magra e comprida. Foi com grande alívio que

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desembarcamos às l7 horas no aeroporto Santos Dumont. Fizemos o trajeto para o então aeroporto do Galeão.

No restaurante do aeroporto jantei em companhia de dois outros Brasileiros, um já naturalizado nos Estados Unidos, o outro marinheiro de primeira viagem como eu. Às 23 horas, um avião da Aerolineas Argentinas levantava vôo nos levando ao novo destino. Lá dentro havia um grupo de mocinhas americanas que estavam voltando de viagem da Argentina. Começaram a cantar umas músicas americanas, parecendo folclore. Cantavam cheias de si e nos olhavam como que desafiadoras. Eu que já havia tomado algumas cervejas para mais, na maior falta de cerimônia embalei Patropi, música de Wilson Simonal: moro num país tropical, abençoado por Deus... O outro marinheiro de primeira viagem, quase morreu de vergonha. Ficou vermelho, quase procurando esconder o rosto. As americaninhas ficaram sem graça e pararam de se exibirem...

Ao ler o livro de Patrick Süskind, O Perfume, onde o tema da história são os cheiros, numa história ambientada no século XVIII, recordei imediatamente do momento em que cheguei em New York. Quando o avião sobrevoou a baia de Manhatan, vi pela primeira vez a neve. Era o inverno inclemente, com a temperatura a dez graus negativos. Naquela época não havia as sanfonas que conduzem os passageiros diretamente do avião, ao saguão do aeroporto. No aeroporto Kennedy, o único lugar em que não havia neve, era na pista de pouso. Fizemos o trajeto a pé até ao balcão da imigração. Foi o primeiro cheiro que captei e nunca mais saiu de mim. Não dá para descrever com exatidão. Era um tanto abafado, lembrava uma mistura de algodão cru molhado e algo um tanto ardido. O cheiro da cidade, das lojas e principalmente dos supermercados impressionava-me profundamente. Mas o mais marcante foi quando entrei em uma loja de calças jeans na rua 44. Havia tanto cheiro peculiar das roupas que chegou a me enjoar. O odor das cozinhas dos restaurantes em que trabalhei, parecia ter entrado de vez em minha pele.

Mais tarde, com o endereço nas mãos encontrei finalmente Cleverson. O frio era o que mais incomodava. Fui em uma loja e comprei botas, calça capote e touca. Na primeira vez em que fui atravessar uma passagem no sinal para pedestres, escorreguei na gelo que havia no chão. Tinha que aprender a andar naquele piso escorregadio. A temperatura era tão baixa que parecia haver alguém torcendo minha orelha, tanto que doía. A todo momento entrava em um café, aproveitando o calor que saía das calefações.Foi um aprendizado difícil, principalmente por não dominar a língua inglesa. A época não era propícia a conseguir um emprego. Somente no verão é que as coisas melhoravam.

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Vi e andei pela primeira vez de metrô, ou subway em inglês. No Brasil ainda não havia, e lá era uma verdadeira loucura entender suas ramificações para todos os lados da cidade.

Cleverson estava desempregado, porém quando havia uma semana que eu havia chegado, conseguiu emprego em outra cidade. Fiquei morando com outros brasileiros em uma espelunca chamada One, Two, Three Hotel. Senti uma certa depressão, desempregado, com frio e sem entender a língua.Porém uma semana depois, através de alguns brasileiros com quem fui fazendo amizade, consegui um emprego em uma lanchonete na rua 52. Tinha dois patrícios trabalhando comigo, e por incrível que pareça, o dono falava português, já havia morado em São Paulo. Aí as coisas melhoraram bastante. Tinha comida, salário e onde morar.

O correio brasileiro era horrível nessa época. Para se ter uma idéia, minha mãe foi receber minha primeira carta, quase três meses depois que eu havia chegado.

