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Memória e História do PRONERA Contribuições do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária para a Educação do Campo no Brasil Clarice Aparecida dos Santos Mônica Castagna Molina Sonia Meire dos Santos Azevedo de Jesus (organizadoras) Ministério do Desenvolvimento Agrário Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra

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Memória e História do PRONERAContribuições do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária

para a Educação do Campo no Brasil

Clarice Aparecida dos SantosMônica Castagna Molina

Sonia Meire dos Santos Azevedo de Jesus(organizadoras)

Ministério do Desenvolvimento AgrárioInstituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra

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Memória e história do Pronera: contribuições para a educação do

campo no Brasil. / Clarice Aparecida dos Santos, Monica

Castagna Molina, Sonia Meire dos Santos Azevedo de Jesus

(organizadoras). – Brasília : Ministério do Desenvolvimento

Agrário, 2010.

Xx p.

ISBN 978-85-60548-75 – 0.

1. Educação do campo – Brasil. 2. Educação rural. 3. Educação profissional – Brasil. 3. Agricultura familiar – Brasil. 4. Ministério do Desenvolvimento Agrário. I. Santos, Clarice Aparecida dos. II. Molina, Monica Castagna. III. Jesus, Sonia Meire dos Santos Azevedo. IV. Titulo.

CDD 370.91734

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Ministério do Desenvolvimento AgrárioInstituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra

Memória e História do PRONERA

Contribuições do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária

para a Educação do Campo no Brasil

Clarice Aparecida dos SantosMônica Castagna Molina

Sonia Meire dos Santos Azevedo de Jesus(organizadoras)

Brasil | 2011

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DILMA VANA ROUSSEFPresidente da República

AFONSO FLORENCEMinistro do Desenvolvimento Agrário

MARCIA DA SILVA QUADRADOSecretária-Executiva do Ministério do Desenvolvimento Agrário

CELSO LISBOA DE LACERDAPresidente do INCRA

LAUDEMIR ANDRÉ MÜLLERSecretário de Agricultura Familiar

JERONIMO RODRIGUES SOUZASecretário de Desenvolvimento Territorial

ADHEMAR LOPES DE ALMEIDASecretário de Reordenamento Agrário

LUIZ GUGÉ SANTOS FERNANDESDiretor de Desenvolvimento de Projetos de Assentamento - Incra

CLARICE APARECIDA DOS SANTOSCoordenadora-Geral de Educação do Campo e Cidadania - Incra

Projeto Gráfico, Capa e DiagramaçãoEly Borges

Revisão e preparação de originais | OrganizadorasClarice Aparecida dos Santos Mônica Castagna Molina Sonia Meire dos Santos Azevedo de Jesus

Revisão OrtográficaAngelica Torres Lima

FotografiasAcervo do PRONERA/INCRA/MDA

MINISTÉRIO DO DESENOLVIMENTO AGRÁRIO (MDA)www.mda.gov.br

INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA (INCRA)www.incra.gov.br

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AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas foram responsáveis pela efetivação do PRONERA e suas ações de alfabetização, escolarização de ensino fundamental e médio, cursos técnico-profissionalizantes, cursos superiores e Residência Agrária.

Grande parte destas pessoas trabalharam e trabalham na invisibilidade, mas com grande dedicação e apreço pelo que fazem. Não raras vezes se emocionam quando relatam as primeiras experiências, as grandes dificuldades, as incompreensões, mas sempre o fizeram com a certeza de que estavam fazendo algo que provocaria mudanças na vida dos trabalhadores assentados.

São os asseguradores e asseguradoras do PRONERA ao longo destes 13 anos, em todas as Superintendências Regionais e na Sede do INCRA.

A eles e elas, nosso carinho, nossa gratidão e nosso reconhecimento.

Pará/Belém,- SR(01): Deniva de Lira Golzalvez, Donato Alves da Cunha Filho, José Belmiro Tôrres Abucater, Juliany Serra Miranda, Luiza Maria Silva Cavalcante, Marcos Roberto Monteiro Leite.

Ceará, SR(02): Edileuza Flor dos Santos, Luiza Maria Silva Cavalcante, Maria Evaneide Pinheiro Lima, Maria das Dôres Ayres Feitosa.

Pernambuco, SR(03): Giovana Carina da Silva, Josefa Martins Reis, Maria Catarina Marinho de Souza, Patrícia Gouveia Ramalho, Sônia Massa Ramalho, Wandercleyde de Almeida Lins.

Goiás, SR(04): Daiza Magalhães Marques, Jamile Mércia Jabur, Marília Barreto Souto.Esperança

Bahia, SR(05): Alberto Viana, Alcyone Dias Monteiro, Flávia Cruz, Humberto Chagas, Itamar Rangel, Osvaldo Oliveira, Raydelson Santos.

Minas Gerais, SR(06): Antonia Ermenegilda do Nascimento, Cristina Lúcia de Souza Miranda, Dorani Coelho Ferreira, Edna Maria Macedo Pessoa, Ivanilda da Silva Rocha Ribeiro, Jorge Henrique Costa Augusto, Luci Rodrigues Espeschit, Nelson Marques Felix, Petrônio Carabetti. Sonia da Silva Rodrigues.

Rio de Janeiro, SR(07): Dalva Sônia de Oliveira, Marisa Rosseto, Rosane Rodrigues da Silva, Angelica

São Paulo, SR(08): Claudia de Arruda Bueno, Maria Cristina Copelli.Sonia Rodrigues

Paraná, SR(09): Ener Vaneski Filho, Jucemary Simplicio de Araujo, Maria Cristina Medina Casagrande.

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Santa Catarina, SR(10): Ademar de Moraes Lima Filho, João Paulo Lajus Strapazzon, Jovania Maria Müller, Maristela Francisca Martins, Marcela do Amaral Pataro Machado, Renato César Vieira, Valdecir Grando.

Rio Grande do Sul, SR(11): Maria de Lourdes Alvares da Rosa.

Maranhão, SR(12): Antonio Leôncio Filho, Ceci Gomes Cabral, Eliomar de Jesus Franco Reis, Lacira Cabral de Vasconcelos Ferro, Irlene Pereira de Abreu Sena, Itamar Rangel Vieira Junior, Ivaldo Paulo dos Santos, Ives Lourival Barredo Filho, Joel Guna Rocha Pinto, José Ribamar Pereira da Silva, José Vivaldo Pereira, Luis Roberto de Sousa Lima, Marcelino Nascimento , Maria de Fátima Pessoa Santana, Maria de Lourdes Veiga da Silva, Sergio Roberto de Azevedo Campos, Maria Margarete Alves Camelo, Valéria Rodriguês, Valkiria Alves de Souza, Valdemor de Oliveira Santos.

Mato Grosso, SR(13): Ramos D. Melo, Tânia Batista.Divina

Acre, SR(14): Maria Ronizia Pereira Golçalves, Noélia Maria de Lima Dantas Padrão.Luzia

Amazonas, SR(15): Antonio Alfredo de Lisboa Nonato, Evandro Nascimento Pereira, Maria do Socorro Marques Feitosa, Rita de Cássia Lino da Mota.

Mato Grosso do Sul, SR(16): Cristina Lúcia de Souza Miranda, Germana Maria de Oliveira, Maria Lúcia Pena de Abreu, Rosalvo da Rocha Rodrigues, Vera Lúcia Ferreira Penna.

Rondônia,SR(17): Ladiane Beilke Correa, Lázaro da Silva, Rosane Rodrigues da Silva.

Paraíba, SR(18): Ângela Maria Costa Duarte, Dalva Maiza Medeiros Costa, Juliane Kelly Diniz Carneiro, José Gentil Medeiros Fernandes, Jorneuma Costa de Brito Ramalho, Luciana Martins Teixeira dos Santos, Maria Lúcia Ramos Cândido, Paulo Coelho dos Santos.

Rio Grande do Norte, SR(19): Adriano Charles da Silva Cruz, Cícero Gomes Correia, Espedito Cardoso de Araújo, Francisco Elias Marinheiro, Haroldo Gomes da Silva, Ibero Cristiano Pereira Hipólito, Maria da Conceição Fernandes de Medeiros, Willame Santos de Sales.

Espirito Santo, SR(20): Janete Carvalho de Azevedo, Nilza Ribeiro de Souza, Wallace Rudeck Sthel Cock,

Amapá, SR(21): Ana Lúcia Martel Nobre, Fabrício Souza Dias, Maria do Socorro Palheta Baia.

Alagoas, SR(22): Claudia Cseko Nolasco, Costa Ramos, João Aberlado(?)

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Sergipe, SR(23): Agalucia da Silva Barbosa Nogueira, Carlos Antonio de Siqueira Fontenele, Edna Ferreira dos Santos, João Bosco Andrade Filho, Jorge Tadeu Jatobá Correia, Jozeisa Gama de Carvalho, Manoel Hora Batista, Manoel Messias de Meneses Freire, Nelson Moura da Silva Neto, Risalva de Aguiar Paiva.

Piauí, SR(24): Adriana Jaqueline da Silva, Alan Feitosa Pinho, Francisca Claudênia Feitoza. Leonardo Bezerra.

Roraima, SR(25): Derocilde Pinto da Silva, Dilma Lindalva Pereira da Costa.

Tocantins, SR(26): Jandira Carvalho Moraes Mochida, Raquel de Sousa Abreu, Rosângela Alves Japiassu, Ruberval Gomes da Silva.

Marabá, SR(27): Ana Maria Martins Barros, Verônica Viana da Fonseca.

Distrito Federal e Entorno, SR(28): Carmem Bispo da Cunha.

Médio São Francisco, SR(29): Karla Pereira, Emilia Maria Soares Cerqueira, Maria Brígida Ferreira, Maria Rejane Maia Gondim, Moracy Agrimpio.

Santarém, SR(30): Luis Fernando de Araújo, Giovanderson Ferreira Barros, Samuel Hilario Rebechi.

Incra Sede: Ana Maria Faria do Nascimento, Caique Araújo, Camila Gumarães Guedes, Ciomara Machado de Freitas, Clarice Aparecida dos Santos, Cláudia Couto Rosa Lopes, Elizabeth Ribeiro e Fonseca, Érico Melo Goulart, Erika Eugênia Coutinho, Erlândia Macedo da Silva, João Claudio Todorov, João Resek Júnior, Lúcia Lacerda Reina, Luciana de Almeida Queiroz, Lucimar Oliveira do Nascimento, Maria Alice Vieira Freitas Lima, Maria Aparecida Rodrigues Campos, Maria Inês Escobar da Costa, Maria Marta Almeida Sarmento, Maria Mota Pires, Marianne Santos Coêlho Fernandes, Matheus Nunes Cavalcanti, Mônica Castagna Molina, Nelson Marques Felix, Roselia Resende Rocha, Sessuana Crysthina Polanski Paese, Tamiris Carolina Ferreira, Tatiana Rabelo dos Santos.

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SUMÁRIO

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APRESENTAÇÃO

INTRODUÇÃOCelso Lisboa de LacerdaClarice Aparecida dos Santos

PARTE I – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilMônica Castagna MolinaSonia Meire dos Santos Azevedo de Jesus

Educação Profissional no contexto das Áreas de Reforma Agrária: subsídios para discussão de diretrizes político-pedagógicas para os cursos do PRONERARoseli Salete Caldart

Ciências Agrárias e Educação do CampoFernando MichelottiGutemberg Armando Diniz Guerra

Formação de educadores e educadoras da Reforma Agrária no contexto do PRONERA: uma leitura a partir das práticasMaria Isabel Antunes-Rocha

A Mulher Camponesa no Ensino SuperiorDenice Batista da Silva

Protagonismo dos Movimentos Sociais e Sindicais do Campo no PRONERA: referências para construção da Política Nacional de Educação do CampoEliene Novaes Rocha

Tempo-Comunidade / Tempo-Escola: alternância como princípio metodológico para organização dos tempos e espaços das escolas do campoIsabel Antunes Rocha

PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

As dimensões instituintes da Educação Popular: o PRONERA e a Educação de Jovens e AdultosAdelaide Ferreira CoutinhoDiana Costa DinizMaria da Conceição Lobato Muniz

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SUMÁRIO

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Reflexões sobre o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na Universidade Federal da Paraíba (UFPB)José Jonas Duarte da Costa

A Universidade e o ensino de Direito para Camponeses: a experiência do curso de Direito na Universidade Federal de Goiás (UFG)Juvelino StrozakeElisangela Karlinski

O processo em construção da Área de Linguagens na Educação do CampoNilsa Brito RibeiroRafael Litvin Villas Bôas

Formação de professores do campo: uma reflexão sobre a experiência da UFPA e o MST na Licenciatura em Pedagogia da TerraGeorgina Negrão Kalife Cordeiro

O curso técnico em Enfermagem da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) a serviço dos assentamentos da Reforma Agrária na ParaíbaEliete Alves da SilvaLuiz Gonzaga GonçalvesBernadete de Oliveira

Experiência de empoderamento de acadêmicas-mulheres-assentadas no Curso de Licenciatura em Ciências Sociais na Universidade Federal Grande Dourados (UFGD)Marisa de Fátima Lomba de FariasAlzira Salete Menegat

Recriando a formação nas Ciências Agrárias para uma Atuação com Maior Compromisso social: estudo de caso do Programa Residência Agrária na Universidade Federal do CearáElisa Pereira Bruziguessi

PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

O PRONERA e as Políticas Públicas de Educação do Campo – uma reflexão em perspectiva para subsidiar o futuroClarice Aparecida dos Santos

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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Abreviaturas e siglas

PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária

INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário

MEC - Ministério da Educação

INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

UnB - Universidade de Brasília

UFPA – Universidade Federal do Pará

UFC – Universidade Federal do Ceará

UFS – Universidade federal do Sergipe

UFPB - Universidade Federal da Paraíba

UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais

UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina

UFMA – Universidade Federal do Maranhão

UFG - Universidade federal de Goiás

UFGD – Universidade Federal Grande Dourados

PNERA – Pesquisa Nacional sobre Educação na Reforma Agrária

UNESCO – Fundo das Nações Unidas para a Ciência e a Cultura

UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

CRUB – Conselho dos Reitores das Universidades Brasileiras

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil

SIPRA - Sistema de

MST N – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra

PROCAMPO – Programa de Apoio às Licenciaturas em educação do Campo

EJA - Educação de Jovens e Adultos

ITERRA - Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa na Reforma Agrária

OMC – Organização Mundial do Trabalho

FAO – Fundo das Nações Unidas para a Alimentação

SECAD – Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade

CGEC – Coordenação – Geral de Educação do Campo

ESALQ – Escola Superior de Agronomia Luiz de Queirós

USP – Universidade de São Paulo

ATES – Assessoria Técnica, Social e Ambiental

ATER – Assistência Técnica e Extensão Rural

TERRASOL – Programa de Agroindustrialização do INCRA

PRONAF – Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar

UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

UNIJUÍ – Universidade de Ijuí

FETASE – Federação dos Trabalhadores na Agricultura de Sergipe

PIBIC - Programa de Iniciação Científica

MASTER – Movimento dos Agricultores Sem Terra

CONTAG - Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

CEFFAs – Centros Familiares de Formação por Alternância

EFA – Escola Família Agrícola

CFR – Casa Familiar Rural

ECOR – Escola Comunitária Rural

CEDEJOR – Centro de Desenvolvimento do Jovem Empreendedor Rural

URI - Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões

CNE – Conselho Nacional de Educação

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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Abreviaturas e siglas Gráficos

CEB – Câmara de Educação Básica

EaD – Educação à Distância

FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador

IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica

FGV – Fundação Getúlio Vargas

ASSEMA – Associação em áreas de Assentamentos do estado do Maranhão

ACONERUQ - Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas

CCN – Centro de Cultura Negra do Maranhão

CONSEPE – Conselho Superior de Ensino e Pesquisa

PEC/MSC – Programa Estudante Convênio – Movimentos Sociais do Campo

OAB – Ordem dos Advogados do Brasil

MP - Ministério Público

TCC – Trabalho de Concusão de Curso

CPT - Comissão Pastoral da Terra

CCA – Centro de Ciências Agrárias

PRA – Programa Residência Agrária

EIV – Estágio Interdisciplinar de Vivência

UFERSA - Universidade Federal Rural do Semi-Árido

UFPI - Universidade Federal do Piauí

CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

BNB – Banco do Nordeste do Brasil

TRF – Tribunal Regional Federal

TCU - Tribunal de Contas da União

UAB – Universidade Aberta do Brasil

CONAE - Conferência Nacional de Educação

Gráfico 1. Distribuição anual dos cursos de Ciências Agrárias do PRONERA, aprovados pela Comissão pedagógica Nacional. p.

Gráfico 2. Distribuição Regional dos cursos de Ciências Agrárias do PRONERA, aprovados pela Comissão Pedagógica Nacional. p.

Gráfico 3. Ocupação de vagas segundo sexo no Nordeste,Norte e Centro-Oeste.p.

Gráfico 4. Principais dificuldades enfrentadas para estudar, pelas estudantes do Curso de Agronomia. p.

Gráfico 5. Principais dificuldades enfrentadas para estudar, pelas estudantes do Curso de Pedagogia. p.

Gráfico 6. Curso superior que desejavam fazer. p.

Gráfico 7. De que forma o conhecimento adquirido no curso tem sido útil na vida – Agronomia. p.

Gráfico 8. De que forma o conhecimento adquirido no curso tem sido útil na vida – Pedagogia. p.

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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APRESENTAÇÃO

A presente obra, ao mesmo tempo comemorativa e analítica, está composta por artigos e relatos, divididos em três partes que mostram a dinâmica dos processos formativos, e fundamentalmente, a abertura para um diálogo sobre a construção de políticas públicas que estruturem, de fato, o direito à educação como direito público universal para todos e todas que vivem no território brasileiro, cujos protagonistas são os próprios sujeitos da educação, trabalhadores/as da Reforma Agrária. É um livro cuja materialidade se explicita na prática cotidiana da alfabetização e da formação profissional, na reorganização dos espaços e tempos de aprendizagem dos movimentos sociais e das instituições públicas, na participação das mulheres e dos jovens, na dinâmica da produção de um conhecimento vinculado à cultura camponesa como elemento de resistência em defesa da vida.

A primeira parte do livro inicia com uma análise sobre as contribuições do PRONERA para a Educação do Campo no Brasil, de autoria de Mônica Castagna Molina e Sonia Meire dos Santos Azevedo de Jesus, na perspectiva da tríade Campo - Política Pública - Educação. são apresentadas as contribuições do PRONERA no âmbito do acúmulo de forças de um novo projeto de campo, por suas ações na construção de um espaço de materialização de práticas educativas que possibilitam o debate sobre as mudanças necessárias no meio rural brasileiro, a partir do polo do trabalho: Reforma Agrária – Agroecologia – Soberania alimentar. São também organizadas as contribuições do PRONERA no âmbito do acúmulo de forças necessário à instituição de políticas públicas, ampliando a consciência dos trabalhadores e alargando a esfera pública sobre a importância do protagonismo dos camponeses nesta construção. Por fim, são apresentadas, ainda, as contribuições do Programa no acúmulo de forças para as transformações na sociedade brasileira, no que diz respeito à educação, promovendo espaços de práticas e de reflexão teórica sobre novos perfis profissionais necessários à construção de um outro projeto de desenvolvimento e de campo, tais como a Formação de Educadores do Campo e Educação Profissional do Campo. São estes os eixos que alinhavam o artigo e permitem uma compreensão mais alargada sobre a educação que postulam os homens e mulheres do campo do século XXI, na emergência de suas lutas.

O segundo artigo foi elaborado a partir das reflexões oriundas das exposições e discussões realizadas no “Seminário Nacional de Educação Profissional do PRONERA”, cujo compromisso e olhar apurado de Roseli Caldart sobre as contradições do real, nos instiga a pensar sobre o problema estrutural enfrentado pelos assentamentos quando desenvolvem suas práticas a partir de um modelo de produção incompatível com o desenvolvimento atual do capitalismo, e, ao mesmo tempo, elabora uma reflexão sobre a Educação Profissional a partir de uma análise sobre qual é a proposta político pedagógica que pode contribuir para aumentar as resistências e ser capaz de, a partir das suas estratégias, fomentar ações

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

14

APRESENTAÇÃO

e reflexões capazes de alterar a lógica da exploração capitalista, partindo do “polo do trabalho e não do capital”. Para tanto, a autora explicita que os cursos do PRONERA têm introduzido na sua dinâmica pedagógica algumas práticas que forçam alterações na forma escolar mais convencional, e isto é fundamentalmente importante porque pode contribuir para se pensar na materialização de uma formação para além da lógica do mercado.

Discutir a importância dos cursos de Ciências Agrárias de nível médio e superior, foi o objetivo

dos autores Fernando Michelotti e Gutemberg Armando Diniz Guerra. Ambos mostram

quantitativamente e qualitativamente como os cursos do PRONERA vem contribuindo para

criar uma nova perspectiva tanto na formação, quanto para a reorganização de um novo

modelo de produção e de matriz tecnológica. Do ponto de vista quantitativo mostram os

percentuais da predominância de cursos de ensino médio e pós-médio em relação aos cursos

de ensino superior em Ciências Agrárias. Dentre os primeiros, predominam os de técnico em

agropecuária com uma crescente demanda para cursos com habilitação em ‘Agroecologia’.

No ensino superior, predomina a formação em Agronomia. Os autores estruturam seus

argumentos fundamentando teoricamente como os modelos de produção se conflituam no

tempo e no espaço histórico social, incluindo em suas análises como os modelos de ciência

serviram de base para estruturar o modo de produção capitalista na agricultura. É a Educação

do Campo e o PRONERA que institucionalmente, tensionam esse modelo a partir de novos

saberes técnicos e organizacionais capazes de produzir, inclusive para os cursos tradicionais

das agrárias, novos métodos, currículos e formas de pensar e agir com sustentabilidade.

O terceiro artigo desta coletânea trata de um estudo sobre o acesso e o conteúdo da

formação de professores, de autoria de Maria Izabel Antunes Rocha . O objetivo da autora

foi sistematizar e refletir sobre algumas práticas de formação de educadores e educadoras

realizadas com apoio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. Maria Izabel

identifica que somente em 2010 foi possível encontrar aproximadamente 200.000 (duzentos)

mil jovens e adultos formados, ou em processo de formação, nos diferentes cursos de nível

médio e superior oferecidos pelo PRONERA. Um elemento destacado nos projetos e que

se diferencia de outros cursos existentes no interior dos centros de formação, está na

preocupação que estes cursos apresentam com o questionamento sobre em qual base essa

formação acontece? Para qual escola? Para qual projeto de educação? Perguntas que foram

abandonadas nos últimos anos nas diversas instituições de ensino e são estas, segundo a

autora, que poderão induzir currículos em que os educadores e educadoras do campo

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

15

APRESENTAÇÃO

possam aprofundar a compreensão da dimensão do seu papel na construção de alternativas

de organização do trabalho escolar e do sentido do conteúdo desta como um ferramenta

que pode contribuir nos processos de organização de uma nova sociedade.

A inserção da mulher camponesa no ensino superior é um estudo de caso realizado por

Denice Batista, com o objetivo de analisar a importância da participação das mulheres nos

cursos de Agronomia e de Pedagogia na Universidade Federal de Sergipe. Seu trabalho

destaca, a partir das vozes femininas, os limites enfrentados, os conflitos necessários e os

consensos estabelecidos na construção de novas relações de gênero nos assentamentos de

Reforma Agrária. Destaca a autora que o PRONERA é um indutor importante na construção

da autonomia das mulheres nas áreas de Reforma Agrária, tendo em vista que o acesso ao

conhecimento tem sido um fator significativo na construção de novas relações entre os

espaços públicos e privados na constituição da igualdade entre os gêneros.

O avanço do PRONERA é destacado por Eliene Novaes Rocha naquilo que se constitui uma

das marcas do Programa na construção de políticas públicas. Trata-se da análise sobre o

papel dos movimentos sociais e sindicais do campo na construção de uma política nacional

de educação. Segundo ela, os Movimentos assumiram o Programa e é isto que possibilita

a força material da mobilização na luta pelos direitos que, mesmo com os processos de

criminalização, o imaginário social dos/as trabalhadores/as continua vivo em torno do

acesso ao direito à educação. Neste sentido, a Educação do Campo é mais do que escola,

ela alimenta a direção e o sentido da luta popular pela garantia dos direitos sociais. Por essa

razão, o PRONERA tem se constituído como patrimônio da luta pela Educação do Campo

no Brasil.

A organização do trabalho pedagógico que tem como referência metodológica a alternância

entre os tempos e espaços da aprendizagem, indicam que o PRONERA é um campo que

tem criado possibilidades de indução de uma dimensão formativa cujo currículo escolar

não pode se afastar das relações com a comunidade onde os estudantes e educadores e

educadoras estão inseridos. Assim, Maria Izabel Antunes Rocha, analisa de que modo a

organização dos tempos curriculares são diferenciados conforme a natureza dos projetos

em execução. O seu papel fundamental está na atuação de uma prática pedagógica

orientada pela lógica da articulação teoria/prática, visando instrumentalizar o educando

na percepção dos problemas vivenciados em sua realidade cotidiana, bem como intervir

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

16

APRESENTAÇÃO

significativamente no campo de atuação onde está inserido. Também é importante observar

que a metodologia da alternância, possibilita a construção de trabalho por meio de uma

equipe de educadores que juntos, passam a agir e mediar a aprendizagem dos estudantes

com os sujeitos das comunidades.

Na segunda parte do livro, os artigos trazem reflexões a partir das experiências desenvolvidas

no âmbito do PRONERA. O primeiro relato desta secção foi desenvolvido por Adelaide

Ferreira Coutinho, Diana Costa Diniz e Maria da Conceição Lobato Muniz. Elas analisam

a relação entre a Educação Popular no âmbito da Educação de Jovens e Adultos no

PRONERA. As autoras destacam que o Programa é uma das experiências mais ricas de

Educação Popular no campo brasileiro. Sustentam seus argumentos na análise sobre a

histórica exclusão da classe trabalhadora dos direitos, entre eles, o direito à educação. O

PRONERA enfrenta esse desafio porque criou possibilidades das instituições e Movimentos

Sociais aprenderem juntos sobre uma parte da realidade que a história quase silenciou,

mas que a luta dos trabalhadores e trabalhadoras do campo fez emergir, inclusive em suas

contradições: a questão agrária, as políticas públicas, a história e a cultura camponesa. Os

cursos do PRONERA se realizam no diálogo constante, no enfrentamento e na convivência

com diferentes visões de mundo. Um aprendizado necessário para o avanço dos direitos e

da dignidade humana.

A partir de uma construção contra hegemônica por dentro das universidades para que a

classe trabalhadora do campo tenha acesso à educação superior e, mais que isso, acesso a

um curso que se propõe a construir um currículo diferenciado que atenda aos interesses de

quem vive e trabalha no campo brasileiro, é que são apresentados os relatos de experiências

de formação de professores por meio dos cursos de licenciatura. Um desses exemplos

pode ser lido no artigo intitulado “Reflexões sobre o Curso de História para os Movimentos

Sociais do Campo na UFPB”, de autoria de José Jonas Duarte da Costa. O texto explicita os

processos internos da construção do curso, estabelecendo análises sobre os sentidos dessa

construção para a universidade, os discentes e os Movimentos Sociais envolvidos.

O acesso ao conhecimento em nível superior por parte da classe trabalhadora enfrenta

uma série de desafios, principalmente quando este acesso significa disputar cursos que

tradicionalmente foram instituídos para a elite brasileira e cujo enfrentamento significa a

concretização das conquistas inscritas na Constituição Federal. Este é o caso do curso de

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

17

APRESENTAÇÃO

Direito, criado pela Universidade Federal de Goiás. O texto que apresentamos trata da

história da constituição deste curso escrito por Juvelino Strozake e Elisangela Karlinski.

Os autores relatam que dentre os argumentos que sustentam a importância dos Sem

Terra fazer um curso de Direito, está o respeito ao próprio princípio constitucional do

tratamento desigual aos desiguais. Um outro argumento está na formação técnica e crítica

de profissionais para atuação, como advogados e assessores jurídicos, de acordo com as

exigências da realidade dos trabalhadores assentados, quer seja na garantia de direitos

fundamentais, na solução pacífica de conflitos ou no apoio jurídico ao desenvolvimento de

suas instâncias produtivas.

O artigo de autoria de Nilsa Brito Ribeiro e Rafael Litvin Villas Bôas mostra a dinâmica

da formação de educadores na área de linguagens a partir de uma reflexão crítica sobre

o monopólio dos meios de comunicação e sua influência na formação dos sujeitos, bem

como a importância de se produzir outros meios de formação de professores. Neste

sentido, a formação nesta área tem implicações teóricas e práticas na política dos cursos,

desde quando estes devem conduzir os futuros profissionais a ter o domínio das diferentes

linguagens enquanto estratégia e ferramenta de luta e transformação social. Para os autores,

é necessário não perder de vista os modos acríticos de apropriação destas tecnologias de

leitura, e introduzir nesta apropriação a leitura crítica das mais simples às mais sofisticadas

tecnologias, colocando-as a serviço da emancipação dos sujeitos, sem sobrepor a cultura

que estes elaboram nas suas práticas enraizadas no campo. A análise dos diversos currículos

dá aos leitores uma idéia clara sobre os seus elementos constitutivos que se constroem por

meio da problematização das práticas de linguagens nos assentamentos de Reforma Agrária.

A formação de professores do campo e, especificamente, o curso de Pedagogia da Terra,

é uma das ações que mais tem suscitado debate pela sua importância nos processos de

alfabetização de crianças, principalmente, em um país que apresenta índices educacionais

muito baixos, reprovações e desistências nos primeiros anos escolares e uma perda de

qualidade do ensino nas séries iniciais. A ausência também de professores formados para

atuar na Educação Infantil no meio rural, é algo assustador. Por essas razões, a reflexão

da experiência apresentada por Georgina Negrão Kaliffe é uma referência para ampliar

a discussão sobre as possibilidades que se abrem quando a universidade e Movimentos

Sociais, juntos, resolvem assumir o direcionamento de um curso de formação voltado

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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APRESENTAÇÃO

para a realidade da classe trabalhadora do campo. Os processos de construção coletiva

do currículo, a metodologia da alternância e o desenvolvimento de atividades a partir de

práticas interdisciplinares, são alguns dos elementos de aprendizagem da Universidade

Federal do Pará, que com suas singularidades, se inscreve também em uma cultura que se

deseja mais universal: o direito à educação.

No campo da saúde, o PRONERA tem financiado e acompanhado cursos em diferentes

estados do país. O Técnico em Enfermagem da UFPB é uma das referências para os

trabalhadores do campo. O trabalho da universidade se inicia com o resgate dos estudantes

que ainda não possuíam nível médio. Para garantir o acesso ao curso técnico pós-médio,

ao invés de negar-lhes o direito, a universidade optou por realizar cursos de suplência,

ampliando a participação dos jovens neste processo formativo. A vitalidade do curso se fez

presente no desenvolvimento de um currículo que priorizou o conhecimento da realidade

por parte dos estudantes e docentes por meio da interdisciplinaridade entre diferentes

áreas do conhecimento. Esta última proporcionava o aprofundamento das situações vividas

e a busca das explicações e soluções para os problemas de saúde e as suas implicações

nos espaços vitais dos assentamentos. A metodologia desenvolvida tomou por princípio o

fortalecimento e o desencadear de atividades comunitárias inovadoras, capazes de apoiar

a permanência das famílias no campo e a melhoria da qualidade de vida nos assentamentos

onde os alunos residiam. Esta experiência é tratada com riqueza de detalhes no artigo de

Eliete Alves da Silva, Luiz Gonzaga Gonçalves e Bernadete de Oliveira.

A formação por meio do Curso de Licenciatura em Ciências Sociais, da Universidade Federal

da Grande Dourados, é o objeto da análise de uma das experiências do PRONERA com a

formação de futuros licenciadas/os. O currículo é desenvolvido a partir da metodologia da

alternância e estruturado por três eixos centrais: Sociologia, Ciência Política e Antroplogia.

O curso proporcionou uma compreensão da realidade que interfere diretamente na vida

dos sujeitos que o frequentaram. O curso do PRONERA segundo as autoras Maria de Fátima

Lomba de Farias e Alzira Salete Menegat, possibilitou que as mulheres, em sua maioria no

curso, pudessem a partir desta formação, atuar em uma área profissional e conquistar

espaços sociais e políticos, antes segregados, expandir a compreensão de sua condição no

mundo e garantir o reconhecimento de suas potencialidades.

Por fim, o último artigo do livro abre perspectivas para se pensar o futuro. É uma análise

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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APRESENTAÇÃO

sobre o PRONERA, de Clarice Aparecida dos Santos. O artigo traz o percurso de vários

interlocutores com os quais a autora dialoga para explicar os desafios institucionais e

jurídicos para a permanência de um Programa que tem por princípio a garantia dos direitos

dos trabalhadores das áreas de Reforma Agrária. Por isso, a autora ressalta a importância

do protagonismo dos Movimentos Sociais em torno da luta pelos direitos humanos e sociais

como importante ferramenta organizativa que, ao mesmo tempo demandante, é também

capaz de contribuir para o aperfeiçoamento dos mecanismos públicos onde se efetivam os

direitos. Neste caso: o direito á educação. O PRONERA é o exemplo concreto disto, porém,

não sem conflitos e enfrentamentos judiciais, pois o acesso ao conhecimento por parte da

classe trabalhadora numa sociedade desigual, significa disputa de poder, principalmente pelo

controle dos processos produtivos, da tecnologia e do mercado. A autora faz referência ao

PRONERA como importante política que se materializa a partir de uma concepção de

educação que não se separa do mundo do trabalho, da produção da cultura e da vida. O

futuro está sendo construído no presente e a ele cabe a responsabilidade de interlocução

entre diferentes sujeitos e instituições.

Boa e proveitosa leitura!

As organizadoras.

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INTRODUÇÃOCelso Lisboa de Lacerda e Clarice Aparecida dos Santos

INTRODUÇÃO

Celso Lisboa De Lacerda1

Clarice Aparecida Dos Santos2

A presente obra é pública, de prestação de contas. Mas é, antes de tudo, uma obra síntese da persistência de milhares de pessoas. Melhor dizê-las. Em primeiro lugar, é uma obra dos camponeses em movimento. Não tivesse sido sua determinação em insistir com o Estado brasileiro, com o apoio das universidades reunidas no Conselho dos Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB) e com o apoio de algumas das mais importantes instituições defensoras da justiça e dos direitos humanos no Brasil, tais como a CNBB, UNICEF e UNESCO, pela necessidade de uma política pública específica, endereçada aos sujeitos historicamente alijados do direito à educação, como foram os camponeses ao longo dos séculos de história brasileira, não teríamos hoje milhares de trabalhadores rurais exercendo seu direito de acesso ao conhecimento, nos bancos das escolas e das universidades, por este País afora.

O Brasil tem 14,1 milhões de analfabetos, o que corresponde a 9,7% do total da população com 15 anos ou mais de idade, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad 2009), divulgada no mês de setembro de 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para além dos dados de analfabetismo absoluto, o IBGE informou também que um em cada cinco brasileiros é analfabeto funcional. Os índices mais graves estão no meio rural das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Do total da população com mais de 25 anos de idade, 10,6% têm nível superior completo, ante 8,1%, em 2004. Entre essa parcela da população, 12,9% não têm instrução – contra 15,7%, em 2004. Outros 36,9% têm o ensino fundamental incompleto, e 8,8% finalizaram o ensino fundamental. Já 23% da população têm o ensino médio completo.

Em 2005, publicamos o resultado da Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PNERA), realizada pelo INCRA, em parceria com o Instituto Anísio Teixeira de Pesquisas Educacionais (INEP/MEC). A Pesquisa teve caráter censitário e examinou a situação educacional dos assentamentos de Reforma Agrária, por meio da qual apresentamos dados indicadores da existência de uma média de 23% de analfabetos na população assentada no Brasil, à época. Indicadores esses associados a baixos níveis de escolaridade, notadamente na população adulta.

1 Presidente do INCRA.2 Coordenadora-Geral de Educação do Campo e Cidadania do INCRA.

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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INTRODUÇÃOCelso Lisboa de Lacerda e Clarice Aparecida dos Santos

Em 2010, publicamos dados preliminares resultantes de Pesquisa realizada pelo INCRA, por meio do Programa de Assistência Técnica, Social e Ambiental – ATES/INCRA, chamada Pesquisa de Qualidade na Reforma Agrária (PQRA)3. O Brasil tem uma população de 906.8784 famílias assentadas, uma média de 3,5 milhões de pessoas vivendo em territórios rurais conquistados para a Reforma Agrária. Cerca de metade dessa população tem idade entre 11 e 40 anos, portanto, uma população jovem, em pleno potencial intelectual e laboral.

Porém, no tocante à educação, persistem os altos índices de analfabetismo (uma média de 15,5% de não alfabetizados) e os baixos níveis de escolaridade da população jovem e adulta, especialmente nos anos finais do ensino fundamental e do ensino médio (este último, assegurado para apenas 6% da juventude, dos quais, menos de 1% teve acesso ao ensino superior).

Horácio Martins de Carvalho, em artigo denominado Na Sombra da Imaginação - O camponês e a superação de um ‘destino medíocre’5, afirma:

Entretanto, é oportuno se considerar que os camponeses no Brasil têm sido efetivamente os responsáveis pela maior parte da oferta de alimentos básicos para a população, conforme foi registrado pelo Censo Agropecuário de 2006, no qual se constatou que os 4,5 milhões de estabelecimentos camponeses6 (88% do total de estabelecimentos rurais do país) produziram, em apenas 32% da área total ocupada, 87% da mandioca, 70% do feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 58% do leite, 59% dos suínos, 50% das aves e 30% dos bovinos7, entre outros produtos. E, mais, retendo nos estabelecimentos camponeses 79% do total do pessoal ocupado no campo.

Essa relativamente elevada retenção de pessoal ocupado no campo se dá devido à família camponesa ser, ao mesmo tempo, tanto trabalhadora direta como usufrutuária dos esforços que dispende e se apropria, tanto na produção como no beneficiamento de seus produtos. Isso compreende, na maior parte das vezes, a produção tanto para o autoconsumo como para o mercado, e a venda ocasional de parte da força de trabalho familiar, opções essas que se dão a partir das decisões das famílias com relação às suas estratégias de reprodução social. (CARVALHO, 2010)

Tal afirmação nos remete, na condição de gestores públicos, à necessária constatação de

3 Disponível em: www.pqra.incra.gov.br.4 Dados do SIPRA/INCRA – 2010.5 CARVALHO, H.M. Na Sombra da Imaginação - O camponês e a superação de um ‘destino medíocre’. Curitiba, PR. 2010. Mimeo.6 Conforme Lei 11.326, de 24 de julho de 2006, aqui se considerando que as famílias camponesas não empregam trabalhadores assalariados permanentes, e temporários, apenas ocasionalmente.7 MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário (2009). Agricultura Familiar no Brasil e Censo Agropecuário de 2006.

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que a história da educação brasileira, ao longo do seu desenvolvimento, foi a do desencontro entre educação e processos produtivos, numa perspectiva emancipatória. Senão, como compreender que os mesmos trabalhadores que produzem, pelo seu trabalho, o essencial para a alimentação do povo brasileiro, tenham sido historicamente tão alijados de um direito essencial, como é a educação, tanto à inserção do ser no mundo, quanto ao desenvolvimento das forças produtivas para produzir alimentos, por exemplo, na dimensão que Carvalho (op.cit) aborda.

Nesta perspectiva Florestan Fernandes8 afirmava que:A transformação da Educação depende, naturalmente, de uma transformação

global e profunda da sociedade; a própria Educação funciona como um dos fatores de democratização da sociedade, e o sentido de qualquer política educacional democrática tem em vista determinadas transformações essenciais da sociedade. Em termos de uma visão sintética, e totalizadora, diríamos que a educação e a democratização da sociedade são entidades reais e processos concretos interdependentes – um não se transforma nem pode transformar-se sem o outro. (FERNANDES, F. p. 2003)

O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) se institui nesta perspectiva abordada por Fernandes. É uma política pública de Educação do Campo instituída no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário-MDA e executada pelo INCRA para os beneficiários do Plano Nacional de Reforma Agrária e do Crédito Fundiário. Tem como objetivo geral fortalecer a educação nas áreas de Reforma Agrária estimulando, propondo, criando, desenvolvendo e coordenando projetos educacionais, utilizando metodologias voltadas para a especificidade do campo, tendo em vista contribuir com a promoção do desenvolvimento, resgatando e religando dois mundos historicamente apartados, quais sejam, o mundo escolar/acadêmico e o mundo rural. Atua na perspectiva da ampliação das condições que fazem a consolidação da democracia.

Nos seus objetivos específicos, propõe-se a garantir a Alfabetização e a Educação Fundamental de jovens e adultos; garantir a escolaridade e a formação de educadores e educadoras para atuar na promoção da educação nas áreas de Reforma Agrária; garantir formação continuada e escolaridade média e superior aos professores e educadores de jovens e adultos (EJA) e do ensino fundamental e médio nas áreas de Reforma Agrária; garantir aos assentados(as) escolaridade/formação profissional, técnico-profissional de nível médio e superior em diversas áreas do conhecimento; organizar, além de produzir e editar materiais didático-pedagógicos necessários a esse processo.

8 Jr. PRADO, Caio e FERNANDES, Florestan. Clássicos Sobre a Revolução Brasileira. 3 ed. São Paulo: Expressão Popular, 2003.

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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INTRODUÇÃOCelso Lisboa de Lacerda e Clarice Aparecida dos Santos

O PRONERA nasceu em 1998 da luta das representações dos Movimentos Sociais do campo. Desde então, milhares de jovens e adultos, trabalhadores das áreas de Reforma Agrária, têm garantido o direito de alfabetizar-se e de continuar os estudos em diferentes níveis de ensino.

De lá para cá, o PRONERA foi responsável pela escolarização e formação em nível médio e superior de cerca de 400 mil trabalhadores e trabalhadoras rurais, além de cerca de 300 técnicos, na ação denominada Residência Agrária, para atuarem na assistência técnica, social e ambiental, junto aos assentamentos de Reforma Agrária e Agricultura Familiar.

São desenvolvidos projetos de EJA, Cursos Técnico-Profissionalizantes de nível médio – Técnico em Administração de Cooperativas, Enfermagem, Técnico em Saúde Comunitária, Técnicos em Comunicação, para citar alguns exemplos; e de Nível Superior – Pedagogia, História, Geografia, Sociologia, Ciências Naturais, Agronomia, Direito e Medicina Veterinária, entre outros, desenvolvidos por meio da “alternância regular de períodos de estudos” (um tempo na escola – um tempo na comunidade), que considera o contexto socioambiental e a diversidade cultural do campo, em todos os estados do território nacional.

Assegura, entre os seus princípios, o envolvimento das comunidades onde esses trabalhadores e trabalhadoras rurais residem, contribuindo para o desenvolvimento sustentável dos assentamentos.

Os processos de escolarização e formação viabilizam-se por meio de parcerias com instituições de ensino – universidades federais, estaduais e municipais, públicas e privadas sem fins lucrativos, governos estaduais e municipais e Movimentos Sociais e Sindicais de trabalhadores e trabalhadoras rurais, que atuam na Reforma Agrária. São dezenas de instituições realizando permanentemente ações de educação de jovens e adultos assentados(as), nos diversos níveis, nos 27 estados da Federação, viabilizadas pelo PRONERA.

Em artigo denominado Concepção Contemporânea de Direitos Humanos9 Flávia Piovesan, corrobora a legitimidade e a importância do Programa. Segundo ela,

A efetiva proteção dos direitos humanos demanda não apenas políticas universalistas, mas específicas, endereçadas a grupos socialmente vulneráveis, enquanto vítimas preferenciais da exclusão. Isto é, a implementação dos direitos humanos requer a

9 HADDAD, Sérgio e GRACIANO, M. (orgs.). A Educação entre os Direitos Humanos. Campinas, SP: Autores Associados; São Paulo, SP: Ação Educativa, 2006. (Coleção Educação Contemporânea).

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universalidade e a indivisibilidade desses direitos, acrescidas do valor da diversidade. Ao processo de expansão dos direitos humanos, soma-se o processo de especificação dos sujeitos de direitos. (In. HADDAD, 2006. p.26)

É o direito à diversidade contrapondo-se à uniformidade do direito. Nesta perspectiva, o PRONERA institui uma nova concepção de política pública, que se constrói não com sujeitos isolados, mas com sujeitos concretos, territorializados, sujeitos coletivos de direitos, capazes de instituir novos direitos e de universalizá-los a partir da sua concretude. E a sua concretude é a diversidade.

Tal diversidade foi reconhecida pelo Estado brasileiro na publicação do Decreto Presidencial nº 7.352, de 4 de novembro de 2010, ao instituir o PRONERA como um Programa integrante da política de Educação do Campo (art. 11º) e reconhecê-lo, ao mesmo tempo, como integrante da política de desenvolvimento do campo.

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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INTRODUÇÃOCelso Lisboa de Lacerda e Clarice Aparecida dos Santos

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

Mônica Castagna Molina e Sonia Meire Santos Azevedo de Jesus

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PARTE I

CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

Mônica Castagna Molina e Sonia Meire Santos Azevedo de Jesus

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Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Política Pública – Educação

Mônica Castagna Molina10 Sonia Meire Santos Azevedo de Jesus11

Introdução

Na perspectiva de participar do balanço sobre as realizações do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), nos seus 13 anos de existência, este artigo objetiva refletir sobre suas principais contribuições para a Educação do Campo no Brasil.

Apresentar os subsídios do Programa à Educação do Campo no País requer dar a centralidade devida à luta pela Reforma Agrária e ao enfrentamento necessário, com a proposta de utilização do meio rural concebida e praticada pelo agronegócio. É em resposta à hegemonia deste modelo de organização da agricultura nacional, que Movimentos Sociais e Sindicais se organizam e lutam para construir estratégias coletivas de resistência, que lhes possibilitem continuar garantindo sua reprodução social, a partir do trabalho na terra. A luta pelo acesso ao conhecimento e à escolarização faz parte desta estratégia de resistência, e nela se encontram o PRONERA e a Educação do Campo.

Dentro deste contexto de luta e resistência camponesa, o PRONERA foi gestado no I Encontro Nacional das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária, em 1997, para celebrar os dez anos do Setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e produzir um balanço dos resultados obtidos nos diferentes níveis de escolarização, até então desenvolvidos. Identificou-se naquele Encontro a existência de dezenas de universidades envolvidas com o tema da Educação na Reforma Agrária. Porém, a maioria dos trabalhos estava sendo feita isoladamente. Era necessário construir uma articulação entre o conjunto de parceiros, para enfrentar o desafio de fazer avançar a escolarização nos assentamentos, cujos índices revelados pelo I Censo Nacional da Reforma Agrária, concluído em 1996, eram extremamente baixos.

A partir daí, começaram a se construir as articulações e lutas que viriam a resultar na criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA). Depois de um longo

10 Doutora em Desenvolvimento Sustentável. Professora Adjunta da Universidade de Brasília.11 Doutora em Educação. Professora Adjunta da Universidade Federal de Sergipe.

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

Mônica Castagna Molina e Sonia Meire Santos Azevedo de Jesus

e tenso processo de negociações, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária foi instituído em 16 de abril de 1998, por meio da Portaria nº 10/98, do então Ministério Extraordinário da Política Fundiária. A criação e a implantação do PRONERA foram objetos de análise de várias teses e dissertações, sendo algumas delas listadas no final deste artigo.

Durante todo o processo de seu desenvolvimento, o PRONERA contou com a experiência e com os princípios formativos dos Movimentos, sendo marcante as contribuições destes para o êxito do Programa. Faz-se necessário este destaque pelo fato de enfrentar-se, em sua fase atual, uma ostensiva ação, por parte de determinados setores sociais, de deslegitimação da presença e da participação dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo na construção do PRONERA12. Foi esta participação que permitiu ao Programa acolher uma rica diversidade de práticas e contribuir para o avanço e a expansão da Educação do Campo no Brasil.

De acordo com Caldart (2008), o conceito de Educação de Campo deve ser analisado a partir de sua tríade estruturante: as categorias Campo – Política Pública – Educação, sendo requisito para compreensão do conceito, o trabalho articulado entre estes termos. Separá-los é romper sua materialidade de origem: a luta da classe trabalhadora do campo pelo direito de continuar garantindo, neste território, as condições para sua reprodução social, sendo o direito à educação e ao conhecimento uma destas dimensões.

É a partir desta tríade Campo – Política Pública – Educação, que se propõe neste artigo a reflexão sobre o PRONERA. Entendendo-o como uma ação educativa no âmbito da contra-hegemonia, buscar-se-á reunir elementos que indiquem quais as contribuições que o conjunto das práticas desenvolvidas pelos cursos do Programa, nesses 13 anos de atuação, nos diferentes níveis de escolaridade e áreas do conhecimento, trazem como acúmulo de forças para a construção de um outro projeto de campo e sociedade no País.

Gramsci considera a possibilidade de produção de contra-hegemonia como uma espécie de hegemonia alternativa, na qual o grupo subalterno atua no plano ético-político, num espaço social amplo e heterogêneo. Neste movimento, considera fundamental a dimensão da cultura e da educação, permitindo que a classe trabalhadora adquira a capacidade de produzir uma mudança social radical pelo poder transformador das ideias, a elaboração e

12 Por meio do Acórdão 2.653/08, o Tribunal de Contas da União determinou a exclusão, nos instrumentos de parceria, da ação participativa dos Movimentos Sociais no processo de planejamento, execução e avaliação do PRONERA. Tal determinação atenta contra princípios constitucionais, notadamente em relação à autonomia universitária e contra a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que no seu art.1º, institui os Movimentos Sociais como educadores, junto com a família, os processos de trabalho, a sociedade, entre outros.

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

Mônica Castagna Molina e Sonia Meire Santos Azevedo de Jesus

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difusão na sociedade de uma nova filosofia e visão de mundo, elaborando a crítica à barbárie da sociedade do capital (apud CAMPIONE, 2003, p.56).

Quando Gramsci constrói o seu conceito de hegemonia, refere-se à “contínua formação e superação de equilíbrios instáveis entre os interesses do grupo fundamental e os interesses dos grupos subordinados” (apud CAMPIONE, 2003, p.56). Neste sentido, a questão da realização concreta dos direitos universais legalmente atribuídos pela ordem jurídica hegemônica à classe trabalhadora, sempre deve ser compreendida a partir da dinâmica das lutas sociais contra-hegemônicas, que interferem no equilíbrio instável entre os interesses de classe.

Estas lutas contra hegemônicas ocorrem em diferentes esferas sociais, às vezes simultânea, às vezes alternadamente, existindo também no âmbito do próprio Estado. É nesta perspectiva que se faz a luta por políticas públicas13 na tríade estruturante da Educação do Campo.

Em artigo intitulado O Estado e a Educação: Questões às Políticas de Educação do Campo, Marlene Ribeiro e Clésio Antonio, baseados no pensamento de Poulantzas, explicitam a chave de leitura, a partir da qual entender-se-ão as ações do PRONERA nesta avaliação de suas contribuições à Educação do Campo nesses 13 anos. Partindo das reflexões teóricas de Poulantzas, estes autores afirmam que

[...] podemos dizer que os projetos educativos construídos pelos Movimentos Sociais

populares do campo alcançam as estruturas do Estado. A discussão sobre Estado, a partir dessas

abrangências das relações de força de classes, e frações de classes, em sua fase contemporânea,

parece ser necessária para explicitar o que significam essas relações não separadas das próprias

relações de força no interior de sua estrutura. O Estado capitalista não pode ser compreendido

como uma “entidade intrínseca”, mas “como uma relação social, mais especificamente, como a

condensação material de uma relação de forças entre classes e frações de classe, que se expressam,

de maneira sempre específica, no seio desse Estado” (POULANTZAS, 2000, p.130, apud

RIBEIRO; ANTONIO, 2008, p. 16).(...) Nessa concepção, as políticas do Estado são tomadas como

imbricadas no funcionamento concreto do Estado, organicamente ligadas às fissuras, às divisões e

às contradições internas deste. (RIBEIRO; ANTONIO, 2008, p.16)

Para além de sua compreensão como bloco monolítico, “aparelho repressor da classe dominante”, homogêneo, compreende-se o Estado como um território em disputa, heterogêneo, campo de conflito e contradições. É sabido que na sociedade capitalista,

13 Conforme já afirmado em trabalho anterior, a luta por políticas públicas não é o horizonte maior da Educação do Campo. A promoção da emancipação, de fato, requererá mudanças estruturais profundas, no âmbito do Estado e da sociedade. Entre os vários desafios a enfrentar, está o de não perder esse horizonte maior de transformação estrutural, de superação do modo de produção capitalista e da barbárie social que lhe é inerente, sem se deixar imobilizar no momento presente (MOLINA, 2010, p.144).

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

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com a hegemonia da classe burguesa, o Estado está majoritariamente apropriado para garantir a reprodução do capital. Apesar disso, faz-se necessária a disputa do Estado, na perspectiva de barrar a transformação de direitos duramente conquistados na luta das classes trabalhadoras, em mercadoria. (MOLINA, 2010, p.145)

Disputar essas fissuras e frações do Estado é trabalhar politizando esses debates. Trazer o sentido da defesa das políticas públicas de Educação do Campo para inseri-las na esfera da legitimidade política, do confronto político da questão do campo e de seu desenvolvimento, como parte indissociável do tipo de desenvolvimento da própria nação brasileira: este tem sido um dos principais papéis desempenhado pelo PRONERA, ao longo dos últimos 13 anos.

Este processo tem importância no acúmulo de forças para uma transformação social mais ampla, pois, conforme afirma Maria da Glória Gohn, é necessário reconhecer

[...] que os conflitos sociais e a luta de classes perpassam os aparelhos estatais. Significa também admitir que a conquista de espaços políticos dentro dos órgãos estatais é importante, assim como sua democratização. Significa, ainda, admitir que a mudança social é processo gradual; a tomada de poder por uma nova classe deve ser precedida de um processo de transformação da sociedade civil, em seus valores e práticas, pelo desenvolvimento de uma contra-hegemonia sobre a ordem dominante. (2006, p.187)

Com esta perspectiva, no âmbito do acúmulo de forças para as transformações na sociedade brasileira, no que diz respeito ao primeiro ponto da tríade – construção de um outro projeto de campo –, pretende-se expor contribuições do PRONERA no sentido de:

1.1. construir espaços de materialização de práticas educativas que possibilitam o debate sobre as mudanças necessárias no meio rural brasileiro, a partir do polo do trabalho: Reforma Agrária – Agroecologia – Soberania Alimentar;

1.2. proporcionar a elevação da escolaridade dos trabalhadores rurais, nos diferentes níveis de formação e áreas de conhecimento;

1.3. ampliar os espaços de formação e participação de sujeitos (as mulheres e os jovens camponeses) capazes de trazer importantes contribuições para os processos de mudanças necessárias à construção deste novo território rural brasileiro.

No âmbito do acúmulo de forças no que diz respeito à elaboração de Políticas Públicas, serão abordados os aspectos referentes às contribuições do PRONERA para:

2.1. elevar a consciência dos trabalhadores e alargar a esfera pública;

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2.2. promover pesquisas, tais como a I Avaliação Externa do Programa e a Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PNERA), e organizar encontros nacionais e regionais que ampliam a presença do tema, em várias áreas de ação do Estado;

2.3. subsidiar a elaboração de novos programas e consolidar a Educação do Campo como política de Estado.

Como contribuições do PRONERA no âmbito do acúmulo de forças para as transformações na sociedade brasileira, no que diz respeito ao terceiro ponto da tríade – Educação –, refletir-se-á sobre seus aportes no sentido de:

3.1. desencadear mudanças nas universidades, no que diz respeito às estratégias de ensino e práticas formativas;

3.2. induzir a rearticulação de ensino, pesquisa e extensão e promover novos espaços/estratégias de produção de conhecimento, a partir da presença, em seu interior, dos sujeitos coletivos de direitos.

A articulação do que foi produzido pelas ações do Programa nestas três dimensões nos possibilitará refletir sobre as contribuições do PRONERA à Educação do Campo no País, na perspectiva da acumulação de forças para o projeto histórico de transformação social ao qual se vincula.

1. CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA NO ÂMBITO DO ACÚMULO DE FORÇAS NA DISPUTA POR UM NOVO PROJETO DE CAMPO

1.1. Construir espaço de materialização de práticas educativas que possibilitam o debate sobre as mudanças necessárias no meio rural brasileiro, a partir do polo do trabalho: Reforma Agrária – Agroecologia – Soberania Alimentar

O fato de o PRONERA ser protagonizado pelos Movimentos Sociais e Sindicais do campo, desde sua constituição, contribui para a manutenção, na agenda política do País, do debate sobre a necessidade da promoção de uma efetiva Reforma Agrária, no sentido de lutar pela viabilização social/econômica/política e cultural das áreas reformadas.

Esta ação traduz-se pela linha de projetos educativos propostos pelos Movimentos Sociais e Sindicais ao Programa e acolhidos por sua Comissão Pedagógica Nacional. Um dos principais horizontes do PRONERA foi o de preocupar-se em garantir que a oferta de seus cursos

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fosse um dos elementos capazes de contribuir com a promoção do desenvolvimento dos assentamentos, com a mudança das condições de vida de seus educandos. Parte maior deste desafio é a compreensão de que esta contribuição só se efetiva à medida que os cursos promovam também a ampliação da consciência e da prática dos educadores e educandos dos cursos vinculados ao Programa, na perspectiva da transformação do modelo hegemônico de desenvolvimento do campo vigente no Brasil.

A principal característica deste modelo hegemônico, que difere profundamente da agricultura camponesa, é o tratamento da produção de alimentos, da agricultura como um negócio. Marcel Mazoyer (2010) observa que a disseminação mundial da lógica da agricultura como um negócio é responsável por uma das mais graves crises enfrentadas pelas sociedades contemporâneas no século XXI: a crise alimentar. Ressalta que sua solução requer modificação estrutural no campo, não podendo prescindir de ampla e profunda Reforma Agrária. Mazoyer denuncia que a lógica de financeirização da agricultura provoca um grave bloqueio ao desenvolvimento da agricultura camponesa e familiar, em nível mundial, produzindo em consequência o empobrecimento geral, a subalimentação, que conduzem milhões de camponeses à ruína, ao êxodo, ao desemprego, à extrema pobreza e aos movimentos migratórios.

No Documento Final da 5ª Conferência Internacional da Via Campesina, realizada em Maputo, África do Sul, em 2008, os trabalhadores denunciaram as graves consequências do avanço do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais, sobre todos os aspectos da agricultura e do sistema alimentar dos países e do mundo. O Documento destacou que

Desde a privatização das sementes e a venda de agrotóxicos, até a compra da colheita, o processamento dos alimentos, transporte, distribuição e venda ao consumidor, tudo está cada vez mais nas mãos de um número reduzido de empresas. Os alimentos deixaram de ser um direito de todos e todas, e tornaram-se apenas mercadorias. (...) A crise financeira e a crise dos alimentos estão vinculadas à especulação do capital financeiro com os alimentos e a terra, em detrimento das pessoas. A Soberania Alimentar baseada na agricultura camponesa é parte da solução desta crise. A Reforma Agrária genuína e integral, e a defesa do território indígena são essenciais para reverter o processo de expulsão do campo, e para disponibilizar a terra para a produção de alimentos, e não para produzir para a exportação e para combustíveis. (2010, p.1)

Conforme apresentado em vários textos desta coletânea, são sobre estas contradições que se desenvolvem os processos formativos dos cursos apoiados pelo PRONERA. Como integrante da Educação do Campo, o Programa não tem se furtado a uma exigência posta

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aos que pretendem trabalhar em seu nome: quem com ela se envolve; ou em seu nome trabalha, necessariamente, tem que tomar posição política, teórica, prática sobre estas contradições, comforme resalta Caldart (2008)

Os desafios para o planejamento e a execução de uma ação educativa crítica têm sido eixos estratégicos orientadores dos processos formativos buscados nos cursos protagonizados pelos Movimentos, em parceria com as instituições que os executam, apoiadas pelo Programa: Reforma Agrária, Agroecologia e Soberania Alimentar são dimensões centrais das reflexões e práticas por eles conduzidas.

Porém, como observa Caldart (2008), é necessário que tenhamos presente que o avanço na Reforma Agrária e na perspectiva da Soberania Alimentar somente irá ocorrer caso seja freado o modelo do agronegócio. Para este setor, as áreas de Reforma Agrária, os quilombos, os territórios indígenas se apresentam como territórios rurais imobilizados para reprodução do capital e ampliação do lucro. São as disputas entre estas visões antagônicas sobre a função social do território rural que implicam reafirmar a compreensão do campo como um território para muito além de espaço de produção de mercadorias apenas, de produtos de exportação; território de monoculturas, tal qual o concebe a visão hegemônica vinculada às práticas associadas ao agronegócio.

Um dos mais importantes resultados do PRONERA tem sido sua capacidade de viabilizar o acesso à educação formal a centenas e centenas de jovens e adultos das áreas de Reforma Agrária. Se não fossem as estratégias de oferta de escolarização adotadas pelo Programa, a partir das práticas já acumuladas pelos Movimentos – entre as quais se destaca a Alternância, com a garantia de diferentes tempos e espaços educativos –, esses jovens e adultos não teriam se escolarizado, em função da impossibilidade de permanecer, por seguidos períodos, nos processos tradicionais de educação, o que necessariamente lhes impediria de conciliar o trabalho e a escolarização formal. O PRONERA tem, efetivamente, se tornado uma estratégia de democratização do acesso à escolarização para os trabalhadores das áreas de Reforma Agrária no País, em diferentes níveis de ensino e áreas do conhecimento, como se verá no próximo tópico.

1.2. Proporcionar a elevação da escolaridade dos trabalhadores rurais, nos diferentes níveis de formação e áreas de conhecimento

Como parte das contribuições do PRONERA à Educação do Campo, cumpre destacar os resultados concretos obtidos por suas ações de escolarização dos trabalhadores rurais – que

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podem se traduzir pelo número de alunos atendidos; de convênios firmados e universidades parceiras. Ao longo desses 13 anos, 400 mil trabalhadores rurais se escolarizaram nos diferentes níveis de ensino: da alfabetização à conclusão do ensino fundamental e médio, aos cursos técnicos e profissionalizantes e aos cursos superiores. Foram mais de 60 universidades parceiras, e mais de 200 convênios firmados nesse período.

O Programa começou com a demanda de alfabetização de jovens e adultos, a partir das prioridades advindas do I Censo Nacional da Reforma Agrária, realizado em 1996, que revelou, à época, a existência de 43% de analfabetos nas áreas de assentamentos. Por isso, o início se deu com a prioridade de ofertar alfabetização a jovens e adultos e, simultaneamente, formar educadores das próprias áreas de Reforma Agrária, para atuar nestes processos de escolarização com mais qualidade e regularidade. A partir daí, foram se desenvolvendo ações de alfabetização e formação de educadores; oferta dos anos finais do ensino fundamental e médio para os jovens e adultos que se alfabetizavam; e também foram se construindo formas para atender as demandas de cursos técnicos profissionalizantes e superiores para os assentados.

Paralelamente à ampliação dos níveis de escolarização apoiados pelo Programa, foi se viabilizando, a partir das parcerias com as universidades públicas, a diversificação das áreas de conhecimento propostas por estes cursos, com o horizonte de viabilizar a promoção do desenvolvimento dos assentamentos e das famílias que aí vivem. Foram priorizados cursos relacionados ao apoio à produção, na perspectiva de contribuir com a mudança da matriz tecnológica das áreas reformadas, como, por exemplo, os cursos técnicos no âmbito da Agroecologia e da administração de cooperativas, e também os cursos de formação de educadores do campo, como os de Magistério e Pedagogia da Terra, na perspectiva de criar condições para a ampliação da oferta da Educação Básica no meio rural, com a formação de educadores de suas próprias comunidades. As necessidades de formação de profissionais foram se diversificando, relacionadas às diferentes demandas para promoção do desenvolvimento dos assentamentos. Atualmente, em nível superior, realizam-se cursos em várias áreas, como Agronomia, Medicina Veterinária, Geografia, Enfermagem, História, Letras, Direito, Artes, Ciências Agrárias e Licenciatura em Educação do Campo.

Cada nova área de formação, na qual está inserida uma turma de trabalhadores, representa importante contribuição para o avanço da Educação do Campo. As várias disputas judiciais travadas para garantir a execução desses cursos espelham sua importância, em termos de disputa da contra hegemonia e da importância da batalha das ideias para o acúmulo de forças na perspectiva de um outro projeto social.

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Como contribuição à Educação do Campo no País, tendo como chave de leitura esta perspectiva de acúmulo de forças, deve-se destacar também o fato de se ter constituído, a partir dos cursos do PRONERA diferentes cursos de Pós-Graduação Lato Sensu para os assentados da Reforma Agrária. Entre várias turmas de Especialização específicas para assentados, destacam-se aquelas que tiveram várias turmas ofertadas: Especialização em Administração de Cooperativas; Educação do Campo e Agricultura Familiar Camponesa; Agroecologia, em parceria com diferentes instituições de ensino superior no País.

1.3. Ampliar os espaços de formação e participação de sujeitos capazes de contribuir com os processos de mudanças necessários à construção deste novo projeto para o território rural brasileiro: as mulheres e os jovens camponeses

Outra contribuição do Programa relaciona-se à intensificação da participação das mulheres nos processos de escolarização e formação, nos diferentes níveis e áreas do conhecimento.

Desde 2006, existem estudos sendo desenvolvidos sobre os cursos superiores do PRONERA, a partir de projeto nacional de pesquisa apoiado pela CAPES, por meio do Observatório da Educação do Campo. Esses estudos têm tomado como objeto de reflexão, entre outras dimensões, a forte participação das mulheres nesses cursos. As análises têm possibilitado a visibilidade do acesso em termos quantitativos, mas também a qualidade dessa formação escolar e superior, no que diz respeito aos significados para a vida das mulheres, nas áreas de Reforma Agrária. Estudam-se os impactos e desdobramentos que deles derivam, tanto nas relações familiares destas educandas, nos espaços de convivência em seus assentamentos de origem, quanto nas relações políticas dentro dos próprios movimentos aos quais elas pertencem.

Integrando as pesquisas do Observatório da Educação do Campo, a dissertação de Mestrado intitulada Do assentamento à universidade: a mulher camponesa no ensino superior, Silva avaliou a participação das mulheres em dois cursos superiores do PRONERA, ofertados pela Universidade Federal de Sergipe, sendo um de Agronomia e outro de Pedagogia da Terra. A síntese desta dissertação se apresenta em artigo nesta coletânea, no qual registram-se importantes mudanças detectadas pelas próprias mulheres assentadas, durante e após sua participação nestes cursos. De acordo com a pesquisadora, as mulheres entrevistadas destacaram as mudanças em sua visão de mundo, a partir do acesso/participação nos cursos superiores.

Segundo a autora, um ponto importante destacado foi a atribuição a uma participação maior delas na comunidade, nas assembleias e nas reuniões de associações, por estarem

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estudando. As mulheres fazem uso do conhecimento científico adquirido nos cursos e passam a participar dos espaços de tomada de decisão. A participação nos cursos contribui para que elas ampliem sua capacidade de decisão e ajam mais por si próprias. A pesquisa aponta também que a “melhoria na convivência familiar é indicada pelas estudantes de Engenharia Agronômica como resultado do processo de estudo. Elas dizem que conversam mais com os pais, o marido, a família, e que estes passaram a acreditar mais nelas, pedindo sua opinião nas tomadas de decisões.” A dissertação de Mestrado comprovou que o acesso das mulheres assentadas à Educação Superior, no caso dos cursos pesquisados, lhes confere mais espaços de poder, tanto em casa, quanto na comunidade, aumentando a confiança em si mesmas, fazendo com que participem e sejam ouvidas, tornando-se mais autônomas. De acordo com Silva,

o acesso ao ensino superior e, consequentemente, ao conhecimento científico, tem assegurado mais respeito às estudantes junto às comunidades. ‘A comunidade me respeita e está muito feliz. Agora, quando eu chego, é a agrônoma que chega’ (aluna de Engenharia Agronômica). Isso é evidente também com as estudantes de Pedagogia que desdobram o conhecimento adquirido em ações práticas dentro do assentamento, além de fazer com que elas participem mais dos espaços políticos de tomada de decisão no assentamento. ‘Hoje tenho participado mais das assembleias e de reuniões coletivas’ (aluna do curso de Pedagogia). ‘Participo mais das reuniões e contribuo nos outros setores para o desenvolvimento do assentamento’ (aluna do curso de Pedagogia). Isto faz com que as alunas fortaleçam a sua identidade e autoestima, passem a expressar e defender seus direitos. (2011, p.146)

Este processo não se dá apenas nos cursos de nível superior, mas também em outros níveis de escolarização desenvolvidos pelo PRONERA. Há pesquisas concluídas sobre os positivos impactos da participação das mulheres no Programa, sendo muitas delas realizadas pelos próprios educandos, tanto no âmbito de Trabalhos de Conclusão de Cursos, quanto em Monografias de Especialização; como por exemplo, as realizadas a partir da ação do Programa no âmbito do Residência Agrária, conforme os dados encontrados na pesquisa sobre seus resultados, na Universidade Federal do Ceará, apresentados nesta coletânea no artigo de Elisa Pereira Bruziguessi.

Outra contribuição do PRONERA refere-se à criação de espaços para participação de jovens assentados em processos de escolarização formal, vinculados às suas perspectivas de construção de um novo espaço de inserção no meio rural. Desde o início do Programa até os dias atuais, foi-se percebendo uma mudança na faixa etária dos participantes nos seus cursos. Em função da carência das políticas públicas para esta população e da ausência de identificação com os projetos de futuro, que as poucas políticas existentes propõem, os cursos do PRONERA têm recebido turmas cada vez mais jovens.

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Este fato também é relevante ao se pensar nas contribuições do Programa à Educação do Campo, porque, conforme já afirmado em artigo sobre situação da juventude rural14, o processo de acumulação do capital no campo nos últimos dez anos tem impactado a vida dos jovens camponeses e gerado mudanças em seus desejos e projetos. Suas trajetórias de vida constituem formas de singularização em relação à geração de seus pais, que protagonizaram a luta contra o latifúndio e o grande capital desde os anos 1970.

Além do desequilíbrio entre produção e consumo, fazendo com que o produto do trabalho não seja suficiente para garantir o consumo familiar, o trabalho familiar é muitas vezes desvalorizado pelos jovens, porque não lhes proporciona renda própria para atender suas demandas de consumo, já que se encontram relativamente integrados ao modo de vida urbano e participam de um universo cultural globalizado.

Os cursos desenvolvidos pelo PRONERA, em parceria com os Movimentos Sociais e Sindicais do campo, ao adotar pedagogias atentas à subjetividade destes educandos, podem contribuir para a ressignificação das experiências socioculturais desses jovens, forjadas no trânsito campo-cidade-campo, entendendo a singularidade dentro das identidades coletivas construídas na luta pela terra e pela educação. (Sá, Freitas e Molina, 2010)

A Pesquisa de Avaliação Externa do PRONERA, executada pela Ação Educativa e descrita com mais detalhes no item 2.3 deste texto, registra que 95% dos jovens e adultos estudantes dos cursos do Programa querem prosseguir seus estudos, traduzindo uma visualização de futuro, uma esperança de construção de oportunidades, mesmo em meio a uma realidade de muitas dificuldades. Contrapor as expectativas positivas que os jovens rurais fazem de suas oportunidades de escolarização, à situação de violência e ausência de oportunidades de vida e emprego nas cidades, reforça a centralidade do campo como espaço de criação de novos patamares para construção/reconstrução da vida e da família.

As reflexões sobre a importância dos cursos específicos para a juventude camponesa considerarem a subjetividade dos educandos como elemento integrante das estratégias de transformação social, a serem elaboradas coletivamente por eles e seus educadores, nos processos formativos vivenciados nos cursos do PRONERA, encontra apoio no trabalho de

14 No trabalho citado, observa-se que o próprio conceito de juventude rural implica numa grande diversidade que está relacionada a contextos econômicos, sociais e políticos específicos, onde a idade não é o único critério definidor, incorporando novos elementos culturais e regras sociais que determinam o momento de transição entre as fases da vida. A construção dos projetos de vida dos jovens de origem rural deve ser compreendida de início, a partir das especificidades da família camponesa. É neste espaço que se desenrola o processo de integração do jovem no mundo adulto e a satisfação de suas próprias necessidades individuais. É pela mediação do contexto familiar que se tomam as decisões sobre as prioridades entre o trabalho e o estudo. (Sá, Freitas e Molina, 2010)

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Conceição Paludo (2001), intitulado Educação Popular: em busca de alternativas. Ela destaca a importância dos processos formativos contribuírem com o

aprofundamento da democracia cultural, política e econômica e para a construção de subjetividades que expressem racionalidades capazes de construir um nova hegemonia, que concretize uma nova forma de relacionamento dos homens consigo mesmo, entre si e com a natureza. Este último aspecto remete para a beleza e a complexidade de tal processo, porque, para evitar-se uma perspectiva classista reducionista, cuja meta seria a simples inversão dos sujeitos que dominam, é necessário ter presente a mediação entre classe e gênero, visto que, aspectos como etnia, gênero e religião e ecologia, bem como igualdade, liberdade e democracia remetem à humanidade como um todo, isto é, são problemas que exigem solução para poder viver-se num mundo efetivamente melhor. Ganham importância, portanto, além dos fatores macrossociais das relações escola-sociedade, os fatores microssociais (culturais, sociais, interpessoais) presentes nos processos formativos. (2001, p.75)

É necessário ressaltar que os resultados positivos encontrados pela Pesquisa devem-se ao fato da possibilidade da permanência nos processos educativos, nos diferentes níveis de escolarização executados pelo PRONERA aos jovens assentados, em função da garantia da reprodução social de seu núcleo familiar assegurado pelo acesso à terra, via Reforma Agrária. Os resultados encontrados no trabalho da Ação Educativa, reforçam, em diferentes aspectos, as conclusões da Pesquisa intitulada Impactos dos assentamentos: um estudo sobre o meio rural brasileiro, de Leite et alii (2004), ao desencadear mudanças de diferentes ordens nos territórios nos quais se instalam. Ainda que com muitas dificuldades, o assentamento, em relação à situação anterior desses jovens e suas famílias, amplia a garantia do acesso à geração de renda, à produção de alimentos não só para o autoconsumo mas também para os mercados próximos, a diversificação das pautas produtivas destas localidades, ampliando as perspectivas de futuro para esses jovens trabalhadores.

2. CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA NO QUE DIZ RESPEITO À ELABORAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS

2.1. Elevar a consciência a trabalhadores e alargar a esfera pública

A luta dos Movimentos Sociais e Sindicais, para levar até o fim a execução dos convênios e a conclusão da oferta dos cursos conquistados, faz avançar a consciência dos trabalhadores rurais sobre seu direito à educação e ao acesso ao conhecimento. O conjunto destas lutas,

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além de ampliar a consciência dos próprios assentados, tem contribuído para fazer avançar a compreensão da sociedade sobre esses trabalhadores como sujeitos portadores de direitos.

Analisadas em perspectiva, as contradições geradas para viabilização e execução das parcerias, com suas temporalidades variadas (entre dois e cinco anos, cada processo), e compreendidos em conjunto, os mais de 200 cursos formais ofertados pelo Programa, forçaram a constituição de instâncias de negociação, debates, posicionamentos, tensionamentos, onde se trazem as posições dos movimentos parceiros, das universidades, das Superintendências do INCRA.

A ação do PRONERA é provocadora de conflitos no sentido de instituição de novos espaços de disputa, de democratização da interlocução entre diferentes atores sociais. Analisados em conjunto, os processos e resultados desencadeados e produzidos pelos cursos nos diferentes níveis de formação executados, em função das estratégias adotadas para tal, desencadeiam também um processo de alargamento da esfera pública, abrindo caminho para novas transformações a serem trilhadas e consolidadas no âmbito da garantia real desses direitos.

Entre vários exemplos, merecem destaque as diferentes pautas do Grito da Terra, protagonizado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), nas quais tem estado presente, não só diferentes demandas da Educação na Reforma Agrária, mas também da Educação do Campo de maneira geral. Merece destaque ainda este processo de mudança demonstrada na Jornada de Lutas específicas do MST, de julho de 2009, denominada Em Defesa da Educação Pública e do PRONERA, realizada em 16 Estados da Federação.

O estabelecimento dos marcos legais é passo significativo na exigência do direito à educação dos povos do campo. As práticas desenvolvidas pelo PRONERA foram importantes contribuições para o avanço da legislação educacional, como, por exemplo, a conquista das Diretrizes Operacionais para Educação Básica nas Escolas do Campo e do Decreto 7.352/2010, porém, por si, insuficientes. É necessário forte trabalho da sociedade civil organizada, e também do Ministério Público, para pressionar os responsáveis do Poder Executivo, nas diferentes instâncias, a garantir a oferta da educação escolar para materializar este direito aos camponeses. Fazer cumprir a legislação conquistada exige continuidade da organização dos sujeitos coletivos do campo; pressão sobre os órgãos responsáveis; ampliação do imaginário da sociedade sobre a centralidade do desenvolvimento do território rural e da garantia dos direitos aos seus moradores, para efetiva promoção da igualdade e da justiça social no País.

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O conjunto de experiências concretas de formação de trabalhadores assentados, nos diferentes níveis de ensino e, particularmente, no âmbito da formação superior, se traduz na resistência cada vez mais intensa ao crescimento do PRONERA, especialmente quando avança na oferta de cursos que garantam à classe trabalhadora o acesso ao conhecimento em áreas que podem permitir acumular força e experiências concretas em direção oposta à esta concepção do campo apenas como negócio, tais como os casos dos cursos de Agronomia, por exemplo.

Nesta coletânea há relatos das várias ações judiciais impetradas contra o PRONERA, visando impedir o início de seus cursos. O Programa tem obrigado o Poder Judiciário a se posicionar a respeito de suas ações, em decorrência das várias ações interpostas contra ele, algumas vezes, pelo próprio Ministério Público Federal.

Reforçando a compreensão segundo a qual o Estado, para suprir desigualdades históricas no acesso aos direitos aos cidadãos deles excluídos, deve materializar intervenções capazes de garantir a estes mesmos cidadãos os direitos dos quais foram historicamente privados, o Judiciário tem se posicionado, defendendo a importância de políticas que promovam tais condições de superação. Neste sentido, foi proferida a sentença sobre o curso de Veterinária a ser ofertado pela Universidade Federal de Pelotas, que teve questionada sua constitucionalidade pelo Ministério Público Federal. Ao responder à crítica a ausência de isonomia das condições de acesso a tal curso, em função do ingresso por vestibular específico para os assentados, o Ministro Benjamin prolatou a seguinte sentença:

Políticas afirmativas, quando endereçadas a combater genuínas situações fáticas incompatíveis com os fundamentos e princípios do Estado Social, ou a estes dar consistência e eficácia, em nada lembram privilégios, nem com eles se confundem, pois em vez de funcionarem por exclusão de sujeitos de direitos, estampam nos seus objetivos e métodos a marca da valorização da inclusão, sobretudo daqueles aos quais se negam os benefícios mais elementares do patrimônio material e intelectual da Nação.

Há um aspecto relevante nos episódios envolvendo os cursos do PRONERA, cujas contradições que revelam podem também servir de fonte de conhecimento sobre a contribuição do Programa à Educação do Campo. Os grandes proprietários vinculados ao agronegócio trabalham no sentido de operar a desconstrução da ideia do direito à educação de que são portadores os sujeitos do campo, buscando transformar uma ação do Estado na perspectiva da garantia de um direito, via construção midiática, em ação que se configure como privilégio.

Conforme já demonstraram diferentes estudiosos do País, foram exatamente os grandes

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

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proprietários que historicamente se apropriaram do Estado brasileiro, operando-o com variadas estratégias a serviço da manutenção de seus interesses de acumulação de capital, de privatização do espaço público, a partir de suas ambições patrimoniais. Diferentes estudos apontam esta longa privatização do Estado brasileiro como um dos fatores que retardaram muito a constituição de uma esfera pública na sociedade nacional. Esta categoria pode ser entendia a partir da compreensão de Vera da Silva Telles, que assim a define:

[...] a esfera pública é o domínio em que as decisões políticas são justificadas por meio do debate crítico racional dos cidadãos, que aí exercem, na pluralidade de suas identidades singulares, a condição de igualdade formal assegurada pelo princípio democrático de soberania popular. O diálogo, a reflexão, o reconhecimento mútuo dos cidadãos e a capacidade de assimilar novos temas são os atributos da esfera pública que permitem incorporar demandas emergentes pela instituição de novos direitos. (2006,128)

Um dos principais aspectos a provocar tensões nas instituições que participam da execução dos cursos do PRONERA refere-se ao fato de que, como seu protagonismo é dado pelos Movimentos Sociais e Sindicais do campo, as ações educativas por eles pautadas têm como horizonte as práticas realizadas por sujeitos coletivos, o que se dá já a partir da própria demanda para seu ingresso nas universidades.

De acordo com as categorias da sociologia jurídica, as ações dos sujeitos coletivos de direito podem ser compreendidas como aquelas produzidas por um conjunto organizado de sujeitos que têm projetos e objetivos comuns e que se organizam para, coletivamente, lutar pela garantia de seus direitos, quer sejam estes já positivados ou ainda em processo de reconhecimento pelo sistema jurídico.

Souza Júnior ressalta que (2002, p.57), “o relevante para a utilização de sujeito, na designação dos Movimentos Sociais, é a conjugação entre o processo das identidades coletivas como forma de suas autonomias, e a consciência de um projeto coletivo de mudança social, a partir das próprias experiências.” No caso da Educação do Campo, são exatamente as ações protagonizadas por esses sujeitos coletivos que têm provocado e desencadeado processos que contribuem para a promoção de mudanças na realidade e nas próprias práticas educativas das universidades.

A presença marcante dos principais Movimentos Sociais e Sindicais do campo na Comissão Pedagógica Nacional; nas Comissões Estaduais; na gestão dos cursos nas universidades, por meio das Comissões Político Pedagógicas, ainda que com muita heterogeneidade entre as diferentes instituições de ensino superior, é uma das características da execução do Programa.

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As diferentes mudanças e ampliações do âmbito de atuação do Programa em períodos curtos, em se considerando o ritmo tradicional de implantação/avaliação/alteração de uma política pública, não podem ser vistas separadamente da presença dos Movimentos Sociais e Sindicais nas distintas instâncias de execução do Programa. Sua presença garantiu permanentemente o tensionamento, provocando mudanças e promovendo ajustes no sentido de aproximar as suas ações das demandas existentes nos assentamentos.

