memÓria e lugar: das representaÇÕes À construÇÃo …

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MEMÓRIA E LUGAR: DAS REPRESENTAÇÕES À CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES CONTEMPORÂNEAS NO AGRESTE PERNAMBUCANO Alexandre Gomes Teixeira Vieira Estudante do Mestrado profissional em Culturas Africanas da Diáspora e dos povos indígenas PROCADI UPE, Campus Garanhuns. E-mail: [email protected] Introdução As dinâmicas identitárias no tempo presente são percebidas de forma ampla e complexa (HALL, 2006), devendo estas terem uma maior atenção pelas ciências sociais. Uma interface possível e pertinente para resolver essa questão surge da inter-relação entre os campos da Antropologia e da História Ambiental, como foi proposto por Vieira et al. (2017). Tal perspectiva pretende agregar as minucias e detalhes que compõe as representações sociais de uma comunidade humana, sua pertença e o conjunto de signos que implicam em sua dinâmica identitária. Para tanto, este trabalho se propõe a analisar os processos identitários e as memórias provenientes de um lugar”, categoria que aqui pegamos emprestada da geografia na perspectiva de Twan (1974), ao colocar o lugar como ponto de partida à produção cultural. O lugar em questão é o vale do riacho São José, zona rural de Caetés- PE. A área de estudo possui rico patrimônio arqueológico arte rupestre ao mesmo tempo que está impregnada de memórias próprias daquela que chamamos de História do Nordeste Brasileiro. É aparente a ligação entre as memórias e os lugares, onde estes ganham diferentes significados na construção do imaginário local, sendo como provas para materialidade da identidade e das histórias construídas pelas populações contemporâneas nessa localidade.

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MEMÓRIA E LUGAR: DAS REPRESENTAÇÕES À CONSTRUÇÃO DAS

IDENTIDADES CONTEMPORÂNEAS NO AGRESTE PERNAMBUCANO

Alexandre Gomes Teixeira Vieira

Estudante do Mestrado profissional em Culturas Africanas da Diáspora e dos povos

indígenas – PROCADI – UPE, Campus Garanhuns.

E-mail: [email protected]

Introdução

As dinâmicas identitárias no tempo presente são percebidas de forma ampla e

complexa (HALL, 2006), devendo estas terem uma maior atenção pelas ciências sociais.

Uma interface possível e pertinente para resolver essa questão surge da inter-relação

entre os campos da Antropologia e da História Ambiental, como foi proposto por Vieira

et al. (2017). Tal perspectiva pretende agregar as minucias e detalhes que compõe as

representações sociais de uma comunidade humana, sua pertença e o conjunto de signos

que implicam em sua dinâmica identitária.

Para tanto, este trabalho se propõe a analisar os processos identitários e as

memórias provenientes de um “lugar”, categoria que aqui pegamos emprestada da

geografia na perspectiva de Twan (1974), ao colocar o lugar como ponto de partida à

produção cultural. O lugar em questão é o vale do riacho São José, zona rural de Caetés-

PE.

A área de estudo possui rico patrimônio arqueológico – arte rupestre – ao mesmo

tempo que está impregnada de memórias próprias daquela que chamamos de História do

Nordeste Brasileiro. É aparente a ligação entre as memórias e os lugares, onde estes

ganham diferentes significados na construção do imaginário local, sendo como provas

para materialidade da identidade e das histórias construídas pelas populações

contemporâneas nessa localidade.

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O objetivo geral deste estudo, é propor a compreensão do imaginário local

enquanto parte do processo identitário. Tendo como objetivos específicos: apresentar as

narrativas locais e a partir delas sistematizar a ampla gama de signos que integram,

grosso modo, a cultura local. Pensar a (res)significação do patrimônio material indígena

existente na área, também como fio condutor do processo identitário e da construção

simbólica das comunidades locais contemporâneas.

