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Universidade Federal do Rio de Janeiro
RAZÕES OCULTAS:
representações do conservadorismo na composição vanguardista das
Memórias sentimentais de João Miramar
Everardo Borges Cantarino
2013
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
RAZÕES OCULTAS: representações do conservadorismo
na composição vanguardista das Memórias sentimentais
de João Miramar
Everardo Borges Cantarino
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do Título de Mestre em
Ciência da Literatura (Teoria Literária)
Orientador: Prof. Doutor André Luiz de Lima Bueno
Rio de Janeiro
Julho de 2013
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Para meu filho Fábio
que com o seu grande poder de síntese
buscou uma solução para logo me ter a seu lado:
“Eu escrevo tudo em duas páginas”.
Para Sandra
por mais esta estrada percorrida juntos.
Para meus irmãos
pelo apoio e compreensão.
À memória de meu pai
Plinio Jotta Cantarino
E para minha mãe querida
Elbia Borges Cantarino.
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AGRADECIMENTOS
A André Bueno, meu orientador, pelas observações decisivas e por toda a sua
contribuição desde a época da graduação.
Aos Professores Eduardo Coelho e Eleonora Ziller Camenietzki, meus primeiros
leitores, pela gentileza de comporem a banca examinadora.
À Pró-Reitoria de Ensino, à Direção-Geral do Campus São Cristóvão III e à Chefia
do Departamento de Língua Português e Literaturas do Colégio Pedro II, pelo
afastamento para estudos que facilitou a realização deste trabalho.
Aos servidores do Colégio Pedro II, que pela luta conquistaram a transparência na
normatização que hoje regulamenta o afastamento para estudos.
A Fátima, secretária do Programa de Pós-Graduação, pelas informações sempre
precisas.
Às amigas Elaine Correa Barbosa Ramos e Elisa Maria Soares Fernandes Vieira,
pelas parcerias na vida e no trabalho.
A Sandra Lopes Machado e Natália Cantarino Féres, pela colaboração.
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Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.
Paulo Leminski
No fim de sua vida, em 54, levei-o à 2ª Bienal. Era no Ibirapuera de Niemeyer, da
oficialização definitiva da arquitetura e da arte moderna que daria Brasília.
Estávamos naquela tarde praticamente sós, sob as arrojadas estruturas de concreto
e cercados de arte abstrata. Oswald sentia-se como um dos principais autores
daquela conquista. Ele chorou. Era como se tivesse vencido uma longa batalha.
Sentia-se apoiado e com a razão. Era algo que acontecia na sua cidadezinha
provinciana, depois de uma vida de trabalho.
Rudá de Andrade
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Cantarino, Everardo Borges A553.2mec Razões ocultas: representações do conservadorismo na
composição vanguardista das Memórias sentimentais de João Miramar / Everardo Borges Cantarino. – Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.
ix, 153 f. ; 30 cm Orientador: André Luiz de Lima Bueno. Dissertação (Mestrado): Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Faculdade de Letras, Departamento de Ciência da Literatura, 2013.
Referências bibliográficas: f. 147-154. 1. Andrade, Oswald de, 1890-1954. Memórias sentimentais de
João Miramar – Crítica e interpretação. 2. Andrade, Oswald de, 1890-1954. Memórias sentimentais de João Miramar – Personagens. 3. Andrade, Oswald de, 1890-1954. Memórias sentimentais de João Miramar – Estilo. 4. Modernismo (Literatura – Brasil). 5. São Paulo (SP) – Vida e costumes sociais. 6. Literatura e sociedade – Brasil. 7. Cartas na literatura. I. Bueno, André Luiz de Lima. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Título.
CDD B869.35
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RESUMO
CANTARINO, Everardo Borges. Razões ocultas: representações do conservadorismo na composição vanguardista das Memórias sentimentais de João Miramar. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013.
Estudo do romance Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de
Andrade, em que são analisados aspectos estéticos e ideológicos, postos em
movimento e relacionados. A renovação da linguagem literária apresentada nesse
romance rompe com as fórmulas acadêmicas, para tratar de uma realidade urbana
em transformação no início do século XX, em São Paulo, em que convivem os
avanços da modernidade e a mentalidade conservadora de um passado rural
oligárquico de raízes escravistas. João Miramar é o autor ficcional do livro, o
narrador e o protagonista que encarna essa dicotomia, já que a composição de seu
texto é vanguardista, mas como integrante da classe de cafeicultores, se insere no
conservadorismo dessa elite que na cidade se instala, na formação da burguesia
urbana no Brasil. A análise das técnicas empregadas pelo escritor ficcional João
Miramar na escrita de suas Memórias foi a estratégia que possibilitou uma melhor
compreensão do enredo. Cabe à recepção do texto realizar dois níveis de leitura que
são complementares: uma “vertical”, em que cada episódio contém uma experiência
completa relembrada por Miramar, e uma “horizontal”, na qual a recepção faz uma
montagem juntando episódios a partir de estruturas temáticas ou linguísticas. Dessa
forma é possível perceber níveis de consciência e atitudes críticas de Miramar ao
longo do romance. Assim, através dos elementos do texto, esse estudo busca
compreender a crítica à sociedade brasileira esboçada na obra.
Palavras-chave: Modernismo; modernidade; crítica e interpretação; Oswald de
Andrade.
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ABSTRACT
CANTARINO, Everardo Borges. Ridden reasons: representations of conservatism in the vanguardist composition of Memórias sentimentais de João Miramar. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura (Teoria Literária), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2013.
Study of the novel Memórias Sentimentais de João Miramar, by Oswald de Andrade,
in which esthetical and ideological aspects are analyzed, set into motion and related.
The renewal of literary language presented in this novel disrupts with academic
formulas to deal with a changing urban reality in the early twentieth century in São
Paulo, where live the advances of modernity and the conservative mentality of a rural
oligarchic slavery roots past. João Miramar is the fictional author of the book, the
narrator and the protagonist who embodies this dichotomy, since the composition of
his text is avant-garde, but as a member of the class of coffee growers, is included in
this elite conservatism that settles in the city, in the formation of urban bourgeoisie in
Brazil. The analysis of the techniques employed by the fictional writer João Miramar
in writing his memoirs was the strategy that enabled a better comprehension of the
plot. Is it up to the reception of the text to perform two levels of reading that are
complementary: a "vertical" in which each episode contains a complete experience
recalled by Miramar, and a "horizontal" in which the reception makes an assembly
gathering episodes from thematics or linguistics structures. That way is it possible to
realize levels of consciousness and critical attitudes of Miramar throughout the
romance. Thus, through the elements of the text, this study aims to understand the
critique of Brazilian society outlined in the literary work.
Keywords: Modernism; modernity; criticism and interpretation; Oswald de Andrade
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11
2 ESTUDOS SOBRE AS MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR 23
2.1 MIRAMAR E SERAFIM: “O PAR ÍMPAR” 23
2.2 A VANGUARDA NA MIRA 37
2.3 UMA NARRATIVA ORGANIZADA EM ESTRUTURAS MÓVEIS 51
3 NACIONALISMO E RADICALISMO 56
3.1 O NACIONALISMO NA LITERATURA E NA CRÍTICA LITERÁRIA 57
3.2 O DISCURSO RADICAL E O PENSAMENTO CONSERVADOR 71
4 TÉCNICAS DO ESCRITOR JOÃO MIRAMAR 78
4.1 O PREFÁCIO E A PRIMEIRA INFÂNCIA 78
4.2 O COMPILADOR E EDITOR DE CARTAS PESSOAIS 91
4.2.1 Cartas e sexualidade 96
4.2.2 Cartas e papéis sociais 102
4.2.3 Cartas e localismo 107
5 A MORAL CONSERVADORA E O ESTILO VANGUARDISTA 114
5.1 PROPRIEDADE E FAMÍLIA 114
5.2 O HUMOR E A RIGIDEZ DO CARÁTER, DO ESPÍRITO E DO CORPO 129
6 CONCLUSÃO 140
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1 INTRODUÇÃO
Memórias sentimentais de João Miramar, romance escrito por Oswald de
Andrade, teve a sua primeira publicação em 1924, pela editora Independência, com
um pequeno número de exemplares. Apenas quarenta anos depois, em 1964, o
público leitor teve acesso ao que era um livro “quase clandestino”1, com a sua
segunda edição, lançado pela Difusão Europeia do Livro. A terceira veio em 1971,
no projeto da editora Civilização Brasileira em publicar as Obras Completas de
Oswald de Andrade, decorrência da redescoberta do autor nos anos de 1960. A
partir de então, o Miramar2 passou a ser materialmente acessível, com algumas
reimpressões. Houve também uma edição do Círculo do Livro na década de 1980.