2.2. Promover pesquisas, tais como a Avaliação Externa do Programa e a Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PNERA), e organizar seminários nacionais e regionais que ampliam a presença do tema em várias áreas de ação do Estado

2.2.1. A primeira análise de seus resultados: a realização da Pesquisa Nacional de Avaliação Externa do PRONERA, executada pela Ação Educativa

Com o objetivo de avaliar os resultados produzidos pelos primeiros anos do Programa, foi realizada, em 2003, a Pesquisa Nacional de Avaliação Externa do PRONERA, coordenada pela Ação Educativa. Esta Pesquisa, através da construção de 15 indicadores de sustentabilidade, analisou os resultados quantitativos e qualitativos produzidos pelo Programa, no período de 1998-2002, tanto na vida pessoal dos trabalhadores rurais dele participantes, quanto para o conjunto do assentamento onde são desenvolvidas suas ações de escolarização.

Os resultados encontrados por esta Pesquisa mostraram que, apesar das enormes dificuldades em termos de liberação de recursos durante os quatro primeiros anos de sua execução, no período do governo FHC, o Programa alcançara êxito, em diferentes âmbitos. Estes resultados foram publicados no livro A Educação na Reforma Agrária em perspectiva: uma análise do PRONERA, lançado em 2004, em parceria da Ação Educativa com o NEAD, que marcou a primeira produção do próprio Programa, na perspectiva de sistematizar as ações e conhecimentos produzidos por e a partir de suas práticas formativas.

Os dados da Pesquisa mostraram o elevado grau de aprovação dos diferentes cursos promovidos pelo PRONERA, avaliados positivamente por cerca de 80% dos educandos e monitores entrevistados. A percepção majoritária dos educandos é de que os cursos contribuem para sua formação como cidadãos e trabalhadores, bem como para seu engajamento comunitário e político.

A pesquisa comprovou que, além da própria elevação da escolarização formal dos assentados, o acesso a maiores níveis de educação tem contribuído para desencadear

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mudanças também nos processos de organização da produção. A ampliação dos cursos técnicos profissionalizantes foi apontada como fator positivo, no sentido de ampliar as possibilidades de promoção da sustentabilidade das áreas reformadas.

Outro item relacionado à sustentabilidade diz respeito à continuidade e à permanência das ações de escolarização promovidas junto aos assentados. A Avaliação Externa comprovou o acerto do Programa quanto à estratégia de formar educadores das próprias comunidades assentadas. Por meio das entrevistas e de questionários, a Pesquisa comprovou que assentados que fizeram os cursos de Magistério e Pedagogia da Terra do PRONERA estão trabalhando, em sua maioria, com Educação do Campo, seja nos próprios cursos do Programa ou nas escolas dos assentamentos, inseridos nas redes municipais e estaduais de ensino.

Porém, a abrangência alcançada pelas ações do PRONERA no período 1998-2002 ficou muito aquém das necessidades educativas da população assentada. A Pesquisa mostrou que, em 2002, o Programa estava presente em apenas 14% dos assentamentos então existentes. O Sistema de Informações dos Projetos de Assentamento da Reforma Agrária do INCRA não dispunha de dados atualizados de escolaridade para o conjunto da população jovem e adulta que permitissem aferir com rigor os índices de cobertura dos cursos de alfabetização de jovens e adultos promovidos pelo PRONERA.

Em outros fatores, a Pesquisa indicou providências prioritárias para a qualificação das ações do Programa, sendo que dentre as mais urgentes encontrava-se a aferição precisa da demanda potencial e efetiva de alfabetização; elevação de escolaridade e qualificação profissional dos jovens e adultos assentados, na perspectiva de estimar o volume de recursos necessários para a execução da política e para a construção de novas parcerias que garantissem sua execução, proporcionalmente, ao tamanho da demanda existente.

2.2.2. Da Pesquisa Nacional de Avaliação Externa do PRONERA à Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PNERA

Partindo dos resultados apontados na Pesquisa da Ação Educativa, e considerando a experiência do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), buscou-se uma parceria técnica com este Instituto, com vistas a subsidiar a elaboração de um planejamento estratégico para a execução de uma Pesquisa de Diagnóstico da Oferta e da Demanda Educacional nos Assentamentos da Reforma Agrária, que ficou conhecida como Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PNERA.

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Diferentes fatores fizeram da PNERA um acontecimento único, cujas novidades merecem registro. Pela primeira vez na história do país, fez-se um levantamento censitário das condições educacionais nas áreas de Reforma Agrária, de dados de oferta e demanda educacional nos diferentes níveis de escolarização. Também é marco na realização da PNERA a articulação interinstitucional que a viabiliza: não haviam ainda trabalhado de maneira articulada os Ministérios da Educação e do Desenvolvimento Agrário, na promoção da Educação no âmbito da Reforma Agrária.

Para além da dimensão e dos próprios dados coletados em si, a contribuição do PRONERA na realização da PNERA traduz-se no exercício de dar centralidade a um tema relevante para a democratização do acesso à educação. Arroyo observa que uma das funções centrais que deve ter uma política de Educação do Campo é incentivar e criar condições para superação do desconhecimento histórico sobre a realidade educacional no campo brasileiro. É fazer com que “ultrapassados olhares e imaginários sobre o campo, e especialmente sobre educação, sejam confrontados com dados, pesquisas e análises sérias. Assumi-la na agenda pública exigirá como uma primeira tarefa estimular seu conhecimento. Pôr em ação as agências públicas capazes de pesquisar, analisar, diagnosticar com especial atenção esta realidade”. (2004, p.92)

De acordo com o Relatório Final da Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária, foram realizadas 24.764 entrevistas, cujo quantitativo distribui-se da seguinte maneira: 6.338 presidentes de associações; 8.680 dirigentes de escolas e 10.200 famílias assentadas. Este conjunto de entrevistas realizou-se num universo de 5.595 assentamentos localizados em 1.651 municípios em todo território nacional e localizou 8.679 escolas. Em função do volume de dados produzidos e dos objetivos deste artigo, não é possível apresentar neste espaço todos os resultados da PNERA, que foram amplamente divulgados à época de sua realização. Foram produzidos diferentes materiais com a sistematização destes dados e microdados, cujos conteúdos, na íntegra, podem ser acessados no endereço eletrônico do INEP.

Importa destacar aqui as informações que a PNERA produziu em relação aos seus maiores objetivos: espelhar a situação da oferta e da demanda educacional nas áreas de Reforma Agrária. A imagem que se refletiu expôs a histórica ausência do Estado na garantia do direito à Educação aos sujeitos do campo: extrema precariedade no que havia de oferta educacional, tanto no que dizia respeito à formação de educadores, atuando sem a mínima formação legal exigida para os diferentes níveis de escolarização, quanto às condições de infraestrutura, com a existência de “escolas” sem energia, sem banheiro, com teto de zinco, em galpões, paióis e currais...

Embora, em diferentes medidas, já houvesse certo senso comum sobre a precariedade da

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situação, o fato de haver a confirmação científica produzida por um Censo Nacional que desnudou a privação do direito à escola de crianças, jovens e adultos assentados, provocou diferentes tipos de impacto e repercussões, tanto para dentro dos órgãos governamentais, quanto das organizações sociais e sindicais dos trabalhadores do campo.

No âmbito das organizações sociais e sindicais, ela provocou a realização de vários encontros entre os setores de Educação das organizações e suas direções, com o objetivo de conhecer e estudar o significado que os dados coletados traduziam. Foram analisadas e debatidas as consequências práticas, imediatas e de longo prazo, que a ausência da educação escolar provoca na população e no desenvolvimento dos assentamentos. A esses estudos se seguiu, em várias atividades de organização e pressão dos trabalhadores, a inclusão específica das lutas pelo direito à educação escolar. As mobilizações e lutas pelas escolas nos assentamentos têm se ampliado desde então.

No trabalho de doutorado da pesquisadora Liliane Oliveira, defendida na Universidade de Brasília, em 2008, constata-se que a PNERA inaugurou uma nova fase na forma do INEP planejar suas pesquisas, produzir suas estatísticas e encaminhar seus estudos e análises sobre questões relacionadas com a Educação do Campo, destacando o tema na agenda do Órgão e, por conseguinte, nos encaminhamentos do próprio MEC. A pesquisadora afirma que

a realização da Pnera 2004 foi determinante na introdução, no questionário do Censo Escolar 2005 da pergunta 36, com o seguinte texto: “A escola está localizada em área de assentamento?”. Esta pergunta foi mantida no questionário do Censo Escolar 2006, que representou a última edição do levantamento do Inep onde a unidade de coleta seria a escola. Vale registrar que essa aparente pequena modificação, diante de um levantamento do porte do Censo Escolar, que abrange um universo em torno de 265 mil estabelecimentos de Educação Básica e o atendimento de aproximadamente 56 milhões de alunos, teve impactos significativos no processo de realização do Censo, exigindo adaptações na etapa de treinamento das equipes de estatística das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, parceiras do INEP para a realização do Censo Escolar, fazendo com que o tema da Educação na Reforma Agrária fosse inserido em suas agendas; nos programas de entrada de dados; na estrutura das tabelas de armazenamento dos dados; nos programas de crítica de consistência interna dos arquivos. (2008. p.145)

Após estas mudanças, também no Censo Escolar 2007 (Educacenso), que inaugurou uma nova fase nas estatísticas do INEP, com a realização do levantamento por aluno, foi intro-duzida a possibilidade de identificar as escolas localizadas em Assentamentos da Reforma Agrária, pois permaneceu, ainda como desdobramento da PNERA, neste novo método de coleta, a pergunta que considera a localização diferenciada do estabelecimento de ensino

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da Educação Básica, independente do nível ou modalidade de ensino ofertado. Conforme conclui a pesquisadora na sua tese, essa decisão incluiu, de forma definitiva, a questão da educação na Reforma Agrária nas estatísticas do INEP, permitindo dessa forma qualquer estudo junto às escolas no recorte das informações nas áreas de Assentamento, o que permite a realização de diagnósticos e estabelecimentos de políticas específicas para esses territórios. (2008, p.146)

2.2.3. A promoção de Seminários Nacionais e Regionais

A história do PRONERA nestes 13 anos pode também ser contada a partir dos vários eventos de Educação do Campo, por ele promovidos ou apoiados, com diferentes tipos de desdobramentos. Destacam-se, aqui, alguns dos mais importantes eventos nacionais e regionais protagonizados pelo Programa:

I Seminário Nacional do PRONERA – Brasília (DF) – Abril/2003

I Encontro de Educação do Campo e da Floresta da Região Norte – Rio Branco (AC) – Novembro 2003

II Seminário Nacional do PRONERA – Brasília (DF) – Maio/2004

I Encontro do PRONERA na Região Sudeste – Vitória (ES) – Outubro/2004

II Encontro de Educação do Campo e da Floresta da Região Norte – Manaus (AM). Novembro/2004

I Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo – Brasília (DF) – Setembro/2005

III Seminário Nacional do PRONERA – Brasília (DF) – Novembro /2007

I Encontro Nacional de Educação Profissional do PRONERA – Brasília (DF) – 2008

IV Seminário Nacional do PRONERA – Brasília/DF – Novembro/2010.

Além destes foram também realizados, nesses anos, dezenas de encontros estaduais e municipais, gerando espaços de debate destas temáticas. O próprio processo de organização e execução deste conjunto de eventos, protagonizado pelos Movimentos e pelas universidades parceiras, representou um espaço de formação e difusão dos princípios e práticas da Educação do Campo.

Cabe destacar aqui a importância, enquanto processo formativo, que a organização destas atividades teve para os servidores do INCRA, que trabalham diretamente no Programa, chamados de Asseguradores do PRONERA, e também para vários outros técnicos da

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Instituição, que, embora não estivessem diretamente vinculados ao Programa, em suas atividades funcionais na Casa, compreenderam a importância da Educação para o êxito das missões da Autarquia, seja no que diz respeito à Assistência Técnica; à melhor utilização dos créditos; à preservação ambiental das áreas reformadas, entre outras.

A realização destes eventos gerou desdobramentos de diferentes ordens. O PRONERA, ao promover este conjunto de atividades, contribuiu para o espraiamento da bandeira da Educação do Campo, não só entre os Movimentos Sociais e Sindicais, quanto entre as instâncias do Estado, nos diferentes níveis governamentais. Estes eventos deram visibilidade e mostraram a qualidade e a potencialidade das ações de escolarização desenvolvidas nas áreas de Reforma Agrária. Estes processos, junto com as lutas dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo e das universidades parceiras, acumularam forças para o avanço da Educação do Campo para outras áreas e instâncias de governo.

2.3. Subsidiar a elaboração de novos Programas e contribuir com a consolidação da Educação do Campo como política de Estado

A experiência acumulada pelo PRONERA, seja no âmbito das próprias ações de escolarização, elaboradas e desenvolvidas a partir da Alternância, seja na estratégia de gestão e participação dos Movimentos Sociais e Sindicais no desenho, construção e execução do Programa, tornaram-se referência para a concepção de novas políticas de Educação do Campo.

Além daquelas mudanças induzidas a partir da realização da PNERA, sua experiência também subsidiou a elaboração de outras políticas, entre as quais, destacam-se o Programa Nacional de Educação do Campo: Formação de Estudantes e Qualificação de Profissionais para Assistência Técnica, executado pelo INCRA, e o PROCAMPO – Programa de Apoio às Licenciaturas em Educação do Campo, executado pelo Ministério da Educação.

O Programa Nacional de Educação do Campo, Formação de Estudantes e Qualificação de Profissionais para Assistência Técnica foi concebido a partir da necessidade de formar especialistas das Ciências Agrárias para atuação nas áreas de Reforma Agrária e Agricultura Familiar. Em função de sua principal estratégia de execução, a inserção e a permanência dos estudantes universitários nos assentamentos e áreas de Agricultura Familiar por extensos períodos, adotou-se também como sua denominação Programa Residência Agrária (PRA).

No processo de construção desta política, para as universidades que fariam parte da primeira experiência do Residência Agrária, explicitava-se a intencionalidade do Programa de ampliar e fortalecer a rede de instituições universitárias já envolvidas com a produção

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de conhecimento na ótica da Educação do Campo. Rede esta cuja tessitura vinha se fazendo a partir da inserção das instituições de ensino superior nos cursos do PRONERA, especialmente aqueles direcionados à formação de educadores do campo.

É, aliás, este processo que em muito contribui para a percepção da necessidade de intensificar e, até mesmo, em muitas áreas, de introduzir nova concepção de formação para os trabalhos de apoio à organização da produção camponesa, na perspectiva de efetivar ações propostas pelos educadores que vinham se formando nos cursos do PRONERA.

De acordo com os princípios da Educação do Campo, por sua compreensão de Educação como processo de formação humana, que ocorre em diferentes esferas e não apenas na dimensão escolar, fazia-se necessária a construção de trabalhos articulados entre os processos de formação com os processos de apoio à organização da produção nas áreas de acampamentos, assentamentos e Agricultura Familiar. Na pesquisa de Mestrado desenvolvida por Bruziguessi, a partir da qual produziu-se artigo para esta coletânea, constata-se que

o Programa Residência Agrária não surge por simples vontade política, ele é resultado de um histórico de luta dos Movimentos Sociais do campo e de profissionais comprometidos com estes sujeitos. O PRA nasce da conquista do PRONERA, sendo esta sua fonte propiciadora e uma de suas fontes inspiradoras juntamente com a Pedagogia da Alternância e com os Estágios Interdisciplinares de Vivência (EIV), organizados pelos movimentos estudantis. Estando o Programa Residência Agrária no âmbito das Políticas Públicas de Educação do Campo, ele compartilha com suas ideologias e intencionalidades, mas, com a especificidade de ser voltado mais diretamente à formação de um público particular: profissionais das Ciências Agrárias que trabalham ou desejam trabalhar com ATER em áreas de Agricultura Familiar e assentamentos de Reforma Agrária. Portanto, os ideais deste Programa são abrangentes e transformadores, assim como os da Educação do Campo e do PRONERA. (2011, p.292)

Outro importante Programa a se inspirar no PRONERA é o PROCAMPO – Programa de Apoio às Licenciaturas em Educação do Campo, executado pelo Ministério da Educação. Estas Licenciaturas objetivam formar e habilitar profissionais na Educação Fundamental e Média que ainda não possuam a titulação mínima exigida pela legislação educacional brasileira em vigor, quer estejam em exercício das funções docentes ou atuando em outras atividades educativas não escolares junto às populações do campo. A Licenciatura em Educação do Campo tem como estratégia a formação por área de conhecimento, cuja intencionalidade maior é contribuir com a construção de processos capazes de desencadear mudanças na lógica de utilização e, principalmente, de produção do conhecimento no campo.

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As experiências acumuladas de execução de cursos de formação de educadores do campo, sejam os cursos Normal de Nível Médio, e especialmente os de Pedagogia da Terra, apoiados pelo PRONERA, foram muito importantes para a elaboração das Diretrizes do PROCAMPO. A existência anterior dos cursos de Pedagogia da Terra, com os êxitos e dificuldades por eles vivenciados, serviu de lastro para as universidades que se dispuseram a participar desses novos cursos, existindo, em abril de 2011, 30 universidades ofertando a Licenciatura em Educação do Campo.

Considera-se que uma das grandes contribuições dadas pelo PRONERA a esse processo de expansão da Educação Superior aos sujeitos do campo refere-se à consolidação da oferta da Educação Superior a partir da Alternância. Embora a Alternância fosse comum na oferta da Educação Básica, em função da antiga experiência das Escolas Famílias Agrícolas, no Brasil, não havia acúmulo anterior relevante desta modalidade de oferta na Educação Superior. Ao fazê-lo, em diferentes áreas do conhecimento, com seus cursos de Pedagogia da Terra, História, Ciências Agrárias, Geografia, Artes, Direito, Agronomia e Enfermagem, o PRONERA foi consolidando a possibilidade e exequibilidade desta modalidade de oferta. A tal ponto que, entre as universidades atualmente ofertantes da Licenciatura em Educação do Campo, existem hoje aquelas que já têm a oferta deste curso de Educação Superior de forma permanente, com ingresso anual, na modalidade de Alternância, como é o caso das federais de Minas Gerais, Brasília, Santa Catarina, Pará e Campina Grande.

Essas diferentes ocorrências demonstram os desdobramentos alcançados pelo conjunto das ações do PRONERA. De fato, conforme observa Celi Taffarel,

é inegável que o PRONERA contribuiu e deve continuar contribuindo com a construção de políticas públicas de expansão e acesso à Educação no Campo, enquanto uma política de Estado e não somente uma política de governo, até consolidarmos a Reforma Agrária massiva, redistributiva, nas mãos da classe trabalhadora. O PRONERA aponta para a expansão da educação para a totalidade dos sujeitos do campo, inclusive para outras categorias além dos assentados, assegurando em parceria com o MEC a construção de uma rede de escolas, os equipamentos e os recursos necessários ao seu funcionamento. (2010, p.1)

3. CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA, NO QUE DIZ RESPEITO AO TERCEIRO PONTO DA TRÍADE – EDUCAÇÃO

3.1. Desencadear mudanças nas universidades no que diz respeito às estratégias de ensino e práticas formativas

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A realização dos projetos educativos apoiados pelo PRONERA, nos diferentes níveis de escolarização, exige, necessariamente, a parceria entre Movimentos Sociais e Sindicais do campo, presentes nas áreas de Reforma Agrária, com as universidades públicas federais e estaduais, escolas agrotécnicas, institutos federais, escolas família agrícola e institutos educacionais. Estas parcerias foram capazes de mobilizar, na última década, centenas de professoras e professores, pesquisadoras e pesquisadores destas instituições, que, a partir das ações de ensino no Programa, desenvolveram outros diferentes tipos de vínculos e projetos com as comunidades assentadas, tanto no âmbito da pesquisa quanto da extensão.

O grau de comprometimento que se estabeleceu entre muitos docentes que atuam no PRONERA e as condições de vida/luta das comunidades das áreas de Reforma Agrária gerou mudanças nas práticas e pautas de pesquisa destes. Em muitos locais, estas mudanças extrapolaram o nível individual, alcançando diferentes níveis de impacto institucional. Em texto escrito à época dos dez anos do Programa, fazendo um balanço de suas intervenções no Estado da Bahia, Celi Taffarel afirma que

o PRONERA suscita um reordenamento na própria universidade, que tem apresentado avanços, inclusive para a reformulação dos Projetos Pedagógicos dos cursos, reorientando concepções teórico-metodológicas, matrizes curriculares das universidades. O PRONERA tem posto em questão as experiências da universidade no seu tripé ensino, pesquisa e extensão, potencializando orientações no comportamento intelectual do professor universitário que se vê desafiado a enfrentar questões não apenas de ensino, pesquisa e extensão, mas também a enfrentar as questões colocadas à sociedade em geral, como é a questão da Reforma Agrária.(2010, p.1)

Os artigos que analisam os Cursos de Pedagogia da Terra, nesta coletânea, como, por exemplo, os de Antunes Rocha e Kalife Negrão, fazem referência continuada às diferentes estratégias de gestão e acompanhamento dos mesmos, por parte dos Movimentos Sociais que demandam sua execução, especialmente o MST. De acordo com os relatos, uma das ferramentas de acompanhamento que tem contribuído em larga medida para, se não provocar diretamente mudanças na lógica de ação destes departamentos, pelo menos, instituir espaços de tensão nos quais se criam condições de debate e politização das diferentes compreensões presentes no processo, são as Comissões de Acompanhamento Político Pedagógico, que devem reunir os coordenadores do curso de Pedagogia da Terra, representação dos educandos e docentes, e integrantes do próprio Movimento.

A existência deste espaço, cuja periodicidade de encontros é diferente em cada parceria do curso de Pedagogia da Terra, apresenta uma homogeneidade: por si só, sua existência

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provoca reflexões na lógica tradicional de funcionamento da maioria das universidades, nas quais os espaços de decisão coletiva e representação discente são, em grande medida, restritos à existência formal.

A proposta de criação destes coletivos e a real ocupação destes espaços pelos integrantes do Movimento fazem com que aí aflorem diferentes tensões durante a execução dos cursos superiores. Tensões que perpassam vários aspectos: a elaboração do próprio Projeto Político Pedagógico dos cursos, na definição de quais serão seus conteúdos; a forma de socialização deles; as estratégias de avaliação dos aprendizados proporcionados; a intensidade do protagonismo real destes educandos “tolerada” pelas universidades.

Deve-se destacar ainda outra relevante contribuição que o acúmulo dos cursos desenvolvidos, em função da presença e da participação dos Movimentos Sociais e Sindicais, ocasionou, no que diz respeito às mudanças em várias estratégias de organização escolar e do trabalho pedagógico. A ênfase recai na valorização da utilização de novas formas de uso e produção do conhecimento, que, ao mesmo tempo em que é apreendido pelos educandos, provoca também o surgimento de posturas mais atuantes e comprometidas e a consolidação de princípios fecundos na vida e na escola.

Partindo do acúmulo teórico e prático já existente, conhecido como Pedagogia do Movimento, espraiou-se para muitos cursos do PRONERA o cultivo de alguns princípios, entre os quais se podem mencionar: o protagonismo dos educandos nos processos formativos; o estímulo à sua auto-organização; a ampla participação na gestão desses processos; as mudanças nas estratégias de organização e seleção dos componentes curriculares; a pesquisa como princípio educativo.

Nestes 13 anos de sua execução, nos mais de 200 cursos realizados, a partir do PRONERA acumulou-se preciosa experiência pedagógica. Quer seja no âmbito da organização escolar e do método do trabalho pedagógico, quer seja nas novas estratégias e práticas de pesquisas coletivas, orientadas por demandas e interesses comuns, que exigem a articulação entre diferentes áreas do conhecimento para a resolução de problemas concretos trazidos por seus educandos.

O potencial teórico e prático destas experiências para os processos de ensino aprendizagem não foi ainda sistematizado em um único trabalho, havendo importantes registros já produzidos por teses e dissertações sobre o Programa, porém, a partir de recortes das diferentes dimensões das práticas pedagógicas, protagonizadas pelos Movimentos Sociais e Sindicais do campo, em diversas áreas do conhecimento.

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

Mônica Castagna Molina e Sonia Meire Santos Azevedo de Jesus

Uma destas áreas refere-se às práticas acumuladas no âmbito da formação de educadores do campo. Há, neste aspecto, um conjunto significativo de dissertações e teses produzidas a partir dos cursos do Programa, cuja relação encontra-se anexa. As experiências vivenciadas nos cursos de Magistério e Pedagogia da Terra têm gerado espaços práticos e teóricos de acumulação de experiência e produção de reflexão sobre as estratégias formativas focadas no sujeito camponês, vinculadas a um projeto de campo, de sociedade, de ser humano.

Em sua dissertação de Mestrado, a pesquisadora Rosimere Scalabrini teve como objeto de análise a relação teoria-prática em curso de formação de educadores do PRONERA, analisando a intricada teia dos desafios do acesso ao conhecimento e das necessidades de transformação das precárias condições de vida dos assentados do Pará, compreendendo estes desafios, como parte da totalidade maior que os contém.

A referida dissertação analisa, detalhadamente, o processo de formação de educadores do campo realizado durante a vivência no Magistério da Terra, (2005-2008) executado pela UFPA, em parceria com Movimentos Sociais e Sindicais da região. Entre outras riquezas da experiência em análise, destaca-se o fato de que aqueles educandos em formação atuavam, simultaneamente, como educadores em suas comunidades rurais de origem, em um Projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos, também vinculado ao PRONERA. Esta articulação entre estes dois projetos de Educação de Jovens e Adultos demanda ênfase no registro, é uma das contribuições do PRONERA à Educação do Campo no País. A sua experiência de articulação entre a alfabetização de jovens e adultos e a continuidade de seus processos formativos é bastante exitosa, no sentido de ser capaz de garantir que não se percam os acúmulos alcançados nos processos de escolarização de jovens e adultos, permeados de tantas dificuldades, conforme ampla descrição existente na área de EJA.

O PRONERA logrou alcançar experiência ímpar na articulação da alfabetização com a continuidade da escolarização, em função do número de assentados que por meio dele se alfabetizaram e também seguiram o processo de escolarização formal na Educação de Jovens e Adultos. Há, na história do Programa, belos registros e depoimentos de docentes das universidades que puderam acompanhar a trajetória escolar de educandas(os) assentados(as) que vivenciaram pelo PRONERA seus processos formativos da EJA à Educação Superior.

Conforme já afirmado no item sobre as contribuições do PRONERA para maior escolarização dos jovens e mulheres, no caso da formação de educadores do próprio assentamento, cabe também a ressalva de que a permanência destes assentados (tanto dos futuros educadores, quanto daqueles por eles alfabetizados), nos processos de escolarização contínua, de longa

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

Mônica Castagna Molina e Sonia Meire Santos Azevedo de Jesus

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de duração, só se torna possível em função de ambos os grupos terem alcançado, em alguma medida, maior estabilidade para sua reprodução social, conquista em função do acesso à terra nas áreas de Reforma Agrária. Esse fato reafirma a centralidade desta política pública como uma das condições estruturais para a promoção de mudanças efetivas nas condições socioeconômicas no meio rural do País.

A reflexão sobre as estratégias formativas desenvolvidas no Magistério em análise recupera valores e repõe o foco teórico sobre a efetiva construção da relação teoria-prática, nas estratégias formativas baseadas em Tempo Escola e Tempo Comunidade.

Tem-se percebido um reducionismo da centralidade da ideia da Alternância, desvinculando-a do que se compreende ser um dos seus principais objetivos: trazer a realidade do campo como matéria central dos processos educativos. A construção da relação teoria-prática não se dá, apenas, pela existência de Tempo Escola e Tempo Comunidade. Reforça a experiência em análise que a intencionalidade é condição fundamental para esta vinculação.

No âmbito das reflexões sobre os desafios necessários para uma mudança no modelo hegemônico de desenvolvimento do campo, cujas transformações no sentido almejado da emancipação social só poderão ser obra dos próprios trabalhadores, a experiência confirma as possibilidades de práticas educativas críticas serem capazes de contribuir com a promoção da autonomia dos sujeitos, como construtores desta nova história.

Apesar do intenso trabalho requerido para a materialização dos ideais do projeto político pedagógico do curso, constata-se, por vários resultados colhidos no trabalho de campo, que a estratégia formativa alcançou significativos êxitos na tarefa a que se havia proposto. Ao término do Magistério da Terra, alcançou-se não só a elevação do nível de escolarização formal dos assentados(as) que participaram dele, mas, principalmente, conseguiu-se também formar novos agentes de transformação do meio rural, no sentido da busca de sua maior autonomia e sustentabilidade.

Os resultados da pesquisa confirmam a importância da concepção de educação e de formação de educadores trabalhadas pelo curso, no sentido de contribuir com a promoção do desenvolvimento dos assentamentos: diferentes sujeitos envolvidos no Magistério da Terra em análise – sejam eles do Incra, da Universidade, dos Movimentos Sociais e Sindicais parceiros, dos membros das comunidades de origem dos educandos –, depuseram, em entrevistas à pesquisadora, acerca das transformações pelas quais passaram aqueles que participam do curso. Entre tantos belos depoimentos coletados por Scalabrini, merece destaque a fala de um dos protagonistas deste processo:

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As pessoas que passaram pelo PRONERA não são mais as mesmas. Vemos os resultados nos assentamentos, quando fazemos qualquer reunião para discutir sobre crédito, estrada, ponte, construção da escola etc. Essas pessoas conseguem contribuir mais e inclusive desenvolvem um papel de animadoras, mobilizando a participação de outras pessoas da comunidade. Elas, inclusive, conseguem gerir melhor um projeto econômico em sua propriedade. Isso é importante, porque não vemos uma sociedade sem a participação efetiva nas tomadas de decisão pelo povo. (2008, p.110)

3.2. Induzir a rearticulação do ensino; pesquisa e extensão e promover novos espaços/estratégias de produção de conhecimento a partir dos sujeitos coletivos

A realização dos projetos educativos apoiados pelo PRONERA, nos diferentes níveis de escolarização, exige, necessariamente, a parceria entre Movimentos Sociais e Sindicais do campo, presentes nas áreas de Reforma Agrária, com as universidades públicas federais e estaduais, escolas agrotécnicas, institutos federais, escolas família agrícola e institutos educacionais. Estas parcerias foram capazes de mobilizar, na última década, centenas de professoras e professores, pesquisadoras e pesquisadores destas instituições, que, a partir das ações de ensino no Programa, desenvolveram outros diferentes tipos de vínculos e projetos com as comunidades assentadas, tanto no âmbito da pesquisa quanto da extensão.

O grau de comprometimento que se estabeleceu entre muitos docentes que atuam no PRONERA e as condições de vida/luta das comunidades das áreas de Reforma Agrária gerou mudanças nas práticas e pautas de pesquisa destes. Em muitos locais, estas mudanças extrapolaram o nível individual, alcançando diferentes níveis de impacto institucional. Em texto escrito à época dos dez anos do Programa, fazendo um balanço de suas intervenções no Estado da Bahia, Celi Taffarel afirma que

o PRONERA suscita um reordenamento na própria universidade, que tem apresentado avanços, inclusive para a reformulação dos Projetos Pedagógicos dos cursos, reorientando concepções teórico-metodológicas, matrizes curriculares das universidades. O PRONERA tem posto em questão as experiências da universidade no seu tripé ensino, pesquisa e extensão, potencializando orientações no comportamento intelectual do professor universitário que se vê desafiado a enfrentar questões não apenas de ensino, pesquisa e extensão, mas também a enfrentar as questões colocadas à sociedade em geral, como é a questão da Reforma Agrária.(2010, p.1)

Os artigos que analisam os Cursos de Pedagogia da Terra, nesta coletânea, como, por exemplo, os de Antunes Rocha e Kalife Negrão, fazem referência continuada às diferentes estratégias de gestão e acompanhamento dos mesmos, por parte dos Movimentos Sociais

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que demandam sua execução, especialmente o MST. De acordo com os relatos, uma das ferramentas de acompanhamento que tem contribuído em larga medida para, se não provocar diretamente mudanças na lógica de ação destes departamentos, pelo menos, instituir espaços de tensão nos quais se criam condições de debate e politização das diferentes compreensões presentes no processo, são as Comissões de Acompanhamento Político Pedagógico, que devem reunir os coordenadores do curso de Pedagogia da Terra, representação dos educandos e docentes, e integrantes do próprio Movimento.

A existência deste espaço, cuja periodicidade de encontros é diferente em cada parceria do curso de Pedagogia da Terra, apresenta uma homogeneidade: por si só, sua existência provoca reflexões na lógica tradicional de funcionamento da maioria das universidades, nas quais os espaços de decisão coletiva e representação discente são, em grande medida, restritos à existência formal.

A proposta de criação destes coletivos e a real ocupação destes espaços pelos integrantes do Movimento fazem com que aí aflorem diferentes tensões durante a execução dos cursos superiores. Tensões que perpassam vários aspectos: a elaboração do próprio Projeto Político Pedagógico dos cursos, na definição de quais serão seus conteúdos; a forma de socialização deles; as estratégias de avaliação dos aprendizados proporcionados; a intensidade do protagonismo real destes educandos “tolerada” pelas universidades.

Deve-se destacar ainda outra relevante contribuição que o acúmulo dos cursos desenvolvidos, em função da presença e da participação dos Movimentos Sociais e Sindicais, ocasionou, no que diz respeito às mudanças em várias estratégias de organização escolar e do trabalho pedagógico. A ênfase recai na valorização da utilização de novas formas de uso e produção do conhecimento, que, ao mesmo tempo em que é apreendido pelos educandos, provoca também o surgimento de posturas mais atuantes e comprometidas e a consolidação de princípios fecundos na vida e na escola.

Partindo do acúmulo teórico e prático já existente, conhecido como Pedagogia do Movimento, espraiou-se para muitos cursos do PRONERA o cultivo de alguns princípios, entre os quais se podem mencionar: o protagonismo dos educandos nos processos formativos; o estímulo à sua auto-organização; a ampla participação na gestão desses processos; as mudanças nas estratégias de organização e seleção dos componentes curriculares; a pesquisa como princípio educativo.

3.2. Induzir a rearticulação do ensino; pesquisa e extensão e promover novos espaços/estratégias de produção de conhecimento a partir dos sujeitos coletivos

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As experiências acumuladas nestes 13 anos de execução do conjunto dos cursos do PRONERA, ainda que com muita heterogeneidade entre eles, permitem perceber o surgimento e a estruturação de novos espaços de relação no interior das universidades. Sá observa que, em resposta à demanda pela recuperação da responsabilidade social da Universidade, é necessária a construção de um novo padrão de produção de conhecimento, interativo e transdisciplinar, com inserção social, produzido em sistema aberto e a partir de relações sociopolíticas em rede, questionando e transformando, assim, o envolvimento preferencial da produção de conhecimento com os interesses do sistema do capital. A construção destes espaços poderia significar a possibilidade de construção, conforme destaca Sá, de

um novo modelo de relações de produção de conhecimento no interior da instituição universitária, que possa superar a ética individualista e competitiva do mercado capitalista como modelo de relação social. Desconcentrar a propriedade dos meios de produção do conhecimento significa acesso democrático aos espaços acadêmicos, e formação técnico-científica que instrumentalize a participação dos novos protagonistas nas relações de produção do conhecimento científico. Significa eliminar os obstáculos institucionais e ideológicos com que a universidade exclui os segmentos sociais interessados na mudança social, e promover a propriedade coletiva dos meios sociais de produção do conhecimento, num empreendimento onde todos sejam trabalhadores e criadores de um novo saber. (2006, p.225)

Estas ações de escolarização dos trabalhadores rurais, em diferentes níveis de ensino e áreas de conhecimento, executadas pelas universidades, em parceira com os Movimentos Sociais e Sindicais do campo, reuniram preciosa experiência e desencadearam reflexões teóricas para o avanço e a construção da Educação do Campo no Brasil. Ao institucionalizar-se e ao propor intervenções e pautas pelo acesso, pelo direito a definir os currículos que atendam às necessidades dos diferentes sujeitos do campo, pelo financiamento público para a educação, pelo aumento da participação de pesquisadores e professores em defesa da educação popular de base camponesa em todos os níveis, o PRONERA desperta os interesses de pesquisadores e dos próprios estudantes dos cursos para analisar as suas experiências, as práticas educativas, a dimensão política da educação, entre outros.

Sua execução pelas universidades envolve não só os docentes da instituição responsável pela oferta do curso, mas também seus alunos regulares que participaram do PRONERA como monitores, apoiando os docentes nos processos de ensino que ocorrem nas universidades no Tempo Escola, e também indo a campo, acompanhando e desenvolvendo diversos tipos de trabalho no Tempo Comunidade dos cursos.

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Este envolvimento de discentes das universidades também desencadeou novos processos de formação e produção de conhecimento, pois muitos destes monitores acabaram ingressando na pós-graduação, com projetos de pesquisa relacionados às ações de formação executadas pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária.Também há diversos registros de docentes das IFES que atuavam no PRONERA e que produziram suas teses de Doutorado sobre o Programa.

A lista de teses e dissertações apresentada ao final deste artigo relaciona 30 pesquisas produzidas em torno das ações executadas a partir do PRONERA. A lista foi elaborada e cedida por Maria Antônia de Souza, autora da pesquisa15 sobre Educação e Movimentos Sociais do campo: análise do conteúdo das teses e dissertações defendidas nos Programas de Pós-Graduação em Educação, no Brasil, financiada pelo CNPq, modalidade Bolsa Produtividade em Pesquisa, período de 2005 a 2008.

Considerações Finais

Estas características intrínsecas à execução do Programa têm provocado uma série de reações à sua continuidade, criando diversas barreiras ao seu pleno desenvolvimento. Muitos têm sido os entraves enfrentados pelo PRONERA: a morosidade na tramitação dos processos nas superintendências; a não liberação dos recursos; o impedimento à realização de novos convênios; os constantes embates com o Tribunal de Contas da União; os desentendimentos com as procuradorias jurídicas das IFES; enfim, uma diversa lista de problemas.

Apesar de todas estas dificuldades, na abertura do IV Seminário Nacional do PRONERA, realizado em Brasília, em novembro de 2010, os participantes do evento, assim se manifestaram sobre o Programa:

A luta por uma Educação do Campo liderada pelos Movimentos Sociais e Sindicais consolidou, nesses 13 anos, o PRONERA em âmbito nacional, como um dos mais importantes programas de promoção da justiça social no campo da educação, vinculado à Reforma Agrária. Graças à sua dinâmica participativa, mobilizadora e inovadora, logrou inserir no processo de alfabetização, escolarização, graduação e pós-graduação, mais de 400 mil pessoas, jovens e adultos residentes nos projetos de assentamento da Reforma Agrária de todos os Estados da Federação.

15 Está inserida na listagem de teses e dissertações que versaram sobre Educação do Campo, Educação e Movimentos Sociais do Campo, publicada no livro Educação e Movimentos Sociais do Campo: a produção do conhecimento no período de 1987 a 2007, de Maria Antônia de Souza, publicado pela Editora da Universidade Federal do Paraná, 2010. Também, integra um capítulo na coletânea, em fase de organização por Cecília Ghedini, referente aos dez anos de Educação do Campo e do PRONERA, no Estado do Paraná.

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Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

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Neste Documento do Final do IV Seminário Nacional do Programa está uma das principais chaves de leitura para a análise do conjunto das contribuições no PRONERA nos diferentes âmbitos: ao contribuir com o acúmulo de forças para a construção de um projeto de campo vinculado ao polo do trabalho e da garantia da reprodução camponesa; das mudanças na elaboração e gestão das políticas públicas, lutando para manter a educação no âmbito da esfera do público; do direito; da universalidade, a partir das especificidades; e finalmente, das contribuições para as mudanças no próprio âmbito da ação educativa; da concepção e das práticas propostas e vivenciadas nas estratégias formativas protagonizadas pelos Movimentos Sociais e Sindicais do campo, nos cursos apoiados pelo PRONERA.

Os Movimentos Sociais e Sindicais do campo; as instituições de ensino que têm sido parcerias; os servidores do próprio INCRA, que por dentro da Instituição têm se comprometido com a execução do Programa; os aliados nas diferentes esferas da sociedade têm, a partir dos cursos do PRONERA, acumulado forças na perspectiva da contra-hegemonia, para a produção da transformação maior exigida para uma efetiva mudança na sociedade brasileira.

Paludo, ao discorrer sobre as contribuições de Gramsci na interpretação do processo histórico que poderá conduzir a sociedade às transformações profundas requeridas para superação da barbárie gerada pelo sistema do capital, relembra a centralidade existente no pensamento deste autor acerca do protagonismo das classes subalternas nesta construção. Enfrentando o que chama de “uma visão gelatinosa de transformação social”, vinda da social democracia, Paludo reafirma, a partir dos referenciais teóricos propostos por Gramsci, a convicção de que

são as classes subalternas, seus intelectuais orgânicos e aliados que encarnam a possibilidade histórica de emancipação da humanidade, visto que não são estas classes que instituem e mantêm a violência que desumaniza, no entanto, são elas que sentem e sofrem com maior intensidade esta violência/dominação. As classes subalternas, seus intelectuais orgânicos e seus aliados, lutando contra a violência instituída e mantida pelas forças hegemônicas vão constituindo campos articulados de forças políticas e culturais que, guardando relação com a esfera da economia, a transcendem, lutando para a construção de uma nova hegemonia na sociedade. Isto é, apontam para a instituição de um outro poder e de novas relações econômicas, políticas e culturais, de uma visão de homem, de sociedade e de mundo que sinaliza para a necessidade de superação concreta da violência e de constituição de um novo bloco histórico. (2001, p.13)

Como a identidade e o ideal emancipatório não estão dados, é preciso que o processo educativo permita superar os obstáculos que a cultura hegemônica coloca ao acesso a essas condições de transformação. Neste sentido, a Educação é uma tarefa de libertação em

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relação à dependência da cultura dominante e de construção da própria concepção de mundo e de vida. A Educação contra-hegemônica da classe trabalhadora, numa sociedade onde esta classe é formada para ser passiva diante das condições de reprodução social impostas pelo capital, requer a formação de valores que construam nos sujeitos a autonomia necessária para compreender seu próprio valor histórico, sua função enquanto classe social, seus direitos e potencialidades. Contribuir com a construção da autonomia intelectual das classes trabalhadoras tem sido uma das maiores contribuições do PRONERA à Educação do Campo.

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Referências

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CALDART, R. S. – Sobre Educação do Campo In: SANTOS, C.. (ORG.) Campo, Política Pública e Educação. Brasília: NEAD, 2008. (Coleção Por uma Educação do Campo).

CAMPIONE, D. – Hegemonia e contra-hegemonia na América Latina. In Ler Gramsci, entender a realidade. COUTINHO, C. N.; TEIXEIRA, A. P. (ORGS.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 (51-66).

GOHN, M. G. Teorias dos Movimentos Sociais – Paradigmas clássicos e contemporâneos. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola; 2006.

MAZOYER, M. Segurança Alimentar é o grande desafio no Século XXI. Exposição na Cátedra de Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial da UNESCO. São Paulo, 2010.In:<http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16760>. Acesso em: 02.12.2010.

LEITE, S.; HEREDIA B.; MEDEIROS L. et al. “Impactos dos assentamentos – Um estudo sobre o meio rural brasileiro”,. Brasília. IICA/NEAD/. Editora UNESP 2004.

MOLINA, M. C. A contribuição do PRONERA na construção de políticas públicas de Educação do Campo e desenvolvimento sustentável. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável), Universidade de Brasília, 2003.

OLIVEIRA, L. L. N. A. Efeito da escola e indicadores psicossociais: Uma abordagem com dados da Pesquisa Nacional da Educação na Reforma Agrária.Tese (Doutorado em Psicologia Social do Trabalho e das Organizações). Universidade de Brasília. 2009.

PALUDO, C.. Educação Popular em busca de Alternativas – Uma leitura desde o campo democrático e popular. Porto Alegre. Tomo Editorial. 2001.

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RIBEIRO, M. ANTONIO, C. A. Estado e Educação: questões às políticas de Educação do Campo. In: Reunião da Anped, 31. GT3 Movimentos Sociais Educação. Caxambu-MG. Disponível em: htpp//: www.anped.org.br

TAFFAREL, C. Z. e SANTOS J., C. L.. Balanço Político e Continuidade da Ação – PRONERA 10 anos de Resistência – uma contribuição ao debate. In: http://www2.faced.ufba.br/educacampo/educacampo/Pronera /b_p_c_a_p_10_a_r/. Acesso em 16/12/2010.

SÁ, L. M.. Ciência e Sociedade: A Educação em Tempos de Fronteiras Paradigmáticas. In Linhas Críticas – PPGE Revista Semestral da Faculdade de Educação da UnB. Volume 12, n.23 p.217- 228, julho-dez, 2006 Brasília,DF.

SÁ, L. M.: MOLINA M.; BARBOSA, A. I.. A Produção do conhecimento na formação de Educadores do Campo. Número Especial: Revista Em Aberto INEP, 2011, prelo.

SCALABRIN, R.. Caminhos da Educação pela Transamazônica: ressignificando o saber cotidiano e as práticas educativas de educadores(as) do Campo. 2008. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

SILVA, D. B. . Do Assentamento à Universidade: a Mulher Camponesa no Ensino Superior. Dissertação. (Mestrado em Educação) Universidade Federal de Sergipe. 2009.

SOUZA, M. A. S., “Educação e Movimentos Sociais do Campo: a produção do conhecimento no período de 1987 a 2007”. Editora da Universidade Federal do Paraná, 2010.

TELLES, V. da S.. Direitos Sociais: Afinal, do que se trata? Belo Horizonte, Editora UFMG. 2ª. Reimpressão, 2006.

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ANEXO I

Pesquisas produzidas em torno das Ações Educativas executadas a partir do PRONERA, elaboradas a partir da pesquisa sobre Educação e Movimentos Sociais do campo: análise do conteúdo das teses e dissertações defendidas nos Programas de Pós-Graduação em Educação, no Brasil, de Maria Antônia Souza.

1. ALVARINO, Josué Viana. O processo de alfabetização de jovens e adultos nos assentamentos da reforma agrária na região extremo-norte/ES. 150f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade de Brasília, 2003.

2. ANDRADE, Luciane Almeida Mascarenhas de. O desafio da parceria na implementação do PRONERA: o caso do Projeto de Alfabetização Cidadã no Nordeste Paraense (2005-2006). Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2009.

3. BAGETTI, Vilmar. Educação, Movimentos Sociais e Formação de Professores: o projeto CUIA no contexto da reforma agrária brasileira. 104f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal de Santa Maria, 2000.

4. CASAGRANDE, Nair. A pedagogia socialista e a formação do educador do campo no século XXI: as contribuições da pedagogia da terra. 270f. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2007.

5. CARVALHO, Sandra Maria Gadelha de. Educação na reforma agrária: PRONERA, uma política pública? 211f. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Federal do Ceará, 2006.

6. COSTA, Antônio Cláudio Moreira. Os impactos do PRONERA no assentamento Reunidas: as relações entre universidade X Movimentos Sociais X Governo Federal. 229f. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Estadual Paulista, Campus de Marília, 2004.

7. COSTA, Marilda de Oliveira. Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária: o caso do curso Pedagogia da Terra, da Universidade do Mato Grosso, Cáceres/MT. 297f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005.

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

Mônica Castagna Molina e Sonia Meire Santos Azevedo de Jesus

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8. DURIGON, Valdemir Lúcio. Concepção e prática de projetos educacionais em assentamentos rurais no estado do Rio de Janeiro: PRONERA no Zumbi dos Palmares e Campos dos Goytacazes/RJ. 150f. Dissertação (Mestrado em Educação Agrícola), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2005.

9. FERNANDES, Flávia Azevedo. Universidade e Educação do Campo: um estudo de caso do curso de Pedagogia da Terra da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de Brasília, Brasília, 2009.

10. FRAGOSO, Maria Beatriz Pinheiro Guimarães. Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária: a responsabilidade social da universidade. 115f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal Fluminense, 2001.

11. GHEDINI, Cecília Maria. A formação de educadores no espaço dos Movimentos Sociais: um estudo da I Turma de Pedagogia da Terra da Via Campesina/Brasil. 161f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Paraná, 2007.

12. GHETTI, Ângela Maria Sanges de Alvarenga Rosa. Emergência da participação: a complexidade (re)velada – um devir na educação de adultos e jovens rurais em Campos Goytacazes. 207f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – Políticas Sociais, 2003.

13. LENZI, Lúcia Helena Correa. Um (re)trato pedagógico a partir do olhar de educadores/as de jovens e adultos do MST. 173f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal de Santa Catarina, 2004.

14. MOLINA, Mônica Castagna. A contribuição do PRONERA na construção de políticas públicas de Educação do Campo e desenvolvimento sustentável. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável), Universidade de Brasília, 2003.

15. NASCIMENTO, Claudemiro Godoy. Educação do Campo e Políticas Públicas para além do capital: hegemonias em disputa. Tese (Doutorado em Educação). Universidade de Brasília, 2009.

16. OLIVEIRA, Edna Castro de. Os processos de formação na educação de jovens e adultos: A “panha” dos girassóis na experiência do PRONERA MST/ES. 172f. Tese (Doutorado em Educação). Universidade Federal Fluminense, 2005.

17. OLIVEIRA, Everton Fêrrêr de. Colaboração educacional como princípio gerador de ações educativas críticas na formação de professores da educação básica do campo. 183f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal de Santa Maria, 2001.

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

Mônica Castagna Molina e Sonia Meire Santos Azevedo de Jesus

18. RABELO, Josefa Jackeline. A pedagogia do Movimento Sem Terra: para onde aponta o projeto de formação e professores. 247f. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Federal do Ceará, 2004.

19. RIBEIRO, Sávia Cássia Francelino. Semeando a Educação do Campo: a experiência da I Turma de Magistério Norte/Nordeste do MST. Elizabeth Teixeira. 137f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal da Paraíba, 2004.

20. ROCHA, Helianane Oliveira. A formação dos educadores e educadoras do MST formados pelo PRONERA/UFMA/MST no Maranhão. 156f. Rocha. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Maranhão, 2007.

21. RODRIGUES, Ana Cláudia. A formação de professores de nível médio para o ensino fundamental do campo: conforme a participação dos docentes e discentes da I turma na cidade de Bananeiras. 120f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal da Paraíba, 2003.

22. RODRIGUES, Lyvia Maurício. Desafios e possibilidades na educação de jovens e adultos no contexto do PRONERA. 114f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal de Santa Catarina, 2006.

23. SANTOS, Antônia Fernanda da Silva. O PRONERA e a importância da escolarização na visão de assentados rurais do sertão do Estado de Sergipe. 146f. Dissertação (Mestrado em Educação), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.

24. SANTOS, Clarice Aparecida dos. Educação do campo e políticas públicas - A Instituição de políticas públicas pelo protagonismo dos Movimentos Sociais do campo na luta pelo direito a educação. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade de Brasília, Brasília, 2009.

25. SANTOS, Franciele Soares dos. Formação de educadores militantes no MST: A experiência do Curso Pedagogia da Terra na UNIOESTE/PR. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009.

26. SANTOS, Ramofly Bicalho dos. Alfabetização de jovens e adultos nos acampamentos e assentamentos do MST na Baixada Fluminense. 203f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal Fluminense, 2003.

27. SILVA, Fábio Dantas de S. Pedagogia da Terra: um encontro de saberes, vivências e práticas educativas. 167f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal da Bahia, 2009.

28. SOARES, Maria José Nascimento. O processo formativo-educativo dos trabalhadores

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

Mônica Castagna Molina e Sonia Meire Santos Azevedo de Jesus

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rurais do MST/SE: a prática pedagógica dos monitores-professores. 229f. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2006.

29. VANSUITA, Ana Paula. Educação de jovens e adultos do campo: um estudo sobre o PRONERA em Santa Catarina. 109f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal de Santa Catarina, 2007.

30. ZEN, Eliéser Toretta. Pedagogia da terra: A formação do professor sem terra. 180f. Dissertação (Mestrado em Educação), Universidade Federal do Espírito Santo, 2006.

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Educação Profissional no contexto das áreas de Reforma Agrária: subsídios para discussão de diretrizes político-pedagógicas para os cursos do PRONERA

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Educação Profissional no contexto das Áreas de Reforma Agrária: subsídios para discussão de diretrizes político-pedagógicas para os cursos do PRONERA

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Este documento foi elaborado a partir dos registros das exposições e discussões realizadas no Seminário Nacional de Educação Profissional, promovido pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), de 2 a 5 de junho de 2008, em Luziânia (GO). A atividade reuniu representantes das coordenações dos cursos de nível médio das áreas de Produção, Saúde e Gestão e de nível superior das áreas de Agronomia, Direito, Geografia, Medicina Veterinária e Agroecologia, para um balanço político-pedagógico das experiências em andamento e para um debate em vista da construção de referências e diretrizes para os projetos de cursos ou outras iniciativas de Educação Profissional, realizados no âmbito do PRONERA.

Os eixos principais da discussão do Seminário, e que também vão orientar a elaboração deste documento-síntese, foram os seguintes: contexto atual do campo e da Reforma Agrária e a Educação Profissional, diante do embate de projetos; nova matriz científico-tecnológica para o desenvolvimento dos assentamentos; projeto político-pedagógico que vincule os cursos de Educação Profissional aos desafios de construção e difusão dessa nova matriz. No Seminário, discutimos combinadamente sobre cursos de nível médio e de nível superior, não parecendo necessária, neste momento, uma distinção entre eles.

O PRONERA nasceu vinculado a sujeitos sociais comprometidos com um projeto de educação integrado a um projeto político de transformação social, voltado à formação integral dos trabalhadores: educação portadora e cultivadora de valores humanistas e socialistas, preocupada com o cuidado da natureza e que se desenvolve na perspectiva da práxis: prática e teoria articuladas pelos processos de transformação do mundo e de autotransformação humana.

Reafirmamos no Seminário o compromisso dos cursos do PRONERA com um efetivo desenvolvimento dos assentamentos e refletimos sobre como isso implica em uma opção

16 Doutora em Educação pela UFRGS, coordenadora da Unidade de Educação Superior do Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa na Reforma Agrária (ITERRA) e Assessora da Comissão Pedagógica Nacional do PRONERA.

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Educação Profissional no contexto das áreas de Reforma Agrária: subsídios para discussão de diretrizes político-pedagógicas para os cursos do PRONERA

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política por um determinado projeto de campo (contra-hegemônico) e por desafios que sua construção coletiva coloca para a formação dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, se assumimos o ponto de vista da classe trabalhadora, interessa pressionar o sistema educacional (somando-nos às lutas dos Movimentos Sociais e por meio das práticas dos próprios cursos) pelo direito ao trabalho e a uma Educação Profissional pública de qualidade. Reafirmamos também a necessidade de potencializar os debates sobre a importância do alargamento do conceito de formação profissional, na perspectiva crítica a uma superespecialização técnica e de superação da histórica cisão entre trabalho manual e trabalho intelectual.

Neste desafio (que de alguma maneira já se constitui como prática) se insere a afirmação de uma perspectiva de política de Educação Profissional para os trabalhadores do campo, que se formula primeiro como crítica contundente às políticas dominantes. Em alguns lugares já denominamos este esforço de “Educação Profissional do Campo”, buscando explicitar o vínculo desta discussão específica com o debate mais amplo da Educação do Campo.

A expressão “Educação Profissional” foi usada no Seminário em um sentido mais alargado do que o predominante na sociedade, que geralmente a refere a cursos estritamente profissionalizantes, sejam técnicos ou tecnológicos. O que discutimos foi mais amplamente a formação específica para o trabalho, no recorte da formação dos trabalhadores de assentamentos de Reforma Agrária, o que nos remete ao debate de concepção e de política de formação profissional, que necessariamente precisa pensar de forma articulada ou integrada a Educação Básica, a Superior e a Educação Profissional.

As discussões do Seminário apontaram para a compreensão de que a elaboração de uma política de “Educação Profissional do Campo”, ou de formação profissional para os trabalhadores do campo, em que os cursos do PRONERA possam se inserir, passa por três grandes dimensões de práticas e de debates.

A primeira é a de que os cursos contribuam (pelos estudos ou pela sua base curricular, pelas práticas de campo, pela pesquisa) no debate e na construção teórico-prática de uma nova matriz científico-tecnológica para o trabalho no campo, desde a lógica da agricultura camponesa sustentável.

A segunda é a de que os cursos trabalhem (pela compreensão, pela denúncia e pelo engajamento de seus sujeitos em lutas sociais) na perspectiva de situar essa matriz no contexto mais amplo de transformações das relações sociais e da luta contra o sistema

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Educação Profissional no contexto das áreas de Reforma Agrária: subsídios para discussão de diretrizes político-pedagógicas para os cursos do PRONERA

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hegemônico de produção. Este sistema tem uma lógica que impede sua construção com a radicalidade e a massividade necessárias a um projeto efetivamente alternativo/popular de desenvolvimento do campo, centrado no trabalho e nas demandas da vida das pessoas, e não no capital e nas demandas de expansão dos negócios.

A terceira é a de buscar construir um projeto formativo sustentado em uma concepção de educação e de Educação Profissional, coerente com os desafios das dimensões anteriores e materializado em um projeto político-pedagógico a ser implementado em cada curso, a partir de suas especificidades e das necessidades socioculturais e econômicas de seus sujeitos concretos.

É exatamente pela compreensão e pelo posicionamento coletivo sobre estas dimensões que podemos avançar na definição de diretrizes político-pedagógicas específicas para as iniciativas do PRONERA, respondendo à questão que orientou os debates do Seminário: que formação profissional para os trabalhadores das áreas de Reforma Agrária, considerados o contexto atual e o desafio de construção de um projeto alternativo de campo?

Na sequência deste texto, uma síntese de compreensão em torno de cada uma das dimensões apontadas. A opção pela forma de ideias-força numeradas, tem em vista facilitar a continuidade de nossas discussões coletivas sobre a questão em foco.

Contexto e termos do debate: Campo, Reforma Agrária e Educação Profissional

1. A Educação Profissional abordada no Seminário de Luziânia se vincula aos desafios de desenvolvimento dos assentamentos de Reforma Agrária. Precisamos entender o contexto em que esses desafios se inserem, para poder pensar de que desenvolvimento se trata, e a formação profissional necessária aos trabalhadores a que os cursos ou outras iniciativas do PRONERA se destinam.

2. Discutir o tema da Educação Profissional desde a realidade das áreas de Reforma Agrária é uma dupla subversão da ordem estabelecida: porque a Reforma Agrária está sendo considerada, no Brasil, um obstáculo ao pleno desenvolvimento do capital no campo, ainda que esta tese já esteja hoje matizada pelas discussões sobre a crise alimentar e a insustentabilidade do modelo do agronegócio. E porque a própria expressão “Educação Profissional” é representativa de um tipo de política educacional não pensada para esses sujeitos e para a perspectiva de projeto de campo que representam. Trata-se, portanto, de rediscutir a própria lógica da Educação Profissional, não pensada como instrumento de preparo de indivíduos

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Educação Profissional no contexto das áreas de Reforma Agrária: subsídios para discussão de diretrizes político-pedagógicas para os cursos do PRONERA

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para a disputa no “mercado de (exploração do) trabalho”, mas como parte da capacitação coletiva de trabalhadores, para que construam formas de produção que atendam seus interesses de classe e seus desafios humanos. 17

3. A Reforma Agrária tem sido tratada no Brasil como uma política compensatória e que somente se estabelece quando há mobilização social dos trabalhadores sem-terra. Não é pensada como uma política de desenvolvimento, nem do campo nem tão pouco do País. Os assentamentos, quando conquistados, se inserem (contraditoriamente e cada vez mais) num modelo de campo em que não cabem como lógica.

4. A lógica do modelo dominante hoje é aquela própria do funcionamento do capitalismo sob a hegemonia do capital financeiro e que traz fortes consequências para a agricultura e para os camponeses. A crise atual do capital financeiro está agravando ainda mais os efeitos do controle do capital internacional sobre as economias periféricas, sobre a agricultura e a economia camponesas, o que não acontece sem a explicitação e o acirramento de contradições que podem acabar por tornar esta lógica insustentável (Stédile, 2008b). Fica cada vez mais evidente a incompatibilidade entre avanço do agronegócio e Reforma Agrária (Delgado, 2008).

5. Os problemas e desafios dos assentamentos são, pois, os mesmos do conjunto dos camponeses, agricultores familiares; relacionam-se a um problema principal que é estrutural: a predominância do modelo de produção que representam é incompatível com o desenvolvimento atual do capitalismo. Daí a necessidade de sua luta ser, necessariamente, contra o sistema. As lutas corporativas por crédito, assistência técnica, agroindústria e outras, são importantes porque podem ajudar a amenizar certas situações ou até mesmo acumular força para a construção de alternativas, mas nunca irão resolver o problema de fundo. Da mesma forma que governos podem executar políticas que ora agravam e ora amenizam o problema, sem, no entanto, alterar a estrutura. A opção de classe do Estado o impede de ter políticas públicas que efetivamente priorizem o pólo do trabalho. Esta situação somente se transformará com as lutas da classe trabalhadora como um todo.

6. Em algumas áreas existe a possibilidade do trabalho dos assentados se subordinar ou ser explorado pelo agronegócio. Na maioria dos assentamentos, o que se coloca

17 As ideias trabalhadas neste tópico tomam como base, além dos registros das discussões do Seminário, especialmente, os seguintes textos: ITERRA, 2007; Mauro, 2008; Stédile, 2008a e 2008b; Christóffoli, 2008, Delgado, 2008.

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Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

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Educação Profissional no contexto das áreas de Reforma Agrária: subsídios para discussão de diretrizes político-pedagógicas para os cursos do PRONERA

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como perspectiva é a busca de alternativas para resistir na terra e desenvolver uma agricultura camponesa, subordinando-se e ao mesmo tempo enfrentando a lógica do capital. De qualquer modo, a dialética constante no dia a dia das áreas de Reforma Agrária é a luta pela inclusão e, ao mesmo tempo, a tentativa de mudar a lógica do sistema, forjando pela necessidade prática, outro projeto.

7. Contraditoriamente, a dinâmica da luta pela terra tem conquistado algumas áreas de assentamentos maiores, ou que concentram vários assentamentos próximos uns dos outros, que acabam causando impacto local ou regional. Do mesmo modo que a própria luta popular pela Reforma Agrária, esses assentamentos representam a possibilidade de “territorialização” (Fernandes, 2006) de uma outra matriz de agricultura e, portanto, um contraponto ou uma contradição importante na implementação do projeto do capital no campo.

8. O momento histórico em que os cursos do PRONERA acontecem é o de uma avalanche devastadora do projeto hegemônico de expansão do capital no campo e que, dada a fúria e a velocidade da devastação, torna mais explícita a contradição que é sua fragilidade estrutural: agora, para se expandir, o capital precisa destruir cada vez mais a tudo e a todos, à humanidade. Especificamente no campo, a voracidade do capital mostra seu efeito concreto na crise dos alimentos, que acaba explicitando sinais de uma crise mais profunda, porque expressão de contradições de origem. Por enquanto, a crise é mais de controle de distribuição do que de produção, mas o cenário que se projeta é de cada vez menos capacidade de garantir alimentos para todos, em que pese todo o avanço tecnológico existente. De um lado, pois, a agricultura camponesa é cada vez mais marginalizada, mas de outro, aparece como uma alternativa diante da insustentabilidade cada vez mais evidente do modelo que a marginaliza: alimentos não podem ser tratados apenas como mercadorias, porque a lógica do negócio não é e não respeita a lógica da vida.

9. O contexto em que atuamos nos exige construir alternativas para reduzir os impactos destruidores da expansão capitalista sobre as classes trabalhadoras do campo, impactos que são econômicos, sociais, ideológicos e ambientais, muitos deles atuando sobre o conjunto da sociedade. O grande desafio é que se tratem de alternativas “portadoras de futuro”, ou seja, resistência capaz de explicitar as contradições fundamentais envolvidas e de projetar uma outra forma de desenvolvimento de campo, de País, outra forma de sociedade. Mas é importante não perder de vista a situação concreta: não adianta idealizar uma outra matriz

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produtiva, por exemplo, sem pensar nas mediações necessárias para que os trabalhadores do campo sobrevivam à avalanche.

10. Faz parte deste contexto a fragilidade atual da classe trabalhadora, de suas organizações, tanto as do campo como as da cidade. No caso do campo, os limites estruturais que o sistema capitalista impõe à pequena produção agrícola enfraquecem os camponeses como classe. Um limite crucial encontra-se na dificuldade de se construir uma aliança contra-hegemônica, que seja capaz de atuar tanto na desconstrução do modelo dominante, quanto na construção do novo. Nosso campo político está bastante segmentado. E apesar de existirem várias organizações de trabalhadores no campo, não conseguimos atingir importantes setores que permanecem à margem desses processos. Ou, o que é ainda pior, milhares de pequenos agricultores acabam por se transformar em base de apoio ao projeto da classe dominante, seja subordinando-se à lógica das empresas (vide hoje o que está acontecendo com o plantio do eucalipto e da cana de açúcar pelos pequenos agricultores, ou o que já acontece há muito tempo com a produção de suínos e frangos, atrelada às grandes agroindústrias), seja contribuindo com sindicatos patronais ou elegendo políticos ruralistas, seja servindo de massa de manobra das intermináveis negociações de dívidas, créditos, migalhas. Há também limites organizativos e dificuldades no diálogo com a sociedade, para que mais gente compreenda o que está acontecendo no campo e suas repercussões para o conjunto das pessoas, especialmente nas cidades (Mauro, 2008). A crise atual do capitalismo poderia ser potencializada nessa direção.

11. Frente a esses limites, há um grande desafio colocado para as forças populares neste momento histórico, que é o de avançar no debate e na construção de um projeto contra-hegemônico: que unifique os lutadores, movimentos, organizações; que não seja só do campo, pois não estamos tratando de um mundo à parte, mas de todos os trabalhadores; que seja capaz de dialogar com a sociedade como um todo (Mauro, 2008). É fundamental vincular a criação de um novo modelo de agricultura com as causas ecologistas, de saúde pública e de melhoria das condições de vida da população pobre do País. As alianças precisam ser construídas em todo o mundo e não apenas no âmbito de um país (Christóffoli, 2008).

12. Mas tenhamos presente que o avanço na Reforma Agrária e na perspectiva da Soberania Alimentar somente irá ocorrer caso seja freado o modelo do agronegócio.

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São dois pólos opostos disputando inclusive os mesmos pedaços de terra. Caso o modelo do agronegócio vença, o campesinato e a Reforma Agrária serão derrotados. Nesse contexto, ganha importância a forma como vai se dar o combate às corporações que ameaçam a Soberania Alimentar dos povos (Christóffoli, 2008).

13. Faz parte dos embates do momento atual a luta por uma política comum dos governos e legislativo que tenha capacidade de impedir o avanço do agronegócio, com a liberdade que ele desfruta hoje. Ele não tem obrigações com sua função social – obrigações de posse da terra, de meio ambiente e de respeito às relações de trabalho. O caso brasileiro é ímpar de desigualdade crescente. O Brasil precisa de uma política clara de contenção da liberdade de ação do agronegócio. Sem isso, a Reforma Agrária é engodo, tão residual e incapaz de se manter que será engolida (Delgado apud Christóffoli, 2008).

14. Ao mesmo tempo, especialmente nas regiões em que existe uma concentração de assentamentos, ou um grande número de famílias assentadas, é preciso enfrentar o desafio específico de trabalhar pela conquista de um tipo de desenvolvimento mais integral das áreas conquistadas, que contemple as várias dimensões da vida das pessoas nestas áreas, de forma sustentável, ajudando na construção de um outro projeto de campo, mostrando que isso é possível e acumulando força política na luta mais ampla contra a barbárie social promovida pela expansão do capital. Para isso, é preciso que se mergulhe fundo na construção de alternativas de trabalho, no redesenho das matrizes produtivas e na formulação de uma política educacional que consiga articular as demandas dos direitos das pessoas à educação escolar com as demandas de formação para o trabalho de uma proposta concreta de desenvolvimento de cada região e na perspectiva de um projeto mais amplo de campo e de país (ITERRA, 2007).

15. Nosso objeto de discussão no Seminário foi a Educação Profissional e o sentido deste debate hoje na sociedade também integra o contexto em que os cursos do PRONERA se inserem. A expressão “Educação Profissional” é própria do momento atual do capitalismo e carrega as contradições e os embates da política de educação dos trabalhadores em uma sociedade desigual como a nossa. Ela remete à histórica dualidade do sistema escolar na sociedade capitalista, que estabelece (na realidade ainda que já nem sempre na letra da lei) um tipo de escola para as classes dirigentes e outra para a classe trabalhadora, sendo próprio desta última, o foco na Educação Profissional. Ao mesmo tempo ela reflete as contradições do

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momento atual, de passagem de uma sociedade desigual, mas ainda integradora pela promessa de trabalho para todos, a uma sociedade cuja lógica hoje impõe abrir mão de formas de regulação social e então o máximo que pode prometer aos trabalhadores é uma condição subjetiva de “empregabilidade” a aqueles que tiverem uma formação profissional (supostamente) adequada. Mas ao trazer isso à tona acaba fazendo emergir com mais força a luta pelo direito dos trabalhadores a esta formação e também o debate sobre a importância da universalização de uma Educação Básica de qualidade, como condição para a própria realização dos objetivos da Educação Profissional, seja nos moldes das relações capitalistas seja para questioná-las (ITERRA, 2007).18

16. Importa compreender, neste contexto, que as políticas, os conteúdos e as formas dos cursos de Educação Profissional (com este nome ou outro), historicamente, foram definidas pelas necessidades do desenvolvimento do capital. E que as classes dominantes se utilizam do sistema público e privado de Educação Profissional para atender as demandas das formas de produção que fortalecem seus interesses de classe. Por isso mesmo, não existe no Brasil uma política de Educação Profissional para a agricultura camponesa. Nem no sentido tradicional da expressão e muito menos na ressignificação feita hoje pelos Movimentos Sociais Populares que tratam das novas formas de trabalho e de relações sociais camponesas.

Porque isso seria atender a uma demanda vinda do pólo do trabalho e não do capital e, portanto, portadora de outro tipo de exigências de formação. E também por isso, camponeses (incluindo filhos de assentados) que conseguem estudar nas escolas ditas “agrícolas”, via de regra, deixam de ser agricultores e deixam o campo (ITERRA, 2007).19

17. O PRONERA, pelas suas práticas, tem ajudado a desnudar a realidade da ausência de uma Educação Profissional pensada desde a ótica da agricultura camponesa, ou mais amplamente desde a ótica do trabalho do campo. Precisa agora contribuir na formulação do que poderíamos chamar de uma Educação Profissional do Campo. Do ponto de vista pedagógico, trata-se de pensar uma Educação Profissional que

18 Um aprofundamento desta análise pode ser encontrado em Frigotto, Ciavatta e Ramos, 2005 e em Campello e Lima Filho, 2006.19 Em Sobral, 2008, podemos encontrar uma síntese da história do ensino agrícola no Brasil e sua subordinação aos interesses do desenvolvimento do capital no campo, bem como uma abordagem das contradições que emergem deste modelo, abrindo brechas hoje para pensar novas alternativas para a formação profissional dos técnicos em agropecuária. – Este texto foi a base da exposição realizada por Francisco Sobral nesse Seminário Nacional.

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seja parte da formação específica para o trabalho no/do campo desde uma lógica de desenvolvimento cuja centralidade está no trabalho (todos devem trabalhar), na apropriação dos meios de produção pelos próprios trabalhadores e na terra como meio de produzir vida e identidade (e não como negócio). Do ponto de vista da política pública trata-se de responder ao desafio de atender o interior do País, particularmente aquele abandonado pelo público, e fazer a formação dos trabalhadores em seus próprios territórios (Caldart, 2007).

18. Momento de crise é momento privilegiado de reformas estruturais nas políticas, desde que existam pressão e mobilização social para isso. O desafio é o de criar as bases técnicas / estruturais / tecnológicas que o futuro está a nos exigir (Delgado, 2008, exposição no Seminário).

Embate de projetos e matriz tecnológica 20

19. O projeto hoje hegemônico de desenvolvimento do campo, que significa, na verdade, um projeto de expansão do capital no campo, tem como característica principal o controle da agricultura pelo capital financeiro internacionalizado. Este controle é feito, de um lado, pela compra de ações pelos bancos de empresas que atuam em diferentes setores relacionados à agricultura; de empresas que compram outras empresas para dominar os mercados produtores e o comércio de produtos agrícolas, aproveitando-se do processo de “dolarização da economia mundial”; das regras impostas pelos organismos internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional - FMI e acordos multilaterais, que normatizaram o comércio de produtos agrícolas, de acordo com os interesses das grandes empresas e do crédito bancário voltado ao financiamento da “agricultura industrial”. Por outro lado, pelo abandono dos governos à implantação de políticas públicas de proteção do mercado agrícola e da economia camponesa e da aplicação de políticas de subsídios justamente para a grande produção agrícola capitalista. O resultado visível dessa lógica é de que, em duas décadas, aproximadamente, 30 grandes empresas transnacionais passaram a controlar praticamente toda a produção e o comércio agrícola do mundo (Stedile, 2008b). A consequência estrutural é um processo acelerado de marginalização da agricultura camponesa, cada vez mais sem papel nessa lógica de pensar o desenvolvimento do País.

20 As ideias trabalhadas neste tópico tomam como base, além dos registros das discussões do Seminário, especialmente, os seguintes textos: Christóffoli, 2008; Fernandes, 2008; Martins, 2006; Mauro, 2008; Moreno, 2007; Stédile, 2008b; Via Campesina, 2008.

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20. Este projeto tem seu correspondente paradigma tecnológico, apresentando uma tendência de crescente artificialização da agricultura, transformando-a num ramo da indústria, e buscando subordinar a natureza aos interesses das empresas capitalistas e do lucro. Esse paradigma propõe: a privatização da ciência e da tecnologia, com a consequente privatização do saber; a homogeneização e especialização da produção agropecuária e florestal negando a biodiversidade; o domínio de poucas empresas privadas multinacionais na produção agropecuária e florestal e a imposição política e econômica das sementes transgênicas; a apropriação privada da biodiversidade e da água. Nesse paradigma, as sementes transformaram-se em negócios e a vida vegetal e animal numa mercadoria (Carvalho, 2007).

21. Desde o próprio paradigma tecnológico é possível hoje apreender algumas contradições importantes deste domínio do capital sobre a agricultura e a natureza, de cuja compreensão mais profunda e disseminada na sociedade pode depender o tempo de sua superação: o modelo de produção da agricultura industrial é totalmente dependente de insumos, como fertilizantes químicos e derivados do petróleo, que têm limites físicos naturais e têm, portanto, sua expansão limitada a um médio prazo; o controle sobre os alimentos, feito por algumas empresas apenas, tem gerado preços acima do seu valor e isso provocará fome e revolta da população sem renda suficiente para comprá-los; – o capital está controlando os recursos naturais, representados pela terra, água, florestas e biodiversidade, o que afeta a soberania nacional; a agricultura industrial se baseia na necessidade de uso cada vez maior de agrotóxicos, como forma de poupar mão de obra e de produzir em monocultivo de larga escala, produzindo alimentos cada vez mais contaminados, que afetam a saúde da população; o modo de produzir em grande escala expulsa a mão de obra do meio rural e faz com que aumente as populações de periferias das grandes cidades sem alternativa de emprego e renda, aprofundando a desigualdade social; as empresas estão ampliando a agricultura baseada nas sementes transgênicas, ao mesmo tempo em que aumentam as denúncias e ficam mais visíveis suas consequências sobre a destruição da biodiversidade, sobre o clima e os riscos para a saúde humana e dos animais; a agricultura industrial, de monocultivo, destrói necessariamente a biodiversidade, o que altera sistematicamente o regime de chuvas e ajuda o aquecimento global; a privatização da propriedade das águas, seja dos rios e lagos ou do lençol freático, restringirá o consumo para as populações de baixa renda, trazendo graves consequências sociais; – a ampliação e o uso da agricultura industrial para produção de agro-combustíveis ampliam ainda mais o monocultivo, o uso de fertilizantes de origem petroleira e não resolve o problema do aquecimento global

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e da emissão de gás carbônico; o projeto de redivisão internacional do trabalho e da produção transforma muitos países do hemisfério sul em meros exportadores de matérias primas, inviabilizando projetos de desenvolvimento nacional que possam garantir emprego e distribuição de renda para suas populações; as empresas do agro, aliadas com o capital financeiro estão avançando também para a concentração e centralização nas redes de distribuição de supermercados, destruindo milhares de pequenos armazéns e comerciantes locais; a agricultura industrial precisa utilizar cada vez mais hormônios e remédios industriais para a produção em massa de animais para abate, em menor tempo, trazendo consequências para a saúde da população consumidora (Stédile, 2008b).

22. São essas contradições que podem gerar revoltas, indignações, mobilizações, que acelerem a sua superação. A crise atual tende a aumentar e tornar cada vez mais evidente a insustentabilidade desse modelo de agricultura, chamado de agronegócio, abrindo brechas para a construção de um projeto alternativo, constituído desde o outro pólo, que é o do trabalho.

23. Neste outro pólo, o que hoje afirmamos como um projeto alternativo de desenvolvimento do campo desde a perspectiva da classe trabalhadora, não tem ainda uma formulação precisa, acabada, exatamente porque ele está nascendo nos embates e se desenha pelo contraponto ao projeto hegemônico e seus impactos sociais e ambientalmente destruidores. Mas, há alguns aspectos já consensuais sobre este novo projeto ou sobre o movimento de construí-lo, que podem aqui ser destacados: a Soberania Alimentar, a democratização da propriedade e do uso da terra, uma nova matriz produtiva e tecnológica e uma nova lógica organizativa da produção. Nas próximas ideias, apresentamos elementos para a compreensão de cada um destes aspectos.

24. Soberania Alimentar como princípio organizador de uma nova agricultura: produção voltada para atender às necessidades do povo, com políticas públicas voltadas para este objetivo. A Soberania Alimentar se refere ao direito dos povos e dos países de definir suas próprias políticas agrícolas e produzir alimentos em seus territórios, destinados a alimentar sua população antes de decidir sobre a necessidade de sua exportação (Moreno, 2007). Implica na prioridade para a produção de alimentos sadios, de boa qualidade e culturalmente apropriados, mantendo a capacidade dos camponeses de produzir alimentos desde um sistema de produção diversificado e sustentável (Martins, 2006).

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25. Precisamos ter presente neste debate a disputa que existe hoje entre os termos segurança alimentar e Soberania Alimentar, com “acepções diametralmente distintas e de forma alguma intercambiáveis”. “O conceito de Soberania Alimentar foi apresentado pela Via Campesina, a articulação internacional dos camponeses, durante a Conferência Mundial sobre a Alimentação (em comemoração aos 50 anos da FAO), em Roma, 1996, para propor um outro princípio de construção da lógica da produção e do comércio internacional de alimentos, desafiando a concentração de poder do sistema agroalimentar e priorizando a autodeterminação política dos povos. A segurança alimentar diz respeito à obrigação dos Estados de garantir o acesso aos alimentos nutricionalmente adequados e em quantidades apropriadas’ (sem questionar sua origem, admitindo a ajuda alimentar, por exemplo)...” (Moreno, 2007.p. 11).

26. O conceito de Soberania Alimentar hoje representa o próprio embate entre os projetos do agronegócio e da agricultura camponesa. “A ideia de Soberania Alimentar exige divisão de poder para tomada de decisão sobre o que produzir e onde produzir. Os governos nacionais perderam este poder desde que o agronegócio passou a determinar os projetos de desenvolvimento rural no mundo. (...) Além da democratização de controle das decisões, defender a Soberania Alimentar significa defender a produção local, o que choca com os interesses da produção agro-exportadora. Então, compreende-se bem porque o agronegócio defende a segurança alimentar. Porque esta é tão somente uma política compensatória que garante parcialmente alimentos industrializados para as populações pobres, mas não garante à população faminta, o direito de produzir seu próprio alimento. Porque para produzir alimentos é preciso terra – território...”, daí sua associação necessária com a Reforma Agrária (Fernandes, 2008, p. 15-16). Defender a Soberania Alimentar significa recolocar o papel da agricultura camponesa sustentável e da produção local para solução dos problemas da produção de alimentos no mundo. Supõe a democratização do acesso à terra e uma nova matriz tecnológica.

27. Democratização da propriedade e do uso da terra: a Reforma Agrária deve voltar à agenda prioritária do País como forma de reverter o processo de expulsão do campo e disponibilizar a terra para a produção de alimentos, e não para produzir para a exportação e para combustíveis (Via Campesina, 2008). A Reforma Agrária é condição hoje em nosso País para garantia da Soberania Alimentar. Função social da propriedade da terra, revisão dos índices de produtividade para fins de desapropriação e limite máximo de propriedade são questões relacionadas a esta agenda.

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28. Nova matriz produtiva e tecnológica que combine produtividade do trabalho com sustentabilidade socioambiental. O modelo dominante baseado na monocultura de exportação é insustentável. O princípio da sustentabilidade socioambiental deve estar assegurado junto com o desenvolvimento das forças produtivas, em vista do aumento da produtividade do trabalho, da diminuição de sua penosidade e da geração de excedente. Pois, não se pode perder de vista que a maioria da população tende a continuar sendo urbana. Portanto, o progresso tecnológico cumpre um importante papel. E nem tudo o que foi produzido pelo atual modelo é inadequado. Muita coisa pode e deve ser aproveitada, pois representa um avanço da humanidade e não apenas do capitalismo. Temos avançado na construção de experiências significativas no campo da Agroecologia que apontam na perspectiva da sustentabilidade neste sentido mais amplo. Todavia, ainda enfrentamos muitos limites que precisam ser superados (Mauro, 2008).

29. Esta nova matriz tecnológica afirma uma concepção de mundo e de desenvolvimento rural que propõe um convívio harmonioso com a natureza que preserve toda a biodiversidade. Ela projeta: o reconhecimento e a valorização dos saberes do povo; a garantia da biodiversidade na produção rural pela combinação de cultivos e criações; a diversidade e variedade de sementes varietais e de mudas pela autonomia de produção de sementes camponesas; a introdução de uma matriz produtiva que facilite a preservação, conservação e recomposição da biodiversidade (Carvalho, 2007).

30. Nova lógica organizativa da produção. A pequena parcela individual está longe de ser uma solução para o campo, pois, muitas vezes, ela é sinônimo de forças produtivas atrasadas, de baixa produtividade do trabalho, relações sociais retrógradas (individualismo, machismo, isolamento), dificuldades de acesso aos serviços básicos, extensas jornadas de trabalho, dupla jornada das mulheres, trabalho infantil. A cooperação é o princípio organizador da produção (bem como de outras esferas da existência social) que pode possibilitar uma maior organização e convivência social, melhor divisão de trabalho e maior qualificação, aumento na produtividade do trabalho e do excedente econômico gerado e agregação de valor via processos de verticalização da produção (Mauro, 2008).