Área de estudo

O vale do riacho São José (imagem 1), é uma importante área natural, localizada

na porção oeste do município de Caetés, na transição Agreste/Sertão do estado de

Pernambuco. Possui uma vasta área de vegetação de caatinga bem preservada e rico

acervo arqueológico pré-colonial.

Imagem 1 – vista de uma das paisagens do vale do riacho São José.

Fonte: VIEIRA, A.G.T.

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Aspectos Teóricos e Metodologia

Para realização desta pesquisa, foram realizadas incursões à campo, para registro

dos lugares de memórias, sendo estes: sítios arqueológicos pré e pós-coloniais, antigas

estradas, edificações e paisagens naturais entre outros lugares onde há interação e

apropriação humana. Além do registro dos lugares, foram realizadas entrevistas com a

população local, foram entrevistadas 20 pessoas no período de setembro de 2014 a abril

de 2018. Na metodologia da História Oral, foi utilizado o método de entrevista nas

formas: semiestruturada; aberta; focalizada e projetiva, conforme Minayo (2016, p.59).

Outro importante aspecto dessa pesquisa, é a da História Oral, conforme Souza

(2016) e Pesavento (2008), mesclando história oral e etnografia (observação

participante), como métodos articuladores e unificados voltados à Folckomunicação

como propôs Melo (2008), para entrevistas com comunidades rurais e mapeamento dos

signos de determinada comunidade. Ambas as perspectivas acima citadas, utilizam

fontes orais para obtenção do registro histórico.

Duas categorias de grande importância utilizadas nesse estudo são: “Lugar” e

“Paisagem”, seja enquanto espaço lugar (TWAN, 1983; 2012), proveniente de sentidos

e significados para aqueles que o ocupam hoje, seja enquanto lugar de memórias (LE

GOFF e NORA,1988), daqueles que ali estiveram em outros tempos da história, ou

ainda, enquanto local base para a produção cultural como defende a corrente da história

ambiental (VIEIRA, 2012; VIEIRA, 2015; VIEIRA, et al., 2017).

Resultados e discussão

Conforme a metodologia empregada, cinco tipos de narrativas com temas bem

delimitados surgiram e se sobressaíram ao longo da pesquisa. É preciso pontuar, que os

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temas aqui mapeados, aparecem como marcos fundamentais, para compreensão dos

signos, das representações e da dinâmica identitária no lugar estudado.

As narrativas foram: memórias sobre os “cabocos brabos”, histórias dos “reinos

encantados”, causos de “matadores de onça”, aparecimentos de “guarás” e relatos de

“malassombros”. Um elemento a parte, em relação às narrativas, mas fundamental na

convergência das ideias, foi a interpretação dada pelos moradores locais, à presença dos

sítios de arte rupestre na região. Todos estes elementos somados, dão uma ideia, da

diversidade cultural da área estudada, ao passo que caracteriza um verdadeiro

“Caldeirão Cultural” (CARVALHO, 1998).

Para melhor compreender essa ideia de Caldeirão Cultural, Silva (2015, p.96)

coloca o seguinte:

[...] as práticas culturais híbridas também podem ser identificadas na música,

na religião, na linguagem, no esporte, nas festividades a partir das relações

entre as instituições e as pessoas. Outros exemplos dados pelo autor são o

carnaval brasileiro, as igrejas e formações religiosas que se apropriam de

diversas formas de culto, ícones e filosofias. Já a variedade de objetos que diz

respeito aos povos híbridos está mais ligada à figura do híbrido como um

mediador cultural e as formas de representação social dos que “nascem

híbridos”, isto é, aqueles que já nascem com uma consciência dúplice, os

frutos de dois ou mais povos e que, por isso, possuem uma relação

extremamente peculiar com sua origem e identidade. A variedade de

terminologias usadas para a descrição dos processos de interação e

consequências da hibridização cultural são, [...] empréstimo, hibridismo,

caldeirão cultural, ensopadinho cultural, tradução cultural e crioulização.