Em 1990, o romance ganhou uma nova edição no projeto da editora Globo de
publicação das Obras Completas de Oswald de Andrade, um pouco mais completo
do que o da Civilização Brasileira, e com as sucessivas reimpressões ao longo dos
últimos anos, o Miramar é hoje um livro disponível ao público leitor.
Além da dificuldade de se encontrar um volume do Miramar por pelo menos
quarenta anos desde sua primeira edição, a recepção desta obra também não
contou com um trabalho de crítica literária consistente e contínuo, ficando restrito a
alguns poucos artigos escritos por ocasião do lançamento do romance. Sem uma
análise mais profunda da obra, os comentários se voltaram mais ao comportamento
do autor do que à sua literatura. Portanto, as Memórias sentimentais de João
Miramar cumpriram o percurso de um romance “quase clandestino”, tanto pela
escassez de exemplares do livro disponíveis para o público leitor durante quarenta
anos, como pelo desprezo da crítica especializada pela obra, até tornar-se
reconhecidamente um dos romances mais importantes da primeira fase do
Modernismo brasileiro. Para esse reconhecimento, foram fundamentais a reviravolta
dos estudos críticos literários sobre os romances de Oswald de Andrade, da qual
podemos identificar como marco inicial o ensaio “Estouro e libertação”, de Antonio
Candido, e a produção artístico-cultural que teve a obra oswaldiana como referência,
em especial a dos anos de 1960. Acrescenta-se ainda que, bem além do campo
mais específico da literatura, a produção oswaldiana tem o sentido de pensar a
cultura brasileira, inserida no mundo. Esse é um dos aspectos da sua atualidade.
1 Expressão de Antonio Candido, em “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”.
2 Abreviamos o título do romance e grifamos a forma abreviada para distinguir da referência ao protagonista.
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Outra peculiaridade da obra está no fato de que toda a prosa romanesca de
Oswald de Andrade teve por traço de criação a escrita feita ao longo de muitos anos.
Querer datar com precisão o início da elaboração das Memórias sentimentais de
João Miramar é sempre um risco. Há quem diga que o autor começou a escrevê-las
em 1916, assim como quem indique o seu início no ano de 1912. O fato é que
Oswald tinha por hábito registrar anotações esparsas, escrever diários não
convencionais, e tudo isso, em certa medida, se incorporaria a sua obra. Todos
concordam, entretanto, que a versão final desse romance foi feita em 1923, ano em
que o autor passou na Europa, tão próximo aos experimentos da vanguarda a ponto
de redefinir a linguagem do romance que escrevia e reescrevia há anos. É bastante
evidente a importância desse convívio direto para a versão final das Memórias
sentimentais, como se observa ao cotejá-la com trechos de versões anteriores
publicados na imprensa.
O romance de Oswald de Andrade é constituído por 163 capítulos,
extremamente reduzidos, chegando mesmo a haver alguns com uma única frase de
poucas palavras. Essa inovação criou na crítica uma elasticidade ao se caracterizar
e denominar esses pequenos trechos, esses fragmentos, esses diminutos blocos,
até porque, além de sintéticos, há certa autonomia entre eles, o que altera a
acepção clássica de capítulo. Apesar dessas particularidades, adotaremos em nosso
trabalho a denominação “capítulo”, como fez, entre outros, Mário de Andrade no
ensaio “Oswaldo de Andrade” de 1924 (1972a), dedicado ao estudo do Miramar, e
também Samira Nahid Mesquita (1995) que comparou as Memórias sentimentais de
João Miramar com as Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis,
pontuando os curtos capítulos do romance machadiano. Assim, os capítulos do
romance de Oswald de Andrade seriam uma radicalização do que fora feito no
século XIX por Machado, o que demonstra o conhecimento que Oswald tinha de
nosso passado literário e a sua capacidade intelectual ao identificar os traços dos
períodos anteriores que continham valor para o século XX, ou seja, o passado que
não se encontrava estagnado, desprovido de significado diante da nova realidade
que se apresentava3. Oswald, nas Memórias sentimentais, também inovaria
3 Na conferência pronunciada por Oswald de Andrade na Sorbonne, em 1923, intitulada “O esforço intelectual
do Brasil contemporâneo”, o autor referiu-se aos romances de Machado de Assis como “nossas melhores obras
de ficção” (2011c, p. 43). Citou também Euclides da Cunha como um escritor que alargou o “horizonte do país”,
ao expandir-se para além do Rio de Janeiro.
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incorporando ao texto o aparato paratextual de um livro que costuma ter funções
pré-definidas e são extratextos, como o prefácio, a epígrafe, o título. Na obra, esse
aparato torna-se texto do romance, pois gera outros significados que extrapolam a
sua função inicial. Esses aspectos estruturais somados aos gramaticais geraram
uma linguagem vanguardista que surpreendeu e provocou forte impacto na
recepção.
O Modernismo brasileiro da primeira fase (1922-29) se fundamenta numa
proposta de renovação a partir da ruptura com as fórmulas acadêmicas, estagnadas
em suas proposições artísticas e temáticas. Nessa época, a vida se modificava, o
Rio de Janeiro e São Paulo, cada um a seu modo, cresciam e incorporavam em seu
dia-a-dia as novas técnicas dos tempos modernos. Além dos avanços tecnológicos
do transporte, da comunicação, da diversão, também no campo social havia
novidades, com o crescimento da população operária, fortemente marcada pela
imigração em São Paulo, com um passado rural oligárquico de raízes escravistas se
renovando em um presente urbano burguês conservador, com o acirramento de
conflitos políticos na esfera do poder, assim como os questionamentos aos papéis
sociais então consagrados, como o da mulher, por exemplo, que começavam a
ganhar forma. Nesse contexto, mesmo quando a arte não é explicitamente social,
observa-se que a proposta modernista não dissocia o estético do ideológico. No
“Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, por exemplo, divulgado no mesmo ano da
publicação das Memórias sentimentais de João Miramar, Oswald de Andrade afirma
logo nas primeiras frases do texto: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de
açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos”
(1978a, p. 5). Ao conferir à realidade vulgar a qualidade de estético, Oswald carrega
de sentido ideológico o texto que produz. Miramar se insere nesse contexto
moderno, provocando polêmicas por sua composição inovadora associada à figura
irrequieta do autor. Em nosso estudo, trataremos os aspectos estético e ideológico
postos em movimento e necessariamente relacionados. Sob essa perspectiva é que
nos propomos a fazer a revisão crítica da recepção desse romance.