31. A passagem de um paradigma para outro exige bem mais do que a ruptura com o padrão ou a matriz tecnológica dominante. Tem como necessidade objetiva, pois, a superação do modo de produção capitalista (Carvalho, 2007).

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Como atuamos no aqui e agora, mas com perspectiva de construção de futuro, a Educação Profissional aqui defendida precisa trabalhar não o paradigma alternativo em si mesmo, idealizado, mas o movimento de sua construção, com as mediações e transições necessárias para redução dos impactos negativos do projeto hegemônico sobre os trabalhadores, sobre a vida humana, e seu fortalecimento como sujeitos capacitados a construir alternativas abrangentes de trabalho, de vida, “concretamente sustentáveis”. 21

32. Um desafio fundamental hoje para o conjunto de iniciativas do PRONERA, particularmente os cursos de nível médio e superior, é o de tomar como referência esta leitura de contexto e assumir que existe o embate de projetos de campo e de paradigmas ou de matrizes produtivas e tecnológicas. A partir daí tomar posição e fazer dos cursos lugar de compreensão e debate das contradições envolvidas, e organizar seus currículos desde o compromisso de construção de um projeto popular de agricultura, pela afirmação/recriação da agricultura camponesa. Isso exige continuar a reflexão pensando sobre as implicações desta posição, em relação às finalidades de cada curso, ao necessário redesenho curricular da maioria dos cursos em funcionamento hoje no País, às estratégias pedagógicas para cada turma e para iniciativas de pesquisa e de formação de educadores para estes cursos.

33. É preciso não perder de vista que os assentamentos são espaços de vida e não apenas de produção econômica. Seu desenvolvimento sustentável envolve as várias dimensões da existência humana. Por isso mesmo, a Educação Profissional do Campo não é a mesma coisa que escola agrícola ou cursos técnicos em agropecuária ou cursos superiores de Agronomia e Veterinária. Ela inclui a preparação para diferentes profissões que são necessárias ao desenvolvimento do território camponês:22 agroindústria, gestão, educação, saúde, comunicação..., mas

21 A expressão é de István Mészáros.22 Fernandes, discutindo o conceito de Educação do Campo relacionado ao conceito de território, nos chama a atenção de que esta é uma distinção importante entre o território camponês e o território do agronegócio: “Enquanto o agronegócio organiza seu território para a produção de mercadorias, (...) o campesinato organiza o seu território para realização de sua existência, necessitando desenvolver todas as dimensões territoriais. Esta diferença se expressa na paisagem e pode ser observada nas diferentes formas de organização de seus territórios (...). A composição uniforme e geométrica da monocultura é caracterizada pela pouca presença de gente no território, porque sua área está ocupada pela mercadoria, que predomina na paisagem. A mercadoria é a marca do território do agronegócio. A diversidade de elementos que compõem a paisagem do território camponês é caracterizada pela maior presença de pessoas no território, porque é neste e deste espaço que elas constroem suas existências e produzem alimentos. Gente, moradia, produção de mercadorias, culturas e infraestrutura social, entre outros, são os componentes da paisagem do território camponês. Portanto, a educação possui sentidos completamente distintos para o agronegócio e o campesinato” (2006, p. 29-30).

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sem desconsiderar que a produção agrícola é a base da reprodução da vida e por isso deve ter centralidade na formação para o trabalho do campo (ITERRA, 2007).

34. Neste debate sobre projetos de campo, temos o desafio de relacionar as discussões e a construção da nova matriz tecnológica com estas várias áreas de trabalho ou de formação profissional: qual a base tecnológica de uma educação que se coloque nesta perspectiva de formação dos camponeses, dos trabalhadores? Qual a base tecnológica da saúde que integra este projeto popular de desenvolvimento do campo?

35. Ademais, é preciso construir um projeto político-pedagógico que supere a falsa antinomia entre preparar, principalmente a juventude, para ficar ou para sair do campo. A educação não deve ser pensada como definidora desta decisão, porque de fato não é. Ficar ou sair não é algo a ser julgado como bom ou ruim em si mesmo. É preciso que se eduque aos trabalhadores do campo para que tenham condições de escolha; e para que ficando ou saindo possam atuar na construção de um projeto social com mais dignidade e justiça para todos. O movimento dialético entre particularidade e universalidade é o que deve orientar o trabalho pedagógico, onde quer que ele aconteça (ITERRA, 2007).

Concepção de Educação Profissional 23

36. As discussões do Seminário Nacional reafirmaram uma concepção mais alargada de Educação Profissional e que a coloca na perspectiva de emancipação social dos trabalhadores e da superação das relações sociais de produção capitalistas. Há, atualmente, um grande debate de concepções de educação e de formação profissional na sociedade do qual é necessário se apropriar e participar, desde a realidade do trabalho a que as iniciativas do PRONERA se vinculam (próprio do campo, mas não apenas do trabalho agrícola). Aqui também há posições a tomar e reflexões específicas a fazer, de modo a construirmos diretrizes político-pedagógicas para nossos cursos.

37. Nosso debate de concepção se refere tanto aos cursos de nível médio como aos de nível superior. Os objetivos ou as expectativas (até onde ir com a profissionalização) e, portanto, as estratégias pedagógicas, é que serão diferentes,

23 As ideias trabalhadas neste tópico tomam como base, além dos registros das discussões do Seminário, especialmente, os seguintes textos: Frigotto, 1995, 2005 e 2006; Kuenzer, 2003; Lima Filho e Campello, 2006; Machado, 2007; Ramos, 2005, 2006 e 2008.

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talvez, mais em função dos sujeitos envolvidos, sua faixa etária, as demandas do contexto de trabalho em que se inserem, do que pela estrita diferenciação dos níveis de escolarização. Na projeção específica de cada curso, é preciso considerar se a dimensão da formação profissional se coloca como foco principal (que justifica a própria realização do curso) ou como uma das dimensões da formação pretendida.

38. A Educação Profissional está sendo aqui entendida como uma formação ou capacitação para o exercício do trabalho em uma área específica de produção de bens ou serviços. Quer dizer, não é algo tão amplo quanto tratar de formação para o trabalho, em um sentido que pode (em nossa concepção, deve) estar presente em todos os processos educativos e em qualquer nível ou etapa de escolarização. Mas também não é algo que possa ser restrito ao manejo de técnicas e instrumentos que caracterizam uma atividade específica, não se confundindo, portanto, com cursos técnicos, pelo menos não em si mesmos e na concepção estreita que ainda predomina sobre eles.

39. Em nosso caso, é preciso pensar a formação específica para o trabalho do campo numa outra lógica, ou seja, desde as demandas do pólo do trabalho (e não do capital); estamos tratando de práticas de Educação Profissional que não visam preparar para o mercado de empregos, nem mesmo para o trabalho assalariado (tampouco para o autonegócio estimulado agora como escape ao desemprego); trata-se de formar profissionalmente trabalhadores que produzem (ou que estão lutando e se desafiando a produzir) sua existência desde seu próprio território. 24 No debate das políticas de Educação Profissional significa afirmá-la como parte da formação específica para o trabalho no/do campo, desde uma lógica de desenvolvimento, cuja centralidade está no trabalho (todos devem trabalhar), na apropriação dos meios de produção pelos próprios trabalhadores, e na terra, como meio de produzir vida e identidade (e não como negócio).

40. Considerando a discussão iniciada no Seminário Nacional e presente já em muitas das práticas ali socializadas, a concepção de Educação Profissional que deve orientar as iniciativas do PRONERA se assenta sobre algumas bases de compreensão que precisam ser refletidas na sua relação com a construção político-pedagógica específica de cada curso. Na sequência, e continuando na forma de ideias-força, destacamos algumas dessas bases fundamentais, parte delas

24 Esta é uma característica do território do campesinato em relação ao território do agronegócio: os trabalhadores assalariados produzem sua existência no território do capital. Há uma reflexão desenvolvida sobre isso em Fernandes, 2006.

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do âmbito da compreensão teórica mais geral, e outras que já se referem ao modo de organização prática do processo educativo.

41. Compreensão da atualidade e suas contradições fundamentais. Estamos discutindo sobre formação profissional em meio a uma crise do capitalismo, crise produzida pelos mecanismos inerentes ao seu próprio funcionamento, indicando um momento da história em que “o capital perdeu sua capacidade civilizatória e, agora, para manter-se, destrói, um a um, os direitos sociais conquistados pela classe trabalhadora (emprego, saúde e educação públicas e aposentadoria digna etc.), além de pôr em risco a vida humana pela degradação cada vez maior do meio ambiente” (Mészáros apud Frigotto, 2005.p. 69). As mudanças científicas e técnicas de natureza digital-molecular, cada vez mais concentradas nos grandes grupos detentores do capital, permitem vários fenômenos simultâneos: os centros hegemônicos do capital impõem seus interesses às demais nações, protegidos por políticas de organismos como a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional, seja penetrando em seus mercados ou deslocando seus investimentos produtivos ou especulativos para onde dão mais lucro, sem nenhum compromisso com as populações locais; a estratégia dos setores produtivos passa a ser de incorporar cada vez mais tecnologia e novas formas organizacionais, aumentando a produtividade e exigindo menos trabalhadores. O fenômeno produzido daí é o que tem sido chamado de “crise estrutural do emprego” ou “crise do trabalho assalariado” (Frigotto, 2005. p. 70), que já vimos em tópico anterior como esse fenômeno se reflete no campo, expulsando os camponeses de suas terras, precarizando (e escravizando) o trabalho assalariado e, agora, provocando uma “crise alimentar” de novo tipo, e também identificamos algumas contradições importantes que emergem desde esta realidade específica.

42. Este momento, por ser de crise, é também de maior explicitação do embate de concepções de sociedade, de trabalho, de educação. É importante ter presente que, quanto “mais regressivo e desigual o capitalismo realmente existente, mais ênfase se tem dado ao papel da educação, e uma educação marcada pelo viés economicista, fragmentário e tecnicista” (idem). Por isso a necessidade de reafirmação de outros pressupostos para pensar a educação dos trabalhadores.

43. Projeto de transformação da sociedade para “além do capital”, que reafirma como referência primeira de nossas práticas a possibilidade de construção pelos trabalhadores de novas relações sociais e o compromisso com as lutas sociais pela

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justiça, pela igualdade social, pela liberdade e por um tipo de sociedade que coloca o ser humano como centro, que valoriza a vida em sua diversidade e plenitude, que coloca a ciência e a técnica a serviço da humanização do mundo. Trabalhar por este projeto supõe a compreensão da realidade social atual e a intervenção sobre ela. E, no caso da Educação Profissional, supõe a convicção política de superar a visão de mera preparação dos trabalhadores para o mercado de trabalho ou de empregos.

44. Visão ampla de educação que é a que “nos pode ajudar a perseguir o objetivo de uma mudança verdadeiramente radical, proporcionando instrumentos de pressão que rompam a lógica mistificadora do capital” (Mészáros, 2005, p. 48 ), contrapondo-se à educação predominante que é de conformação das pessoas a uma lógica que é de sua própria destruição como classe, como grupo social e cultural, como humanidade: individualismo, consumismo, egoísmo, cultura de massa, destruição da natureza.

45. Educação, neste sentido mais alargado, se refere ao processo de formação omnilateral do ser humano (Marx) e que tem nas práticas sociais o principal ambiente dos seus aprendizados (“práxis social como princípio educativo”), e que também nos traz a reflexão sobre a centralidade dos sujeitos no processo pedagógico e o reconhecimento da educação, nas diferentes dimensões que envolve, como um direito humano, de todas as pessoas e em todos os tempos da vida. Centrar-se na formação de sujeitos significa trabalhar por um projeto de ser humano vinculado a um projeto de sociedade, definindo processos de aprendizado necessários a uma formação emancipatória, considerando os vínculos socioculturais dos sujeitos e a diferenciação de cada tempo da vida. E tendo presente que a emancipação humana se faz na totalidade das relações sociais onde a vida é produzida (Ciavatta, 2005), não podendo ser confiada apenas ao domínio da ciência e da técnica e nem mesmo apenas à esfera do conhecimento em si mesmo.

46. A educação escolar é um componente fundamental do processo de formação humana em nosso tempo histórico: um direito social e subjetivo de todos; é também cada vez mais valorizada nos processos de formação profissional que, no entanto, não se esgotam em cursos escolares. Tal como a educação em geral, a formação profissional acontece ao longo da vida, pela articulação entre experiência e conhecimentos que vão sendo apropriados e produzidos no próprio processo de trabalho e no conjunto das vivências sociais.

47. Trabalho como princípio educativo. Compreendemos, desde Marx e Engels que o trabalho é uma categoria de primeira ordem, porque ele será necessário enquanto

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houver ser humano. No trabalho está o princípio de socialização humana: não há como se formar o ser humano sem incluir a dimensão do trabalho; não há como formar uma personalidade não exploradora sem a participação em processos de trabalho: material e imaterial, manual e intelectual, mas tendo presente que a centralidade da concepção de trabalho está na produção material da existência (que implica pensamento e ação).

“O trabalho como princípio educativo deriva do fato de que todos os seres humanos são seres da natureza e, portanto, têm a necessidade de alimentar-se, proteger-se das intempéries e criar seus meios de vida. É fundamental socializar, desde a infância, o princípio de que a tarefa de prover a subsistência, e outras esferas de vida pelo trabalho, é comum a todos os seres humanos, evitando-se, desta forma, criar indivíduos ou grupos que exploram e vivem do trabalho de outros. Estes, na expressão de Gramsci, podem ser considerados mamíferos de luxo – seres de outra espécie que acham natural explorar outros seres humanos”. (FriGOttO, 2005: p.60)

Neste sentido, afirmar o trabalho como princípio educativo é afirmar um princípio que é ético-político, antes de ser pedagógico. O trabalho também pode ser tratado como um princípio pedagógico ou como um método de educação (como nas experiências de Pistrak, Makarenko e, na atualidade, algumas escolas vinculadas a Movimentos Sociais).

48. De qualquer modo, o vínculo entre educação e trabalho é central na concepção da práxis como princípio educativo e nas práticas de uma educação emancipatória. Faz parte do esforço de educar o ser humano compreender como ele está sendo formado/deformado pelos processos de produção e de trabalho em que se insere. A Educação do Campo tem o desafio de reflexão específica sobre os processos de formação humana ou de produção do ser humano, tendo por base os processos produtivos e as formas de trabalho próprias do campo. Qual a potencialidade formadora/deformadora das diferentes formas de trabalho desenvolvidas atualmente pelos trabalhadores do campo? Que conhecimentos são produzidos por estes trabalhadores (e são deles exigidos no trabalho) que se subordinam à lógica da agricultura industrial e de negócio e, no contraponto, por aqueles que hoje assumem o desafio da reconstrução prática de uma outra lógica de agricultura, a agricultura camponesa do século XXI, que tenha como princípios organizadores a Soberania Alimentar, o direito dos povos às sementes e à água, a Agroecologia, a cooperação agrícola? (Caldart, 2008)

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49. Escola unitária, entendida como superação da histórica dualidade entre uma escola destinada aos trabalhadores e outra escola para as elites, e que acabou se materializando na separação entre escolas de Educação Profissional e escolas de formação geral. O princípio da escola unitária expressa uma visão da educação como direito de todos, pressupondo que todas as pessoas possam ter acesso aos conhecimentos, à cultura e às mediações necessárias para trabalhar e para produzir a existência e a riqueza social (Ramos, 2008). Defender este princípio não significa desconsiderar a diversidade, ao contrário, significa construir a base unitária assumindo o diverso. No Brasil, hoje, para chegar à escola unitária é necessário passar pela Educação do Campo (Ramos, exposição no Seminário).

50. Teoria do conhecimento voltada para a transformação da realidade que compreende o conhecimento como uma produção do pensamento que surge da atividade humana (não há conhecimento sem trabalho) e visa construir uma interpretação do real que torne o ser humano sujeito de sua transformação. Isso quer dizer que, embora o conhecimento seja produto de uma atividade teórica, ele somente cumprirá esta sua finalidade maior se não for separado da prática, tomando-a sempre como referência. As prioridades do processo de conhecer, bem como suas finalidades, são estabelecidas levando em conta as necessidades da prática, ainda que muitas vezes o pensamento precise de um afastamento dela para compreendê-la. Nesta concepção, um afastamento reflexivo (atividade teórica) não pode fazer o pensamento perder o vínculo com o movimento do real ou com o problema da realidade que o colocou em ação.

51. Esta teoria do conhecimento supõe, além disso, uma abordagem histórica e dialética do conhecimento, visando apreender como acontece a atividade teórica, que não se realiza pela simples consideração de conceitos em sua expressão formal, mas pela possibilidade de perceber as relações que configuram uma totalidade; busca mostrar, junto com os conceitos, as razões, os problemas, as necessidades e as dúvidas que constituem o contexto de produção de um conhecimento (Ramos, 2005).

52. Todo novo conhecimento implica um conhecimento anterior, e um fenômeno concreto para ser compreendido exige uma integração de diferentes conhecimentos, o que implica uma seleção (ou construção) adequada dos conceitos e categorias teóricas capazes de expressar as relações que definem o real como totalidade que é síntese de múltiplas relações. Do ponto de vista dos estudos escolares e da sua

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organização curricular, isso exige superar o estudo dos conceitos (e das disciplinas) em si mesmos, buscando um movimento dialético entre a problematização de fatos e situações significativas e relevantes para compreensão do mundo atual e a apropriação de teorias e conceitos necessários para compreensão destes fenômenos desde uma determinada concepção de formação humana (Ramos, 2008). 25

53. Formação específica para o trabalho pensada para superar a dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual e atender as exigências de inserção de todas as pessoas no trabalho socialmente produtivo próprio de seu tempo histórico. Trata-se de preparar para um trabalho cada vez mais complexo, sem ignorar as inovações tecnológicas, mas fazendo a sua crítica (e superação) desde o princípio de que as tecnologias que nos interessam são as que efetivamente se constituem como forças produtivas e não destrutivas da vida.

54. Formar profissionalmente, nessa concepção, é proporcionar a compreensão das dinâmicas socioprodutivas das sociedades modernas, com as suas conquistas e os seus revezes, e também habilitar as pessoas para o exercício autônomo e crítico de profissões, sem nunca se esgotar nelas (Ramos, 2008). Caracteriza-se pela “integração do saber, do fazer, do saber fazer e de pensar e repensar o saber e o fazer, enquanto objetos permanentes da ação e da reflexão crítica sobre a ação” (BASTOS, apud Lima Filho e Campello, 2006, p. 137). Trata-se de “superar a redução da preparação para o trabalho ao seu aspecto operacional, simplificado, escoimado dos conhecimentos que estão na sua gênese científico-tecnológica e na sua apropriação histórico-social” (CIAVATTA, 2005, p. 85).

55. Entendimento da tecnologia como prática social que nos

“permite compreender porque a promessa iluminista do poder da ciência, técnica e tecnologia – para libertar o gênero humano da fome, do sofrimento e da miséria – não se cumpriu para grande parte da humanidade e, no mesmo sentido, o caráter mistificador e falso do determinismo tecnológico tão em voga atualmente na propalada sociedade globalizada e do conhecimento. Por outro lado nos permite, também, não cair no sentido oposto mediante uma visão de pura negatividade da tecnologia por ter-se tornado, nas atuais condições do capitalismo, cada vez mais privatizada pelo capital e, consequentemente, mais excludente e destrutiva” (FriGOttO, 2006: p.243).

A ciência, a técnica e a tecnologia fazem parte da disputa de projetos de modos de

25 Este texto referido aqui foi a base da exposição de Marise Ramos no Seminário Nacional.

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produção sociais da existência humana antagônicos e é assim que são apropriadas e produzidas pelos próprios trabalhadores.

56. O conceito de tecnologia tem vários sentidos. Em um debate de concepção é preciso frisar especialmente duas ideias: existe uma relação complexa entre ciência, técnica e tecnologia, uma unidade no diverso: nem uma separação estanque nem a negação da especificidade. A tecnologia não pode ser entendida apenas na dimensão do funcionamento de objetos (ferramentas, máquinas, equipamentos, mecanismos), mas no sentido mais amplo de aprendizados humanos, que incluem o conhecimento empírico, o saber tácito produzido no trabalho, as artes e técnicas desenvolvidas pelos seres humanos, as forças produtivas, as racionalidades e lógicas historicamente produzidas (Machado, 2007). A tecnologia inclui conhecimentos e ações, saber e procedimentos concretos. Mas é preciso evitar uma armadilha comum, hoje: o grande desenvolvimento do saber técnico-científico no capitalismo levou a técnica a se revestir cada vez mais de ciência, trazendo uma maior valorização do saber, do “conhecimento tipo teoria”, ou “uma teoria sobre práticas ou modos de praticar”. Alguns entendem que este é o sentido de tecnologia, uma “ciência das técnicas”; outros entendem que isso é a própria ciência, ou seja, o conhecimento a ser produzido precisa ter uma aplicação tecnológica. Mas esta associação acaba sendo uma armadilha, porque de um lado subordina a ciência às exigências da forma atual de produção (neste momento histórico, a capitalista) e de outro, desvaloriza saberes práticos ou técnicas que sejam diversas da técnica científica moderna, mas que compõem o conhecimento profissional produzido sobre o trabalho coletivamente pelos trabalhadores (pensemos na implicação disso para pensar os desafios da agricultura camponesa, por exemplo). 26

57. Formação politécnica ou educação tecnológica, 27 entendida como a formação para

26 Esta última ideia foi elaborada a partir da leitura do primeiro tópico do texto Tecnologias em Saúde (Schraiber, Mota e Novaes, 2006). Importante a leitura deste texto, o de Frigotto e o de Machado (bem como de suas referências) para compreensão do extenso debate conceitual sobre tecnologia.27 Tenhamos presente a discussão existente em relação ao uso dos termos politecnia (ou educação ou formação politécnica) e educação tecnológica como sinônimos. Segundo Manacorda (apud Lima Filho e Campello, 2006, p. 134), Marx os utiliza como sinônimos, mas como nos adverte Saviani se, “na época de Marx, o termo ‘tecnologia’ era pouco utilizado nos discursos econômicos e o era menos ainda nos discursos pedagógicos da burguesia, de lá para cá essa situação se modificou significativamente. Enquanto o termo ‘tecnologia’ foi definitivamente apropriado pela concepção dominante, o termo ‘politecnia’ sobreviveu apenas na denominação de algumas escolas ligadas à atividade produtiva, basicamente no ramo das engenharias. Assim, a concepção de politecnia foi preservada na tradição socialista, sendo uma das maneiras de demarcar esta visão educativa em relação àquela correspondente à concepção burguesa dominante” (2006, p. 12).

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o trabalho que busca romper com as dicotomias entre “geral e específico, político e técnico ou educação básica e técnica, heranças de uma concepção fragmentária e positivista da realidade humana” (Frigotto, 2005: p. 74). O conceito de politecnia pressupõe a possibilidade de que o processo de trabalho se realize sem ter que se dissociar atividades manuais e intelectuais (Saviani, 2003). Uma formação politécnica supõe o domínio pelo trabalhador das técnicas, das leis científicas e a serviço de quem e de quantos está a ciência e a técnica (Gramsci, apud Frigotto, 2005, p. 74). Implica na apropriação dos fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos e das relações sociais de produção, dos conhecimentos das formas tecnológicas em que se baseiam os processos produtivos contemporâneos e das diferentes linguagens que lhe são próprias; na formação para uma cultura tecnológica e para uma cultura científica, bem como para sua crítica; na produção de tecnologias e de ciência. Uma educação tecnológica (neste sentido alargado originário) inclui a articulação entre conhecimentos do trabalho em si e das formas de gestão e organização do trabalho, sem o que não é possível a participação nas decisões sobre as relações de trabalho.

58. Nessa concepção, a formação profissional é trabalhada como um meio pelo qual o conhecimento adquire, para o trabalhador, o sentido de força produtiva, traduzindo-se em técnicas e procedimentos, a partir da compreensão dos conceitos científicos e tecnológicos básicos (Ramos, 2006). A prioridade é deslocada da apropriação do modo de fazer em si mesmo, para o conhecimento do conjunto de relações que compõem o processo de trabalho, incluídas as relacionadas ao fazer.

59. A Educação Profissional do Campo deve incluir a produção e a socialização de tecnologias próprias à agricultura camponesa do século XXI. Isso quer dizer organizar a formação profissional em torno dos eixos Soberania Alimentar e cooperação agrícola, que trazem junto a afirmação da agricultura camponesa sustentável, da Reforma Agrária, da Agroecologia como matriz produtiva que facilita a preservação e a recomposição da biodiversidade.

60. Do ponto de vista pedagógico, é preciso pensar em como trabalhar com a visão de totalidade inerente aos processos produtivos do campo e, em nosso caso, do trabalho com os assentamentos de Reforma Agrária, compreendê-los, estudá-los, no conjunto de relações que os constituem (e que não são somente as relações de produção agrícola), de modo a projetar um desenvolvimento o mais sustentável possível, nas condições objetivas em que se encontram. Integra este trabalho um

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processo de recuperação do chamado saber camponês que foi se perdendo pela exploração capitalista da agricultura. Não se trata aqui de saudosismos em relação a um passado de atraso, mas sim, da recuperação de tecnologias que representem um avanço da produção que não seja baseada na lógica da agricultura como negócio (que hoje passa pela artificialização ou industrialização da agricultura) e sim, como produção sustentável da vida (ITERRA, 2007). 28

61. Trabalho pedagógico com diferentes dimensões da formação humana integral, porque afirmar a centralidade da formação profissional em um determinado projeto educativo, não pode implicar em abrir mão de uma visão de totalidade do processo formativo. Ainda que o trabalho deva ser assumido como um eixo principal e articulador do currículo, ele não pode ser o objeto único em torno do qual a formação acontece: cultura (sentido amplo) e luta/militância social compõem, junto com o trabalho e pela mediação do conhecimento, a concepção de práxis social, esta sim a referência de matriz organizadora do processo educativo, onde quer que ele se realize, com a intencionalidade formativa aqui defendida.

62. Desde esta perspectiva, é desafio pedagógico permanente articular, no dia a dia dos cursos ou das atividades formativas, as práticas organizativas, o trabalho, a inserção nas lutas, o conhecimento, em um projeto educativo integral, coerente, que produza nas pessoas valores, convicções, visão de mundo, consciência organizativa, capacidade de ação, sentido mais pleno de ser humano. Pretendemos um processo que, afinal, mexa com a totalidade da vida, com as questões da vida, para que as pessoas entendam e ajam sobre o que são, o que pensam, como agem, porque pensam como pensam e agem como agem.

63. Os cursos do PRONERA têm introduzido na sua dinâmica pedagógica algumas práticas que forçam alterações na forma escolar mais convencional: processos de organização da turma, trabalho necessário dos educandos, integração da mística e de práticas culturais ao tempo do curso, exigência do estudo de questões da realidade específica dos estudantes (por exemplo, estudar a questão agrária, independente da área profissional do curso). Para que esse trabalho pedagógico aconteça de forma articulada e coerente, é fundamental garantir, para cada turma, o que nos cursos do PRONERA tem sido chamado de “acompanhamento político-pedagógico”, através de uma equipe de educadores com esta tarefa específica e preparada para isso.

28 A Agroecologia não tem como se desenvolver sem a recuperação de saberes camponeses milenares.

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64. Um destaque especial para o recorte da formação que trabalhamos, pela especificidade do vínculo com Movimentos Sociais e pelo recorte da necessária formação para uma nova lógica de organização da produção baseada na cooperação, está na ênfase a ser dada para a dimensão organizativa, potencializando a característica dos cursos do PRONERA de se constituir a partir de turmas, e não da entrada individualizada de estudantes. Isso favorece o trabalho pedagógico para transformar as formas organizativas e as formas de gestão dadas, tornando-as mais participativas, coletivas, alterando relações de poder secularmente instituídas. Ou seja, faz parte do projeto formativo explicitar e retrabalhar as formas de organização e de gestão dos cursos, das escolas, das universidades, na perspectiva da vivência/projeção de novas relações sociais.

65. Construir a capacitação profissional como práxis, quer dizer, uma formação específica para o trabalho que aconteça pela articulação dialética entre prática, teoria e prática. O entendimento aqui é de que a apropriação dos fundamentos científicos e tecnológicos da produção (politecnia) não acontece primeiro no âmbito da teoria, mas sim se constrói desde a inserção em práticas produtivas que exijam estes conhecimentos teóricos, algo que Marx já defendia no século XIX (união entre a instrução e a inserção dos estudantes no trabalho material produtivo), enxergando neste vínculo o que seriam as tendências da educação do futuro. Hoje, as próprias mudanças na base tecnológica da produção exigem dos trabalhadores mais conhecimentos teóricos, articulados com conhecimentos práticos, ainda que do ponto de vista do capital essa formação precise ficar restrita a uma pequena elite de trabalhadores, e com a devida formação ideológica que a leve a pensar somente para e a favor do capital, sob pena de que se ponha em xeque uma das contradições que ajudam a sustentar a contradição fundamental entre capital e trabalho, que é a contradição entre trabalho manual e intelectual, entre fazer e pensar.

66. É importante ter presente que a questão da relação entre teoria e prática é de concepção, de teoria e de prática, e é de método, de procedimentos pedagógicos adequados, porque não basta afirmá-la como princípio para que aconteça, exatamente pela sua histórica dissociação. Queremos/precisamos que os trabalhadores tenham mais conhecimentos teóricos que façam diferença na sua atuação concreta, seja laboral ou política, mas isso não é o mesmo que juntar, justapor conteúdos teóricos e práticos ou tempos e espaços de teoria e de prática. Estamos afirmando uma teoria, que embora se produza como um afastamento

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(abstração) da prática, não se sobrepõe a ela, nem se encerra em si mesma, perdendo seu vínculo com o movimento do real (Kopnin apud Kuenzer, 2003). Estamos afirmando uma prática que não seja simples atividade utilitária, que se supõe suficiente por si mesma, contrapondo-se à teoria e substituindo-a pelo senso comum. A concepção de capacitação profissional como práxis implica em que ela se objetiva como prática que exige, cada vez mais, conhecimentos teóricos que permitem não apenas o fazer, mas um fazer refletido, pensado, transformador das circunstâncias dadas e imprevistas e transformado por elas (idem).

67. Mas é necessário levar em conta na organização do trabalho pedagógico que a articulação entre teoria e prática, especialmente a que se consegue fazer em um processo formal de educação, é sempre provisória e parcial, um movimento e não uma busca de unificação (Kuenzer, 2003). Quando fazemos cursos de Educação Profissional estamos no plano da mediação, necessária, porém sempre incompleta e parcial.

68. Currículo integrado, entendido como princípio e forma de organização curricular que materialize as bases anteriores no acontecer cotidiano dos cursos, fazendo parte da busca de alternativas, desde uma abordagem histórico-dialética do conhecimento, para superação da fragmentação disciplinar e do descolamento da realidade concreta, que têm caracterizado dominantemente o trabalho com o conhecimento na educação escolar, incluída a profissional. 29 Não se trata aqui, portanto, apenas do sentido estrito de integração em um mesmo curso ou escola entre Educação Básica e Educação Profissional, no caso do nível médio, e de formação geral e Educação Profissional no caso de cursos de nível superior. Trata-se, mais amplamente, de garantir uma forma de trabalho pedagógico (conteúdo e método) que articule, em um mesmo processo, formação para o trabalho, formação cultural, formação política, formação ética e formação científica, conhecimentos gerais e específicos, parte e totalidade, conhecimentos de produtos e de processos, diferentes tipos e formas de conhecimento, teoria e prática.

29 As reflexões atuais sobre currículo integrado têm sido feitas, especialmente, no âmbito do debate sobre a integração entre ensino médio e cursos de Educação Profissional. Trazemos a expressão desde a elaboração que está sendo feita por Marise Ramos, apresentada no Seminário Nacional do PRONERA, que deu origem a este documento, que embora tenha como foco o debate sobre o ensino médio, propõe e pressupõe uma concepção alargada de integração curricular que aqui nos serve como referência para diálogo com outros autores e com as próprias experiências do PRONERA.

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

Mônica Castagna Molina e Sonia Meire Santos Azevedo de Jesus

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

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69. No contexto atual da produção das ciências, ou mais amplamente da produção do conhecimento, e do desenho curricular que predomina nas escolas e nos cursos, essa forma passa por um esforço metodológico de trabalho interdisciplinar, que na formação profissional estrita já poderia ser transdisciplinar, dada a focalização do objeto de conhecimento, passa pela pesquisa como estratégia pedagógica importante, pela discussão de qual deve ser o ponto de partida ou o objeto em torno do qual se articule a formação profissional e pela alternância de tempos e espaços onde aconteça o processo formativo.

70. A interdisciplinaridade, como método, entendida como “a reconstituição da totalidade pela relação entre os conteúdos originados a partir de distintos recortes da realidade; isto é, dos diversos campos da ciência representados em disciplinas. Isto tem como objetivo possibilitar a compreensão do significado dos conceitos, das razões e dos métodos pelos quais se pode conhecer o real e apropriá-lo em seu potencial para o ser humano”. (RAMOS, 2005: p.116) Ou seja, o método interdisciplinar se refere ao uso das categorias e leis do materialismo dialético, no campo da ciência (Freitas, 1995).

71. A transdisciplinaridade pode ser entendida, no contexto da formação profissional, mas tendo por base as mudanças no processo de produção da ciência que, dia a dia, constrói novas áreas a partir da integração de objetos e retirando barreiras historicamente levantadas entre diferentes campos do conhecimento, como um esforço de efetiva superação das fronteiras entre as disciplinas. Isso permite compor novos arranjos de conteúdos de diferentes áreas do conhecimento, articulados por eixos temáticos definidos pela práxis social e por peculiaridades de cada processo produtivo (KUENZER, 2003). Os conteúdos talvez possam ser os mesmos, mas a forma de seleção, organização e trabalho pedagógico será diferenciada, 30 supondo também um diálogo mais facilitado com os conhecimentos (coletivos), que estão presentes/inseridos na experiência de trabalho de cada pessoa (conhecimento tácito), não necessariamente científicos e menos ainda disciplinares, mas dos quais os trabalhadores também precisam se apropriar (ou reapropriar), à medida que, embora os produzam, na prática deles se alienam pela lógica do processo de trabalho ou de sua formação.

30 Por isso, a transdisciplinaridade hoje ainda exige um tratamento disciplinar rigoroso por parte dos educadores e em sua formação.

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A pesquisa é uma estratégia pedagógica integradora do currículo, na medida em que trabalhada para ajudar os estudantes na construção de um método de estudo que articule compreensão, reflexão, tomada de posição, criação, e na compreensão do método de produção do conhecimento, notadamente o científico. E que exercite a atividade teórica desde as questões da realidade ou as necessidades da prática produtiva onde os estudantes estão inseridos.

Uma discussão importante na organização do currículo integrado, em vista da formação profissional, diz respeito ao ponto de partida para a formulação do percurso formativo que, no debate atual, tende cada vez mais a superar tanto a ideia de centralidade no objeto, a tarefa, como no sujeito, o trabalhador, no sentido de formação de comportamentos, passando a tomar como foco o processo de trabalho, entendido enquanto relação entre sujeito e objeto (KUENZER, 2003).

A alternância de tempos e espaços na formação para um trabalho específico tem sido vista como uma forma de enfrentar na organização do currículo a articulação entre teoria e prática e o envolvimento dos próprios estudantes como responsáveis pela sua formação. Não se trata de alternar ou de buscar integrar tempos e espaços de teoria e de prática, ou mesmo de aprendizados diferenciados que podem ser complementares na formação. A integração aqui, que deve ser cuidadosamente pensada, precisa garantir a articulação entre as práticas e as discussões teóricas destas mesmas práticas, em ambos os tempos e espaços (KUENZER, 2003).

Pensando no objetivo da formação profissional, a alternância a ser garantida é aquela entre períodos ou situações de trabalho escolares, no sentido de criadas pelo curso, ou seja, práticas de campo, estágios, situações de trabalho real, da inserção dos estudantes em processos de trabalho que existem e os envolvem independentemente do curso, mas que o curso pode potencializar na formação, através do seu acompanhamento e pela formalização ou reflexão sobre os conhecimentos ali produzidos. Os aprendizados pretendidos são os mesmos, a relação teoria e prática deve estar nas duas situações, mas sua natureza diferenciada pode contribuir mais significativamente para se chegar à capacitação profissional como práxis, para se desenvolver uma formação politécnica.

No caso dos cursos do PRONERA, onde a alternância tem um sentido mais amplo, o que se trata nesse desafio específico é de potencializar (radicalizar) um duplo movimento: o de fazer do Tempo-Escola (TE) um tempo/espaço onde o objeto central de estudo/profissionalização aconteça também como prática (pensada,

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planejada, acompanhada, refletida, teorizada, processual); o de garantir que o Tempo Comunidade (TC) seja um tempo/espaço em que os estudantes se insiram em processos de trabalho relacionados ao foco de profissionalização do curso (ainda que isso não seja o todo do TC), e que esta inserção seja planejada, acompanhada, refletida, teorizada desde a intencionalidade do processo formativo do curso e também tenha um caráter processual.

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Referências

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FREITAS, L. C. Crítica da organização do trabalho pedagógico e da didática. 6ª ed., Campinas:

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Educação Profissional no contexto das áreas de Reforma Agrária: subsídios para discussão de diretrizes político-pedagógicas para os cursos do PRONERA

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Ciências Agrárias e Educação do Campo

Fernando Michelotti31

Gutemberg Armando Diniz Guerra32

Introdução

Fazendo um balanço dos projetos de Ensino Médio e Superior em Ciências Agrárias para assentados de Reforma Agrária, implementados a partir do PRONERA, destacam-se, neste texto, duas questões.

A primeira delas é o crescente envolvimento de instituições de ensino de Ciências Agrárias, resultando numa ampliação da oferta de cursos e de oportunidade de acesso aos assentados. Essa questão reflete um desdobramento positivo dos esforços do Programa em estimular o envolvimento desse segmento profissional na Educação do Campo, ampliando a ação inicial que era mais restrita às séries iniciais da escolarização, vencendo certa resistência num campo do conhecimento que esteve, histórica e institucionalmente, distante da realidade camponesa.

A segunda questão refere-se às contradições que o acesso de camponeses assentados provoca nesse tipo de curso. Reconhecendo que tanto a matriz científico-técnica como a político-pedagógica, em geral, são contraditórias à realidade camponesa, a aproximação com a Educação do Campo possibilita uma crítica aos paradigmas dominantes no ensino das Ciências Agrárias. Há elementos sendo construídos pelos cursos que reforçam o campo de possibilidades, em que pesem os muitos limites encontrados.

A análise dessas duas questões suscitou uma terceira, que norteou a compreensão que se apresenta neste texto: em que medida a oferta desses cursos tem permitido o fortalecimento da capacidade produtiva dos assentamentos? A qual projeto de desenvolvimento do campo esta ação está interligada? Essas são preocupações centrais no processo de continuidade e expansão do PRONERA na área das Ciências Agrárias, dada sua vinculação direta com os

31 Eng. Agrônomo (ESALQ/USP) e Mestre em Planejamento do Desenvolvimento (NAEA/UFPA). Professor Assistente da Faculdade de Ciências Agrárias do Campus de Marabá da UFPA e membro da Comissão Pedagógica Nacional do PRONERA. 32 Eng. Agrônomo (EAUFBA), Doutor em Socieconomia do Desenvolvimento pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris. Professor Adjunto do Núcleo de Ciencias Agrárias e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Pará.

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processos produtivos dos assentados.

Dessa forma, procuramos fazer uma análise do ensino de Ciências Agrárias ao longo dos próximos dez anos do PRONERA, apontando alguns avanços já alcançados, bem como novas questões que deverão estar na agenda do Programa e de seus parceiros nos próximos anos.

Aspectos quantitativos e qualitativos dos cursos de Ciências Agrárias no âmbito do PRONERA

O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) foi criado em 1998, com cursos voltados para a alfabetização e escolarização inicial de assentados. Como para uma educação voltada à realidade dos assentamentos seriam imprescindíveis ações combinadas em outras áreas de conhecimento e outros níveis de ensino, o Programa estimulou projetos de Educação Profissional no campo das Ciências Agrárias, dada a importância deste tema para a consolidação produtiva dos assentamentos. As primeiras experiências nessa direção tiveram início em 2001.

Gráfico 1. Distribuição anual dos cursos de Ciências Agrárias do PrONErA, aprovados pela Comissão Pedagógica Nacional

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NÍVEL MÉDIO/PÓS MÉDIO NÍVEL SUPERIOR Fonte: Coordenação Nacional do PRONERA, 2009. (org. dos autores)

O Gráfico 1 mostra uma predominância de cursos de ensino médio e pós-médio em relação aos cursos de ensino superior em Ciências Agrárias. Do total de 70 cursos indicados no gráfico, 57 (81%) são de ensino médio e pós-médio e 13 (19%) de ensino superior. Nos cursos de ensino médio predominam os de técnico em Agropecuária (67%), com diversas habilitações específicas, sendo crescente a habilitação em ‘Agroecologia’. No ensino superior,

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predomina a Agronomia (69%).

Esse levantamento baseou-se nos cursos aprovados pela Comissão Pedagógica Nacional do PRONERA, sendo que os cursos aprovados até 2005 foram, em sua grande maioria, implantados. Os dados mostram que houve uma perspectiva de oferta crescente desses cursos entre 2003 e 2005, indicando a intenção de envolvimento de várias Instituições de ensino em Ciências Agrárias na Educação do Campo e no PRONERA. As dificuldades de implementação de projetos, seja pelo contigenciamento de recursos para a Reforma Agrária, seja pelas restrições jurídicas e normativas à elaboração dos convênios, explicam a redução de cursos entre 2006 e 2007. As sinalizações de que esses entraves seriam superados em 2008, fez com que um número expressivo de cursos fossem novamente apresentados e aprovados na Comissão Pedagógica Nacional, embora novos entraves fizessem com que nem todos eles pudessem ter sido imediatamente implantados.

Mesmo frente a essas dificuldades, a questão central a ser observada é que o Programa garantiu uma disponibilidade crescente de oferta de cursos de Ciências Agrárias para os assentados de Reforma Agrária, em todas as regiões do País (cf. Gráfico 2). Esse é um sinal importante, posto que uma das expectativas do PRONERA, vinculado à estratégia de desenvolvimento do INCRA, é de atuar mais diretamente no apoio à consolidação produtiva dos assentamentos.

Gráfico 2. Distribuição regional dos cursos de Ciências Agrárias do PrONErA aprovados pela Comissão Pedagógica Nacional

Fonte: Coordenação Nacional do PRONERA, 2009. (org. dos autores)

A importância dessa questão justifica-se na própria concepção de Educação do Campo, que, segundo Caldart (2008), só encontra materialidade se vinculada de forma indissociável à luta por um determinado projeto de desenvolvimento do campo. Projeto este que tem sua centralidade na produção camponesa, sendo o camponês o seu principal sujeito. Por isso,

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não basta o crescimento quantitativo da oferta de cursos de Ciências Agrárias na Educação do Campo. Faz-se necessária uma reflexão qualitativa sobre os cursos que estão sendo ofertados, pois estes devem ser compatíveis com o fortalecimento do projeto camponês de desenvolvimento do campo.

Fundamentos críticos do projeto hegemônico de desenvolvimento do campo e seus sinais de esgotamento

Do ponto de vista econômico, para Marx (2002, p.375-379), o modo de produção capitalista teve seu início quando o processo de trabalho teve ampliada sua escala, passando a fornecer produtos em maiores quantidades, a partir da ação simultânea de grande número de trabalhadores no mesmo local. Inicialmente, este fato ocorreu na chamada manufatura capitalista, que predominou na Europa entre meados do século XVI a meados do século XVIII, muito pouco diferente da antiga oficina do mestre-artesão medieval, a não ser pela ampliação da escala. O que de início era apenas uma modificação quantitativa, começou a operar uma revolução nas condições materiais do processo de trabalho.

O ponto central dessa revolução residiu na criação de uma força produtiva nova, muito mais eficiente, baseada na cooperação, ou seja, numa grande quantidade de indivíduos trabalhando juntos, de acordo com um plano comum e sob o comando do capital33. Uma das principais fontes dessa maior eficiência, segundo Marx (idem, p.392-396), residiu na divisão sistemática de trabalho que começou a surgir a partir desse emprego simultâneo de muitos trabalhadores. Essa divisão do trabalho ampliou a eficiência do trabalhador a partir de três elementos centrais: (1) a especialização do trabalhador numa única tarefa; (2) a redução do tempo de trabalho desperdiçado com as mudanças de uma tarefa para outra; e (3) o aprimoramento das ferramentas de trabalho, que foram sendo aperfeiçoadas para o uso em cada tarefa específica.

Este último elemento teve consequências importantíssimas para esse modo de produção (ibidem, p.427-433), pois é desse processo de aperfeiçoamento das ferramentas manuais utilizadas pelos trabalhadores que foram surgindo as chamadas máquinas-ferramentas e com elas toda a maquinaria que caracterizou o período manufatureiro. A grande vantagem desse processo de mecanização foi a superação dos limites orgânicos, aos quais a ferramenta manual de um trabalhador estava presa, pois por meio dos mecanismos de transmissão, um único movimento humano podia acionar diversas máquinas-ferramentas. A substituição da

33 Esse ponto de partida marca a existência do próprio capital. (Marx. 2002, p.388)

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força motriz humana com a introdução da máquina a vapor foi o passo seguinte.

Todo esse processo de divisão do trabalho na manufatura não pôde ocorrer sem que um certo estágio da divisão do trabalho na sociedade tivesse acontecido, dando origem à produção e circulação de mercadorias (ibidem, p.407). Essa divisão do trabalho na sociedade, que teve início na separação entre cidade e campo, multiplicou-se com o desenvolvimento da própria manufatura. A cada vez, maior complexidade que foi caracterizando o processo de produção, do início da manufatura até a Revolução Industrial completa, caracterizada pela expansão da mecanização de todos os setores da produção até a formação da grande indústria capitalista, passou a exigir que a divisão de tarefas na sociedade diferenciasse o trabalho manual do trabalho intelectual. Dessa maneira, a grande indústria não só passou a exigir a substituição da força humana por outras forças motrizes, como também a substituição da rotina empírica pela aplicação consciente da ciência (ibidem, p.442).

Do ponto de vista da agricultura, Romeiro (1998, p. 44-50) esclarece que paralelamente à Revolução Industrial, a partir de meados do século XVIII, na Europa, estabeleceu-se um novo sistema de cultura, que foi capaz de alimentar não só uma população camponesa crescente, como, ao mesmo tempo, uma população urbana em expansão. Esse novo sistema, baseado na rotação de culturas em substituição às técnicas de pousio que predominaram durante o período feudal, assentava-se sobre um sistema de manejo inteligente, equilibrado do ponto de vista ecológico e altamente produtivo.

A rotação começava com plantas exigentes em controle de ervas daninhas e preparo de solo e capazes de suportar grandes cargas de fertilizantes orgânicos como raízes, tubérculos ou plantas industriais. Em segundo lugar, vinha uma cultura exigente, sobretudo os cereais, para aproveitar os benefícios do cultivo anterior e do adubo já decomposto. A terceira rotação era feita com leguminosas, capazes de controlar as ervas daninhas que começavam a rebrotar e dar nova melhoria na fertilidade do solo, por meio da fixação de nitrogênio. A quarta rotação era feita com uma cultura de cereais menos exigente. Romeiro (idem, p.45) ressalta que esse sistema gerava uma base forrageira com alto teor de carboidratos e proteínas, que melhorava substancialmente a produção pecuária intensiva, liberando terras de pastagens para cultivos e ampliando a produção de esterco utilizado como adubo orgânico. Dessa maneira, tinha-se um ciclo completo e praticamente auto-suficiente.

Apesar da grande expansão desse novo sistema na Europa durante a primeira metade do século XIX, também ocorreram resistências a ele (Romeiro, 1998, p.62-68). Essa resistência vinha, sobretudo, de regiões onde predominavam solos mais férteis e grandes propriedades capitalistas, que haviam se especializado nos cultivos de cereais.

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Mesmo sabendo que os solos não suportavam um cultivo ininterrupto de cereais, frente ao preço mais alto do trigo, economicamente era mais compensador manter as técnicas antigas de pousio de um terço da área e cultivar o restante com este cereal, do que adotar o novo sistema que reduzia o cultivo de cereais exigentes como o trigo em função das rotações. Além da preocupação com o mercado, o novo sistema de cultivo, por ser mais complexo, exigia uma maior qualidade da mão de obra, que não era problema para os camponeses, mas sim para essas grandes propriedades que já trabalhavam com o regime de assalariamento.

Na indústria, a divisão do trabalho levara a uma grande especialização do trabalhador em tarefas especificas e repetitivas, interconectadas e controladas pelo capital ou seus representantes na supervisão. Na agricultura, diferentemente, em função de suas características naturais, era impossível organizar os trabalhadores da mesma maneira. Romeiro (ibidem, p.66-67) afirma que, em função das vantagens econômicas no mercado agrícola e do controle do trabalho, as propriedades capitalistas produtoras de cereais procuraram manter-se com sistemas mais simplificados de cultivo, baseados na monocultura.

Desse sucinto histórico, pode-se apreender algumas questões que permitem refletir sobre o caráter da ciência agronômica contemporânea. Em primeiro lugar, pode-se perceber que, a partir da separação entre cidade e campo, o pólo dinâmico do desenvolvimento capitalista passou a ser a cidade, locus do surgimento da manufatura e, posteriormente, da grande indústria. Essa racionalidade urbana – industrialista passou a ser sinônimo de desenvolvimento, sobretudo quando pensado em seus aspectos econômicos. E esta não ficou restrita às cidades e indústrias, mas espraiou-se também para a produção agrícola capitalista.

Em segundo lugar, a necessidade de uma aplicação consciente da ciência nos processos de produção cada vez mais complexos deu novo impulso à própria ciência. Francis Bacon (1561-1626), precursor de proposições sobre o método científico, associava a produção do conhecimento a uma aplicação imediata aos processos industriais, atestando a premência que se impunha aos estudiosos do período da Revolução Industrial. Para ele, a ciência se justificava pelo progresso técnico que ela poderia proporcionar.

Essa relação ciência-progresso técnico cria uma nova racionalidade da própria ciência. Investindo na descoberta de uma racionalidade presente nas coisas, Bacon fortalece a ideia das possibilidades de um progresso construído a partir da percepção humana e seu domínio sobre as leis da natureza. Seu conceito de ciência passa pela experimentação dos sentidos sobre os objetos. Descartes (1596-1650) supervaloriza a capacidade de racionalização do

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homem e sua capacidade de deduzir as leis existentes nos objetos pela própria capacidade analítica do ser humano. Pensar é prova da existência – “penso, logo existo” (Descartes, 1983) é a máxima que representa o seu ponto de partida da lógica compreensiva. A marca da ciência moderna foi a construção de uma visão de mundo estática–reducionista, calcada em modelos baseados no equilíbrio. A compreensão da realidade é possível porque ela tem uma racionalidade apreensível, compreensível, dominável, mensurável e passível de ser colocada a serviço da humanidade.

A ciência moderna, construída sobre a premissa do domínio do homem sobre a natureza e uma racionalidade baseada no equilíbrio, caracteriza-se pelo exercício de descobrir as leis que regem os fenômenos observados e de reproduzi-los artificial e indefinidamente. Desconsiderando os desequilíbrios provocados pelas trocas propostas e efetuadas por ela mesma, a civilização que se baseou numa ideia de equilíbrio deixou de considerar os efeitos de sua própria ação. Considerando-se superior, acima da natureza, calcada em princípios filosóficos e religiosos que pautavam esta postura, a ciência moderna, ainda que afirmando sua neutralidade, se moldou com esta estrutura. O homem, forjado à imagem e semelhança de Deus, detentor do saber, era igualmente detentor do poder. Para Francis Bacon, saber e poder eram palavras que se confundiam, eram da mesma natureza. Assim, sem levar em conta os limites impostos pela natureza e pelas condições sociais, econômicas, políticas e culturais, a ciência moderna não apenas prevê um equilíbrio estático como supõe neutralidade na percepção do cientista, como se ele fosse impermeável a influências de outra natureza que não a do estatuto do saber científico.

A Revolução Industrial favoreceu a matriz de um pensamento lógico que permite ampliar as manufaturas, as indústrias, a produção agrícola em escala indefinida, sem considerar os limites da natureza. O conjunto de saberes acumulados permitiu uma associação dos métodos de produção industrial com os da produção agrícola. A agricultura, segundo Romeiro (1998, p.186), teve uma “perda da perspectiva de reprodução ecológica de longo prazo”. A preocupação dominante da ciência agronômica passou a ser a substituição das técnicas complexas de manejo das forças da natureza que predominaram antes da Revolução Industrial, para técnicas agrícolas simplificadas, viabilizando a monocultura, com vistas tanto à especialização da produção nas culturas com maiores rendimentos de mercado, como a adequação dessa produção à força de trabalho assalariada, rotineira e repetitiva.

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Essa trajetória da evolução das técnicas agrícolas foi detalhada por Goodman et al (1990)34. Três trajetórias distintas foram observadas. As duas primeiras, de caráter independente entre si, foram dominadas respectivamente pela indústria mecânica e pela indústria química. A terceira, baseada em inovações de ordem biológica, criou padrões muito mais interdependentes, logrando uma maior convergência entre as distintas tecnologias, criando o que foi denominado de “pacotes tecnológicos”.

A mecanização na agricultura teve grande desenvolvimento, sobretudo nos Estados Unidos, com abundância de terras e escassez de mão de obra. Citando exemplos de desenvolvimento de implementos agrícolas, como arados e colheitadeiras, que tiveram grande impulso a partir do século XIX, Goodman et al (Idem, p.12-18) afirmam, no entanto, que a grande transformação ocorreu a partir do motor de combustão interna, no início do século XX. O aprimoramento dos tratores à gasolina com seus sistemas de engate hidráulico, que permitiam a acoplagem de diferentes implementos agrícolas, foi exemplo marcante de uma trajetória tecnológica que garantiu uma ampliação da área cultivada por trabalhador e maior padronização da atividade agrícola, por meio dos cultivos em fileiras.

Na Europa, com uma estrutura agrária mais rígida e força de trabalho mais abundante, a principal preocupação deu-se em como manter a fertilidade dos solos com uma produção ininterrupta de monoculturas exigentes. Goodman et al (Ibidem, p.21) retratam como a agricultura inglesa, a partir de meados do século XIX, começou a quebrar o sistema autossuficiente de rotação de culturas, combinado com criação animal, pela entrada crescente de insumos externos, como as tortas de oleaginosas para alimentação animal e fertilizantes à base de adubos ósseos e guano importado. O passo definitivo nessa direção foi dado no início do século XX, pela descoberta de processos de fixação industrial de nitrogênio, dando origem a uma crescente evolução da química aplicada à agricultura.

A onda de inovações agrícolas com base nas ciências biológicas e genéticas consolidou-se a partir da década de 1930, com as variedades híbridas de alto rendimento, dependentes de insumos químicos (fertilizantes e agrotóxicos) e adaptadas à colheita mecânica (porte padronizado, amadurecimento homogêneo). Com isso, Goodman et al. (1990, p.28) afirmam que a semente passou a ser a portadora do progresso técnico da agricultura, fazendo convergir inovações no campo da mecânica e da química que tiveram que se adaptar às novas variedades criadas, assumindo características de pacotes tecnológicos.

34 Segundo esses autores, as limitações dadas pela natureza orgânica, pela terra e pelo espaço da agricultura, impediram que o capital industrial transformasse o sistema agroalimentar como um todo. Por isso, frações do capital adotaram estratégias diferenciadas e, muitas vezes, em competição. Essas diferentes estratégias foram agrupadas em dois blocos: apropriacionismo e substitucionismo. (Goodman et al, 1990). A evolução das técnicas agrícolas citadas neste texto refere-se ao campo do apropriacionismo.

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A expansão mundial desse modelo para fora da Europa e dos Estados Unidos, a partir das décadas de 1950-60, que ficou conhecida como Revolução Verde, caracterizou-se basicamente pela importação por outros países do pacote tecnológico pronto, normalmente pouco adaptado às condições ecológicas locais e baseados em tecnologias terra-extensivas e poupadoras de trabalho. (Romeiro, 1998, p.98). Apesar do aumento da produtividade agrícola observado, agravaram-se os problemas econômicos, sociais e ecológicos da agricultura nesses países.

Esse processo foi favorecido pela integração crescente de países do terceiro mundo à internacionalização da economia. Mercados potenciais importantes, como o Brasil, tiveram seu papel redefinido na dinâmica do capital internacional. Com uma estrutura de pesquisa deficiente e dispersa, os pacotes tecnológicos serviam a um processo de padronização e controle da produção agrícola, no nível do planeta. Sob a égide da modernização e do combate à fome no mundo, a pressão para o uso de tecnologias baseadas no uso de maquinário, agroquímicos e híbridos, se constitui uma tônica no pós 2ª Grande Guerra Mundial. Aguiar (1986) demonstra como esta modernização da agricultura brasileira ocorreu, e como os pacotes tecnológicos se inseriram como instrumento deste processo. José Graziano da Silva (1980) já havia demonstrado como esta modernização era ao mesmo tempo conservadora, pelo fato de que mantinha a estrutura da terra concentrada, como em todo o período da história do País.

No caso brasileiro, esse processo de importação de pacotes tecnológicos foi acompanhado de uma importante reestruturação da pesquisa agropecuária, com a criação da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), no início dos anos 1970. Os centros da Embrapa, entes constituintes da rede nacional de pesquisa, foram criados para coordenar predominantemente pesquisas por produto (soja, feijão e milho, arroz e trigo, mandioca e fruticultura, algodão, dendê, suínos e aves, pecuária de corte, pecuária de leite, uva e vinho), rompendo com sua perspectiva anterior de regionalização35. O corpo de pesquisadores, contratados a partir da constituição da Embrapa, foi formado em universidades estrangeiras, estabelecendo-se um padrão de formação intelectual elevado e afinado com as propostas de modernização mundial. As definições dos projetos de pesquisa eram feitas conforme as demandas do modelo dominante, em que pese as críticas feitas ao caráter arbitrário dos pesquisadores, neste processo.

35 Apesar dessa tendência geral, não se pode desconsiderar a manutenção e mesmo a criação de alguns centros novos com a ótica da abordagem regional e sistêmica, como o Centro de Pesquisa Agropecuária do Trópico Semi-árido (CPATSA), Centro de Pesquisa Agropecuária do Trópico Úmido (CPATU), Centro de Pesquisa Agropecuária de Terras Baixas (CPATB) e Centro de Pesquisa Agropecuária do Cerrado (CPAC).

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Romeiro (idem, p.111) mostra que, nos seus dez primeiros anos de existência, das 543 tecnologias desenvolvidas e recomendações de pesquisa geradas pela Embrapa, cerca de 80% seguiram a lógica da Revolução Verde, consistindo principalmente de seleção de variedades de alta produção e adaptação de seus respectivos pacotes tecnológicos. É emblemática, ainda, para o fortalecimento da especialização monocultural, que 93,2% dessa produção científica se deu orientada por produto.

Foi nesse contexto da incorporação brasileira da Revolução Verde e das transformações da pesquisa agropecuária, na perspectiva de atender à nova ordem econômica mundial, que as escolas de agronomia também passaram por um processo de reestruturação. A tendência era de especializar ao máximo a formação profissional, acentuando o caráter disciplinar e alienante da produção em massa. Reproduzir tecnologias geradas na rede de centros de pesquisa internacionais, sob o controle do capital dos países ricos, se constituiu no mote das engenharias. Em que pese a resistência da Federação das Associações dos Engenheiros Agrônomos do Brasil a esse processo, levantando a bandeira da manutenção da ecleticidade da formação do agrônomo contra a pulverização profissional que se anunciava, com a criação dos cursos de Zootecnia, Engenharia Agrícola, Engenharia Florestal, e de outros oriundos de disciplinas básicas na estrutura dos cursos de Agronomia, não se conseguiu impedir que as universidades brasileiras seguissem esse rumo. Até porque a resistência possível de ser feita era limitada pelo regime militar instalado desde 1964, endurecido no controle social e político em 1968 e mantido até a primeira metade dos anos 1980, empenhado em garantir a implantação da modernização conservadora da agricultura no País.

A trajetória da produção do conhecimento (ciência) esteve conectada a uma trajetória do modo de produção capitalista na agricultura. Essa racionalidade científica, por sua vez, esteve conectada à formação universitária. No caso do ensino agronômico, as evidências são marcantes pela criação de novos cursos, conceitos e posicionamentos profissionais, refletindo uma mentalidade reduzida com a preocupação da produção de caráter mercadológico, como se o único aspecto importante da vida fosse o trabalho inserido e submisso à dinâmica do capital.

Aumentar a produção e a produtividade era mais do que um lema no combate à fome iminente, em um dos momentos mais fortes da influência malthusiana na modernidade. Estes aumentos eram sinônimos de que decorreriam todas as consequências positivas traduzidas nos discursos como aumento da renda, do emprego, da qualidade de vida das pessoas. A solução dos problemas do mundo era uma questão puramente técnica. Transformar conhecimento em tecnologias, difundí-las e vulgarizá-las passou a ser a

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tarefa de todos os profissionais formados nas escolas agrotécnicas e de agronomia, atuantes em empresas de assistência técnica e extensão rural, organizados em uma grande e poderosa rede de pesquisa, ensino e extensão. O espírito baconiano nunca foi tão presente e praticado.

Nos últimos anos, as profundas manifestações da crise econômica têm colocado em xeque a viabilidade do regime de acumulação capitalista. Do ponto de vista ecológico, seja na perspectiva do aquecimento global, seja da perda da biodiversidade, também têm crescido as preocupações com a capacidade de sustentabilidade desse modo de produção. O modelo agrário hegemônico, em que pese o aumento da produção e da produtividade alcançada ao longo de sua trajetória, tem contribuído para o agravamento dessa crise.

Todo esse processo de aumento da produção e da produtividade industrial e agrícola, via substituição do manejo de elementos da natureza pela introdução de insumos industriais, fazem do modo de produção capitalista um ‘modo de produção fossilista’. (Altvater, 1995, p.111). Isso porque a base energética e material desse modo de produção é obtida a partir de jazidas fósseis, bem ilustrada pelo carvão mineral da primeira fase da Revolução Industrial e pelo petróleo, dominante a partir de uma segunda fase. O problema de fundo é que essas fontes são esgotáveis, quando comparados seus tempos de formação (eras geológicas) e o ritmo da sua utilização pela sociedade atual. Assim, há uma insustentabilidade ecológica sistêmica nesse modo de produção.

Mais especificamente sobre a atividade agrícola, Gonçalves (2004, p.99-107) organiza as causas dessa crise em duas bases: (1) uma diretamente ligada à trajetória tecnológica da agricultura, ou seja, ao aumento desenfreado da utilização da mecanização e dos insumos químicos na produção; (2) a outra, frente a expansão da área das terras cultivadas. A combinação de ambas tem gerado não apenas problemas ecológicos de diversas ordens, como uma concentração de terras e violência contra populações locais e trabalhadores rurais em escala crescente.

Um outro aspecto da crise desse modelo de desenvolvimento produtivo refere-se ao próprio padrão científico da modernidade. A marca da ciência moderna foi a construção de uma visão de mundo estática, reducionista, calcada em modelos em equilíbrio, como dito anteriormente. Esses modelos têm sido cada vez menos capazes de responder às demandas atuais da sociedade. Configura-se um momento de crise científica no sentido de Khun (1996), em que cada vez mais, questiona-se o paradigma dominante, exigindo-se novas referências.

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Elementos inovadores nos projetos de cursos de Ciências Agrárias apresentados ao PRONERA

O atual projeto hegemônico de desenvolvimento do campo vem se construindo ao longo do capitalismo, seguindo os passos de uma racionalidade científico-técnica e ideológica de caráter industrialista, que levou a uma substituição de sistemas de produção complexos, baseados no manejo inteligente das forças da natureza por sistemas simplificados, baseados, por sua vez, na incorporação massiva de insumos industriais e energia fóssil. Consequentemente, é um projeto que tem negado, de forma peremptória, a possibilidade de existência de outros sujeitos no campo que não aqueles que obedecem à sua racionalidade, promovendo a destruição das diversas sociedades indígenas e camponesas e seus saberes, que no entanto, lutam para resistir.

O movimento pela Educação do Campo insere-se nessa luta de resistência, uma vez que fortalece o reconhecimento social dos camponeses como sujeitos do desenvolvimento do campo, não apenas legítimos sujeitos dos direitos universais, mas como portadores das condições objetivas e subjetivas de construção de um outro projeto de desenvolvimento. A materialização da Educação do Campo se dá, portanto, não apenas com a criação de cursos, mas com uma revisão dos paradigmas científicos que os fundamentam e com uma nova perspectiva política em relação à Reforma Agrária.

Por que o campesinato pode protagonizar um outro projeto de desenvolvimento? Enquanto na produção capitalista predominam as relações assalariadas e a separação entre o comando e a execução da produção, o traço diferenciador da produção camponesa é a predominância da execução e do controle do trabalho pela família. Isso significa que não há a separação entre aqueles que trabalham, os que se beneficiam do resultado desse trabalho e os que decidem sobre a alocação do trabalho, ou seja, que organizam a produção, constituindo assim uma unidade indissociável entre a esfera da produção e do consumo (Costa, 2000, p.114-118). Essas características diferenciais trazem consequências para o desenvolvimento da unidade de produção rural, mas também para o sistema agrário como um todo.

O campesinato, tanto pela prioridade dada à reprodução familiar, que fortalece a ideia de Soberania Alimentar, como pela necessidade de organizar a produção de maneira a distribuir a força de trabalho familiar por diferentes atividades ao longo do ano, apresenta uma tendência à produção diversificada que é potencialmente mais sustentável. Ao mesmo tempo, a prioridade dada à reprodução social da família, ao contrário da busca do capital pela produção e acumulação de mercadorias, leva o campesinato a organizar seu território buscando o desenvolvimento de todas as suas dimensões (Fernandes, 2006, p.29).

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Por outro lado, não foram poucas as tentativas, ao longo da história, de aniquilar essas características da organização da produção camponesa, direcionando-a para assumir o mesmo modelo hegemônico, em pequena escala. Por isso, há que ficar claro para as instituições de ensino em Ciências Agrárias que, simplesmente, abrir-se para a entrada de camponeses assentados, por meio de turmas específicas, não garante novos diálogos e novas práticas. A entrada dessas turmas deve ser vista como um possível ponto de partida para que essas instituições também se abram para a revisão de seus projetos político-pedagógicos e dos paradigmas científicos que os fundamentam.

Na maioria dos projetos de curso de Ciências Agrárias apresentados ao PRONERA, pelo menos duas questões inovadoras têm sido frequentes: (1) a Agroecologia, como base de uma nova matriz científico-técnica; (2) a alternância de tempos e espaços educativos, como base de uma nova matriz metodológica. Nota-se, no entanto, que esses dois elementos presentes na ampla maioria dos projetos implementados precisam ganhar qualificação, sob o risco de serem tratados de forma reducionista e estática.

O caráter agroecológico do curso não pode ser visto apenas como a introdução de algumas disciplinas isoladamente. Tampouco, pode ser considerado como mera substituição de algumas técnicas convencionais por outras alternativas, seja nos conteúdos, seja na base empírica das disciplinas. O movimento dos cursos de Ciências Agrárias com enfoque agroecológico deveria ser por uma ruptura com a matriz científico-técnica convencional que o embasa, substituindo-a por uma matriz agroecológica.

Da mesma forma, a alternância não pode ser confundida apenas como uma redução do tempo vivenciado pelos educandos na escola, complementado por atividades realizadas “a distância” nas comunidades de origem. A alternância de tempos e espaços formativos deve ser vista como uma garantia de diálogo permanente entre o saber acadêmico e o saber camponês.

Sobre esse diálogo de saberes necessário à produção de novos conhecimentos agroecológicos, Neves (2006, p.33) chama a atenção para que não deve ser visto de forma mecânica, como uma metáfora estática de uma ‘ponte unindo duas ilhas’, e sim como um processo social e dialético. Ou seja, como um processo de mediação, onde os mediadores constroem as representações sociais dos mundos que pretendem interligar, o campo de relações que torna possível essa interligação e a si próprios, como mediadores (ibidem, 2006, p.52-53).

Por isso, no caso específico da construção de um saber agroecológico, não ocorre uma

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mera interligação de saberes camponeses e saberes acadêmicos, mas sim, a construção de um terceiro sistema de saber, com todas as tensões e contradições que um processo como este implica. Neves (2006, p.60) chama a atenção para duas questões: garantir a voz dos agricultores nos espaços de mediação e construir processos e espaços conjuntos de experimentação. Sem ações como esta, a Agroecologia corre o risco de ser a idealização de um agricultor projetado que nunca se efetiva concretamente ou se efetiva apenas de forma tutelada e artificializada.

Os cursos de Ciências Agrárias do PRONERA podem ser parte fundamental de um processo de dar voz para os camponeses nas instituições que oferecem esses cursos, sejam estes camponeses os matriculados nos cursos, sejam eles os demais moradores dos assentamentos envolvidos no processo de alternância e na organização social e sindical. Podem ser, também, ponto de partida para a constituição de unidades conjuntas de pesquisa e experimentação agroecológica, tanto nas áreas dos assentamentos, como nas das instituições de Ciências Agrárias.

Para materializar essas conquistas, dois elementos são fundamentais. Um deles, que está preconizado no próprio manual do PRONERA, é o princípio da parceria e da gestão participativa dos cursos realizados, entre a instituição de ensino, o INCRA e os Movimentos Sociais e Sindicais do campo. Longe de ser uma interferência externa às instituições de ensino, essa gestão compartilhada é garantia do princípio da participação e da possibilidade de construção de um novo saber agroecológico. O outro, é o reconhecimento que a educação não consegue sozinha garantir a superação de todos os gargalos que se apresentam, para que os assentamentos sejam embrião de um novo projeto de desenvolvimento do campo.

O reconhecimento de que a educação não está isolada dos outros elementos da realidade deve estimular que essa parceria entre Instituições de ensino, INCRA e Movimentos Sociais e Sindicais, expandam sua atuação para o âmbito de outros Programas de desenvolvimento, como ATER/ATES, PRONAF, TERRA SOL, Desenvolvimento Territorial, Infra-estrutura (habitação, estradas). Afinal, todos esses programas, para efetivamente contribuírem com um novo modelo de desenvolvimento do campo, requerem a construção de novos saberes técnicos e organizacionais que precisam ser fundamentados em uma nova matriz do pensamento, que está em construção. Não será a academia, tampouco as instituições governamentais ou os Movimentos Sociais e Sindicais que a construirão isoladamente. Daí a importância desse tipo de parceria vivenciada na Educação do Campo, pautada no diálogo de saberes e na experimentação conjunta, avançar para as demais dimensões do desenvolvimento.

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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Além disso, todos esses Programas requerem agentes de mediação, e os cursos do PRONERA são parte do aparato institucional de formação desses agentes. Os egressos dos cursos, para se legitimarem enquanto agentes de desenvolvimento dos assentamentos, precisam se constituir enquanto mediadores da construção de um novo saber agroecológico, em suas múltiplas dimensões. Para isso, precisam ter clareza de como se dão esses processos sociais, cuja análise deve estar incorporada no próprio processo de formação, que não deve se restringir ao conhecimento das técnicas, mas de como essas técnicas se produzem social e historicamente e a que realidades culturais se aplicam (Neves, 2006). Isso implica na reformulação dos currículos de Ciências Agrárias, que não podem ficar presos ao tecnicismo, mas também implica na participação reflexiva dos educandos e educadores na execução dos Programas de desenvolvimento, o que certamente será facilitado com o engajamento das instituições de ensino na execução compartilhada dos mesmos, na perspectiva da indissociabilidade entre ensino-pesquisa-extensão.

Considerações Finais

A inserção dos cursos de Ciências Agrárias no âmbito do PRONERA mostrou que houve um crescimento quantitativo ao longo desses anos do Programa, que já apontam para alguns avanços importantes em termos qualitativos, como a perspectiva agroecológica presente nos currículos dos cursos, bem como a formação em alternância adotadas em boa parte dos projetos. Argumentou-se que esses avanços podem provocar rupturas com o ensino tradicional de Ciências Agrárias, ensejando novos projetos político-pedagógicos de cursos mais adequados à conformação de um projeto “camponês” de desenvolvimento.

No entanto, uma questão central que se coloca para o futuro é: em que medida a oferta desses cursos tem permitido a criação e/ou o fortalecimento de grupos de pesquisa e extensão nas instituições de ensino de Ciências Agrárias que, para além do PRONERA, possam manter uma agenda permanente de trabalho com os camponeses? Essa parece ser uma questão fundamental que deverá nortear os debates do Programa e de seus parceiros, os Movimentos Sociais do Campo e as instituições de ensino em Ciências Agrárias, nos próximos anos, bem como pesquisas e análises sobre os resultados do PRONERA, para além da mera descrição dos cursos implantados.

A inserção permanente e duradoura da temática da Educação do Campo no tripé ensino-pesquisa-extensão das instituições de ensino de Ciências Agrárias, pode representar um grande fortalecimento para um projeto ‘camponês’ de desenvolvimento dos assentamentos. Nessa perspectiva, a integração dos cursos de ensino médio e superior em Ciências Agrárias, com as demais Políticas e Programas de desenvolvimento dos assentamentos,

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voltados para Assistência Técnica, Crédito Rural, Comercialização, Inovação Agroecológica, Infraestrutura, mostram um caminho promissor para ensino-pesquisa-extensão.

Toda essa experiência pode fortalecer uma revisão crítica dos projetos político-pedagógicos dos cursos de Ciências Agrárias em geral, e não apenas das turmas de assentados. Isso pode levar tanto a alteração dos métodos, como dos conteúdos trabalhados nos currículos dos cursos das instituições envolvidas. Dessa forma, a experiência do PRONERA pode ser vista como um estímulo importante para a busca de novos paradigmas científicos no ensino de Ciências Agrárias no Brasil. Ao mesmo tempo, pode fortalecer um engajamento efetivo das instituições de ensino na construção compartilhada de um novo saber agroecológico e na construção de um outro projeto de desenvolvimento do campo no Brasil.

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Referências

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Maria Isabel Antunes-Rocha

Formação de Educadores e Educadoras da Reforma Agráriano contexto do PRONERA: uma leitura a partir das práticas

Maria Isabel Antunes-Rocha 36

Este texto foi produzido com o objetivo de sistematização e reflexão sobre as práticas de formação de educadores realizadas com apoio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. Uma tarefa instigante e desafiadora, pois a experiência do PRONERA é fecunda. Em uma década, implantou cursos de formação inicial e continuada em quase todas as modalidades de ensino, desafiou limites históricos, rompeu cercas consideradas como definitivas e transformou em realidade o sonho de muitos. Além disso, colocou em evidência a precariedade da educação rural, apresentando, ao mesmo tempo, um caminho, através da Educação do Campo. Enfim, vem construindo uma trajetória significativa no contexto da educação brasileira.

Esforçamo-nos para acessar informações sobre os projetos de formação concluídos e em andamento, entretanto, o cumprimento dessa tarefa requer uma pesquisa mais ampla, a ser desenvolvida em futuro próximo. Sendo assim, trabalhamos com os dados que estão disponíveis na Coordenação Nacional do Programa, com os registros encaminhados pelas Equipes Estaduais de algumas Superintendências, com artigos publicados no I, II e no III Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo, realizados respectivamente em 2005, 2008 e 2010, em Brasília, em capítulos de livros e alguns periódicos 37. A nossa experiência também serviu de base, afinal, trata-se de uma temporalidade de quase 13 anos como propositora, coordenadora, pesquisadora e avaliadora de projetos no âmbito do PRONERA. Optamos, assim, por trazer a materialidade das experiências, por meio dos resultados de pesquisas, bem como de reflexões elaboradas por autores que contribuem com a elaboração de princípios e conceitos constituídos como referências para a prática da formação docente na Educação do Campo.

36 Mestre em Psicologia Social. Doutora em Educação. Professora Adjunta da Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais. 37 Registramos e agradecemos a participação de Nélson Marques Félix, Chefe de Divisão da DDE-1/PRONERA Nacional/INCRA, pelo trabalho de coleta e sistematização das informações sobre os projetos desenvolvidos e em desenvolvimento, bem como pela leitura crítica e atenta deste trabalho.

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O potencial de criação e renovação do Programa no âmbito da formação de educadores inicia-se em suas condições de concepção e implantação. A criação do PRONERA aconteceu no campo fértil das lutas por educação empreendidas pelos Movimentos Sociais e Sindicais no contexto da Reforma Agrária. A elaboração da proposta, sua negociação e operacionalização foram conduzidas por representantes de universidades e Movimentos Sociais que, tendo participado do I Encontro Nacional das Educadoras e Educadores da Reforma Agrária (ENERA), em 1997, concluíram ser necessário um envolvimento efetivo das instituições de ensino Superior na construção do processo educacional nos assentamentos criados pelo Programa de Reforma Agrária. Ao ser criado, em 1998, configurou-se como uma das primeiras conquistas do “Movimento Pela Educação do Campo” em termos de políticas públicas.

Na história das lutas populares pelos seus direitos é possível observar que, depois que as reivindicações são atendidas, temos um histórico de arrefecimento da mobilização. Não foi isso que aconteceu com o PRONERA que, em sua construção, foi se afirmando como espaço permanente de luta e de proposição. Nesse sentido, se constitui como espaço e lugar da experimentação, da produção de conhecimento, da práxis, de prática coletiva, construção de parcerias e diálogo de saberes.

Vale registrar a dissonância que essa experiência provoca na condução histórica dos procedimentos adotados na formação de professores para o meio rural. Até a década de 1980, foram implantadas inúmeras experiências de formação inicial e continuada (Rocha, 2004). As tentativas cessaram quando se instaurou o discurso do fim do rural, portanto, do fim da escola rural e, consequentemente, fim das preocupações com a formação e situação dos docentes que trabalhavam nesse espaço. O PRONERA instala-se no discurso contra-hegemônico, em um tempo/espaço de negação das possibilidades de trabalhar e viver no campo, em outra matriz que não fosse a do latifúndio e a do agronegócio. No relato sobre a implantação do curso de Pedagogia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Zancanella (2010, p.9) evidencia a tensão provocada na universidade diante da demanda.

Por ocasião da proposta de implementação na Unioeste do Curso de Pedagogia para Educadores do Campo, de um lado encontrava-se um grupo de professores que não concordava com a criação do mesmo sob alegação, entre outras, da formação de “guetos”, de outro lado, os professores que, apesar de não terem clareza do que seria certo ou errado, inquietavam-se com o fato de existir tal demanda social e de não fazer nada para atendê-la. Esse grupo de professores, diante da demanda e de seu comprometimento político e social empreendeu discussões sobre a possibilidade de criação do curso, com uma preocupação concreta: como organizar o conhecimento produzido pela academia junto aos saberes da prática dos Movimentos Sociais Populares?

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Diante dessa demanda, as instituições de ensino, os órgãos públicos e os gestores encontram-se frente a um fato concreto: há vida no campo, há demandas por escolas para crianças, jovens e adultos que ali querem permanecer.

Quando da implantação a ênfase inicial era na formação de monitores para atuação nos cursos de Alfabetização de Jovens e Adultos. Ao longo da caminhada, outras necessidades fizeram-se presentes: projetos para a escolarização em nível fundamental, exigindo formação em ensino médio com qualificação para o Magistério e Pedagogia; as demandas pelos anos finais do ensino fundamental e ensino médio exigindo a Licenciatura em diferentes áreas do conhecimento; a necessidade de formação continuada, de produção de material didático, de realização e socialização de pesquisas para atender aos desafios que emergiam da prática.

Em 2010, podemos contabilizar um conjunto de ações formativas que sinalizam aproximadamente para 200 mil jovens e adultos formados, ou em processo de formação, no nível médio – Magistério, no nível superior – Pedagogia das Águas, Pedagogia da Terra, Pedagogia do Campo, Licenciatura em Educação do Campo com habilitação por Área de Conhecimento, Licenciatura em História, Geografia, dentre outros. Incluímos também a formação de monitores para atuação nos projetos de Alfabetização de Jovens e Adultos.

Esse trajeto, percorrido pela maioria das universidades e Movimentos Sociais, pode ser exemplificado pelo relato da Coordenadora do Curso de Pedagogia da Terra desenvolvido na Universidade Estadual da Bahia (Silva, 2010, p.9).

Então, o PRONERA vem, e não tem como não fazer esse histórico, o PRONERA vem como primeiro projeto de alfabetização e os monitores que não tinham concluído o Ensino Fundamental, esses fizeram a escolarização em sistema de alternância. E desse grupo foi fomentado o desejo da sequência a escolaridade e essa demanda foi materializada na realização do curso normal médio. Caminhando para a finalização deste (curso normal médio) muitos desses manifestaram o interesse de dar continuidade e a própria Universidade também se interessou na continuidade, daí nasce a ideia do curso normal superior.

Souza (2010, p.6), ao analisar os conflitos entre o ser professora, mãe, esposa e estudante do Curso de Pedagogia da Terra, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, também evidencia essa trajetória.

Sem dúvida, uma primeira e fundamental contribuição do curso Magistério foi proporcionar o acesso de camponeses e camponesas que não puderam continuar freqüentando a escola. [...] Uma das professoras já havia percorrido esse caminho, tinha concluído o nível fundamental através do supletivo, de 5ª a 8ª série, também oferecido pelo

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PRONERA [...] segundo ela, a importância principal do curso foi ter podido terminar os estudos. O avanço desta etapa, porém, como no passado, foi à custa de muito esforço [...].

Nesse ponto, podemos indagar sobre qual é o significado e impacto desse conjunto de ações na formação de professores que atuam, ou irão atuar, nas escolas do campo nos assentamentos e acampamentos? Escolhemos três eixos de análise: como os projetos dialogam com o contexto de origem do(a) educador? Forma-se qual perfil de educador, para que escola, para que projeto de educação os projetos sinalizam? Qual matriz formativa está em construção?

Com qual realidade os projetos dialogam?

O referencial que ilumina as práticas formativas no PRONERA germina, nasce e frutifica na luta pela terra, pelos direitos a uma vida digna, pela relação igualitária entre homens e mulheres, pelo respeito às diversidades sexual e religiosa, pela distribuição da renda e dos bens produzidos, por uma sociedade justa e sustentável em termos econômicos, políticos, sociais e ambientais. Uma luta histórica que os Movimentos Sociais contemporâneos resgatam, ressignificam e atualizam em função da leitura de que a desigualdade social, econômica e política aumenta, fica mais aguda e mais injusta ao longo do tempo.