Ir aos Estados Unidos há quarenta anos atrás, não é como hoje em dia. As comunicações ainda estavam engatinhando, as ligações telefônicas eram feitas através de uma telefonista, tudo pelo cabo submarino, não haviam ainda satélites para tal.Recebi uma carta da namoradinha deixada no Brasil. A letra era horrível, imatura, própria de que não tem o hábito de escrever. Pensei que ela tivesse uns quilates a mais.

A cartinha dizia assim:

Querido amor, quando partiste para o desconhecido, não poderia imaginar que a saudade que sinto, fosse tão grande. Ando muito chorona. Outro dia mesmo, dentro do ônibus vi um casal de namorados trocando juras de amor e chorei. Chorei para desabafar. É que ultimamente ando tão abafada! Ai, essa terra maldita que nos separou!

Lembrei-me do pai dela, um velho da roça, querendo se referir a mim como alguém muito querido pela casa, chamava-me de pau-doce! Era eu chegar na casa dele para namorar, ele gritava para a família:

- Hei gente, pau-doce taí!Pensei comigo: - Faça bom proveito Leonel.Algum tempo depois, Leonel chegou. Entre as conversas, ele se referindo à

namoradinha falou aos risos:

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- Marco, sabe aquela carta que você recebeu da Simone? Pois é, ela a escreveu sentada no meu colo!

Algum tempo depois, Cleverson voltou do lugar em que trabalhava e propôs que fôssemos trabalhar em um restaurante que estava precisando de dois empregados na cidade de Ridgfield, no estado de Connecticut. Coincidentemente, era o estado em que minha mãe havia nascido, só a cidade era outra: New Haven, que posteriormente vim a conhecer. Conseguimos o emprego através de Miss Haeys, uma mulher que agenciava empregos na cidade de Nova Iorque, no bairro do Bronks.

Eu e Cleverson nos reunimos a mais dois brasileiros de Belo Horizonte que já estavam ali. Posteriormente, seu irmão Renato também se juntou a nós nesse mesmo trabalho no restaurante.

Trabalhamos duro no inverno. O restaurante era situado nas montanhas, tinha lago e casas para os hospedes passarem o fim de semana; a comida era caríssima. Seu dono, um velho cozinheiro famoso, Mr. Stocley, suísso naturalizado, na melhor acepção da palavra, assemelhava-se a uma toupeira. Tinha enorme preconceito contra os brasileiros, tolerava a turma pelo nosso bom desempenho. Qualquer coisa que o desagradasse, ameaçava chamar o serviço de imigração, já que todos nós éramos ilegais no país. Já não trabalhava mais, bebia muito. Sua mulher, Miss Evans, era quem administrava os negócios. O casal já era bastante velho, ele 78, ela 75 anos.

Brigavam a todo momento. Existia uma outra velhota, Miss Sony, que ajudava na administração do restaurante. O velho aos poucos se afeiçoou por um colega nosso, também de Belo Horizonte, o Turíbio. Tinha 21 anos, era baixinho e passava a imagem de um garoto de 15. Mr. Stocley pensou em adotá-lo, o que para nós foi motivo de zombaria constante. Dava gorjetas a ele, comida diferenciada, entre outras benesses. Certa noite o velho lhe disse:

- Hay Turíbio, do you tired work?Tradução: Ei turíbio, você está cansado de trabalhar? Turíbio que somente

arranhava algumas palavras em inglês, veio todo eufórico nos comunicar:- Vocês ouviram? O velho disse que eu sou tarado por trabalho...De outra vez, acertou sem querer. Perguntaram a ele qual o nome da cidade em

que seu pai nascera. Era natural de Nova Lima. Ele rapidamente respondeu:- New Lima. Estava correto, lima em inglês é escrito igual em português, somente

o som é diferente, pronunciam (laime). Acabou por não aceitar a tutela do velho, veio

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embora para Belo Horizonte. Dois anos depois que eu já havia voltado, encontrei-me com ele. Tornou-se alcoólatra.