As primeiras reações logo após a publicação das Memórias sentimentais de
João Miramar foram contraditórias: os passadistas definiram a obra como desprovida
de sentido, uma brincadeira de seu autor fanfarrão e piadista; os modernistas
elogiaram a ousadia e as inovações do texto. Um dos principais textos críticos da
época, publicado na revista Estética, em 1925, de autoria de Sérgio Buarque de
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Holanda e Prudente de Moraes, neto, identificou a fragmentação da obra como um
conceito estético atual e destacou o papel do leitor, tendo de dar organização ao
texto juntando as peças que se apresentam soltas na narrativa. No contexto da
década de 1920, as posições conflitantes diante do Miramar revelam uma obra
polêmica, assim como era também polêmico o momento histórico de sua publicação.
Não que o romance seja, ao pé da letra, mimeses dos fatos extraliterários, mas em
certo sentido há uma relação entre o literário e o extraliterário, como veremos mais à
frente.
Ainda na década de 1920, a partir das Memórias sentimentais de João
Miramar até o romance Serafim Ponte Grande, concluído em 1929 e publicado em
1933, Oswald de Andrade trilhou um percurso dentro do projeto moderno de
renovação artística publicando, além dos dois romances, os livros de poemas Pau-
-Brasil, em 1925, e Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, em
1927, e os Manifestos da Poesia Pau-Brasil, em 1924, e Antropófago, em 1928. Há
nesse conjunto de obras um projeto estético e ideológico que se diferencia do
projeto dos romances da Trilogia do Exílio, cujos dois primeiros volumes foram
publicados nessa mesma década de 1920 e o terceiro saiu em 1934, como se
houvesse em Oswald de Andrade, sem clara definição, dois projetos, um de ruptura
e outro que se vincula em muitos aspectos à tradição romanesca. A escada
vermelha, terceiro romance da Trilogia, indica ainda a mudança de rumo na
produção romanesca do autor, que seria consolidada em Marco Zero, cujos dois
volumes foram escritos ao longo dos anos de 1930 e publicados em 1943 e 1945, e
se torna explicitamente ideológica quanto às questões sociais, provavelmente pela
adesão de Oswald à militância comunista e pelo contexto da década de 1930. Com
essa mudança de rumo da produção literária oswaldiana, associada à valorização do
romance social nos anos de 1930, característica da segunda fase do Modernismo
brasileiro, a prosa renovadora da primeira fase ficou esquecida pela crítica literária.
Só na primeira metade da década de 1940, surgiria um trabalho feito por um
pequeno grupo de intelectuais responsável pela revista Clima, no qual se inseria
Antonio Candido, que busca resgatar a produção oswaldiana da primeira fase do
Modernismo, articulada com a segunda fase.
O ensaio “Estouro e libertação”, de Antonio Candido, saiu em 1945, sendo um
“estudo fundamental sobre a prosa de Oswald” (CAMPOS, 1971b, p. 106). De fato,
antes de Candido, os estudos críticos realizados na década de 1920 foram mais
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pontuais, identificando inovações no campo da expressividade ou demarcando o
debate sobre a formação nacional, inclusive, em alguns casos, realçando a
elaboração de uma língua literária brasileira numa perspectiva nacionalista, que
teve, em certa medida, um peso significativo para a primeira fase modernista. Deste
período, mesmo sem leituras aprofundadas sobre Memórias sentimentais de João
Miramar, podemos destacar como produtores de artigos críticos que trataram desse
romance Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Moraes, neto, Mário de Andrade,
Paulo Prado, Menotti del Picchia, Martins de Almeida, o jovem Carlos Drummond de
Andrade, entre outros. Na década de 1930, como já dissemos, a produção literária
da primeira fase modernista foi posta de lado. Portanto, só na década de 1940, num
esforço praticamente isolado do grupo Clima, se tentou fazer uma nova leitura da
obra de Oswald de Andrade, com destaque para a análise de Antonio Candido.
Podemos dizer que esse trabalho de Candido publicado em 1945 foi revisto e
atualizado em 1970, com o ensaio “Digressão sentimental sobre Oswald de
Andrade”. O crítico propõe, então, uma análise conjunta de Memórias sentimentais
de João Miramar e Serafim Ponte Grande, denominando os romances de “o par
ímpar”, pela rebeldia, experimentação e novos percursos que ambos descobrem.
Dentre as observações de Candido está o estilo baseado no choque, na surpresa,
na descontinuidade, na tentativa de simultaneidade, além de salientar a diretriz
satírica das obras. Este último é um aspecto importante, pois ao enfatizar a sátira na
composição do texto, Antonio Candido realiza uma leitura da obra considerando o
ideológico. Ou seja, quando a sátira recai, por exemplo, sobre o “empolado
palavrório”4 dos discursos provincianos, portanto oposta à fórmula oswaldiana, há
uma crítica ideológica sendo exercitada, porque a partir da sátira ao estético
acadêmico, mesmo que não haja um engajamento político-social convencional,
questiona-se também o ambiente social no qual prolifera aquele tipo de discurso.
Assim, Antonio Candido resgata a proposta modernista que movimenta a renovação
nos campos estético e ideológico.
Outro importante trabalho de revisão da obra de Oswald de Andrade foi feito
pelos poetas concretos. Destacamos de Haroldo de Campos dois ensaios
publicados em 1964 que tratam das Memórias sentimentais de João Miramar,
“Miramar na mira” e “Estilística miramarina”, e um sobre Serafim Ponte Grande,
4 Expressão de Oswald de Andrade, no artigo “Modernismo atrasado”.
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intitulado “Serafim: um grande não-livro”, que teve a sua versão final publicada em
1971, na segunda edição do respectivo romance. Além desses textos, Haroldo
produziu outros que saíram na imprensa, em Suplementos Literários. Esse conjunto
de ensaios e mais os trabalhos críticos de Antonio Candido constituem ainda hoje as
principais referências para todos os estudos posteriores sobre os dois romances de
Oswald de Andrade que formam o “par ímpar”, mesmo quando tais estudos seguem
linhas críticas diferentes das desses autores.
Enquanto em “Estilística miramarina” Haroldo de Campos buscou decifrar a
linguagem do romance de Oswald de Andrade apoiado no estruturalismo de Roman
Jakobson, em “Miramar na mira”, o crítico procurou recuperar a importância dessa
obra relacionando-a com a de grandes autores universais no campo moderno,
James Joyce e Thomas Mann, conferindo à obra oswaldiana, dessa forma, um
status de cânone na história da literatura brasileira. O movimento do crítico foi
buscar no Manifesto Futurista de Marinetti uma origem comum para as obras dos
três escritores. A leitura de Haroldo de Campos destaca as inovações estéticas,
ressaltando o estilo telegráfico, a técnica cinematográfica, a influência das artes
plásticas, da vanguarda europeia, da estética do fragmentário, como um novo valor.
Entretanto, esse novo valor não movimenta apenas o campo estético, mas também,
necessariamente, categorias ideológicas, na medida em que estabelece novos
horizontes nas expectativas do que seja a arte, produzida num novo contexto em
que as técnicas industriais estão presentes no cotidiano das cidades que ganham
uma nova dinâmica, sobretudo após a Primeira Grande Guerra.
Outros autores também realizaram estudos sobre a obra oswaldiana que são
fundamentais. Para a introdução desse nosso trabalho, elegemos mais três
estudiosos da literatura, que somados aos dois já apresentados, formam um
conjunto com o propósito de delinearmos a fortuna crítica em torno do Miramar.
Alfredo Bosi, cujo conjunto da obra tem grande peso no cenário dos estudos
literários, afirmou ter Oswald de Andrade representado “a ponta de lança” do espírito
da Semana de Arte Moderna, pois foi “quem assimilou com conaturalidade os traços
conflitantes de uma inteligência burguesa em crise nos anos que precederam e
seguiram de perto os abalos de 1929/30” (1997, p. 403). Portanto, as questões
ideológicas estão nitidamente postas. Segundo o crítico, Oswald, com seu espírito
inquieto, acabou por superar a sua formação belle époque por arriscar-se, o que
teve por consequência, se podemos assim dizer, uma instabilidade. Se por um lado
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essa atitude significou a libertação, por outro gerou uma obra desigual, em que se
encontra, principalmente no romance, o melhor e o pior postos lado a lado, conforme
Antonio Candido já havia registrado. Bosi observou ainda que muito do que se
afirmou sobre Oswald esteve condicionado a generalizações de opções transitórias
do autor, o que não é significativo para um estudo mais aprofundado da sua
produção literária.