Sobre as memórias acerca dos chamados “Cabocos brabos”, conforme as

narrativas dos pesquisandos, estes eram “negos de cabelo bom”. Como colocado na

bibliografia por Silva (2014), “caboclo” é um termo para designar indígenas, isso em

uma região onde oficialmente não existam índios ou mesmo o dizer índio, foi um termo

apropriado também, na negação de determinadas etnias por parte de posseiros

interessados nas terras desses povos.

É preciso, no entanto, ampliar as possibilidades que traz o termo “caboco”, tendo

em vista que tal palavras, apresenta grande potencial, quando bem explorado no estudo

da questão indígena sobretudo no interior de Pernambuco. É quase que indiscutível,

afirmar a presença indígena na área do vale do São José, não somente pela presença dos

sítios de arte rupestre, que demonstram intenso povoamento pré-colonial, mas

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principalmente pelas exaustivas narrativas, das populações locais ao referenciar os

cabocos e cabocas, que viveram nessa área.

Entre os mais emblemáticos relatos, está o de dona Nazaré, sobre a família que

vivia nas imediações dos sítios Tapera e Lagoa Rasa, segundo ela, “tinha uma família,

homem, mulher e umas três crianças, mais ou menos, que morava debaixo de um

partido de Jiquiri, eu via eles, quando ia passar, pra lavar roupa, e todo dia eles tavam lá.

Botavam a roça e viviam, lá, debaixo do pé de Jiquiri”.

O relato de seu esposo o sr. Pazinho ao afirmar que sua avó ou bizavó, teria sido

pega “acuada por cachorro em cima de uma jurema, a velha era caboca, por isso que a

minha raça tem essa feição morena”. Também as narrativas do Zé preto do Pé da Serra,

que fala: “minha vó era caboca e foi pega acuada aqui perto”. Mas a questão dos

cabocos torna-se ainda mais interessante quando vemos a fala de Dona Luzinete, ao ser

indagada sobre a existência dos cabocos brabos na região, como podemos ver em um

fragmento de sua entrevista a seguir:

Entrevistador: A senhora...Desse pessoal que chama “caboco brabo”, que

chamava “caboclo” a senhora tem alguma coisa pra contar sobre isso, nessa

região?

Colaboradora: Não... A minha vó... A minha vó que era mãe de pai, ela

disse que a mãe dela, a mãe dela era... num dizia que era pegado de cachorro

nerá!? foi pegado de cachorro a minha vó que era mãe de pai. Era... ela era

bem morena mas meu avô num era não. Mas disse a minha vó, oie era aquele

pessoal que foi... que dizia que era... – a mente da gente vai esquecendo – ela

disse que a vó dela foi pegada, e dizia: de dente de cachorro! Naquele tempo,

que graças a Deus tivero a sorte de ser...diz que quando eles souberam que

tavam liberto nera... uma nega. Pai cansava de contar. A família inteira ainda

contava... Uma escrava! Escrava! As escrava... aí dissero “foi libertado!” no

dia 13 de maio de nem sei qual foi o ano, quando Nossa Senhora aparecida

apareceu, tá com uns trezentos anos. Aí foi libertados. Ai disse que uma

negra a coitada: -“Não diga isso não!”. – “Então vocês estão libertos!” E eles

tudo amarrado, trabalhando. E ela disse hiiirrr (Som de respiração forçada) e

fez assim, e teve um infarte e morreu de alegria. De alegria né!? Foi a minha

bisavó ou tataravó o pessoal morria tudo veio nesse tempo! A minha vó

morreu aqui com 95 anos!

Imagem 2 – entrevista com a senhora Luzinete de Julio Basilio em sua residência no

sítio Malhada do Cosme, adjacências do vale do São José, Paranatama – PE

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Fonte: TEIXEIRA, G.S.S.