Depois de um ano trabalhando nesse emprego, resolvi sair, queria conhecer outros lugares. Voltei para New York. Permanci por lá uma semana e arranjei ocupação em uma pequena cidade do mesmo estado, Hellen Ville. Trabalhei primeiro num abatedouro de frangos, depois em outro restaurante. Fui conhecer finalmente a cidade em que minha mãe nascera, New Haven. A emoção foi grande. Uma cidade de porte médio, cheia de imigrantes italianos. Muitas casas de madeira, todas pintadas de branco. Filmei alguns pontos interessantes, o comércio, o centro da cidade. Trouxe para a velha assistir. Sua alegria compensou a trabalheira.

Acabei por voltar para Ridgfield, para outro restaurante, o The Inn. Seu dono, um alemão simpático de 35 anos, tratava-me com distinção. Existiam muitos outros alemães ali. Um russo, um cubano, eu, mais dois brasileiros de Petrópolis.

Certa vez, eu estava conversando com o russo sobre algumas amenidades do Brasil, quando Kurt, um garçon alemão, entrou na conversa e falou:

- Brasil, Brasil, se a Alemanha quiser toma aquilo lá, em 24 quatro horas.Perguntei: - Com qual exército, o russo ou o americano?

Ainda existia a guerra fria, com a Alemanha ocupada pêlos dois exércitos. O russo riu satisfeito. O alemão ficou vermelho de raiva, mas nada respondeu.

O único inconveniente do lugar era o Chefe da cozinha. Era um neurótico, falava sozinho, homem perigoso. Eu vivia aprendendo novas palavras em inglês, queria empregá-las tão logo as dominava. O chefe não gostava de mim, vivia implicando com o meu trabalho. Mandou que eu preparasse alguns patos picados que iriam para o forno. Cismou que não estavam bem arranjados nos tabuleiros e começou a reclamar. Na véspera, eu havia aprendido uma nova frase. Infelizmente, fui treiná-la justamente com ele.

- Take Watcher! - o que significa fique em guarda, ou, tome cuidado. O homem enlouqueceu, xingou mil palavrões, começou a tremer, falava em

alemão. Não se conteve, foi em seu quarto e de lá voltou com um revolver na cintura. Os empregados correram logo.

Mister Prieg, o dono do restaurante, nesse momento entrou na cozinha, contornou a situação. Para minha surpresa, deu uma bronca no alemão e mandou que eu tirasse folga o resto do dia. Senti que estava na hora de mudar de ares.

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Coincidentemente, estavam precisando novamente de mais um empregado no antigo emprego, o Stonehenge, onde trabalhavam Cleverson e os outros antigos colegas. Foi uma festa meu retorno. Em torno de muitas latas de cerveja, contei-lhes minhas andanças. Fiquei ainda seis meses naquele local, mas sentia que estava na hora de voltar para casa.

Há exatamente um ano atrás, naquela mesma cozinha eu lera no New York Times, a reportagem bomba: os Beatles se dissolveram. Trazia embaixo da reportagem, um desenho com as cabeças do grupo, e em volta delas uma corrente com os elos rompidos. Fora um dia triste para nós que alimentamos tantos sonhos e esperanças de um mundo mais justo. Mas o que se via eram os jovens drogados, a tristeza da guerra no Vietnã, com tantos soldados voltando para casa totalmente desajustados e entregues à própria sorte. O famoso festival de Woodstock, era um exemplo disso. O sexo e as drogas correndo soltas, o desengano por toda a parte.

Voltei para casa, meu sonho de América também chegara ao fim...

...