Em relação às Memórias sentimentais de João Miramar, o crítico demarca
que Miramar e Serafim satirizam “o Brasil da „aristocracia‟ cafeeira aburguesada nas
grandes capitais [...], mas nem uma nem outra deixa de ser o reflexo literário da
mesma „modernidade‟ mundana a que o escritor pertencia como filho (pródigo) da
classe que ironiza” (1997, p. 405). Essa afirmação, assim como a citada
anteriormente, considera a presença do ideológico na obra oswaldiana, pois
constata a intenção do autor em denunciar o grupo social ao qual pertence, valendo-
-se para isso do recurso da ironia. A figura de Miramar, contemplativo no próprio
nome, com vistas postas para o Atlântico, é representativa da aristocracia cafeeira –
mesmo que através de sua mulher, descendente rica de proprietário de cafezais – e
não esconde o comportamento dessa classe em defesa da manutenção do status
quo.
Quanto ao estilo das Memórias sentimentais, Alfredo Bosi sugere a
aproximação do Miramar e da poesia da Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade,
com “o telegrafismo das rupturas sintáticas, do simultaneísmo, da sincronia, das
„ordens do subconsciente‟, dos neologismos copiosos” (1997, p.406). Assim, o crítico
põe em evidência a relação das duas obras para afirmar em Miramar a continuidade
de procedimentos poéticos. E complementa dizendo da composição revolucionária
do romance: “são capítulos-instantes, capítulos-relâmpagos, capítulos-sensações”
(1997, p. 406). Oswald de Andrade trabalha no Miramar a colagem rápida, a
simultaneidade, tal como as “palavras em liberdade” reivindicadas no “Manifesto da
Poesia Pau-Brasil”. A visão crítica de Alfredo Bosi se fundamenta nas leituras de
Antônio Cândido e Haroldo de Campos.
O norte-americano Kenneth Jackson dedicou-se em seu doutoramento,
defendido em 1972, ao estudo da prosa vanguardista de Oswald de Andrade –
Miramar e Serafim –, no qual reconhece que “a inovação de Oswald representa uma
rejeição, não apenas a estilos artísticos precedentes, mas também ao contexto
social, cuja expressão teve ligação estreita com aqueles estilos”. E complementa a
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sua avaliação afirmando que as críticas contidas no romance expressam “a crítica e
a rejeição de Oswald de Andrade ao seu próprio passado” (1978, p. 30). Para
Jackson, Miramar representa o autor extraliterário, como um porta-voz, pois através
do personagem, Oswald denuncia a realidade de seu tempo, das figuras medíocres
que faziam aquele momento histórico. De forma geral, as personagens do romance
representam figuras do mundo “real” que são postas em julgamento crítico pelo
ridículo das situações em que são retratadas. É o caso de Machado Penumbra, por
exemplo, com seus discursos empolados, pouco práticos, à moda dos discursos
acadêmicos dos intelectuais de província. A ironia recai não apenas sobre o discurso
vazio, mas também sobre as normas sociais, e até mesmo sobre os modos
incompetentes de fazer negócio. Assim Oswald se mostra um crítico de seu tempo,
captava na vida os seus personagens, moldando-os conforme a sua sensibilidade.
As pessoas que representavam obstáculos para a modernidade não eram poupadas
de sua sátira corrosiva.
Há uma outra linha na análise de Kenneth Jackson sobre as Memórias
sentimentais de João Miramar que lida com o processo de conscientização do
personagem. O crítico vê no texto uma “leitura horizontal” e outra “vertical”. A
primeira se constitui na experiência cronológica ou histórica do personagem, ou seja,
apesar de não haver um enredo evidente na superfície do texto, os episódios podem
ser estruturados em “três grandes grupos de fragmentos, organizados em torno do
„fio-condutor‟ da vida de João Miramar” (1978, p. 50), os quais correspondem à
infância, incluindo-se aí o período escolar de Miramar, à viagem do personagem à
Europa e à tentativa de sua reintegração na sociedade paulista depois da viagem. A
“leitura vertical” é aquela que se faz a partir da descrição pessoal do narrador de
suas experiências decisivas que são apresentadas em episódios fechados em si
mesmo, ou seja, cada episódio contém uma experiência completa. Dessa forma, é
possível perceber a formação da consciência crítica de Miramar ao longo do
romance, segundo a abordagem de cada episódio. Daí Jackson defender a tese de
que Miramar se apresenta de três formas: uma primeira de consciência ingênua em
que a narração é “aparentemente sincera, direta e viva” (1978, p. 40); uma outra
ingressando na idade madura, “cuja consciência cresce através do acúmulo de
memórias” (1978, p. 41); e uma terceira em que Miramar já maduro narra as suas
memórias. Portanto, o acúmulo de memórias, à medida que os episódios são
relembrados ao longo da elaboração do livro, cria-lhe consciência e faz o narrador
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dar-se conta de que, em relação à sua vida, “é incapaz de mudar as direções ou
alterar o seu próprio caráter” (1978, p. 41). Os três narradores Miramar, com “níveis
de consciência e atitudes críticas diferentes no desenrolar da história da vida de
João Miramar” (1978, p. 42), constroem um percurso até a chegada do momento da
desistência do personagem em continuar a escrever as suas memórias,
provavelmente pela aquisição da consciência dada pelo processo da escrita que lhe
fez compreender a sua impotência diante da vida. Então Miramar se retira do
contexto social. Kenneth Jackson é leitor de Cândido e Campos, mas propõe
aspectos novos na recepção das Memórias Sentimentais de João Miramar.
No estudo intitulado Totens e tabus da modernidade brasileira, Lucia Helena,
ao tratar da prosa de ficção oswaldiana, defende a tese da duplicidade dessa
produção diferenciada pelos procedimentos miméticos. A partir dos conceitos de
símbolo e alegoria, respectivamente localizados nos polos da representação e da
construção da mimesis, estariam de um lado a Trilogia do exílio e Marco zero, que
teriam uma configuração “mimética de representação”, e de outro lado Miramar e
Serafim, como “mimesis de produção”. Dito de outra forma, à Trilogia e ao Marco
zero caberia uma dimensão simbólica porque essas obras reproduzem na linguagem
uma realidade extraliterária como uma representação direta, ou nas próprias
palavras de Lucia Helena, tomam “o real e o ficcional como uma totalidade
indiferenciada” (1985, p. 103). Já ao Miramar e ao Serafim caberia uma dimensão
alegórica da mimesis, pois esses romances produzem na linguagem uma realidade
literária, ou seja, a mimesis se apresenta “como mediação dialética entre o real e o
imaginário” (HELENA, 1985, p. 104), em que se nega a “aparência de realidade”
enquanto continuidade do real espelhado simetricamente no texto literário.
Isso ocorre porque a obra em estilo fragmentário não corresponde ao fluxo
linear e histórico, pois não tem comprometimento com a causalidade cronológica.