Luzinete de Júlio Basílio, representa uma memória de sua família que

desenvolvera importante papel de dominação na região. Trata-se de eximia fonte de

colaboração para a compreensão da memória coletiva histórica popular da região

observação para diferenciação oferecida por Halbwachs (2006) a memória coletiva

(histórica popular), e a memória histórica oficial. Em sua avançada idade de 83 anos,

aparenta uma boa memória factual congelada, “Memória congelada” e “memória livre”

são termos utilizados por Prins (1992), dos principais fatos ocorridos, presenciados ou

por via da tradição oral, com algumas pequenas nuances de memória livre.

Fora percebido, que sua identidade acabara sendo forjada como “a solteira

devota religiosa”, que apesar da perceptível beleza de juventude, envelhecerá com

alguns relances de culpabilidade internas por não ter chegado a se casar. Logo a questão

da beleza fora uma forma subjetiva de mostrar que a estética não seria o motivo para

não arrumar um marido, mas outras questões de ordem sociocultural.

Essas narrativas reforçam a ideia de que a área de estudo é um caldeirão cultural,

mas que as representações acerca da existência dos cabocos, ora representados como

inegavelmente indígenas, ora mesclados com a ideia dos negros alforriados ou fugidos,

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é parte da memória coletiva da região. Através das narrativas é possível constatar a

perseguição e a violação exercida contra as mulheres “cabocas”, pegas a força e levadas

para constituir família com os moradores brancos e patriarcas das famílias tradicionais

dessa região.

Para concluir o pensamento, ainda que breve sobre a questão dos cabocos, Silva

(2016), menciona em seu texto sobre história ambiental e indígena de Pernambuco, que

os pés de serra e as áreas de brejo dos topos de serras e vales eram habitados pelos

povos originários. O vale do São José, em seus mais de 12.500 hectares, apresenta todas

as características ambientais e de ocupação histórica favoráveis para percebermos a

presença indígena ali, mas apagada dessa região pela pressão e interesses dos não

índios.

No entanto, os vários elementos culturais presentes, os conhecimentos, os

dialetos e as memórias ainda que de alguma forma negando e mesclando as narrativas

acerca dos cabocos a outras histórias, tendem a revelar muito mais que somente apagar

a memória sobre os povos originários nessa região. Nas festividades de outrora,

narradas por sr. Paizinho, sr. Luiz de Zumba e João de Zumba, os vários elementos

étnicos afloram em suas narrativas, a exemplo dos sambas de coco das festas dos Fié, e

das histórias de reinos encantados, quase sempre precedidas por bebedeiras e farras.

Sobre as narrativas ligadas aos ditos “Reinos Encantados” e “Tesouros”. Estes

surgem do imaginário local como uma justificativa para os sítios de arte rupestre, que

para a população não possuíam uma explicação de origem, onde seriam locais onde

foram escondidos tesouros por trás das inscrições algumas vezes degradas na tentativa

de se chagar a tais riquezas. E ainda de se abrir os “portais” para chegar reinos

encantados de fartura e beleza.

Tais narrativas construídas quase que em oposição as difíceis condições de vida

sob o clima semiárido e mesmo como resquício de signos culturais externos ao conjunto

simbólico cristão. Sobre tais signos externos ao cristianismo é possível perceber relação

com signos de cultura indígena e afro-brasileira, com fortes referências à jurema e

outros cultos.

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Sabemos que de forma tradicional e historicamente constituída, na área de

estudo, o uso de várias plantas nativas como o chá da Jurema-Branca (Chloroleucon

dumosum), eram usados com fins alucinógenos. Também se sabe, que as várias receitas

de temperadas e cachaças artesanais continham tais plantas e eram consumidas por

caçadores e pessoas em geral, em reuniões em lugares como os sítios de arte rupestre e

outros locais isolados. Essas reuniões ao que se sabe, eram bastante frequentadas tanto

por homens quanto por mulheres.