Capítulo XII

A Idade Madura

Depois do retorno dos Estados Unidos, senti uma enorme dificuldade em me readaptar em Belo Horizonte. Sentia-me sozinho, descompassado das demais pessoas. Pude finalmente entender o que é o subdesenvolvimento. A irresponsabilidade social, quer a partir do governo, quer a partir do próprio povo. A desorganização, a desonestidade nos mínimos atos, a famosa Lei de Gerson em constante ação. A sujeira das ruas, a falta de educação e urbanidade, tudo isso aliado à quase nenhuma perspectiva de se fazer dinheiro. Alguém sempre procurando encostar em alguém como um carrapato, supostos amigos ludibriando as relações, os filhos que poderiam estar produzindo e crescendo, encostando nos pais e daí por diante.

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Na América se dizia: vou fazer dinheiro, ou seja, no ato de trabalhar, produzir a sua renda. No Brasil dizíamos e dizemos vou ganhar dinheiro, a expressão brasileira do encostamento, do ter fácil, o querer ganhar...

Talvez tenhamos herdado da escravidão o querer ganhar. Os pobres coitados queriam ganhar alguma coisa, já que não tinham o mínimo direito adquirido pelo seu trabalho.

Sofri ao voltar, mas a vida continuava. Trabalhando aqui e ali, em escritórios, fui me virando. Foi quando reencontrei um velho amigo Tarcísio Marreta. Seu nome verdadeiro é Tarcísio Regoni.

O amigo estava freqüentando a União Espírita Mineira. Convidou-me a conhecer a ala de jovens que desenvolvia extenso trabalho social junto aos mais necessitados. Acabei me entusiasmando com a turma e passei a fazer parte do grupo. Além do trabalho social, estudávamos a doutrina Kardecista. Achei-a muito propícia naqueles tempos de maior solidão. Vinha de encontro a muito de meus anseios. Fiquei por lá oito bons anos. Foi quando meu amigo Marreta, começou a se desinteressar por tudo aquilo. Um dia me disse:

- Encontrei algo maior, um pensador indiano, Jidu Krisnamurt. Ele nega tudo isso que buscamos até agora. Vou te emprestar uns livros.

O pensador dizia que todo o produto das religiões de massa, seria somente um condicionamento. A vida após a morte, segundo descreve o espiritismo, não passaria de uma cópia de nossa sociedade terrena, um tanto mais aperfeiçoada, mas ainda cópia. Somente pura projeção. Todo aquele processo de comunicação espiritual, não tinha uma base sólida que pudesse comprová-lo. O que precisamos, segundo ele, é um contínuo repensar de nossas relações.

Entusiasmei-me com seus conceitos, mas ainda continuava preso ao Kardecismo. Vivi essa dualidade por muitos anos. Depois me afastei completamente das religiões. Assim, passaram os anos de minha juventude, numa velocidade superior ao que imaginei que passaria. Hoje, tenho três filhos, três partes boas que estão lá fora da rua de mim mesmo. Essas partes, por suas excelências, saltaram, não acharam como coabitarem em minha essência. Já vou entrando na casa dos sessenta anos e não vivo mais com eles. Sinto essa falta, mas foi mais um preço a pagar de um longo e penoso aprendizado.

Conheci nos anos 90 o maestro Luís Aguiar. Convidou-me a fazer parte do coral Peixe Vivo, especializado em trechos de óperas. Um mundo novo e rico descortinou-se em minha vida. O maestro, um profundo conhecedor do gênero, muito me ensinou.

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Depois de alguns anos deixei o grupo, indo cantar em outros, tais como: Coral Lumen Criste, Coral voz e sintonia e Coral Gremig. Após alguns anos nessa atividade, por incompatibilidade de tempo afastei-me por completo. Mas o que aprendi ficou em mim como parte ativa de minha percepção e sensibilidade. Se as pessoas pudessem e quisessem conhecer o mundo da música erudita, certamente se surpreenderiam com tamanha beleza e riqueza.

Busco nas reminiscências, extrair um pouco da antiga energia, repassando as matérias que ficaram mal entendidas. Descobri na terceira idade, belezas que não via na juventude. A percepção aumentou. A experiência nos faz cortar caminho onde antes certamente daríamos extensa volta para chegar a mínimas conclusões.