A leitura e a prática desse referencial, no âmbito da educação, especificamente na educação escolar, não é tarefa fácil. Fertilizar os processos formativos com estas questões exige superar um modelo de formação de professores já há muito enraízado. Para Arroyo (2010, p.480), os profissionais da escola são formados como se “distantes e imunes e imunizados à dinâmica social e suas tensões.”

Uma das primeiras condições: o educador do campo precisa necessariamente ser do campo. Esta constatação não é uma decisão de gueto, ao contrário, as pesquisas indicam que, historicamente, os que se deslocam da cidade para lecionar nas escolas rurais, permanecem por pouco tempo, não criam vínculos. Em sua grande maioria, desconhecem a realidade social, política e cultural dos alunos e dos seus familiares e são portadores de representações que depreciam os modos de pensar, sentir e agir dos povos do campo (Rocha, 2004).

Os assentados e acampados se constituem como propositores e criadores de processos próprios de formação. São protagonistas na elaboração das metodologias, materiais didáticos e saberes. Colocam-se como parceiros das universidades. Na construção dessa parceria emerge o sujeito coletivo. O educando, que chega como movimento, como parte

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de um grupo, como identidade coletiva, como sujeito de direito. Segundo Molina (2010, p.139), “Uma das maiores riquezas das experiências históricas do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), por exemplo, nos últimos doze anos, é a intensa participação dos Movimentos Sociais na sua concepção, implementação, mudanças e ampliação. Desde seu embrião... em todo seu percurso [...]”. Em outro trabalho, Molina (2010, p.148) alerta que, “o risco de esvair-se a participação dos Movimentos, voltando estes à condição de “beneficiários”, ou pior de, “público alvo”, destas políticas públicas, é grande”.

O PRONERA tem como um dos seus princípios organizativos a presença dos Movimentos Sociais e Sindicais como principais mobilizadores e articuladores dos projetos nos assentamentos, com as universidades e com os demais parceiros. Isto é, os processos de formação são gestados com a presença dos principais interessados, os assentados e acampados da Reforma Agrária. Uma participação que não se restringe à esfera local. Os assentados e acampados, por meio de suas organizações coletivas, integram os coletivos regionais, municipais, estaduais e federais que cuidam da gestão pedagógica, administrativa e política das ações do Programa. Por esse motivo, é que vamos encontrar em todos os projetos político-pedagógicos dos cursos a indicação, como o exemplo abaixo, dos sujeitos coletivos envolvidos na proposta.

A Turma 2005 instalou-se por meio da parceria entre a Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE/UFMG), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) – Via Campesina e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), via Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA). (Antunes-Rocha, 2010, p.390)

Porém, não se trata de uma parceria constituída de organizações vazias, isto é, que se constituem como representantes de si mesmas. Cada coletivo traz em si a força da participação e mobilização dos seus participantes. Cada estudante, ao chegar ao curso, orgulha-se do seu pertencimento, de sua bandeira, de seus valores, de sua história. Nascimento (2010) em estudo sobre as memórias pessoais, familiares, escolares e de envolvimento em coletivos organizados dos alunos do Curso Pedagogia da Terra ofertado pela Universidade Estadual do Rio Grande do Norte, traz relatos sobre a presença dessa dimensão na vivência dos estudantes.

A partir desse grupo de jovens eu comecei a ser colaboradora da Comissão Pastoral da Terra - CPT. Participei de alguns eventos. Nessa época teve eleição no sindicato de Apodi [cidade do RN], e eu fui participar. Eu fui coordenadora da comissão de mulheres do sindicato. (Nascimento citando Hilderland, 2010)

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A dimensão do coletivo traz também a referência identitária. O(a) educando do PRONERA é herdeiro de uma cultura que foi e é depreciada e desvalorizada. Os hábitos, valores, práticas de trabalho, de produzir cultura, dentre outras, da população do campo são considerados como ridículos e atrasados. No diálogo com esse contexto, cada projeto desenvolve estratégias, práticas e recursos para que cada formando possa discutir e refletir sobre esta vivência. A narrativa de uma educanda do curso de Pedagogia da Terra, desenvolvida na Universidade Federal de Sergipe, deixa ver a dimensão afirmativa da condição de sujeito do campo.

Para a turma tudo era novo. Estar na universidade e ter conseguido nosso espaço no ensino superior foi gratificante. Sabíamos das dificuldades que surgiriam e que seriam superadas no decorrer do curso. Contudo, somos sujeitos do campo e detentores de saberes e práticas de nossa realidade e cultura que somadas com o científico, transforma-se em uma aprendizagem significativa. Esta é adquirida processualmente através da troca de conhecimentos entre educandos e educadores comprometidos com a Educação do Campo e para o campo. (Vieira et al, 2010, p.4)

O surgimento do termo Pedagogia da Terra nasce de um desses momentos, nos quais o grupo de educadores do campo reafirma sua identidade. Em 1998, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), organizou a primeira turma de Pedagogia, em parceria com a Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI).

Conforme Caldart (2004), o nome Pedagogia da Terra surgiu quando os educandos decidiram fazer um jornal para contar aos demais estudantes quem era os novos frequentadores da Universidade. Além disso, era também uma forma de resistir à insistência da Universidade em chamá-los de “acadêmicos”. Assim, quando os estudantes do MST passaram a se chamar de “pedagogos” e “pedagogas da terra”, estavam demarcando e declarando esse pertencimento: “antes de universitários, somos Sem Terra, temos a marca da terra e da luta que nos fez chegar até aqui” (Caldart, 2002, p. 25).

Como Caldart (2002) afirma, o mais importante é o respeito a uma identidade que, aos poucos, vai construindo-se entre os Movimentos Sociais do Campo e as universidades, e é isso que as experiências demonstram. Nas Universidades Federais de Minas Gerais, Pará, Santa Catarina e Brasília, só para citar alguns exemplos, o curso de Licenciatura em Educação do Campo foi aprovado como oferta regular. Ao manter essa denominação, fortalece-se uma identidade.

A realidade dos educandos também emerge na discussão de outras dimensões da vida. Como exemplo, Costa et al (2010, p.10), em estudo sobre o perfil das mulheres que participam como educadoras no projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos, concluem que:

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Formação de Educadores e Educadoras da Reforma Agráriano contexto do PRONERA: uma leitura a partir das práticas

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A participação das mulheres/educadoras nos setores ou núcleos na organização dos assentamentos e acampamentos, assim como no PRONERA, tem propiciado que as mulheres/educadoras reflitam sobre a educação no contexto da luta pela Reforma Agrária e sobre os lugares que elas ocupam nesses espaços. A formação das educadoras se dá nos espaços onde vivem, nos quais assumem as lideranças, pois a participação nesses espaços de militância permite que possam ampliar a visão de mundo, provocam reflexões e possibilitam que construam sua identidade como mulheres/educadoras e sujeitos sociais.

Que educador está sendo formado no PRONERA? Para qual escola? Para qual projeto de educação?

As universidades e Movimentos Sociais e Sindicais aceitaram o desafio. Saíram à luta para construir um projeto de formação que fosse capaz de atender às demandas dos assentados e acampados da Reforma Agrária. Nesse propósito, vivenciam dilemas. O sujeito coletivo que se coloca como educador do campo e da Reforma Agrária terá qual perfil?

Já nos primeiros projetos implantados observa-se que o termo professor vai sendo substituído por educador, consequentemente, a palavra educando ocupa o lugar de aluno. A Educação do Campo, nos anos iniciais de sua formulação, já discutia que a prática educativa na perspectiva emancipadora não se restringia à escola, mas também não prescindia da mesma. Como a expressão ser professor vincula-se a uma atuação no âmbito mais localizado da escola, foi aos poucos deixando de ser utilizada.

Assim vai compondo-se o perfil esperado de um educador do campo. Este educador do campo necessita de condições teóricas e técnicas para desconstruir as práticas e idéias que forjaram o meio e a escola rural. Nesse sentido, as necessidades presentes na escola do campo exigem um profissional com uma formação mais ampliada, mais abrangente, já que ele tem que dar conta de uma série de dimensões educativas presentes nessa realidade. Sua atuação faz-se necessária no sentido de permitir a expansão da Educação Básica no e do campo, com a rapidez e a qualidade exigidas pela dinâmica social e pela superação da histórica desigualdade de oportunidades de escolarização vivenciadas pelas populações em tal contexto.

Para tanto, tal profissional precisa de uma formação que o habilite a refletir sobre sua experiência, comprometido com a luta, que considera o modo de produção da vida com o trabalho, com a terra, com a água e com as plantas, como digno e bom. O educador do campo precisa ter a compreensão da dimensão do seu papel na construção de alternativas de organização do trabalho escolar. Uma atuação que entenda a educação como prática

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social. “Um pedagogo da terra é um profissional preparado para “ocupar” a escola, transformando-a na perspectiva da Educação do Campo.” (Caldart, 2007, p. 23)

Enfim, a formação deve contribuir para que o educador seja capaz de propor e implementar as transformações político-pedagógicas necessárias à rede de escolas que hoje atende a população que trabalha e vive no e do campo: um educador do povo do campo para muito além do papel da educação escolar; um educador que assume seu papel como agente de transformação da sua realidade pessoal e social.

Souza (2010, p.9) nos apresenta o perfil do educador proposto na matriz pedagógica do curso de formação de educadores da Reforma Agrária pelos parceiros: Universidade Federal do Maranhão, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Associação dos Moradores em Assentamentos.

O eixo norteador do projeto político pedagógico do PRONERA e, por conseguinte, do II Projeto de Formação de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária do Estado do Maranhão – PRONERA, UFMA, MST, ASSEMA, consiste no desafio de formar educadores compromissados política e socialmente com o seu meio, visando uma educação com qualidade social. Por meio da fomentação da reflexão, da consciência crítica e de resistência de luta das condições objetivas que seus discentes são oriundos.

Sendo assim, a formação e titulação ofertadas nos cursos de formação do PRONERA, objetivam criar condições para atendimento das especificidades dos diferentes contextos de educação escolar, buscando viabilizar as diferentes configurações institucionais que existem e que podem vir a existir. Uma discussão relevante no perfil diz respeito à inclusão dos egressos dos Cursos de Pedagogia e Licenciatura nos sistemas de ensino. Outro ponto importante faz referência à inexistência de uma escola para atuação. Isso porque, o número de escolas das séries finais do ensino fundamental e do ensino médio no meio rural, é pequeno e as que existem estão sendo desativadas. Nesse cenário, o PRONERA, na medida em que forma docentes do e para o campo, também se constitui em uma ferramenta de luta pela existência física da escola.

Contudo, não se trata somente de criar e fazer funcionar escolas. A perspectiva é construir uma organização pedagógica, curricular, administrativa e financeira com o efetivo protagonismo dos sujeitos, bem como articulada ao projeto de desenvolvimento popular do campo. A escola do campo, demandada pelos movimentos, vai além da escola das primeiras letras, da escola da palavra, da escola dos livros didáticos. É um projeto de escola que se articula com os projetos sociais e econômicos do campo, que cria uma conexão direta entre formação e produção, entre educação e compromisso político. Uma escola que, em seus

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processos de ensino e de aprendizagem, considera o universo cultural e as formas próprias de aprendizagem dos povos do campo, que reconhece e legitima esses saberes construídos a partir de suas experiências de vida. Uma escola que se transforma em ferramenta de luta para a conquista de direitos (Kolling, Nery e Molina, 1999).

Nesse sentido, a formação não se fecha em torno de uma única proposta de atuação docente, uma vez que essa atuação deverá necessariamente se adequar às necessidades de promover rupturas, estranhar o que aparece como natural e legal, fazer perguntas, investigar, problematizar e propor. A educação, mais especificamente a escola, assume nessa luta a função de uma ferramenta necessária para contribuir nos processos de organização de uma nova sociedade. Uma educação capaz de produzir aprendizagem de teorias e técnicas que auxiliem na realização do trabalho com a terra, com as águas e florestas com sustentabilidade política, econômica, cultural e social.

Anjos e Simões (2010, p.14), ao estudarem a formação de educadores do campo, em projetos desenvolvidos ao longo de dez anos (1999-2009), no Sudeste do Pará, concluem que:

(...) ser professor no PRONERA era um estar em constante questionamento entre a metodologia proposta e a metodologia utilizada decorrente das experiências anteriores vivenciadas. Percebemos que os elementos do cotidiano docente estão presentes na formação ao se referir ao planejamento, à relação professor-aluno, reconhecer que eles possuem um saber anterior a escola e que este saber auxilia no processo de conhecimento, questões que perpassam a formação necessária à prática docente. E que o processo de construção da Educação do Campo não passa por receitas prontas, diferentes saberes se confrontam entre a academia e os agricultores, que isso enriqueceu o processo e aponta que ainda há muito a ser tensionado na educação dos assentamentos no sudeste do Pará.

Qual projeto político pedagógico está em construção?

O educador com condições de abrir as portas da escola para deixar entrar e sair às necessidades concretas das pessoas exige, não um curso centralizado na instituição formadora, mas em um contexto educativo. A escola como parte integrante de um território educativo (Canário, 2005). Um dos desdobramentos dessas reflexões é, sem dúvida, a organização dos tempos e espaços dos cursos do PRONERA em alternância, criando o par Tempo-Escola/Tempo-Comunidade.

A organização do tempo/espaço, em alternância, tem bases empírica, teórica e institucional. Em termos empíricos, ancora-se na experiência acumulada de quase um século da Rede

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dos Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFA). A alternância já se constitui em tema consolidado de pesquisa nos Programas de Pós-Graduação em educação do País e do exterior (QUEIROZ, 2004). A organização por alternância é também respaldada em dispositivos legais. O artigo 28º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 reconhece a especificidade da escola rural ao possibilitar flexibilidade para a organização dos seus tempos, espaços e currículos adequados à natureza do trabalho. Em 2006, a Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação aprovou o Parecer nº 1/2006, que expõe motivos e aprova os dias de estudo na comunidade como letivos.

A possibilidade de alternar tempos e espaços trouxe para os projetos do PRONERA a discussão da relação teoria/prática bem como a pesquisa como estratégia de ensino e aprendizagem. O projeto pedagógico dos cursos considera que o Tempo Escola e o Tempo Comunidade são processos contínuos de ensino e aprendizagem. Tratados dessa forma, exigem um repensar dos conteúdos, da avaliação, da relação educador-educando, do material didático e da organização metodológica. Um processo fértil em termos da organização e articulação dos conteúdos e formas de ensino-aprendizagem.

Segundo Lima et al (2009), a organização curricular da Turma 2005, na Área de Ciências da Vida e da Natureza, desenvolvida pela Faculdade de Educação/Universidade Federal de Minas Gerais, orientou-se pelo trabalho de pesquisa dos estudantes com relação às questões de sua realidade.

Logo no início do percurso, encomendamos aos educadores em formação uma pesquisa a ser feita junto a suas comunidades. Tal pesquisa esteve orientada por um conjunto de questões que deveriam ser discutidas junto às famílias, aos agricultores, às crianças e jovens que freqüentam as escolas rurais, bem como aos professores e professoras dessas escolas (Lima et al., 2009, p.108).

A pesquisa é prática recorrente nos cursos de formação de educadores. Nos cursos de nível médio e superior, os formandos têm como tarefa elaborar o trabalho de conclusão de curso como estudo de cunho monográfico.

Outro ponto importante na prática de formação refere-se à presença da terra como matriz pedagógica. Antunes-Rocha & Martins (2009, p.17), ao apontarem os desafios da Universidade na construção da parceria para realização do Curso de Licenciatura em Educação do Campo, ressaltam que:

[...] para a Universidade, [...] considerando o uso da preposição, nas expressões – da Terra, do campo –, pode significar um pertencimento – à Terra, ao Campo – de determinados conhecimentos que, em via de mão dupla, serão partilhados com a

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academia. Culturalmente, significa aprender com a terra, aprender com o campo os modos genuínos de olhar para a vida do homem, em sintonia com a vida na natureza. Sociológica e politicamente, significa conhecer e dialogar com diferentes modos de organização da sociedade e das lutas políticas. Discursivamente, significa reconhecer o poder que têm os gestos, as cores, as imagens e as palavras escolhidas para a luta como saberes legítimos.

Para Caldarto substantivo terra, associado com a pedagogia, indica o tipo de materialidade e

de movimento histórico que está na base da formação de seus sujeitos e que precisa ser trabalhada como materialidade do próprio curso: vida construída pelo trabalho na terra, luta pela terra, resistência para permanecer na terra. Quando os estudantes do MST passaram a se chamar de pedagogos e pedagogas da terra estavam demarcando e declarando este pertencimento: antes de serem universitários somos Sem Terra, temos a marca da terra e da luta que nos fez chegar até aqui. (ibidem, 2002, p. 24)

Marques (2010, p.10), em sua pesquisa sobre os significados do curso Pedagogia da Terra para os educandos, traz o relato de um dos seus entrevistados sobre o currículo vivenciado no curso e a tradução do mesmo na escola.

Primeiro, assim, a gente conseguiu construir uma carga horária diferenciada na nossa comunidade... O currículo nosso lá também é diferenciado. A gente teve a preocupação de incluir as questões culturais da nossa comunidade no currículo escolar que até então era tratada de forma homogênea na região... A gente conseguiu com o curso, fazer com que a gente tivesse uma educação diferenciada... Preocupada com as questões ambientais, com as questões culturais e sociais, também econômica dentro da escola... (Santos)

Barros & Rezende (2010, p.2), objetivando identificar as características vinculadas à formação dos educadores de Educação de Jovens e Adultos no projeto executado pela Universidade do Estado de Minas Gerais, evidencia a preocupação em garantir os saberes, mas numa perspectiva que possibilita uma leitura menos restrita a um campo disciplinar.

Ao longo do período de formação lidamos, com as “interconexões” dos saberes. As “disciplinas” que compuseram a proposta curricular foram: Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, Matemática, Ciências, Geografia, História e Educação Artística. A matriz curricular foi constituída pelos componentes curriculares da Base Nacional Comum prevista na LDB – Lei 9394/96 e organizada de acordo com as Diretrizes Curriculares para o 2º segmento do Ensino Fundamental e Educação de Jovens e Adultos do Conselho Nacional de Educação (CNE).

Narrando a organização dos conteúdos e a dinâmica da formação em Ciências Sociais e Humanidades do Curso de Licenciatura em Educação do Campo da Faculdade de Educação/

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Universidade Federal de Minas Gerais, Martins (et.al. 2005, p. 99) informa que: “[...] os estudos nos diferentes campos de conhecimento vinculados à área começaram com uma pergunta básica: o que é imprescindível – de Geografia, de História, de Sociologia e de Filosofia – para a formação de educadores do campo?”

O que é comum para todas as turmas é o processo de organização dos estudantes. Além do Colegiado, em que a presença da representação da turma é obrigatória, há também uma rede de discussão e tomada de decisões junto aos professores e coordenação do Curso. Cada turma estrutura-se em grupos de trabalho, representantes dos grupos, representantes da turma e plenária. Essa estrutura permite a concretização de uma dinâmica que possibilita a discussão do currículo, das aulas, dos processos avaliativos, da realização de trabalhos, de organização dos tempos de estudo, da gestão do espaço de moradia e dos recursos financeiros, dentre outros.

Tal compreensão trouxe elementos para uma presença concreta na sala de aula sobre a organização dos conteúdos, a articulação teoria e prática, o lugar da pesquisa no processo formativo, a discussão sobre a disciplina e auto-organização pessoal e coletiva, dentre outros temas. É preciso, porém, ressaltar que, por meio dela evidencia-se o lugar da realidade concreta dos estudantes como conteúdo, estrutura e dinâmica curricular. Em cada encontro entre Tempo-Escola/Tempo-Comunidade depara-se com os processos de luta pela reprodução e produção da vida no campo.

A participação dos sujeitos como estudantes é também referendada pelo compromisso com suas organizações coletivas. A leitura de relatos da experiência e de pesquisas sobre os cursos desenvolvidos e em desenvolvimento permite identificar práticas que auxiliam a aquisição não só de conhecimentos, mas de habilidades para intervir na realidade.

Numa leitura reflexiva sobre os trabalhos apresentados no II Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo, realizado em Brasília, em 2008, Pernambuco et al. (2010, p. 71) comentam sobre a presença nos relatos de um “[...] ganho de participação coletiva, que é abertura para a construção de novas estratégias de pensamento.”

Para continuar a conversa...

Os dilemas, centrar nos conteúdos ou no aspecto pedagógico-didático, que persistem no cenário da formação docente no contexto educacional brasileiro, são históricos. As críticas a uma formação teórica que se distancia da prática, também. Aliadas a esses, soma-se a ênfase em valores e modos de vida considerados como ideais, a ausência de discussões

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sobre questões de gênero, étnico-raciais, diferentes opções de religiosidade, manutenção de preconceitos, dentre outras. A formação de educadores do campo tem o desafio de buscar caminhos para superar essa tradição.

Um dos desafios refere-se à organização dos conteúdos por área do conhecimento, por temas, por problemas, dentre outras formas de organização do conhecimento. Isso porque lida com saberes e práticas já estabelecidos na universidade e na experiência escolar dos educandos e educandas. As dúvidas sobre o “barateamento” dos conteúdos emergem, a todo o momento, por parte de todos os atores envolvidos nos cursos. A cada reflexão, entretanto, vamos compreendendo e nos afirmando na riqueza de possibilidades que uma leitura multidisciplinar do mundo pode trazer para a escola. O caminho da multidisciplinaridade, interdisciplinaridade e, quem sabe, uma transdisciplinaridade ainda está para ser desbravado.

A formação no Tempo-Escola, alternada com a formação no Tempo-Comunidade, aponta para uma temporalidade articulada com a espacialidade. Contribui para superar um dos maiores desafios para formação de docentes do e para o campo: construir condições para que a formação possa ocorrer em diálogo com as práticas de trabalho, cultura, religião e de lazer dos docentes. A alternância trouxe desafios para a organização dos conteúdos, para o material didático e para a relação pedagógica.

Ressalte-se, ainda, que essa organização em Alternância tem se tornado objeto de pesquisa, revelando interessantes e inovadoras possibilidades quanto às propostas de escolarização, que muito tem a contribuir para o desenvolvimento da pesquisa em si e das políticas educacionais no seu conjunto.

A gestão, em parceria com os Movimentos Sociais, também se configura como uma dimensão desafiadora para todos os envolvidos. Acertar a organização do tempo e do espaço da universidade e dos Movimentos Sociais, atender aos imperativos das agendas de cada um são processos desafiadores no cotidiano dos cursos. A ideia da parceria em muito contribui para os ajustes. Não é um processo fácil, dado que, em muitos momentos, é preciso empenhar-se na capacidade de negociar entendimentos e buscar consensos para que seja possível continuar a caminhada.

A inserção dos egressos no sistema público de ensino constitui-se em desafio para a maioria dos cursos. Adequar a habilitação, a duração do curso, a organização curricular e, mais recentemente, a necessidade de construir uma proposta curricular que seja capaz de atender as exigências legais para atuação nas escolas provoca a tensão: adequar-se ou empenhar-se no diálogo com os sistemas de ensino? Algumas experiências têm sido positivas. A Secretaria

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de Estado da Educação de Minas Gerais autorizou a emissão de documento que habilita o Licenciado em Educação do Campo a ocupar função na rede estadual de ensino como contratado. É um pequeno passo, mas foi dado em função de luta com participação dos educandos, dos seus Movimentos Sociais e da Universidade.

Os desafios para continuidade e manutenção do PRONERA, expressam o significado que ele vem assumindo no cenário da educação na Reforma Agrária, e não somente nela. Fazer as coisas acontecerem tem sido tarefa coletiva de Movimentos Sociais, universidades, técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária e de outros órgãos públicos, políticos, educandos e educadores. Nessa caminhada, vive-se a contradição, os avanços e retrocessos, mas cada projeto, nos seus limites, apresenta um indício de formação de educadores do campo na perspectiva de uma atuação emancipadora.

Nesse contexto de proposição e realização, os cursos têm se constituído em fontes de pesquisa e geração de conhecimentos quanto à formação docente, o que, sem dúvida, poderá trazer contribuições para o desenvolvimento de novas propostas de formação no contexto educativo do campo brasileiro. Mapear esta produção é um trabalho que precisa ser feito, com certeza, com a participação de muitos, principalmente daqueles que se constituem como protagonistas na criação e desenvolvimento dos projetos.

Para as universidades e para os Movimentos Sociais, a experiência da formação de educadores e educadoras é desafiadora, mas como não sabiam que era impossível, fizeram!38

38 O uso desta expressão parodia Jean Maurice Eugène Clément Cocteau (1889-1963). Original: “E não sabendo que era impossível, foi lá e fez.”

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

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Formação de Educadores e Educadoras da Reforma Agráriano contexto do PRONERA: uma leitura a partir das práticas

Maria Isabel Antunes-Rocha

QUEIROZ, J. B. Construção das Escolas Famílias Agrícolas no Brasil: ensino médio e Educação Profissional Brasilia/DF: Universidade Nacional de Brasília, 2004. Tese (Doutorado em Educação)

ROCHA, M. I. A. Representações sociais de professores sobre os alunos no contexto da luta pela terra. Belo Horizonte: Faculdade de Educação. Universidade Federal de Minas Gerais, 2004. Tese (Doutorado em Educação)

SILVA, F. D. S. Formação de professores do MST/BA através do curso Pedagogia da Terra. In Anais do III Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo. III Seminário sobre Educação Superior e as políticas para o desenvolvimento do campo brasileiro. I Encontro Internacional de Educação do Campo. Brasília-DF: 2010. (Disponível em Cd-rom – ISSN 1983-3865).

SOUZA, K. P. História de vida e formação docente: os conflitos vividos por duas educadoras do campo entre ser estudante, professora, mãe e esposa. In Anais do II Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo. II Seminário sobre Educação Superior e as políticas para o desenvolvimento do campo brasileiro. Brasília- DF: 2010 (Disponível em Cd-rom - ISSN 1983-3865).

SOUZA, S. S. O projeto político pedagógico do PRONERA e a sua articulação com o saber social necessário a formação dos Educandos do MST: Uma referência ao II Projeto de Formação de Educadores e Educadores da Reforma Agrária do Estado do Maranhão. In Anais do II Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo. II Seminário sobre Educação Superior e as políticas para o desenvolvimento do campo brasileiro. Brasília – DF: 2010 (Disponível em Cd-rom - ISSN 1983-3865).

VIEIRA, M. L. et al. Formação de educadores do campo: reflexões sobre a experiência em Sergipe.In Anais do III Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo. III Seminário sobre Educação Superior e as políticas para o desenvolvimento do campo brasileiro. I Encontro Internacional de Educação do Campo. Brasília-DF: 2010. (Disponível em Cd-rom – ISSN 1983-3865).

ZANCANELLA, Y. A formação do educador para a Educação do Campo: da prática do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra para a prática na universidade. In Anais do III Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo. III Seminário sobre Educação Superior e as políticas para o desenvolvimento do campo brasileiro. I Encontro Internacional de Educação do Campo. Brasília-DF: 2010. (Disponível em Cd-rom – ISSN 1983-3865).

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

A Mulher Camponesa no Ensino Superior: O caso de Sergipe Denice Batista da Silva

A Mulher Camponesa no Ensino Superior:

O caso de Sergipe

Denice Batista da Silva39

Introdução

O processo de escolarização/formação dos povos do campo sempre constituiu-se de dificuldades, marcadas pelo reduzido número de escolas no meio rural, número insuficiente de professores formados e grande número de salas multisseriadas. Apesar desta realidade, o PRONERA tem assegurado, desde 1998, o acesso à escolarização/formação a centenas de assentadas e assentados de áreas de Reforma Agrária. É sobre a inserção da mulher camponesa no ensino superior via PRONERA que trataremos neste artigo. Este é resultado de uma pesquisa qualitativa, do tipo exploratória, com enfoque teórico-metodológico no materialismo dialético, desenvolvida junto ao núcleo de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe, na linha de pesquisa História, Sociedade e Pensamento Educacional.

A pesquisa teve como objetivo analisar a inserção da mulher camponesa das áreas de Reforma Agrária no ensino superior na Universidade Federal de Sergipe, em dois cursos, a saber: Engenharia Agronômica e Pedagogia da Terra. Identificar que elementos são destacados pelas mulheres como positivadores para constituirem sua autonomia, quando ingressam no ensino superior, foi a questão norteadora da pesquisa.

PRONERA e o ensino superior

A organização e a pressão das trabalhadoras e dos trabalhadores do campo, por meio dos Movimentos Sociais, tem conseguido, aos poucos, abrir as portas das universidades públicas brasileiras. Uma das formas de garantir a inserção dessas trabalhadoras na Educação Superior foi a criação do PRONERA.

39 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe. Membro do grupo de pesquisa Educação e Movimentos Sociais e do Observatório de Educação da UFS.

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A Mulher Camponesa no Ensino Superior: O caso de Sergipe Denice Batista da Silva

O PRONERA, desde 1998, em parceria com universidades públicas e Movimentos Sociais, apoia cursos de nível superior, a exemplo de Engenharia Agronômica e Pedagogia da Terra. No ano de 2006, de acordo com os dados do INCRA, por intermédio do PRONERA, foram ofertados 35 cursos superiores em diversas áreas: Pedagogia, Engenharia Agronômica, Letras, Geografia, Ciências Agrárias, Direito, entre outros, beneficiando 2.751 jovens e adultos assentados em todo o Brasil.

Em Sergipe, de 2004 a 2007, as atividades do PRONERA ocorreram por meio da oferta de cursos superiores nas áreas de Agronomia e Pedagogia, beneficiando jovens provenientes de assentamentos de Reforma Agrária de toda a região Nordeste, tendo sido ofertadas 60 vagas no curso de Agronomia e 50 no curso de Pedagogia, oferecidos pela Universidade Federal de Sergipe, em parceria com o PRONERA/ INCRA/ MDA, MST e FETASE. Após dez anos de caminhada do PRONERA no estado, identificamos nas áreas de Reforma Agrária, pessoas que iniciaram sua escolarização no Programa e que estão cursando o ensino superior pelo próprio PRONERA, enquanto outros já concluíram cursos em diferentes universidades.

Considerando que um dos objetivos do PRONERA é aumentar o nível de escolarização e formação das pessoas que vivem em áreas de assentamentos rurais, podemos dizer que esse Programa tem alcançado o seu objetivo, embora o universo de assentados que demandam a Educação Superior seja muito maior, pois segundo a PNERA40, de 5,6% dos jovens assentados que têm acesso ao ensino médio, apenas 1% tem acesso ao ensino superior.

O PRONERA se constitui numa política que contribui para alterar esses índices, como também, pelo seu método de gestão, que contribui para que a universidade amplie suas possibilidades de exercer uma democracia, na medida em que os currículos parecem contribuir com a necessidade de pensar um projeto alternativo para o campo brasileiro, de forma que este possa se tornar um local que assegure vida digna a todos que vivem no e do campo.

É importante destacar que a abertura das universidades públicas para as trabalhadoras e trabalhadores rurais de áreas de assentamentos não tem se dado de forma pacífica; tem sido à custa de muita luta dos Movimentos Sociais, de professoras e professores universitários que compreendem que a academia é um espaço de todos, sendo assim, todos têm direito ao conhecimento científico, e este deve responder aos desafios e às dificuldades da população do campo que busca uma alternativa de vida, apesar das adversidades da natureza e das dificuldades sociais que enfrentam, fruto de um modelo de desenvolvimento que beneficia poucos e exclui essas trabalhadoras e esses trabalhadores.

40 Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PNERA, 2005.

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Os cursos especiais das universidades públicas apresentam a princípio, duas diferenças. A primeira dá-se no acesso à universidade, pois segundo o edital de seleção do vestibular, uma das condições para concorrer à vaga, é o(a) aluno(a) ser residente de assentamento. Este critério é importante porque assegura que as vagas disponibilizadas sejam disputadas entre jovens oriundos de áreas de Reforma Agrária, ou seja, seus pares, como também prioriza a entrada na universidade a partir de coletivos organizados, situação que faz muita diferença nos níveis de participação do curso, observados por todos os professores.

Este é um critério importante, diante da seletividade das universidades públicas e da pouca qualidade da escola pública de Educação Básica brasileira. Considerando que em áreas rurais a educação nunca foi prioridade dos governantes, uma forma de assegurar o acesso aos jovens oriundos do campo é o acesso diferenciado.

Outra diferença percebida diz respeito à metodologia utilizada para a realização dos cursos, baseada no regime de alternância, situação em que se alterna momentos de estudos e de vivência nos assentamentos, a alternância de tempo: o Tempo Escola, no qual os(as) alunos(as) assistem às aulas nas universidades e o Tempo Comunidade, onde os(as) alunos(as) desenvolvem suas atividades e pesquisas na comunidade, dentro de um processo de reflexão e ação.

Com relação à estrutura curricular, os cursos especiais seguem a matriz curricular e a carga horária dos cursos regulares, com a introdução de algumas disciplinas, geralmente, como optativas.

O acesso às Universidades Públicas Federais

Os dados que apresentamos são fruto da pesquisa realizada junto a seis universidades parceiras do PRONERA – uma do Norte, quatro no Nordeste e uma no Centro-Oeste. As instituições federais de ensino superior pesquisadas, na região Nordeste, foram: Universidade Federal de Sergipe - UFS, Universidade Federal da Paraíba - UFPB, Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN e Universidade Federal do Ceará - UFC. Na região Norte, a Universidade Federal do Amazonas - UFPA / Campus de Marabá, e na região Centro-Oeste, a Universidade Federal de Goiás - UFG. Estas universidades, juntas, ofertaram 11 cursos, dos quais, sete são de Licenciatura em Pedagogia, um de Licenciatura em Ciências Agrárias, um de Licenciatura em História, dois de bacharelado em Engenharia Agronômica.

Os dados coletados mostram como se deu a ocupação das vagas por sexo, nos vestibulares especiais das regiões pesquisadas, no período de 2001 a 2007.

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Gráfico 1Ocupação de vagas segundo sexo no Nordeste, Norte e Centro-Oeste

Fonte: Dados coletados junto aos coordenadores/as dos cursos na UFS, UFPB, UFRN e UFC para o Nordeste, UFPA/Campus Marabá para o Norte e UFGO para o Centro-Oeste

HomensMulheres

Os dados mostram que nas regiões pesquisadas o percentual de mulheres é superior ao de homens na ocupação das vagas. No entanto, ainda há o predomínio feminino nas Licenciaturas e masculino nos cursos de bacharelado.

No total, foram criadas por essas universidades 685 vagas para beneficiários de Reforma Agrária. Destas, efetuou-se a matrícula de 677 estudantes. Dos matriculados, 11,2% desistiram, confirmando os dados da primeira Pesquisa Nacional de Avaliação Externa do PRONERA, na qual verificou-se baixíssimo índice de evasão nos cursos do PRONERA.

Dos prováveis concluintes, 46,38% são mulheres e 43,2% são homens. Os cursos pesquisados tiveram início entre 2001 e 2007, sendo que alguns já foram concluídos, a exemplo de Engenharia Agronômica, da UFS, e Pedagogia da Terra, da UFPA. Outros estão em andamento e serão concluídos em 2011.

Os dados apresentados foram obtidos junto aos(às) coordenadores(as) responsáveis pelos cursos nas universidades e no INCRA. As dificuldades indicam que há a necessidade de sistematização permanente de informações desses cursos, por parte dos órgãos responsáveis pela sua oferta, a fim de que fiquem disponíveis para realização de pesquisas e para definição de políticas públicas na área de educação.

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O caso de Sergipe: quem são e o que pensam as mulheres que participam dos cursos de nível superior do PRONERA na UFS

O curso de Agronomia teve início em 2004 e foi concluído em 2008, beneficiando alunos(as) de vários estados do Nordeste. Formaram-se 46 homens e nove mulheres. Dessas, foram entrevistadas oito. A partir das respostas obtidas, traçamos o perfil das mulheres da turma, enfocando aspectos como idade, condição socioeconômica e escolaridade.

A média de idade da turma é de 22 a 24 anos, o que mostra que é uma turma jovem e está dentro da faixa etária própria do ensino superior. Das entrevistadas, 50% são solteiras e 50% são casadas ou convivem com companheiro. A faixa de renda familiar das estudantes é de zero até dois salários mínimos. Na turma, apenas duas alunas têm emprego e uma é bolsista do Programa de Iniciação Científica (PIBIC). Toda a escolarização das entrevistadas foi realizada na escola pública. No entanto, nenhuma teve o direito de estudar no local em que mora. Elas tinham que se deslocar para a cidade mais próxima.

Questões como renda e dificuldade de deslocamento para estudar são problemas enfrentados por outros jovens nos assentamentos brasileiros, identificados por Rua e Abramovay (2000) em sua pesquisa. É importante ressaltar que duas alunas da turma cursaram o ensino médio via PRONERA. As alunas levaram de 8 a 12 anos para concluir o Educação Básica. No que pese as dificuldades enfrentadas por elas para estudar, concluíram a Educação Básica dentro da média nacional. As estudantes entrevistadas são oriundas de oito assentamentos de diferentes municípios do estado de Sergipe. A formação dessas estudantes representa a possibilidade dos seus assentamentos contarem com assistência técnica especializada, suprindo assim esta necessidade nessas áreas.

O curso de Pedagogia da Terra teve início na UFS, no ano de 2007, com a oferta de 50 vagas. Destas, 13 foram ocupadas por homens e 37 por mulheres. O curso atende a estudantes dos estados de Sergipe e Alagoas. Do estado de Alagoas, a turma conta com cinco alunas, uma reside no assentamento Milton Santos-Ourici II, localizado no município de Atalaia (AL) e quatro moram no assentamento Dom Hélder Câmara, no município de Girau do Ponciano (AL). Em Sergipe, o curso atende a 33 estudantes de 32 assentamentos localizados em 20 municípios do estado. Foram entrevistadas 28 alunas do curso de Pedagogia da Terra.

Ao contrário das alunas de Agronomia, que passavam quatro meses no Centro de Formação Canudos, as alunas de Pedagogia da Terra fazem o curso em períodos intensivos, pois são alternados o Tempo Escola e o Tempo Comunidade. Sendo assim, no período de aula no Tempo-Escola, elas ficam no Centro de Formação Canudos um mês e, logo após, voltam

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para seus assentamentos, para darem continuidade aos estudos no Tempo-Comunidade, onde desenvolvem a pesquisa de campo e a prática pedagógica.

A turma é composta, em sua maioria, de mulheres na faixa etária de 21 a 30 anos. A média de renda das entrevistadas está entre zero e um salário e meio. Com relação ao estado civil, 71,4% são solteiras, 25% são casadas e 3,58% são divorciadas. No que diz respeito ao trabalho, 64,28% informaram que exercem atividade remunerada e 35,72% não estão empregadas.

Quando questionadas a respeito do local em que cursaram a Educação Básica, 64,28% informaram que fizeram o ensino fundamental em escolas das cidades mais próximas ao local em que moram e 35,71% cursaram no próprio povoado. Com relação ao ensino médio, 64,28% das alunas cursaram na cidade, 35,71% nos povoados e 10,7% cursaram via PRONERA. As alunas levaram, em média, de 8 a 20 anos para concluir o ensino fundamental e o médio. Destas, 76,93% tiveram que interromper o estudo por motivos como distância de casa para escola, casamento precoce, filhos, trabalho, que fizeram com que as mulheres passassem tantos anos para concluírem a Educação Básica.

A realidade das estudantes de Agronomia e Pedagogia se assemelha no aspecto econômico, pois, independentemente do assentamento de origem, a média de renda familiar está entre zero e um salário e meio. Mesmo sendo um rendimento baixo, os assentados apresentam um índice de renda superior ao da população no meio rural. O que mostra como a Reforma Agrária, ao desconcentrar a propriedade da terra, assegura a melhoria da renda às(aos) trabalhadoras(es) do campo.

Alguns aspectos diferenciam uma turma da outra. A turma de Engenharia Agronômica é mais jovem, tem maior disponibilidade de tempo para estudar, já que a maioria não exerce atividade remunerada, e não interrompeu os estudos. Apesar das dificuldades enfrentadas para estudar, as alunas de Agronomia apresentam a vantagem de não terem sofrido descontinuidade nos estudos.

No caso das alunas que interromperam seus estudos, entre os motivos causadores desta interrupção, destacam-se o casamento e o trabalho, tanto para as alunas de Agronomia, quanto para as da Pedagogia. Em relação às casadas, alguns maridos não permitem que as esposas deem continuidade aos estudos, ou quando permitem, não ficam com as crianças para que elas possam ir à escola, fazendo com que abandonem os cursos. As mulheres ainda estão sujeitas às ordens do marido ou companheiro, reafirmando a força dos valores da

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família patriarcal no meio rural. Segundo Cruz, “o patriarcado é identificado como sistema sexual de poder, como organização hierárquica masculina da sociedade, que se perpetua através do matrimônio, da família e da divisão sexual do trabalho” (2005, p.40).

No patriarcado há uma relação desigual de poder entre o homem e a mulher, desigualdade esta que se configura na subordinação da mulher e dos filhos às ordens dadas pelo homem da casa, predominando o domínio masculino na estrutura familiar. A dificuldade de dar continuidade aos estudos em virtude de um casamento precoce é destacada também na pesquisa de Rua e Abramovay (2000), o que mostra que este é um problema enfrentado por outras mulheres nos assentamentos.

No tocante ao trabalho, a dupla jornada da casa e da roça afasta as mulheres das salas de aula, e o cansaço impede que elas possam ir à escola. Outra dificuldade apontada pelas mulheres é a distância de casa para a escola, já que as escolas da maioria dos assentamentos atendem apenas aos estudantes do ensino fundamental. Sendo assim, para dar continuidade aos estudos, as mulheres têm que se deslocar para o povoado ou a cidade mais próxima do assentamento.

A distância de casa para a escola e o trabalho são fatores apontados na pesquisa de Emma Siliprandi (2004) como motivos para que as mulheres abandonem a escola no campo. A distância de casa para a escola denuncia o pequeno número de escolas no campo, conforme abordamos no início deste trabalho, mostrando que a maioria delas funciona com classes multisseriadas, ofertam apenas os anos iniciais do ensino fundamental, fazendo com que as estudantes se desloquem para a escola mais próxima, a fim de cursar anos finais do ensino fundamental e o ensino médio. Tais escolas carecem de melhorias tanto na infra-estrutura dos prédios, quanto de acompanhamento pedagógico.

No que pese os motivos destacados serem empecilhos para que as mulheres deem continuidade aos estudos, as entrevistadas desta pesquisa são uma amostra da superação das mulheres do campo em busca da escolarização e de uma vida melhor.

Distância dos filhos, dupla jornada de trabalho, longo período de alojamento somados à presença de homens, à desconfiança do marido, conciliar as tarefas da casa com os estudos, à discriminação da sociedade, as cólicas menstruais, são dificuldades que persistem durante o processo de escolarização das mulheres.

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A Mulher Camponesa no Ensino Superior: O caso de Sergipe Denice Batista da Silva

Gráfico 2 (Questão nº 14)Principais dificuldades enfrentadas pelas estudantes do curso de Agronomia para estudar

Deixar casa, marido e filhos

Conciliar trabalho e estudo

Convivência no alojamento

Ter cursado o supletivo

Não tem dificuldade25%

12,5 % 12,5 %

25%

25%

Fonte: Entrevistas realizadas com as alunas dos cursos de Engenharia Agronômica e Pedagogia da terra

Gráfico 3 (Questão nº 14)Principais dificuldades enfrentadas pelas estudantes do curso de Licenciatura em Pedagogia para estudar

21,42%

14,28%

35,72%

28,58%

Na convivência familiare na comunidade

No desempenho do trabalho

Tem outra visão do mundo

Expressando melhor nasassembléias do assentamento

Fonte: Entrevistas realizadas com as alunas dos cursos de Engenharia Agronômica e Pedagogia da terra

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Um ponto destacado pelas mulheres, quando se referem ao período de estudo no Tempo Escola, está no acúmulo de trabalho doméstico durante o período em que estão fora de casa e a preocupação com os filhos, que ficam com os pais e/ou familiares. A fala das estudantes mostra como a definição de papéis do que é masculino e feminino é uma construção social que atribui à mulher a responsabilidade dos afazeres da casa e da educação dos filhos, evidenciando como é forte a divisão sexual do trabalho dentro de casa, onde as mulheres são responsáveis pelo trabalho reprodutivo e o cuidado com as crianças. Segundo Engels (s/d, p.54-55):

[...] a primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para procriação dos filhos. [...] O primeiro antagonismo de classe que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher, na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, iniciou, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período, que dura, até nossos dias, no qual cada progresso relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros. É a forma celular da sociedade civilizada [...]

No entanto, essa experiência de estudo poderá ser significativa para novas aprendizagens entre homens e mulheres. O curso de Agronomia foi ofertado seguindo a mesma matriz curricular e metodologia do curso regular, ou seja, eram ofertados dois períodos por ano. Durante o período das aulas, o centro de formação Canudos era o espaço do aprender e do conviver, pois os(as) alunos(as) passavam quatro meses alojados. Já o curso de Pedagogia segue a mesma matriz do curso regular, mas se diferencia na sua metodologia, que segue o regime da Alternância.

A convivência no alojamento durante o intensivo de aulas é apontada pelas estudantes de Engenharia Agronômica como uma dificuldade. Segundo elas, é preciso muita confiança do marido e dos pais, pois a maioria dos estudantes é de homens, e elas se sentem sós, já que das conversas dos homens as mulheres não participam.

A fala das estudantes reflete o preconceito que elas enfrentam em casa e na sociedade por estarem inseridas num curso eminentemente masculino. Os valores machistas afloram quando as mulheres passam a ocupar o espaço que socialmente foi reservado para os homens. É nesse confronto que elas percebem o quanto é importante se imporem para serem respeitadas como mulheres, estudantes e cidadãs. Talvez por isso, as estudantes de Agronomia tenham destacado a importância do conhecimento mais do que a participação.

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A Mulher Camponesa no Ensino Superior: O caso de Sergipe Denice Batista da Silva

O fato de as alunas da Pedagogia não apresentarem o alojamento como uma dificuldade, não significa que não o seja. O que nos parece é que, como neste curso o predomínio é feminino, talvez elas não consigam perceber discriminação entre elas e eles. Por outro lado, as relações sociais entre homens e mulheres são tão naturalizadas do ponto de vista dos papéis sociais que cada um deve desempenhar, que grande parte das mulheres entrevistadas não percebe diferenças nas dificuldades enfrentadas por elas e pelos colegas homens para estudar.

Podemos afirmar que a maior parte das dificuldades está relacionada ao papel social que a mulher desempenha, já que, socialmente, é atribuída a ela a tarefa de cuidar da casa, da criação e da educação dos filhos, reservando-lhe as funções do espaço privado da casa.

Considerando que as alunas são oriundas de áreas rurais e que neste universo, segundo Siliprandi (2004), as mulheres dedicam mais tempo por semana aos ditos trabalhos “reprodutivos”, chegando a passar 27,93 horas cuidando da casa e 16,71% cuidando das crianças, estas atribuições acabam interferindo no processo de escolarização feminina. O longo período fora de casa e a convivência com homens durante o intensivo de aulas geram desconfiança do marido. Os valores da família patriarcal afloram quando a mulher ousa sair do espaço privado e passa a ocupar um espaço público, em que elas têm de conviver com outros homens que não são os da família, o que faz com que sofram a discriminação de homens e de mulheres que compreendem que o espaço da mulher é em casa e não estudando. Identifica-se que a maioria das dificuldades enfrentadas pelas mulheres é construída socialmente, ressaltando assim as questões de gênero.

Quando questionadas sobre o porquê da escolha do curso que estão fazendo, 37,50% das alunas do curso de Engenharia Agronômica dizem ter sido influenciadas pelos pais na escolha do curso. Uma possível explicação para isso é o fato de elas serem mais jovens que as alunas da Pedagogia. Para 32,85% das entrevistadas, a escolha do curso está associada à oportunidade que tiveram, e mostra-se a pouca opção que é dada às pessoas do campo para cursarem o ensino superior. Indica também a busca das mulheres pela escolarização/formação, mesmo que esta não corresponda ao curso que sonhou fazer, conforme mostra o gráfico:

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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Gráfico 4 (Questão nº 12)Curso superior que sonhavam fazer

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Licenciaturas Bacharelado Não tem preferência Não informou

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Fonte: Entrevistas realizadas com as alunas dos cursos de Engenharia Agronômica e Pedagogia da terra

Mais de 50% das entrevistadas da Engenharia Agronômica e da Pedagogia sonhavam em cursar uma Licenciatura, o que demonstra a necessidade de professores formados dentro dos assentamentos no estado, pois a maioria dos profissionais de educação que atua nessas áreas não vive nos assentamentos. O fato dos profissionais da educação não pertencerem à comunidade tem gerado alguns problemas para a educação dos seus filhos e filhas, pois muitos(as) professores(as) desconhecem a luta e passam a fazer críticas infundadas com relação ao assentamento e ao processo de conquista da terra.

As relações com a terra e com a educação são motivos apontados para que as estudantes escolhessem o curso que estão fazendo ou fizeram, dado que indica a procura por uma formação relacionada às necessidades das áreas de assentamento em que vivem estas mulheres e ao trabalho. Já que elas desenvolvem atividades nos assentamentos vinculadas à produção e à educação, há uma busca por formação para o trabalho.

Nesse sentido, esses cursos diferenciados devem propiciar uma formação para o trabalho, considerando a relação entre educação e produção, “nos mesmos processos que produzimos e nos produzimos como ser humano”. (CALDART, 2008, p.6). Nesta perspectiva, o trabalho é compreendido como uma atividade produtora da existência humana e de conhecimento, superando a condição alienante do trabalho.

Há uma preocupação das alunas de Pedagogia com a educação da área em que residem, visto que elas têm a intenção de contribuir com a escolarização no assentamento, o que mostra

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a necessidade de pessoas com formação específica nas áreas de Reforma Agrária. Considerando que as alunas são residentes nos assentamentos, conhecedoras da realidade, há a possibilidade de intervenção efetiva na educação, capaz de estabelecer prioridades e de definir as reais necessidades, mediante plena e livre deliberação dos indivíduos envolvidos. Neste sentido, a educação cumpriria “a tarefa de uma transformação social, ampla e emancipadora”. (MÉSZÁROS, 2005, p76)

No que diz respeito às possibilidades de mudanças na vida individual e na comunidade, pelo fato de estarem na universidade, as estudantes atribuem mudanças em suas vidas pelo fato de estarem estudando e adquirindo mais conhecimento. Há uma valorização ao conhecimento adquirido no curso superior, o que mostra a importância do conhecimento científico que é produzido e legitimado pela Universidade. Outro destaque é quanto à mudança proporcionada pelo conhecimento na visão de mundo das alunas. Segundo elas, agora conseguem compreender melhor as relações sociais e almejam um futuro diferente, como mostram as falas das estudantes.

A partir do momento que o homem tem acesso ao conhecimento ele se liberta e consegue ter uma visão ampla da realidade, podendo assim, compreender o porquê da organização social. (Aluna do curso de Pedagogia).

Sempre que busco conhecimento muda minha vida, pois cresço profissionalmente e contribuo mais nas discussões políticas do meu assentamento e também no convívio familiar. (Aluna do curso de Pedagogia)

Quando questionadas sobre o uso que têm feito do conhecimento adquirido na universidade, as respostas se situam tanto no âmbito das interferências diretas nas relações de trabalho quanto na convivência familiar e comunitária.

Gráfico 5 (Questão nº 21)De que forma o conhecimento adquirido no curso tem sido útil na vida

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12,5%

12,5%

Tirar dúvidas da comunidadenas questões relacionadas a terra e a produção

Utilizado no trabalho

Não percebe a mudança

Fonte: Entrevistas realizadas com as alunas dos cursos de Engenharia Agronômica e Pedagogia da terra

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Gráfico 6 (Questão nº 8)De que forma o conhecimento adquirido no curso tem sido útil na vida

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7,16 %10,71 %

10,71 %

10,71 %

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Não respondeu

Não tem dificuldade

Pouca condição financeira

Transporte

Deixar o trabalho e as atividades do assentamento

Distância da família e dos filhos

Fonte: Entrevistas realizadas com as alunas dos cursos de Engenharia Agronômica e Pedagogia da terra.

Há uma forte relação entre formação e trabalho produtivo, pois as estudantes de Agronomia já são procuradas pela comunidade para tirar dúvidas relacionadas à produção. A presença de uma agrônoma na comunidade é um direito que se materializa, já que nas áreas de assentamento há uma carência de técnicos que possam orientar e acompanhar a produção na perspectiva de construção de um modelo de agricultura camponesa que se contraponha ao agronegócio, assegurando dignidade aos(às) trabalhadores(as) do campo brasileiro.

Entendemos que mesmo que a formação desses(as) técnicos(as) tenha se dado em um curso voltado para a atuação na sociedade capitalista, que tem como lógica produzir mais em menos tempo, é a prática desses(as) trabalhadores(as) nos assentamentos que leva à construção de outro modelo de desenvolvimento no meio rural, desenvolvimento este que tenha como princípio o respeito a toda forma de vida, de modo a assegurar a dignidade ao homem e à mulher do campo, e que a terra seja fonte de alimento, vida e produção da cultura humana. É fazer com que todo aprendizado tecnológico se converta em um bem social e não capital.

O conhecimento tem proporcionado às estudantes um certo poder, pois elas têm tido mais argumentos para defender seus pontos de vista na convivência familiar, em casa e na comunidade. Elas passam a exercitar a fala em lugares que antes somente os homens falavam e eram ouvidos. Elas já se sentem com poder de questionar e opinar nos assuntos que dizem respeito à vida em comunidade (nas assembleias e nas reuniões de associações). Essas mulheres, a partir de sua participação, também educam as outras mulheres da comunidade, fazendo com elas também participem. Assim, elas decidem e agem por si mesmas, conscientemente, o que é próprio do processo de emancipação.

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As estudantes de Engenharia Agronômica afirmam que conversam mais com os pais, o marido, a família e que estes passaram a acreditar mais nelas, pedindo sua opinião nas tomadas de decisões. Isto é um dado importante quando se trata da vida em família que, socialmente, tem se constituído como o espaço privado.

O que se observa na pesquisa, é que o acesso ao ensino superior e, consequentemente, ao conhecimento científico, tem assegurado mais respeito às estudantes junto às comunidades. “A comunidade me respeita e está muito feliz. Agora quando eu chego, é a agrônoma que chega” (aluna de Engenharia Agronômica), além de fazer com que elas participem mais dos espaços políticos de tomada de decisão no assentamento. Isso é evidente com estudantes de Pedagogia que desdobram o conhecimento adquirido em ações práticas dentro do assentamento. “Hoje tenho participado mais das assembleias e de reuniões coletivas” (aluna do curso de Pedagogia). “Participo mais das reuniões e contribuo nos outros setores para o desenvolvimento do assentamento” (aluna do curso de Pedagogia). Isto faz com que as alunas fortaleçam a sua identidade e autoestima, passem a expressar e defender seus direitos.

Apesar de algumas entrevistadas do curso de Licenciatura em Pedagogia não perceberem mudanças nas relações familiares e comunitárias por estarem estudando, esta diferença pode ser explicada pelo fato das mulheres da Pedagogia já estarem trabalhando e construírem uma certa relação de poder mais horizontal, por também contribuirem com a renda familiar. Estes elementos já propiciam maior autonomia, visto que elas são responsáveis pela criação dos filhos e pelo gerenciamento da casa.

Para nós, as mulheres avançam quando conquistam autonomia para decidir sobre o rumo das suas vidas em casa e nos espaços de tomada de decisão nas associações, cooperativas e nos movimentos de que participam. As falas das estudantes confirmam a nossa hipótese de que o acesso ao conhecimento por meio do ensino superior é um elemento importante para o reconhecimento da autonomia da mulher, da construção da sua emancipação e da comunidade.

Segundo Adorno (1995, p.16), há uma relação entre emancipação e a conscientização, e esta “seria apreendida como sendo experiência objetiva na interação social e na relação com a natureza, ou seja, no âmbito do trabalho social”. Em se tratando de alunos e alunas das turmas especiais de Engenharia Agronômica e Pedagogia da Terra, entendemos que o processo de conscientização se inicia quando eles e elas passam a integrar e participar do movimento de luta pela terra e contra o latifúndio. É por meio do processo de conquista da terra que vão sendo forjadas as identidades de homens e mulheres, que passam a se

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reconhecer como classe trabalhadora, como Sem Terra, como protagonistas da história. É a possibilidade de sair da condição de objeto da história e passar a ser sujeito dela, mudando assim a realidade em que vive, subjetivamente e objetivamente.

No tocante à continuidade dos estudos, é comum o desejo de continuidade, tanto às alunas da Agronomia quanto às da Pedagogia, reforçando a incessante busca da mulher por formação. Apesar das dificuldades, elas não desistem, pois veem nos estudos a possibilidade de um futuro melhor.

Como a maioria das alunas de Agronomia não exerce atividade remunerada, a expectativa delas é de que, após o término do curso, consigam exercer profissionalmente a função de agrônomas. As de Pedagogia pretendem continuar trabalhando e sonham em fazer uma pós-graduação.

É importante destacar que, o processo de formação dessas mulheres, por meio dos cursos de Agronomia e Pedagogia da Terra, traz um elemento diferenciador dos demais cursos ofertados pela Universidade, pois elas agregam, além da formação acadêmica, a formação política, que é propiciada pela participação em um Movimento Social.

A constituição do assentamento representa melhoria na qualidade de vida, tanto das alunas do curso de Agronomia como das de Pedagogia. Elas reconhecem que houve uma melhoria na renda familiar, o que mostra que a Reforma Agrária, ao desconcentrar a propriedade da terra, distribui renda no campo brasileiro. Outro ponto salientado por elas diz respeito ao processo educativo vivenciado no assentamento. Elas alegam que aprenderam a viver no coletivo, a dar mais importância à organização social, mudou a visão de mundo.

Considerando que passaram por um processo de luta social e organização coletiva, as falas refletem a importância desse processo para resgatar a dignidade humana e para a constituição de um sujeito de direito que agora é sabedor dele e luta por ele.

As alunas reconhecem que o relacionamento entre homens e mulheres no período de aula é bom, pois eles se ajudam quando a questão diz respeito à compreensão de conteúdos ministrados nas aulas. Porém, identifica-se no curso de Agronomia, que é predominantemente masculino, a desvalorização da contribuição intelectual das colegas nos trabalhos, fazendo com que elas apenas desempenhem o papel de relatora do grupo.

Com relação à divisão de tarefas para a manutenção das condições de higiene do alojamento, elas são divididas entre homens e mulheres, fazendo com que eles desempenhem papéis que

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são geralmente atribuídos a elas, como varrer o refeitório, lavar a louça, lavar os banheiros. A divisão de tarefas é feita com base nos coletivos organizados. Neste caso, os coletivos propiciam o exercício de novas relações de trabalho entre homens e mulheres.

Apesar dos dados explicitarem o sentimento de solidão que experimentam as mulheres no curso de Agronomia, em função dos preconceitos que sofrem, aparecem também, por outro lado, informações de que a convivência durante longo período propicia o sentimento de companheirismo e de família no grupo, forjando uma sociabilidade mais coletiva, em que é possível partilharem as alegrias e as tristezas e se fortalecerem para enfrentar as dificuldades próprias do curso e da vida.

Considerações Finais

A pesquisa mostra que a parceria realizada entre universidades públicas, PRONERA/INCRA/MDA e Movimentos Sociais do Campo tem proporcionado a inserção de trabalhadoras e trabalhadores rurais no ensino superior, criando uma possibilidade historicamente negada. Além de garantir o acesso à universidade, os cursos especiais asseguram a formação técnico-científica a assentadas e assentados, colocando-as(os) em condições de igualdade para lidarem com a diversidade do meio rural e com as tecnologias da contemporaneidade, respondendo também à demanda de formação de profissionais de educação e outras áreas para atuarem no campo brasileiro.

Com base nos dados quantitativos levantados, os cursos especiais do PRONERA têm sido uma via de acesso para as mulheres do campo ao ensino superior, pois no universo pesquisado elas são a maioria. Assim como nos cursos regulares as mulheres são maioria no ensino superior, nos cursos especiais do PRONERA, também. O que ainda persiste, tanto nos cursos especiais como nos regulares, é a presença de mulheres em áreas historicamente ocupadas por mulheres, tidas como femininas. Uma possível explicação para a concentração das mulheres nas Licenciaturas é o fato de elas já exercerem a profissão de professoras nos assentamentos em que residem, mesmo sem a formação superior.

Os dados pesquisados mostram também a dificuldade que as mulheres enfrentam para se inserir em cursos como o de Engenharia Agronômica, que tem predominância masculina, o que leva a crer que há uma reprodução da lógica de que os homens devem ocupar os cursos considerados masculinos.

Ao analisar as entrevistas, é possível inferir que, apesar das dificuldades enfrentadas, o acesso ao ensino superior tem contribuído para uma autonomia das mulheres assentadas.

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As respostas mostram que o conhecimento tem trazido mudanças significativas para suas vidas, na medida em que conseguem sair do espaço privado e passam a ocupar o espaço público.

A análise dos dados desta pesquisa pelo viés da educação emancipadora, somente é possível, graças à contradição que é própria da educação, pois, esta tanto educa para conformar quanto para transformar. A educação emancipadora na atual ordem social tem sido forjada pela resistência de trabalhadores e trabalhadoras que, ao lutarem contra o atual modelo de desenvolvimento do campo brasileiro, conquistam o direito de estudar e se apropriam do conhecimento como uma estratégia para transformar a realidade em que vivem.

A apropriação que as estudantes de Engenharia Agronômica e de Pedagogia da Terra têm feito do conhecimento tem sido um indicativo de uma educação emancipadora, pois elas têm tomado consciência da condição de subordinação a que são submetidas, fruto da luta de classes e das diferenças de gênero que são construídas socialmente.

Sabemos que as mulheres que participaram deste estudo são parte de uma totalidade maior que é o universo de milhares de assentadas que vivem no meio rural brasileiro e não têm assegurado o direito de acesso e permanência à escola, o que faz com que neste meio ainda persistam os maiores índices de analfabetismo entre as mulheres. Isto não significa que tais índices não possam ser superados, a partir do momento em que as políticas públicas levem em consideração as necessidades e as dificuldades que são próprias da sociedade patriarcal. Se o fizerem, estarão, de fato, assegurando a equidade no acesso e no resultado, possibilitando assim escolarização/formação das mulheres trabalhadoras do campo e da cidade neste País.

A realização deste trabalho permitiu-nos mergulhar no universo de estudantes que vencem diariamente as adversidades impostas pela vida, pelo fato de serem mulheres, trabalhadoras, mães e esposas, para estudar. Mostrou também como o acesso ao ensino superior e ao conhecimento científico proporcionados à formação, é elemento fundamental para o seu processo de emancipação.

O desejo de dar continuidade aos estudos/formação é uma realidade para três estudantes concluintes do curso de Engenharia Agronômica, que já estão cursando o mestrado em Agrossistemas na Universidade Federal de Sergipe.

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Referências

ADORNO, T. W. Educação e Emancipação. 3ª ed. Tradução: Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

CALDART, R. S. “Por Uma Educação do Campo: Traços de uma identidade em construção”. In: KOLLING, E. J.; CERIOLI, P. R.; CALDART, R. S. (ORGS.). Por Uma Educação do Campo: Identidade e Políticas Públicas. v.4. Brasília, 2002.

CRUZ,M. H. S. . Trabalho, gênero, Cidadania: tradição e modernidade. São Cristóvão: editora UFS, 2005.

ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas, volume 3. Tradução de Leandro Konder. São Paulo: Alfa-Omega, s/d.

INCRA/MDA. Relatório Parcial do PRONERA, 2000.

MÉSZÁROS, I. A educação para Além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2005.

Relatório Técnico-Pedagógico do Projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos nos Assentamentos de Reforma Agrária de Sergipe. PRONERA. Aracaju, 1998/1999.

RUA, M. G.; ABRAMOVAY, M. Companheiras de Luta ou “coordenadoras de panelas”? As relações de gênero nos assentamentos rurais. Brasília: UNESCO, 2000.

SILIPRANDI, E. “Urbanas e Rurais: a vida que se tem, a vida que se quer”. In: A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Perseu Abramo, 2004.

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Protagonismo dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo no PRONERA: Referências para construção da Política Nacional de Educação do Campo

Eliene Novaes Rocha

Protagonismo dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo no PRONERA: Referências para construção da Política Nacional de Educação do Campo

Eliene Novaes Rocha41

“O PRONERA é gente que luta, gente que briga por uma causa justa, gente que confia que haverá melhorias, gente que longe enxerga o futuro, gente que espera esse dia”.

(Educador do PRONERA)

Luta e organização dos Movimentos Sociais e Sindicais pela construção de políticas de Educação do Campo

O direito à organização dos trabalhadores rurais no Brasil é resultado de um processo de embate. A história tem demonstrado que a luta pelo direito e pela democratização do País, esta imbricada pela luta dos trabalhadores no seu processo de organização. Candido Grzybowski (1991) quando analisa a transição política dos anos de 1980, afirma que a construção da democracia exigia uma Reforma Agrária, Movimentos Sociais participativos e autônomos e um papel dos trabalhadores rurais como cidadãos plenos, na definição de políticas estatais e alocação de recursos para o desenvolvimento rural. Os Movimentos Sociais do campo estão em constante processo de luta para serem reconhecidos como sujeitos políticos coletivos.

As formas de organização dos trabalhadores vêm, ao longo dos anos, se transformando e se consolidando. Até os anos de 1940, o que se tem no Brasil é uma presença de movimentos messiânicos, de resistências e lutas localizadas. A partir dos anos de 1940, percebe-se uma mudança na forma de organização dos trabalhadores no campo: o movimento desencadeado pelas Ligas Camponesas, inicialmente no Nordeste e depois em todo o País, representa e demarca um novo perfil da luta política no campo e na própria forma de organização dos trabalhadores do campo. Assim como as Ligas Camponesas, o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER) no Rio Grande do Sul também reafirmaram esse espaço da organização dos trabalhadores no campo.

41 Doutoranda em Educação do Campo, pela Universidade de Brasília (UnB) e membro da Comissão Pedagógica Nacional (CPN) do PRONERA, representando a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG).

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Protagonismo dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo no PRONERA: Referências para construção da Política Nacional de Educação do Campo

Eliene Novaes Rocha

A luta histórica pelo direito à educação no Brasil representa um capítulo importante da luta pela organização social dos povos do campo, aliada à conquista ao direito de se organizar, de organizar suas lutas e de buscar direitos. Articulada à luta pela terra, ampliada pelo debate organizativo e reafirmação do direito a políticas públicas, a pauta da Educação do Campo, enquanto direito subjetivo, assegurado por lei, mas não concretizado para milhões de brasileiros, consolida-se como bandeira de luta e pauta essencial ao processo de desenvolvimento do campo. As lutas dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo por educação buscam assegurar este direito historicamente negado.

A organização dos Movimentos Sociais e Sindicais que, historicamente, tem travado suas lutas, traz a construção de uma identidade coletiva de sujeito social como um dos elementos centrais de sua atuação. No contexto atual, essa concepção propõe repensar o modo capitalista de organização da sociedade, no qual se afirma que cada pessoa é responsável pelo seu sucesso ou fracasso. A organização dos Movimentos Sociais e Sindicais tem reafirmado que essa luta é coletiva, o sucesso ou o fracasso não é determinante da ação individualizada, não se resume somente ao esforço que se faz sozinho. A luta pelo reconhecimento enquanto sujeito coletivo é fruto de pautas conjuntas, articuladas e dialogadas nos diversos processos formativos e organizativos dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo.

Enquanto sujeitos políticos coletivos, destaca Sérgio Sauer (2010), os Movimentos Sociais lutam contra a exclusão política e por direitos que são constantemente negados, explicitando conflitos presentes na sociedade. A situação educacional no campo brasileiro demonstra que embora esforços tenham sido empregados, o quadro social de desigualdades ainda requer e exige atenção, empenho e compromisso. Esse elemento explicita o tensionamento presente na relação social entre os Movimentos Sociais do campo e a necessidade de construção de políticas públicas que assegurem também o direito à educação.

Historicamente, o que se assistiu foi um descaso permanente em relação ao atendimento e acesso à educação para os povos do campo. Haja vista os índices de analfabetismo, evasão escolar, dificuldades de acesso, continuidade e qualidade na escola são alarmantes quando se analisa a situação da população do campo. Em se tratando das áreas de Reforma Agrária, esta situação não é diferente; é, às vezes, mais grave. São as lutas dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo que desnudam essa realidade e ao mesmo tempo articulam políticas estratégicas para construir nos assentamentos um processo de desenvolvimento social, econômico e cultural, que assegure aos sujeitos de direito, um direito imprescindível: acreditar na possibilidade de uma vida melhor.

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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Protagonismo dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo no PRONERA: Referências para construção da Política Nacional de Educação do Campo

Eliene Novaes Rocha

Neste sentido, permanecem nas pautas e lutas sociais a importância e necessidade de construir espaços sociais de participação, de reivindicação, de luta e de reafirmação de uma identidade de campo, de sujeito de campo.

O PRONERA como espaço de luta, organização e garantia do direito à educação

O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária nasce com a expressiva parceria estratégica do Governo, das instituições de ensino superior (IES) e dos Movimentos Sociais e Sindicais rurais. Para Di Pierro e Andrade (2004), o PRONERA surge como uma experiência inovadora de educação voltada para a população dos assentamentos rurais da Reforma Agrária, em meio a um cenário historicamente marcado pela ausência de políticas e ações educacionais.

Desde a sua gênese, o PRONERA apresenta-se como espaço de construção de políticas públicas que articula parcerias internas ao governo federal, instituições de ensino superior, Movimentos e organizações do campo de luta pela terra, além de organizações não governamentais.

Para os movimentos do campo que atuam no PRONERA, este espaço se consolidou como estratégia de luta e organização social, no qual a garantia do direito à educação não está desvinculada da luta pela terra, pela produção, pela vida e pela construção de um projeto de desenvolvimento do campo. O permanente exercício do direito está presente na atuação, na formas de organização destes sujeitos coletivos, nos cursos e na concepção do Programa.

O vínculo da Educação do Campo com os Movimentos Sociais e Sindicais no PRONERA aponta para os diversos aspectos da formação humana, conforme destaca Caldart (2004), quando afirma que pensar a educação exige educar não apenas trabalhadores do campo, mas também militantes de causas coletivas e cultivadores de utopias sociais libertárias. No entanto, essa concepção confronta claramente com os interesses da classe social dominante no Brasil, cujo Estado é o seu forte representante, conforme assinala Jesus (2004), quando destaca que o Estado assumiu historicamente um modelo de dominação oligárquico, patrimonialista e burocrático, no qual sua participação tem sido cada vez mais reduzida, e utiliza-se a política de Estado-providência de forma deficiente, reafirmando um projeto hegemônico global em detrimento dos interesses da sociedade civil.

O PRONERA foi assumido pelos Movimentos Sociais e Sindicais do campo como Programa

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que possibilita atender as demandas da classe trabalhadora que está especialmente nos assentamentos da Reforma Agrária. Este compromisso construído e assumido pelos movimentos do campo que se envolvem no Programa tem como pano de fundo a mobilização das comunidades a continuar lutando, mesmo com as situações adversas a que o PRONERA está submetido. Se por um lado, a criminalização dos Movimentos Sociais do campo impede o avanço desta política, por outro, reafirma junto aos trabalhadores o significado de luta e organização necessárias para garantia dos direitos. Reafirma a necessidade de continuar a luta.

A Educação do Campo, por sua vez, é concebida como um espaço de luta popular pela ampliação, pelo acesso, pela permanência e garantia do direito à escola pública, exigindo o cumprimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, da qual o Brasil é signatário, e onde consta a educação como direito. Este direito também foi reafirmado na Constituição Federal de 1988, onde consta a educação como direito público subjetivo – direito do cidadão, obrigação do Estado. Por isso, os Movimentos do campo levantam suas bandeiras e reafirmam que Educação do Campo é direito nosso, dever do Estado, centrado na luta pela construção de uma escola que esteja no campo, mas que também seja do campo; incorporando outras práticas educativas dos diferentes povos que vivem no e do campo; com projeto pedagógico próprio, construído pelos povos do campo e vinculado às causas, aos desafios, aos sonhos, à história e à cultura desses sujeitos.

Tem-se percebido, a partir da ação dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo no PRONERA, conforme destaca Jesus (2004), não existir política forte gradeada pelo Estado. As políticas públicas inclusivas e socialmente justas acontecem quando referenciadas pelos Movimentos Sociais e Sindicais do campo, no qual o seu espaço é a luta social e o seu tempo é a reconstrução do presente por meio de um conhecimento elaborado coletivamente no conflito e no diálogo.

Este comprometimento social em torno de suas ações, seja pelos próprios movimentos, seja pelas instituições de ensino superior, resulta da compreensão de que a concepção de Educação do Campo traz a formação humana como condição primordial para as populações dos assentamentos. Essa concepção tem como princípio o respeito aos modos de produção dos povos do campo, portador de um jeito diferente de viver, de se relacionar com o tempo, espaço, meio ambiente, de organizar a família e a comunidade, de organizar o trabalho produtivo, dando-lhe uma identidade sociocultural própria (PRONERA, 2004).

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As práticas dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo dinamizam o PRONERA

O PRONERA tem se constituído como patrimônio simbólico da luta pela Educação do Campo no Brasil, como espaço de diálogo permanente entre o poder público nos seus vários níveis, com as instituições de ensino superior, as Escolas Famílias e com a sociedade representada pelos Movimentos Sociais e Sindicais do campo. Essa parceira não se refere simplesmente a uma relação abstrata e longínqua, tão características de muitas políticas públicas existentes, mas de parceria concreta e real, que se inicia com a mobilização dos camponeses pela luta por educação, por escola e para ampliar a sua ampliação, na medida em que assumem uma atuação efetiva e participativa nos processos pedagógicos.

Podemos afirmar que o PRONERA é resultado de uma maior organização dos Movimentos Sociais do campo, no Brasil, a partir dos anos 90, que gerou por sua vez uma intensa mobilização na área de educação. Este momento marca também a construção de novos paradigmas, de novos jeitos de fazer e pensar o processo pedagógico, tendo na sua intencionalidade a transformação dos sujeitos históricos da luta por Reforma Agrária em sujeitos políticos, tendo a perspectiva emancipatória e transformadora como elemento orientador deste processo (COSTA, 2010).

O PRONERA nasce em 1998 não somente como um Programa de atendimento a “beneficiários analfabetos” da Reforma Agrária; representa a construção conjunta de uma política de cunho nacional, na qual muitos segmentos constroem suas ações. Sua própria criação faz do Programa uma estratégia de luta, e ao longo desse processo muitas marcas foram sendo impressas pela atuação dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo, dentre eles, algumas fazem do Programa uma referência para contribuir com o debate e a construção de uma política nacional de Educação do Campo.

Movimentos Sociais e Sindicais como protagonistas da Educação do Campo

O que caracteriza o protagonismo dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo no PRONERA e consequentemente na Educação do Campo? Os movimentos aos quais nos referimos estão organizados coletivamente, fazem de suas ações resultado do processo de diálogo e construção coletiva dos sujeitos a que estão vinculados. São movimentos que definem ações estratégicas, que têm como base, para esta construção, a vivência e o conhecimento da realidade, das comunidades e dos assentamentos onde, de fato, estão os sujeitos.

A compreensão do campo, com suas histórias, seus sujeitos, suas culturas, precisa ser assumida pela escola como fonte de estudo e de conhecimento. A construção de saberes

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precisa acontecer de forma contextualizada, a partir do estudo de temas socialmente significativos para o grupo em formação e que estimulem a reflexão, e a reflexão sobre assuntos estratégicos e importantes para o debate do projeto de desenvolvimento para o campo. Esses temas têm se revelado como necessários para toda a sociedade.

É preciso reconhecer as contribuições nas iniciativas pedagógicas dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo, cujas práticas têm afirmado a educação como direito universal e construído um novo jeito de educar, afirmando projetos educativos próprios e assumindo a escola como um lugar estratégico de uma formação que possa contribuir na melhoria das condições de vida dos mesmos.

A reivindicação e o acesso ao processo de escolarização pelos assentados da Reforma Agrária, enquanto sujeito coletivo de direito, representa também uma marca importante nesta construção. Essa identidade coletiva representa, na Educação do Campo, condição essencial e indispensável, pois nasce da luta dos trabalhadores e trabalhadoras do campo, assim como contribui para a mobilização e organização dos camponeses que fortalecem e identificam essa presença coletiva na sociedade. Assim como não é possível afirmar uma política de Educação do Campo, sem debater o campo, na Educação do Campo a ausência da organização social dos trabalhadores, faz dela uma política frágil e sem sustentação.

O protagonismo assumido pelos Movimentos Sociais e Sindicais do campo no PRONERA não se restringe à organização dos trabalhadores e à reivindicação de seus direitos, mas se amplia à medida que atuam como educadores, como sujeitos formadores de novos sujeitos políticos, que interferem e alteram de alguma forma a realidade, e contribuem para se pensar em outro projeto de sociedade. Essa atuação possibilita a construção de uma nova matriz e um novo fazer pedagógico, não mais ‘para os sujeitos’, mas sim ‘com os sujeitos’ políticos forjados nas lutas, nos Gritos, nas marchas, nas jornadas, no processo político-pedagógico de aprender a fazer fazendo, experimentando, solidarizando-se, cotidianamente.

Esse processo tem gerado por sua vez a necessidade de assegurar a articulação entre a formação/escolarização a um projeto de desenvolvimento dos assentamentos e do campo brasileiro. O projeto pedagógico construído para as escolas do campo reafirma a importância e necessidade do vínculo social da educação articulada a um projeto de desenvolvimento. A educação, por si só, não é capaz de fazer a transformação social do campo, no entanto sem ela, esse processo também não acontece. Assim a educação protagonizada pelos Movimentos Sociais e Sindicais do campo no PRONERA traz como princípio orientador a educação como propulsora de desenvolvimento, tendo como base

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os sujeitos envolvidos, os diversos espaços e tempos de suas lutas, organização, produção. Não há um projeto de desenvolvimento de campo sem educação, assim como não há um projeto de educação sem o campo.

Neste sentido o aprofundamento sobre a formação profissional dos trabalhadores do campo, que considere as metodologias da Alternância, as temáticas orientadoras do projeto de desenvolvimento do campo, da formação de agricultores são estratégicas importantes e inovadoras que qualificam a ação do PRONERA (Caldart, 2004).

A contribuição política e pedagógica nos processos formativos que acenam para a construção de uma perspectiva mais ampla de educação envolve os processos formativos desenvolvidos no âmbito dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo para formação de militantes, dos educadores que constituem uma nova pedagogia. A pedagogia dos movimentos do campo imprime um novo jeito de fazer educação, não mais para os sujeitos do campo, mas com os sujeitos envolvidos no processo de reflexão e do fazer pedagógico. O exercício do compromisso compartilhado não como elemento figurativo, mas vivenciado por educandos e educadores faz do processo pedagógico, dinâmico, reflexivo e em permanente processo de construção.

Assim, a ressignificação do valor e importância que o campo assume na sociedade como lugar de produção de vida, de cultura, de saberes, imprime aos Movimentos Sociais e Sindicais, e também na sociedade, uma nova forma de olhar o campo brasileiro, não mais como lugar do atraso, da miséria, mas sim como espaço de vida e de produção, de conflitos, mas de lutas permanentes. Os projetos político-pedagógicos presentes nos cursos do PRONERA ressignificam o lugar do campo. Reafirma-se o campo como lugar de possibilidades e de futuro com condições de viver, produzir com dignidade, assim como o espaço de construção do conhecimento, a partir da matriz produtiva dos sujeitos do campo, potencializa, na própria formação, a intervenção destes sujeitos na sua realidade e em espaços que garantam o diálogo com diferentes saberes.

A construção de uma identidade camponesa, na qual os trabalhadores e trabalhadoras do campo não são objetos das políticas, são sujeitos que lutam, produzem, organiza-se e dá vida ao campo brasileiro. O PRONERA representa o vínculo com os Movimentos Sociais e Sindicais do campo na concretude do seu projeto educativo e político com a Educação do Campo. Esta construção, porém, não é uma dádiva, é, pois, resultado do protagonismo assumido por esses Movimentos na luta e no debate político-pedagógico que envolve a educação brasileira.

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O ambiente propositivo, formativo e de permanente conflito dentro do PRONERA e na relação com os Movimentos Sociais vai se materializando na relação com as instituições de ensino e na própria relação com o Estado. Se por um lado, estas relações geram tensões permanentes, por outro, permitem a ampliação do acesso aos direitos à educação pelos camponeses.

Historicamente, tanto o Estado quanto as instituições de ensino, no que se refere à educação, especialmente as Universidades, sempre “souberam” o que as pessoas queriam aprender. Dentro do PRONERA, esses saberes, tempos e espaços de formação legitimados e arraigados exigem um novo fazer, um novo pensar; na medida em que os Movimentos Sociais e Sindicais do campo assumem o papel de sujeito social e coletivo, tem mudado essa dimensão do fazer na perspectiva do “fazer para”, alterando para o “fazer com”. Este processo requer repensar e renegociar os saberes e as formas de fazer (muitas vezes cristalizados) dentro do Estado e das instituições de ensino. Conforme destaca Caldart (2004), o grande desafio posto aos Movimentos Sociais e Sindicais do campo é a reafirmação de um projeto de Educação do Campo para o conjunto do povo brasileiro que trabalha e vive no campo, ao contrário dos cursos e de teorias construídos para atender o mercado e sua expansão.

Considerações Finais

Seria oportuno afirmar que, socialmente, têm se destacado a importância e a necessidade da presença e da atuação dos Movimentos do campo na organização e no debate da política de Educação do Campo e, em especial, no PRONERA. No entanto, essa participação e presença têm gerado ruídos no processo de construção das políticas e em especial no desenvolvimento do PRONERA. Há um entendimento de parte da sociedade (leia-se especialmente os grandes proprietários de terra e órgãos de controle), que a presença e atuação dos Movimentos do campo nos cursos e projetos são maiores do que seria seu papel, gerando um processo de criminalização e às vezes de “perseguição” às políticas que têm como foco a luta pela terra.

O que requer um processo de reflexão mais aprofundado neste contexto é a contradição explicita que as políticas públicas vão desnudando, à medida que se afirma o papel da Educação do Campo, enquanto direito que representa especialmente à emancipação política dos sujeitos, por meio da construção da consciência e da articulação coletiva para se organizarem e lutarem pelos seus direitos: como o acesso à terra, à educação, à saúde, às condições dignas de existência, aos processos tecnológicos, conforme assegurado nos princípios constitucionais do direito.