Como consequência para a recepção, os fragmentos descontínuos acabam por
frustrar as expectativas do leitor que estava habituado à fruição passiva – aquela em
que a recepção “se deleita frente a um texto que lhe oferecesse um mundo „similar‟
ao seu” (HELENA, 1985, p. 94) –, pois agora o leitor se depara com os saltos das
lembranças que parecem aleatórios, e acabam por dar uma outra feição à prosa,
mais poética. Assim, esses procedimentos novos do estilo moderno, ao diluírem as
fronteiras da prosa e da poesia, rigidamente demarcadas na concepção acadêmica,
não apenas geram uma ruptura com o academicismo ao criticar seus valores
20
estéticos, como também colocam em xeque as concepções de vida representadas
pelas formas tradicionais de arte. Dessa maneira, Oswald de Andrade, cumprindo o
programa modernista, denuncia pela arte que a vida mudou, já não é mais aquela
postulada pelos textos acadêmicos. O trabalho crítico de Lucia Helena além de
apoiar-se em conceitos desenvolvidos por Walter Benjamin e Costa Lima, é
referenciado nos estudos de Antonio Candido, e também de Haroldo de Campos e
Kenneth Jackson.
Nosso propósito, conforme já dissemos, em apresentar alguns aspectos de
estudos críticos realizados por Antonio Candido, Haroldo de Campos, Alfredo Bosi,
Kenneth Jackson e Lucia Helena, foi o de delinear a fortuna crítica em torno do
Miramar, e que no desenvolvimento de nosso trabalho aprofundaremos. Apontamos
também, nessa introdução, a nossa linha de análise no que diz respeito à
movimentação dialética do estético e do ideológico, como tentativa de montar uma
visão do Miramar em relação à sociedade, ao país, à época, a partir do que é
externo à obra e se torna elemento interno em sua composição vanguardista. Nesse
caminho, faremos uso também da contribuição de aparatos historiográficos com o
propósito de nos auxiliar na compreensão do enredo. Além dos autores acima
citados, são também nossas referências os trabalhos de Roberto Schwarz, Pascoal
Farinaccio, Samira Nahid Mesquita, Mário de Andrade, Mário da Silva Brito, Walter
Benjamin, Mikhail Bakhtin, Nicolau Sevcenko, entre outros. Pretendemos, com esse
nosso estudo, contribuir na busca de uma melhor compreensão da obra de Oswald
de Andrade, hoje reconhecidamente um dos pilares do Modernismo brasileiro,
apesar de ainda pouco pesquisado diante do volume e da complexidade de sua
obra. Mas nem sempre o autor foi assim reconhecido. Houve o tempo em que
Oswald era suprimido de compêndios escolares e antologias dedicadas ao
movimento modernista. Portanto, o reconhecimento do valor do trabalho de Oswald
de Andrade é fruto das pesquisas sobre as diversificadas produções do autor.
Em suma, nosso objetivo geral é investigar o romance Memórias sentimentais
de João Miramar, escrito por Oswald de Andrade, tentando compreender o ponto de
vista da crítica à sociedade brasileira esboçada na obra. Para tal, nos fazemos uma
pergunta inicial: Como João Miramar, representativo da oligarquia cafeeira paulista,
da mentalidade conservadora dessa classe, escreveu um livro cuja linguagem e
projeto são tão avançados, tão arrojados? A tentativa de responder a essa pergunta
é o propósito mais específico de nosso trabalho. De certa forma, João Miramar
21
concentra em si a peculiar combinação de avanço e atraso, de moderno e arcaico,
de vanguarda e retaguarda, ponto central do Modernismo brasileiro, considerando o
contexto do Modernismo de São Paulo presente no Miramar.
Quanto à organização desse estudo, iniciaremos por uma revisão crítica, o
capítulo dois, tendo como “âncora” os estudos realizados por Antonio Candido e
Haroldo de Campos. Esses dois autores são ainda referências importantes para as
análises das Memórias sentimentais de João Miramar, nosso objeto de estudo. No
capítulo seguinte, abordaremos dois temas vitais para a nossa empreitada: o
nacionalismo e o radicalismo. O primeiro, trata de uma questão que envolveu todos
os modernistas, mesmo que prevalecessem pontos de vista distintos e polêmicos.
Essa questão precisa ser, dentro da medida de nosso trabalho, estudada em relação
ao nosso autor, sem a pretensão de esgotá-la. O segundo tema, radicalismo, será
abordado a partir de um estudo de Antonio Candido no qual o autor busca
caracterizar o comportamento de membros da classe dominante que se voltam
politicamente contra a própria classe a que pertencem. Talvez aí possamos
vislumbrar alguma resposta à nossa pergunta inicial.
Nos capítulos quatro e cinco, faremos a análise mais específica do Miramar.
Iniciaremos, no quarto capítulo, com o estudo do prefácio escrito por Machado
Penumbra e da primeira infância de João Miramar, tentando reconhecer o estilo do
autor ficcional articulado ao contexto em que está inserido. Como as Memórias
sentimentais, além do texto narrativo que cabe ao narrador, contam com diferentes
discursos dos personagens, o que constitui um “cadinho” com uma variedade de
gêneros textuais, elegemos as cartas pessoais, escritas ficticiamente por
personagens e publicadas nas Memórias de Miramar, para assim aprofundarmos a
investigação sobre a composição desse romance, buscando uma leitura de
costumes que movimentam o enredo, a partir dos discursos de personagens. Nosso
propósito é tentar entender alguns métodos do escritor ficcional João Miramar para,
dessa forma, alcançarmos uma melhor compreensão da obra oswaldiana. No quinto
capítulo, desenvolveremos estratégias de análise com o objetivo de tentar responder
de forma mais sistemática à pergunta inicial de nosso estudo. Isso não significa dizer
que buscamos uma resposta pragmática e definitiva, o que seria um erro. Por isso
pretendemos articular questões vinculadas à moral da elite paulista ao estilo
miramarino. No último capítulo de nosso trabalho, a “Conclusão”, o nosso propósito
será analisar o último capítulo do romance de Oswald de Andrade, resgatando
22
alguns aspectos desenvolvidos ao longo em nosso trabalho, à guisa de uma
conclusão, além de apontar possíveis desdobramentos de nossa pesquisa.
Enfim, esse é um estudo que se propõe a acrescentar ao rol de interpretações
da obra oswaldiana mais uma contribuição, que se somará para o entendimento
global das Memórias sentimentais de João Miramar. Nosso enfoque buscará estudar
alguns mecanismos desse romance para a representação da mentalidade
conservadora da classe hegemônica na São Paulo do início do século XX, cuja
realidade urbana se redesenhava.
23
2 ESTUDOS SOBRE AS MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR
2.1 MIRAMAR E SERAFIM: “O PAR ÍMPAR”
“Oswald de Andrade é um problema literário. Imagino, pelas que passa nos
contemporâneos, as rasteiras que passará nos críticos do futuro” (1970b, p. 35).
Assim Antonio Candido inicia o ensaio “Estouro e libertação”, escrito em 1944,
refundindo artigos de 1943, e publicado no livro Brigada ligeira, que saiu em 1945.
As datas interessam na medida em que demarcam o início de uma virada no campo
da crítica literária, ainda que fosse um esforço quase solitário na época, para a
tentativa de compreensão do conjunto da prosa de ficção produzida por Oswald de
Andrade. Os artigos que serviram de base para o ensaio foram escritos no mesmo
ano da publicação do primeiro volume de Marco zero, obra aguardada e cercada de
expectativas como uma obra de superação, promessa do escritor de um romance
maior do que os escritos anteriormente. Com Marco zero, Oswald de Andrade
pretendia atingir um público leitor mais amplo e se inserir como romancista social de
um Brasil histórico e concreto do pós 1930, não mais o Brasil mítico da fase de
afirmação do Modernismo. As frases iniciais do ensaio nos parecem conter certa
ambiguidade quanto ao destinatário para dar conta de dois propósitos do crítico:
demarcar com firmeza a sua posição que identifica haver dificuldades da crítica
literária diante da obra de Oswald de Andrade – aspecto que interessa ao nosso
estudo –, como também buscar, com sutileza, uma interlocução com o escritor que
havia publicado o artigo intitulado “Antes do Marco Zero”5, no qual rebate duramente
os artigos de Candido que serviram de base para o ensaio, procurando assim o
crítico atrair o escritor para o campo da crítica literária e evitar o campo da polêmica
pessoal.