As pessoas que frequentavam esses lugares eram grandes conhecedores das

funções medicinais das plantas nativas e de seus preparos, usos e fins, dentre os quais os

principais usos relacionados ao consumo no contexto em questão, eram:

anticoncepcionais, abortivos, afrodisíacos e alucinógenos. Muitos dos moradores da

região afirmam essas informações em suas narrativas, apesar de terem certa resistência

ao se identificar no ato das entrevistas.

Sobre os causos dos matadores de Onças, estes estão quase sempre relacionadas

aos patriarcas das famílias tradicionais da região e a aparecimentos do temido animal,

sempre referenciados “a mais que 30 anos”. A ideia de afirmação da força dos chefes de

família “matadores de onça” é ainda hoje usada como gíria pela população local, em

alusão a alguém muito corajoso. No entanto, essas histórias parecem ter sido

apropriadas, de seus verdadeiros autores, que eram em geral pessoas mais pobres que

aventuravam-se nas noites dentro da caatinga para caçar e eventualmente encontravam-

se com as temidas onças.

Esse fato foi constatado na fala de Zé Preto, ao desmistificar uma das mais

clássicas histórias de onça da região. De fato, todas essas histórias se repetem em

muitos detalhes e se complementam, mas também se contradizem, variando muito de

quem as narra. O fato é que independente de sua veracidade, é um estigma simbólico,

presente até os dias de hoje.

Por fim as histórias de “Guarás” e “Malasombros”. Sobre essas duas últimas

formas de narrativas, vale salientar que podem vir a ser releituras de lendas do velho

mundo, onde toda carga simbólico-religiosa emerge. Da mesma forma que mesclam

elementos do velho mundo a mitos autóctones próprios das comunidades originárias e

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mesmo construídos a partir do contexto cultural único do vale do São José, sem

necessariamente derivar de mitos e narrativas anteriores.

Imagem 3 - pegada do guará (Procyon cancrivorus) geralmente associada a

transformação de homem em animal devido a semelhança da pegada com uma mão

humana

Fonte: VIEIRA, A.G.T.

Vários são os locais mais relatados quanto aos causos de malassombros, mas um dos

mais emblemáticos é a “Casa Amarela”, localizada no sítio Cacimba Cercada, lado sul do

vale do são José. Conforme contam moradores próximos da casa amarela, após a morte de

seus proprietários essa casa passou a ser mal-assombrada, o que afugentou potenciais

moradores para o local, estando fortemente presente no imaginário da população local como

já foi descrito por Vieira et al. (2017).

Dentre os principais relatos, estão os de barulhos no interior da casa, e o fato de uma

voz de uma mulher oferecendo velas ser ouvida nas proximidades do lugar nos dias de sexta

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feira. Atualmente a casa está em ruinas, restando apenas os alicerces e o temor ainda

presente nas narrativas da população.

Em geral, todas as casas “velhas”, guildas de avelós (Euphorbia tirucalli), arvores,

como o imbuzeiro (Spondias tuberosa), o pé-de-caixão (Ruprechtia laxiflora) e o pau-

ferro (Libidibia leyostachia), estão associadas às histórias de assombração. Uma outra casa

bastante referenciada, está localizada no fundo do vale do São José na localidade do

Rebeiro. A “Casa da Cascavel”, como é popularmente conhecida, é associada a diversos

relatos de malassombros, geralmente contados por caçadores que usam o lugar como abrigo

durante as noites em que descem para caçar nos fundos do vale.

Há informações de que um dos primeiros moradores dessa casa coexistia com uma

cascavel debaixo do fogão de lenha, o que veio a sugerir o nome atribuído a casa. Outro

lugar análogo é a “Casa do Rebeiro” (imagem 4) e o Barreiro da Olaria, ou como é

frequentemente chamado “Barreiro do trepa”. Esse lugar compunha um complexo

habitacional do começo do século XX, estando cerca de 15m do curso do riacho São José e

aproximadamente 200m da Casa da cascavel. Além das casas, havia um curral de “faxina”

técnica que utiliza varas de alecrim (Lippia sp.) e carcará (Senegalia polyphylla) na

construção da cerca para conter caprinos e ovinos.