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Por outro lado, nesses mesmos artigos citados em nossa Carta Maior (arts. 205 e 206 da Constituição Federal), afirma-se que a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, mas os processos constituídos a partir destes preceitos são colocados como distorção do papel social dos Movimentos Sociais.

Segundo Caldart (2008), o momento atual nos parece propício para avanços, ao mesmo tempo em que revela uma maior complexidade para a atuação dos Movimentos Sociais: o campo está voltando à agenda do debate político do País, sendo parte da disputa de projetos de desenvolvimento, mas em um contexto de clara hegemonia do projeto do capital, que até poderá reeditar uma política de “educação para o meio rural”, mas não tem como admitir que o Estado assuma a construção efetiva de uma política pública de Educação do Campo.

Neste sentido, a autora destaca que dois desafios principais estão postos aos sujeitos do campo. O primeiro diz respeito à práxis, à medida que se faz necessário avançar na clareza teórica e de projeto para poder dar um salto de qualidade na luta política e nas práticas pedagógicas produzidas até aqui. O segundo desafio é construir o paradigma (contra-hegemônico) da Educação do Campo: produzir teorias, construir, consolidar e disseminar nossas concepções, ou seja, os conceitos, o modo de ver, as ideias que conformam uma interpretação e uma tomada de posição diante da realidade que se constitui pela relação entre campo e educação.

Contudo, para finalizar, avalia-se como importante acrescentar dois novos desafios que estão diretamente ligados à afirmação e consolidação do PRONERA. O primeiro diz respeito aos efeitos gerados pelos processos de criminalização, à medida que se persegue os Movimentos do campo enquanto sujeitos coletivos, podendo gerar o esvaziamento da luta coletiva desses Movimentos e um distanciamento das instituições de ensino no fazer político e pedagógico das ações formativas dentro do Programa. Transformar os Movimentos do campo em meros mobilizadores de demanda representa o esvaziamento da luta e do sentido da Educação do Campo.

O segundo desafio que está posto é a superação das sucessivas investidas de travar o processo de desenvolvimento do PRONERA enquanto política estratégica, geradas pela proibição do pagamento de bolsas e de realização de convênios, o contingenciamento dos recursos e o patrulhamento permanente quanto à presença e participação dos Movimentos Sociais do campo. A regulamentação do PRONERA enquanto política pública é urgente e necessária para a sua consolidação, mas especialmente para que continue cumprindo com o seu papel de assegurar a milhares de assentados da Reforma Agrária o direito à educação.

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Protagonismo dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo no PRONERA: Referências para construção da Política Nacional de Educação do Campo

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Neste sentido, os Movimentos do campo têm reafirmado nas suas lutas que o PRONERA nasceu com o propósito de assegurar direitos fundamentais aos assentados da Reforma Agrária, e continuemos na perspectiva de que ele representa um patrimônio importante para a luta pela Educação do Campo e para assegurar os direitos historicamente negados pelas políticas públicas implementadas no Brasil.

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Maria Isabel Antunes-Rocha e Antonio Munarim

PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Referências

DI PIERRO, M. C. e ANDRADE, M. R. A construção de uma Política de Educação na Reforma Agrária. In DI PIERRO, M. C., ANDRADE., M. R. et al (ORGS). A educação da Reforma Agrária em perspectiva: uma avaliação do PRONERA. São Paulo: Ação Educativa; Brasília: PRONERA, 2004.

CALDART, Roseli. Sobre a Educação do Campo. In: Educação do Campo: campo - políticas públicas - educação. Santos, Clarice Aparecida et al (ORG.). Brasília: INCRA/MDA, 2008.

CALDART, Roseli. Elementos para a construção do projeto político e pedagógico da Educação do Campo. In: Molina, Monica C. e Jesus, Sonia Meire S. A. Contribuições para a construção de um Projeto de Educação do Campo (ORGS.). Brasília: Articulação Nacional “Por uma Educação do Campo”, 2004.

JESUS, Sônia Meire. O PRONERA e a construção de novas relações entre Estado e Sociedade. In Di Prierro, Maria Clara, Andrade, Marcia Regina et al (ORGS.). A educação da Reforma Agrária em perspectiva: uma avaliação do PRONERA. São Paulo: Ação Educativa; Brasília: PRONERA, 2004.

SAUER, Sérgio. Terra e Modernidade: a reinvenção do campo brasileiro. Em 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

GRZYBOWSKI, Cândido. Caminhos e descaminhos dos Movimentos Sociais no campo. Petrópolis/Rio de janeiro, Vozes/Fase, 1991.

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Maria Isabel Antunes-Rocha e Antonio Munarim

PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

TEMPO-COMUNIDADE / TEMPO ESCOLA: Alternância como princípio metodológico para organização dos tempos e espaços das escolas do campo

Maria Isabel Antunes-Rocha42

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I – Apresentação

Este texto tem como propósito elaborar uma reflexão, em caráter inicial, sobre uma das formas, por meio da qual, os cursos de escolarização de jovens e adultos, cursos médios, técnicos e de Educação Superior, vinculados ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) organizam seus tempos e espaços escolares. Esta forma de organização consiste basicamente em estruturar as atividades acadêmicas de forma que os educandos estudam um período de tempo no espaço da escola, Tempo Escola (TE) e outro período nos espaços de trabalho e/ou de moradia, Tempo Comunidade (TC).

Na perspectiva de uma aproximação visando compreender como este processo está ocorrendo no âmbito dos cursos vinculados ao PRONERA, tomamos como tarefa inicial buscar uma das raízes dessa forma de organização nas práticas de “Alternância”, desenvolvidas em vários países e no Brasil pelos Centros de Formação por Alternância (CEFFAs). Nesse sentido, estamos assumindo que o TE/TC é uma prática em Alternância, daí a necessidade de discuti-los no âmbito deste conceito.

Partindo dessa referência, busca-se evidenciar as diferentes formas que o TE/TC vem assumindo. Para isto, selecionamos alguns projetos, na perspectiva de mostrar como a alternância é trabalhada nesses diferentes contextos. Em seguida, apontamos as possibilidades de afirmação da “alternância”, a partir dos marcos legais que fundamentam a Educação do Campo. Concluímos com o apontamento dos desafios e das possibilidades que a alternância indica para a organização pedagógica e política das escolas do campo.

42 Doutora em Educação. Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).Membro da Comissão Pedagógica Nacional do PRONERA.43 Doutor em Educação. Professor Associado I da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Membro da Comissão Pedagógica Nacional do PRONERA.

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Maria Isabel Antunes-Rocha e Antonio Munarim

PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Esperamos que este trabalho apresente contribuições para as reflexões da prática cotidiana, bem como para apontar os desafios e as possibilidades que a organização em TE/TC traz para a ação pedagógica. É nosso desejo também que esta sistematização inicial incentive os coordenadores, professores e alunos dos cursos, nas universidades e nos Movimentos Sociais a descrever, analisar, registrar, publicar e divulgar as experiências que estão sendo desenvolvidas. As reflexões até então acumuladas sobre essas experiências ainda são escassas, mas o suficiente para darmos um passo rumo à compreensão do que estamos fazendo, do que pode ser mantido e o que precisa ser modificado. Entendemos que só assim conseguiremos construir uma matriz teórica e metodológica coerente com o projeto de Educação do Campo pelo qual lutamos.

Alternância Escola/Família – A experiência dos Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFAs)

A alternância enquanto metodologia tem uma de suas raízes fincadas na França, nas décadas iniciais do século 20. Agricultores e agricultoras, preocupados com a escolarização e o futuro dos filhos no campo, empreenderam esforços para criar uma escola, cujo funcionamento possibilitasse a permanência dos mesmos junto à família. Em meados do século, há um processo de expansão dessa experiência para vários continentes.

A primeira experiência brasileira ocorreu em 1969, na cidade de Anchieta, no Estado do Espírito Santo. O movimento se iniciou como uma experiência educativa alternativa, isto é, fora do sistema oficial de ensino, realizando uma formação de caráter profissional. Ao longo das décadas, estabeleceu diálogos com o sistema público e passou a ofertar as séries finais do ensino fundamental e o ensino médio articulado à formação profissional.

Na atualidade, os Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFAs), congregam as Escolas Famílias Agrícolas (EFA), Casas Familiares Rurais (CFR) e Escolas Comunitárias Rurais (ECOR), contando com cerca de 250 experiências, espalhadas por mais de 20 estados do País.

Queiroz (2004) caracteriza como experiências dos CEFFAs44:

44 Convém patentear que, embora todos os centros indicados por Queiroz trabalhem com a Pedagogia da Alternância, nem todos são considerados parte dos CEFFAs, isto é, não fazem parte de uma articulação político-administrativa nacional com essa denominação. E a justificativa para a não inclusão é a de que nem todos trabalham com a referência centrada na família, o que equivaleria dizer, pois, que poderia também existir os CEFAs (Centro de Formação por Alternância); é o caso, por exemplo, do Centro de Desenvolvimento do Jovem Empreendedor Rural (CEDEJOR).

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

a) Escolas Famílias Agrícolas (EFAs): contam com 127 centros e estão presentes em 16 estados brasileiros, nas regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste. Desenvolvem Educação Fundamental (segundo segmento), Educação Média e Educação Profissional em nível técnico;

b) Casas Familiares Rurais (CFRs): contam com 91 centros e estão presentes em seis estados das regiões Sul, Norte e Nordeste. Desenvolvem Educação Fundamental (segundo segmento), Educação Média e Educação Profissional em nível técnico;

c) Escolas Comunitárias Rurais (ECORs): contam com quatro centros e estão localizados no Estado do Espírito Santo. Desenvolvem Educação Fundamental (segundo segmento);

d) Escolas de Assentamentos (EAs): contam com oito centros e estão localizados no Estado do Espírito Santo. Desenvolvem Educação Fundamental (segundo segmento);

e) Programa de Formação de Jovens Empresários Rurais (PROJOVEM): contam com sete centros localizados no Estado de São Paulo45;

f) Escolas Técnicas Estaduais (ETEs): contam com três centros localizados no Estado de São Paulo;

g) Casas das Famílias Rurais (CFRs): contam com três centros localizados nos Estados da Bahia, Pernambuco e Piauí. Desenvolvem Educação Fundamental (segundo segmento);

h)Centro de Desenvolvimento do Jovem Empreendedor Rural (CEDEJOR): conta com quatro centros localizados nos Estados da região Sul do Brasil46.

A alternância é a espinha dorsal dos CEFFAs. Não significa apenas um alternar físico, um tempo na escola separado por um tempo em casa. O ir e vir estão baseados em princípios fundamentais, tais como: a vida ensina mais do que a escola; que se aprende também na família, a partir da experiência do trabalho, da participação na comunidade, nas lutas, nas organizações, nos Movimentos Sociais. Segundo Begnami (2003), o conceito de alternância vem sendo definido, entre muitos autores, como um processo contínuo de aprendizagem e formação na descontinuidade de atividades e na sucessão integrada de espaços e tempos. A formação está para além do espaço escolar e, portanto, a experiência se torna um lugar com estatuto de aprendizagem e produção de saberes, em que o sujeito conquista um lugar de ator protagonista, apropriando-se individualmente do seu processo de formação.

Os Centros buscam estabelecer uma dinâmica entre a comunidade e a escola. No Tempo Comunidade, os educandos trabalham e convivem com a comunidade e a família. No tempo em que os alunos estão na escola, (re)elaboram, discutem e refletem sobre o Plano

45 Não trabalha com educação formal, desenvolve cursos de qualificação profissional.46 Não trabalha com educação formal, desenvolve cursos de qualificação profissional.

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de Estudo, ou seja, sobre a pesquisa realizada na família e na comunidade. No retorno à família e à comunidade, os estudantes levam consigo o compromisso de aplicar o que aprofundaram na escola. O processo como um todo se organiza no Plano de Formação que, por sua vez, está ancorado na tríade “Observar, Refletir, Agir/Transformar”.

A experiência dos CEFFAs nos ajuda a observar, refletir e transformar a Alternância em três perspectivas. A primeira diz respeito à centralidade na relação família e escola. O eixo do Plano de Formação é a participação das famílias no processo de construção das práticas pedagógicas desenvolvidas na família e na escola. A segunda nos informa sobre os diferentes formatos que essa relação assume, no que diz respeito à participação das famílias na escola. É possível encontrar uma série de experiências e teorias educacionais que utilizam o princípio da Alternância e vão caracterizando as variações da Pedagogia da Alternância. Queiroz (2004) descreve os seguintes formatos:

1) Alternância justapositiva: caracteriza-se pela sucessão dos tempos ou períodos consagrados a uma atividade diferente: trabalho ou estudo. Estes dois momentos não têm nos casos extremos, nenhuma relação entre eles: nenhuma lei os rege e o conteúdo de um não tem repercussão sobre o conteúdo do outro.

2) Alternância associativa: trata-se de uma associação por alternância de uma formação geral e de uma formação profissional. Este tipo de alternância permanece equilibrado e se descobre aí a existência da relação entre a atividade escolar e a atividade profissional, mas, é de fato constituída por uma simples adição, e este vínculo aparece apenas no nível institucional.

3) Alternância real ou copulativa ou integrativa: é a compenetração efetiva de meios de vida socioprofissional e escolar em uma unidade de tempos formativos. Esta alternância supõe uma estreita conexão entre estes dois momentos de atividades a todos os níveis, quer sejam individuais, relacionais, didáticos ou institucionais. Os componentes do sistema alternante recebem um lugar equilibrado, sem primazia de um sobre o outro. Além disso, a ligação permanente que existe entre eles é dinâmica e se efetua em um movimento de perpétuo ir e retorno, facilitando por essa retroação, a integração dos elementos de uma a outra. É também a forma mais complexa da Alternância, com seu dinamismo permitindo uma evolução constante. As relações alternantes são essencialmente dinâmicas.

A terceira nos informa sobre a possibilidade do uso da Alternância no segundo segmento do ensino fundamental e no ensino médio profissionalizante. A duração das atividades varia entre três e quatro anos, em regime de semi-internato, com a adoção do método de Alternância, onde os jovens passam duas semanas na propriedade, no meio profissional rural, e uma semana no Centro de Formação. Isso representa 14 semanas por ano, em atividades

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letivas presenciais no Centro de Formação, e 28 semanas de atividades práticas a distância nas propriedades rurais de suas famílias, acompanhados por monitores e técnicos, visto que a propriedade agrícola funciona de forma ininterrupta durante o ano.

No caso específico do Projeto Pedagógico do Ensino Médio Experimental em Pedagogia da Alternância da Casa Familiar Rural, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI)47, no ensino presencial consideram-se 14 semanas por ano, sendo que cada semana é composta por cinco dias de dez horas, totalizando 2.100 horas/aula durante os três anos. Porém, o jovem permanece cinco dias de 24 horas em um ambiente educativo. Para o ensino na modalidade a distância consideram-se 28 semanas por ano, com acompanhamento, sendo cada semana composta de cinco dias de, pelo menos, dez horas, totalizando 4.200 horas/aula em três anos. O jovem permanece em sua propriedade estudando, experimentando, pesquisando e desenvolvendo projeto de acordo com suas atividades.

Quadro representativo de dias letivos e hora/aula

Pedagogia da Alternância Dias letivos durante o curso Horas/aula/curso

Ensino presencial integral 210 2.100

Ensino a distância acompanhado 420 4.200

Fonte: Universidade regional integrada do Alto Uruguai e das Missões. Projeto Pedagógico do Ensino Médio Experimental em Pedagogia da Alternância da Casa Familiar Rural, 2004.

Alternância Comunidade/Escola: Experiência do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA)

O PRONERA, tal como os CEFFAs, é produto e processo da luta pela Educação do Campo realizada por diferentes sujeitos, notadamente os Movimentos Sociais, as universidades e as organizações não-governamentais. Essa conquista coletiva se expressa na gestão, nas orientações metodológicas, administrativas e financeiras para elaborar, executar e avaliar os projetos.

Quando o Manual indica a exigência da parceria entre Movimentos Sociais e universidades na elaboração, execução e avaliação, está plantando a semente da Alternância como uma

47 No Campus localizado em Federico Westphalen (RS)

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

relação da escola para além da família. A presença de sujeitos, que não necessariamente estão na escola ou que tenham filhos em idade escolar, na discussão e gestão dos projetos, possibilitou desde o início do Programa que as ações pedagógicas passassem a integrar a discussão dos grupos gestores dos Movimentos Sociais em luta pela terra.

Assim, a Alternância assume no PRONERA o sentido da comunidade, enquanto espaço físico, social e político, como dimensão formativa central. Esse espaço inclui a família, mas não a tem como centralidade. Garantir esse espaço como dimensão formativa é o princípio fundamental do Programa.

Em termos da prática do PRONERA, a Alternância inicialmente aconteceu para atender à necessidade de formação dos monitores, que residiam nos assentamentos, para atuarem como alfabetizadores de adultos. As universidades e Movimentos Sociais elaboraram projetos pedagógicos prevendo a formação em Alternância. Os educadores se deslocavam para os campi universitários em períodos trimestrais e/ou semestrais. Por meio desses encontros, que variavam segundo o nível de ensino, os professores habilitavam os educadores para a docência.

Outra prática relevante, na construção da Alternância na perspectiva da relação comunidade/escola, foram os cursos de ensino fundamental, médio e superior. Surgem, assim, as habilitações Normal Médio, Pedagogia da Terra e Pedagogia do Campo. De forma concomitante, criam-se os cursos profissionalizantes e de pós-graduação. Mais recentemente, as Licenciaturas (habilitação para as séries finais do ensino fundamental e ensino médio) e a graduação em Direito, Agronomia, Medicina Veterinária, dentre outros.

A construção da Alternância no PRONERA está alicerçada em experiências diferenciadas, mas que estão conectadas pela necessidade de promover a escolarização de crianças, jovens e adultos que residiam nos assentamentos, em todos os níveis de ensino.

A Licenciatura do Campo, em desenvolvimento pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, considera a relação Escola/Comunidade como matriz do projeto pedagógico. Em torno dela, se articula a relação educador/educando, conteúdos, avaliação, gestão. Nessa perspectiva, considera que escola e comunidade são tempos/espaços para construção e avaliação de saberes. Busca superar a perspectiva de que a escola é lugar da teoria e a comunidade é lugar da aplicação/transformação. Ainda nessa perspectiva, o projeto da UFMG demonstra pretender ter uma relação educador/educando mediada pelos conteúdos e por ferramentas como texto impresso, web, vídeos, rádio, dentre outros. O projeto se organiza em 2.470 horas de Tempo Escola e 1.235 horas de Tempo Comunidade, totalizando 3.705 horas, com duração de cinco anos.

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Os exemplos acima citados são indicadores das inúmeras formas por intermédio das quais, universidades e Movimentos Sociais estão construindo a alternância escola/comunidade na Educação do Campo. Mas o acúmulo de uma década permite a sistematização de alguns princípios que são comuns nos projetos em todos os níveis de ensino e que são desenvolvidos em diferentes regiões do País.

- A organização dos tempos curriculares é diferenciada conforme a natureza do projeto.

A diversidade, com relação ao formato da distribuição das horas, guarda relação com a distância da universidade ao local de moradia dos alunos, a dispersão em termos geográficos dos locais de residência dos educandos, a disponibilidade dos educadores, a negociação do espaço nas universidades. Existem projetos em que a Alternância se concretiza por meio de uma intensificação de carga horária no Tempo Escola. Em alguns, todo o tempo previsto na legislação é realizado no Tempo Escola. Nesses, o Tempo Comunidade se constitui como espaço para realização de atividades escolares, como observação, descrição e análise da realidade. Os Cadernos de Campo são muito utilizados. Em outros, a carga horária no Tempo-Escola é reduzida, com a consequente ampliação do Tempo Comunidade. Aqui, os Guias de Estudo, o Orientador de Aprendizagem e outras mediações se fazem presentes.

- O Tempo Escola, via de regra, ocorre nos meses de férias escolares no sistema público de ensino.

- Há intencionalidade, em todos os projetos, em garantir o desenvolvimento de atividades relativas à observação, descrição e análise da realidade.

- Compreensão de que, ao redimensionar o espaço/tempo da sala de aula, considerando a dimensão educativa de outros espaços de convivência, afirma-se um processo de formação humana.

- A possibilidade de se alternar tempos e espaços tem como objetivo uma atuação pedagógica orientada pela lógica da articulação teoria/prática, visando instrumentalizar o educando na percepção dos problemas vivenciados em sua realidade cotidiana, bem como intervir significativamente neste campo de atuação.

- O projeto pedagógico dos cursos considera que o Tempo Escola e o Tempo Comunidade são processos contínuos de ensino e aprendizagem. A experiência vem exigindo uma reelaboração do formato do que se ensina, como se ensina, da avaliação e da relação educadores e educandos.

- As equipes pedagógicas investem na construção de mediadores, que permitem efetivar a continuidade do processo, por meio de ferramentas que potencializam a interatividade e a cooperação entre professores e alunos, numa comunidade de aprendizagem.

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Ao ampliar a relação da escola para a comunidade, o PRONERA cria condições para que as redes da escola possam tecer laços com a prática social. Envolve sujeitos para além das famílias com filhos em idade de escolarização. Evidencia o compromisso e a responsabilidade de todos na afirmação da mesma como produto e processo da sociedade.

Tempo Escola e Tempo Comunidade – Marcos Legais

A experiência empírica de desenvolvimento de projetos, aliada a um debate e conquista de espaços junto às instituições públicas, permitiu a criação de instrumentos legais que orientam e sustentam a continuidade da Alternância como possibilidade para organização dos espaços e tempos da escola do campo. Vamos trabalhar com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, as Diretrizes Operacionais para a Educação do Campo e o Parecer do Conselho Nacional de Educação. Outros documentos como o Plano Nacional de Educação, termos de referência de órgãos internacionais e leis de âmbito estadual e municipal são referências valiosas nessa construção.

A perspectiva metodológica da Alternância faz parte do espírito da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96). Essa definição encontra-se já no seu artigo primeiro, ao definir o lócus onde ocorrem os processos formativos:

Art. 1º: A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar,

na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos Movimentos Sociais

e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.

Já o artigo 23 da mesma LDB evidencia que:A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos,

alternância regular de períodos de estudos, grupos não seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o exigir.

Buscamos também no Art. 28 elementos que afirmam a legalidade da Pedagogia da Alternância, entendendo que esta se constitui estratégia primordial às “adaptações necessárias”:

Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente:

I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural;

II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;

III - adequação à natureza do trabalho na zona rural.

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

Finalizando, trazemos à tela o Art. 81, que afirma: “É permitida a organização de cursos ou instituições de ensino experimentais, desde que obedecidas as disposições desta Lei”. Nessa perspectiva, é facultada às universidades a proposição de cursos superiores por alternância, dado que esses assumem a condição de projetos experimentais.

Fruto do movimento protagonizado por todas as organizações de trabalhadores do campo ou que atuam no campo, foram criadas as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, aprovada pelo Parecer nº 36, de 2001 e pela Resolução nº 01, de 2002. Essa Resolução, coerente com a LDB e, ao mesmo tempo, expressão mais direta dos anseios dos Movimentos e Organizações Sociais do campo, explicita de forma ainda mais clara a Alternância como possibilidade metodológica:

Art. 7º, parágrafo 2º: As atividades constantes das propostas pedagógicas das escolas, preservadas as finalidades de cada etapa da educação básica e da modalidade de ensino prevista, poderão ser organizadas e desenvolvidas em diferentes espaços pedagógicos, sempre que o exercício do direito à educação escolar e o desenvolvimento da capacidade dos alunos de aprender e continuar aprendendo assim o exigirem.

O Parecer CEB nº 1/2006, do Conselho Nacional de Educação, aprovado em 01/02/2006, recomenda a adoção da Pedagogia da Alternância em Educação do Campo. O parecer foi emitido pelo relator Prof. Murilo de Avellar Hingel, aprovado por unanimidade pela Câmara de Educação Básica do CNE e publicado no Diário Oficial da União, com a homologação do Ministro da Educação, em 15 de março de 2006. Além de estabelecer parâmetros definidores de uma escola de Educação Básica, organizada segundo a Pedagogia da Alternância, e apontá-las como alternativa adequada à realidade do campo brasileiro, o Parecer recomenda aos conselhos estaduais de Educação que, no âmbito de suas responsabilidades, reconheçam essas escolas. Vale ressaltar que o Parecer CNE/CEB nº 1 de 01.02.2006 comete uma falha técnica de diagnóstico, na medida em que, ao enfatizar a relação escola/família, deixa de citar as experiências onde a alternância se configura como relação escola/comunidade. Entretanto, nada que possa comprometer a essência do documento, que valoriza a Alternância como pedagogia válida e recomendável.

Possibilidades e desafios da Alternância na Educação do Campo

Após essa breve descrição da prática e da teoria que estamos construindo em torno da Alternância como possibilidade de organização dos tempos e espaços da Educação do Campo, consideramos como relevante indicar as possibilidades que esse formato sinaliza rumo a um projeto educativo articulado com uma concepção de sociedade numa perspectiva emancipadora. No momento em que o Programa de Apoio à Formação

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Superior e Licenciatura em Educação do Campo (ProCampo), iniciativa da SECAD/SESU/MEC, cujo objetivo é apoiar programas integrados de licenciaturas, indica a organização em TE/TC como um dos seus eixos estruturantes. Nesse sentido, a Alternância assume um espaço institucional e poderá se tornar uma modalidade de ensino, à medida que um número expressivo de universidades venha a participar da experiência proposta pelo MEC, constituindo o curso como regular.

A organização da dinâmica escolar na alternância Tempo Comunidade/Tempo Escola interroga todas as práticas e elementos que compõem a ação pedagógica na escola, cuja ação se concentra no modelo do encontro diário entre professores e alunos. Exige um novo olhar, um novo fazer, uma nova forma de compreender a organização dos conteúdos, do trabalho do educando e do educador, de produzir e utilizar os materiais pedagógicos, de proceder a avaliação, enfim, aponta para uma outra concepção do que seja ensinar e aprender. Nesse sentido, tem razão Paolo Nosella (2007) ao defender a tese de que a Pedagogia da Alternância é, por definição, revolucionária.

Apresentamos, a seguir, alguns elementos da prática pedagógica como referência para análise dos projetos em desenvolvimento, bem como à elaboração de novos projetos: conteúdos, educandos, educadores, mediação e a avaliação.

Conteúdos

Os conteúdos trabalhados englobam os conhecimentos cientificamente produzidos e acumulados em estreita relação com o conhecimento empírico, fruto dos saberes da tradição e da realidade nas quais está inserido o estudante. Estes conteúdos passam a ter a cor e o sabor da experiência. Os conteúdos são acrescidos do valor de serem apreendidos e (re)construídos a partir da realidade, com o envolvimento da comunidade, com a aplicação/intervenção na comunidade.

Realidades, ciências, políticas, compreensão e transformação/conservação são indissociáveis. De modo que a Alternância promove os tempos comunidade-escola, como forma de associar os processos de aprendizagem, tanto para a aquisição/construção de conhecimentos/saberes necessários à vida cotidiana, quanto para a qualificação da formação profissional. Sua realização possibilita a relação teoria-realidade por meio da reflexão e da atividade empírica, condição essencial para a construção do conhecimento. Trata-se de uma práxis educativa. Ressalte-se que o processo de aprendizagem humana não obedece

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

tais separações, principalmente quando se tem o trabalho/construção da existência humana como o princípio educativo. Essa separação, pois, é apenas e tão somente um recurso didático-pedagógico de que se lança mão para melhor organizar a “aprendizagem formal” dos educandos que acorrem ao auxílio de uma escola.

A produção de material específico para atender às demandas de formação requer pensar um formato de materiais impressos, que atendam às especificidades do curso em referência, e se articule com os textos acadêmicos. É importante introduzir os recursos multimídia, eis que, garantindo o acesso das populações do campo ao sinal de satélite, garantiria o uso dos recursos da web: ambiente on-line, teleconferências, pesquisa, chat, fóruns, dentre outras.

O uso de material impresso, gravado ou de comunicação em tempo real (Fita K7, Vídeo, Cd-Rom, DVD, E-mail, Telefone, Correio e Ambiente On-Line), são utilizados em maior ou menor escala e frequência em todos os cursos. Ressalte-se a importância do material impresso.

Educandos

Um dos desafios do estudante em Tempo Comunidade é o trabalho com o coletivo da comunidade. Diferente do Tempo Escola, em que o coletivo é formado por outros estudantes e pelos professores, nesse Tempo, o estudante encontra um grande desafio que coloca à prova os conteúdos apreendidos, em que tem ele que relacionar diferentes saberes.

Essa diferença espacial do Tempo Comunidade pode ser superada pelo envolvimento com a população do assentamento/comunidade, por meio da pesquisa participativa na elaboração de projetos, através de atividades via Internet, de modo que os estudantes possam manter contatos com outros colegas e com os seus educadores vinculados à escola.

Dada a natureza da população assentada e dos camponeses em geral, a Alternância foi criada ao mesmo tempo como uma estratégia e uma necessidade pedagógica. A partir de uma concepção dialética de educação, estratégia e necessidade foram transformadas em uma metodologia que, na prática, interage dois tempos fundamentais do processo de construção do conhecimento: o Tempo Comunidade (TC) com o Tempo Escola (TE).

Ressalte-se que o processo de aprendizagem humana não obedece tais separações, principalmente quando se tem o trabalho/construção da existência humana como o princípio educativo. Essa separação, pois, é apenas e tão somente um recurso didático-pedagógico de que se lança mão para melhor organizar a “aprendizagem formal” dos educandos que

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PARTE 1 – CONTRIBUIÇÕES DO PRONERA À EDUCAÇÃO DO CAMPO NO BRASIL

acorrem ao auxílio de uma escola. Trata-se de um recurso de organização escolar em que no TE reserva-se mais tempo para reflexão no coletivo, didaticamente organizada, para exercitar as mediações teóricas, inclusive com a presença física mais efetiva de orientadores.

No Tempo-Escola, os educandos formam um coletivo, muitas vezes oriundo de diferentes comunidades, que ao trazer questões, reflexões, problematizações das suas localidades específicas ampliam o processo de reflexão sobre as realidades do campo, confrontando as múltiplas situações que as compõem.

No Tempo-Comunidade, cada educando individualmente ou em pequenos grupos, deve reafirmar seu envolvimento com sua comunidade, desenvolvendo nesta as atividades de pesquisa, reflexão, problematização e, em alguns casos, intervenção. Dessa forma, cria-se um novo coletivo de ação (educando-comunidade) que permite, inclusive, a participação indireta do conjunto da comunidade no processo educativo, reforçando a relação escola-comunidade.

Educador

Esse desenho pedagógico exige dos professores/educadores um planejamento em conjunto do Tempo-Comunidade, tomando como possibilidade a unidade das áreas do conhecimento. As questões das realidades enfrentadas no Tempo-Comunidade serão mais bem compreendidas se as disciplinas estiverem articuladas por áreas para associar os tempos com o objetivo de elaborar proposições. A rigor, o ideal é a superação das disciplinas no processo de construção e apreensão dos conhecimentos, assim, como é ideal a superação do professor individual, para dar lugar à prática de equipes docentes.

Com efeito, para a realização do Tempo-Comunidade, diversos educadores são envolvidos: desde a unidade educacional até a comunidade, o estudante deve ser acompanhado a partir de um projeto comum, de modo a realizar um conjunto de atividades que possibilite a interação teoria-realidade.

Mediadores

Os CEFFAs vêm produzindo ferramentas pedagógicas específicas para o ensino por Alternância: O Plano de Estudos, Caderno da Realidade, Visita às Famílias, Fichas Pedagógicas, entre outras. Nas experiências do PRONERA, o Caderno de Campo, o Guia de Estudos. Com relação ao material impresso, vale ressaltar que alguns projetos investem na produção de material próprio. Esta prática evidencia a inadequação da utilização de textos no formato de artigos, relatórios e outros para esse formato de curso. Mais recentemente, amplia-se a

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

Contribuições do PRONERA à Educação do Campo no BrasilReflexões a partir da tríade: Campo – Políticas Públicas – Educação

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Maria Isabel Antunes-Rocha e Antonio Munarim

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utilização da web, através dos e-grupos, contatos por e-mails, ambientes on-line com fóruns e chats. A biblioteca virtual operacionalizada através de CD e DVD, utilização de vídeos e estações de rádio já se constitui como realidade em vários projetos.

Mas sem sombra de dúvida, a principal mediação, o Orientador de Aprendizagem, é um desafio para os processos formativos por Alternância. Como alguém que liga, que faz a ponte, entre o Tempo Escola e o Tempo Comunidade, o orientador assume especial relevância. A flexibilidade para construir elos entre a Universidade e a comunidade é talvez o maior desafio. Em vários projetos, o orientador está vinculado aos Movimentos Sociais. Em outros, está vinculado à Universidade.

As atividades do TC não são uma sequência de exercícios para o educando fazer sozinho (a distância). O roteiro de trabalho a ser desenvolvido no TC exige uma conexão planejada que faça a interação entre o TE – TC – TE1 – TC1 – TE2 – TC2, na compreensão da indissociabilidade das relações teoria-prática-ciência-política. Diferencia-se, assim, de uma perspectiva de ensino presencial/ensino a distância, pois não se refere apenas ao fato do educando estar ou não na sala de aula. O TC explicita a territorialidade da sala de aula, em que o educando está efetivamente presente “na sua comunidade”, na sua realidade, confrontando-a com a teoria trabalhada na sala de aula. Observe-se, todavia, que não há como negar, e pensamos que nem há por quê fazê-lo, que parte da “perspectiva” da Educação à Distância (EaD) é incorporada, assim como a educação presencial. Digamos que há uma espécie de incorporação dialética.

Avaliação

A avaliação caracteriza-se como um processo contínuo, que inclui o curso como um todo, posto que o Tempo Comunidade, em sendo uma continuidade do Tempo Escola, pressupõe uma sequência de estudos e práticas educativas planejadas para serem desenvolvidas articuladamente. A parte referente ao Tempo Comunidade é acompanhada pelos monitores e pela liderança do Movimento Social, que, seguindo as orientações do professor da turma, monitora a realização do Tempo Comunidade e encaminha relatório à coordenação do curso e que, juntamente com o relatório e os trabalhos apresentados pelos alunos, compõe o quadro. Este item deve ser melhor trabalhado por alguém da área.

Estágio

A organização do estágio é, sem dúvida, um dos desafios para os cursos profissionalizantes de nível médio e superior. Mas, é possível estabelecer parâmetros para o mesmo, a partir da

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Alternância. O princípio do estágio é garantir ao educando a possibilidade de vivenciar uma experiência profissional no espaço onde irá atuar. Escolas, empresas privadas, hospitais, postos de saúde, estabelecimentos comerciais, cooperativas, órgãos públicos, sindicatos, dentre outros, se constituem como campos de estágio.

O educando do Curso em Alternância tem como tarefa localizar e definir as possibilidades de estágio nos locais onde reside e ou trabalha. Uma situação concreta que estamos vivenciando diz respeito ao estágio dos educandos dos cursos de licenciatura. A maioria dos educandos não encontra escolas de 2º segmento do ensino fundamental e ensino médio no campo. Para tanto, só existem dois caminhos: primeiro, localizar um estabelecimento escolar mais próximo, que atenda aos alunos de sua comunidade, e assim, atender ao imediato da exigência de formação, e, segundo, organizar estratégias de ação política, cujos resultados, provavelmente não serão imediatos. Ou seja, lutar por escolas no lugar onde estão as crianças, os jovens e os adultos de sua comunidade. Desse modo, pelo menos, os futuros educandos terão onde realizar o estágio, assim como os próprios moradores terão sua escola, sem precisarem se deslocar para a cidade.

Para finalizar, vale considerar algumas reflexões mais gerais. Existem discussões sobre a abrangência da aplicação da Alternância nas escolas do campo, em relação aos níveis de ensino. Tem sido consenso que a Educação Infantil, o primeiro segmento do ensino fundamental e a Alfabetização de Jovens e Adultos devam ser realizados como atividades escolares sem alternância, isto é, com períodos diários na escola48. Nesse caso, o segundo segmento do ensino fundamental, o ensino médio e superior profissionalizantes e a pós-graduação deveriam ser realizados com alternância.

Ainda sem uma discussão mais sistematizada, mas já emergem debates onde se veicula a ideia de que, mesmo com a escola situada próxima à residência do educando, esta deveria se constituir no princípio da Alternância, isto é, com tempo para pesquisas e intervenções em sua comunidade. Nessa perspectiva, o sentido de espaço educativo amplia-se para além da sala de aula, contribuindo assim para ressignificar as distâncias ideologicamente

48 De todo modo, é conveniente se estar atento a experiências alternativas, como a que vem sendo desenvolvida, por exemplo, num assentamento da Reforma Agrária de Roraima. Aí, com residências muito dispersas, as distâncias a serem percorridas pelos alunos seriam muito longas até uma escola com turma de número considerado o mínimo necessário para funcionamento. Assim, para a escolarização do primeiro segmento do ensino fundamental, está sendo praticada o que chamam os seus protagonistas de “Pedagogia Itinerante”, pela qual, o educador é que procede alternâncias entre um núcleo de famílias e outro. E, durante o tempo de sua ausência num núcleo, em decorrência de estar no outro, os educandos desenvolvem atividades educativas previamente programadas, com o auxílio de alguém de uma das “famílias nucleadas”, geralmente o mais sabido. Ao retorno do educador, aquelas atividades são reexaminadas.

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construídas entre saber formal e informal, saber do senso-comum e saber científico, saberes práticos e teóricos. Vale ressaltar que o Tempo Comunidade (TC) se constitui no diálogo com outro termo, Tempo Escola (TE), no contexto da luta e construção de possibilidades da escolarização dos povos do campo. Não podem ser compreendidos de forma separada, mas são distintos no que diz respeito ao espaço, tempo, processos e produtos relacionados à formação pedagógica. Estão intrinsecamente ligados às formas de morar, trabalhar e viver no campo. Falam-nos de limites e possibilidades para organização da educação escolar, mas, muito mais do que isto, anunciam outra forma de fazer a escola, de avaliar, da relação com os conteúdos, das mediações pedagógicas, da relação entre quem ensina e quem aprende.

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Referências

BEGNAMI, J. B. Uma Geografia da Pedagogia da Alternância no Brasil. UNEFAB Documentos Pedagógicos. Cidade Gráfica e Editora: Brasília, 2004.

PNE – Plano Nacional de Educação — Aprovado pela Lei nº 10.172/2001

MEC – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional — LEI Nº 9.394, de 20 de Dezembro de 1996.

MEC – Resolução Nº 1, de 3 de abril de 2002. Institui Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo.

FaE/UFMG. Licenciatura em Educação do Campo. Belo Horizonte, 2007. (Projeto Pedagógico).

QUEIROZ, J. B. Construção das Escolas Famílias Agrícolas no Brasil: ensino médio e Educação Profissional. (Tese de Doutorado). UnB, 2004.

NOSELLA, P. Militância e Profissionalismo na Educação do Homem do Campo. Revista da Formação por Alternância, v. 2, p.5-17, 2007. Parecer CNE/CEB nº 1/2006, aprovado em 1º de Fevereiro de 2006. Considera como dias letivos o calendário escolar da Pedagogia de Alternância aplicado nos Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFAs).

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PARTE 2

REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

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As dimensões instituintes da Educação Popular:O PRONERA e a Educação de Jovens e Adultos

Adelaide Ferreira Coutinho | Diana Costa Diniz | Maria da Conceição Lobato Muniz

PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

As dimensões instituintes da Educação Popular:

O PRONERA e a Educação de Jovens e AdultosAdelaide Ferreira Coutinho49

Diana Costa Diniz50

Maria da Conceição Lobato Muniz51

“Ao longo da história, escravos, trabalhadores e subalternos foram durante muito tempo impedidos de aprender a ler e reprimidos quando desobedeciam às ordens de quem domina. Para Alberto Manguel, ‘os livros têm sido a maldição das ditaduras’. Desse modo, os ditadores e outros detentores arbitrários do poder ‘acreditavam firmemente no poder da palavra escrita’... Por esse motivo ‘ler tinha que ser proibido’. Afinal, assinala Manguel, ‘como séculos de ditaduras souberam, uma multidão analfabeta é mais fácil de dominar”. (José Willington Germano)

Introdução

A Educação Popular não é assunto dos sem-escola, dos sem-terra, dos sem-trabalho, dos analfabetos, dos militantes de Movimentos Sociais, dos educadores. A Educação Popular é assunto, é luta de todos nós, educadores e militantes da educação, lutadores do povo, que nos recusamos à morte do sonho de que um dia todos os meninos e meninas, homens e mulheres da classe popular, não sejam mais impedidos de ir à escola e lá aprenderem a “soletrar a liberdade” e que nem precisem sair “do campo pra poder ir à escola”.

A Educação Popular não se reduz à luta política daqueles que lutam contra os que se recusam a admitir o direito de aprender à classe popular, aos que amargam o desemprego, aos ameaçados pela violência, aos violentados pelas condições materiais de existência. Ela é a luta de todos(as) aqueles(as) destituídos dos direitos a uma vida com dignidade. Afinal, os sem-direito e, em especial, os sem-direito à educação, estão assentados na realidade social da plenipresença do capitalismo mundializado, a estabelecer, nos seus séculos de existência, uma lógica de desenvolvimento que resulta do desejo de expansão, controle e domínio a

49 Doutora em Educação (UFRN), professora do Departamento de Educação II e do Mestrado em Educação da UFMA e coordenadora do PRONERA/UFMA, pesquisadora do NEPHECC e do Observatório de Políticas Públicas (UFMA).50 Mestra em Educação (UFMA), professora da UFMA, Campus de Chapadinha/São Bernardo, coordenadora pedagógica do Curso de Pedagogia da Terra (PRONERA/UFMA)51 Mestra em Educação (UFMA), diretora do Ensino Fundamental do COLUN/UFMA e coordenadora do Curso de Pedagogia da Terra Territórios da Cidadania (PRONERA/UFMA).

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As dimensões instituintes da Educação Popular:O PRONERA e a Educação de Jovens e Adultos

Adelaide Ferreira Coutinho | Diana Costa Diniz | Maria da Conceição Lobato Muniz

PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

qualquer preço, que tem levado a submissão e exploração da força de trabalho – a parcela mais numerosa da população –, sem que retorne a ela os direitos civis, sociais e políticos, tão anunciados e pouco realizados.

A questão da Educação Popular está arraigada a um passado que tende a se perpetuar pela força do jogo de interesses e projetos de sociedade em curso. Por um lado, institui-se a força decorrente de um modelo civilizatório voltado para suas elites e, de outro, a resistência organizada a se contrapor aos processos que forjaram a segregação não só de raças e culturas, mas de humanidades.

Portanto, aqueles que numa interpretação histórica errônea, concluem que a Educação Popular é temática ou luta superada, porque estamos sob as diretrizes mundiais da “Educação para Todos”, das parcerias, dos diálogos e fóruns, de aprovação de leis e diretrizes educacionais, convém lembrar que a Educação Popular não é somente educação escolar, alfabetização. Educação Popular é expressão organizativa, existência cultural, social e política, a serviço de todos aqueles que, se sentindo oprimidos pelas relações sociais vigentes, criam novas formas de ser e de produzir sua existência, contrapondo-se aos processos econômicos, sociais, políticos e ideológicos que forjam a hegemonia do capital.

Na verdade, a Educação Popular identifica-se com a possibilidade de construção de uma nova sociedade, o que exigirá um novo homem e uma nova mulher a instituirem novas relações que não sejam orientadas pela produção e lógica da mercadoria.

A caminhada por uma Educação Popular está enraizada na década de 1960, como categoria histórica de análise e como momento de maior evidência social e política, quando a sociedade brasileira tomou para si, por meio de Movimentos Sociais, Sindicais, Igreja pastoral, educadores, a responsabilidade de desempenhar um papel social de formação e organização política do povo na reivindicação dos direitos fundamentais.

Portanto, se a educação nasce da convivência concreta ou da realidade dos grupos e classes sociais existentes e ocorre de acordo com a cultura, a organização social, política e produtiva, a Educação Popular tomada como referência de análise é expressão de um determinado projeto de sociedade.

Com base nesse entendimento, pode-se afirmar que a educação é uma prática social orientada à libertação, à reelaboração ideológica e política, instrumento de luta e mediadora das relações, tendo em vista a emancipação das classes exploradas.

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As dimensões instituintes da Educação Popular:O PRONERA e a Educação de Jovens e Adultos

Adelaide Ferreira Coutinho | Diana Costa Diniz | Maria da Conceição Lobato Muniz

PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Tomando como referência a educação de jovens e adultos na realidade concreta brasileira, e por outro lado, as políticas envidadas pelo Estado, os referenciais teórico-metodológicos de análise, os processo pedagógicos de ensino adotados nas escolas e fora dela, as condições objetivas de realização/oferta/permanência na garantia desse direito, não há que se fazer tão somente um esforço de compreensão, mas um détour (KOSIK, 1976), porque os fenômenos precisam ser desvelados, descritos e suas relações constitutivas transformadas.

Nesse sentido, ao se tomar o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) como referência de análise, tem-se a clareza de que esse programa é, sem dúvida, uma das experiências mais ricas em Educação Popular já ocorridas no campo brasileiro. O primeiro indicador dessa afirmação foi a possibilidade do diálogo entre o conhecimento popular oriundo do campo, politicamente representado aqui pela luta dos Movimentos Sociais camponeses, das comunidades tradicionais rurais e dos povos da floresta, e o conhecimento sistematizado – fruto da produção sócio-histórica humana – fazendo-se representar por meio das universidades brasileiras e demais instituições governamentais e do âmbito da sociedade organizada dedicadas à educação.

O segundo indicador foi a realização do I Encontro Nacional dos Educadores da Reforma Agrária (ENERA), ocorrido em julho de 1997, considerado um marco para a criação do PRONERA e para as demais políticas de Educação do Campo. Desde 1997, já são 14 anos de caminhada em defesa da Educação do Campo em diversos níveis e modalidades, destacando-se a formação de professores, a Educação de Jovens e Adultos, a formação profissional e o acesso ao ensino superior para assentados da Reforma Agrária.

O PRONERA é o exemplo concreto de que a luta social no campo não é somente por terra, mas por políticas públicas amplas, por dignidade e melhoria de qualidade de vida, o que, necessariamente, passa pela educação. Transformando-se a realidade educacional do campo, pode-se favorecer o entendimento de que os direitos civis, políticos e sociais são direitos humanos; que o direito não é particular, é universal; que os direitos são conquistados na organização e na luta, num processo intenso de relações sociais entre homens e mulheres; que os direitos sociais, incluindo o direito à educação, são consolidados, materializados nas políticas públicas, ou melhor, nas políticas de Estado e de seus sucessivos governos.

Educação Popular: Um longo percurso de resistências

O mundo tem dois campos: os que aborrecem a liberdade, porque só a querem para si, estão em um; os que amam a liberdade e a querem para todos, estão em outro. (José Marti)

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As dimensões instituintes da Educação Popular:O PRONERA e a Educação de Jovens e Adultos

Adelaide Ferreira Coutinho | Diana Costa Diniz | Maria da Conceição Lobato Muniz

PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

A Educação Popular é a intensa negação de uma lógica que historicamente separou os homens entre cultos e incultos. Por força de seu legado histórico, ela trouxe para si a tarefa de vincular educação, cultura, produção social e política como partes de uma ação intencional entre homem-mundo. Ela não nasce revolucionária, ela se faz revolucionária ao se contrapor a uma realidade ou sociedade, pela via da luta política, das relações pedagógicas voltadas para o entendimento crítico do papel que cada homem e mulher exercem na sociedade, particularmente os da classe popular.

Para que se assegure o caráter popular da educação, esta tem que ter um compromisso de classe, optar por um projeto de sociedade diferente do instituído pelo capital. Essa educação ofertada, para que se contraponha à sociabilidade capitalista, fazendo ênfase a Mészaros (2005), deve ir para além do capital, porque tem por pressuposto político acreditar no papel das classes populares ou “classes oprimidas”, “povo pobre”, “classe trabalhadora”, “classe explorada”, “classe subalternizada”, como potencializadora da transformação social e uma tendência ao ímpeto revolucionário.

Em nossos países, marcados pelo elitismo, patrimonialismo, mandonismo, estatismo etc., valorizar esta concepção de povo teve méritos notáveis. Passar de massa para povo, compreendê-lo como classe, combinar o individual e o coletivo, pensar nele como sujeito histórico, defendê-lo como cidadão, foram contribuições importantes. O destaque dado aos movimentos populares, tidos como atores mobilizadores e participantes, trouxe ampla repercussão no cenário sócio-político. (WANDERLEY, 2008, p.5)

Entre as várias formas de resistência da sociedade, a Educação Popular firmou-se como uma das mais importantes formas de ação coletiva, por meio de movimentos e campanhas que se fizeram surgir em todo o País. Tais experiências tinham o propósito de alfabetizar adolescentes e adultos (GERMANO, 2001) em uma perspectiva crítica e transformadora, da qual Paulo Freire é a mais importante referência.

À Educação Popular coube educar para aumento da participação popular nos espaços políticos da sociedade, esta, por ser arraigada e dirigida aos valores segregacionistas, impediu durante séculos o exercício democrático e a garantia dos direitos sociais fundamentais, entre os quais a educação.

Do ponto de vista metodológico, não se pode negar a influência das concepções vindas do marxismo, em especial o entendimento da práxis revolucionária como motor da mudança social; da Igreja católica, pela Teologia da Libertação e de sua opção pelos pobres; da Pedagogia Libertadora de Paulo Freire, pelo diálogo horizontalizado entre educador e

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As dimensões instituintes da Educação Popular:O PRONERA e a Educação de Jovens e Adultos

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

educando mediados pela realidade em busca da libertação, da conscientização política para que o educando fosse capaz de refletir sobre sua realidade e transformá-la.

Nos anos de 1980, após um longo período ditatorial militar, retomariam movimentos de resistência, porém, houve uma tendência à defesa de um projeto popular que perdeu a perspectiva da luta de classes como motor da história. Assim, em vez das reflexões considerarem as classes sociais como referência político-social, começaram a predominar tendências de análises teóricas que privilegiavam as identidades (subjetividades) – como se estas não fossem constituídas nas relações sociais coletivas e determinadas pelo modo de produção da existência – de indígenas, negros, homossexuais, mulheres, subempregados e desempregados, favelados, crianças e jovens, sem-terra.

Nesse percurso de mudanças paradigmáticas, a militância política se metamorfoseia em parcerias, em trabalhos pontuais com segmentos da sociedade, em estímulo à filantropia e ao trabalho voluntário voltados aos mais necessitados, ganhando lugar de destaque as Organizações Não-Governamentais (ONGs), dentro de um organizado “terceiro setor”, no Estado e na sociedade, antes dos Movimentos Sociais populares classistas, inclusive com o reconhecimento e as parcerias com setores empresariais (responsabilidade social) e organismos internacionais.

Nesse amplo espectro de crises e reformas nasceria, na década de 1990, o Movimento por uma Educação do Campo, a expressão mais próxima do que se concebeu como Educação Popular nos anos 1960 e, na qual, os Movimentos Sociais do campo são os principais protagonistas, destacadamente o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra.

Como política pública, a Educação do Campo fez surgir programas, diretrizes, movimentos, grupos de trabalho, escolas e experiências formais, cuja síntese é a criação de um projeto criado pelos povos do e no campo, diferentemente da educação rural, criada para controle e segregação da população do campo e do modelo urbano imposto a essa região.

O PRONERA é exemplo dessa mudança de concepção acerca da educação a ser ofertada aos povos do campo, associando-se às instituições, aos movimentos e organizações e a educadores que concebem o campo como espaço de vida e resistência, onde camponeses realizam a luta pela terra e pelas demais políticas públicas. Assim, se contrapõe à segunda visão que se pauta no produtivismo e vê o campo apenas como lugar da produção de mercadorias e não como espaço em que se produz vida. (FERNANDES; MOLINA, 2004)

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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As dimensões instituintes da Educação Popular:O PRONERA e a Educação de Jovens e Adultos

Adelaide Ferreira Coutinho | Diana Costa Diniz | Maria da Conceição Lobato Muniz

PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

A Educação do Campo se propôs ao exercício da produção e aquisição crítica do conhecimento, a estimular a curiosidade e a pesquisa desveladora do real, a exercer a política como ato formador de sujeitos atuantes, tal qual nos lembrava Paulo Freire:

Precisamente porque a promoção da ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente, uma das tarefas precípuas da prática educativo-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil. Curiosidade com que podemos nos defender de ‘irracionalismos’ decorrentes do ou produzidos por certo excesso de ‘racionalidade’ de nosso tempo altamente tecnologicizado. E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente humanista de negação da tecnologia e da ciência. Pelo contrário, é consideração de quem, de um lado, não diviniza a tecnologia, mas, de outro, não a diaboliza. De quem a olha ou mesmo espreita de forma criticamente curiosa. (2004, p.32)

Talvez por isso estejam ameaçados, em sua essência, o PRONERA e a Educação do Campo, pela via de seus projetos político-pedagógicos em curso, porque, em sua maioria, se constituíram uma declaração de rebeldia ante a violência das injustiças sociais, que se verificam no cenário da educação camponesa, assentada sob a lógica do capital. As palavras de Paulo Freire, ao ser chamado de sonhador, são primordiais a esse momento de incertezas:

Às vezes, temo que algum leitor ou leitora, mesmo que ainda não convertido ao ‘pragmatismo’ neoliberal, mas por ele já tocado, diga que, sonhador, continuo a falar de uma educação de anjos e não de mulheres e de homens. O que tenho dito até agora, porém, diz respeito radicalmente à natureza de mulheres e de homens. Natureza entendida como social e historicamente constituindo-se e não como um ‘a priori’ da História. (2004, p.36)

Analfabetismo: face de uma realidade que persiste

Os anos de 1990 revelaram ao mundo a existência de quase um bilhão de analfabetos, entre os quais, 600 milhões de mulheres, segundo dados da UNESCO, no diagnóstico publicado durante a realização da Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia. Muito tardiamente, dirigentes de Estado e ministros da Educação assumiram o compromisso de “atender às necessidades básicas de aprendizagem e erradicar o analfabetismo”. Marcou-se prazo, mas passados 20 anos, o compromisso assumido não foi cumprido. Muitos obstáculos se interpuseram para impedir essa oferta, especialmente o submetimento da política educacional à ordem econômica.

No Brasil, após assinatura do Pacto Mundial nos anos 90, viu-se a edição de planos, programas, organização de campanhas, criação de fundações e ONGs, todos voltados à

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

causa da Educação. Pode-se citar: Educação para Todos – Caminho para Mudanças, a Fundação Educar, no governo Sarney (1986); o Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania, do governo Collor (1990); o Plano Decenal de Educação para Todos (2003), no governo de Itamar Franco; Programa Acorda Brasil, Alfabetização Solidária, Programa de Desenvolvimento Profissional Continuado, Parâmetros em Ação, Educação de Jovens e Adultos (1999), no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995) (VIEIRA, 2000); o Plano Nacional de Formação do Trabalhador (PLANFOR), financiado com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) (HADDAD; DI PIERRO, 2000); Brasil Alfabetizado, no governo Lula, que

a partir de 1990, terá como foco o Nordeste, por concentrar 90% dos municípios com altos índices de analfabetismo, e os jovens de 15 a 29 anos (Maranhão, 2008), Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA); ProJovem Saberes da Terra. (BRASÍLIA, 2007)

Para tantas declarações/ações, muito pouco se alterou qualitativamente até a atualidade. O analfabetismo se transforma e está presente, não somente entre os que não sabem ler e escrever e estão fora da escola, mas de forma perversa entre crianças e jovens que entram para a Educação Básica e, segundo as avaliações nacionais indicam, não conseguem aprender no nível correspondente à série em que estão matriculados. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) apontou, por exemplo, no Maranhão, dados altamente negativos e representativos de todo o contexto que se vem apresentando nesse esforço de reflexão sobre a Educação Popular. Veja-se o quadro abaixo:

Taxa de analfabetismo de 15 anos ou mais, por gênero, raça e localização | 2001Categorias Brasil (%) Nordeste (%) Maranhão (%)

Total 12,4 24,3 23,4

Masculino 12,4 26,3 25,8

Feminino 12,3 22,4 21,1

Branca e Amarela 7,7 19,0 19,0

Parda e Negra 16,6 24,1 22,5

Urbana 9,6 18,0 18,1

Rural 28,7 40,7 34,7

Adaptado do Mapa Analfabetismo no Brasil – BRASIL/MEC/INEP (2008)

A taxa de analfabetismo em 2007 decresceu e, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), relativa a 2007, havia 14,1 milhões de analfabetos com 15 anos ou mais de idade no País, com taxa de analfabetismo de 10%, ante 10,4%, em 2006. Em 1992,

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a taxa era de 17,2% e em 2001, 12,4%. Mas não significa que a educação ofertada garanta os princípios da Educação Popular. Apesar dessa diminuição nos índices, as taxas ainda são maiores do que as de outros países da América Latina. Dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) mostram que a taxa brasileira de analfabetismo é superior a de países como Bolívia (9,7%), Suriname (9,6%), Paraguai (6,3%), Argentina (2,4%) e Chile (3,5%). Com taxas maiores do que o Brasil estão outros sete países latino-americanos: Haiti (37,9%), Guatemala (26,8%), Nicarágua (19,5%) e República Dominicana (10,9%).

As estatísticas variam entre as regiões brasileiras: em 2007, chegava a 19,9%, no Nordeste; 5,4%, no Sul; 5,7%, no Sudeste; 10,8%, no Norte; e de 8,1%, no Centro-Oeste. Entre as faixas etárias, houve variações significativas, pois, enquanto na faixa etária da taxa oficial de analfabetismo – 15 anos ou mais de idade –, chegava-se a 10%, em 2007; para a população de 25 anos ou mais, a taxa era bem superior, chegando a 12,5%. Por sua vez, a faixa de 10 a 14 anos era bem menor, atingindo 3,1%. Mas, em todas as faixas, a região Nordeste liderava com taxas acima da média nacional.

Acrescente-se que a relação entre matrícula e redução do número de analfabetos anunciado não condiz com a realidade, segundo avaliação realizada pelo Serviço Social da Indústria (SESI) e a UNESCO, em 2005.

Cabe acrescentar que, quando se trata da Educação Popular, esta não se reduz à questão do analfabetismo de crianças, jovens e idosos, mas a outros processos de inserção social e de participação política desses sujeitos, para além da educação. Porém, foram a necessidade e o papel histórico da educação que fizeram da alfabetização o principal objeto da ação em Educação Popular, seguido pela valorização da cultura e da educação para a participação política. Porém, é uma realidade que, segundo os números, teima em se consolidar neste País.

Esse quadro desafiador foi que fez surgir o PRONERA como política de Educação do Campo e a parceria com os Movimentos Sociais do campo e sua relação orgânica com a educação popular. O MST, por exemplo, afirma nesse contexto que faz de sua luta uma grande obra de Educação Popular e segundo suas teses, “quanto mais fica claro o projeto histórico do movimento, mais importância os Sem Terra passam a dar para a educação”. (MST, p. 20, 2001)

Se recuperarmos a concepção de educação como formação humana, é sua prática que encontramos no MST desde que foi criado: a transformação do desgarrados da ‘terra’ e dos ‘pobres de tudo’ em cidadãos, dispostos a lutar por um lugar digno na história. É

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também educação o que podemos ver em cada uma das ações que constituem o cotidiano de formação da identidade dos sem-terra do MST [...] A herança que o MST deixará para seus descendentes será bem mais do que a terra que conseguir libertar do latifúndio; será um jeito de ser humano e de tomar posição diante das questões do seu tempo; serão os valores que fortalecem e dão identidade aos lutadores do povo, de todos os tempos, todos os lugares. (MST, p. 20, 2001)

Outra referência importante são as populações quilombolas e indígenas assegurando um direito que lhes foi historicamente negado. Ilustra-se que a Fundação Cultural Palmares, órgão do Ministério da Cultura, aponta a existência de 1.209 comunidades remanescentes de quilombos certificadas e 143 áreas com terras já tituladas. São 49.722 estudantes matriculados em 364 escolas localizadas em áreas remanescentes de quilombos, sendo que 62% das matrículas estão concentradas na região Nordeste, que a partir de ações importantes no âmbito do INCRA/PRONERA passam ter o direito à educação assegurado. A Lei 10.639, de janeiro de 2003, prevê a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” e coloca como conteúdo obrigatório o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade. Por sua vez, a Lei nº 11.645, de março de 2008, mantém as disposições da Lei nº 10.639 e inclui ainda a questão indígena (MEC/SECAD, 2008); estes últimos, de acordo com o censo populacional do IBGE, realizado em 2000, constituem uma população estimada em 734.131, no Brasil.

Pode-se dizer que muitas dessas leis e iniciativas da sociedade civil estão incentivando novas práticas de educação que, de acordo com Movimentos, instituições e educadores envolvidos, ganham o status de Educação Popular, pois não se limitam apenas a escolarização, mas a empreender um movimento entre educação/escola e sociedade, luta política e trabalho. Nesse sentido, o trabalho como possibilitador de novas relações sociais tem sido um mediador importante, mesmo que se saiba impossível seu caráter humanizador/transformador, no atual estágio do capitalismo.

Maranhão: desafios do PRONERA ante a realidade educacional nos assentamentos de Reforma Agrária

A grande questão ao avaliarmos nossas ações é que não se faz o que se quer, mas o que se pode. Uma das condições fundamentais é tornar possível o que parece ser impossível. A gente tem que lutar para tornar possível o que ainda não é possível. (Paulo Freire, 1991)

Parte da realidade apresentada anteriormente toma corpo, como história no Estado do

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Maranhão. Aqui se registram os índices mais negativos de oferta da educação pública em decorrência das relações político-econômicas, em toda essa trajetória, as quais colocaram o Estado do Maranhão no quadro das estatísticas negativas quanto às condições de vida, em que os índices anunciam a persistência da pobreza e exclusão. São cerca de 3,5 milhões de sua população (63,7%) a condições de miséria absoluta – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); Fundação Getúlio Vargas (FGV, 2003/2001).

O modelo econômico tem trazido graves implicações para a política de educação e, nesse estado, os interesses econômicos vêm se manifestando sob distintas formas de dominação ao longo de décadas, quer sob o domínio de velhas formas oligárquicas, quer sob as novas formas oligárquicas de grupos políticos, grupos empresariais nacionais e multinacionais importadores e exportadores. Isso ocorre, predominantemente, porque os dirigentes políticos são, ao mesmo tempo, dirigentes, porta-vozes, proprietários ou sócios.

O controle exercido sobre a sociedade dá-se em conformidade com a correlação de forças políticas em evidência e pela capacidade dos grupos que detêm o poder de recomporem as estratégias políticas e manterem-se no poder (COUTINHO, 2005).

O discurso governamental no Maranhão dos anos 90 assume ares democratizantes pela via do participacionismo escolar e parece ter absorvido antigas bandeiras de luta do campo progressista, tais como democracia, participação, qualidade da escola pública, acesso e permanência, formação do educador e outros (COUTINHO, 2005).

Porém, a pesquisa realizada por Castro (2005), sobre os jovens e adultos em processo de alfabetização no PRONERA/MA, aponta as dificuldades do acesso e da permanência na escola, destaca o trabalho do educador e a fala dos educandos acerca de suas experiências com a educação e a escola. Estes, não se esqueceram de destacar, inclusive, os problemas enfrentados em outras escolas quando tentaram estudar, algo que, com certeza, é mais um fator a contribuir para a disfunção idade-série, para a evasão e para manter o analfabetismo. Destacam-se algumas falas contidas na pesquisa que se realizou com alunos do Projeto PRONERA/UFMA/MST/ASSEMA:

Eu gostei dela demais e, com ela, só não aprende mesmo quem é rude, ela explica bem. Eu saí, mas falei pras outras que ficaram: se vocês puder continuar pode ir, por que outra não encontra desse jeito, não. Ter paciência assim com todo mundo, só ela. (ALFABETIZANDA, Comunidade de Ludovico, 2005)

Começava mas nunca terminava o ano, aí, entrava um professor, saía, entrava outro, nunca foi só com um, por que nesse tempo eles vinha da cidade e não parava aqui. Ainda veio uma de São Luís, passava uma semana, duas, aí voltava de novo e nunca terminava o

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ano. (ALFABETIZANDA, Comunidade de Ludovico, 2005)“Sim, sim, pelo menos já dá pra fazer o nome e assinar nos documentos, se ficasse até

o final tinha aprendido mais coisa”. (ALFABETIZANDA, Comunidade de Ludovico, 2005)

O porquê de terem deixado de frequentar as escolas, surge com as falas a seguir e as mesmas não surpreenderam, pois expressam as visões dos sujeitos anteriores. Também, foram capazes de reconhecer a contribuição do PRONERA, mesmo no pouco tempo que integraram as suas turmas. O texto abaixo é bastante ilustrador desses fatos:

Eu aprendi, por que antes eu não sabia nem falar direito, hoje já sei dizer alguma coisa, melhorou muito, por aqui na comunidade, tem muita gente que sabe ler e escrever, mas não discute nada, na reunião mesmo ali no colégio eu vejo as pessoas não sabe dizer nada e eu aprendi na sala de aula a dizer as coisa que penso, e não ter vergonha de dá minha opinião. (ALFABETIZANDA, Comunidade de Ludovico, 2005)

Falavam aqui na comunidade que era bom pra quem não sabia de nada, só que como não estudei só sei fazer meu nome, disse que ia fazer minha matricula, aí na hora foi mais difícil do que pensei, porque de noite eu achava ruim, a gente trabalhar o dia todo, de noite eu não tava com coragem de ir. (ALFABETIZANDA, Comunidade de Ludovico, 2005)

Portanto, quando tratam da evasão, as causas indicadas são comuns a várias realidades já citadas e expressam as desigualdades sociais no Maranhão, principalmente no campo.

Foi esse cansaço de trabalhar muito, e a falta de interesse também, porque se a gente tiver mesmo que trabalhar, tendo interesse, vai (risos). (ALFABETIZANDA, Centrinho do Acrísio, 2005)

Os companheiros da sala começaram a desisti e ficava sem vontade de ir, ficava sem graça só um pouquinho de gente na sala, aí deixei de ir. (ALFABETIZANDO, Centrinho do Acrísio, 2005)

Em 2008, o então governador do Maranhão, Jackson Lago, assinou decreto criando a Comissão Maranhense para a Erradicação do Analfabetismo no Maranhão, composta por representantes da assessoria especial do governador, das secretarias de Estado da Educação, Ciência e Tecnologia, Agricultura, Desenvolvimento Social, Igualdade Racial e membros de outras instituições públicas. No ato de criação da comissão, foi anunciada alfabetização de, aproximadamente, 45 mil pessoas, número correspondente a 5% dos 927.111 analfabetos existentes no estado, conforme pesquisa realizada no ano de 2007, pelo Programa Brasil Alfabetizado.

O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), aprovado em 2008, não enfrenta o problema da alfabetização; esta volta a ser tratada no Plano Nacional de Desenvolvimento da Educação,

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sob o redesenho do Brasil Alfabetizado, que prioriza a alfabetização nos municípios com índices de analfabetismo superiores a 35%.

Por sua vez, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA), em seu documento base, publicado em 2007, quando situa a questão da educação de jovens e adultos no Brasil, declara:

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil, como modalidade nos níveis fundamental e médio, é marcada pela descontinuidade e por tênues políticas públicas, insuficientes para dar conta da demanda potencial e do cumprimento do direito, nos termos estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. Essas políticas são, muitas vezes, resultantes de iniciativas individuais ou de grupos isolados, especialmente no âmbito da alfabetização, que se somam às iniciativas do Estado. No entanto, as políticas de EJA não acompanham o avanço das políticas públicas educacionais que vêm alargando a oferta de matrículas para o ensino fundamental, universalizando o acesso a essa etapa de ensino ou, ainda, ampliando a oferta no ensino médio, no horizonte prescrito pela Carta Magna. (MEC/SEPT, p.9, 2007)

Portanto, essa longa referência sintetiza a reflexão que se vem realizando no trato dessa questão, inclusive, destaca o reconhecimento dos órgãos de gestão do estado, quanto à comprovação do descaso para com essa modalidade de educação.

PRONERA/UFMA/MST/ASSEMA alfabetizando jovens e adultos: na contramão das políticas dominantes

A contribuição do PRONERA ao Maranhão tem uma importância política destacável, pois, historicamente, os problemas com a Alfabetização de Jovens e Adultos no estado são mais intensos nas áreas em que esse programa atua. Quando essas ações se realizam, são parciais e em curto prazo. Desse modo, apesar do Programa ter sido lançado em julho de 1998, nesses anos, partiu-se de ações predominantemente voltadas para EJA. Hoje, o PRONERA abrange os diversos níveis de ensino, a formação profissional e de educadores do campo.

Nos dois primeiros convênios assinados em 1999, o PRONERA/UFMA/MST/ASSEMA objetivou a realização dos projetos de alfabetização para jovens e adultos assentados, a escolarização em nível de ensino fundamental (5ª a 8ª séries) aos seus professores, assegurando-se ainda a formação pedagógica aos mesmos, de forma integrada, porque estavam no exercício do magistério em 80 turmas, beneficiando 1.600 alunos, pertencentes a 59 Projetos de Assentamentos, localizados em 37 municípios maranhenses. Essa parceria inicialmente contou com a Fundação Sousândrade, a Universidade Federal do Maranhão,

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o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Associação em Áreas de Assentamento do Estado do Maranhão (ASSEMA).

A proposta de Alfabetização de Jovens e Adultos desenvolvida pela parceria UFMA/MST/ASSEMA adotou uma perspectiva dialética da construção do conhecimento, indo para além da decodificação, isto é, da assimilação mecânica dos códigos de leitura e escrita, pois estes não dão conta de todo o processo de alfabetização, que engloba outras áreas do conhecimento e outros saberes socialmente produzidos.

O processo de alfabetização desenvolvido simultaneamente à formação dos monitores de EJA, à época, constituiu-se um desafio para a equipe do PRONERA/UFMA, pois, ao mesmo tempo, ocorriam três experiências educativas: a do educador que estava em sala de aula tentando alfabetizar, sem meios para tal finalidade; a dos educandos jovens e adultos em busca da alfabetização e com grandes expectativas; e a da equipe executora, pois, ao conhecer a realidade do campo, uma realidade distinta da educação e da escola urbanas, entendeu que precisava se educar para responder a esses desafios.

Para tanto, tratou-se de buscar os fundamentos teóricos necessários e passou-se a construir coletivamente a proposta curricular do projeto aprovado. Primeiramente, uma proposta de alfabetização para dois anos, que pudesse permitir a esses jovens e adultos a continuidade dos estudos em nível fundamental de 3ª e 4ª séries. Assim, elegeu-se o princípio de que homens e mulheres do campo pela via da educação se reconhecessem sujeitos de sua história; para tanto, não bastava ler e escrever palavras ou assinar o nome.

Num diálogo com Paulo Freire, percebeu-se que se fazia necessário desenvolver nos educandos a capacidade de ler o mundo e, segundo a vertente metodológica adotada, poder contribuir para transformá-lo. Então se tratou de resgatar as identidades, as histórias, as lutas, a cultura, a organização política dos assentados, pela aquisição do conhecimento.

Nesse sentido, para o grupo de educadores do PRONERA/UFMA/MST/ASSEMA, o planejamento para escolha de conteúdos e das metodologias em afinidade com os princípios e objetivos propostos não deviam se constituir em ações puramente técnicas e nem neutras, mas sustentar-se numa dimensão de uma práxis pedagógica, que tem clara a concepção de educação, de sociedade, de homem e a consciência histórica desse fazer. Isto significou reafirmar aos educadores em formação que a educação é um processo histórico, que se faz num contexto social e, portanto, leva as marcas (sociais, políticas e culturais) de um determinado tempo e espaço. Mas o processo educativo, ao mesmo tempo em que é determinado, é também determinante, sendo capaz de impulsionar mudanças dentro e fora da escola.

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Com base nessa concepção, educar constituiu-se um ato coletivo; educador e educando construindo juntos o conhecimento, com a mediação dos educadores e estudantes universitários do PRONERA. O educador assume um papel de importância inegável nesse processo e esse programa de educação tentou reunir condições cognitivas, afetivas, políticas e técnicas que viabilizasse desenvolver uma prática educativa transformadora.

Num exercício de interdisciplinaridade, simultaneamente, construiu-se a Proposta Curricular de EJA para a formação dos educadores, em que se contemplou as diretrizes curriculares do MEC, porém, ampliando-as para atender à formação dos monitores de EJA. Assim, incluíram-se no currículo do ensino fundamental os conteúdos de Filosofia, Sociologia, Psicologia e Didática. De forma a complementar, acrescentou-se Seminários e Oficinas de Educação Cooperativista, Movimentos Sociais e Reforma Agrária, Leitura e Produção Textual, Literatura Infantil e Juvenil, Arte e Cultura Popular, Educação Física e Jogos, Educação e Saúde, estes trabalhados nos pólos de escolarização por professores da UFMA e de sua escola de aplicação, o Colégio Universitário. Construída pelo grupo, uma proposta curricular, articulada à primeira, instituiu a Alfabetização de Jovens e Adultos (EJA), tomando por base uma visão de sociedade, cultura, trabalho, educação, campo e assentamento numa visão de totalidade social.

A interdisciplinaridade considerada a partir dessa metodologia destacou, como fundamento orientador do trabalho pedagógico, quatro eixos temáticos que perpassaram tanto as atividades de formação dos educadores quanto as práticas alfabetizadoras e os saberes das diferentes áreas do conhecimento, propostos nos Módulos Interdisciplinares. Nesse processo, a relação do conhecimento com a prática social nos assentamentos, garantiria uma compreensão da leitura e da escrita fundada na realidade concreta, sem a ela se reduzir, mas articulando as diversas dimensões do ser social: produtiva, educativa, política, histórica e cultural.

Entre os eixos trabalhados, citam-se quatro: Nossa História /Nossa Identidade, cujo objetivo foi assegurar o debate e as leituras, como possibilidade de compreensão dos diferentes aspectos que constituem o ser social; Nossa Terra / Nossa vida – valorizar a terra em todas as suas dimensões (sociais, econômicas, políticas, culturais). O trabalho dessa temática permitiu ver a terra como geradora de vida e de lutas pela vida; Nosso Trabalho / Nossa luta – este eixo propiciou reflexões sobre a ação humana transformadora e criadora – o trabalho, estudado desde os seus aspectos práticos (das formas de trabalho existentes no assentamento), até a compreensão histórica das relações de trabalho, que determinaram e determinam diferentes formas de organização da sociedade; Nossa Política / Nossa Organização – em que a questão central foi a compreensão da participação política, da

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organização do campesinato, da ação e intenção do homem e da mulher enquanto ser social (MARANHÃO/PRONERA/UFMA/MST/ASSEMA, p.3, 2005).

Na produção coletiva do material didático – os módulos interdisciplinares – constituído por um exercício inter e multidisciplinar, contendo as diferentes áreas do saber escolar, num diálogo permanente com a realidade concreta dos educandos assentados da Reforma Agrária, seguiu-se o princípio de que a prática social constitui o ponto de partida da prática pedagógica. Ao falar de prática social nos referimos a toda ação social e não somente ao cotidiano do aluno.

A aproximação com a realidade do(a) aluno(a) e do monitor de EJA, fez-se a partir das relações que se estabelecem com o cotidiano do(a) educando, de seu meio natural e social e dos significados que a eles atribuíam. Assim, num movimento de análise e reflexão sobre realidade imediata, problematização, reelaboração e construção de novos saberes e da prática social, cuja função do educador é mediar esse processo, organizou-se as situações de aprendizagem diversificadas, estimulantes e criativas e conduzindo os(as) alunos(as) à elaboração sistematizada do conhecimento, o que culminou com a aprovação do Projeto de Continuidade para as 3ª e 4ª séries, nesse momento com os nossos monitores já realizando o Magistério de nível médio.

Estudei quando era pequeno, uns dois anos e nem lembro por que desisti, mas, foi muito difícil, perdi minha mãe muito cedo, tinha muitos irmãos e meu pai não ligava pra isso. Agora depois de grande, estudei no PRONERA da vez passada e continuei nessa nova turma. (ALUNO de EJA, Comunidade de Ludovico, 2005)

Ressalta-se que o processo didático em sala de aula compreendia três momentos dialeticamente relacionados. O primeiro permitia a análise e reflexão sobre realidade imediata, tomando o senso comum como ponto de partida. Os saberes já acumulados pelos alunos, mesmo que algumas vezes incoerentes ou inconsistentes, e sua realidade empírica são elementos para a compreensão crítica da realidade. O segundo favorecia a problematização – os saberes são postos em causa, isto é, são analisados, discutidos, investigados e contextualizados, com as contribuições das ciências e da filosofia. Por sua vez, o terceiro momento estimulava a elaboração e construção de novos saberes e da prática social – os antigos saberes são reelaborados e novos são construídos, não mais sustentado pelo senso comum, mas nos saberes sistematizados, considerando a realidade e as necessidades.

Em todo esse processo, o educador é o mediador e dirigente, organizando situações de aprendizagem diversificadas, estimulantes e criativas, e conduzindo os alunos à elaboração

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sistematizada do conhecimento. Propiciava momentos de troca e de reflexões coletivas e individuais, bem como favorecia o processo de crítica e autocrítica.

A caminhada feita pela Equipe do PRONERA/UFMA/MST/ASSEMA permitiu momentos de troca e de intensas reflexões coletivas e individuais entre a Universidade e o Campo, bem como favoreceu o processo de crítica e autocrítica de todo o grupo, uma vez que a avaliação abrangia do planejamento à execução das ações e envolvia desde as atividades de ensino nos pólos de escolarização às salas de aula, nos assentamentos.

Convém ressaltar que, ao chamarmos de escola os espaços onde se realizavam as aulas nos assentamentos e/ou nos pólos de escolarização, consideram-se estes uma representação de “escola”, pois os “lugares de escolas” eram barracões, salões de igreja, de associações e sindicatos. As carteiras, mesas e quadro de giz, mínimos necessários a estruturar uma sala de aula, não existiam. A energia elétrica nos assentamentos era raridade, pois de 80 salas de aula, apenas 21 tinham esse serviço, com a potência reduzida. Assim, sob lamparinas, velas e lampiões, desafiou-se a realidade perversa da educação produzida pela ordem do capital no campo, mesmo sabendo-se o quanto é difícil superá-la.

Marcou profundamente esse fazer pedagógico da Equipe PRONERA o comportamento dos alunos de EJA, quando receberam seu primeiro módulo interdisciplinar e, quando abriram os mesmos, se perceberam nas ilustrações, nos textos; identificaram sua história e cultura, suas formas de produzir e existir, dialogando com a Matemática, com a Geografia, as Ciências, a Língua Portuguesa, a Arte, e começaram a reelaborar suas visões acerca do campo, passando a concebê-lo como espaço de produção de vida e de cultura.

Essa experiência possibilitou que a maioria desses Educadores trabalhem em escolas e projetos, com crianças, jovens e adultos; propiciou a continuidade dos estudos no sistema regular de ensino e no PRONERA. Entre os educandos, a apropriação, a construção e reconstrução de saberes têm favorecido a busca por níveis mais elevados de escolarização para si e para seus filhos, refletindo a organização e a luta histórica por educação de qualidade, sem que se perca de vista a questão central, que é a terra.

Eu achei tão bom essa forma de estudo que pensei em pedir ao Ildo até pelo amor de Deus que conseguisse pro meu filho Ilderglan fazer o magistério no PRONERA. Quando eu tava no colégio que ele ainda não estudava lá, eu trazia atividade pra fazer em casa e pedia pra ele me ajudar, ele dizia: mãe essa aula aí não ensina nada não, só essas historinhas aí, isso no começo. Depois continuei a trazer coisa pra resolver em casa, pedia pra ele ajudar ele olhava e dizia: não, isso aí não sei não, eu dizia, rapaz tu já terminou o ginásio e não sabe responder um problema desse? Ele dizia: não sei de jeito nenhum.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Agora pergunto como é a aula dele no curso do magistério no PRONERA e ele diz que é pesado, que tem de estudar muito. Quando eu resolver esses problemas de saúde e ficar boa da vista, vou voltar a estudar. (ALFABETIZANDA, Comunidade de Ludovico, 2005)

Considerações Finais

Os Estados e os organismos internacionais anunciam o direito à educação e ao desenvolvimento, antes de tudo, como um “direito do homem”. Sabe-se que o desenvolvimento tem uma natureza dialética, contraditória. É, ao mesmo tempo, direito a um desenvolvimento global, responsável e solidário com toda a humanidade, fundado no respeito aos direitos e dignidade humanos e na sua participação política (Cury, 2002), e negação desse direito, porém, quando se torna objetivo de sociedades classistas, sobretudo aquelas onde o capital/mercado se fez condutor das relações, como resultado, têm-se parcelas mínimas de ricos proprietários e contingentes enormes de pobres e vulneráveis, sem acesso à distribuição da riqueza produzida por eles mesmos, esta última, condição necessária para uma vida com dignidade.

Não basta anunciar o direito à educação como mola propulsora para o desenvolvimento, pois, essa ideológica visão apenas tenta encobrir as relações sociais e os interesses decorrentes das classes dominantes, nos espaços públicos e privados, que historicamente se constituíram.

A responsabilidade jurídica e política do Estado, no domínio do direito à educação de jovens, adultos e idosos é clara e indiscutível. Mesmo que hoje haja uma tendência a torná-la uma mercadoria, deve-se defender o princípio de que o direito à educação não está no mercado.

Neoliberais dizem que as instituições excessivamente assistenciais sufocaram o homem econômico racional e conduziram a incentivos perversos, como a assistência aos pobres sem estimular a competição, a produção. A reforma do Estado e de sua gestão pública vem correspondendo a esse fim e foi orientada por propostas reguladoras visando acentuar o privado sobre o público, implicando mais pobreza e mais sujeitos sem direito à educação com qualidade social, portanto reforçando a permanência do analfabetismo.

É necessária a ação responsável do Estado, pois a educação é um direito social e o Estado tem o dever de promovê-la com qualidade. Temos uma Federação com 27 Estados e 5.500 municípios em cooperação recíproca com a União. Porém há uma desproporção econômica, política (presença) e demográfica entre os diversos membros da Federação. O

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Estado do Maranhão, indutor dessa reflexão, tem 217 municípios, dos quais 117 estão com índices superiores a 35% de analfabetos (PAEMA, 2008) e aproximadamente 100 abaixo do IDEB (Maranhão, 2008).