Em certa medida, ambos os propósitos foram alcançados. No ensaio
“Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”, escrito em 1970, Candido, “num
tom de quem escreve sobre o que também viveu”, conforme apontou Lucia Helena
(1985, p. 82), relata o encontro casual que tivera com Oswald na Livraria Jaraguá
após a publicação de Brigada ligeira, em que a situação conflituosa entre os dois
fora desfeita por iniciativa do escritor, que reconhecera a atitude objetiva do jovem
5 Encontra-se esse artigo em Ponta de Lança, livro que reúne textos de Oswald de Andrade publicados na
imprensa no ano de 1943 e três conferências pronunciadas neste e no ano seguinte.
24
crítico. Por sugestão de Oswald de Andrade, passaram então a consolidar uma
amizade em uma convivência mais íntima que durou até o falecimento do escritor,
em 1954. Ainda nesse mesmo ensaio, Antonio Candido reconheceu que os artigos
de 1943 possuíam erros e havia “aquela agressividade misturada de
condescendência que parece tão oportuna aos vinte e cinco anos” (1970a, p. 61),
que justificavam a irritação de Oswald. Mas deixemos o terreno pessoal e voltemos
ao campo literário, ao ensaio “Estouro e libertação”, cujos acertos e erros foram, em
certa medida, o ponto de partida para estudos que outros críticos fariam da prosa de
ficção de Oswald de Andrade.
A produção crítica sobre os romances de Oswald de Andrade feita até então
pelos contemporâneos do escritor, salvo algumas exceções situadas na década de
1920, assinalava a incompreensão da obra oswaldiana por falta de um critério
metodológico em que o texto literário fosse o objeto central da análise. Por isso era
fácil a esses textos críticos perderem-se por outros caminhos desviantes. Antonio
Candido escreveu que para a crítica literária comprometida com a investigação da
obra oswaldiana seria necessário “estabelecer a seu respeito juízos cuidadosamente
formados, e não oriundos das conversas de café ou da informação apressada. Com
efeito, é desta última forma que tem sido mais ou menos julgado Oswald de
Andrade” (1970b, p. 35). Em suma, havia uma omissão da crítica especializada da
época em que fora publicado o ensaio “Estouro e libertação” em lidar com as
inovações de caráter vanguardista articuladas por Oswald de Andrade em sua
literatura, substituída em relevância pelo personagem em que o escritor se
transformara. Muito provavelmente o público não conhecesse a literatura de Oswald
de Andrade, mas as peripécias do personagem, suas piadas, a fama de ter escrito
obscenidade, entre outros fatos romanceados de sua vida. Mas não era só isso.
Somam-se a esse aspecto apontado por Antonio Candido dois outros reducionistas:
a abordagem impressionista do trabalho crítico dos anos de 1930 limitada aos
cânones do gênero e o critério nacionalista da crítica produzida pelos próprios
escritores modernistas como categoria judicativa da obra analisada (FARINACCIO,
2001), que veremos mais à frente.
Apontada a falha na análise da obra oswaldiana, Antonio Candido
desenvolveria o seu trabalho procurando compreender a obra ficcional de Oswald de
Andrade a partir de um método em que busca construir a análise crítica tendo por
referência principal o texto literário enquanto uma representação reduzida do “real”,
25
em que não se descarta nem o contexto nem a estrutura da obra. Essa metodologia
norteia o trabalho crítico de Antonio Candido como um todo, seja essa
representação de ordem mimética ou não. Para tentarmos explicitar de forma
sucinta esse método de Candido, antes de prosseguirmos o nosso texto, recorremos
aos seus estudos publicados em O discurso e a cidade. Nos ensaios da primeira
parte desse livro, Antonio Candido analisa textos realistas, em que os aspectos
sociais e históricos estão, em certo sentido, explicitados. O crítico trata esses textos
observando o processo pelo qual “a realidade do mundo e do ser se torna, na
narrativa ficcional, componente de uma estrutura literária, permitindo que esta seja
estudada em si mesma, como algo autônomo” (CANDIDO, 2010b, p. 9). Dessa
forma, os materiais escolhidos no mundo extraliterário pelos autores são
organizados esteticamente e submetidos a leis próprias, diferentes das leis do
mundo e da vida, mas fazem parecer ao leitor que a realidade do mundo exterior à
obra está presente no texto literário. Nas palavras do próprio crítico:
“Esta dimensão [a de estar em contato com realidades vitais] é com certeza a mais importante da literatura do ponto de vista do leitor [...]. O crítico deve tê-la constantemente em vista, embora lhe caiba sobretudo averiguar quais foram os recursos utilizados para criar a impressão de verdade. De fato, uma das ambições do crítico é mostrar como o recado do escritor se constrói a partir do mundo, mas gera um outro mundo, cujas leis fazem sentir melhor a realidade originária. Se conseguir realizar esta ambição, ele poderá superar o valo entre social e estético, ou entre psicológico e estético, mediante um esforço mais fundo de compreensão do processo que gera a singularidade do texto” (2010b, p. 9).
Nessa perspectiva, o que interessa ao crítico é o resultado final, ou seja, o
texto literário. Na segunda parte do livro, Antonio Candido analisa textos que
buscam transfigurar a realidade. Sem referências da “realidade documentária”,
esses textos enveredam por uma livre fantasia, “criando mundos arbitrários” sem
referências históricas e sociais explícitas, mas “nos quais se infiltram entretanto
dramas e angústias de civilizações que conhecemos, no passado e no presente”
(CANDIDO, 2010b, p. 11). O crítico mostra que esses textos são capazes, como os
da primeira parte, “de transmitir um profundo sentimento da vida” até mesmo pela
liberdade que conquistam penetrando, assim, em certos aspectos do mundo “real”
exatamente “por não terem compromisso documentário, mas obedecerem sobretudo
à fantasia, paradoxo inerente à literatura” (2010b, p. 10). Daí o crítico conclui que os
textos, em seu propósito de convencimento do leitor, dependem “mais da sua
26
organização própria que da referência ao mundo exterior, pois este só ganha vida na
obra literária se for devidamente reordenado pela fatura” (2010b, p. 10). Antes de
serem ou não verossímeis, os textos de ambas as partes do livro oferecem ao leitor
uma impressão de verdade porque são compostos coerentemente. Feito esse
parêntese, voltemos ao ensaio de 1945.
Como dizíamos, Antonio Candido priorizou o texto literário como objeto de
sua análise. Dessa forma, em “Estouro e libertação”, todos os julgamentos de
caráter pessoal, positivos ou negativos, que cercavam o escritor Oswald de Andrade
foram afastados. Esses julgamentos, oriundos da vigorosa presença de Oswald,
contribuíam para a constituição do personagem no imaginário público e acabavam
por sobrepor o polemista e inveterado piadista ao texto literário, conduzindo a uma
análise deformada da obra oswaldiana. Assim, temos uma primeira contribuição
para a análise da obra oswaldiana, que foi importante até para desfazer a falsa
suposição, em voga naqueles tempos, de ser Oswald um escritor fanfarrão, pouco
dedicado aos estudos, voltado sobremaneira à pilhéria. Nessa caracterização
depreciativa pode ser vista uma estratégia de isolamento de Oswald de Andrade
para depois colocá-lo no esquecimento pelo incômodo que o escritor provocava às
forças hegemônicas. O próprio Oswald denunciara tal estratégia:
Criou-se então a fábula de que eu só fazia piada e irreverência, e uma cortina de silêncio tentou encobrir a ação pioneira que dera o Pau-Brasil, donde no depoimento atual de Vinicius de Moraes, saíram todos os elementos da moderna poesia brasileira. Foi propositadamente esquecida a prosa renovada de 22, para a qual eu contribuí com a experiência das Memórias sentimentais de João Miramar.