Vejo pessoas queixando-se da velhice, mas esses não a compreenderam, não se voltaram para ela.

Hoje tenho menor acuidade visual. Quando quero enxergar bem, uso os óculos. Quando me canso de ver muitos rostos, tiro-os. Sobrevem-me um oasis.A audição vem se reduzindo aos poucos. Que bom! Quanto tolice deixo de escutar. Ainda se quero, encontro recursos nos modernos e diminutos aparelhos auditivos.

Dentro de um ônibus dou uma banana para a tagarelice fútil, com meu inseparável MP3. É interessante o contraste. Ali, entrando em meus ouvidos um Bach, um Mozart, o romantismo de Chopin. De fora, uma velhota desdentada olhando-me alienada.

Outra coisa que descobri na idade madura, foi a mudança do meu olhar para com as crianças. Fico sensibilizado em perceber essa pequenas vidas. Tão frágeis, tão de cheias de esperanças e crédulas. E são tantas nesse país desgovernado, sem perspectivas, já esmagadas nesse sistema cruel , de tanta corrupção...

Ser velho, dentro de um outro paradigma, é ser novo. Um novo conceito de ver, de sentir, de perdoar.

É pena que tantos façam plástica para parecerem jovens por fora. Isso mostra o quanto estão velhos seus conceitos. Não se deram à fonte da juventude da terceira idade. Morrer? Morremos todos os dias em nossas camas, em nossas tolices, em nossas frustrações que advêm de nossa constante imaturidade.

Dia desses, fui fazer um exame de endoscopia. A enfermeira aplicou-me um sedativo e mandou que eu ficasse virado de lado na cama. Depois disse-me:

- Fique de barriga para cima.Quando virei-me já havia terminado o exame.

Pensei: Não é que morri e não vi?..

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Consegui finalmente, em idade avançada, uma formação acadêmica, tendo concluído, um curso em educação artística pela UEMG na Escola de Design. Entretanto, não leciono. Trabalho em uma repartição, no serviço público municipal de Belo Horizonte. Independente do meu trabalho, estudo violão clássico, e também leciono para iniciantes.

Conheci muitas pessoas interessantes que me ensinaram muito, aqui e ali, onde fui me ilustrando, juntamente com muitas boas leituras. Tive a feliz oportunidade em meu trabalho na prefeitura de Belo Horizonte, de monitorar oficinas de arte e canto coral para portadores de sofrimento mental durante doze anos. Depois, no cansaço natural que esse empreendimento trouxe, consegui transferência para o serviço burocrático, onde aguardo uma merecida aposentadoria.

Continuo, apesar das muitas baixas naturais que existem em nossas vidas, de nossos erros cometidos, achar que está valendo a pena viver até agora, buscando ainda empreender novos sonhos, e expectativas. Quero ainda rir de piadas bobas, me sensibilizar com um bom livro. Assistir o campeonato de futebol e xingar o juiz, quando apita pênalti contra o meu time, o Cruzeiro Esporte Clube.

Chegando o momento de terminar, vou dizer o que eu gostaria que não existisse no mundo: novela, político, pastor desonesto, cartola de futebol, baile funk, aluno batendo em professora, pais imaturos criando filhos pitbull, petróleo, pernilongo, banco e crianças vivendo nas ruas.

O que eu gostaria que houvesse mais no mundo? Mais mulheres bonitas (primeiro por dentro); mais água potável; maior distribuição de alimentos; a volta do bolero; carnaval de rua sem violência - como havia em minha infância; o Cruzeiro mais vezes campeão brasileiro; mais verde em cada metro quadrado; mais empregos; mais pessoas criando arte de verdade. E, finalmente, gostaria de deixar meus sinceros respeitos a quem teve paciência de ler estas memórias...

FIM

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