Por outro lado, se alfabetizamos, mas não garantimos o acesso aos equipamentos de leitura, de cultura, do trabalho e de participação política, esse sujeito volta à sua condição anterior de analfabetismo e de pobreza. Portanto, não há como pensar educação descolada do modelo de sociedade e de desenvolvimento que se tem e que se pretende construir.

Finalmente, pode-se dizer que esses 13 anos de luta em defesa da Educação do Campo permitiram a todos e a todas que realizam o PRONERA/MA aprenderem sobre uma parte da realidade que a história quase silenciou, mas que a luta dos trabalhadores e trabalhadoras do campo a fez emergir, inclusive em suas contradições: a questão agrária, as políticas públicas, a história e a cultura camponesa, em síntese, a história da luta por dignidade.

Os demais projetos desenvolvidos pela parceria UFMA/MST/ASSEMA, hoje ampliados pelo Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN) e Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (ACONERUQ), vêm sendo organizados de forma a propiciar aos(às) educandos(as), estudos que têm como ponto de partida a sua realidade e, assim, que possam apropriar-se de conhecimentos sistematizados, visando fazerem uma leitura crítica do meio em que vivem e contribuírem para a transformação qualitativa de sua realidade. São aproximadamente 20.400 alunos(as) atendidos(as) em 309 municípios e 769 assentamentos/áreas de Reforma Agrária (considerando que, às vezes, um mesmo PA e município não aparecem em duas ou mais ações).

Pode-se afirmar que a escola do PRONERA contribui para que, no diálogo com seus sujeitos sociais representativos, se possa aprender o verdadeiro sentido de luta, de companheirismo, de partilha, de conflitos superados pelo diálogo respeitoso, de convivência com diferentes visões de mundo e referenciais de Educação do Campo emancipador. No PRONERA aprende-se a ser educador e militante, atos essencialmente humanos. “Por isso, hoje viemos cantar no coração da cidade, para que ela ouça nossas canções...” (PEDRO TIERRA) e contribuir para romper com as cercas do latifúndio, pois,

O latifúndio é feito um inçoQue precisa acabar

Romper as cercas da ignorânciaQue produz a intolerância

Terra é de quem plantarTerra, Terra, Terra, Terra...

(PEDRO MUNHOZ)

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Referências

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Reflexões sobre o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPBJosé Jonas Duarte da Costa

Reflexões sobre o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPB

José Jonas Duarte da Costa52

Introdução

Este artigo descreve o processo de estruturação do curso de História para os Movimentos Sociais do campo, iniciado em 2004 e concluído em 2008, na Universidade Federal da Paraíba. Apresentamos também, uma rápida análise do processo, observando alguns impactos para a Universidade e o meio acadêmico, assim como uma breve análise sobre os impactos para os Movimentos Sociais do campo. Procuramos remontar os embates políticos e acadêmicos, ressaltando argumentos e posicionamentos das diversas partes que se envolveram no debate.

A Universidade é, naturalmente, o ambiente do debate teórico. O espaço onde ecoam as teorias científicas e a diversidade ideológica. Por isso, consideramos importante destacar o momento histórico em que transcorreu o processo de criação do curso, relacionando-o com o pensamento político hegemônico na sociedade e na Universidade.

O curso de História é, por excelência, um curso bastante politizado, onde a diversidade político-ideológica irrompe, sistematicamente. De fato, a interpretação e a construção da narrativa histórica carregam em si, inevitavelmente, visões políticas e ideológicas, que expressam as contradições da própria sociedade. O debate democrático dos rumos e das opções da Universidade, necessariamente, já se impõe como elemento dessas interpretações da História.

Nessa perspectiva, estudar História é perceber o tempo em permanente movimento e constante mutação. “Na segunda metade do século 20 teria ocorrido a aceleração da história. O passado se torna história, em nossa época, a um ritmo alucinante: a história corre atrás de nós, está em nossos calcanhares”(CARDOSO, 2005, p.14).

Os anos 90 do século XX parecem indicar um fechamento de século inglório às utopias que o permearam no seu transcurso. Anunciava-se, na década de 1990, a vitória e a eternização

52 Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Reflexões sobre o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPBJosé Jonas Duarte da Costa

da economia de mercado e o capitalismo liberal como a forma mais avançada de organização social em que a humanidade alcançara.

A queda do muro de Berlim, a massacrante vitória ‘ocidental’ na Guerra do Golfo e o melancólico fim da União Soviética criaram, no início dos anos 90, uma sensação generalizada e apoteótica de que o liberalismo econômico e político haviam vencido definitivamente a luta contra o nacionalismo e o socialismo. (FIORI. 2002, p.22)

Nesta direção estreitavam-se os espaços à produção acadêmica crítica. À Universidade foi oferecida a condição de produtora de mão de obra qualificada para fazer girar o moinho do sistema vitorioso. Cursos, turmas e teorias passaram a ser criadas em função de atender o mercado e sua expansão indefinida. O pensamento hegemônico no meio universitário respaldara então, a vitória do capitalismo liberal.

Quebrara-se o que se firmara como rica tradição da Universidade brasileira. Espaço da criticidade e criatividade, mesmo sob a hegemonia histórica de uma instituição elitista e integrada aos descaminhos sociais do País. Acentuara-se a parte voltada ao elitismo social brasileiro, historicamente avessa a um papel social ativo, instrumento de transformação da realidade de desigualdades e injustiças sociais.

Este é o ambiente que o PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – e os Movimentos Sociais do campo vão encontrar em seus pleitos por ingresso nas instituições de ensino superior no País. Destacar esse aspecto nos parece importante porque nos oferece a dimensão exata das dificuldades encontradas na instalação de cursos superiores para pessoas oriundas do campo e das classes trabalhadoras neste País.

A UFPB, criada nos anos 1950 para instrumentalizar o projeto elitista de desenvolvimento para o estado da Paraíba, tinha, na relação com o universo rural, apenas a encampação da Faculdade de Agronomia do Nordeste, criada ainda nos anos 1930, explicitamente, para atender os filhos das oligarquias rurais regional. A mesma UFPB, porém, sempre abrigou a intelectualidade politicamente mais avançada do estado. Ávida por alternativas democráticas, que cunhassem elementos socialmente inclusivos nos projetos desenvolvimentistas gerados na Instituição.

Embora os anos 1990 acanhassem essas iniciativas no interior da Instituição, as mesmas continuaram. A UFPB manteve a tradição de desenvolver projetos de extensão com setores da sociedade historicamente excluídos dos bancos universitários.

A criação do curso de História para os Movimentos Sociais do campo e o diálogo que

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Reflexões sobre o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPBJosé Jonas Duarte da Costa

a UFPB inicia com esses setores organizados da sociedade têm importante significado para a discussão do projeto de Universidade e seu papel social. O curso de História PEC/MSC53 ecoou esse debate, demarcou posições e aguçou diversidade de interesses e de interpretações da realidade. Foi e está sendo um rico processo no fazer universitário, do fazer cidadania. Este artigo conta essa história.

Do “Fim da História” a uma História em Movimento

O lançamento do livro O fim da história e o último homem (Fukuyama, 1992), trouxe à academia, e especialmente aos historiadores, um rico debate buscando aprofundar o sentido da História enquanto ciência ou apenas como narrativas analíticas da vida passada e presente.

Para o estadunidense Francis Fukuyama, o fim da história se explicaria pelo fim da luta de classes. Com o fim da “Guerra Fria” e o conflito entre nações socialistas representando o proletariado, e nações capitalistas “democráticas” expressando a burguesia. O “capitalismo democrático” haveria vencido. Não teríamos mais espaços para a contestação da ordem burguesa, instaurada a partir dos movimentos revolucionários de 1776 (Independência dos Estados Unidos) e 1789 e 1792 (Revolução Francesa) e da Revolução Industrial. Com problemas e descompassos, teria sido essa a sociedade mais desenvolvida e melhor que a humanidade conseguira. Seguindo Platão, Nietzsche, Kant e os liberais da modernidade, o sistema capitalista, sob a lógica liberal democrática, houvera coroado o desenvolvimento humano e, sob esse prisma, a História chegara ao fim. O “Fim da História” enterraria utopias de igualdades e solidariedades entre os humanos e a construção de sociedades alternativas ao capitalismo.

A ideia de uma história parada, estática, como se não houvesse nenhuma perspectiva para além do domínio da lógica do capital, serviu mais como discurso anticomunista, antissocialista, do que como expressão da realidade objetiva, transbordante de contradições e sob movimento ininterrupto.

No Brasil, assim como de resto, em todo o mundo, o “Fim da História” alimentou o neoliberalismo hegemônico e arrasador da década de 1990. O neoliberalismo de caráter predador e autoritário aplastou-se sobre a sociedade conquistando mentes e corações. No entanto, ao contrário do que apregoou o entusiasmado filósofo, a História continuava em frenético movimento, sob e sobre contradições inquietantes, prontas a gerarem novos fenômenos, novos processos.

53 PEC/MSC – Programa Estudante Convênio/Movimentos Sociais do Campo.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Reflexões sobre o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPBJosé Jonas Duarte da Costa

Afirmando a História em permanente movimento e contradições, o processo social latino-americano no início dos anos 2000 se revestiu de uma riqueza social, outras vezes já presenciada em sua história. Amálgama humana perfeita, diria Darcy Ribeiro (1977). Mistura bem balanceada de povos, cores e história, a América Latina se esboça como centro das novas mobilizações a surgir na contestação ao modelo neoliberal em vigor. A resistência ao neoliberalismo se configurou em lutas sociais e por vezes institucionais. Seu palco principal, a Nuestra América. Ou melhor, seus povos em marcha, negando as imposições da lógica neoliberal e em construção de uma nova Era de Esperança. Formou-se a negação viva, objetiva do “Fim da História”. Como diz István Mézáros, citando o militante italiano Antônio Gramsci:

Se as pessoas realmente aceitassem essa concepção do tempo que faz a apologia do capital, afundariam inevitavelmente no abismo sem fundo do pessimismo (...) A convicção de Gramsci, que predica o ‘otimismo da vontade’ representou e representa a determinação irreprimível de uma força social radical destrutiva de desenvolvimentos, inspirada por uma visão sustentável do futuro e que desafia a relação de forças estabelecidas. (MÉSZÁROS. 2007, p.23)

Ainda nos anos 1990, na resistência ao neoliberalismo, os Movimentos Sociais latino-americanos e brasileiros pautaram suas lutas em questões bastante concretas, objetivas. Contra a privatização da água, dos recursos naturais, por Reforma Agrária.

Na luta por Reforma Agrária se pautou, como um dos pontos fundamentais, a educação, compreendendo-a como instrumento fundamental de conquista da cidadania. Os assentamentos rurais espalhados Brasil afora careciam de assistência técnica, de moradias, de infraestrutura e de escolas. Mais do que uma simples escola, comuns na má qualidade da educação pública brasileira, os Movimentos Sociais descobriram que necessitavam de uma escola que respondesse às necessidades camponesas, que incluísse a realidade camponesa e dos assentamentos na realidade do ensino. Do universo rural no universo dos livros. Sem preconceitos ou discriminação. Sem a visão de uma educação no campo como extensão da educação urbana. Os Movimentos Sociais do campo buscaram uma Educação do Campo. Que contextualizasse o seu universo. Capaz de emancipar o campo e os camponeses.

Os Movimentos Sociais incluíram na pauta pela Reforma Agrária, a educação na perspectiva emancipadora. Em pleno período de hegemonia das teorias liberais e da economia de mercado como passado, presente e futuro, os Movimentos Sociais do campo buscavam construir uma nova perspectiva para a realidade rural brasileira. Colocavam projetos em movimento, apontavam ideias inovadoras e transformadoras para a realidade agrária brasileira. Irrefutáveis às instituições e ao momento político latino-americano. Assim institucionaliza-se o PRONERA.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Reflexões sobre o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPBJosé Jonas Duarte da Costa

Apenas alguns anos depois do texto de Fukuyama, em 1998, negando as teses do fim da História, tem início outra história. A história do PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária. Educação e Reforma Agrária, bandeiras de lutas históricas das classes trabalhadoras brasileiras se fundem em um mesmo processo, sob frenético movimento e criatividade, provocando novas utopias, instigando à construção permanente de outro mundo no campo brasileiro, erguido em pilares de justiça, igualdade e solidariedade.

O PRONERA surge em atendimento às mobilizações populares dos Movimentos Sociais do campo por uma Reforma Agrária condizente com as necessidades dos camponeses, trabalhadores rurais e no geral, do campo brasileiro. Com o PRONERA, nasceu um conceitual próprio de educação voltada à realidade rural brasileira – a Educação do Campo. Uma educação contextualizada na realidade camponesa, valorizando a cultura e os saberes do campo.

A Educação do Campo procura romper com a prática tradicional equivocada de promover a educação no campo como uma extensão da educação na cidade, levando, na maioria das vezes, impondo a cultura urbana à cultura rural, camponesa. Desterritorializando o sujeito histórico do campo brasileiro. Precisaríamos de outro artigo para fazer nova discussão sobre o “trágico” processo de urbanização brasileiro que consolida as desigualdades sociais originárias da vida rural brasileira, alienando as classes trabalhadoras e seus filhos dos benefícios do processo de urbanização. Os pobres brasileiros expulsos do campo em suas histórias de sem-terras foram morrer nas periferias urbanas das pequenas, médias e grandes cidades, que se formaram metrópoles de desigualdades, símbolo do desajuste e da desorganização social nacional. Sintoma da desassistência de um Estado sempre incapaz de atender as demandas humanas básicas.

É novamente no campo que se externam essas contradições e tensões. Da mesma forma como o conceitual de Educação do Campo surge nas lutas populares por Reforma Agrária, impelida pelos oprimidos do campo e das periferias urbanas, expulsas do campo, ela se desenvolve sob uma concepção emancipadora de educação, de sociedade. Ou seja, o paradigma fundamental da Educação do Campo baseia-se na contextualização da realidade agrária, rural do País, mas também, e, sobretudo, na educação como instrumento de emancipação humana. A aquisição do conhecimento formal aliado ao desenvolvimento de uma consciência crítica de uma realidade opressora, desigual.

Trata-se, assim, de um projeto educativo que reafir ma e dialoga com diferentes pedagogias: com a Pedago gia do Oprimido, no princípio de que são os oprimidos os sujeitos de sua própria educação e libertação, assim como na defesa da cultura como matriz de formação do ser humano; com a Pedagogia do Movimento, na com preensão

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Reflexões sobre o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPBJosé Jonas Duarte da Costa

da dimensão fortemente educativa de parti cipação das pessoas nos movimentos de lutas sociais e no movimento da história; e com a Pedagogia da Terra, que compreende que há uma dimensão educativa na re lação do ser humano com a terra: terra do cultivo da vida, terra de luta, terra ambiente, planeta. (SILVA. 2007, p.107)

O Curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPB

No início dos anos 2000, mais um território é alcançado pelo PRONERA. Os cursos de nível superior. Em parceria com os Movimentos Sociais do campo e algumas universidades, se iniciam alguns cursos de formação superior. Inicialmente cursos de Pedagogia e Agronomia.

Em 2004, a UFPB aprovou a criação do Curso de História para os Movimentos Sociais do Campo. O curso foi aprovado pela Resolução CONSEPE 016/2004 e regulamentado pela Resolução 029/2004.

O Curso de História para os Movimentos Sociais do Campo da UFPB se utilizou da prerrogativa da existência de resoluções anteriores que abrem vagas especiais para professores das redes municipais e estaduais cursarem o nível superior, por meio do Programa Estudante Convênio.

O MST, Movimento Social demandante originário pelo curso, já havia procurado, anteriormente, duas instituições públicas federais de ensino superior, para absorver o curso de História, porém, sem êxito nas duas tentativas.

Na UFPB, o Departamento de História aprovou o curso e encaminhou uma solicitação ao PRONERA: que não houvesse bolsas ou qualquer outro tipo de remuneração aos professores desse Departamento que se envolvesse com o curso. Naquele período, era permitido o pagamento, em forma de bolsas, a professores e coordenadores do curso. É importante destacar esse aspecto porque evidencia uma predisposição do Departamento de História em realizar o curso como compromisso com os setores sociais, naturalmente excluídos, da Universidade.

Internamente, o Departamento de História organizou uma Comissão com três professores, responsável pela elaboração do Projeto, que incluía, além do Projeto Político Pedagógico, a parte financeira e o Plano de Trabalho para os quatro anos do curso. Essa Comissão trabalhou em parceria com o MST, seguindo as diretrizes apontadas pela Comissão Pedagógica Nacional do PRONERA.

Em assembleia departamental, decidiu-se aprovar o Projeto Pedagógico oriundo da Comissão Departamental que construiu o Projeto em parceria com os Movimentos Sociais. O curso aprovado seria exatamente igual ao curso oferecido convencionalmente, extensivamente,

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Reflexões sobre o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPBJosé Jonas Duarte da Costa

há anos, pela UFPB. Apenas definiu-se que seriam direcionados para temáticas específicas, de interesses dos Movimentos Sociais, os componentes curriculares optativos.

Aprovado pela Comissão Pedagógica Nacional do PRONERA, o curso ficou aguardando sua tramitação e aprovação nas devidas instâncias da Universidade. Internamente, desenvolveu-se em paralelo uma espécie de batalha de ideias. Sua aprovação deveu-se ao empenho da direção da Universidade, que não mediu esforços para superar mal-entendidos, divergências e contrariedades que acorreram ao longo do processo.

O novo, de fato, foi a Universidade ter realizado uma parceria com Movimentos Sociais, não institucionais, para desenvolver atividades de ensino, em nível de graduação. Situação até então impensável para diversos setores da sociedade e da academia no Brasil. Movimentos Sociais organizados que representavam setores sociais claramente excluídos da vida universitária. Na expressão de Éric Hobsbawm, que representavam “os de baixo”.

Criara-se uma perspectiva realmente democrática para a Universidade, onde o curso aprovado saíra das discussões e da demanda de um setor específico organizado da sociedade, que clamava adentrar seus muros e que, de outra forma, suas possibilidades de ingresso numa instituição federal de ensino superior seriam realmente muito poucas.

Analisando em retrospectiva, percebe-se que a realização desses cursos de nível superior significou grande conquista para os lutadores pela Reforma Agrária no Brasil, mas também para as universidades brasileiras, em geral, distantes de cumprir com seu papel social.

A Universidade assim cumpriu seu papel social. Inovou. Ousou. Voltou-se à realidade na qual se insere. Foi buscar o Brasil real, com seus dilemas sociais, suas disparidades econômicas, suas atribulações políticas e sua diversidade étnica e cultural. O curso de História nasceu com essas características e sob essa delineação política. Talvez Darcy Ribeiro dissesse: neste momento, neste episódio tivemos a “Universidade Necessária” (1969) para o Brasil.

Essa história, porém, carrega os sinais e as cicatrizes das grandes conquistas. Narrar detalhes e acontecimentos que, aparentemente são pontuais ou ocasionais, tornam-se importantes como termômetro para avaliarmos as reais condições da Universidade que temos e do alcance que teve a realização desse curso de História para os Movimentos Sociais do campo.

Compreendendo a Universidade como a expressão das contradições naturais da própria sociedade é possível entender a “batalha” que se travou internamente para aprovar o curso. No campo das ideias e do aparato jurídico institucional se ergueram barreiras e obstáculos que mereceram o exercício da construção de uma unidade política capaz de superá-los.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Reflexões sobre o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPBJosé Jonas Duarte da Costa

Assim como a sociedade brasileira, a Universidade nos anos 90 passara por uma espécie de revisão paradigmática. De centro da contestação ao sistema, assumira, majoritariamente, a condição de correia de transmissão do processo de hegemonização do pensamento neoliberal. A formação de profissionais acríticos para um mercado concentrador, metabolizador de um processo social excludente, dentro de uma concepção produtivista e alienada das responsabilidades sociais.

Promover um curso superior para assentados da Reforma Agrária, militantes sociais, sujeitos históricos envolvidos na luta por Reforma Agrária e por reformas sociais profundas no País, advindos de Movimentos Sociais estigmatizados pela mídia e por setores economicamente dominantes da sociedade brasileira significava, realmente, ousar. A UFPB assumiu o risco.

Como se tratava de um curso de caráter nacional, o mês de setembro de 2004 marcou a chegada dos candidatos concorrentes a 60 vagas, assentados da Reforma Agrária, oriundos de 23 estados No dia 4 de outubro de 2004, os 60 educandos aprovados no vestibular, participaram da solenidade de abertura do semestre letivo e assistiram a aula inaugural do curso, sob os aplausos entusiasmados e emocionados dos que lutaram por seus ingressos no ensino superior.

Importante destacar que, em paralelo ao curso, a professora Regina Behar, à época, subchefe do Departamento de História, elaborou um Projeto para o PROLICEN – Programas de Licenciaturas da UFPB, com o objetivo justamente de registrar aspectos da participação dos assentados da Reforma Agrária, oriundos dos Movimentos Sociais do campo na UFPB. Esse trabalho resultou no documentário Bandeiras Vermelhas, bastante representativo do significado e do impacto causados na Instituição, pelo ingresso de camponeses oriundos das camadas sociais mais baixas deste País.

De fato, presenciamos naquela experiência, a concretização de paradigmas apontados como princípios norteadores da Educação do Campo. Podemos ousar e dizer que o curso de História para os Movimentos Sociais do campo na UFPB

de uma educação dos e não para os sujeitos do campo. Feita sim através de políticas públicas, mas construídas com os próprios sujeitos dos direitos que a exigem (...) Basta também dessa visão estreita de educação como preparação de mão-de-obra e a serviço do mercado. (CALDART. 2004, p.151)

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Reflexões sobre o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPBJosé Jonas Duarte da Costa

A História sob julgamento

O CONSEPE – Conselho Superior de Ensino e Pesquisa – aprovara, na ocasião da votação da Resolução 016/2004, um item indicando o curso como provisório e que em torno da metade de seu desenvolvimento deveria se proceder, por parte do Departamento que aprovara originalmente o curso, uma avaliação para finalmente, a partir de então, definir se o curso deveria ter continuidade ou não. A avaliação, realizada em 2006 por professores e estudantes envolvidos no curso, foi plenamente favorável à sua continuidade.

A estrutura curricular do Projeto Político Pedagógico adotado para o curso de História PEC/MSC (Programa Estudante Convênio – Movimentos Sociais do Campo) tornou-se espelho para as mudanças na estrutura curricular do curso de História extensivo, como passamos a denominar o curso de História “convencional” da UFPB. A única diferença é que o curso para os Movimentos Sociais do campo é oferecido para esse público específico e sob a Pedagogia da Alternância, elemento fundamental para o bom andamento do curso.

A Pedagogia da Alternância é a essência da Educação do Campo, pois nela se integram a prática e a teoria, os saberes científicos e os saberes populares. O enriquecimento da vida acadêmica é levado à comunidade e a prática comunitária é estudada e teorizada nos bancos da academia.

Em junho de 2008, a UFPB gradua a 1ª Turma de História para os Movimentos Sociais do Campo. Com o diploma de licenciados em História pela Universidade Federal da Paraíba, se formaram naquela ocasião 55 dos 58 que cursaram e conseguiram aprovação em todos os Componentes Curriculares oferecidos pelo curso. Três alunos não conseguiram realizar o TCC – Trabalho de Conclusão de Curso, a monografia exigida como trabalho final, no prazo mínimo determinado pela Instituição. No entanto, um concluiu no semestre seguinte, ou seja, o 2008.2, e outros dois seguiram matriculados regularmente na Instituição, dentro dos prazos legais para a realização e a defesa de suas monografias de conclusão de curso.

As monografias de conclusão de curso da 1ª Turma de História PEC/MSC versam sobre os mais diversos temas históricos, porém, a grande maioria narra a história da conquista dos assentamentos ou das lutas travadas pelos assentados para construir uma Reforma Agrária em nosso País. No geral, as monografias refletem o excelente nível dessa turma, que alcançou o índice de desistência mais baixo da história da UFPB, de 3,3%. Com um CRE – Coeficiente de Rendimento Escolar médio da Turma de 8,65, considerado muito bom.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Reflexões sobre o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPBJosé Jonas Duarte da Costa

Por fim, registrar que a 1ª Turma de História para os Movimentos Sociais do Campo – Turma Apolônio de Carvalho – obteve um índice de retenção de apenas 5,2%, considerado ótimo nas instâncias responsáveis pela “medição” da qualidade de ensino na UFPB.

Com esse retrospecto, tornou-se impossível para os opositores aos cursos oferecidos aos assentados da Reforma Agrária, vinculados aos Movimentos Sociais do campo, na Instituição, levantarem-se contra a abertura de novos cursos ou novas turmas para esse público. Todos os argumentos contrários foram vencidos e, na pratica, a UFPB viveu e vive uma experiência exitosa em todos os sentidos, com todas as adversidades e dificuldades apresentadas, mas uma experiência vitoriosa.

Em virtude do êxito da experiência com a turma Apolônio de Carvalho, ainda em 2008, abriu-se a 2ª Turma de História para os Movimentos Sociais do Campo. A Turma, composta por 56 alunos assentados, oriundos de 19 estados, formou-se em novembro de 2011.

Para a UFPB, a experiência se converteu em desafio vencido. O intercâmbio com os Movimentos Sociais, com os saberes populares e a troca de experiências com instituições que não vivem o mundo acadêmico, enriqueceram bastante o cotidiano da Instituição, mas, sobretudo, ampliaram o horizonte da compreensão da construção do conhecimento. O conhecimento não produzido em um laboratório fechado, hermético como por vezes se imagina a Universidade, mas se produziu um conhecimento dialógico, em intercâmbio permanente e intenso com um setor social da sociedade brasileira, depositário das injustiças sociais e ao mesmo tempo da esperança de milhões e milhões que lutam por um futuro de dignidade em nosso País. A troca dos saberes acadêmicos com os saberes populares, elaborados e organizados política e socialmente, produzidos externamente aos muros da Universidade, é o diferencial desses cursos. E é realmente a condição idealizada para uma Universidade viva, interativa, ativa em sua atribuição de ente transformador da sociedade.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Reflexões sobre o curso de História para os Movimentos Sociais do Campo na UFPBJosé Jonas Duarte da Costa

Referências

ARROYO, M. G.; CALDART, R. S.; MOLINA, M. C. (ORGS.); Por uma Educação do Campo. 2ª. Ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

CALDART, R.S. Pedagogia do Movimento Sem Terra. Expressão Popular, São Paulo, 2004.

CARDOSO. C. F.. Um Historiador fala de Teoria e Metodologia. Edusc, Bauru – SP, 2005.

FIORI, J.L. 60 lições dos 90 – uma década de neoliberalismo. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 2002.

MÉZÁROS, I. O Desafio e o Fardo do Tempo Histórico. 2ª Edição. São Paulo: Boitempo, 2007.

SANTOS, C. A. (ORG.). Por Uma Educação do Campo – Políticas Públicas – Educação. NEAD – Especial, 2008.

SILVA, L. H. . Educação do Campo e Pedagogia da Alternância. A experiência brasileira. In: SÍSIFO – Revista de Ciências da Educação, n.º 5. Lisboa, 2008.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

A Universidade e o ensino de Direito para camponeses: a experiência do curso de Direito na UFG

Dr. Juvelino Strozake | Elisagela Karlinski

A Universidade e o ensino de Direito para camponeses: a experiência do curso de Direito na UFG

Juvelino Strozake54

Elisangela Karlinski 55

Ao longo de seus dez anos de história, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) tem contribuído para elevar o nível educacional de camponeses e camponesas no Brasil, contribuindo assim para o desenvolvimento do campo. Criado a partir de uma demanda dos Movimentos Sociais e dos profissionais de educação atuantes no meio rural, a trajetória do PRONERA tem sido construída em parceria com os trabalhadores que são, ao mesmo tempo, beneficiários e construtores das políticas públicas implementadas por meio do Programa.

Isso se deve tanto à opção política de articular as ações educacionais com importantes questões relacionadas à justiça social, econômica e ambiental, quanto à orientação pedagógica que privilegia o protagonismo dos sujeitos na transformação dos processos e do próprio ambiente educacional. Assim, mesmo quando os estudantes do campo vão para uma escola ou universidade no meio urbano, carregam consigo sua identidade de camponeses; e é através desse referencial que constroem sua trajetória de formação.

Em consonância com os objetivos do Programa, a intenção dos cursos ministrados com apoio do PRONERA não é apenas elevar o nível educacional dos estudantes, mas identificar e propor soluções aos problemas enfrentados pelos trabalhadores do campo. Assim como os primeiros cursos de formação continuada para professores em áreas de Reforma Agrária, que visavam atender o problema da oferta de ensino de qualidade adequado à realidade camponesa, a complexibilização das técnicas e das relações de trabalho no meio rural acabaram por gerar demandas de formação em outras áreas e níveis.

A demanda de graduação em Direito para beneficiários da Reforma Agrária é um exemplo disso. Diante da crescente ofensiva de criminalização dos Movimentos Sociais e a partir do entendimento da singularidade dos problemas jurídicos que vêm enfrentando ao longo dos

54 Advogado Popular, Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP).55 Graduada em Sociologia, pela Universidade de Brasília (UnB).

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

A Universidade e o ensino de Direito para camponeses: a experiência do curso de Direito na UFG

Dr. Juvelino Strozake | Elisagela Karlinski

últimos anos, tanto no âmbito do direito criminal como no cível e administrativo – devido à qualificação das organizações produtivas dos assentamentos –, os trabalhadores do campo passaram a necessitar de assessoria jurídica especializada.

Apesar de existir uma rede solidária de advogadas e advogados populares atendendo às demandas pontuais urgentes dos trabalhadores dos Movimentos e de suas cooperativas, há tempos os camponeses percebem a dificuldade que esses profissionais – majoritariamente de origem urbana –, têm em tratar os problemas dos camponeses. Atentos a esta falta de familiaridade com os problemas do campo e com a dimensão política atribuída à luta pela terra, já promoviam cursos de formação técnica e política sobre temas que pudessem ajudá-los a entender melhor a realidade dos trabalhadores que assessoravam.

Paralelamente, diversos estudantes oriundos de assentamentos rurais iniciaram cursos de graduação em Direito, em instituições públicas e privadas, com auxílio de bolsas de estudo, complementando sua formação em encontros com colegas militantes de outros estados, trocando experiências sobre os desafios que enfrentam em suas comunidades e aprendendo coletivamente a construir novas estratégias jurídicas, capazes de responder às suas necessidades.

Neste contexto, a possibilidade do PRONERA apoiar uma turma de graduação em Direito para beneficiários da Reforma Agrária, apresentou-se como uma oportunidade estratégica para os camponeses. Os Movimentos Sociais do campo entendem que a luta pela terra vai muito além do assentamento. De nada adianta a terra, se os homens e mulheres não aperfeiçoam sua capacidade de pensar, refletir e se comunicar. O estudo e a discussão são as únicas formas de construir novas ideias e assim, com novos mecanismos, alterar sua condição de vida e transformar sua realidade, assumindo sua condição de agente da história, do seu local de moradia, da região e do País.

Por isso, ao longo de sua trajetória e diante das transformações sociais, econômicas e políticas do País, os camponeses agregaram novas motivações à sua luta. Conscientes da insuficiência da distribuição pura e simples das terras, os Movimentos organizados passaram a reivindicar a efetivação integral de direitos e garantias fundamentais, como moradia, saúde e educação.

Sua luta hoje pode ser descrita como uma luta pela efetivação dos textos constitucionais e infraconstitucionais. Bons exemplos disso são os artigos 3º, da Constituição Federal, e o 16º, do Estatuto da Terra. O texto do referido artigo da CF diz que “Constituem

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A Universidade e o ensino de Direito para camponeses: a experiência do curso de Direito na UFG

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objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

O Estatuto da Terra, Lei Federal nº 4.504/64, no seu artigo 16º, traz o conceito jurídico da Reforma Agrária: “Art. 16. A Reforma Agrária visa estabelecer um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra, capaz de promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do País, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio.” (g.n.).

Portanto, o MST, a CONTAG, o Movimento de Mulheres Camponesas e os vários outros Movimentos Sociais do campo objetivam apenas, ou pelo menos, a concretização das conquistas inscritas na Constituição Federal e nas leis.

Todo o enfrentamento dos Movimentos a essa questão, historicamente, se deu no campo das lutas sociais e das manifestações públicas reivindicatórias – espaços onde eram tacitamente aceitos e tolerados. O rompimento dessa cerca imaginária, que expandiu o escopo de reivindicações e o modo de ação dos Movimentos do campo, começou a receber reações. Isso pode ser verificado na trajetória do próprio PRONERA.

Os primeiros cursos apoiados pelo Programa estavam restritos à universalização da Educação Básica e às áreas diretamente ligadas à lida do campo. Havia um certo reconhecimento da necessidade dos camponeses dominarem determinadas técnicas para o desenvolvimento de seu trabalho produtivo, portanto, enquanto se falava em especialização de docentes e cursos de Agronomia, não houve maiores manifestações de resistência. Diversas batalhas relacionadas aos direitos dos camponeses também vinham sendo travadas no campo jurídico, no entanto, a possibilidade de se criar uma turma especial de Direito para beneficiários da Reforma Agrária, representava a possibilidade dos trabalhadores futuramente ocuparem outro lugar nos Tribunais que não o banco dos réus. Representava a oportunidade de se tornarem conhecedores da ciência do Direito, até então acessível a uma parcela restrita da população.

Junto com Engenharia e Medicina, o curso de Direito faz parte da tríade hegemônica do ensino universitário brasileiro, portanto qualquer tentativa de democratização do acesso ao curso ou de flexibilização curricular, sabia-se, seria fortemente questionada. E foi exatamente o que ocorreu em relação ao projeto construído em parceria com a Universidade Federal

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A Universidade e o ensino de Direito para camponeses: a experiência do curso de Direito na UFG

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de Goiás (UFG). Ao tomar conhecimento, por meio da mídia, das negociações em curso para aprovação da Turma Especial de Direito para beneficiários da Reforma Agrária, vários atores do meio acadêmico e jurídico manifestaram-se, a maioria deles questionando o “privilégio” que seria concedido aos trabalhadores, quando, em sintonia com os objetivos do PRONERA, o que se pretendia era justamente promover uma ação afirmativa que derrubasse uma barreira invisível, mas real, que manteve e ainda mantém os camponeses afastados das carteiras universitárias.

Em 2004, uma pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de Educação e Pesquisa (INEP), em parceria com o PRONERA, demonstrou que a oferta de ensino fundamental nas escolas de assentamentos superava a oferta no meio urbano, representando ¾ das escolas de 1ª a 4ª série. De 5ª a 8ª série, no entanto, a oferta no meio rural caía para pouco mais de 10% do total de escolas, diminuindo para menos de 5%, quando se trata de ensino médio. A mesma pesquisa demonstra que há uma defasagem relativa também nos recursos tecnológicos disponíveis e no nível de formação de docentes nas escolas da zona rural, o que implica, obviamente, na qualidade do ensino ministrado. Isso comprova que o problema da oferta, baseado na igualdade preconizada pela Constituição Federal, ainda não está resolvido.

Desde a realização da I Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo, em 1998, os Movimentos camponeses, atentos a essa realidade, não pararam de refletir e produzir novos entendimentos sobre o tema; não apenas no campo da Educação Básica, na qual compartilham experiências com outros povos de cultura agroextrativista, mas em todos os níveis de ensino e, sobretudo, nos aspectos onde a identidade camponesa aparece como foco. Nesse sentido, fazer parte de uma turma de graduação em Direito representava não apenas o atendimento, em médio prazo, das demandas de assessoria jurídica dos trabalhadores do campo, mas a possibilidade de ruptura no meio acadêmico e, futuramente, no profissional, de uma ideologia hegemônica que subordina o ser humano ao patrimônio.

Compartilhando a compreensão da educação e do sistema de ensino formal a partir da leitura de autores como Marx e Gramsci, e considerando a escola como parte do aparelho ideológico do Estado, que pode ser transformada a partir da ação coletiva, os camponeses organizados passaram a querer mais do que apenas ocupar as brechas dos planos formais de ensino; almejaram alterá-los.

Diante do desafio, e para responder às necessidades de ensino nos níveis básico e fundamental, a aliança entre os diferentes Movimentos Sociais, profissionais e gestores da educação, levou à criação do Movimento por uma Educação do Campo, que reúne educadores, gestores públicos e outros intelectuais das áreas de ensino e educação.

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A Universidade e o ensino de Direito para camponeses: a experiência do curso de Direito na UFG

Dr. Juvelino Strozake | Elisagela Karlinski

Uma das primeiras vitórias desse Movimento foi o reconhecimento, pelo Ministério da Educação, da Pedagogia da Alternância, que consiste na possibilidade de flexibilização temporal dos estudos, permitindo aos alunos conciliar seu desenvolvimento educacional e cultural com o trabalho diário na lavoura, sujeito à ação da natureza e aos fenômenos sazonais e regionais. A criação do PRONERA tornou-se um produtivo espaço de reflexão, articulação e formulação de políticas de Educação para o Campo, contribuindo também para a universalização do ensino superior no Brasil.

A Universidade e o ensino de Direito para camponeses

A ideia embrionária do projeto da turma de graduação em Direito para beneficiários da Reforma Agrária, estendida aos agricultores familiares tradicionais, partiu da Universidade Federal de Goiás, que viu na aliança com os Movimentos Sociais do Campo, uma forma de consolidar e expandir o campus avançado da Faculdade de Direito da UFG na cidade de Goiás. Este campus funcionava na cidade há 16 anos, com estrutura precária, a exemplo do quadro docente disponível.

Antes do projeto, havia apenas quatro professores efetivos, dois deles licenciados e apenas um com dedicação exclusiva, para atender a um corpo discente de 300 estudantes. Além da reestruturação do campus, a proposta visa constituir um Centro de Referência em Direitos Humanos que possa servir ao desenvolvimento local.

Para os Movimentos participantes do projeto, dentre os quais se destacam o MST e a CONTAG, que foram protagonistas em sua elaboração e negociação, a proposta representou, desde o início, uma possibilidade de atendimento à crescente demanda de assessoria jurídica, além de uma oportunidade para elevar o nível educacional de seus militantes, qualificando-os em regime de comprometimento com a luta camponesa.

O primeiro passo para a construção do Projeto foi a elaboração de uma proposta institucional, apresentada pela coordenação da Faculdade de Direito do campus avançado da Cidade de Goiás, à direção da Universidade, em meados de 2004. Dado o primeiro passo, e a partir da receptividade encontrada, coordenadores do curso e professores da UFG procuraram os dirigentes dos Movimentos Sociais para propor uma parceria.

Em novembro de 2005, os atores envolvidos no projeto realizaram um Seminário, na cidade de Brasília, para discutir uma proposta de alteração curricular. A ideia era não apenas oferecer um curso diferenciado para a turma, mas reformular toda a grade curricular do curso de Direito do campus avançado da Cidade de Goiás, reforçando o enfoque dos direitos

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A Universidade e o ensino de Direito para camponeses: a experiência do curso de Direito na UFG

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humanos em todas as disciplinas, com vistas a fortalecer a proposta de consolidação do centro de referência anteriormente citado. Participaram do Seminário representantes da UFG, dirigentes do MST e da CONTAG, juristas e alguns professores de Direito de outras universidades públicas do Brasil, a exemplo da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e da Universidade de Brasília (UnB). A partir das ideias colhidas durante o Seminário, partiu-se para a elaboração do projeto específico, incorporando desde já algumas sugestões de alteração da matriz vigente, que só deveria ser totalmente reformulada ao longo do curso.

Dirigindo-se aos estudantes do curso, o Presidente Lula disse, em carta a eles endereçada, que “a tomada de consciência dos próprios direitos por parte da população brasileira é o grande passo de afirmação da cidadania que vai mudar a história de nosso País”, reafirmando que o compromisso de seu governo é “exatamente conseguir despertar nas pessoas e oferecer-lhes as condições básicas para que adquiram esta consciência dos Direitos Cidadãos”. Sobre a missão dos beneficiários do Projeto, disse ainda: “Vocês serão formadores e defensores dos DIREITOS exatamente daqueles que historicamente foram privados, excluídos da vida digna e cidadã (...). Sintam-se comprometidos com suas raízes, com seu povo, com todos aqueles que justamente não tiveram este privilégio que hoje vocês alcançam, e jamais traiam o ideal de servir a esta querida gente.”

O Edital para a contratação de dez novos professores assistentes, seis deles com dedicação exclusiva, aumentou o entusiasmo dos atores envolvidos no projeto, tanto os proponentes quanto os beneficiários, pois sinalizava o compromisso institucional do MEC com a turma e a esperança de reestruturação do campus da Cidade de Goiás, que beneficiaria à totalidade de alunos matriculados no curso de Direito. No entanto, esta conquista não demorou a ser questionada.

Para que Sem Terra precisa estudar Direito?

No dia 31 de maio de 2006, a Procuradoria da República em Goiás, instaurou um Inquérito Civil Público – processo PR/GO nº 1.18.000.008340/2006-92, com o objetivo de “apurar a regularidade de projetos mantidos pela Universidade Federal de Goiás, que pretende a criação de três cursos a serem destinados a segmentos específicos da sociedade” (MP/GO, 2007). Excetuando-se o curso de Administração – que reservaria vagas a funcionários do Banco do Brasil, os cursos de Pedagogia da Terra e de Direito, eram destinados aos beneficiários da Reforma Agrária e aos agricultores familiares tradicionais. O referido Inquérito, instaurado por meio da portaria MGMO 51/2006, teve como principal motivação

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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“as constantes matérias divulgadas pela mídia goiana a respeito dos projetos formulados pela UFG, para a criação de cursos superiores a determinados segmentos específicos da sociedade” (MP/GO, 2007). Questionados pela Procuradoria, a UFG, o PRONERA, o MEC e até a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) manifestaram-se sobre o projeto da turma.

Não satisfeita com as respostas obtidas, a Procuradora responsável pelo Inquérito solicitou uma reunião na sede do Ministério Público Federal, em Brasília. Estiveram presentes a essa reunião todos os atores questionados, representantes da Procuradoria Geral da República e do Ministério Público Federal, além de representantes dos Movimentos Sociais e outros convidados. Durante horas de acirrado debate, os presentes defenderam sua posição em relação ao Projeto. Acordou-se, nesse dia, que a UFG ampliaria o escopo de beneficiários do Projeto, incorporando os agricultores familiares tradicionais, conforme definição da Lei nº 11.326/2006. Esta decisão acatava o parecer da procuradoria jurídica do MEC que, em sua manifestação anterior, reafirmada durante aquela reunião, considerou que o Projeto ia contra o princípio de universalização do ensino, por beneficiar um público muito restrito.

O editorial do jornal O Estado de S.Paulo, publicado em sete de setembro de 2007, diz que o Projeto da Turma Especial não tem sentido e que chega a ser aberrante “a ideia de montar-se um curso de Direito exclusivo para os sem-terra, como o implantado pela Universidade Federal de Goiás (UFG), cujo ingresso depende de documento emitido pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), comprovando que o pretendente a bacharel em ciências jurídicas e sociais tem direito a concorrer àquela vaga em curso superior só por ser um sem-terra”. A crítica ao projeto, por meio da desqualificação do público beneficiário, também pode ser encontrada na matéria publicada pela revista Veja, em três de outubro de 2007: “Já são 16 universidades públicas que oferecem graduação exclusiva aos assentados. É isso mesmo: elas aceitam apenas sem-terra.”

Apesar de não haver, nas motivações do Inquérito Civil Público ajuizado pelo MP-GO, expressões que denotem a estigmatização dos trabalhadores ligados ao MST, a voz do preconceito pode ser atribuída à pergunta formulada pela Procuradora Mariane G. de Mello Oliveira, que, durante reunião no MPF, em 2007, questionou: “Para que Sem Terra precisa estudar Direito?”

A conexão desta pergunta aos ataques ao projeto veiculados pela mídia com a abertura de uma Ação Civil Pública é visível, já que a primeira motivação listada no inquérito considera que “a polêmica questão da criação dos dois novos cursos privilegiando segmentos específicos da sociedade vem sendo amplamente discutida pela mídia local e chegou ao

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

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conhecimento público, causando indignação em vários setores da sociedade goianense”. (MP/GO, 2007) Ou seja, a opinião da imprensa foi decisiva para a abertura do Inquérito e da Ação Civil Pública, que tinha como objetivo investigar a regularidade do projeto proposto. O latifúndio utiliza os meios de comunicação para externar suas ideias e formar a “opinião pública” a partir de seus conceitos e necessidades. O Ministério Público, por sua vez, com honrosas exceções, aceita com gosto o “prato feito” servido pela imprensa porta-voz do latifúndio, e age para tentar impedir a continuidade da experiência da turma apoiada pelo PRONERA.

O MP/GO ajuizou uma Ação Civil Pública, com argumento, entre outros, de que “o habitat do profissional do Direito, em qualquer de duas vertentes, é o meio urbano”, pretendendo impedir a continuidade da Turma Especial na Universidade Federal de Goiás.

No mês de junho 2009, o Juiz Federal da 9ª Vara de Goiás proferiu sentença determinando a extinção da Turma Especial de estudantes de Direito da Via Campesina.

Esta sentença, como de regra todas as sentenças, está sujeita ao duplo grau de jurisdição, e no momento da escrita deste artigo, ainda será apreciada pelo Tribunal Regional Federal, depois pelo Superior Tribunal de Justiça, e ainda poderá ser analisada pelo Supremo Tribunal de Federal.

Porque os assentados querem estudar Direito!

Sobre o acesso dos trabalhadores rurais ao ensino superior, é sabido que pouquíssimos deles chegam às universidades, apesar de terem este direito garantido pelo artigo 6º da Constituição Federal. A lógica de exclusão a que estão submetidos verifica-se, pois, em todos os aspectos de sua vida social e econômica. “Assim como são excluídos da terra, estes trabalhadores são excluídos da educação, num processo permanente, estigmatizante e visível” (Projeto UFG, 2005).

Na década de 1990, a partir de uma nova configuração das relações entre escola e trabalho e entre educação geral e formação profissional, a educação passou a ser objeto de intensos debates e disputas. Entendida como instrumento de conquista da cidadania, rapidamente ultrapassou a ação dos educadores, atingindo pesquisadores e profissionais de diversas áreas. Este processo também mobilizou empresários, sindicalistas, governos e organismos internacionais; e, sobretudo, os Movimentos Sociais, mesmo aqueles que

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não tinham a educação como prioridade. A importância desse debate destaca-se, entre os assentamentos rurais, pela especificidade da vida social, familiar, comunitária e produtiva que se reproduz nesse ambiente, particularmente, também, pelas dimensões físicas que o envolvem e pela dimensão política que assume. A necessidade de qualificação técnica nas mais diversas áreas é, para os assentados rurais, condição para um desenvolvimento sustentado e integral de suas comunidades.

Em Parecer sobre um projeto de construção de uma turma de estudantes de Pedagogia na USP, o professor Dalmo Dallari afirma que “a condição de assentado não é provisória nem marginal, mas é uma situação permanente, legalmente prevista, em que muitos brasileiros vivem” (Dallari, 2005). Este argumento reforça a necessidade de se graduarem, no curso de Direito, trabalhadores e trabalhadoras rurais, a fim de que possam ter o preparo técnico necessário e indispensável para assessorar juridicamente os trabalhadores rurais excluídos ou em processos de inclusão parcial. Além disso, a Universidade acredita que o protagonismo destes atores trará qualidade ao debate no meio universitário e uma nova dimensão da realidade ao campo jurídico e ao futuro das instituições.

Ao tratar desigualmente os desiguais, sobretudo na reserva de vagas em curso de nível superior, a turma de graduação em Direito destinada aos beneficiários da Reforma Agrária foi concebida dentro dos parâmetros das ações afirmativas.

O Projeto trata ainda da composição curricular do curso, alicerçada sobre cinco eixos de formação. O primeiro deles, denominado formação fundamental, inclui as disciplinas de base sociológica, política e filosófica, indispensáveis à formação humanista dos futuros bacharéis. A partir desta base, estão sendo desenvolvidos os demais eixos, a saber: formação sociopolítica, técnico-jurídica e prática, além da formação ética e socialmente responsável, que pretende comprometer os futuros profissionais, sobretudo, com os valores democráticos e a com defesa dos direitos humanos.

O objetivo geral do projeto é constituir uma turma no curso de graduação em Direito ofertado pela UFG, no campus avançado da Cidade de Goiás, para diplomar 60 trabalhadores e trabalhadoras rurais, com origem nos assentamentos da Reforma Agrária e na Agricultura Familiar, a fim de prepará-los tecnicamente para sua atuação profissional.

Dentre os objetivos específicos do Projeto estão a garantia do acesso à Educação Superior aos beneficiários da Reforma Agrária, a democratização do acesso à cultura acadêmica e ao saber jurídico especializado, incorporando a especificidade de condições dos estudantes e de seu universo circundante, neste processo.

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Outro objetivo perseguido pelo Projeto é a formação de advogados e assessores jurídicos com consciência crítica e conhecimento técnico aplicáveis à realidade dos trabalhadores assentados, quer seja na garantia de direitos fundamentais, na solução pacífica de conflitos ou no desenvolvimento de suas instâncias produtivas. O terceiro objetivo do Projeto é contribuir para a pluralização do debate no meio acadêmico e para uma abertura progressiva do campo jurídico. Além disso, a formação dos estudantes de Direito, beneficiários da Reforma Agrária, deverá proporcionar a inclusão das trabalhadoras e dos trabalhadores no meio jurídico, facilitando a expressão de sua categoria social, por meio de sua produção científica, exegética e até da representatividade pública que a formação jurídica poderá proporcionar.

Os Movimentos Sociais do Campo pretendem organizar o povo e construir mecanismos com capacidade e força política para ser agente da História, e, na medida do possível, realizar lutas concretas para alterar a conjuntura política, influenciando decisões econômicas no sentido de distribuir renda. As condições de vida da população, seja do campo ou da cidade, serão alteradas com decisões econômicas. Decisões econômicas significam aplicar recursos públicos para gerar postos de trabalho, por meio da Reforma Agrária. Postos de trabalho com financiamento de cooperativas e micro-empresas coletivas nas áreas urbanas.

Um dos méritos dos Movimentos Sociais do Campo foi o de terem compreendido que a Reforma Agrária em nosso País vai além da simples distribuição de terra aos camponeses sem terra. A política de democratização do acesso a terra deve ser complementada com políticas que garantam acesso ao conhecimento e com programas de implantação de agroindústrias nas áreas de assentamentos. Assim, acreditamos que o curso de graduação em Direito para beneficiários da Reforma Agrária e agricultores familiares tradicionais preenche, exatamente, o objetivo de se apropriar do conhecimento que, tradicionalmente, é negado à classe trabalhadora. Isso serve para todas as áreas de conhecimento. Na superação desse desafio, já formamos e continuamos formando de modo permanente, para romper essa barreira, professores, médicos, agrônomos, técnicos em contabilidade, comunicadores.

No que se refere especificamente à área de Direito, acreditamos que esse conhecimento adquirido nos possibilitará dominar e exercer melhor os direitos e deveres assegurados em lei aos camponeses – que são conquistas das lutas da classe trabalhadora e não benesses concedidas pela classe dominante. Da mesma forma, acreditamos que o campo jurídico é um dos principais cenários em que se determina o avanço ou o retrocesso do processo de Reforma Agrária.

Em resumo, há uma permanente disputa de forças, entre a elite, que deseja manter

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a situação de miséria para os trabalhadores, e os trabalhadores, que, organizados em seus Movimentos, rompem algumas barreiras e conquistam conhecimentos, com os quais poderão fazer valer sua vontade na administração da sua força de trabalho. Essa experiência de formação jurídica para trabalhadores rurais os ajudará a participar de forma ativa e qualificada dessa disputa.

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O processo em construção da Área de Linguagens na Educação do CampoNilsa Brito Ribeiro56

Rafael Litvin Villas Bôas57

Diagnóstico em perspectiva histórica

O momento de avaliação da experiência de uma década de existência do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária é ocasião propícia para o diagnóstico em perspectiva histórica da relevância da Área de Linguagens para os cursos vinculados ao projeto da Educação do Campo.

Como as experiências de trabalho com linguagens artísticas e a retomada dos métodos de alfabetização popular são contemporâneas do revigoramento da luta de classes no campo brasileiro, podemos considerar que a Área de Linguagens, sobre a qual trataremos neste artigo, tem início no momento em que os Movimentos Sociais de massa, protagonizados por trabalhadores rurais de diversos estados, se organizam para retomar a luta pela Reforma Agrária, sobretudo nos últimos anos da década de 1970.

Um dos aprendizados com as lutas de décadas anteriores foi a providência de lutar pela Reforma Agrária não apenas no âmbito da conquista da terra, mas também da educação, cultura, comunicação, saúde, direitos humanos e da produção agrícola, levando em conta a dimensão de totalidade de um projeto popular para o País, pautado pela democratização radical dos meios de produção e do acesso aos bens produzidos nas diversas esferas. Portanto, trata-se de uma demanda e de um processo de acumulação forjado na luta, que tem como uma das consequências a progressiva necessidade de capacitação e formação de seus integrantes.

Nesse sentido, a Área de Linguagens dos cursos da Educação do Campo é uma conquista significativa no movimento de consolidação dos processos formativos dos Movimentos Sociais, com aporte legítimo de recursos públicos e parceria com universidades públicas.

56 Professora da Faculdade de Estudos de Linguagem, Universidade Federal do Pará, Campus de Marabá. Coordenadora do Curso de Licenciatura em Letras (PRONERA/MST/UFPA).57 Professor do Curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília, Campus de Planaltina.

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Formação de Professores do Campo: uma reflexão sobre a experiência da UFPA e o MST na Literatura emPedagogia da Terra

Georgina Negrão Kalife Cordeiro

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O fato de os Movimentos Sociais que lutam pela implementação e ampliação da proposta da Educação do Campo terem colocado em pauta a necessidade de refletir sobre o que e como ensinar linguagens artísticas e português nas escolas do campo, acontece num momento em que a percepção crítica sobre as consequências alienadoras do monopólio dos meios de comunicação de massa se avoluma em diversos segmentos de classe da sociedade brasileira. A passividade diante da ideologia dominante começa a gerar mal estar e despertar providências práticas.

Ao sublinhar que o analfabetismo é o traço básico do subdesenvolvimento no terreno cultural, Antonio Cândido ressalta, no ensaio Literatura e Subdesenvolvimento:

Na maioria dos nossos países [latinoamericanos] há grandes massas ainda fora do alcance da literatura erudita, mergulhando numa etapa folclórica de comunicação oral. Quando alfabetizadas e absorvidas pelo processo de urbanização, passam para o domínio do rádio, da televisão, da história em quadrinhos, constituindo a base de uma cultura de massa. Daí a alfabetização não aumentar proporcionalmente o número de leitores da literatura, como a concebemos aqui; mas atirar os alfabetizados, junto com os analfabetos, diretamente da fase folclórica para essa espécie de folclore urbano que é a cultura massificada. No tempo da catequese, os missionários coloniais escreviam autos e poemas, em língua indígena ou em vernáculo, para tornar acessíveis ao catecúmeno os princípios da religião e da civilização metropolitana, por meio de formas literárias consagradas, equivalentes às que se destinavam ao homem culto de então. Em nosso tempo, uma catequese às avessas converte rapidamente o homem rural à sociedade urbana, por meio de recursos comunicativos que vão até à inculcação subliminar, impondo-lhes valores duvidosos e bem diferentes dos que o homem culto busca na arte e na literatura. (1989, p.144)

A relação alienada com os meios de comunicação hegemônicos é consequência do processo de inserção na modernidade pela via exclusiva do consumo, mediante o desconhecimento generalizado dos modos de produção, das técnicas e das intenções políticas dos meios de comunicação de massa. Os indivíduos são encarados como massa consumidora, e sem formação que lhes permita a crítica aos padrões estéticos hegemônicos, ficam suscetíveis a toda ordem de impulsos e manobras de legitimação da ordem da classe dominante.

Esse processo foi acelerado e consolidado com a ditadura militar iniciada em 1964, que interrompeu experiências contra-hegemônicas de educação popular, em que trabalhavam de forma coesa e produtiva as esferas da cultura, educação, economia e política58.

58 A proposta da Pedagogia do Oprimido, eixo principal do Movimento de Cultura Popular de Pernambuco (MCP), coordenado por Paulo Freire durante o governo de Miguel Arraes, em Pernambuco, e os Centros Populares de Cultura (CPCs), que se espalharam por mais de 12 capitais do País, por meio da parceria da União Nacional dos Estudantes (UNE) com artistas e movimentos sindicais e camponeses, são exemplos dessa pedagogia em perspectiva emancipatória.

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O processo em construção da Área de Linguagens na Educação do Campo

Nilsa Brito Ribeiro e Rafael Litvin Villas Bôas

Essas ações interrompidas pela ditadura tiveram como um dos primeiros atos a descontinuidade dos laços políticos entre os segmentos operário, camponês e estudantil, que viabilizavam a troca de experiências e fortaleciam a consciência política de classe dos participantes e tornavam possível a transferência dos meios de produção de diversas linguagens artísticas.

Como consequência, o aparelho escolar ficou vulnerável à influência da indústria cultural no Brasil, e os danos são perceptíveis na rotina das salas de aula, pois, em geral, os professores ignoram por completo o fato de que, para além da alfabetização escrita, muitas vezes precária, que destina boa parte de nossa população ao analfabetismo funcional, seria necessária uma espécie de alfabetização estética em sentido amplo, que permitisse a compreensão do sentido social das estruturas formais das obras e programas.

Implicações teórico-práticas e políticas dos cursos da Área de Linguagens em Educação do Campo

Diante de um cenário sócio-histórico em que as múltiplas linguagens e seus múltiplos suportes se impõem sob o monopólio dos meios de comunicação veiculadores do pensamento hegemônico, é pertinente perguntar pelas implicações de cursos na Área de Linguagens, no contexto da formação de educadores do campo. É significativo perguntar ainda por qual concepção de linguagem devem-se orientar tais cursos, tendo em vista uma determinada concepção de escola como parte constitutiva de um projeto de sociedade pelo qual lutam os sujeitos do campo.

Numa sociedade em que informação se confunde com conhecimento, é comum ouvirmos que o educador deve estar preparado para lidar com as mais recentes tecnologias de leitura, com os diferentes suportes, diferentes configurações textuais, com a articulação de múltiplas linguagens. Sem dúvida, o direito de ler o mundo pelas mais diferentes tecnologias, a começar pela tecnologia da escrita, é um direito de todos e ele deve ser assegurado enquanto dimensão de uma luta mais ampla.

No entanto, no contexto de um projeto de sociedade que vislumbra o domínio das diferentes linguagens enquanto estratégia e ferramenta de luta e transformação social, é preciso não perder de vista os modos acríticos de apropriação dessas tecnologias de leitura, e introduzir nesta apropriação a leitura crítica das mais simples às mais sofisticadas tecnologias, colocando-as a serviço da emancipação dos sujeitos, sem sobrepor a cultura que estes elaboram nas suas práticas enraizadas no campo, mas fazer interagir duas culturas a serviço da promoção coletiva dos sujeitos. Como nos lembra Antônio Cândido,

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A distinção entre cultura popular e cultura erudita não deve servir para justificar e manter uma separação iníqua, como se do ponto de vista cultural a sociedade fosse dividida em esferas incomunicáveis, dando lugar a dois tipos incomunicáveis de fruidores. (2007, p.49)

Na verdade, a distribuição desigual de acesso aos bens simbólicos, dentre eles a leitura, já denuncia as causas mais profundas desta exclusão, que são as condições materiais de existência a que estão submetidos aqueles que historicamente tiveram negados esses bens culturais.

Por isso mesmo, a luta pela formação dos sujeitos do campo, no que concerne ao acesso ao mundo das diferentes linguagens, inclui o rompimento de uma interpretação linear de que, numa sociedade de classe, o acesso às letras significa, por conseguinte, a concretização do direito à cidadania, numa relação de causa e efeito.

As relações entre cidadania e acesso à leitura/escrita existem e elas não podem ser negadas; no entanto, esta relação deve ser tomada e entendida no conjunto mais amplo dos condicionantes sociais, políticos e econômicos que inviabilizam o exercício da cidadania por uma parcela da sociedade que detém a concentração deste saber. O que a sociedade grafocêntrica tende a levar a crer é que o acesso à leitura e escrita em si é capaz de conduzir os sujeitos à conquista da cidadania.

Numa sociedade em que a leitura/escrita está profundamente incorporada à vida econômica, política, cultural, social, funcionando como recurso de poder, o acesso das camadas populares à leitura/escrita se impõe como forma de transformação de suas condições de marginalidade, devendo compreender o lugar que ocupa sua realização linguística nestas relações e as razões pelas quais é estigmatizada socialmente (SOARES, 2004). Compreendendo a ação de ler e escrever no quadro dessa ideologia, é preciso compreender também que o acesso pleno às linguagens significa muito mais do que o domínio técnico do código.

Rama (1984) nos fala que a sociedade urbanocêntrica, enquanto detentora dos saberes do mundo letrado, sempre se valeu deste domínio para compor o anel em volta do poder, manejando com destreza as linguagens do mundo letrado, controlando sentidos sobre a realidade, hierarquizando leituras sobre o mundo, engendrando uma lógica própria às leis de sua gramática, para manter afastados destes domínios aqueles não pertencentes às “cidades das letras”.

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No contraponto a esta lógica, os Movimentos Sociais têm historicamente reivindicado o direito à leitura, sem desvincular este direito dos condicionantes ideológicos, políticos, econômicos e sociais, incorporando à luta pelo direito de ler, o direito de ler o mundo criticamente. Neste sentido, os sujeitos do campo lutam pelo direito à variedade linguística de prestígio, não para se adaptarem às exigências de uma classe social que oprime, exclui e discrimina, mas, para dominar esta variedade linguística enquanto instrumento de transformação social, para além da instrumentalização da linguagem a serviço da produtividade. É este o sentido que Paulo Freire (2001) dá à leitura enquanto ação política e não apenas técnica, de modo que palavra e mundo se implicam por um gesto de re-criação, ou seja, se a leitura do mundo precede a leitura da palavra, esta, uma vez preenchida de sentidos do mundo experiencial, é capaz de nos fornecer as bases para re-interpretar o mundo a partir do nosso lugar de existência.59

Estas são, portanto, implicações teóricas, práticas e políticas que orientam as experiências de formação de educadores em Linguagens, sempre na perspectiva de que os sujeitos em formação, uma vez participantes do mundo de diferentes linguagens, não apenas adquiram habilidades de manuseio destas linguagens, mas que, sobretudo, a partir delas, sejam capazes de ajudar a construir processos amplos de formação que intervenham criticamente num novo modo de desenvolvimento do campo.

A perspectiva contra-hegemônica da Área de Linguagens

Um dos desafios colocados para a Área de Linguagens é como articular uma proposta que seja capaz de contemplar a especificidade do modo de sobrevivência das populações do campo, ao mesmo tempo em que elabora uma prática contra-hegemônica de abordagem da realidade. Como fazer com que esses dois movimentos possam ao mesmo tempo dialogar, numa perspectiva dialética?

No ensaio Direitos Humanos e Literatura, após definir o conceito de literatura em sentido amplo60, Antonio Cândido ressalta:

59 Nesse sentido é que nos fala Freire (2001) acerca do esforço em explicitar o seu processo de significação do mundo pela leitura, fazendo uma “arqueologia” de suas experiências com a leitura, deixando entrever que esta, enquanto prática significativa, é um ato engendrado na vida do sujeito que a produz.60 Cândido define Literatura da seguinte forma, nesse ensaio: “Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações”.

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Nilsa Brito Ribeiro e Rafael Litvin Villas Bôas

Assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente. Neste sentido, ela pode ter importância equivalente à das formas conscientes de inculcamento intencional, como a educação familiar, grupal ou escolar. (1995, p.243)

Nesse sentido, um dos desafios que se coloca para os cursos que contemplam a Área de Linguagens é a formação estética e política de educadores, para que eles sejam capazes de desconstruir os sentidos hegemônicos das obras e de programas, por meio da compreensão da relação dialética entre a forma estética e a forma social. Cândido explica o potencial emancipatório da percepção crítica dessa relação, atualmente ofuscada pela ideologia:

Em palavras usuais, o conteúdo só atua por causa da forma, e a forma traz em si, virtualmente, uma capacidade de humanizar devido à coerência mental que pressupõe e que sugere. O caos originário, isto é, o material bruto a partir do qual o produtor escolheu uma forma, se torna ordem; por isso o meu caos interior também se ordena e a mensagem pode atuar. Toda obra literária pressupõe esta superação do caos, determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido. (Idem, p.246)

A prática predominante do ensino de linguagens no aparelho escolar convencional corre pelo sentido inverso: as obras de diversas linguagens são selecionadas exclusivamente pelo conteúdo, ou seja, pelo que supostamente abordam, ignorando a dimensão formal, isto é, a questão de como tal conteúdo é abordado. Dessa maneira, a especifidade formativa e desideologizadora do estudo crítico das linguagens é soterrada, e o ensino de Artes e de Português é ofertado apenas como suporte para as outras áreas de conhecimento. Então, é comum os professores de Artes serem solicitados para “ajudar” a área de Ciências a explicar determinado fenômeno por meio de um “teatrinho”, ou músicas serem selecionadas exclusivamente pelo que diz a letra das canções, ou ainda filmes serem selecionados para substituir a aula dos professores, como ilustração do conteúdo, e não como uma matéria para a reflexão em si. São sintomas de nossa deficiência estrutural no campo do ensino na Área de Linguagens.

Todavia, a despeito do caráter majoritário do ensino precarizado das linguagens na Universidade e nas escolas, existem nas universidades alguns grupos de pesquisa que mantêm viva a tradição da crítica estética dialética. Um dos exemplos é o grupo Literatura e Modernidade Periférica, coletivo de pesquisadores sediado na Universidade de Brasília, que atua em diversos cursos formais e não formais dos Movimentos Sociais do campo.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

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Outra providência de fundamental importância para a construção da Área de Linguagens é o conhecimento da experiência acumulada pelos Movimentos Sociais do campo em suas diversas atividades de formação de militantes e articulação com a sociedade, como é o caso do Coletivo Nacional de Cultura, do MST.

Essa experiência de acumulação tem influenciado de modo relevante a construção da Área de Linguagens dos cursos viabilizados pelo PRONERA. Por meio dela se compreende que a esfera da cultura está articulada com a esfera da política e da economia, e que o método de apropriação das linguagens pode contribuir para desencadear processos de ruptura da segmentação do conhecimento, consequência da divisão alienada do trabalho, operando sempre que possível com a proposta de articulação das diversas linguagens.

Nesse movimento de apropriação, a pesquisa enquanto princípio educativo, tem sido assumida pelos Movimentos Sociais como parte do acúmulo de suas experiências de construção de uma cultura de direito, incluindo o direito à apropriação das diferentes linguagens, articulando, pela pesquisa, as dimensões econômica, histórica, político-social, cultural, necessárias para a compreensão crítica da realidade, assumindo fortemente a tensão política que este gesto requer.

Experiências em andamento

Vários cursos de nível médio e superior desenvolvem experiências relevantes e originais na Área de Linguagens, mesmo quando ela não se configura propriamente como uma área de habilitação. Cabe registrar o trabalho que os cursos de ensino médio com ênfase em saúde comunitária do Instituto de Educação Josué de Castro, de Veranópolis (RS), desenvolvem com linguagens artísticas nos componentes disciplinares, abrindo espaço inclusive para trabalhos monográficos em suporte de linguagens artísticas, fotografia, teatro etc.). Além disso, cursos de ensino médio com ênfase em comunicação comunitária, licenciaturas em Pedagogia da Terra, e cursos nas áreas de Ciências da Vida e de Ciências Sociais ligados ao PRONERA, têm trabalho com a interface entre conteúdos tradicionais e linguagens artísticas.

Embora não seja possível abordar na íntegra esses processos, diante da limitação do tamanho do texto, destacamos o trabalho em andamento em dois cursos de nível superior, com a finalidade de ilustrar a diversidade de rumos que cada universidade tem optado para a construção da Área de Linguagens.

Como os Cursos de Licenciatura viabilizados pelo PRONERA são recentes, a avaliação das experiências se limita, por ora, ao registro da especificidade das propostas diferenciadas.

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Analisando-se uma experiência desenvolvida no âmbito do PRONERA e uma no âmbito do PROCAMPO, que bebe na fonte do PRONERA.

Curso de Letras, habilitação em Língua Portuguesa – UFPA/Marabá

O curso de Letras/Língua Portuguesa, realizado na UFPA, através do Campus Universitário de Marabá, iniciou-se em julho de 2006, com 50 educandos que já atuam em escolas de assentamentos do MST, nos Estados do Pará, Maranhão e Piauí. O curso tem duração de quatro anos e meio e as aulas presenciais na universidade acontecem na modalidade intensiva, nos meses de janeiro/fevereiro e julho/agosto, sempre articuladas às ações que os educandos realizam em processos formativos do campo.

Assentada sobre as bases teóricas e concepções brevemente anunciadas acima, a proposta curricular do curso de Letras se organiza em duas subáreas de formação: Estudos Linguísticos e Estudos Literários. Embora se materializem em atividades disciplinares, estas subáreas se articulam em função dos seguintes eixos: Cultura, Linguagem e Educação; Educação, Linguagem e Sociedade; Estudos Linguísticos e Ensino-Aprendizagem; Estudos Literários e Ensino-Aprendizagem; Texto, discurso e subjetividade; Linguagem, Escrita e Poder. Estes eixos orientadores do percurso formativo, em cada etapa do curso, são continuamente problematizados e, se necessário, reorientados em função da dinâmica da pesquisa que os educandos realizam em seus assentamentos, de modo que as demandas endereçadas pela realidade pesquisada indicam a permanência ou reorientação dos eixos articuladores das atividades curriculares.

Fazendo o exercício de superação da tradição escolar, o processo de formação de educadores em Letras tem nos mostrado que as experiências coletivas de pesquisar a realidade abrem a possibilidade de reinventar a escola do campo, como têm trilhado os Movimentos Sociais em seus percursos formativos. Nesse sentido, o esforço tem sido o de ensinar/aprender pela pergunta coletiva, pergunta extraída do embate dos sujeitos com a sua vivência, com o trabalho, com questões concernentes às escolas dos assentamentos. Este movimento implica a superação de um currículo rígido e enformado em certezas, substituído por uma proposta sempre sujeita ao rigor das reorientações apontadas pelo percurso investigativo.

Assim, a pesquisa enquanto dimensão constitutiva do processo formativo não responde apenas a estratégias de aquisição de certas habilidades, mas, sobretudo, a indagações sobre em que o curso pode contribuir para intervenções mais amplas na construção de um projeto de Educação do Campo. No processo de aprendizagem individual e coletiva, os sujeitos vão superando a posição de recebedores de informações sobre

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

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conhecimentos produzidos e passam a ocupar a posição de protagonistas na construção de saberes. Nesta construção emergem sentidos nem sempre coincidentes com os sentidos legitimados pela tradição científica e acadêmica, mas coincidentes com a complexidade que a formação enraizada na prática requer.

Em se tratando da base conceitual do curso, o percurso formativo se ancora numa concepção de linguagem sócio-histórica e procura conduzir uma reflexão sobre a linguagem enquanto trabalho que se dá entre sujeitos historicamente situados. Bakhtin (1988), situado numa teoria marxista da ideologia, postula que a palavra enquanto objeto simbólico carrega em si o traço da luta de classe, de tal maneira que nenhuma palavra se organiza enquanto tal, sem antes passar pelo crivo da disputa ideológica. Nesse sentido, o ensino aprendizagem da língua não pode se dissociar das condições materiais de existência dos sujeitos produtores da língua que falam. Nenhuma variedade linguística possui em si mesma um valor social imanente, ela representa, em termos de valor social, o que representam seus falantes, na sociedade.

A escola tradicional tem pouco problematizado esta questão, e o ensino de uma variedade de língua, admitida como legítima, tem sido feito sem problematizar os condicionantes que a elevam à condição ideal e a única correta. Em nome de uma única variedade linguística considerada legítima, a escola reforça e reproduz as exclusões de uma sociedade de classe, produzindo não apenas diferenças, mas, sobretudo, deficiências, pois o não domínio da variedade linguística de maior prestígio tem elevado os sujeitos à condição de ‘carentes’, ‘deficientes culturais’. Ora, numa sociedade como a brasileira que exclui, expolia, divide e individualiza as pessoas, distribui a miséria entre a maioria e concentra riquezas na mão de poucos (SOARES. 2004, p.15), com a língua não poderia ser diferente. A língua não apenas varia, ela também divide os sujeitos sociais sobre o que falar e onde falar.

O esforço teórico-metodológico tem sido feito no sentido de manter o currículo em movimento, se não pela superação das disciplinas – encaradas como herança cultural que pode ser alterada pelos novos saberes produzidos –, pelo confronto entre a realidade pesquisada e as contribuições teóricas já produzidas nos campos da linguística e literatura, condizentes com uma concepção sócio-histórica de linguagens.

A pesquisa, enquanto dimensão constitutiva do processo formativo, se concretiza a partir de dois gestos que se interrelacionam no processo de formação dos educandos: 1) a investigação da própria prática no cotidiano escolar e de outros espaços formativos do campo e 2) as histórias de formação dos educandos(as).

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No primeiro gesto, os educandos problematizam as práticas de linguagem produzidas nos diferentes espaços da vida dos assentamentos, fazendo o movimento constante de ir e vir na relação teoria-prática, no sentido de refletir sobre sua própria prática, reinventando o cotidiano escolar, no tratamento das linguagens; no segundo, o processo formativo do educando vai se constituindo numa grande narrativa, encarada como espaço de reflexão crítica, construção e reconstrução de sua própria formação. Entende-se que os relatos memoriais dos sujeitos oferecem bases para compreensão da formação coletiva e solidária, buscando a gênese desta formação não apenas nos espaços de escolarização, mas em muitas dimensões da vida – familiar, produtiva, organizativa, militância –, as quais contribuem para o processo formativo.

Nesse sentido, a pesquisa se ancora tanto nas práticas exercidas no contexto dos processos formativos do campo quanto no processo de formação mais longínquo. Prevalece, neste gesto, a possibilidade de construção de práticas significativas no trabalho com a linguagem nas escolas do campo, enquanto uma prática situada na vivência dos sujeitos, admitindo o campo como lugar de produção e expressão de conhecimentos enraizados na sua cultura.

Os relatos são, portanto, espaços que traduzem as referências que estes sujeitos têm de sua formação, ao mesmo tempo que tais referências, submetidas ao ato crítico-reflexivo, podem favorecer a ressignificação destas práticas rumo à transformação social.

A ênfase nas histórias de vida dos sujeitos como espaço de reflexão sobre a própria aprendizagem não nos leva a colocar o processo reflexivo em função de uma racionalidade técnica, cujo foco seria instrumentalizar o professor de técnicas para solucionar problemas pontuais da prática pedagógica.

A retomada das histórias de vida é um jeito de colocar-se criticamente no interior da coletividade, inserindo-se num movimento mais amplo situado histórica e ideologicamente no contexto da luta dos sujeitos do campo por dignidade humana, incluindo o direito de acesso aos bens culturais, não para ser mais um membro pertencente à “cidade das letras” porque fala a língua desta sociedade letrada, mas reconhecendo que se a classe dominante mantém o monopólio dos diferentes bens simbólicos, além dos bens materiais, estes são indispensáveis à classe trabalhadora como instrumento de luta contra as desigualdades econômicas e sociais.

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A pesquisa que vimos desenvolvendo no interior do curso Linguagem, Identidade e Educação do Campo orienta-se por uma concepção sócio-histórica de linguagem elaborada por Bakhtin em 1929, 1953 e 1954, e tem como escopo de investigação, o processo formativo dos educandos.

Nesse sentido, na medida em que o curso adota a pesquisa como princípio formativo, tem a pesquisa também como estratégia de investigação/avaliação do próprio percurso de formação que ele projeta.

Licenciatura em Educação do Campo – UnB, em parceria com o ITERRA

O curso de Licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília (UnB) em parceria com o Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária (ITERRA), iniciado no 2º semestre de 2007, tem entrada regular por meio de vestibular diferenciado, com 60 vagas, voltadas para assentados, quilombolas, acampados e professores ou funcionários das escolas do campo. É estruturado em quatro áreas de conhecimento: Ciências Agrárias, Ciências Sociais, Ciências da Natureza e Matemática, e Linguagens. Sendo que as duas últimas são ofertadas como áreas de habilitação, de modo que cada educando deve optar por uma delas no quarto semestre para cursar o conjunto de disciplinas específicas da área que vai lhe conferir a formação como educador do campo habilitado em tal área. Além disso, a formação em gestão escolar é comum a todos.

Até o momento, o trabalho de linguagens no curso se descortinou em três vias paralelas e concomitantes: a reposição do legado estético da tradição crítica brasileira, nominada como o campo da dialética entre forma social e forma estética; análise dos padrões hegemônicos de representação da realidade; estudo das manifestações tradicionais da cultura popular.

1º Dialética entre forma social e forma estética

A primeira delas é a via da reposição do legado estético da tradição crítica brasileira, pautada pela exposição e análise de obras de diversas linguagens artísticas que apresentam em sua estrutura formal, em chave dialética, a organização estética da matéria social brasileira, dando a ver em dimensão de totalidade a experiência das contradições e tensões de classe de um território e uma população, cuja história é marcada pela condição periférica, pelos desajustes provocados pela projeção do modelo cosmopolita em desacordo com o meio relegado à margem colonial, pela matriz liberal em solo marcado pela herança da escravidão, pelas relações de favor como mediação social. Atualmente esse campo é nominado de “dialética entre forma social e forma estética” e as configurações metodológicas da crítica estética marxista, e seus pressupostos, permitem que o trabalho seja feito em profundidade com diversas linguagens artísticas e mediante seus pontos de intersecção.

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2º Análise dos padrões hegemônicos de representação da realidade

A segunda via é a da análise crítica de objetos provenientes da indústria cultural e de grande recepção pelas classes populares, como a telenovela, o telejornal, a imprensa escrita, as músicas veiculadas pelas emissoras convencionais de rádio, e os filmes cuja exibição são garantidas na TV e no cinema por meio de articulação entre produtoras e distribuidoras. A aposta é que o aprendizado de critérios de compreensão desses objetos pode desautomatizar o caráter reificado da percepção das formas hegemônicas.

3º Estudos das manifestações tradicionais da cultura popular

Tem como objetivo a pesquisa de campo, com o intuito de identificar formas contra-hegemônicas de organização da vida e da cultura nas margens periféricas do capitalismo, que em caráter de hipótese, poderiam contemplar os territórios de assentamento e acampamento da Reforma Agrária.

Esses eixos de estudo são articulados organicamente nas disciplinas de tronco comum Mediações entre forma estética e social (45 h/a) e Estética e política (30 h/a), oferecidas, respectivamente, no segundo e no terceiro semestre para toda a turma. E no conjunto de disciplinas ofertadas na área de habilitação, temos as linguagens do teatro, da música e das artes plásticas agrupadas no bloco Arte e Sociedade, com uma disciplina a cada etapa de Tempo Escola, com 60 horas aula, cada. Por exemplo, na quarta etapa é ofertada Arte e Sociedade 1 – Teatro, na quinta, é ofertada novamente esta disciplina com a linguagem teatral, na sexta é ofertada Arte e Sociedade 3 – Música, e na sétima é ofertada Artes Plásticas. Além disso, existem as disciplinas de Metodologias culturais de trabalho em educação, com 30 horas/aula cada, ofertadas como complemento prático de técnicas e metodologias para trabalho em sala de aula, nas áreas de Teatro, Música e Artes Plásticas.

Na área de Literatura são ofertadas cinco disciplinas, voltadas para os seguintes temas, respectivamente: Literatura e nação; Consolidação do sistema literário e desagregação nacional; Impasses na construção do personagem popular brasileiro; e Poesia e representação do Brasil. Como se pode notar, o material é organizado por meio da formulação de questões vinculadas às contradições da experiência formativa incompleta do Brasil. A aposta é que a articulação do conhecimento por esse viés, e não pela repetição do ensino por meio de correntes estéticas dispostas cronologicamente no tempo histórico, permite a compreensão dos vínculos indissociáveis entre política e estética, arte e sociedade, habilitando o educando para se situar criticamente na experiência em curso do país no qual se insere.

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São referências fundamentais para todas as disciplinas do campo de dialética entre forma social e forma estética os trabalhos de Theodor Adorno, Walter Benjamin, e Bertolt Brecht, entre outros, e, no âmbito nacional, os pensadores da tradição crítica brasileira que reúne Antonio Cândido, Gilda de Mello e Souza, Paulo Emilio Salles Gomes, Roberto Schwarz, Paulo Arantes, Iná Camargo Costa, entre outros, que apontaram questões centrais da inserção do País em condição periférica no sistema mundial, por meio da perspicaz análise dos trabalhos de artistas de diversas linguagens, como José de Alencar, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Maria Carolina de Jesus e Clarice Lispector, na literatura brasileira; Almeida Júnior, Tarsila do Amaral, Cândido Portinari e Di Cavalcanti, nas artes plásticas; Artur Azevedo, Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho, no teatro, entre tantos outros.

Além disso, existem as disciplinas mais específicas de língua portuguesa que visam formar o profissional para atuação nessa esfera de ensino: Fundamentos de Linguística (75 h/a); Fonética, fonologia e morfologia do Português (60 h/a); Sintaxe da língua portuguesa (45 h/a); e Tópicos de linguística avançada (60 h/a). Entretanto, como o processo de alfabetização, em geral, é bastante precário, e o problema se agrava nas escolas do meio rural, tomamos a providência de prever um espaço que visa suprir as limitações de leitura e escrita que os educandos possam ter. Para isso, o Campo de leitura e interpretação de textos se articula com as demais disciplinas e áreas do curso, tomando como objeto de estudo os mesmos textos que os demais componentes trabalham como suportes principais. Essa iniciativa permite o contato aprofundado com os textos e temas estudados, e tem rendido saldos consistentes de aprendizado, sobretudo, pelo fato do método evidenciar que o hábito do estudo continuado, via releitura, esquematização e repetição são fundamentais para o processo de aprendizado.

O Campo de Processo de Produção de Linguagens é o espaço destinado à construção do lugar de autoria, autonomia e domínio (dos sujeitos individuais e coletivos) sobre as mediações tecnológicas da linguagem, além de reflexão sobre os processos de comunicação e construção da informação existentes nas comunidades. Essa esfera de atuação acontece como parte das disciplinas descritas, mas também como um componente específico trabalhado com toda a turma, que visa o ensino das diversas possibilidades de utilização da informática, desde o uso de correio eletrônico para facilitar e agilizar a comunicação, até o uso de plataformas digitais para organização e produção de conteúdo.