6 (1971b, p. 31).
Posteriormente, após a desmistificação do personagem, a vida do escritor passaria a
fornecer elementos que auxiliam a compreensão da obra literária oswaldiana,
sobretudo a que se realizara apoiada nas experiências próprias vivenciadas pelo
escritor.
Uma segunda contribuição da análise de Antonio Candido, de significativa
relevância até hoje, foi evitar as armadilhas da cronologia baseada nas datas de
publicação das obras, já que os romances de Oswald de Andrade foram escritos por
períodos relativamente longos e muitas vezes concomitantes, e também publicados
em tempo intermitente, que entrecruzava volumes de diferentes faces do escritor.
6 Artigo intitulado “Fraternidade de Jorge Amado”.
27
Tendo em vista essa característica, Candido estabeleceu, a partir do texto literário, o
seu estudo crítico em três faces distintas da produção romanesca de Oswald de
Andrade: a Trilogia do exílio, o par Miramar-Serafim e Marco zero. Antonio Candido
trata em “Estouro e libertação” essas faces como fases de uma evolução, com
contradições mas também coerências. Segundo o crítico, a primeira fase tem por
elemento norteador a “atitude católica e pós-parnasiana”, sendo constituída pelos
volumes Os condenados, publicado em 1922, A estrela do absinto, em 1927, e A
escada vermelha, 1934 – esses os títulos das primeiras edições, assim como o
primeiro dado ao conjunto, que passaram por alterações ao longo do processo de
escrita e das publicações, que para o nosso estudo não interessa detalhar. A
segunda fase foi demarcada pelo crítico por ter procedimentos completamente
diferentes, opostos mesmo, se cotejados com a primeira fase, desde a linguagem,
voltada para a sátira social, até a atitude literária, em que os conceitos então
definidores da “boa” obra artística são completamente desconsiderados, e tudo
estruturado num tom de demolição, de subversão de valores. Constituem a segunda
fase os romances Memórias sentimentais de João Miramar, publicado em 1924, e
Serafim Ponte Grande, em 1933. A terceira fase seria, para Antonio Candido, um
tipo de síntese do conflito entre as duas linhas anteriores, sob a inspiração da
realidade sócio-política da década de 1930. As contradições da diretriz católica da
primeira fase diante da rebeldia anárquica da segunda fase alcançariam uma síntese
socialista, decorrência da hegemonia do romance social, da arte social, dos debates
da vida política daqueles anos. Em linhas gerais, a intenção do escritor nessa fase
seria proceder ao inventário da burguesia decadente, para assim contribuir com os
preparativos da revolução social. No entanto, para Candido, o projeto literário,
apesar de elaborado sobre consistentes dados históricos, apresenta muitas falhas
de composição. Do projeto inicial de Marco zero com cinco volumes, apenas dois
foram escritos e publicados: A revolução melancólica, que saiu em 1943, e Chão,
publicado em 1945. Este último volume não foi estudado pelo crítico em “Estouro e
libertação”. Ele saiu um pouco antes da publicação de Brigada ligeira, mas após a
elaboração do ensaio, sem que disto implicasse alguma alteração na análise de
Antonio Candido.
Essa organização da obra romanesca de Oswald de Andrade em três faces,
evitando a cronologia das publicações, possibilitou a sua compreensão numa
perspectiva literária sem que o ziguezague do percurso do autor confundisse as
28
análises. Assim foi possível identificar e respeitar as contradições que eram do
próprio Oswald de Andrade, e valorizar sobremaneira o que havia de muito especial
na produção daquele conjunto de romances. A alternância da Trilogia – com a
presença na literatura das concepções religiosas maniqueístas entre o bem e o mal,
sobretudo nos dois primeiros volumes, ou reflexos de um esteticismo burguês,
consequências da formação a que fora submetido o escritor – com os protestos
virulentos do par Miramar-Serafim – uma tentativa de libertação – pode ser mediada
como se pela contradição Oswald efetuasse uma busca. Dessa forma, ao invés de
fixar o que havia de maior contra o que existia de menor na produção literária
oswaldiana, Antonio Candido, em seu procedimento analítico, valorizou o jogo
dialético que o levou a apontar o par como o melhor da prosa de ficção de Oswald
de Andrade, acima mesmo de Marco zero, cuja publicação, conforme já dissemos,
era apresentada pelo autor como a obra que sobrepujaria as demais de sua
produção romanesca. Em suma, das três faces, Antonio Candido destacou, pelas
suas qualidades literárias, o par Miramar-Serafim como a melhor realização no
conjunto da obra do romancista Oswald de Andrade.
Ainda, no ensaio publicado em 1945, o crítico apontou Memórias sentimentais
de João Miramar como um livro mais bem realizado do que Serafim Ponte Grande,
conceito que seria revisto no ensaio “Digressão sentimental sobre Oswald de
Andrade”. Essa nova posição do crítico foi tomada em decorrência do estudo feito
por Haroldo de Campos de Serafim Ponte Grande. Apoiado em novas perspectivas
para a análise literária, dadas pela mudança dos métodos de abordagem do texto,
Haroldo escreveria uma primeira versão do ensaio dedicado à análise dessa obra
com o título “Serafim: um grande não-livro”, publicado no Suplemento Literário de O
Estado de São Paulo, em final de 1968. Três meses depois, em março de 1969, o
poeta e crítico publicaria no mesmo Suplemento Literário um estudo ampliado,
abordando com mais detalhes as grandes unidades sintagmáticas de Serafim Ponte
Grande, sob o título “Serafim: análise sintagmática”. Finalmente, no volume
publicado pela Editora Civilização Brasileira, em 1971, que reuniu a terceira edição
de Memórias sentimentais de João Miramar e a segunda edição de Serafim Ponte
Grande, saiu o estudo definitivo de Haroldo de Campos com o mesmo título da
primeira versão, o qual expressa a retomada que Campos fez da concepção de
Candido sobre Serafim apresentada em “Estouro e libertação”, quando este tratou
tal romance como “fragmento de grande livro”. Entretanto, ao retomar o conceito de
29
Antonio Candido, Haroldo de Campos propõe recolocá-lo de outra forma: “o Serafim
é um grande não-livro de fragmentos de livro” (1971b, p. 107).
Oswald de Andrade, confirmando as primeiras frases do ensaio “Estouro e
libertação”, passara mais uma rasteira em um crítico. Não há qualquer demérito
nessa afirmação para com Antonio Candido, que reconsiderou o seu juízo de vinte e
cinco anos atrás em decorrência de uma análise mais bem aparelhada, feita anos
depois, quando a teoria literária praticada no Brasil em muito havia evoluído. Nas
palavras de Antonio Candido:
Naquele tempo, Miramar parecia melhor porque ainda fazíamos crítica de olhos postos numa concepção tradicional da unidade de composição, o princípio estabelecido por Aristóteles como condição de escrita válida. Mas o que veio depois fez ver mais claramente o caráter avançado de Oswald como agressor deste princípio e precursor de formas ainda mais drásticas de descontinuidade estilística. (1970a, p. 84)
Ou seja, a estrutura de Serafim Ponte Grande havia sido considerada pelo crítico em
“Estouro e libertação” como o ponto frágil do romance, porque, naqueles tempos,
Antonio Candido ainda tinha como referência de gênero uma estrutura ideal, da qual
Serafim Ponte Grande se afastara extraordinariamente. A novidade da análise feita
por Haroldo de Campos foi perceber que a força de Serafim Ponte Grande estava
exatamente na sua estrutura, por colocar em discussão o próprio gênero romance, e
num sentido mais amplo a própria prosa, por estar dotado de uma função
metalinguística.