Também, estava localizada próximo a um barreiro usado como olaria, na produção

de tijolos e telhas. Esse complexo, está circundado por: dois sítios arqueológicos; um lugar

chamado “poço das piabas”; e o encontro dos rios “Firme”, “70” e “São José”, e nas

proximidades do “Chorão” lugar com presença de várias arvores de mesmo nome.

Caracterizando uma típica habitação dessa área dos séculos XIX e início do XX, conforme

sabe-se através das narrativas.

Imagem 4 – Complexo habitacional da casa do Rebeiro visto da parte alta do vale do

São José

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Fonte: MORAIS, W.P.

Esse local ainda é uma referência, pois a casa está próxima a uma trilha que corta o

Vale no sentido norte-sul. O Barreiro da Olaria é utilizado para reabastecer o suprimento de

água de quem passa pela trilha em meio a vegetação de caatinga. A casa e o barreiro são

amplamente usados como local de lazer, onde pessoas vão acampar frequentemente,

também como já mencionado, é usada como abrigo por caçadores que costumam

“faxiar” (caçar a noite).

É preciso pontuar, que assim como no passado as populações pré-coloniais

utilizaram esses espaços, as populações “contemporâneas” que chegaram a essa região

povoaram primeiro o fundo do Vale e não os planaltos. Tanto, que conforme

depoimentos de João Silvino e Chico Broca: “o Agreste era terra de cabocos e de

pobres, as maiores moradias, os ranchos e fazendas, estavam mais para o sertão, nos pés

das serras e embrejados”.

Essa leitura do espaço nos leva a perceber que as casas do fundo do Vale estão

construídas próximo ao curso dos rios, numa distância similar ou igual à localização dos

sítios de arte rupestre. Nessa mesma localização, conforme as narrativas de dona Nazaré

e sr. Paizinho: “existia uma família de cabocos que vivia numa ‘lóca’, entre o Chorão e

o Poço das Piabas”, tratando aqui do caso especifico dos cabocos dessa localidade.

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Assim como as comunidades autóctones dessa região, as populações

contemporâneas que chegaram no vale do São José a apenas algumas décadas,

utilizaram os mesmos espaços e recursos que seus antecessores. Mesmo sem que

houvesse um contato entre ambas as populações. Deram significado e uso para os

recursos ali existentes constituíram seu habitus e uma pertença, e todas as possíveis

representações sociais provenientes dessa experiência.

O meio e os recursos nele presente foram determinantes para sua ocupação e

significação, como a disposição de abrigos naturais, fontes de água, caça, pesca e coleta

de frutos e sementes. Bem como, os recursos para edificação de casas de taipa e

alvenaria, cercados e a produção agrícola, assim como o conhecimento dos ciclos

fenológicos e disposição de chuvas.

Para concluir a reflexão, ao observar a Casa do Fundo do vale, percebemos que

ela está voltada para oeste, direção oposta à das chuvas de inverno e dos ventos diários,

permitindo exemplificar aqui, a ideia do lugar como ponto de partida para a produção

cultural. Essa preocupação e compreensão do meio pelos povos que ali estiveram,

parece remontar ao período pré-colonial, sobretudo quando observamos as inscrições do

sítio “Talhado da Letra” (imagem 5), localizado nas proximidades da área citada.

Imagem 5 – representação do riacho São José em uma inscrição rupestre ao lado a

paisagem representada na inscrição

Fonte: VIEIRA, A.G.T.

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Segundo os moradores mais antigos da região, os riachos mantinham água em

seu curso por um período de 8 a 10 meses isso para a transição dos séculos XIX e XX, o

que resolvia o abastecimento de água das populações de seu entorno. Logo, as

populações que viveram na região mantiveram vivas essas memórias em seus discursos

até hoje, bem como materializado nas edificações locais mesmo as feitas em períodos

muito afastados de tempo.