Por fim, o empenho pela socialização dos meios de produção perpassa as diversas esferas de conhecimento que constituem a área, no âmbito do aprendizado do domínio de procedimentos técnicos que viabilizem o exercício das diversas linguagens, e no âmbito da transferência de

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conceitos e categorias da crítica estética que permitem o estabelecimento da leitura crítica da produção ensejada e dos objetos hegemônicos provenientes da indústria cultural.

A construção da área não pressupõe a dissolução do conhecimento acumulado historicamente por meio de disciplinas específicas. O empenho reside na articulação entre momentos de aprendizado dos conhecimentos específicos com espaços de conexões entre diversas disciplinas e campos. Metodologicamente, a opção é de priorizar o exercício coletivo dos corpos docente e discente, por meio de Seminários integradores, para que os educandos participem do trabalho de percepção do conhecimento em separado e da tecitura dos elos possíveis.

Considerações Finais

Vale observar que outras experiências formativas na Área de Linguagens estão em curso em outros estados do País, por intermédio do PRONERA, ainda que a elas não tenhamos aqui nos detido por restrição de espaço. Ressaltamos, no entanto, que tais experiências apontam para novas sínteses formativas no Campo das Linguagens, abrindo possibilidades de reflexão sobre o direito dos sujeitos do campo aos bens simbólicos.

Além disso, estas experiências de formação em parceria com as universidades têm efetivamente levado à instituição universitária ao questionamento de si mesma, quanto a métodos, currículos, concepções, produção científica. Mostra que é possível romper a tradição formativa centrada num modelo hegemônico e supostamente homogêneo de ensino, pesquisa e extensão, aliado a um modelo também dominante de sociedade que exclui as tensões que dão forma, cor e cheiro à vida dos sujeitos.

Na contramão deste modelo, os Movimentos Sociais do campo reconhecem que a luta por educação não basta, é preciso perguntar por qual educação e por qual conhecimento se luta. Esse movimento é a base para a reflexão que os sujeitos do campo têm construído sobre a educação que reivindicam como componente da luta mais ampla por um projeto de sociedade.

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Nilsa Brito Ribeiro e Rafael Litvin Villas Bôas

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Formação de Professores do Campo: uma reflexão sobre a experiência da UFPA e o MST na Literatura emPedagogia da Terra

Georgina Negrão Kalife Cordeiro

PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Formação de Professores do Campo: uma reflexão sobre a experiência da UFPA e o MST na Licenciatura em Pedagogia da Terra

Georgina Negrão Kalife Cordeiro61

Refletir sobre a temática da formação de professores, e em especial a formação de professores do campo, na concepção atual, exige situar em que contexto e época onde esta se desenvolve.

Podemos elencar alguns elementos determinantes das condições propícias ao seu desenvolvimento. Comecemos pelo aspecto legal, década de 1990, já como fruto de mobilizações da sociedade civil, pela aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei n° 9394/96, onde se destaca que: “A formação de docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de licenciatura de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação”. (LDBEN, Art. 62)

Aqui, interessa-nos ressaltar a necessidade há muito tempo identificada, oficializada na Lei, ou seja, tratar a formação de professores no âmbito da Educação Superior. E ainda mais, refletir sobre o papel das universidades e qual o projeto de formação de professores a ser adotado. Mas, como operacionalizar o aspecto legal, com a limitação presente na oferta de vagas nas universidades públicas? Como fazer chegar até os professores do campo? De que modo poderiam as universidades desempenhar melhor esse papel, dada a ausência de políticas públicas específicas?

Essa ausência demandou, no aspecto sociopolítico, a luta dos educadores por um projeto nacional de formação de professores, materializada na criação da ANFOPE62 e na luta e organização dos povos do campo, por meio da criação da Articulação Nacional Por Uma Educação Básica do Campo, em 1997.

61 Doutora em Educação. Professora do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará e membro da Comissão Pedagógica Nacional do PRONERA (CPN).62 Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação.

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Formação de Professores do Campo: uma reflexão sobre a experiência da UFPA e o MST na Literatura emPedagogia da Terra

Georgina Negrão Kalife Cordeiro

PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

A organização dos povos do campo na defesa da educação alcançou alguns resultados, entre eles, a criação de um Programa vinculado ao governo federal, via Ministério do Desenvolvimento Agrário, o PRONERA que, desde 1998, vem apoiando e estabelecendo parcerias com as instituições de ensino superior públicas para a oferta de cursos em diferentes níveis de educação, entre eles, os cursos de Licenciatura em Pedagogia da Terra.

Os Cursos de Pedagogia da Terra63 assumem esse nome já como expressão da forma diferenciada de desenvolvimento deste em relação aos outros Cursos de Pedagogia. Podemos caracterizar a Pedagogia da Terra como um curso de formação de professores, que inclui em sua proposta teórico-metodológica os princípios freireanos da práxis e a ideia dos coletivos como instrumentos de facilitação da articulação teoria e prática.

Para o MST, um Curso Superior de Pedagogia objetiva

1. Especializar educadores nas diferentes áreas da educação fundamental para atuar nos assentamentos e acampamentos da Reforma Agrária.

2. Avançar na formulação e implementação de uma pedagogia que eduque o povo, na perspectiva de sua inserção consciente em processos de transformação social.

3. Fortalecer a relação entre o MST e a Universidade, na perspectiva de um projeto

universitário vinculado à classe trabalhadora e ao desafio de trabalho imediato na construção de

um projeto popular de desenvolvimento para o Brasil. (ITERRA. 2002, p. 8)

A proposta do Movimento Social se articula com equipes de professores das faculdades e departamentos de Educação que, enquanto formadores de professores, buscam cada vez mais aproximar, a partir dessa primeira experiência, outras universidades, estabelecendo parcerias e ampliando para outras áreas do conhecimento voltadas às questões da terra e da cultura camponesa.

O Movimento Social e as Universidades envolvidas, ao se depararem com a realidade das áreas de Reforma Agrária, exigem que estes se orientem por um projeto mais engajado na realidade, intervindo e promovendo alterações nessa realidade de miséria e exclusão a que está submetida a maioria da população.

O MST, em sua trajetória de luta, tem a educação como um dos instrumentos de

63 Nome adotado desde a realização do Curso da 1ª turma pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI), quando procurando um nome para o jornal de veiculação interna da Turma, que os diferenciasse das demais na Universidade. Concluíram que a distinção entre eles e as outras turmas era a terra, e o jornal ficou Pedagogia da Terra, vindo a se transformar na marca do curso.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

fortalecimento na caminhada rumo a conquista de seus direitos. Desta forma, vários cursos vêm sendo idealizados e desenvolvidos, atendendo aos princípios político-pedagógicos defendidos pelo coletivo de educação do MST, inspirados nos principios filosóficos de Paulo Freire, no que diz respeito à construção do conhecimento em processo, na práxis, que implica a ação-reflexão-ação, articulando teoria e prática.

O processo de aquisição e construção do conhecimento também se embasa em princípios filosóficos e pedagógicos construídos ao longo de suas experiências, marchas e reflexões. Destacamos nos princípios pedagógicos a relação teoria e prática, que leva ao desafio metodológico de operar através do Tempo-Escola e do Tempo-Comunidade, visando aprender a articular o maior número de saberes diante de situações da realidade, pois estas questões são aquelas que levam à construção do conhecimento, são elas que geram a necessidade de aprender.

Com base nesse pressuposto, o curso de Pedagogia da Terra, planejado e discutido coletivamente na academia e no Movimento Social, especificamente para professores do campo, a exemplo do que ocorreu na UFPA, possui uma formatação diferenciada, constituindo-se em cursos que, obedecendo às mesmas regras da instituição parceira, adotam uma metodologia caracterizada como Tempo-Escola e Tempo-Comunidade.

Essa característica implica que as disciplinas não sejam ministradas na totalidade de sua carga horária, durante o tempo em que os alunos estão na universidade, mas planejadas de modo a deixar uma parte da carga horária para ser executada na comunidade, quando do retorno dos alunos a seus locais de origem; as disciplinas são concluídas ao voltarem no período seguinte à universidade. Assim, na proposta feita pelo MST, se faz presente um regime de distribuição da carga horária das disciplinas que alcançam sua totalidade somente após a conclusão de dois tempos, caracterizados em Tempo-Escola e Tempo-Comunidade, o que garante uma maior aproximação com a realidade dos alunos, que, em sua maioria são professores nos assentamentos, com as disciplinas ministradas durante o Tempo Escola.

Essa é uma das características que acrescenta qualidade ao processo de formação de professores do campo e diferencia o curso da forma de organização tradicional dos cursos de Pedagogia: o fato de os alunos disporem de um percentual de carga horária de cada disciplina para ser trabalhado após o período vivido na universidade, o Tempo-Escola, e após o Tempo-Comunidade, voltarem novamente ao Tempo-Escola, para completar a carga horária e debater as ideias e ações construídas.

Essa característica é possível, quando, ao se pensar a construção de um projeto de curso, em

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Georgina Negrão Kalife Cordeiro

PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

especial de formação de professores, se atenta para a importância de conhecer a realidade na qual os alunos vivem. Um curso dessa natureza, não pode ser planejado em gabinetes, por melhor que seja a intencionalidade do planejador. Exige conhecimento da realidade e, para isso, sabemos da importância do diálogo, do respeito ao saber do outro, e de uma postura na qual se intente a superação da contradição opressor-oprimido.

Para isso, buscamos em Freire (1979; 1979a; 1979b; 1998) os fundamentos que colocam a reflexão e a ação como condição para o exercício do espírito crítico. Não basta o mero reconhecimento de uma realidade; é preciso que haja uma inserção crítica, o que implica uma experiência na qual se construa o projeto, em interação dialógica envolvendo alunos e professores como sujeitos. De posse do conhecimento da realidade, o processo de participação vai delineando os rumos, até se chegar aos objetivos traçados.

O que chamamos de processo de participação, implica a ideia de estar presente, interagindo, partilhando decisões sobre situações que interferem na vida do sujeito e da comunidade, envolvendo o grupo como um todo e não apenas sua representação.

Esse modo de participar e interagir com a comunidade, pode ser constatado na pesquisa realizada com egressos do Curso de Pedagogia da Terra, ministrado pela Universidade Federal do Pará, no qual conseguimos perceber que grande parte dos resultados alcançados ocorreram por conta da disponibilidade de um grupo de alunos que apostavam na construção de um projeto alternativo de escola, tendo como exemplo, a Escola Crescendo na Prática, que atendesse aos ideais do Movimento Social. Esse foi um espaço propício para a realização de suas práticas, que permitiu aos alunos/egressos confrontarem no dia a dia, as teorias apreendidas na Universidade e as exigências do cotidiano e, assim, a partir das necessidades, construírem ações inspiradas nos ideais de liberdade, justiça e participação.

Esses ideais são comuns pelo fato de o grupo ser constituído por professores da mesma escola e partilharem da proposta educativa do MST, que inclui, entre outros aspectos, a realidade como base da produção do conhecimento e a combinação entre os processos pedagógicos coletivos e individuais.

Nesse sentido, com base em Freire (1979b), a educação é um dos instrumentos de que se pode lançar mão para ajudar o homem a tornar-se sujeito, para que venha a se realizar como ser histórico que se faz a partir de sua própria realidade. Daí uma educação que tenha por base o diálogo e, para isso, a existência de grupos é fundamental.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

As práticas pedagógicas desenvolvidas durante e após o curso de Pedagogia da Terra, por serem concretizadas a partir da realidade do assentamento e confrontadas com os conteúdos teóricos das disciplinas, em um espaço de tempo que permitia o diálogo entre os sujeitos participantes, possibilitaram que a relação teoria-prática acontecesse de forma efetiva.

Essa relação se evidenciou em vários momentos do curso e se materializava quando os professores conseguiam vislumbrar a oportunidade que a disciplina permitia, para que ações concretas pudessem ser realizadas nos assentamentos. Como exemplo de um trabalho mais abrangente, podemos citar o da disciplina Fundamentos da Educação Especial, cuja realização resultou em um diagnóstico de pessoas com necessidades educativas especiais das áreas de acampamentos e assentamentos do MST, no Estado do Pará.

Outra ação dessa natureza aconteceu já como fruto do processo dialógico estabelecido entre Universidade e Movimento Social, a partir do segundo ano do curso, quando os trabalhos do Tempo Comunidade passaram a ser planejados conjuntamente entre professores da etapa, coletivo de educação do MST e representantes de turma, culminando na efetiva participação dos alunos em suas comunidades, com a implantação/implementação do processo de construção dos projetos político-pedagógicos das escolas nos assentamentos.

Isso foi efetivado por meio de projetos que buscavam a interdisciplinaridade e que tinham sua culminância nos Seminários Integradores da Prática. Essa postura interdisciplinar propiciou aos professores, aos alunos e à comunidade, entre outras, a realização de disciplinas nos próprios assentamentos, aproximando os campos de saberes do cotidiano, da comunidade e da academia.

Outro aspecto que precisa ser destacado é a participação direta do Movimento Social na condução de disciplinas específicas à realidade do campo, inseridas na proposta curricular do curso e de atividades que permitiram momentos ímpares, como por exemplo, os que constituem a celebração da mística, momento esse de fortalecimento do grupo, de renovação das energias para a luta e do sentimento de pertença ao Movimento.

Retomando aqui as reflexões iniciais deste ensaio, quando abordamos as intencionalidades nos projetos de cursos de formação de professores referente à relação teoria e prática e no papel das universidades, vimos que, assumindo essa proposta, procurando aproximações com os Movimentos Sociais e, por conseguinte, com os saberes populares, podemos afirmar que experiências desse tipo vêm se ampliando por vários estados brasileiros, fomentando a criação de grupos de pesquisa em Educação do Campo, inserindo o tema na pauta de várias

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universidades, constituindo particularmente, no anúncio de uma presença mais incrustada na realidade das populações excluídas dos direitos de cidadania, particularmente, a população do campo.

Podemos aqui considerar que, a experiência realizada pela Universidade Federal do Pará, em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, assim como outras universidades que têm realizado essas parcerias, inauguram e avançam em práticas educativas significativas na Educação do Campo, acumulando conhecimentos que, construídos coletivamente, resgatam a função social das universidades e colaboram no processo que torna os sujeitos capazes de intervir em sua realidade, munidos de referenciais que reforçam a disposição de participarem ativamente na construção de uma sociedade mais justa.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

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Georgina Negrão Kalife Cordeiro

PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Centro de Educação. Projeto Político-Pedagógico, Curso de Pedagogia.Belém: 2000.

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ. Centro de Educação. A reestruturação curricular do Curso de Pedagogia, o Projeto Político-Pedagógico. Belém: 2001.

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O Curso Técnico em Enfermagem da UFPB a serviço dos assentamentos da Reforma Agrária na Paraíba

Eliete Alves da Silva Luiz | Gonzaga Gonçalves | Bernadete de Oliveira

PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

O Curso Técnico em Enfermagem da UFPB a serviço dos assentamentos da Reforma Agrária na Paraíba64

Eliete Alves da Silva Luiz 65 Gonzaga Gonçalves66

Bernadete de Oliveira67

Introdução

A experiência teve início com a elaboração do Projeto que viabilizou o Curso de Habilitação Profissional de Técnico em Enfermagem e a Suplência do Ensino Médio, para atender às demandas dos assentamentos rurais da Paraíba. Este projeto inédito e de grande alcance social na Paraíba foi assumido pelas professoras da Escola Técnica de Saúde, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), por iniciativa e parceria da Comissão Pastoral da Terra (CPT), parceria do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), por intermédio do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA). Abrindo-se a outras contribuições, a Escola Técnica de Saúde contou com a assessoria pedagógica do Programa de Pós-Graduação em Educação, da UFPB, e a docência dos professores do Centro de Educação, especializados na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA), nos domínios do ensino fundamental e médio. O projeto desenvolveu um total de 1.200 horas/aula da Suplência do Ensino Médio e 1.800 horas/aula do Curso de Habilitação Profissional de Técnico em Enfermagem, perfazendo um total de 3.000 horas.

A Habilitação Profissional de Técnico em Enfermagem tinha como pré-requisito que o aluno já tivesse concluído o ensino médio, o que não era o caso de mais da metade dos

64 Este texto é baseado no texto dos anais do Colóquio da Cátedra de Educação de Adultos, da UFPB, de agosto de 2010, sob o título: Curso de habilitação profissional de Técnico em Enfermagem e suplência do ensino médio para assentados e assentadas da Reforma Agrária na Paraíba.65 Mestre em Enfermagem de Saúde Pública. Docente da Escola Técnica de Saúde. Coordenadora Geral do Projeto – ETS/UFPB.66 Professor-Doutor em Educação, do Centro de Educação e da linha de pesquisa de Educação Popular, do PPGE da UFPB. 67 Mestre em Ciências. Técnica em Assuntos Educacionais. Coordenadora do Curso Suplência do Ensino Médio – SEAMPO/UFPB.

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O Curso Técnico em Enfermagem da UFPB a serviço dos assentamentos da Reforma Agrária na Paraíba

Eliete Alves da Silva Luiz | Gonzaga Gonçalves | Bernadete de Oliveira

PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

90 assentados, aspirantes ao título de Técnico em Enfermagem. Em vista disso, o Projeto ofereceu suplência, na modalidade EJA, de modo a tornar apta aquela parcela de alunos interessada em obter acesso legal ao curso de Técnico em Enfermagem. Partiu-se, então, para um processo de formação concomitante, capaz de garantir que todos os alunos estivessem credenciados para atingir as metas da habilitação profissional buscada.

As atividades formativas tiveram seu início no mês de novembro de 2004 e conclusão em junho de 2008, atendendo inicialmente a 90 assentados e assentadas, procedentes de 47 assentamentos da Reforma Agrária e comunidades quilombolas, distribuídos em 24 municípios e regiões que compõem o Estado da Paraíba, incluindo dois assentamentos em Pernambuco.

A docência do curso foi pensada coerente com o modelo da Alternância, de forma que pudéssemos articular mais adequada e intensivamente um Tempo Escola (TE) e um Tempo Comunidade68 (TC); articular de forma mais coerente os entrelaçamentos da teoria e da prática. Isto favoreceu a possibilidade de entrelaçar as atividades docentes e discentes em torno da iniciação dos alunos em atividades de investigação e, posteriormente, de pequenas intervenções nos assentamentos, capazes de garantir, por parte dos alunos, iniciativas mais qualificadas em seus espaços de vida, de trabalho e de convivência.

Os cursos primaram pela valorização dos saberes dos alunos. Para tanto, empreendemos esforços e cuidados para que os conteúdos das disciplinas atendessem a especificidades do modo de viver e de pensar dos alunos do campo.

Podemos dizer que, no decorrer do trabalho, o processo educativo ganhou visibilidade nos assentamentos. Os alunos trouxeram para a sala de aula, conforme relato dos docentes, informações que comprovavam uma atenção mais detalhada aos problemas de saúde e as suas implicações nos espaços vitais dos assentamentos. Isso dizia respeito a ações mais efetivas de atenção ao meio ambiente, principalmente quanto à qualidade da água utilizada para consumo e atividades domésticas, ao destino do lixo e de dejetos nos assentamentos, assim como de uma discussão acerca do uso, muitas vezes abusivo, dos agrotóxicos nos roçados. Além disso, os alunos relataram que as experiências adquiridas durante o curso influenciaram efetivamente na sua percepção sobre a importância das lideranças, no que concerne às organizações locais e aos outros serviços de relevância social.

68 Para Montenegro (2007), que investigou em sua dissertação de mestrado os processos docentes e discentes do projeto de formação técnica em enfermagem, a utilização da metodologia da Alternância deve ser pensada não apenas para fins de organização do tempo à viabilização de cursos para a população do campo, mas como um recurso metodológico importante que possibilita o diálogo entre as diversas pessoas envolvidas nos mais variados espaços, no encontro de muitos saberes, na investigação, na pesquisa e na ação transformadora.

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O Curso Técnico em Enfermagem da UFPB a serviço dos assentamentos da Reforma Agrária na Paraíba

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

As atividades docentes no processo não se reduziam a formar um profissional, em sentido estrito, mas consistiam num esforço capaz de contribuir para fortalecer e desencadear atividades comunitárias inovadoras, capazes de apoiar a permanência das famílias no campo e a melhoria da qualidade de vida nos assentamentos onde os alunos residiam.

Proposta pedagógica e metodológica do trabalho

O curso teve como objetivo geral promover as atividades de suplência e de formação de Técnicos em Enfermagem, na modalidade EJA, dentro dos princípios éticos para atender, de forma eficiente, demandas das assentadas e dos assentados em áreas de Reforma Agrária, de acordo com a concepção de saúde coletiva, em sintonia com o projeto político-pedagógico da Escola Técnica de Saúde, da Universidade Federal da Paraíba.

A concepção pedagógica inspirou-se especialmente no referencial dialógico e problematizador, proposto por Paulo Freire, investindo também em abordagens que “afirmam a vida e a saúde, privilegiando o desenvolvimento de competências que buscam dar novos sentidos ao cuidado” (IDE. 2006, p.134). A meta era a de preparar o(a) aluno(a), futuro(a) profissional, como ser social, ativo, reflexivo, criativo e solidário. Aliás, tal perspectiva encontrou eco na história de vida e de conquistas realizadas pelos assentados, que têm logrado êxito nas lutas pelo direito à terra.

Com alunos afeiçoados às atividades comunitárias, às decisões e aos compromissos que deviam ser assumidos consensualmente, seria um erro histórico e pedagógico uma abordagem educacional que tratasse os alunos como meros receptores de informações, ou mais ou menos reprodutores de técnicas introduzidas de forma autoritária e unilateral (FREIRE, 2002).

As etapas preparatórias, com o envolvimento dos professores do curso, foram desenvolvidas em dois momentos: o primeiro, realizado em dezembro de 2004, teve como objetivo sensibilizá-los para partilhar os planos de curso das disciplinas, de acordo com a especificidade da Educação do Campo e a pedagogia problematizadora.

O segundo momento, realizado em janeiro de 2005, objetivou aprofundar as discussões teórico-metodológicas, para sintonizar as atividades pedagógicas quanto aos instrumentos de avaliação das disciplinas, quanto à valorização dos saberes dos alunos, além do planejamento das orientações didáticas adequadas para servir aos estudos e às investigações dos alunos.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

As etapas preparatórias, realizadas inicialmente em dezembro de 2004, com o envolvimento direto dos(as) alunos(as) e professores(as), tiveram como objetivo principal juntar os elementos que subsidiariam uma reflexão e análise das experiências acumuladas pelos alunos, a partir de sua realidade cultural, levando em conta uma dimensão de memória histórica, capaz de garantir um balanço de dificuldades e conquistas experimentadas por eles, antes e depois da conquista da terra.

Na segunda etapa, os alunos foram estimulados a registrar, mesmo que de maneira sucinta, sob a forma de memorial, as suas lembranças ainda nítidas, as reflexões pertinentes em relação à escola, à família, ao trabalho, à vida do campo e à luta pela terra e aos seus recursos possíveis para garantir a saúde. Foi estimulado, como princípio essencial ao aprendizado, o aguçamento dos sentidos para propiciar um olhar, um sentir e ouvir diferenciados e qualificados. Desde a fase preparatória estávamos conscientes do que dizia Freire (1997, p. 96) em Pedagogia da Autonomia: “O que importa é que professor e aluno se assumam epistemologicamente curiosos”.

Alguns resultados alcançados

A Semana Preparatória atingiu os objetivos propostos, permitindo uma agenda de trabalho intenso, no entanto, bem acolhida pelos alunos, conforme pudemos verificar nos documentos escritos para fins de avaliação, aplicados no encerramento daqueles trabalhos.

A tarefa pedida para o Tempo Comunidade, que antecedia a primeira etapa de atividades de sala de aula, foi feita por todos os alunos, rendendo para a coordenação do Projeto, bem como para o conjunto dos professores, um valioso documento acerca da vida, do trabalho, da vivência escolar e das experiências alternativas populares já existentes para um cuidar da saúde. Os trabalhos escritos pelos alunos constituíram-se num valioso documento para que os professores pudessem conhecer previamente a forma concreta como organizavam suas experiências por escrito, como pensavam e expressavam suas vidas por escrito, incluindo uma forma de compreensão do lugar de seu pertencimento humano e social.

A disposição dos professores, no sentido de partilhar seus planos de curso, de aceitar redimensioná-los para fortalecer o trabalho conjunto, evitou uma sobreposição de conteúdos sobre os alunos, e ao mesmo tempo garantiu uma visão mais orgânica para todos, no sentido de contribuir para afirmar o objetivo do projeto. Isto ficou evidente no momento talvez mais desafiador para a nossa prática da Pedagogia da Alternância, que foi o de criar sustentação para que os alunos pudessem, de fato, cumprir as horas de estudo quando estavam envolvidos nas suas demandas cotidianas, que não eram poucas.

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O Curso Técnico em Enfermagem da UFPB a serviço dos assentamentos da Reforma Agrária na Paraíba

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

As atividades pensadas para o Tempo Comunidade foram partilhadas pelos professores, de modo que se tornou possível planejar uma agenda detalhada das tarefas e dos compromissos assumidos pelos alunos.

Podemos dizer que os resultados de uma proposta político-pedagógica que se queria problematizadora ganharam visibilidade nos assentamentos. Os alunos conseguiram trazer para a sala de aula, conforme relato das(os) professoras(es), informações que comprovaram sua atenção mais detalhada aos problemas que diziam respeito aos serviços de saúde nos seus assentamentos e a outros serviços de alcance social.

Criou-se também um sentido de corresponsabilidade acerca das tarefas comuns que atravessaram as disciplinas, como os cuidados com a ortografia, com a promoção de técnicas de estudo, com a produção de textos e o aumento da capacidade de leitura dos alunos.

Os alunos(as), muitos deles(as) jovens, começaram a perceber a importância de sua participação mais efetiva em suas organizações sociais locais. Tivemos relatos de alunos que redescobriram as associações dos trabalhadores de seus assentamentos.

Durante o momento de vivência do estágio, os alunos puderam experimentar, sob a supervisão das professoras, o contato com os usuários do sistema público de saúde, nos leitos dos hospitais e nas unidades de saúde da família, nos municípios que atendiam seus assentamentos. Puderam experimentar as exigências que diziam respeito aos procedimentos técnicos adequados postos para os profissionais de seu nível. Nesta etapa do curso, o ciclo do conhecimento ganhou maior consistência também ao nível da operacionalidade prática. Estávamos mais próximos dos ajustes necessários para formar profissionais qualificados quanto a cumprir plenamente as responsabilidades do técnico em Enfermagem, cobradas de acordo com as demandas específicas relacionadas ao atendimento dos assentados e demais trabalhadores do campo.

Como uma iniciativa ousada proposta pela coordenação do curso, os alunos venceram o desafio e desenvolveram Trabalhos de Conclusão de Curso (TCCs), alcançando êxito em uma atividade complexa e de difícil consecução. Desenvolveram estudos, por exemplo, sobre hipertensão em idosos, sobre doenças sexualmente transmissíveis, sobre sexualidade e reprodução humana, sobre plantas medicinais e o trabalho das parteiras tradicionais, sobre o destino do lixo nos assentamentos, dentre outros.

A primeira turma, que detinha previamente o ensino médio, finalizou suas atividades com as solenidades de formatura, em maio de 2007. Desta turma, com 44 alunas e alunos, 31 deles

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receberam o diploma de Técnicos em Enfermagem; dos 46 alunos e alunas que passaram pela suplência do ensino médio, 32 foram diplomados como Técnicos em Enfermagem, sendo que quatro alunos, somente, concluíram a suplência do ensino médio. Esta segunda turma concluiu o curso em junho de 2008.

Riscos e dificuldades encontrados

Diante do cenário do curso apresentado, várias preocupações surgiram e perduraram durante a execução do Projeto:

1. Como articular, da melhor forma, o ensino médio com a Educação Profissional, na modalidade de Educação de Jovens e Adultos, de modo a dar conta das especificidades da Educação do Campo, em coerência com uma pedagogia problematizadora e integrada ao modelo da Alternância?

2. Como articular com êxito os domínios do saber e da inteligência prática do aluno e os domínios de saber teórico e técnico em Enfermagem?

3. Como levar o aluno a ser protagonista de sua aprendizagem e a olhar sem receios para suas limitações?

4. Como colocar a aprendizagem criativa de professores e alunos como questão chave para o sucesso do curso?

5. Como impregnar a formação do Técnico em Enfermagem para os assentamentos da Reforma Agrária, não apenas da dimensão curativa, mas também preventiva e formadora de hábitos e atitudes solidárias e críticas?

As respostas a estas inquietações foram sendo construídas durante todo o processo de desenvolvimento do Projeto. Tínhamos a vontade de ousar, de transpor as amarras de um sistema de educação formal, em busca de um caminho alternativo para minimizar a exclusão do cidadão do campo perante os saberes formais e a cultura docente reinante.

Outras dificuldades apresentadas durante o processo de execução do Projeto foram decorrentes da paralisação do curso, em vista do atraso da aprovação e liberação dos recursos financeiros previstos para o ano de 2006. Isto acarretou a prorrogação e a indefinição do prazo de conclusão do curso como um todo e da suplência do ensino médio. Como consequência, constatou-se, com a retomada das atividades docentes, um difícil

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equilíbrio no encaminhamento das atividades didáticas. Isto ocasionou um desgaste físico e mental por parte dos professores e alunos e da coordenação do Projeto.

Entendemos que tudo isso interferiu num melhor aproveitamento das atividades docentes. Havia uma sobrecarga de conteúdos que parecia extrapolar as possibilidades concretas dos alunos, no que se referia a apropriação dos conteúdos, diante de um calendário encurtado. Quer dizer, houve uma falta de tempo adequada para os alunos estudarem e assimilarem os conteúdos, bem como para dominarem as técnicas e os procedimentos básicos da Enfermagem. Além disso, os alunos, durante a paralisação temiam não concluir sua formação. Em vista disso, fica difícil avaliar plenamente as causas que geraram as reprovações e as desistências que aconteceram ao longo do processo formativo.

Considerações Finais

O curso, como vimos, foi organizado em duas turmas: o Curso Técnico em Enfermagem (Pós-Médio), inicialmente com 44 alunos, e o Curso Técnico em Enfermagem e Suplência do Ensino Médio, inicialmente com 46 alunos, constituídos em três módulos e organizados por áreas e subáreas de conhecimentos articulados e dependentes.

Atendemos 90 cidadãos de 47 assentamentos e comunidades quilombolas de áreas de Reforma Agrária da Paraíba e de Pernambuco e conseguimos alcançar índices de conclusão no curso de 70,5%. As dificuldades apresentadas durante o processo de execução do Projeto foram decorrentes do atraso da aprovação e liberação dos recursos financeiros, e principalmente do baixo custo/aluno determinado pelo INCRA.

Participamos ativamente de um momento importante para o País, quando reivindicações antigas dos setores organizados do campo foram atendidas na Paraíba, cobrindo assentamentos espalhados por todo o estado.

O nosso trabalho foi no sentido de fortalecer junto aos nossos(as) educandos e educandas uma consciência crítica acerca dos desafios de sua realidade imediata, de sua região, de seu estado. Desde o início do curso sabiam da importância vital de um trabalho qualificado em saúde, que deviam alcançar para servir a todos e a todas que dele dependessem.

Podemos dizer, com toda a confiança que, professores, alunos e bolsistas, envolvidos com o referido Projeto, saímos profundamente marcados e, em alguns momentos, surpreendidos pela proposta de trabalho. Alunos bolsistas do curso regular da Escola Técnica de Saúde chegaram a solicitar aos professores que levassem para as turmas regulares da Escola

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determinados procedimentos didáticos, que desenvolvemos especialmente para os alunos dos assentamentos. Eram procedimentos especialmente pensados para acionarem sensibilidades e inteligências de quem chega aos processos de análises e de sínteses explorando fartamente imagens, cores, figuras, gráficos, objetos palpáveis, simulações, alegorias, enfim, contornos mais nítidos capazes de favorecer um saber/fazer cada vez mais qualificado.

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Referências

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Agrário. Instituto Nacional de Colonização da Reforma Agrária. Programa Nacional da Reforma Agrária. Manual de Operações. Brasília, 2004.

FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 33 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2002.

_________, Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997.

IDE, C.A.C. Validando experiências de aprendizagem em promoção da saúde em uma perspectiva multidimensional. Nursing. São Paulo, n.103, p.1134, dez. 2006.

MONTENEGRO, Z. M. C.. A escola técnica de saúde da Universidade Federal da Paraíba e a formação de profissionais de enfermagem para os assentamentos da Reforma Agrária: os desafios da relação docente / Universidade Federal da Paraíba. Centro de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação - João Pessoa, 2007. (mimeo.)

PROJETO dos Cursos de Habilitação Profissional de Técnico em Enfermagem e Suplência do Ensino Médio. Escola Técnica de Saúde-CCS-UFPB. João Pessoa. 2004.

RELATÓRIO Geral dos Projetos dos Cursos de Habilitação Profissional de Técnico em Enfermagem e Suplência do Ensino Médio. Escola Técnica de Saúde-CCS-UFPB. João Pessoa. 2009.

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Experiência de Empoderamento de Acadêmicas-Mulheres-Assentadas no Curso de Licenciatura em Ciências Sociais/PRONERA/UFGD69

Marisa de Fátima Lomba de Farias70

Alzira Salete Menegat71

Introdução

No ano de 2008, iniciou-se o curso de Licenciatura em Ciências Sociais na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), em convênio com o Programa Nacional de Educação para a Reforma Agrária (PRONERA). Trata-se de um curso orientado pela Pedagogia da Alternância, organizado nos tempos Universidade e comunidade, e oferecido para pessoas de assentamentos rurais do Estado de Mato Grosso do Sul. Desde então, um grupo de 56 acadêmicos/as passou a ocupar o espaço-tempo da universidade, de modo a alterar as relações sociais e os princípios de organização estruturados em uma burocracia institucional, quase sempre comum às instituições de ensino superior.

A experiência vivenciada a cada tempo universidade demonstra a relevância de iniciativas como estas, quando pessoas levam para o interior das instituições, expectativas, anseios, esperanças, mas também, dificuldades, medos e conflitos. Durante os tempos comunidade, o grupo leva para seus lugares de moradia – para a sua terra – o vivido da/na universidade com novas configurações. São tais sentimentos ambíguos e ricos em possibilidades de

69 A realização do Projeto de Pesquisa em Andamento, aprovado no CNPq e na UFGD, intitulado Curso de Licenciatura em Ciências Sociais/UFGD/PRONERA: a Metodologia da Alternância na formação de educadores/as sociais do campo, cria a possibilidade de apresentação de reflexões como as que constam neste artigo. Alzira Salete Menegat, pesquisadora coordenadora. Marisa de Fátima Lomba de Farias, pesquisadora colaboradora. Este texto é uma Ponencia presentada al VIII Congreso Latinoamericano de Sociologia Rural - Porto de Galinhas, 2010. Grupo Temático 9b: Genero, Mobilizacion, Politicas y Desarrollo Rural. Titulo da comunicação: Curso de Licenciatura em Ciências Sociais/PRONERA/UFGD: experiência de empoderamento feminino.70 Doutora em Sociologia pela UNESP de Araraquara, pesquisadora do CNPq e da FUNDECT, professora dos Cursos de Bacharelado em Ciências, Licenciatura em Ciências Sociais/PRONERA e do Curso de Pós-Graduação-Mestrado em História da UFGD. Atualmente cursa Pós-Doutorado no Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC, na Linha de Estudos de Gênero, sob a orientação da Profª Dra. Joana Maria Pedro.71 Doutora em Sociologia pela UNESP de Araraquara, pesquisadora do CNPq e da FUNDECT, professora dos Cursos de Bacharelado em Ciências, Licenciatura em Ciências Sociais/PRONERA e do Curso de Pós-Graduação-Mestrado em História da UFGD.

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(re)organização da vida que serão relatados neste artigo, com ênfase a um olhar para as experiências femininas, já que as mulheres estão em maior número no grupo.

Somos sem terra... somos acadêmicas da UFGD72

A frase inicial deste artigo demonstra que o Curso de Licenciatura em Ciências Sociais/PRONERA, principiado na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), no ano de 200873, abriu perspectivas para que acadêmicas(os) adentrassem um novo campo, agora de saberes orientados por métodos e técnicas, ou seja, criou-se a possibilidade de diálogos entre as experiências, o saber fazer e a ciência.

Sabemos que os processos de exclusão vividos no âmbito da educação por grande maioria da população brasileira são históricos e intensificam-se no campo; este apresenta especificidades e modos de vida a serem considerados em um contexto de necessidades diferenciadas. A realidade do campo é envolvida por modos de vida muitas vezes incomuns, movidos por desejos e projetos familiares díspares. Por isso, são espaços que proporcionam prazer e dor, são paradoxos próprios da complexidade da vida, algumas vezes vivida como obra de arte, em outras como sacrifício cotidiano. Estar na Universidade é dar uma passo a frente e ultrapassar obstáculos. A acadêmica “E.C” fala sobre a felicidade de ter ingressado em uma universidade:

Eu recebi a mensagem pelo celular enviada por um amigo meu que dizia: “Parabéns! Você e

todos do Taquaral passsaram no vestibular da UFGD”. Eu saí correndo pela casa, abracei meus pais,

meus filhos, sorria, chorava, foi uma emoção muito grande. Passei! Passei e meus amigos passaram

também! Nós estaríamos dentro da Universidade. E uma boa Universidade. Fiquei feliz, satisfeita e

com muitas expectativas. (E.C, 2010)74

Como educadoras do PRONERA, vivemos também as contradições e as perspectivas, envolvemo-nos nas dificuldades relatadas pelas acadêmicas-mulheres-assentadas, dividimos a felicidade em ultrapassar as barreiras sociais e pessoais, comungamos de sonhos similares, especialmente conquistar a equidade de gênero.

A Universidade Federal da Grande Dourados, uma instituição jovem, criada no ano de

72 Todos os subtítulos deste artigo são frases de acadêmicas do Curso.73 O Curso, inicialmente, recebeu 60 pessoas moradoras de assentamentos do estado de Mato Grosso do Sul. Atualmente, iniciando o terceiro ano, conta com 56 acadêmicos/as, tivemos a desistência de 03 mulheres e um homem.74 Não apresentaremos os nomes, apenas a primeira letra dos nomes iniciais, para manter as acadêmicas no anonimato. Não fizemos correções nos textos das acadêmicas, que responderam a um questionário no qual constam perguntas subjetivas.

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2006, mas experiente em seus compromissos sociais e políticos com os Movimentos Sociais, desde sua antiga condição de Campus da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, foi chamada a concretizar sua missão. Desde tempos passados, grupos de professores(as) estiveram à frente de processos de estruturação de uma educação para além do capital. Há um reconhecimento deste importante papel da UFGD, conforme salienta a acadêmica “M.A.”; ao falar sobre o ingresso na Universidade: “Eu senti uma satisfação enorme por dois motivos: por ser o curso de Ciências Sociais e pelo conceito que tem a Universidade, competência e seriedade.”

Ao ser evocada pelos Movimentos Sociais para assumir mais um compromisso, a UFGD liderou o processo de criação e implantação do Curso de Licenciativa em Ciências Sociais – o primeiro do Brasil nesta habilitação – direcionado às pessoas moradoras de assentamentos rurais do Estado de Mato Grosso do Sul, com o intuito de formar educadores/as político-sociais para incentivar a atuação em suas próprias comunidades, ao agirem nas escolas, nas comunidades dos assentamentos, em sindicatos, em associações, enfim, em situações educativas e de apoio às famílias assentadas.

Uma das acadêmicas demonstrou este compromomisso: “Que eu possa colocar em prática na sociedade, na comunidade e na vida pessoal o que aprendemos.” (M.A, 2010) Outra acadêmica acrescenta: “Espero e acredito que com a conclusão deste curso eu possa contribuir mais para meu assentamento, pois nada adiantaria eu fazer uma faculdade diferenciada, se não fosse para contribuir dentro do assentamento que vivo e das pessoas que confiaram em mim” (M.I, 2010).

É preciso dizer que o curso de Licenciatura em Ciências Sociais/PRONERA é resultado daforça dos Movimentos Sociais, numa rede de diálogos com a UFGD e o INCRA.75 Em seus encaminhamentos, os Movimentos Sociais de Mato Grosso do Sul têm inscrito direitos que vão para além da terra, apresentando demandas de novos direitos, cunhados na concepção apresentada por Gohn (2004) e Scherer-Warren (1999), especialmente quando olhamos para o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), orientando para a autonomia enquanto pequenas agricultoras, além de melhorias diversas de infraestrutura

75 Os Movimentos Sociais em Mato Grosso do Sul se organizaram, mais efetivamente, em meados da década de 1980, quando despontaram suscitando o debate em torno da concentração de terras, da forma produtiva e de diversos poderes tradicionais instituídos ao longo da história do estado. Suas atuações contribuíram para que hoje, em Mato Grosso do Sul, se tenha um total de 182 assentamentos instalados, sendo 174 criados pelo governo federal por meio do INCRA, e oito pelo governo estadual. Todos estes assentamentos permitem a inserção de 30.543 famílias, numa área de 660.890 ha. (Dados do INCRA, fevereiro de 2010).

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nos pequenos lotes. Apontam, especialmente, para a consolidação de uma construção da educação do e no campo, tendo o curso de Licenciatura em Ciências Sociais como exemplo desses encaminhamentos.

A criação deste curso contribuiu, sobremaneira, para o fortalecimento dos Movimentos Sociais e dos indivíduos que buscam autonomia e a formação de uma postura crítica, mesmo não participando diretamente de uma organização social. Os sujeitos sociais – mulheres e homens – foram incentivados a trilharem caminhos para além do acesso à terra, ao trabalho e à moradia; suas atenções voltaram-se à Educação Superior.

As(os) acadêmicas(os) do curso de Ciências Sociais/PRONERA são procedentes de 33 assentamentos de Reforma Agrária, localizados em diferentes regiões de Mato Grosso do Sul, abrangendo 18 municípios. São pessoas vindas de quase todo o Mato Grosso do Sul, com exceção das regiões de Três Lagoas e Coxim, e possuem faixa etária diferenciada, em média de 30 anos. Há, no curso um predomínio de mulheres, e esta característica confirma a participação delas em diferentes instâncias do viver nos assentamentos, especialmente nos processos educativos e de estrutura da vida nos novos lugares.76 Existem, ainda, as crianças que desde muito cedo adentram a Universidade ao acompanharem as acadêmicas mães, imprimindo novas organizações nos espaços e tempos da Faculdade de Ciências Humanas, da UFGD, que, por meio de barulhos, não habituais, ecoam e promovem diferentes dinâmicas ao ambiente, como mostram Menegat e Farias (2009):

[...] o fato de participarem da UFGD em períodos de férias acabou por dar vida a um espaço que antes parecia vazio, eram momentos de recesso acadêmico orientados por certo estado de calmaria e de descanso. Com a chegada do grupo do ‘PRONERA’, para aulas em períodos de férias, o movimento passou a ser constante nos corredores e nas salas da FCH e em outros espaços da universidade. Nos laboratórios, salas de aula, secretaria e cozinha, o movimento não tem intervalos, com pessoas conversando, estudando, tocando violão, fazendo uso de computadores e realizando outras atividades inerentes ao curso. Esta é a ideia do próprio movimento no sentido apresentado por estas pessoas e Movimentos Sociais, em suas trajetórias de vida, a concepção de interação, de dinamicidade, de construção e auto-construção, de valorização e auto-valorização de sua identidade de sem-terra. No processo de elaboração do Projeto Político Pedagógico do curso, foram incorporadas essas concepções, no entanto, os sentidos e os significados

76 Nas pesquisas concluídas e em andamento, desenvolvidas pelo grupo do LEF, observa-se a efetiva participação das mulheres, a qual vai além da esfera do trabalho no lote. As mulheres se revelam figuras marcantes em todos os momentos, desde a conquista da terra, nas estratégias viabilizadas para nela permanecerem, na participação coletiva, mesmo que neste último com menor atuação, bem como nas atuações/ações para prover a infraestrutura dos lotes.

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de movimento resultam das expectativas individuais e coletivas, da mística, dos conflitos de interesses, princípios e desejos; são composições e desarranjos em circularidade, sem um ponto de partida e de chegada definido, mas em movimento, enfim, é a ‘vida em andamento’... O movimento da vida ingressa na UFGD, agora o grupo faz parte da universidade e mudou os seus corredores, gramados... Muitas atividades são realizadas no espaço externo quando, cada grupo procura o melhor lugar para a discussão de textos, debates teóricos, enfim, criam e recriam ações pedagógicas orientadas por um/a docente a cada disciplina. (MENEGAT; FARIAS, 2009, p.53-54)

Observamos, então, no curso de Licenciatura em Ciências Sociais/PRONERA, a confirmação da construção do conhecimento em uma dimensão dinâmica, prazerosa e compartilhada, reforçando a concepção de socialização de saberes e de sentimentos. A vida familiar de cada acadêmico/a, como evidenciado por Menegat e Farias (2009), também passa por um processo de reestruturação durante os tempos universidades, quando as(os) assentadas(os)-acadêmicas(os) se ausentam de seus lares por uma média de 35 dias. No caso das mães acadêmicas, muitas necessitam levar filhas(os), ainda pequeninas(os), bebês e/ou crianças, para acompanhá-las durante as aulas, tornando-as(os), de forma involuntária, desde muito cedo, alunas(os) universitárias(os).

O curso está estruturado na perspectiva da Pedagogia da Alternância, organizado em dois tempos, Universidade e Comunidade, e pautado em um formação humanística e interdisciplinar. Um dos principais objetivos orientadores da práxis pedagógica é proporcionar reflexões e metodologias voltadas à pesquisa, ao ensino e à intervenção nos assentamentos rurais.

O currículo é diferenciado e voltado à realidade e às necessidades do campo, e a grade curricular é composta por disciplinas interligadas por três áreas centrais: Sociologia, Ciência Política e Antropologia. Este foi cuidadosamente pensado para corresponder às exigências de construção de um conhecimento crítico que permita compreender a sociedade como um todo e as especificidades da vida no campo. As disciplinas que o compõem estão direcionadas às reflexões acerca do meio ambiente, relações de gênero, Educação do Campo, história da África, além daquelas comuns aos outros cursos de Ciências Humanas.

Ao final do curso, as(os) acadêmicas(os) poderão atuar em sala de aula e, também, realizar planejamentos, assessoria técnica e científica aos Movimentos Sociais, em ONGs e em comunidades do campo. Tais atividades são amplamente discutidas durante o curso, de modo a proporcionar uma formação crítica e contextualizada, ou seja, direcionada ao modo de vida nos assentamentos rurais, considerados unidades produtivas, sociais e políticas.

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Acrescentamos que os assentamentos são lugares de trabalho, de moradia e também de pesquisa.

Considerando como lugares de pesquisas por engendrarem representações de “luta” por direitos, de modo amplo e significativo, tais significados se estendem aos sentidos de liberdade, agregando diversas dimensões, dentre elas a política, a social, a civil, e ainda, a da cidadania, ampliada por meio da expansão e consolidação da democracia. São estes princípios que estruturam o Curso de Licenciatura em Ciências Sociais/PRONERA, e esperamos, refletirão, no futuro, na atuação consciente e responsável das(os) educadoras(es) sociais.

Neste artigo, procuramos trazer à tona as experiências de novas personagens sociais, as acadêmicas-mulheres-assentadas do PRONERA de diferentes gerações, que buscam o reconhecimento da sua história de vida marcada por trajetórias de “andanças” e de procura por um lugar melhor para se viver, conquistado ao chegarem à terra.

No entanto, somente a terra não basta, ela é fundamental mas exige esforços das mulheres e de suas famílias para nela permanecerem, dentre eles, a compreensão crítica da realidade social e política responsável por inúmeros desencontros entre os seus sonhos e a concretude da realidade, compreensão possível no decorrer do curso.

Diante das expectativas femininas que extrapolam a conquista de um diploma, nossa responsabilidade cresce a cada dia, o nosso compromisso em contribuir para a transformação das relações sociais a partir de conhecimentos “que abracem”, segundo Morin (2002), são orientadores de nossa práxis pedagógica e esta se concretiza com a “ocupação” da UFGD por mulheres sem-terra.

Destarte, este princípio, apoiado e reforçado por nossa instituição, nega conhecimentos para alcançar avanços tecnológicos geradores de sacrifícios dos seres humanos(as) e de resultados opressores de culturas e modos de vida. Paulo Freire negou conhecimentos não humanizadores e enfrentou inúmeros desafios, especialmente ao ser, em alguns momentos, e por certos grupos, criticado como “idealista e sonhador inveterado”, mas respondia prontamente: “Prefiro ser criticado como idealista e sonhador inveterado por continuar, sem relutar, a apostar no ser humano, a me bater por uma legislação que o defenda contra as arrancadas agressivas e injustas de quem transgride a ética” (FREIRE, 1997, p.249).

Esta humanidade política de Paulo Freire nos acompanha em nossos “caminhos e descaminhos” para a construção de uma Universidade para “além do capital”, para além da opressão, para a efetivação de relações e experiências educativas cujo centro seja “[...] a

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união e a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a da negação de nós mesmos como seres humanos, submetidos a ferocidade da ética do mercado” (FREIRE, 1997, p.249).

E o grupo do PRONERA auxilia a enxergar o mundo com um olhar renovado, por suas condições de vida e modos de questionamento da realidade, por seus sonhos e, especialmente, por sua vontade de mudar o mundo. Por estes sentidos podem ser consideradas pessoas sonhadoras e idealistas? Se a resposta for sim, nos colocamos ao lado deste grupo e de Paulo Freire para pensarmos uma vida “mais digna de ser vivida”.

As mulheres estão em maior número no curso e fazem “a diferença”, rompem barreiras, compreendem os dilemas que marcam suas trajetórias de vida entrelaçadas por conquistas e desilusões, o que é parte constitutiva da vida.

Nesses caminhos, nessas idas e vindas, perdas e conquistas, ampliam-se os horizontes permeados por sonhos e projetos para o futuro: ter o diploma, atuar em uma área profissional, mais do que isso, trata-se de conquistar espaços sociais e políticos, expandir a compreensão de sua condição no mundo e garantir o reconhecimento de suas potencialidades como mulheres.

Por isso a frase: “somos sem terra...somos acadêmicas da UFGD”, significa muito, diante do que consideravam possível, mas pouco diante do que apresentam para além deste tempo e lugar, quando retornarem como educadoras sociais aos assentamentos e inteferirem na lógica patriarcal e sexista que ainda influencia a organização familiar, social e produtiva do campo.

Vale ressaltar que já observamos a influência das acadêmicas-mulheres-assentadas na UFGD, uma interferência gradativa e contínua que se manifesta nas ações e posturas transformadas dessas mulheres após cada Tempo Comunidade, e elas demonstram empoderamento.

As revelações de empoderamento são constantes, ocorrem por meio dos textos que escrevem, de conversas nos corredores, em reflexões sobre a organização das atividades no sítio e sobre as negociações na própria família para se ausentarem por cerca de 30 dias, além de superarem doenças que as acometem ou ao seus familiares. Portanto, não desatam os laços, acomodam-os para que ao retornarem possam ser refeitos, desfeitos, conforme os arranjos e desarranjos familiares. Sobre a dificuldade de se ausentarem, “M.A.” (2010) destaca: “Que estudar na UFGD não é fácil: permanecer 30 dias fora [...]”, e continua ao falar sobre a reação da família: “A reação marcou porque parecia um obstáculo invencível.”

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As educandas, de várias gerações, trazem à tona suas formas de organização e de resistências à dominação masculina em três momentos: quando decidiram participar do processo seletivo na UFGD; ao deixarem suas “responsabilidades” com a casa, as(os) filhas(os), a família e a roça para ocuparem a universidade, e ao retornarem para seu cotidiano.

Elas nos mostram as diversas frentes que assumem para chegar à universidade, o desatar de nós, e que são históricos, construídos num coletivo familiar, figurando como armadilhas da família. Isso porque, no núcleo familiar, são tecidas teias para todos os que dele pertencem, especialmente as mulheres, sujeitos que aparecem como fundamentais no espaço da casa e no cuidado com as(os) filhas(os). Desprenderem-se de tais teias tem sido uma das tarefas das educandas, que passam mais de 30 dias no município de Dourados para aulas na UFGD, período em que devem decidir como fica e com quem fica o cuidado para com as(os) filhas(os).

Faz parte da soltura dessas teias familiares a presença de filhas(os) acompanhando as mães nas diversas etapas das aulas durante os Tempos Universidade e a sua gradativa ausência. Expliquemos melhor esta afirmação.

Observamos na primeira etapa a presença de diversas crianças, especialmente aquelas com faixa etária até seis anos. Já na segunda etapa ocorreu uma diminuição das crianças. Nas terceira e quarta etapas, foram poucos os dias em que as mães trouxeram suas(seus) filhas(os) e, estas(es), se fizeram presentes em número reduzido. A quinta etapa foi a que mais contou com filhas(os) acompanhando mães, mas, desta feita, com uma faixa etária acima de dez anos, algumas(uns) experienciando a adolescência.

Observamos que tais filhas(as) acompanhavam as mães que são responsáveis pelas famílias, não mais as(os) pequeninas(os), além de existir um anseio para conhecerem a UFGD e participarem das atividades, o que vem ocorrendo. Assim, percebemos que as mães acadêmicas estão organizando seus tempos universidades de forma independente dos cuidados com filhas(os) e ampliando seus objetivos, especialmente interagindo com a própria família nos corredores da universidade, no entanto, de modo autônomo e não com a responsabilidade do cuidado, mas da convivência.

O soltar de teias em relação às(aos) filhas(os) não ocorre livre de dilemas porque são atribuições históricas que fazem parte do universo dessas mulheres, muitas vezes naturalizadas como duas funções, responsabilizando-as para essa atuação. Tal concepção denota a ideia de que as(os) filhas(os) são, antes de tudo, das mulheres, situação mantida

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por elas próprias na medida em que potencializam essa posição e se colocam como figuras centrais. Entretanto, o soltar de teias vem ocorrendo.

Um exemplo elucidador disso foi observado ao presenciamos comportamentos e conversas entre acadêmicas, ao longo das etapas do curso: na primeira etapa das aulas presenciais, uma delas trouxe seu filho com menos de dois anos para o período de aulas do Tempo Universidade, o qual passou praticamente os dias todos em seus braços, no espaço onde aconteciam as aulas. Na segunda etapa, ele já não a acompanhou. Diante de conversas entre as acadêmicas, especialmente daquela que havia passado a primeira etapa com o filho nos braços, presenciamos um relato no qual ela afirmou que não mais traria filhos porque havia descoberto: os tempos de estudos na UFGD deveriam ser tempos exclusivos dela.

As educandas afirmam que regressam aos assentamentos e aos lugares de atuação mais empoderadas por conhecimentos ampliados para avaliarem o mundo e suas próprias experiências, ora mais livres, ora de maior controle e domínio. Para registrar esta experiência foram utilizadas duas técnicas: aplicação de questionário e observação participante. Espera-se, assim, corresponder às especificidades dessa realidade de modo responsável e com certa cumplicidade entre as mulheres que escrevem este artigo e aquelas que vivenciam/experienciam a vida – entre a casa e a Universidade –, nem sempre fácil de ser vivida, mas ampla de perspectivas. De tal modo, a pesquisa se faz ao longo da realização do curso, com trocas de experiências, às vezes díspares, entretanto, com situações similares à vida de mulheres educandas e educadoras.

Temos que assumir nossa identidade de sem-terra desde cedo

A identidade de sem-terra estimula reflexão teórica no curso, traz à tona a materialidade da vida, a origem das pessoas, as situações objetivas, o modo de vida, o habitus que nos fala Bourdieu (1989, 1996), as marcas que trazemos nos corpos e manifestações arraigadas no nosso ser, que impulsionam nossa ação, nosso comportamento. Não é possível verificar e delimitar onde começa e onde termina a influência desse hatibus e da cultura que nos leva a apresentar um modo específico e particular de ser e de lidar com a sociedade, e as pessoas que a formam, mas essa influência é cotidiana.

Este habitus mudou os corredores da UFGD, os sons, as crianças na ciranda, a organização espacial se alterou drasticamente, questionou-se a ordem estabelecida por outros grupos, que, muitas vezes, apresentam objetivos conservadores que precisam ser alterados, e isso ocorre de modo mais dinâmico e legítimo com a convivência entre pessoas diferentes.

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Menegat e Farias (2009) apresentam as situações vividas pelas acadêmicas-mulheres-assentadas, que durante os Tempos Universidades se ausentam de seus lares por uma média de 35 dias e muitas necessitam levar filhas(os), ainda pequeninas(os) para acompanhá-las durante as aulas, tornando-as(os), de forma involuntária, desde muito cedo, alunas(os) universitárias(os). Isso imprime outras dimensões ao processo educacional, que não apenas de apropriação de conhecimentos.

Consequentemente, as manifestações culturais que produzem, se estruturam e imprimem sentido ao vivido e às raízes para a formação das identidades, e nesse processo, a memória é fundamental. Uma acadêmica chorou após assistir ao documentário utilizado em aula, no qual a vida no Vale do Jequitinhonha é retratada, bem como a migração forçada, a expropriação da terra de trabalho. Ela lembrou-se de sua avó, disse que aquela era a vida da sua família.

Entendemos a identidade como uma dimensão do ser humano, efetivada na relação com o mundo, com outros sujeitos sociais – mulheres, homens, meninas e meninos – mais próximos e com grupos que se relacionam na trajetória de vida de cada uma(um). Assim, a história se faz no cotidiano, nas resistências, nas conquistas e, também, nas perdas de antigas referências.

Por isso, a identidade é fluida, faz-se e refaz-se no caminho e é, segundo Thompson (1998)77, ambígua, alternando nos sujeitos a deferência demonstrada como conformidade com o status quo e a rebeldia surgida diante das experiências de exploração, dificuldades de sobrevivência e também em momentos de dificuldades.

A identidade das mulheres se constitui por meio de um processo conflituoso, uma construção que passa pelo plano individual, com marcas íntimas de sua própria trajetória e experiência; e pelo plano coletivo, ampliando tais experiências e as vivências nos grupos dos quais participam.

Este caminho não está isento das disputas ideológicas, religiosas, políticas e sociais; ao contrário, há uma correlação de forças, concepções e ideias, que são assimiladas e ou transformadas no dia-a-dia, nas relações de confronto ou de reciprocidade trilhadas por mulheres e homens, ao buscarem identificação nos grupos sociais.

Tal processo se efetivou na UFGD e ainda ocorrerá por algum tempo. Nossas(os) acadêmicas(os) enfrentaram situações de estigmas, sorrisos que as(os) desqualificam e, muitas vezes, convivem com desdéns de outros grupos, mas superam tais estigmas cotidianamente.

77 O autor trata deste tema principalmente na Introdução: costume e cultura.

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São em meio aos confrontos e às disputas como esses que as identidades se estruturam. Às mulheres acrescentam-se o sexismo, pautado em piadas, em olhares reprovadores, em determinação de espaços diferenciados, apoiada na divisão sexual, esta resulta em um poder hierárquico masculino, que ganha sobrevida na sociedade atual.

As mulheres criam seus mecanismos de resistências, tais como: “seguem firme” nas etapas do curso e demonstram disposição para a participação política dentro e fora da universidade. Muitas delas são lideranças nos Movimentos Sociais e em seus assentamentos, tanto que há momentos nos quais precisam participar de reuniões e mobilizações, ficam entre a universidade e o assentamento, mas conseguem ir e vir sem prejuízos à aprendizagem.

Há um destaque para as mulheres nos corredores com as camisetas dos seus respectivos Movimentos Sociais, usam chapéus e/ou bonés, participam da mística e estão em todas as atividades, representam maioria em número e também em presença, no sentido de visibilidade e de força simbólica. Em todos os momentos, suas considerações são entrelaçadas de sentimentos positivos e, às vezes, de saudade de quem ficou para trás, demonstram resistência contínua e ampliam a capacidade de expressar suas concepções. Percebemos um amadurecimento contínuo e significativo dessas mulheres, uma relação mais dinâmica entre a ciência que adentra suas vidas e o cotidiano nos assentamentos, ainda marcado por relações de poder masculino e hierárquico.

Essas mulheres trouxeram sua cultura para o interior da UFGD, e esta envolve conhecimento, experiência, está em todos os lugares, perpassa suas vidas e consciências. Desse modo, a cultura se fortalece e ao mesmo tempo se transforma cotidianamente, tratam-se de permanências e mudanças de manifestações, é um devir. As manifestações culturais que trazem se fortalecem e são compartilhadas por quem já estava por aqui, especialmente o corpo docente e bolsistas, grupos que mantêm contato direto e constante com as(os) acadêmicas(os).

A cultura é o resultado de todas as aprendizagens, influencia a capacidade de participação, capacidade artística ou profissional, não somente de uma pessoa, mas de grupos e gerações anteriores. É uma elaboração coletiva e comporta a noção de transformação sucessiva a que se sujeita a nossa própria concepção e entendimento do real. Esta cultura é estruturada, (re)estruturada na trajetória de “luta pela terra e na terra” cultivada por acadêmicas-mulheres-assentadas do PRONERA, trazendo à tona uma diversidade cultural emaranhada com o gênero, sem precedentes.

Elas criam mecanismos de manifestações que permitem formular oportunidades “[...]

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através de antigas e novas formas de entretenimento e encontro, de estabelecer, revigorar e exercitar aquelas regras de reconhecimento e lealdade que garantem a rede básica de sociabilidade” (MAGNANI, 1996, p.31), na tentativa de (re)estabelecer redes de sociabilidade, de solidariedade e de amizade, importantes para a identidade individual e grupal, alicerçadas em redes de sociabilidade.

Portanto, podemos dizer que as diversas manifestações festivas orientaram a permanência do grupo na UFGD. Chamaremos de mística, esta que possui certa unidade e recria uma rede de sociabilidade sob novas formas de expressão, procurando preencher as ausências de antigas referências e reconstruir novas. A mística é fruto das lutas sociais, sejam ligadas à Igreja ou não, mas que de modo geral nela teve sua gênese, especificamente na Comissão Pastoral da Terra (CPT), quando falamos de Movimentos Sociais Rurais.

A mística é, então, a mistura de dramatizações que demonstram situações alternadas de alegria–rebeldia–sofrimento, são momentos nos quais os sujeitos se regozijam, pois vivem o rompimento das regras de comportamentos sociais. Ela é como uma festa, na qual explodem sentimentos de autonomia e liberdade. Sentimentos possíveis, que encerram possibilidades de negação de valores impostos e afirmação de novos valores ou vontades.

Segundo Amaral, “[...] é ritual, divertimento e ação política ao mesmo tempo. Ela reaviva as velhas tradições, reforça laços de origem, mas também incorpora novos elementos e anseios.” (1996, p.260). O autor ainda acrescenta: “Como fato social total que é, a festa engloba as esferas de sentido, transcendência, política, lazer, estética, tradição, trabalho etc. Em alguns casos pode ser também uma forma de resistência sob a aparência da alienação” (AMARAL, 1996, p.262).

Ao viverem a mística, as mulheres sentem-se parte do processo, exploram seus sentimentos e o próprio corpo, extravasam os sentimentos de culpa por terem deixado suas casas e as responsabilidades para com o “cuidar”, que continua a acompanhá-las. Estão “se fazendo mulheres”.

Esse processo de “se fazerem mulheres”, com todas as contradições e os possíveis, colabora para a estruturação, reestruturação das identidades que são ou que deveriam ser constituídas na travessia – marcada por ambiguidades e indefinições –, quando as mulheres vivem um conjunto de experiências que definem e estruturam suas identidades, um jeito de ser, de pensar, de conceber o mundo, de se autoconceberem, de se autoconhecerem e se autorreconhecerem como protagonistas/atrizes de sua própria história e de sua existência no mundo, seja privado (da família e das relações interpessoais), seja público (campo da política, sociedade civil).

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Essa identidade não deveria ser atribuída por ninguém concreto (no mundo material: pai/mãe/marido) ou divino (por Deus), isto é, por meio de imposições, especialmente, quando traz a representação dominante da maternidade como uma marca do corpo feminino, mesmo que tal representação pareça positiva: ser mulher é ser delicada, calma, ter a responsabilidade para com os filhos, com o marido, com pessoas idosas ou “mulher é essência divina”. Tal representação é questionada constantemente, mesmo de forma não muito racionalizada.

Portanto, as acadêmicas-mulheres-assentadas do PRONERA criam rupturas nessas representações, mesmo que nem sempre percebam sua força e capacidade, no entanto, são experiências efetivadas em meio às dificuldades e aos sentimentos confusos por deixarem “tudo para trás” por cerca de 30 dias, especialmente as crianças, e ficarem “inteiras” na UFGD. Estarem na universidade e voltarem diferentes – empoderadas – para suas relações pessoais, significa influenciarem, também, no modo de ser das pessoas que lá ficaram, que passam a compartilhar de outra rotina, agora envolvida por cadernos, livros, comentários sobre as aulas teóricas e práticas, sobre os conhecimentos conquistados, às vezes, às “duras penas”, principalmente para aquelas mulheres que estavam há muito tempo fora da escola.

Assim, os movimentos produzidos pelas acadêmicas-mulheres-assentadas do PRONERA estão envoltos em múltiplos aspectos, configurados em seus desejos, de suas famílias, das comunidades em que vivem. Iniciaram uma nova caminhada e a partir desta elaboram novos roteiros, mesmo quando precisam conviver com conflitos familiares, momentos nos quais buscam atalhos, abrem “picadas”, “soltam-se das teias”, são os possíveis para continuarem.

Os atalhos em si não se esgotam, emergem como estratégias para abrirem caminhos e efetivarem suas caminhadas emancipadoras. Assim entendemos a “vida vivida” pelas acadêmicas-mulheres-assentadas do PRONERA, permeada por novas relações tecidas diariamente, às vezes como obra de arte, às vezes como sofrimento a ser ultrapassado, estão em construção, apenas as iniciaram.

Percebemos, nestes anos de convivência, que a identidade dessas mulheres está em movimento, em fluidez, continuam se autorreconhecendo como sem-terra, trabalhadoras rurais, mas tal condição não lhes nega a perspectiva de ampliarem a capacidade de compreensão dessa identidade, de conquistarem direitos e reconhecimento no interior dos assentamentos e na própria família, como expressado por “R.S.” (2010):

Ao concluir este curso estarei vencendo não só a minha luta, mas a de milhões de sem-terra, sem-teto, negros e ribeirinhos que sonham um dia pisar numa universidade.

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Este sonho será de todos. Por isso busco me esforçar para continuar aqui. Acredito que contribuirei também com minha comunidade, além de dizer a todas as mulheres que estudar é preciso, e que dificuldades teremos em todos os momentos, basta acreditarmos que somos capazes de ser mãe, acadêmica, sem terra, professora, trabalhadora rural, atriz, mas acima de tudo “MULHER”. (grifo da acadêmica)

As famílias reconhecem o esforço dessas mulheres, no entanto, convivem, também, com sentimentos ambíguos, até mesmo de perda de uma mulher que parece não mais existir, mas que continua existindo, agora com uma visão de mundo ampliada. Mulheres passam a direcionar seus projetos com muita altivez e certeza rumo a um futuro melhor e de conquistas políticas mais eficazes para si mesmas e para outras que não tiveram esta oportunidade, com condições de igualdade.

Por tudo isso, as acadêmicas-mulheres-assentadas do PRONERA dizem o que são, por que são assim, o que desejam, o que as incomoda e o que deve ser mudado, e ainda por quais direitos lutam e como fazem isso. Vale ressaltar que as mulheres são diferentes e encontramos graus de força e de empoderamento para assumirem atitudes, identidades e projetos (DEERE; LEON, 2002).

São situações novas e fazem parte das possibilidades para alterarem uma condição, mas também há continuidade de vivências nem sempre positivas. Mesmo sem a percepção dessas mulheres, elas convivem, portanto, com permanências e mudanças, são marcas da complexidade da vida. Não queremos dizer que há uma homogeneidade entre as mulheres, se o fizéssemos, estaríamos negando a pluralidade de subjetividades se interligando e se confrontando no cotidiano. Não é diferente na UFGD.

Mas queremos salientar que durante esses anos, ocorreram mudanças, mulheres alteraram o rumo de suas vidas, que mesmo por “caminhos de dor”, significam rupturas, crescimento e amadurecimento no campo das relações de gênero. São as idas e vindas na formação das identidades, com continuidade e descontinuidade de valores, com rupturas das condições de desigualdade, e também com a sua reprodução.

Ninguém pode dizer o que são as mulheres, nem o mercado, nem as religiões, nem as escolas, nem os homens, somente elas. O que é então uma mulher? Virginia Woolf (2008, p.46) dizia: “Eu asseguro-lhes, que não sei. Não acredito que alguém possa saber até que ela se tenha manifestado em todas as artes e profissões abertas à habilidade humana”.

Complementando esta ideia, importa compreender qual a imagem que a mulher constrói

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de si mesma, como é a relação com sua existência, nem sempre envolvida por significados externos. Tais respostas são entrecortadas por uma paisagem múltipla, por variadas identidades atravessadas por características específicas, etnicorraciais, de classe, de religião, de modos de vida e de lugares de moradia (SAFFIOTI, 2004).

Essa identidade é múltipla, não é essência, é “consciência do possível” para o sentido de sermos mulheres com corpo e mente que se fortalecem a partir de experiências subjetivas. As mulheres são diferentes umas das outras e são diferentes dos homens. Elas têm o direito de viver e expressar esta condição com liberdade, o que não as coloca em posição de inferioridade (LUTFI; SOCHACZEWSKI; JAHNEL, 1996, p.96.).

As vozes femininas devem ecoar para além do domínio masculino que prevalece na sociedade. Devem ir para além dos papéis a elas atribuídos durante séculos. Suas vozes devem se juntar a de outras mulheres atrizes sociais que não encontram os espaços propícios para se manifestarem.

As mulheres ficam, muitas vezes, sozinhas com suas angústias e utopias, e todos esses sentimentos devem se transformar em mecanismos de resistência e de luta contra qualquer tipo de representação do corpo feminino que o aprisione, em especial, a dominação masculina e a violência de gênero, sem esquecer tantas outras que somente cada mulher pode destacar.

Assim, caminhamos juntas neste curso, as mulheres sem-terra e as educadoras do PRONERA, com nossas dificuldades, com sonhos que em alguns momentos convergem para lugares comuns, por isso, somos mulheres no singular e no plural, ou seja, com especificidades e particularidades, mas também com sonhos e perspectivas convergentes. Dialogamos em prol de projetos mais amplos e ambiciosos para as conquistas de direitos e de rupturas nas relações de gênero impeditivas de vivermos as experiências e ampliá-las com maior liberdade e reconhecimento.

Acreditamos que a Universidade tem o compromisso de abrir seus espaços para as vivências das singularidades e das pluralidades assim, corresponder ao seu compromisso social e político com a sociedade, especialmente com os grupos que nela não adentraram por longos anos, especialmente as mulheres sem-terra. Hoje, elas ocupam a UFGD e resistem diante de variadas dificuldades concretas – distâncias, ausência de familiares, deixam ocupações, estavam fora da escola por muito tempo, dentre outras – e simbólicas – preconceitos, sexismos, naturalização do papel de “mãe”, poder patriarcal, dentre outros – e assumem seu lugar na história dessa Universidade.

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PARTE 2 – REFLEXÕES SOBRE AS EXPERIÊNCIAS DO PRONERA

Recriando a formação nas Ciências Agrárias para uma atuação com maior compromisso social: Estudo de caso do Programa Residência Agrária na UFCE

Elisa Pereira Bruziguessi

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Recriando a formação nas Ciências Agrárias para uma atuação com maior compromisso social: estudo de caso do Programa Residência Agrária na Universidade Federal do Ceará

Elisa Pereira Bruziguessi78

Introdução

O presente artigo pretende apresentar resultados e reflexões sobre a experiência do Programa Residência Agrária79 que se vincula ao Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA). Este é um recorte da dissertação de mestrado com mesmo título apresentada ao Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, em 2010. O objetivo central da pesquisa foi diagnosticar e refletir como o Centro de Ciências Agrárias (CCA) da Universidade Federal do Ceará (UFC) recebe, convive e se transforma a partir desta experiência, e como isso repercute dentro desta universidade.

A motivação para a criação do Programa Residência Agrária (PRA) insere-se no contexto da formação dos profissionais das Ciências Agrárias com todas as suas ausências e deformações, que desvalorizam os agricultores familiares, suas práticas, culturas, demandas e importância (histórica, contemporânea e potencial). Também pelo histórico do trabalho desenvolvido pela assistência técnica e extensão rural: autoritário, simplista, desarticulador de saberes, ineficaz e ineficiente. Portanto, o Programa Residência Agrária tem o desafio uma outra formação para estes profissionais, baseada em novas bases paradigmáticas.

Um importante passo para mudar esta realidade deve passar inevitavelmente pela formação de pessoas e profissionais que não sejam apenas acumuladores de conhecimentos, mas também cidadãos críticos, solidários, participativos, engajados na transformação do seu contexto histórico. Para concretização desse desafio, a universidade possui importante papel, já que pode criar espaços e ações com essa perspectiva. De igual maneira, as metodologias, prioridades e currículos dos cursos das Ciências Agrárias devem ser repensados e recriados

78 Engenheira Florestal, mestre em Desenvolvimento Sustentável, professora do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Brasília (IFB). 79 79Programa Residência Agrária é o nome popular para o Programa Nacional de Educação do Campo: Formação de Estudantes e Qualificação Profissional para Assistência Técnica.

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com foco em atender não apenas a demanda das empresas agrícolas, mas, prioritariamente, dos agricultores familiares com um enfoque da sustentabilidade.

O Programa Residência Agrária objetiva qualificar estudantes para a vida profissional, especialmente para o trabalho de ATER em áreas de Reforma Agrária e Agricultura Familiar com enfoque agroecológico, sendo que tem como princípio uma educação crítica e emancipatória e é realizado por meio de metodologia participativa e integradora. Ele foi criado em 2004, no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), e é executado por meio da ação parceira entre universidades públicas, Movimentos Sociais do Campo e órgãos governamentais. O Programa foi realizado em 16 universidades, sendo 14 federais e duas estaduais, distribuídas em 15 estados abrangendo as cinco regiões do País.

O enfoque no caso particular do Programa Residência Agrária da Universidade Federal do Ceará caracteriza a pesquisa como um estudo de caso, em que a coleta dos dados se deu por meio da análise de documentos e entrevistas semiestruturadas com os sujeitos diretamente envolvidos nesta experiência. Foram entrevistados: a) Quatro professores da UFC que compõem o “núcleo duro” do PRA80; b) nove professores da UFC que ministraram aulas e/ou orientaram trabalhos e monografias da Especialização do PRA; c) seis estudantes que participaram do PRA e ainda possuem algum vínculo com a UFC; d) oito estudantes que ainda participam do PRA; e) uma representante do MST, que participou do PRA desde a etapa de construção colegiada; f) o Diretor do Centro de Ciências Agrárias da UFC, que ocupa este cargo desde o início do Programa até os dias atuais.

A articulação do Programa Residência Agrária ao PRONERA

O Programa Residência Agrária não surge por simples vontade política; ele é resultado de um histórico de luta dos Movimentos Sociais do campo e de profissionais comprometidos com estes sujeitos. O PRA nasce da conquista do PRONERA, sendo esta a sua fonte propiciadora e uma de suas fontes inspiradoras juntamente com a Pedagogia da Alternância e com os Estágios Interdisciplinares de Vivência (EIV), organizados pelos movimentos estudantis.

Estando o Programa Residência Agrária no âmbito das Políticas Públicas de Educação do Campo, ele compartilha com suas ideologias e intencionalidades, mas, com a especificidade de ser voltado mais diretamente à formação de um público particular: profissionais das

80 Esses professores, além de coordenarem o PRA desde o início de suas atividades, também ministraram aulas e orientaram trabalhos durante o curso de Especialização do PRA. Uma dessas pessoas há aproximadamente um ano não ocupa mais essa posição.

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Ciências Agrárias que trabalham ou desejam trabalhar com ATER em áreas de Agricultura Familiar e assentamentos de Reforma Agrária. Portanto, os ideais deste Programa são abrangentes e transformadores, assim como os da Educação do Campo e do PRONERA. Ele não pretende apenas ensinar novas técnicas de produção mais compatíveis com a realidade dos agricultores familiares, isso também, mas de maneira vinculada a um pensar e agir crítico e questionador, que vislumbra transformações do modelo de desenvolvimento, que acredita numa sociedade mais justa, cidadã e democrática.

Na tese de doutorado, Mônica Molina estudou A contribuição do PRONERA na construção de Políticas Públicas de Educação do Campo e Desenvolvimento Sustentável, na qual destaca a relevância de todos os níveis de educação estarem vinculados à questão da assistência técnica e extensão rural, já introduzindo reflexões que geram bases para se pensar e concretizar o Programa Residência Agrária.

As políticas públicas de Educação do Campo deverão ser capazes de construir articulações entre os conteúdos desenvolvidos na educação básica e profissional, com as demandas levadas à assistência técnica; à extensão rural e aos centros de pesquisa ou universidades que trabalham com as comunidades rurais. Será esta articulação profunda entre estudo e trabalho que permitirá e viabilizará a construção do que postulamos no paradigma da Educação do Campo, criando condições para que a escola possa de fato cumprir seu papel social, contribuindo na construção de um modelo de desenvolvimento verdadeiramente sustentável. (MOLINA, 2004, p. 136)

O Programa Residência Agrária e a experiência da Universidade Federal do Ceará

O PRA está estruturado em duas fases, sendo a primeira o Estágio de Vivência (EV), desenvolvido com os estudantes da graduação do último semestre de cursos das Ciências Agrárias, acompanhados por técnicos de ATER ou ATES81, que fazem a integração dos estagiários na vida cotidiana das comunidades. A etapa seguinte é constituída pelo Curso de Especialização em Agricultura Familiar e Camponesa e Educação do Campo, que tem duração de dois anos. Os alunos que compõem este curso são aqueles que participaram e concluíram o Estágio de Vivência e pelos técnicos que os acompanharam. Ambas as etapas são realizadas por meio de uma metodologia inspirada na Pedagogia da Alternância, na qual os estudantes participam alternadamente de tempos de formação na universidade (Tempos Escola) e de tempos Comunidade, quando permanecem nos assentamentos. Ao final, apresentam uma monografia sobre o trabalho desenvolvido nos assentamentos.

81 Programa de Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária: criado em 2003, com o objetivo de assessorar técnica, social e ambientalmente as famílias assentadas nos Projetos de Assentamento da Reforma Agrária, criados ou reconhecidos pelo INCRA.

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O PRA da Universidade Federal do Ceará foi realizado conjuntamente pelas Universidades Federais do Piauí (UFPI) e Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA), localizada no Rio Grande do Norte, compondo a chamada Região Nordeste I. Nesta Região, a UFC foi a universidade certificadora. Desde o início, este coletivo viu a importância de conduzir esse nascente Programa por meio de uma gestão participativa e democrática, com a presença de representantes de alunos, professores, Movimentos Sociais do campo (MST e movimento sindical) e do INCRA. Portanto, uma característica dessa experiência foi a participação efetiva dos Movimentos Sociais do campo, que tiveram voz na tomada de decisões nos espaços de planejamento, execução e avaliação. Esta realidade se mostrou extremamente desafiadora e enriquecedora.

Na UFC, o Programa atuou apenas em áreas de Reforma Agrária do estado, sendo 12 assentamentos localizados em 11 municípios. As bases conceituais do Curso de Especialização do PRA foram organizadas em cinco eixos temáticos: Campo e Desenvolvimento; Produção e Sustentabilidade; Os Povos do Campo; Socioeconomia Solidária; e Metodologias em Educação Popular.

Ao final da primeira turma do Curso de Especialização do PRA, em junho de 2007, já estava em andamento a segunda turma do Estágio de Vivência do PRA, financiado pelo PRONERA ligado ao INCRA nacional, com a perspectiva dos estudantes ingressarem na segunda turma do Curso de Especialização. Porém, ao final deste segundo Estágio de Vivência do PRA, o INCRA não possui mais condições de financiar as atividades do Programa. Mas, considerando o entrosamento e a consolidação da equipe e a vontade de dar continuidade a estas experiências que vinha gerando resultados positivos e satisfação aos participantes, os professores mais envolvidos decidem buscar novos parceiros e fontes financiadoras, para dar continuidade ao Programa. Portanto, a experiência do PRA na UFC, de 2008 até a atualidade, conta com atividades, metodologia e objetivos semelhantes à proposta original, no entanto com outras fontes financiadoras82, incluindo bolsas da própria universidade83. Ainda não houve uma segunda turma do Curso de Especialização84, as atividades têm sido desenvolvidas por meio de um constante aperfeiçoamento dos Estágios de Vivência e seus fecundos desdobramentos.

82 Secretaria de Desenvolvimento Agrário do Estado do Ceará (SDA); Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ); Banco do Nordeste do Brasil (BNB); Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP).83 Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação e Pró-reitoria de Extensão da UFC.84 Existe a perspectiva de que o INCRA, por meio do PRONERA, em breve dê condições para a execução desta segunda turma do curso de Especialização.

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Implicações e opiniões sobre o Programa Residência Agrária na Universidade Federal do Ceará

Pretende-se neste momento apresentar alguns resultados coletados por meio das entrevistas semiestruturadas e as consequentes discussões proporcionadas por este diálogo.

1- Necessidade de uma formação complementar aos profissionais das Ciências Agrárias:

Este assunto foi discutido com 13 professores da Universidade Federal do Ceará, sendo que todos apresentaram respostas e argumentação reconhecendo esta necessidade e a carência desta formação nos cursos do CCA. Durante as argumentações eles citaram: que a formação dos cursos das Ciências Agrárias da UFC é muito pautada no pacote tecnológico da Revolução Verde; com currículos atrasados; distância entre o que é ensinado durante as aulas e a realidade do campo; falta de enfoque teórico, prático e experiencial conectado à realidade da Agricultura Familiar; adoção de um modelo muito tecnicista, sem vínculo com o social; cursos muito convencionais; concepção de extensão que apenas dá receitas; cursos voltados apenas ao agronegócio; que o CCA é um Centro muito conservador.

Segundo as palavras de um docente: “Por causa do mercado direcionou muito esta formação, e também por causa do pensamento ideológico de muita gente, então por causa disso, os currículos, os conhecimentos, têm muitas deficiências”.

Alguns professores enfatizam a necessidade de uma outra formação mais vinculada ao contexto e à realidade dos camponeses, com tecnologias mais adequadas e, além disso, uma educação que também trabalhe questões sociais, a cidadania, a solidariedade. Desta forma, os professores disseram que o Programa vem exatamente atender esta carência e que, enquanto os conteúdos, enfoques e metodologias dos cursos do CCA não mudam, é necessário, sim, promover formações complementares.

Esta questão foi discutida com sete estudantes85 graduandos que participam do PRA. Cinco deles foram enfáticos em dizer que seus cursos não preparam para atuação no contexto da Agricultura Familiar, declararam que seus cursos são voltados apenas para a realidade do agronegócio: “Ninguém nunca fala, ninguém nunca comenta nada sobre Agricultura Familiar, é tudo em larga escala, quanto menos trabalhador e quanto mais máquinas, melhor para alguns professores, então, a gente aprende tudo do convencional”.

85 Destes estudantes, quatro são da Agronomia, um da Engenharia de Alimentos e dois da Economia Doméstica.

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Três estudantes comentaram que eles têm acesso a este enfoque sobre Agricultura Familiar e aspectos sociais da agricultura quando já estão no final do curso, com a cabeça já formada segundo os conhecimentos e ideologias das disciplinas precedentes, com suas prioridades acadêmicas já estabelecidas, assim torna-se difícil envolver os estudantes para atuarem com esta temática.

Portanto, fica claro o importante papel do Programa Residência Agrária, já que promove uma educação diferenciada em conteúdos e metodologias e forma profissionais identificados e preparados para atuar com o público da Agricultura Familiar e da Reforma Agrária.

2 - Integração Ensino, Pesquisa e Extensão

A Universidade, para estar a serviço da sociedade e para dar conta da complexidade do mundo contemporâneo, necessita desenvolver ensino, pesquisa e extensão de maneira articulada, principalmente se pretende uma educação crítica e emancipadora. Assim, este tema foi abordado no contexto do PRA, buscando diagnosticar suas potencialidades de concretizar este desafio e como, de fato, isso tem ocorrido no Programa.

Sobre a necessidade de integrar estas três dimensões, Buarque coloca: “É preciso comprometer todo o ensino superior com atividades de pesquisa, retirando-o da simples prática do ensino repetitivo, e, ao mesmo tempo, forçar uma aproximação do ensino e da pesquisa com a realidade, através da prática da extensão”. (BUARQUE. 1998, p.202). Sobre a necessidade da extensão, Araújo contribui: “Para que a universidade pública possa cumprir sua função social, precisa sair de seus muros e buscar a sua inserção na sociedade mais ampla, analisando, discutindo e equacionando os diferentes problemas, promovendo, assim, a contextualização da realidade”. (ARAÚJO. 1998, p.178)

Todos os 13 professores com os quais esta questão foi abordada reconhecem a importância desta integração e percebem que o Programa é um espaço concreto que possibilita isso. Dois dos professores explicaram que o PRA é visto como um Programa de Extensão, porém defendem que não é isso; para eles é um Programa de Formação que integra a pesquisa e extensão. Outro professor explica sua visão:

Extensão é um processo educativo que articula o ensino e pesquisa para melhor formação dos estudantes, então é enxergar a extensão como um momento em que a gente tem a oportunidade, digamos, do ponto de vista do pesquisador, de exercitar o resultado da sua pesquisa na realidade social, do ponto de vista do ensino, do professor, da sala de aula, é o momento dele beber na fonte, vivenciar a realidade social e trazer para sala de aula, então, o Residência (PRA) é um exemplo de como praticar a integração de ensino, pesquisa e extensão.

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Acredita-se que o PRA se constitui em um espaço de ensino não apenas durante as aulas formais do Curso de Especialização, mas também durante os grupos de estudos, os seminários, os eventos de apresentação dos trabalhos dos estudantes e principalmente na própria vivência nos assentamentos, durante as conversas e práticas que realizam com as famílias. A prática da pesquisa é concretizada durante o Curso de Especialização por meio das monografias e, no formato atual, em alguns casos pelos Trabalhos de Conclusão de Curso - TCC e relatórios parciais e finais que passam por um processo de amadurecimento e aperfeiçoamento para publicação em eventos científicos. O elo da extensão ocorre justamente devido ao Programa objetivar a formação dos estudantes para trabalharem com ATER, porém, mesmo que estes estudantes só o façam de maneira mais efetiva após concluir a graduação. Durante o PRA, esta prática já acontece no cotidiano da vivência com os agricultores, pois torna-se impossível não discutir sobre a produção, a organização dos assentamentos, das famílias, dos seus desejos e problemas. A diferença é que neste momento ainda há menos cobrança de ambas as partes e mais compreensão em relação às fragilidades de cada um.

Portanto, além destas três vertentes acontecerem no PRA, elas acontecem de forma bastante integrada, ou seja, muitas vezes num mesmo espaço e num mesmo momento. Por exemplo, quando os estudantes vão ao campo com o olhar de pesquisador, ao coletar dados da sua pesquisa, também estão aprendendo, sendo formados e concomitantemente fazendo extensão, interferindo na realidade, mesmo que, apenas por meio de reflexões e ideias partilhadas. Um dos fatores que estimula esta articulação do ensino, pesquisa e extensão no PRA é a metodologia adotada da Pedagogia da Alternância, e também a metodologia da Pesquisa-Ação utilizada em muitos dos trabalhos de pesquisa.

É interessante notar a potencialidade da articulação destas três dimensões, não apenas por proporcionar ao grupo fazer as três coisas ao mesmo tempo, em um mesmo Programa, mais do que isso, pois vemos como esta interrelação enriquece todas as partes, as torna mais dinâmicas e conectadas com a realidade. Existe um estímulo ao ensino e à aprendizagem quando estudantes, orientadores e professores sentem a necessidade deste conhecimento para fazer a pesquisa e para atender às demandas concretas da comunidade com a qual o grupo está comprometido. Mesmo que os estudantes talvez se comprometam mais, por estarem em maior contato com os agricultores do que seus professores e orientadores, o estímulo ao ensino e à aprendizagem destes últimos acontece da mesma forma, já que os estudantes os pressionam pelos conhecimentos que a comunidade demanda segundo diagnosticam.

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Quando existe este comprometimento com a comunidade existe a preocupação que a pesquisa seja aplicada, traga reflexões e proposições de melhora para a realidade dos assentamentos, portanto, que se transforme em ações e práticas de extensão. Enfim, a integração destas três dimensões é ambiente propício à ocorrência de emergências, à ocorrência do novo, possui grande potencial transformador, e no contexto estudado, transformador do CCA, da UFC, dos assentamentos, dos futuros profissionais, incluindo os de ATES.

3 - Influências do Programa Residência Agrária no Centros de Ciências Agrárias da Universidade Federal do Ceará

Buscou-se diagnosticar influências do Programa Residência Agrária nos estudantes, professores e, direta ou indiretamente, no Centro de Ciências Agrárias.

a) Influências nos Professores

Os professores reconheceram a influência do Programa Residência Agrária nas suas aulas e as motivações foram: o maior contato com os Movimento Sociais do Campo, com os assentados, com os profissionais extensionistas86 e com os professores de outras áreas, inclusive de outras universidades.

[...] a partir da minha participação no Programa, já comecei a tratar as disciplinas com que trabalho de maneira um pouco mais diferenciada [...], a estatística, na medida do possível, fui procurando, nos exemplos, trazer alguma coisa a mais além dos números, por exemplo, se vou mostrar uma tabela de distribuição de frequências, procuro trazer uma tabela que retrate um pouco a questão fundiária do Brasil, e vou dando uma pincelada nos temas que, aparentemente, não têm ligação com a estatística, mas procuro trazer um pouco esta discussão, pelo menos [...] para os alunos irem percebendo a existência de uma outra agricultura, de uma outra forma de trabalhar, porque essa disciplina é do segundo semestre, então, já começa aí pelo menos ouvindo falar da questão da Agricultura Familiar, da concentração de renda. Com certeza, estimulou novos enfoques nas aulas, eu posso dizer que nas disciplinas temos o antes e o depois da minha entrada no PRA.

Neste mesmo sentido, outro professor coloca:

Nas minhas aulas adentro mais na realidade, não fico só na literatura, então capacita e potencializa mais a gente na sala de aula. [...] porque uma coisa é quando a gente conhece o outro pela revisão de literatura, outra, quando a gente conhece o outro, escuta a fala do militante pelo militante, do que quando escrevem sobre ele, diferente de você sentir, ouvir, participar. Daí quando você fala numa aula, e escuta uma visão bem preconceituosa

86 Que, no momento seguinte, se transformaram em estudantes do Curso de Especialização do Programa Residência Agrária.

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do estudante, daí você tem um elemento mais forte, não é só do acadêmico, daí a gente fala com mais propriedade de causa, com mais tranquilidade.

Percebeu-se que o Programa Residência Agrária traz aprendizados também aos professores, mesmo quando estes já possuem trabalhos anteriores com temáticas da Reforma Agrária e Agricultura Familiar. As contribuições vão desde a incorporação de novos materiais didáticos às aulas, mudanças nos conteúdos, nas metodologias e posturas nas disciplinas, amadurecimento profissional e pessoal que extrapolam as salas de aula e perpassam seus outros espaços de atuação.

b) Ampliação da Articulação entre os Professores que participaram do Programa Residência Agrária

Houve uma confirmação desta aproximação entre docentes de diferentes áreas e departamentos que participaram do Programa e isso, em um primeiro momento, devido às próprias atividades formais do PRA que eram intensas e envolviam várias reuniões coletivas, conforme comenta um professor: “O Residência funcionou como um imã de aglutinar pessoas que têm de muito tempo, historicamente, esse envolvimento com a questão agrária”. Estes espaços de encontro (em alguns casos, reencontro) extrapolavam os assuntos, propostas e atividades planejadas pelo PRA, deles surgiam além de muito aprendizado, troca de experiência, propostas mais amplas e ousadas, um despertar e desabrochar de ideias e sonhos.

Os estudantes, muitas vezes, utilizam esta experiência para elaborar seus Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) ou Estágios Obrigatórios, e para isso é necessário um professor orientador, assim, professores (que já participaram ou não do PRA) são convidados para orientação destes trabalhos e para avaliação por meio de bancas. Esta tem sido uma maneira de aproximar professores ao PRA, seja para dar continuidade à parceria com o Programa ou para ampliar a rede de parceiros e assim divulgar e fortalecer as ações do PRA.

Outros professores têm se aproximado do Programa por meio do enfoque da pesquisa. Uma professora contextualiza a situação:

O PRA é visto para fora no CCA como um projeto de extensão, e hoje vivemos na academia um processo de supervalorização da pesquisa, e a extensão ainda não é uma atividade valorizada, então, os professores, de uma maneira geral, preferem vir ao PRA no diálogo da pesquisa. Professores da Pós-Graduação que têm estudantes querendo fazer a sua pesquisa na área de assentamento, nos procuram para definir que área é essa, qual o perfil, e nós já temos participado dessas bancas em função do PRA.

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Esta mesma professora exemplifica essa procura que vem ocorrendo:

Muito interessante, a área de Solo tem procurado para trabalhar a questão de estudo do solo em uma perspectiva etnográfica. Nós temos tido um diálogo agora com o pessoal da Engenharia Agrícola para trabalhar a questão dos recursos hídricos em área de assentamento, nas áreas da Engenharia de Pesca, também; o Mestrado em Políticas Públicas veio também dialogar conosco nessa perspectiva de trabalhar políticas públicas nas áreas de assentamentos, como Crédito Fundiário, PRONAF, então a gente tem tido um diálogo com alguns cursos de mestrado.

O Programa Residência Agrária vem sendo reconhecido, inclusive pelos centros de Pós-Graduação da UFC, como um locus de referência em trabalhos com enfoque em Reforma Agrária e Agricultura Familiar. Portanto, tem proporcionado este elo entre os assentamentos e os departamentos do CCA e estimulado a ampliação e articulação de professores interessados em desenvolver esse olhar.

No entanto, surgiram diversas justificativas sobre a dificuldade em aproximar os professores para desenvolver trabalhos conjuntos formando uma rede de troca e construção do conhecimento. Entre as justificativas, a mais citada foi a falta de tempo disponível e de sobreposição de horários. Além disso, foi comentado sobre a falta de incentivo e valorização desta prática coletiva pelas instituições de avaliação da produção acadêmica dos professores. Um professor comenta: “Há um grande estímulo pelos órgãos de avaliação das universidades de se trabalhar de forma individualizada. Não temos conseguido ressignificar esse modelo fazendo isso de forma coletiva, é como se fosse mais prático e mais rápido trabalhar individualmente”.

Em relação à dificuldade de envolver novos professores, os argumentos foram: falta de abertura ao novo pelos colegas; falta de identificação com a temática; falta de incentivo financeiro e alguns, embora achem interessante, argumentam que o PRA exige muita dedicação e demanda muito tempo, conforme a fala de um professor:

De professor a gente conseguiu ampliar muito pouco, porque ainda é uma questão de amor e identificação ideológica, [...] não há muita gente disponível para fazer coisas, além de sua jornada de trabalho, que não seja para ganhar dinheiro; é triste dizer isto, mas é a nossa realidade.[...] entra a questão ideológica também, se a pessoa não tem nenhum compromisso de transformação social, o que vai fazer no PRA?

4- O Programa Residência Agrária como uma Política Indutora

Algumas das questões abordadas até aqui já deram indícios e exemplos da potencialidade e

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concretude do PRA funcionar como uma política indutora. Ou seja, a capacidade do Programa de induzir mudanças e transformações em conformidade com seus objetivos e ideologias nos estudantes, professores, cursos, currículos e no próprio Centro de Ciências Agrárias da UFC. Vejamos como isso tem funcionado, segundo a visão de diferentes sujeitos.

a) Segundo a visão dos professores

Dentre 11 professores, oito deram depoimentos reconhecendo a capacidade do PRA funcionar como uma política indutora; três declararam reconhecer este potencial, mas com a ressalva de que isso será concretizado mais a médio/longo prazo, para eles atualmente esta força indutora ainda não existe ou é muito pequena. Um professor comenta: “Os estudantes [do PRA] chegam aqui querendo saber mais: ‘professora, preciso ler mais, estudar mais, porque estou chegando na sala de aula e os colegas então me questionando, então tenho que entender melhor, preciso me preparar mais para fazer um debate, mais consciente e consistente’”. Dois outros professores resumem: “Os alunos funcionam como feedback do que vai acontecendo na universidade, ele movimenta este processo”; “Agora eu acho que tem uma coisa importante: é que vai ganhando pessoas e isso vai funcionando como semente”.

Entre os que declaram ainda não perceber o PRA como uma política indutora justificaram sua reduzida amplitude de ação perante o universo da UFC e do CCA, dificuldades estruturais e financeiras, além de posturas conservadoras dos professores, gestores e dos departamentos, institutos e centros. Segundo os entrevistados, os professores em sua grande maioria são muito fechados a conhecimentos e ideias novas, principalmente se estas questionam o seu fazer profissional habitual. Além disso, e também por isso, os departamentos e centros também são muito inflexíveis e conservadores. Este conservadorismo, de acordo com as entrevistas, é consequência da formação destes professores e em grande parte, somada um a posicionamento político-ideológico.

À medida que o PRA está caminhando, está também constantemente se adaptando e se reavaliando; neste sentido um professor explica uma estratégia encontrada mais recentemente pelo grupo para potencializar esta força indutora de mudanças no CCA, em relação aos estudantes que podem participar do Estágio de Vivência (de graduação) do PRA:

A primeira turma estava no último semestre, a segunda turma, no último semestre, a terceira turma já ampliou para um ano [penúltimo semestre], e a gente viu que ainda não era suficiente, então, como política indutora a repercussão e as mudanças ainda eram muito frágeis, pequenas, tímidas, era uma resposta ainda muito pequena; a partir desse ano, a quarta turma, trabalhamos com os estudantes desde o quarto semestre [...] ainda ficam no mínimo dois anos [na universidade], no mínimo.

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Com esta alteração, os estudantes, além de terem mais tempo para se capacitar, participam por um período maior de outros espaços formais (aulas, outros projetos de extensão e pesquisa) e informais, onde poderão promover e participar de discussões, divulgar as ideologias e ações do Programa. Sobre este potencial do PRA induzir mudanças um professor sugere:

Nós ganhamos um presente, como se o INCRA, o MDA dissessem: ‘aqui um presente para vocês, transformem isso em algo que mude a formação dos profissionais das Ciências Agrárias de uma maneira mais profunda, desçam isso daí pro 7º, pro 3º, 1º semestre’. O ‘como’ é um grande desafio, aí teria que contagiar todos e não só o grupo que está lá no PRA [...] Eu teria a ideia de que os projetos pedagógicos dos cursos das Ciências Agrárias poderiam ser revistos tendo como referência o PRA, é inegável, está aí, é algo positivo, avaliado, de sucesso, se você não tinha parâmetros, ou com os parâmetros que você tem, agregue este e faça a revisão crítica do modelo.

A sugestão acima seria um excelente caminho para alavancar este processo de reconstrução do modelo de formação promovido pelas Ciências Agrárias da UFC, já que leva em consideração as experiências e os aprendizados vivenciados no próprio contexto do CCA, não é uma proposta descontextualizada e abstrata.

b) Segundo a visão dos estudantes

Conforme citado pelos professores, os estudantes são capazes de levar estas discussões e aprendizados para outras pessoas e espaços no âmbito da universidade. Sobre isso, oito estudantes que participam atualmente do PRA foram entrevistados com as seguintes perguntas orientadoras: “Você acha que consegue levar as discussões, reflexões e vivências que está tendo agora no PRA para outros espaços da Universidade, sejam espaços formais ou informais?”

Cinco deles disseram que conseguem levar essas discussões para ambos espaços e três declararam que discutem esses temas apenas em espaços informais. Houve exemplos de partilha desses assuntos em espaços formais, como durante aulas, apresentações de seminários, outros projetos de extensão, congressos, seminários, estágios. Vejamos um depoimento:

É tudo tão novo para a gente que, quando a gente retornou do acampamento, tinha muito mais coisa que queríamos falar o tempo todo, não só dentro do Residência mas na sala de aula, com os colegas, no outro estágio que eu tinha, onde peguei e mostrei as fotos; em todos os momentos eu falava disso para todo mundo, e foram coisas tão boas que acho que comecei até a mudar a visão que as outras pessoas também tinham, como

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Recriando a formação nas Ciências Agrárias para uma atuação com maior compromisso social: Estudo de caso do Programa Residência Agrária na UFCE

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eu; eu falava com aqueles olhos muito vivos, aquela alegria, então, acho que transmiti essa energia para todo mundo.

Esses discentes percebem que os temas trabalhados no PRA são considerados polêmicos, principalmente devido a área de atuação ser em assentamentos da Reforma Agrária.

Tem colega meu que tem preconceito, quando falamos em questão de acampamento e assentamento, há muita gente na graduação que só conhece o que a mídia transmite, até mesmo na universidade, a gente tem várias discussões com os colegas para explicar um pouco como que é a vida dessas pessoas, não é bem como eles imaginam.

Se os universitários, a elite intelectual, estão vulneráveis a ter suas opiniões manipuladas pela imprensa, que dirá a população como um todo, que tem nestes meios, na maioria das vezes, suas únicas fontes de informação. Portanto, o PRA proporciona não apenas a releitura desta realidade por meio de estudos e de uma formação direta realizada nas vivências nos assentamentos, mas o desenvolvimento de um pensamento crítico, inclusive em relação ao poder e interesse da mídia. Uma aluna fala sobre isso: “Acho que esse é o pensamento de quase todos que estamos aqui [no PRA], é ficar aqui para estudar e também ir fazendo um paralelo com o que a gente recebe lá [nas disciplinas], tentar formar uma opinião realmente nossa, uma coisa crítica e a partir daí, passar isso para frente”.

Por fim, os atuais estudantes que participam do PRA o reconhecem como uma política indutora, acreditam que eles podem influenciar na mudança da formação das Ciências Agrárias, porém ressaltam que isso irá acontecer aos poucos: “Isso é uma coisa que a gente está trabalhando, porque eu acredito que a maioria que está aqui ainda se considera sementinha.”

c) Segundo os egressos do Programa Residência Agrária que ainda se relacionam com a UFC

Entrevistou-se seis estudantes que participaram do PRA e concluíram as duas etapas do Programa e que voltaram a frequentar a universidade formalmente, por meio do mestrado, como professor substituto ou como instrutor bolsista do próprio PRA. Abordou-se as seguintes questões: “Você conseguiu levar sua formação adquirida no PRA para outros espaços em que atuou na UFC?” e “Você acredita que o PRA tem funcionado como uma política indutora na mudança do perfil dos profissionais das Ciências Agrárias da UFC?” Todos os seis entrevistados disseram que conseguem levar as discussões e experiências que vivenciaram durante o PRA para os espaços onde atuam/atuaram dentro da UFC, em maior ou menor grau.

Antes de explicar de que maneira levam estas discussões para outros espaços da universidade, cinco estudantes ressaltaram o impacto do PRA na sua formação:

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O PRA muda a visão de universidade, muda a visão acadêmica, do que é fazer ciência, e muda também a forma de pensamento, de produzir pesquisa, para quê publicizar isso, para quem fazer extensão. Eu acho que a todas essas perguntas, a gente sempre vai levar essa visão crítica, autocrítica. Quem participou do PRA vai sempre levar estas questões em todos os lugares, dentro da pós-graduação, dentro do próprio exercício da profissão.

Por meio dos depoimentos e do entusiasmo demonstrado, foi possível perceber a importância que o PRA teve em suas vidas, tanto no aspecto profissional quanto pessoal. O fato de o PRA ter propiciado aos seus estudantes mais sensibilidade, identificação, respeito, senso crítico e compromisso em relação às causas da Reforma Agrária e seus sujeitos e ter mexido com as emoções e causado transformações nesses profissionais, relaciona-se com a metodologia utilizada (inspirada na Pedagogia da Alternância) de realmente vivenciar a realidade dos assentamentos. O fato de os estudantes serem “adotados” pelas famílias assentadas durante os Tempos Comunidade proporciona uma relação bastante próxima, desencadeando emoções entre estes sujeitos, como o carinho e o amor. Esta realidade está em sintonia com o pensamento de Maturana (2000), de que precisamos ter relação, conhecer o outro, sentir amor, para que o reconheçamos como legítimos e nos importemos com ele, para que transformemos a nós mesmos e a realidade em que vivemos.

Esses profissionais colocaram sua opinião de acordo com a realidade de cada um dentro da UFC. Abaixo o depoimento de duas egressas do Programa que, posteriormente, atuaram como docentes na UFC:

[...] sempre eu tentava fazer um elo [nas aulas] de como é a realidade do rural, e trazia a minha experiência, até pela vivência que eu tinha tido; [...] você acaba em uma militância de desconstruir a visão que se tem do rural atrasado, do urbano que é progresso. [...] pelo menos algumas pessoas a gente sensibiliza, eu acredito que eles passam a ter um olhar diferente.

[...] eu atribuo muito à questão de estar sendo professora ao Curso de Especialização [do PRA], foi onde eu me apaixonei pelo rural [...] e agora estou realizada, porque estou repassando aos alunos o que aprendi, então, dentro da disciplina faço viagens com os alunos para mostrar a realidade dos assentamentos de Reforma Agrária aqui do Ceará, os levamos para palestras, para discutir a realidade da Agricultura Familiar, tudo que está havendo sobre os Movimentos Sociais a gente coloca também [...] e como a gente quer formar profissionais que estejam identificados com isso, isso eu aprendi no Residência Agrária, lá, na minha disciplina, trabalho muito a sensibilidade dos alunos, o senso crítico, para que eles realmente façam uma reflexão da realidade.

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As profissionais, que após o PRA fizeram mestrado, relataram como levam sua formação para esses espaços formais dentro da UFC: “Se você fala ‘fiz o PRA’, a turma para e diz: ‘fale como é, ‘o que foi que você fez lá’ ?”. Outra profissional coloca a importância que o Programa conquistou dentro da academia:

Eu acho que o PRA tem um efeito mais abrangente dentro de um contexto mais acadêmico, porque ele começou a propiciar algumas discussões que são muito mais políticas do que técnicas [...] a contribuição de longe que ele deu foi propiciar e fortalecer essa discussão e de não ser simplesmente um grupo isolado, mas um Programa que tem repercussão e visibilidade dentro da Universidade [...] eu acho que abriu novos horizontes de debate dentro da Universidade. O Residência Agrária tem feito um contra-senso, está se confrontando com os modelos de curso que estão aí no CCA. Acho que a primeira contribuição agora é ter esta opção para aqueles estudantes que querem seguir esse caminho, não querem seguir o que está posto. É para a Universidade um referencial de Agricultura Familiar e de Reforma Agrária, hoje somos muito chamados para tratar destes temas em outros espaços.

Este depoimento, assim como o de alguns professores, nos remete à reflexão da importância desta inserção de espaços na Universidade e no CCA, que conjugue formação técnica com uma formação política, só assim torna-se possível desenvolver um pensamento crítico, e sobre isso Gadotti coloca:

Porque insisto na primazia do político sobre o científico e técnico? Porque o inverso, isto é, a primazia do especialista sobre o político, tem ajudado a burguesia a manter seu monopólio sobre a ciência e a técnica. Isto está claro nos manuais técnico-científicos utilizados em todos os graus de escolaridade. As questões ‘para que serve’, ‘contra quem serve’, ‘porque’ – que são questões políticas –, são sistematicamente evitadas (GADOTTI, 1998, p.115).

Pode-se perceber como a formação do PRA é marcante na vida dos seus participantes; eles acabam repassando esses conhecimentos com tanta vontade e verdade, em ações carregadas de emoções e amor, com um interesse solidário e coletivo, que se acredita que isto acaba facilitando as pessoas escutarem e refletirem, além de falarem de algo que não só estudaram, como também vivenciaram.

d) Segundo a visão de uma liderança de um Movimento Social do campo parceiro do Programa Residência Agrária

Ela primeiramente coloca o potencial do Programa em mudar o olhar dos professores e estudantes em relação aos MS do campo, e isso representa um primeiro e importante passo na indução de mudanças na formação promovida pelo CCA: “Muitos professores da

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universidade têm preconceito com o Movimento, mas os professores que se aproximaram da gente têm um outro contraponto, porque estes conviveram de perto, não é só aquela visão que a imprensa passa para eles, mas daquilo que de fato ele vivenciou”.

Em seguida ela comenta sobre as contribuições que o PRA proporcionou ao Movimento:Tem conseguido, por exemplo, avançar no ponto de vista da aproximação com

a reitoria, com a direção do Centro [CCA], a gente tem conseguido entrar, conquistar espaços, colocar essas questões e aproveitar.[...] para mim, continua ainda muito grande o afastamento da Universidade da questão da agricultura, mas de fato teve uma melhora com esta aproximação do PRA, da gente ir lá, há coisas que eu não sabia dentro da Universidade, que eu não conhecia e que com esta discussão a gente conseguiu aproximar e entender melhor.

Esta interação entre os MS do campo e a Universidade, para além do PRA, representa uma grande conquista que precisa ser mantida e alargada cotidianamente. Os depoimentos explicitados neste tópico nos remetem à potencialidade do PRA em contribuir na construção de um Centro de Ciências Agrárias e de uma Universidade mais comprometida com a justiça social, conforme comentado por Gadotti:

Se uma esperança existe para que a Universidade transite do velho para o novo, a estratégia deve ser: acolher os anseios e interesses da população excluída dos benefícios da industrialização, do trabalho, do capital acumulado. É assim que ela se educa. Estudantes e professores ultrapassando muros para aprenderem junto à população, não por curiosidade intelectual, mas porque aprendem ensinando. (GADOTTI, 1998, p. 120)

5- Desafios para a institucionalização do Programa Residência Agrária na Universidade Federal do Ceará

Mesmo o Programa Residência Agrária já tendo conquistado certa visibilidade e reconhecimento no Centro de Ciências Agrárias e fora dele, ainda é um Programa muito frágil, já que concentra sua responsabilidade em um pequeno grupo de professores, e que depende de parcerias externas para continuar existindo. Portanto, para o PRA conquistar maior estabilidade, se consolidar, ele precisa ser assumido e reconhecido dentro da estrutura da Universidade, conforme comenta uma professora:

Nós temos uma inquietação que é a de que nós crescemos, nós temos tido um reconhecimento interno, no CCA, na Universidade, temos tido demanda dos professores para trabalharem conosco, temos tido uma demanda grande do mercado de trabalho buscando nossos alunos, temos estudantes nossos se credenciando para fazer mestrado, atuando como professores substitutos, mas o formato do PRA não é ainda o formato

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institucional, ele tem ainda um formato de extensão, embora a gente faça pesquisa, extensão e, de certa forma, ensino. [...] E por que essa vontade (de institucionalizar o PRA)? A gente vai ter muito mais professores envolvidos, vai ter muito mais condições de atender mais estudantes, de garantir alguns recursos e de marcar, mesmo, espaço na Universidade; mudou a política, mudou o presidente, mudou o reitor, mas o PRA ainda existe.

Por fim, compreende-se que a institucionalização do PRA é ação estratégica para legitimar e valorizar suas ações, para facilitar a captação de recursos, garantir a continuidade e ampliação de suas atividades, agregar mais professores e parceiros, atender mais estudantes. Além disso, é carregado de um valor simbólico, representa a conquista oficial de um espaço contra-hegemônico na academia, espaço demandado inclusive por sujeitos historicamente oprimidos, os camponeses, e também a eles dedicado e por eles conquistado.

Considerações Finais

Acredita-se que o Programa Residência Agrária da UFC venha alcançando objetivos abrangentes contidos na sua Norma de Execução87 n° 42/2004, como: “Estabelecer diálogo e iniciativas concretas com as universidades, a fim de promover e ou reforçar a reflexão crítica, seja da realidade rural brasileira, seja da formação técnica desenvolvida nestas instituições”; “fortalecimento de parcerias para ações coletivas de pesquisa e extensão”; “desenvolver modelos de gestão que possibilitem construir mecanismos de produção, aplicação e avaliação de conhecimentos e práticas, por meio de ações democráticas, para que possam contribuir na construção da cidadania e no controle social das Políticas Públicas”.

O PRA possui grande potencial em despertar e sensibilizar estudantes e professores por meio de estudos, discussões e, principalmente, pelo contato com os sujeitos do campo e suas realidades, sobre a necessidade de mudança e recriação da formação promovida pelos cursos das Ciências Agrárias para um fazer acadêmico e profissional voltado à transformação da realidade, rumo a uma nação mais justa e sustentável. Foi possível diagnosticar que o PRA, mesmo cercado de dificuldades e desafios, se mostra um espaço carregado de emoções, sonhos, otimismo, e isto contribui com uma perceptível “vida” e dinâmica ao trabalho desenvolvido pela equipe.

O PRA é capaz de reforçar e amadurecer reflexões críticas sobre o papel social da Universidade; à formação promovida pelos cursos das Ciências Agrárias; à Reforma Agrária, à Agricultura Familiar. Além disso, pode ser considerado estratégico para o fortalecimento

87 Norma de Execução do MDA que estabelece critérios e procedimentos referentes ao Programa.

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da Reforma Agrária brasileira, na medida em que possibilita a superação de preconceitos e a abertura de portas de cooperação.

Embora o PRA tenha o objetivo principal de formar (ou reformar) os profissionais que atuam ou pretendem atuar como agentes de ATER, esta é apenas uma expectativa, já que estes profissionais irão trabalhar onde escolherem. Em um primeiro momento, isto pode parecer preocupante, pode levar a interpretações da ocorrência de um desperdício de recurso e energia, caso estes estudantes não se tornem ou continuem atuando como técnicos extensionistas88. Porém, percebeu-se como a participação neste Programa é marcante na vida destes estudantes89, eles fazem questão de enfatizar como o Programa Residência Agrária mudou suas vidas, como se tornaram mais críticos, donos da própria opinião e comprometidos com os MS do campo, com a Reforma Agrária e com a construção de um novo modelo de desenvolvimento e de nação mais justo e solidário. Portanto, evidências foram obtidas de que estas ideias e experiências ficam tão fortemente marcadas na vida destes estudantes, que, onde quer que eles estejam atuando, estarão discutindo e contagiando as pessoas com quem trabalham e convivem, sobre suas ideias. Estarão contribuindo com os propósitos maiores do Programa Residência Agrária, do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, da Educação do Campo.

88 Embora tenha se diagnosticado, por meio de conversas informais com os entrevistados, que a maioria realmente tem se tornado técnico de ATER e ATES.89 Mesmo nos casos em que a entrevista ocorreu mais de dois anos após o término do Curso de Especialização.

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O Curso Técnico em Enfermagem da UFPB a serviço dos assentamentos da Reforma Agrária na Paraíba

Eliete Alves da Silva Luiz | Gonzaga Gonçalves | Bernadete de Oliveira

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Referências

ARAUJO, M. et al. A prática da indissociabilidade do ensino-pesquisa-extensão na universidade. Rev. Bras. de Agrociência, v.4, no 3, p.177-182, set.-dez.,1998.

BUARQUE, C. A Aventura da Universidade. São Paulo: Editora da UNESP, 1998, 239p.

GADOTTI, M. Educação e poder: introdução à pedagogia do conflito. 11ª ed. São Paulo: Cortez, 1998.

MATURANA, H. Transdisciplinaridade e Cognição. In: NICOLESCU, B. et al. Educação e Transdisciplinaridade. Brasília: UNESCO. 2000.

MOLINA, M. C. A contribuição do PRONERA na construção de Políticas públicas de educação do campo e Desenvolvimento sustentável. 2004. 165p. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável). Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília, Brasília.

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PARTE 3

AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO

E O FUTURO

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O PRONERA e as políticas públicas de Educação do Campo –uma reflexão em perspectiva para subisidiar o futuro

Clarice Aparecida dos Santos

PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

O PRONERA e as políticas públicas de Educação do Campo – uma reflexão em perspectiva para subsidiar o futuro

Clarice Aparecida dos Santos90

São os homens em grupos e confrontando-se como classes em conflito, que “fecham” ou “abrem” os circuitos da história.

(Fernandes, 1997:5)

O presente artigo cumpre com o dever de apresentar uma reflexão acerca do que seriam as perspectivas e os desafios para o PRONERA, desde a experiência de tê-lo coordenado, com todos os limites institucionais e jurídicos enfrentados, mas ao mesmo tempo carregado e sustentado pela força acumulada pelos diversos atores, desde a sua criação, que juntos, consolidaram o PRONERA como uma política pública, como instrumento institucional do Estado brasileiro, na execução de um projeto de Educação do Campo para os assentados da Reforma Agrária.

A reflexão aqui apresentada não é exclusividade da autora, portanto, não é solitária, trazendo elementos de análises coletivas e também individuais. Coletivas, por tratar-se da sistematização de amplos debates realizados em diversas instâncias e fóruns nacionais e estaduais da Educação do Campo, especialmente com os professores e as professoras das universidades e com os militantes da área de educação nos Movimentos Sociais do campo, notadamente a Contag e o MST, todos participantes da Comissão Pedagógica Nacional do PRONERA. Individuais, na medida em que a responsabilidade, por responder publicamente por um Programa de governo, confere aos indivíduos atribuições que não se delegam, e tais atribuições acabam por impor a necessidade de compartilhá-la, tendo em vista o futuro, justamente por tratar-se de matéria pública, de todos.

Está, portanto, na responsabilidade dos gestores públicos compartilhar sua visão, suas inquietações, as necessidades e as condições pelas quais um Programa como o PRONERA pode consolidar-se no imaginário da sociedade e no ordenamento jurídico do Estado.

90 Mestre em Educação. Atual coordenadora-geral de Educação do Campo e Cidadania. Coordenadora Nacional do PRONERA-MDA/INCRA

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O PRONERA e as políticas públicas de Educação do Campo –uma reflexão em perspectiva para subisidiar o futuro

Clarice Aparecida dos Santos

PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

Educação do Campo e Políticas Públicas – a trajetória de afirmação do direito pelo protagonismo dos Movimentos Sociais do campo

Políticas públicas são aqui entendidas como o “Estado em ação” (Gobert, Muller, 1987, apud Höfling, 2001.p.32); é o Estado implantando um projeto de governo, por meio de programas, de ações voltadas para setores específicos da sociedade.

Na concepção expressa neste artigo, as políticas públicas se definem, implementam, reformulam ou se extinguem com base na ação e no acúmulo de organização social, de acordo com a maior ou menor capacidade de hegemonização da sociedade em disputar a ação do Estado.

Para Azevedo,As políticas públicas, como qualquer ação humana, são definidas, implementadas,

reformuladas ou desativadas com base na memória da sociedade ou do Estado em que têm curso. Constroem-se, pois, a partir das representações sociais que cada sociedade desenvolve a respeito de si própria. Segundo esta ótica, as políticas públicas são ações que guardam intrínseca conexão com o universo cultural e simbólico, ou melhor dizendo, com o sistema de significações que é próprio de uma determinada realidade social. (AZEVEDO. 2001, p.14)

O que significa dizer que as políticas públicas têm força para materializar-se, a partir da condição basilar que vem da maior ou menor organização de cada segmento social, mas também de acordo com a potencialidade de alargamento do imaginário da sociedade, em relação aos direitos sociais que as classes reivindicam e que tais políticas preconizam.

É preciso compreender que ações, neste campo da educação, estabelecerão as condições de reversão do quadro atual de hegemonia absoluta dos interesses privados sobre o espaço público, no imaginário da sociedade. O que confere às políticas públicas uma natureza permanentemente instituída e instituinte. É por este caminho que seguiremos a reflexão no campo do direito dos camponeses e, neste caso, os assentados da Reforma Agrária, a um projeto de Educação do Campo, uma vez que, tendo o direito ao conhecimento assegurado, este traz consigo a chave para abrirem-se as portas dos direitos humanos, civis e políticos como um todo.

Para Vernor Muñoz, relator especial da Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas sobre o Direito à Educação, “a educação possui uma ontologia própria, que se manifesta em todas as dimensões da vida. Nesse sentido, a interrelação dos direitos humanos nunca se demonstra tão evidente quanto nos processos educativos.” (apud HADDAD. 2006,p.43)

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O PRONERA e as políticas públicas de Educação do Campo –uma reflexão em perspectiva para subisidiar o futuro

Clarice Aparecida dos Santos

PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

Ainda segundo o autor, “o fato de o direito estar garantido em leis nacionais significa que o direito à educação foi consagrado pelo Estado como um direito fundamental, estabelecido entre os direitos sociais. No entanto, a vigência dos direitos humanos é anterior e independe desse formalismo jurídico, por estar relacionado à garantia da dignidade humana, preceito que se sobrepõe a todos os poderes constituídos”. (idem ibidem). Os direitos humanos e a consciência sobre os mesmos é que move a luta social capaz de elevá-los à condição de direitos sociais, e de universalizarem-se por meio das políticas (sociais) públicas.

Por isso, compreende-se direitos humanos como processo. Porque se universalizam na mesma medida em que avança o processo de organização das populações, cujos direitos estejam sendo violados. Tal afirmação está assentada tanto na experiência concreta da sociedade brasileira em relação à educação, quanto na experiência particular em relação à Educação do Campo. Foi a partir da iniciativa de Movimentos Sociais de camponeses em luta pela terra, que conquistam visibilidade e reconhecimento quando levam a luta pela Reforma Agrária para a cidade e quando levam a luta pela educação para dentro da Universidade.

Maria da Glória Gohn, ao analisar a participação e o protagonismo dos Movimentos Sociais no Brasil, afirma:

O que gera os Movimentos Sociais são organizações de cidadãos, de consumidores, de usuários de bens e serviços que atuam junto a bases sociais mobilizadas por problemas decorrentes de seus interesses cotidianos. Eles não existem a priori, tornam-se movimentos pelas ações práticas dos homens na história. Organização e consciência (grifo nosso) serão fatores decisivos para explicar o seu desenrolar. (2006, p.174)

Os Movimentos Sociais constituem-se, desta forma, em um aperfeiçoamento da consciência da sociedade em relação aos direitos, uma vez que concretizam, na forma de organização social, a elevação da consciência individual para a consciência coletiva, a elevação do nível cultural dos cidadãos e das cidadãs, na medida em que superam a busca isolada pelas soluções de seus problemas imediatos e ascendem à busca coletiva. Quando compreendem que as razões e as causas de seus problemas não são isoladas, mas dizem respeito às circunstâncias da luta de classes.

Assim, denominam-se Movimentos Sociais porque, por este movimento da consciência coletiva, desencadeia-se um processo de compreensão acerca dos problemas e dilemas de toda a sociedade; de que os problemas que os atingem, bem como as causas de tais problemas, não dizem respeito somente a eles, mas dizem respeito à sociedade. E que os problemas que atingem a sua classe dizem respeito a si próprios. E passam a articular-se em torno de um projeto político, um projeto de Nação desde os interesses de classe, e por este

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O PRONERA e as políticas públicas de Educação do Campo –uma reflexão em perspectiva para subisidiar o futuro

Clarice Aparecida dos Santos

PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

caminho constroem suas táticas e estratégias de luta, também em relação ao Estado. Pois somente pelo Estado se asseguram conquistas sociais com dimensões capazes de incidir, recorrentemente, sobre a maior consciência organizativa que vai alimentando um círculo virtuoso de quanto maior e melhor organização, maior capacidade de luta e quanto maior a capacidade de luta, maiores são as conquistas e quanto maiores as conquistas...

Sobre tal reflexão, vale a pena recorrer a parte de artigo91 de José de Souza Martins, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, manifestando-se acerca do debate, no STF, sobre a demarcação da área indígena Raposa Serra do Sol.

No Brasil não tivemos, com a força social devida, instituições tradicionais reguladoras dos direitos dos pobres, trabalhadores e desvalidos porque esta era, afinal, uma sociedade escravista, resumida ao mandar e obedecer. As lutas tardias dessas populações, dos banidos da condição de sujeitos e privados do reconhecimento de identidade própria e ancestral, acabaram pondo na ordem do dia a reinvenção do Brasil numa perspectiva pluralista e multicultural. Mesmo no direito de propriedade, a Constituição de 1988 abrandou sua rigidez para acolher a legitimidade do costume quanto à posse e ao uso da terra.

Estamos num momento de recriação identitária e, portanto, de inclusão social não pela assimilação aniquiladora, mas pelo reconhecimento integrador do direito à diferença. Essa tendência histórica pode ser enriquecida ou empobrecida, dependendo do que o STF decidir, pois ele dirá se a diferença é um direito universal ou se há brasileiros de primeira e de segunda, em que a diferença continuará residual, como um defeito de caráter (MARTINS, 2008).

Os camponeses organizados nos seus Movimentos Sociais e Sindicais, ao afirmarem a diferença para enfrentar a desigualdade, afirmam a diferença para continuar existindo como sujeitos coletivos de direitos, e, como assinala José Geraldo de Sousa Júnior, “cuja consciência política o torna protagonista em sua própria história, porque é conflito, mas também projeto”. (2002, p.27), mas também vão instituindo novos direitos. É, assim, tal como Chauí, afirmar os pilares da democracia. Segundo a autora:

Dizemos que uma sociedade – e não um simples regime de governo – é democrática, quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político; ou seja, quando institui direitos (grifo nosso) (CHAUÍ, In: JÚNIOR, J.G.S., 2003. p.334).

91 Jornal O Estado de S. Paulo, 31.08.2008, artigo Em pauta, o direito de ser diferente.

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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O PRONERA e as políticas públicas de Educação do Campo –uma reflexão em perspectiva para subisidiar o futuro

Clarice Aparecida dos Santos

PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

Por outro lado, como já afirmado anteriormente, nos alerta Gohn que,

(...) esse tratamento, quando congelado na execução de uma política pública, deve contar com a presença de espaços públicos novos para operacionalizar as políticas de forma diferente; espaços que sejam realmente representativos, com participação efetiva da comunidade. (...) Se isso não ocorrer, essas políticas levarão à quebra da unidade na questão da igualdade, na medida em que elas são elaboradas fracionando a sociedade. (In.: ALMEIDA. 2007, p.34)

Um conceito de democracia que incorpora a necessidade da permanente abertura à instituição de novos direitos, na medida em que a sociedade avança na sua capacidade organizativa, mas também incorpora a necessidade perene de aperfeiçoar os mecanismos públicos pelos quais se efetivam tais direitos. Aperfeiçoamento no conteúdo e na forma das políticas.

A novidade histórica da Educação do Campo e do PRONERA, no Brasil

Talvez esta seja a marca mais incômoda da Educação do Campo (inclusive para certas ortodoxias de esquerda) e sua grande novidade histórica: os sujeitos que põe em cena como construtores de uma política de educação e de uma reflexão pedagógica. É como se ouvíssemos de diferentes lugares políticos, interpelações como as seguintes (ainda que nem sempre ditas nestes termos):

“Como assim desgarrados da terra”, “como assim levantados do chão”92 exigindo direitos, cobrando políticas específicas, discutindo educação, produzindo conhecimento? Puxando a frente das lutas, buscando transformação social? Então os camponeses também querem estudar? E pretendem conceber sua escola, seus cursos? Discutir com professores da Universidade?. (CALDART. 2010, p.) Livro do II ENPEC

Afirmar a Educação do Campo e o PRONERA como novidade histórica, na última década, no Brasil, não se constitui num exercício de pedância da parte de quem escreve ou da parte de quem analisa. Já no número 4 dos Cadernos de Educação do Campo93, afirmam-se as matrizes que, à época, compunham a identidade de um projeto de Educação do Campo. Permita-se, aqui, trazer à atualidade tais matrizes, para colocá-las em diálogo com a história construída desde então e com a própria realidade que estabelece as condições para validá-las. Ou não.

92 Nota do texto original: “As expressões ‘como assim’, ‘desgarrados da terra’ e ‘levantados do chão’ se referem à indagação irônica da poesia militante de Chico Buarque de Holanda, na canção Levantados do Chão, feita para o MST, também homenageando a obra de José Saramago e a exposição Terra, do fotógrafo Sebastião Salgado”.93 Cadernos de Educação n.º xx “

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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O PRONERA e as políticas públicas de Educação do Campo –uma reflexão em perspectiva para subisidiar o futuro

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PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

Uma das matrizes principais, senão a mestra, referia-se à matriz do direito, numa nova concepção do que sejam direitos e como tais se asseguram aos povos do campo. Nascia, tal concepção, como reação dos Movimentos Sociais, àquela concepção formal do direito de acesso de todos à educação, direito que não se cumpriu ao longo da história para os camponeses do Brasil.

Afirmar os direitos dos camponeses à educação e, passo seguinte, instituir uma ação do Estado com tal objetivo, num país de profundas desigualdades sociais, como o Brasil, é referir-se à possibilidade de tensões e de conflitos de interesses quando falamos de políticas públicas que instituem os direitos sociais. Porque conflitos e interesses antagônicos são constitutivos de uma sociedade que se propõe democrática, pois “a democracia é a única forma política que considera o conflito legítimo e legal, permitindo que ele seja trabalhado politicamente pela própria sociedade CHAUÍ, in: JUNIOR, 2003. P.334).

Pois bem, não se revelou simples colocar em prática tal matriz, assim como viu-se confirmarem as tensões. Parte do Estado brasileiro tem-se revelado ainda refratário à garantia de tais condições. Expressão singular desta refração foram as várias ações movidas contra a implantação, pelo PRONERA, de cursos na área das Ciências Agrárias (Agronomia e Medicina Veterinária) e na área do Direito. Tais ações continham, como motivação principal, o fato de que o oferecimento, pelas universidades, de um curso específico para assentados, atentava contra a Constituição Federal, pela quebra do princípio da isonomia no acesso ao ensino superior.

Roberto Lyra Filho, em obra denominada, a Dialética Social do Direito, afirma:

A contradição entre a injustiça real das normas que apenas se dizem justas e a injustiça que nelas se encontra pertence ao processo, à dialética da realização do Direito, que é uma luta constante entre progressistas e reacionários, entre grupos e classes espoliados e oprimidos e grupos e classes espoliadores e opressores. Esta luta faz parte do Direito, porque o Direito não é uma “coisa” fixa, parada, definitiva e eterna, mas um processo de libertação permanente. (LYRA FILHO. 2006, p.82)

Nesta concepção,...O Direito não é, nem mais nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem (...)

...

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PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda. (Ibidem, 2006. p.86-88)

Neste sentido, os camponeses, por meio de suas organizações, não fazem mais do que lutar pela afirmação do espaço público porque, nas suas reivindicações por políticas públicas, tensionam permanentemente pela ampliação da esfera pública e precisamente porque direitos sociais privatizados tiram, do Estado, a capacidade de fazer políticas públicas, restando à sociedade disputar no campo privado, onde os pobres tendem a ser anulados.

Os dados sobre educação considerados na Introdução da presente obra são reveladores da necessidade de o Estado mover ações em favor desta parcela da população analfabeta, sem acesso ao ensino fundamental, médio e superior, para que se realize o princípio da isonomia no acesso a tais níveis educacionais, ao mesmo tempo em que legitimam as lutas das diversas organizações sociais representativas dessa população para que as ações se implementem, o que revela ser tão atual quanto o era, há dez anos atrás, postular pela principalidade da matriz do direito e da instituição de política pública específica para assegurar tal direito, seja no nível que for.

O ministro Herman Benjamim, relator, no âmbito do STJ, de recurso especial impetrado pelo INCRA e pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel/RS), contra decisão da Justiça gaúcha em impedir a realização do Curso de Medicina Veterinária para assentados, com base na quebra do princípio da isonomia, assim se manifestou94:

...8. Entre os princípios que vinculam a educação escolar básica e superior no Brasil

está a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola” (art. 3°, I, da Lei 9.394/98). A não ser que se pretenda conferir caráter apenas retórico ao princípio de igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, deve-se a esta assegurar a possibilidade de buscar formas criativas de propiciar a natureza igualitária do ensino.

9. Políticas afirmativas, quando endereçadas a combater genuínas situações fáticas incompatíveis com os fundamentos e princípios do Estado Social, ou a estes dar consistência e eficácia, em nada lembram privilégios, nem com eles se confundem.

Em vez de funcionarem por exclusão de sujeitos de direitos, estampam nos seus objetivos e métodos a marca da valorização da inclusão, sobretudo daqueles aos quais se negam os benefícios mais elementares do patrimônio material e intelectual da Nação. Frequentemente, para privilegiar basta a manutenção do status quo, sob o argumento de autoridade do estrito respeito ao princípio da igualdade.

94 Superior Tribunal de Justiça - Diário da Justiça Eletrônico - Edição nº 692 – Brasília, disponibilização: Quinta-feira, 11 de Novembro de 2010, publicação: Sexta-feira, 12 de Novembro de 2010.

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PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

10. Sob o nome e invocação do mencionado princípio, praticam-se ou justificam-se algumas das piores discriminações, ao transformá-lo em biombo retórico e elegante para enevoar ou disfarçar comportamentos e práticas que negam aos sujeitos vulneráveis direitos básicos outorgados a todos pela Constituição e pelas leis. Em verdade, dessa fonte não jorra o princípio da igualdade, mas uma certa contra-igualdade, que nada tem de nobre, pois referenda, pela omissão que prega e espera de administradores e juízes, a perpetuação de vantagens pessoais, originadas de atributos individuais, hereditários ou de casta, associados a riqueza, conhecimento, origem, raça, religião, estado, profissão ou filiação partidária.

Tal manifestão indica a pertinência de um Programa como o PRONERA, na medida em que ele atua exatamente junto a esta parcela da população brasileira ainda substancialmente alijada do direito, que é a população jovem e adulta que vive no campo, não alcançada pelas políticas de Educação Básica e Superior adotadas pelo sistema universal de ensino. De forma que o PRONERA não é apenas uma política de afirmação do direito à educação, mas no caso dos assentados jovens e adultos, que somam mais de um milhão de pessoas, cujos anos de escolaridade não passam da média de 4,5 anos, trata-se de uma das poucas possibilidades de superar tal situação.

Outra matriz é a vinculação intrínseca entre a educação e os processos de trabalho nos processos produtivos. Os camponeses foram, ao longo deste tempo, descobrindo os instrumentos públicos que lhes facilitou adentrar o mundo letrado, do conhecimento. Ao mesmo tempo em que foram se conscientizando de que o direito ao acesso é fundamental, também aprenderam que tão importante quanto é construir um novo projeto pedagógico onde caibam as suas histórias, as suas experiências e a nova cultura que se forjou desde aí.

Para contrapor-se à lógica hegemônica, segundo a qual a formação profissional deve atuar para incluir a todos no modelo do capital, a Educação do Campo nasce questionando a atual lógica do modelo agrícola, pois carrega uma nova concepção de campo e desenvolvimento que tem a Reforma Agrária como vetor. Uma opção de desenvolvimento com alteração na estrutura agrária, sem negar a modernização técnica e tecnológica. Porém, modernização técnica com mudança social exige nova cultura, para que haja compatibilidade entre a estratégia produtiva, a soberania alimentar, a preservação ambiental e o aperfeiçoamento das relações de trabalho. São estes os grandes desafios, já apontados no artigo de Caldart95, na primeira parte deste livro.

95 Artigo: Educação Profissional no contexto das Áreas de Reforma Agrária - Subsídios para discussão de diretrizes político-pedagógicas para os cursos do PRONERA.

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PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

Não há, para o capital, necessidade de escolas e professores com alto grau de formação no campo. Uma classe trabalhadora desqualificada para um trabalho desqualificado é a necessidade atual da acumulação de capital no campo, nos seus diferentes segmentos produtivos e especialmente, no contexto atual, das quatro cadeias produtivas – cana, soja, agropecuária e celulose.

Chauí adverte que (...) os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas populares estão

em perigo, porque o capitalismo está passando por uma mudança profunda. De fato, tradicionalmente, o capital se acumulava, se ampliava e se reproduzia pela absorção crescente de pessoas no mercado de mão-de-obra (ou mercado de trabalho) e no mercado de consumo de produtos. Hoje, porém, com a presença de tecnologia de ponta como força produtiva, o capital pode acumular-se e reproduzir-se excluindo cada vez mais as pessoas do mercado de trabalho e de consumo. Não precisa mais de grandes massas trabalhadoras e consumidoras, pode ampliar-se graças ao desemprego em massa e não precisa preocupar-se em garantir direitos econômicos e sociais aos trabalhadores, porque não necessita de seus trabalhos e serviços. (2003, p.337)

Os setores dominantes da produção agrícola não demandam altos contingentes de trabalhadores, nem braçais, tampouco intelectuais. Necessitam, quando o fazem, de um tipo de trabalhador medianamente qualificado para operar partes dos sistemas de produção. É o caso do corte da cana, da colheita e do carregamento de sacas nas safras de grãos, ou a operação mecânica das máquinas. Ou daqueles que desempenham funções já descentralizadas pelas indústrias, como é o caso dos camponeses, especialmente do Sul do Brasil, produtores de frango ou suínos que se associam aos grandes conglomerados agroindustriais e exercem as funções mais pesadas e degradantes; assim como os camponeses que plantam florestas para celulose.

São, tal como afirma Oliveira (2004), “as contradições vividas pelo campo no Brasil e no mundo atual”. Para ele, “o mundo se transformou; o Brasil se transformou e novos padrões de acumulação capitalista se instauraram no campo, denominados modernidade ou pós-modernidade”. Onde situamos, então, a Educação do Campo, neste particular da reflexão entre a crítica a um determinado projeto de campo e a construção de um projeto educativo, desde os camponeses?

Frigotto adverte, “que as grandes reformas educacionais dos séculos XIX e XX e ainda neste início de século XXI, colocaram o acento em novas perspectivas pedagógicas, massificação e elevação do nível de escolaridade”, inclusive para a população camponesa,

(...) mas mantiveram uma estrutura dualista e segmentada, ainda que de maneira

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PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

diferenciada, de acordo com o grau de desenvolvimento capitalista. É a Economia da Educação, a construção de um corpus teórico que define a educação como fator de produção, o fator H: a teoria do capital humano. (FRIGOTTO, 1995, P.)

Até meados da década de 1980, o que hegemonizava, as políticas educacionais propostas pelo Estado para as populações do campo, era a necessidade de melhoria dos níveis educacionais necessários à formação de mão de obra mais qualificada para a nova dinâmica da agropecuária e da indústria, demandante de um alto padrão tecnológico. A denominamos de paradigma da educação rural, ainda bastante em voga entre os setores mais atrasados do Estado, cuja premissa parte da ideia de que a esses sujeitos basta um acréscimo marginal de instrução, treinamento e educação, o que corresponde um acréscimo marginal de capacidade de produção, isolando-a de um processo mais amplo de condições de acesso ao conhecimento. Processo este incrementado por um código de comportamento ideal para a classe trabalhadora.

Como assevera Mészarós,

A educação institucionalizada, especialmente nos últimos 150 anos, serviu – no seu todo – ao propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva em expansão do sistema do capital, como também, gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes. (MÉSZARÓS, 2005.p.35)

De acordo com Chauí,

Essa forma de organização da divisão social do trabalho propagou-se para a sociedade inteira. No comércio, na agricultura, nas escolas, nos hospitais, nas universidades, nos serviços públicos, nas artes, todos estão separados entre competentes que sabem e incompetentes que executam. Em outras palavras, a posse de certos conhecimentos tornou-se um poder para mandar e decidir. Esta divisão social converteu-se na ideologia da competência técnico-científica (grifo nosso), na idéia de que quem possui conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção. (2003, p.338)

Portanto, a reflexão sobre a vinculação estreita entre educação e processos produtivos, no caso da Educação do Campo, mantém-se tão atual quanto sempre, na medida em que pese, no caso da Reforma Agrária, ter-se avançado significativamente na destinação de recursos públicos para a implementação de novas políticas de assistência técnica, crédito e infraestrutura produtiva nos assentamentos, boa parte destes recursos são carreados para o complexo agroindustrial-financeiro, por meio da compra de insumos, devido ao fato de, por um lado, não terem-se estabelecido as condições para que os camponeses superassem a cultura do modelo da agricultura dependente de produtos químicos, como venenos e adubos sintéticos, mantendo-se, embora assentados, subalternos ao modelo dominante.

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PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

Por outro lado, o processo educacional não lhes ofereceu as condições para que fossem não somente consumidores, mas produtores de tecnologias capazes de contrapor-se ao modelo. O que se lhes ofereceu foi a negação de um conhecimento que os tornasse capazes de se libertarem, esta é a questão.

Justamente por tratar-se de cultura, é preciso que estejam presentes as condições de avanço da consciência de tal situação e elevação do nível cultural dos camponeses, que um processo educativo pode e deve proporcionar.

Por outro lado, vimos avançar significativamente o ensino profissional e tecnológico, por meio da expansão das escolas técnicas por todo o território nacional e para o interior do Brasil. Ocorre que, contraditoriamente à expansão de um sistema público de ensino médio técnico, estes permanecem como campos de intensa disputa, no que se refere às áreas de conhecimento, pelos setores econômicos privados, diretamente interessados em mera formação de mão de obra para atender às suas necessidades imediatas. Distorção do sistema público de escolas técnicas? Obviamente, não. Contradições existentes no próprio seio da sociedade. É desafio para os camponeses e as suas organizações, para quem elabora teórica e politicamente junto com os Movimentos Sociais, a construção de um projeto pedagógico para as escolas técnicas se colocarem a serviço da formação técnica para a autonomia dos camponeses, em relação a seus projetos de desenvolvimento e de vida no campo.

Uma formação técnica que considere o acúmulo produzido pelos camponeses nos assentamentos, nas unidades de Agricultura Familiar, e em todos os espaços onde exerceu-se o protagonismo não apenas nas lutas, mas também na execução de novos projetos e processos produtivos. O papel do Estado é de estruturar um sistema público de ensino, mas compete à sociedade, por meio de suas organizações, torná-lo o mais público possível, colocando-o como ferramenta para uma nova cultura.

No PRONERA, vários projetos inovaram no desenvolvimento de tecnologias na formação técnica, inclusive criando novos campos, novos cursos, graças à ousadia de professores e universidades. É o caso, por exemplo, das várias turmas de Nível Médio Técnico em Agroecologia, Tecnólogo em Agroecologia, Técnico em Administração de Cooperativas, e inclusive EJA Médio em Comunicação Comunitária, e também de cursos superiores e pós-graduação, por todas as regiões do País, cujos projetos pedagógicos têm sua ênfase na produção de conhecimento para a inovação na perspectiva emancipatória, no âmbito dos assentamentos. Não se trata apenas de copiar o que vem sendo feito, mas de ressignificar, desde a materialidade, o ensino técnico.

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Em relação à terceira matriz, que trata de uma nova concepção de educação para novos processos formativos, como sendo o processo pelos quais os seres humanos se formam e onde estão envolvidas todas as dimensões da vida, tendo o trabalho como eixo, vimos esta última década impor grandiosas questões, tais como a crise do capitalismo que teve seu auge no ano de 2009 e a nova recomposição das forças do capital internacional, que trouxe consigo novos desafios para repensar a educação, desde o pólo do trabalho, especialmente para os continentes do sul do mundo, África, Ásia e América Latina. Segundo Freitas,96 aqui é que está a possibilidade de expansão da acumulação capitalista, por várias razões: disponibilidade de recursos naturais (terra,água) e alta oferta de mão de obra jovem, demandando formação e qualificação profissional.

De certa maneira, o Brasil já está enfrentando estes desafios, pela já citada expansão do ensino técnico. A questão é: para uma nova estratégia de desenvolvimento desde as necessidades do povo brasileiro, no qual o campo tem papel central, que fundamentos educacionais balisarão os processos produtivos e que inovações técnicas, tecnológicas e laborais estruturarão os projetos educativos?

A resposta a tais questões não pode vir unicamente do mundo acadêmico propriamente dito. As respostas ou a continuidade da reflexão que produza acúmulo sobre tais questões estão vindo da interação/interseção entre o que as universidades, o mundo intelectual-acadêmico têm produzido e o que os Movimentos Sociais e Sindicais do campo estão produzindo como estratégias formativas no campo da educação formal.

O PRONERA tem sido um espaço desta interseção, pois aproxima e faz o encontro entre dois mundos historicamente apartados: os processos de formação humana, dos processos de trabalho. O PRONERA produziu, no âmbito do debate acadêmico, o diálogo com uma nova perspectiva de produção do conhecimento e de pesquisa; legitimou a conflito no ambiente da universidade, ao reconhecer os camponeses como sujeitos coletivos de direitos, que entram, coletivamente, como turma específica no ensino superior; estabeleceu um rompimento conceitual, ao reconhecê-los como portadores de conhecimento, e não apenas objeto de pesquisa.

Os novos sujeitos políticos camponeses, que emergiram das novas lutas surgidas entre o final do século XX e o início do século XXI – da questão agrária, do debate sobre um novo modelo de agricultura articulado com a questão ambiental –, necessitam ser reconhecidos pelas suas práticas e pelo acúmulo de conhecimento construído no âmbito de suas

96 Luiz Carlos de Freitas, Anotações de palestra – Florianópolis, Santa Catarina, abril de 2009.

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PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

organizações e de seus Movimentos Sociais, e identificados nas políticas educacionais como portadores de tal patrimônio cultural.

Pois, segundo Arroyo,

(...) os Movimentos Sociais se vêem como movimentos educativos. Este é um traço de todos os Movimentos Sociais. O movimento feminista, indígena, negro, do campo... Todos se propõem à conquista ou garantia de direitos e, sobretudo, à formação da consciência social desses direitos. Todo Movimento Social sabe que toca em consciências, valores, representações, preconceitos, culturas. Daí a ênfase nos aspectos educativos e formadores. Esta consciência do papel educativo e formador tem sido destacada nas experiências de formação de educadores, por exemplo, nas místicas, no apelo às músicas, aos símbolos, à identidade e à memória convertidos em didáticas (...). Esta consciência de ser e pretender ser um movimento educativo será o marco, ou a clave de sentido para o conjunto de ações e propostas nas diversas esferas do movimento. As estratégias de luta, de organização, de criação de escolas ou de cursos de formação encontrarão sua inspiração nessa intenção maior: ser um movimento educativo. (ARROYO, 2005. p.14)

Por mediação do PRONERA, tem-se aberto as portas do mundo acadêmico para os Movimentos Sociais e Sindicais, que renovam permanentemente a agenda, o conteúdo e as matrizes curriculares necessários à Reforma Agrária como eixo de um projeto de desenvolvimento. Trazem novas perspectivas de relações de trabalho e organização da produção; ressignificam a necessidade de especialização do trabalho do campo; atualizam e redimensionam o debate acerca da produção e do acesso a novas tecnologias para a produção; carregam a dimensão da organização social como condição essencial ao processo de desenvolvimento da agricultura camponesa.

Desde estas matrizes, pode-se afirmar igualmente que se produziu uma nova matriz, qual seja, uma política pública de novo tipo, de nova qualidade, na perspectiva de que os cidadãos que vivem no campo se apropriem dos instrumentos públicos como condição de elevação da sua capacidade de intervenção na sociedade.

Importante registrar, neste particular, a observação de Maria da Glória Gohn, acerca deste tema:

O campo dos Movimentos Sociais – como uma área de aprendizagem – envolve ações tanto na educação formal (usualmente denominada como a luta pela escola ou educação escolar), como na educação não-formal (aprendizagens obtidas pela experiência de participar em movimentos, conselhos, projetos e programas sociais, lutar por direitos e cidadania em geral). A luta pela educação formal, escolar, nunca teve grande visibilidade como um ator independente, pois

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Memória e História do PRONERA – Contribuições para a Educação do Campo no Brasil

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O PRONERA e as políticas públicas de Educação do Campo –uma reflexão em perspectiva para subisidiar o futuro

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PARTE 3 – AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO CAMPO E O FUTURO

suas demandas foram, freqüentemente, incorporadas pelos sindicatos dos professores e demais profissionais da educação (grifo nosso), ou por articulações mais amplas, como a luta pela educação desenvolvida no período da Constituinte. (In.:ALMEIDA. 2007,p.41)

Nesta perspectiva, são os próprios sujeitos camponeses que, pelas suas organizações, trazem a questão da educação escolar à condição de questão política, tanto para suas próprias organizações quanto para o Estado brasileiro. O PRONERA nasce de dentro deste contexto, e é este contexto que determina a sua dinâmica, proporciona uma inversão na lógica individual e meritocrática do acesso ao nível médio e especialmente ao nível superior, introduzindo o acesso coletivo aos cursos, e a gestão coletiva e compartilhada dos mesmos. Nisto consiste a novidade histórica da Educação do Campo, cuja materialidade tem sua expressão legítima no PRONERA.

Num país que ainda não superou limites da sua própria realidade em relação à população do campo, que tem como vetor o limite dos trabalhadores rurais no acesso à terra, que ofereceria as condições para o aperfeiçoamento da organização da produção e da propriedade (hoje submetida a forças produtivas atrasadas, baixa produtividade do trabalho, relações sociais retrógradas, baixo acesso a direitos sociais e extensas jornadas de trabalho, especialmente das mulheres) para formas de trabalho com maior especialização, maior produtividade, com tecnologia adaptada às necessidades da sustentabilidade da unidade familiar e para a organização de uma nova sociabilidade camponesa, pode-se afirmar que o PRONERA constituiu-se na possibilidade, ainda que em estreita escala, de acesso às condições estruturantes dessa nova organização da produtividade e dessa nova sociabilidade.

Porque dotado de uma dinâmica interna de gestão que, por um lado, permite avanços, e por outro lado, limita os retrocessos. Permite avanços ao não estabelecer limites nem a níveis nem a áreas do conhecimento. Se as demandas para avançar em determinada região – na produção agrícola ou na geração de renda, ou ainda no aperfeiçoamento à organização social e cultural dos assentamentos – indicam a necessidade de formação em determinada área e se tal demanda for acolhida por alguma instituição de ensino disposta a realizá-lo e, ainda, se o projeto pedagógico atende aos princípios e normativos, o PRONERA apóia; oferece as condições para realizá-lo, estabelecendo parceria institucional entre o INCRA e as instituições de ensino, repassando os recursos para que tal intento se realize.

Estabelece limites ao retrocesso, pela própria forma de organização dos cursos, envolvendo

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os sujeitos sociais participantes no processo de planejamento, acompanhamento e avaliação, obviamente reservadas as atribuições de cada um dos atores do processo, a partir de suas prerrogativas. Essa prática impulsiona os camponeses a se apropriarem de todo o processo educativo, e não apenas sejam “atendidos” como “beneficiários”. Resgata a sua autoestima, a crença na sua capacidade intelectual e organizacional, o que lhes confere uma tal condição de autonomia, irreversível, que os leva a atuar sobre todos os outros setores – no campo da saúde, da arte e cultura, da própria educação dos filhos com altivez e convicção ímpar. Certamente, Paulo Freire, ao olhar para estas experiências, diria que ali se realiza uma ação cultural para a liberdade.

Tal prática não tem-se instituído sem reações. Vide as recentes manifestações evidenciadas por dois veículos de comunicação, como o jornal O Estado de S. Paulo 97 e a revista Época98, ao questionar a legalidade dos cursos superiores para os assentados da Reforma Agrária, desenvolvidos no âmbito do PRONERA, ao considerar a existência de tais cursos como sendo privilégio do qual o conjunto dos estudantes brasileiros não desfruta.

Assim como as ações perpetradas pelo Ministério Público do Estado de Goiás, inicialmente contra a abertura de um curso de Direito na Universidade Federal de Goiás (UFG) e, uma vez tendo sido arquivada a ação, posteriormente seguida de outra ação, desta vez contra a continuidade do Curso99.

Sobre este caso, assim se referiu a revista Época:

A Universidade Federal de Goiás (UFG) patenteou uma nova tecnologia para driblar o mérito no vestibular. Oferece dois tipos de curso de Direito. O primeiro é igual ao que se encontra no País inteiro: os interessados prestam vestibular e são classificados os estudantes que têm as melhores notas. O segundo curso é patrocinado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e oferece 60 vagas para um tipo especial de cota, que não garante vagas em função da cor da pele, da condição social ou da freqüência, em escola pública. O privilégio (grifo nosso) é profissional: apenas assentados rurais e agricultores familiares podem prestar vestibular para concorrer ao curso. É uma espécie de cota-MST. (Época. 30/06/2008,p.56)

Outro caso é, também, ação do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, pelo cancelamento de um convênio entre o INCRA e a Universidade Federal de Pelotas (UFPel)

97 O Estado de S. Paulo, 27/07/2008 – A4. União financia Universidade para quadros do Movimento Sem Terra.98 Revista Época. Edição 528, 30/06/2008, p.56. Cota para os amigos.99 Processo 2008.35.00.013973-0. Ação Civil Pública. Requerente: Ministério Público Federal. Requeridos: UFG e INCRA.

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para um Curso de Medicina Veterinária para assentados, com base em que o oferecimento de um curso específico para assentados da Reforma Agrária feria o princípio constitucional da isonomia no acesso ao ensino superior. Contestando tal alegação, vale reproduzir parte das considerações oferecidas pelo o Juiz Federal Substituto, Dr Everson Guimarães Silva, na sua sentença acerca da Ação Civil Pública100:

Constitui conhecimento basilar que o princípio da isonomia, em qualquer de suas manifestações na Constituição da República, pressupõe, para sua efetivação, o tratamento igualitário aos que se encontram em situação de igualdade e o tratamento desigual daqueles que material ou juridicamente encontram-se em situação desfavorável, para que fique viabilizada a condução de todos os cidadãos a uma condição de paridade (BRASIL. 2009, p.7).

A relatora Vânia Hack de Almeida, da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região assim se manifestou:101

Ademais, com relação à alegação de violação ao princípio da isonomia, cabe esclarecer que a igualdade somente pode ser cotejada entre pessoas que estejam em situação equivalente, sendo levados em consideração os fatores ditados pela realidade econômica e social, que influem na capacidade dos candidatos para disputar vagas nas universidades públicas. Assim, não se há de reconhecer quebra de igualdade no ato administrativo realizado pela parte apelada. O interesse particular não pode prevalecer sobre a política pública; não se poderia sacrificar a busca de um modelo de justiça social apenas para evitar prejuízo particular. (BRASIL, 2007b. p.8 )

Na mesma linha de reação de setores do Estado refratários à ampliação da participação social no ambiente acadêmico, e de maneira particular, à entrada coletiva de camponeses em determinados cursos, o PRONERA sofreu a reação a esta forma de gestão colegiada e coletiva com a participação dos Movimentos Sociais e Sindicais do campo. Acórdão102 do Tribunal de Contas da União, de 2008, determinou ao INCRA a exclusão da participação dos Movimentos Sociais na gestão dos projetos do PRONERA, considerando-os entes estranhos à Administração Pública, em que pese estar amplamente amparado na Constituição Federal, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e no Decreto n.º 7.352/2010, não apenas recomendado, mas estabelecido que os processos educacionais devem ter a

100 Ação Civil Pública n.º 2007.71.10.005035-8/RS – Sentença Pelotas, 20 de março de 2009. Everson Guimarães Silva. Juiz Federal Substituto.101 TRF4, AC 2005.70.00.003167-7, Terceira Turma, Relator Vânia Hack de Almeida, D.E. 07/02/2007 apud Ação Civil Pública n.º 2007.71.10.005035-8/RS – Sentença Pelotas, 20 de março de 2009. Everson Guimarães Silva. Juiz Federal Substituto.102 Acórdão TCU n.º 2.653/08, de dezembro de 2008.

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participação das comunidades na sua gestão, e, no caso da educação, ter a LDB considerado, no seu art. 1º, os Movimentos Sociais como agentes educativos.

Tais reações indicam a necessidade de revisão permanente dos mecanismos da administração pública para que se adaptem aos avanços que a sociedade vai construindo no quesito da participação protagonista da cidadania, que conflita com a cultura política que considera legítimo delegar total autonomia ao Estado para agir em nome da sociedade, e, em não agindo, a sociedade, exaurida pela sua longa espera, decide participar e conhecer os mecanismos que fazem a administração pública se mover.

Por outro lado, a materialidade e a dinâmica do PRONERA permitiram que se ampliasse o debate sobre a instituição de políticas públicas de Educação do Campo com estas características para outros segmentos do campo, como os agricultores familiares, quilombolas, entre outros. Pode-se afirmar que o PRONERA constituiu-se em Programa indutor de novas políticas públicas, nesta perspectiva. Vale ressaltar, no âmbito do MEC, o Programa inicialmente denominado Saberes da Terra, hoje PROJOVEM Campo e o PROCAMPO – Licenciatura em Educação do Campo, este último instituído em mais de 40 projetos junto às universidades públicas de todo o País, que funcionam na perspectiva da alternância dos tempos educativos, outra importante contribuição do PRONERA para a organização metodológica dos cursos, que proporcionou aos jovens e adultos camponeses a viabilidade dos estudos com a permanência no campo.

O futuro das políticas públicas de Educação do Campo e do PRONERA ou os desafios do PRONERA e a Educação do Campo

Um olhar mais apurado sobre tal processo, permite algumas conclusões desafiadoras, embora sempre provisórias, exatamente por tratar-se de processo.

1. A organização da gestão da educação, no Brasil, tal como determinada pela LDBEN, é compartilhada entre União, estados e municípios, que compõem o sistema educacional brasileiro. A União é responsável pela Educação Superior, pela rede federal de ensino profissional e tecnológico e pela normatização do sistema; os estados, pela gestão do ensino médio e os municípios, pelo ensino infantil e fundamental, podendo haver complementação de funções entre os entes federados, de maneira a atender o princípio da universalidade de acesso.

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Pois bem, a Conferência Nacional de Educação (CONAE), realizada em Brasília, em 2010, pautou a questão do Sistema Nacional de Educação como tema central da Conferência e abarcou uma diversidade de iniciativas privadas e públicas, que atuam no campo da educação formal como complementares à ação do sistema educacional. O fez, pelo reconhecimento de que o sistema público institucionalizado, qual seja, a rede de ensino – seja federal, estadual ou municipal, não atende à totalidade da diversidade de necessidades e direitos da população brasileira como um todo, e não atende especialmente aos mais pobres e àqueles que vivem na zona rural – sejam assentados, agricultores familiares, ribeirinhos, pescadores, quilombolas, o que compromete definitivamente a universalização.

São conhecidos os dados do próprio Ministério da Educação de que a rede pública de ensino superior atende a uma parcela menor das matrículas, neste nível de ensino, que a parcela atendida pelas instituições privadas de ensino. Trata-se de matrículas, ou seja, daqueles que estão no ensino superior. Não se trata da demanda por ensino superior. No caso dos assentamentos, a Pesquisa Nacional sobre Educação na Reforma Agrária (PNERA/2004) e a PQRA indicaram menos de 1% tinham acesso ao ensino superior. Onde estudarão estes camponeses? Como estudarão? Embora reconheça-se a ampliação do número de universidades públicas federais como uma das mais importantes conquistas da história da educação no Brasil, no período de 2003 a 2010, e, embora reconheça-se que a expansão dos campi das universidades se deu para o interior do Brasil, além de outras iniciativas como a Universidade Aberta do Brasil (UAB) e a própria expansão dos Institutos Federais, sabe-se que os jovens e adultos das áreas rurais permanecerão sem as condições de acesso, se não forem repensadas as formas de organização dos cursos, quais sejam: o modelo de frequência e a permanência dos estudantes nestas instituições.

O PRONERA atua, desta forma, como política específica integrante das políticas desenvolvidas pelo sistema de ensino, proporcionando a esta população, condições diferenciadas de acesso, com processo de seleção específico; permanência, por meio de apoio à transporte, hospedagem e alimentação dos estudantes; e frequência, por meio da alternância dos tempos educativos, como já bem tratado em artigo103, neste livro.

Além destes componentes, cabe ressaltar a preocupação dos cursos do PRONERA em estimular a necessidade de reestruturação da matriz curricular, articulando os conhecimentos acadêmicos com as práticas e as reais necessidades dos sujeitos do campo.

Tais condições, uma vez asseguradas, têm revelado um alto grau de aproveitamento, por

103 Tempo Comunidade / Tempo Escola: Alternância como princípio metodológico para organização dos tempos e espaços das escolas do campo.

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parte dos alunos, com baixos índices de reprovação e evasão, em todos os níveis, como bem demonstrado em outro artigo, nesta obra.

2. O PRONERA atua como possibilidade de realização daquilo que os(as) camponeses(as) efetivamente projetam para a Educação do Campo, como espaço e lugar de experimentação de novos processos pedagógicos, como laboratório para o que efetivamente pode vir a se instituir pelo sistema de ensino. O Estado, no caso brasileiro, que precisa administrar recursos, pessoas e estruturas num país de dimensões continentais e tão diversas econômica, social e culturalmente, deve criar espaços públicos – e somente ele pode fazê-lo – para viabilizar as novas experiências, no sentido de aperfeiçoar e qualificar as políticas universais. O Estado e as políticas públicas aprendem desta diversidade novas formas de instituir a universalidade.

3. O PRONERA ganha ainda mais sentido na medida em que atua na mediação, pela educação, com as políticas de desenvolvimento dos assentamentos, especialmente com o Programa de Assistência Técnica, Social e Ambiental dos Assentamentos, a ATES, por meio da ação denominada Residência Agrária. Esta ação, já registrada e analisada em livro104 publicado pelo PRONERA especialmente com este fim, realiza o encontro entre os processos educativos e os processos produtivos, no diálogo entre camponeses assentados, técnicos e estudantes universitários, tal como preconizado por Paulo Freire, em seu Ação Cultural para a Liberdade105, mas ressignificando-o, requalificando-o, colocando este diálogo dentro da Universidade, porque colocando não apenas os técnicos e estudantes em campo, mas os camponeses dentro da Universidade, também como estudantes, também como técnicos, todos pesquisadores.

A ação Residência Agrária estabelece uma ruptura com o caráter dual do sistema educacional, ao instituir a concepção do camponês pesquisador e do pesquisador camponês. Mas não somente a Residência Agrária o faz, senão que todos os cursos de formação profissional, no âmbito do PRONERA, colocam os camponeses como os protagonistas de seu próprio desenvolvimento, seja nos processos de alfabetização, pela EJA, seja nos cursos técnico-profissionais ou na formação de educadores pelas Licenciaturas. São os princípios do Programa que asseguram tal característica distinta das demais políticas públicas de caráter universalizante.

Tais conclusões induzem a desafios grandiosos, na perspectiva de consolidação de uma política pública específica e identificada com um projeto de Nação, onde a educação atua no sentido de aperfeiçoar os caminhos pelos quais os cidadãos que vivem no campo participem da repartição dos bens e das riquezas econômicas e culturais que produzem nos territórios conquistados.

104 BRASIL. MDA/INCRA/NEAD. O Programa Residência Agrária. Brasília, DF: 2009.105 FREIRE, P. Ação Cultural para a Liberdade. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra. 1981. 5º Ed.

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Tais desafios deverão ser as questões a serem enfrentadas, no futuro, na execução, gestão e interrelação do PRONERA com as demais políticas relacionadas aos assentamentos.

Aperfeiçoar os mecanismos de execução do PRONERA, para que os sujeitos do campo se consolidem como parceiros que, ainda que atuando na conflitividade com o Estado, por ele, consolidem seus processos educativos no contexto de um desenvolvimento que lhes seja significativo e na perspectiva do aperfeiçoamento de suas capacidades inovadoras e autônomas, é uma importante questão.

Outra, refere-se à necessária superação de um determinado senso comum presente nas instituições do Estado, em torno do qual a educação deve servir para preparar as pessoas para o trabalho, naquela concepção de trabalho manual, em que o sucesso da Reforma Agrária depende de comprovar para a sociedade que os assentados são merecedores de tal política, pelo viés meramente econômico, de renda. Já é tempo de considerar-se, entre os parâmetros de qualidade dos assentamentos, as capacidades desenvolvidas pelos sujeitos que ali vivem, trabalham e reconstroem suas vidas, em organizarem-se de forma autônoma para encontrarem os caminhos para a superação dos seus limites econômicos e culturais e disputarem, com as forças hegemônicas, os instrumentos e os recursos públicos necessários à realização de seus projetos.

Por outro lado, é inegável a necessidade de articularem-se os processos educativos com os processos produtivos e sociais das comunidades, tal como já refletido neste artigo. Articulá-los pela mediação de outras políticas desenvolvidas pelo INCRA/MDA, tais como o Programa de incentivo à agroindustrialização nos assentamentos, denominado TERRASOL, os Pontos de Cultura106, entre outros, fazendo com que o ensino formal técnico e profissional encontre um lugar de aprofundamento e intersecção com os processos de capacitação na produção e com a produção das áreas de Reforma Agrária, assim como conquistem-se os espaços públicos onde se formam os sujeitos para uma nova sociabilidade, como as escolas, as equipes de saúde pública e os meios de comunicação, produção e difusão cultural.

A experiência na execução de um Programa com tais características induz à permanente abertura para a reflexão em torno de tais questões. A novidade está em que são tratadas – e assim devem continuar a sê-lo – desde e com os trabalhadores do campo, legítimos protagonistas e responsáveis pelos avanços conquistados, desde a história mais remota, na Reforma Agrária, e na história mais recente do Brasil, também na Educação.

106 Programa desenvolvido pelo Ministério da Cultura

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