Apesar da riqueza do patrimônio arqueológico indígena pré-colonial existente na

área de estudo, não iremos nos deter aqui ao seu potencial cientifico do ponto de vista

arqueológico. O ponto de discussão nesta ocasião são os significados atribuídos a estes

locais enquanto, parte do conjunto de signos e representações culturais da população do

vale do São José.

Outro importante elemento, presente nas narrativas das populações locais,

estavam relacionadas aos sítios de arte rupestre da região estudada. Em relação aos

sítios arqueológicos entre os quais podemos citar os sítios: “Talhado da Letra”, “Pedra

da Letra”, “Pedra do Muinho”, “Pedra do Urubu”, “Furna do Rebeiro” e “Pedra

Vermelha”. Segundo depoimentos de moradores locais, “...os mais velhos acreditavam

que lá existia uma chave, e quem descobrisse a chave encontraria muitas riquezas e um

“reino encantado”.

Referencias as narrativas e ao folclore dos reinos encantados em relação a sítios

de arte rupestre no semiárido nordestino já são referenciadas desde o trabalho de Costa

(1980), sobre arqueologia brasileira, apesar deste não ser o interesse do pesquisador,

ainda assim ele cita:

Perto de Piracuruca, no Piauí, num ermo, afloram, por entre a rasteira

vegetação do carrascal, inúmeros rochedos de bizarras formas esculturadas

pelas erosões milenáres. Com certa dose de imaginação, o sertanejo nelas vê

ruas alinhadas, arcos de triunfo, catedrais, estátuas e outras coisas urbanas.

[...] Contam que ali jazem sete belíssimas cidades encantadas por artes

mágicas em tempo remotíssimo. O mistério daquelas rochas curiosas naquela

região deserta e semi-árida, as inscrições rupestres betadas de tinta vermelha,

que semeiam as lajes, as formas arquiteturais que se perfilam no horizonte,

quando a gente se aproxima do lugar, tudo isso contribuía para a formação da

lenda (COSTA, 1980)

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O relato vindo do Piauí vem de encontro aos relatos existentes na área de estudo.

Atribuições divinas e mágicas sobre as inscrições rupestres são comuns na região do

vale do São José, assim como as interpretações a paisagens naturais existentes na

região. Outra relação estabelecida entre os sítios e a população é a de caráter religioso,

no que diz respeito ao catolicismo popular, a exemplo disso, um morador relatou: “...eu

acreditava que aquilo tinha sido deixado por Cristo quando esteve aqui na terra”.

Como o principal referencial religiosos para as comunidades locais o

cristianismo, ainda que impregnado de elementos “rurais” de práticas ora referenciadas

em cultos indígenas, ora em cultos afro-brasileiros, isso para não mencionar elementos

judaizantes e outros signos religiosos externos ao cristianismo, são sem dúvida o ponto

de partida para interpretar os sítios de arte rupestre aos olhos das populações locais.

Os moradores atribuem um sentido religiosos a quase todos os fenômenos que

não conseguem explicar, desde a disposição climática, determinados comportamentos

animais, até intervenções humanas de tempos passados. Autores como Aguiar (1996),

pontua que não podemos desvincular as inscrições rupestres do fator religiosos e de sua

relação com o lugar onde está.

Considerações finais

É evidente que as memórias resgatadas neste estudo foram negligenciadas pela

historiografia vigente, mas são de fundamental importância para compreensão da

história e dos sistemas sociais da área estudada. Tais memórias não são mera alegoria

ou folclore, elas ditam as normas, a tradição e justificam a identidade das populações do

vale do São José. Bem como, ilustram a relação de intimidade e pertencimento entre as

pessoas e o lugar onde vivem. Logo, é uma necessidade da historiografia

contemporânea repensar as fontes e problematizar a perspectiva de “memória, história e

lugar”, como importante polo de discussão e de possibilidade para reescrita da história.

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