O procedimento de Oswald de Andrade em Serafim Ponte Grande foi, a partir
da colagem de variados gêneros textuais, sendo que nenhuma dessas formas tenha
se tornado protagonista no esquema narrativo, construir um livro com fragmentos de
livros cujas narrativas seguem estruturas padrões, mas que rearranjados em um
novo conjunto, articulam uma outra estrutura que se distancia completamente de
qualquer estrutura ideal, e assim exige do leitor uma atuação efetiva para a
realização da leitura, dando sentido ao que parece caótico. Esse último aspecto
demonstra que Oswald de Andrade se alinha ao que havia de mais experimental na
produção artística da época, e que só muitos anos depois chegou à teoria literária
produzida no Brasil, consolidada com a teoria da recepção. A técnica da
fragmentação ao estilo cubista, ou metonímico, conforme denominação de Haroldo
de Campos (2010), realiza-se em Serafim Ponte Grande na estrutura geral da obra,
desarticulando o gênero romance, indo, portanto, para além do que Oswald fizera
30
nas Memórias sentimentais de João Miramar, em que esse estilo ocorre na estrutura
sintática das frases e o projeto se compõe como um livro fragmentário, com feição
de uma antologia dele próprio. Nessa perspectiva, Oswald radicalizou o projeto
literário iniciado nas Memórias sentimentais, se embrenhando por outras invenções.
Se em “Estouro e libertação” há erros, há também importantes acertos, como
a afirmação do valor literário do par Miramar-Serafim, enquanto romances maiores
de Oswald de Andrade. As razões que conduziram o crítico a essa definição se
encontram no ensaio formuladas dentro da dinâmica que relaciona e compara as
três faces da prosa de ficção de Oswald de Andrade. Temos, portanto, de pinçar do
texto os aspectos mais específicos das Memórias sentimentais de João Miramar e
Serafim Ponte Grande, que possam nos orientar sobre os critérios de Candido para
eleger o par como os romances maiores. Comecemos com a seguinte afirmação de
Antonio Candido: “Antítese da atitude parnasiana, Serafim se junta às Memórias,
formando ambos a fase da negação” (1970b, p.45). Negação a quê? À atitude
parnasiana, conforme explicitado no texto. Essa atitude, entretanto, não diz respeito
apenas ao estilo, apesar de considerado sobredeterminante pela crítica. Sem negar
essa abordagem – a modernização da linguagem foi enfatizada pelos próprios
modernistas dos anos de 1920 –, numa perspectiva histórica, considerando a
combinação da linguagem moderna com o novo espaço-tempo da cidade que
crescia e se modificava, pode-se observar a negação tanto aos elementos dos
estilos literários do passado estagnado, que insistiam em sobreviver na literatura
brasileira mesmo que combatidos pelo movimento modernista, como também ao
contexto social da burguesia que referendava aquela literatura passadista, em
anacronismo com o novo espaço-tempo citadino. Entretanto deve-se identificar que
as críticas sociais estruturadas em Miramar “são pessoais ao invés de doutrinárias,
compatíveis com a linha de crítica individualista” (JACKSON, 1978, p. 31), o que era
comum entre os modernistas da primeira fase. Talvez por isso Machado Penumbra,
em seu prefácio, não se refira a uma crítica social, mas a um painel de eventos
tratado de um ponto de vista individual: “Memórias Sentimentais – por que negá-lo?
– é o quadro vivo de nossa máquina social que um novel romancista tenta
escalpelar” (1971a, p. 10-11). A “fase da negação” se consagra pela originalidade do
par, o que não ocorre com a Trilogia, que contém ainda muitos aspectos
tradicionalistas, além de lhe faltar o tom demolidor e subversivo da sátira e do
31
humor. Dessa forma, Miramar e Serafim apontam de fato para o novo, estilística e
ideologicamente, numa perspectiva antagônica à ordem vigente.
Outro trecho do ensaio nos possibilita vislumbrar a visão de Antonio Candido
sobre as Memórias sentimentais de João Miramar e do seu método de trabalho.
Inicialmente o crítico enfatiza a seriedade com que Oswald desenvolve o seu estilo e
a narrativa, contrapondo-se de imediato a qualquer especulação que viesse a tentar
encaixar aí uma perspectiva piadista – “além de ser um dos maiores livros da nossa
literatura, é uma tentativa seríssima de estilo e narrativa”. E proclama, ainda na
mesma página do ensaio, ser o livro uma sátira social da “burguesia endinheirada
[que] roda pelo mundo o seu vazio, as suas convenções, numa esterilidade
apavorante” (1970b, p. 43). Na sequência, Candido caracteriza o narrador e a
narrativa:
Miramar é um humorista pince sans rise que (como se diria naquele tempo) procura kodakar a vida impertubavelmente, por meio de uma linguagem sintética e fulgurante, cheia de soldas arrojadas, de uma concisão lapidar. Graças a esta linguagem viva e expressiva, apoiada em elipses e subentendidos, Oswald de Andrade consegue quase operar uma fusão da prosa com a poesia. (1970b, pp. 43-44)
A expressividade, para o crítico, é uma categoria fundamental para a
definição da qualidade da obra. Esse é um aspecto de tal forma enfatizado no
ensaio, e reforçado pelas leituras que se fazem dele, que a sua aliança com o plano
ideológico parece relegado. Entretanto, podemos observar o estético e o ideológico
caminhando juntos. O vazio da burguesia se torna componente da estrutura literária,
calcada na sátira social. Daí a importância das características do discurso, da
estrutura sincopada, da elipse, do valor telegráfico que a linguagem oswaldiana
adquire, articuladas com o conteúdo ideológico.
Poderíamos destacar mais alguns trechos do ensaio de 1945, porém não
teríamos contribuições que avancem muito além do já exemplificado. A explicação
para essa economia na análise de Miramar e Serafim pode ser vista em “Digressão
sentimental sobre Oswald de Andrade”. Conforme consta nesse último ensaio, na
época da elaboração de “Estouro e libertação”, havia uma forte expectativa em torno
da publicação de Marco zero, gerando assim uma atitude mais cautelosa do crítico,
afinal esperava-se por grandes obras de Oswald de Andrade que estariam por vir.
Antonio Candido reconhece que apesar do entusiasmo que sentia pelos dois
romances, atenuara-o bastante em função da expectativa criada por Oswald com
32
Marco zero, pois o escritor ainda não havia encerrado o seu ciclo de romancista, e
talvez o melhor ainda estivesse por vir, mesmo que o primeiro volume houvesse
decepcionado o crítico. Em 1970, já não havia outra possibilidade, o melhor da prosa
de ficção de Oswald de Andrade estava consolidado nos dois livros que constituem
o “par ímpar”. Podemos então prosseguir nossa busca pelas razões que levaram
Candido a identificar Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte
Grande como os melhores romances de Oswald de Andrade no ensaio de 1970.
“Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade” foi elaborado contendo
seis partes, das quais Antonio Candido dedica uma delas ao estudo de Memórias
sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, que apresenta o sugestivo
título “O par ímpar”. Como já dissemos, a expressividade é uma categoria
fundamental para Antonio Candido desenvolver o seu juízo sobre a produção
romanesca de Oswald de Andrade. Em certo momento do ensaio afirma:
“Esquematicamente, diríamos que nos melhores livros de Oswald o que sobressai é
a maneira” (1970a, p. 83), ou seja, a invenção estilística. Porém, repetimos, isso não
significa que o plano ideológico seja desconsiderado. Os processos de composição
mais gerais empregados por Oswald de Andrade, como o estilo centrado no choque,
na síncope, na elipse, com blocos curtos, justapostos, rompendo as sequências
lógicas e contínuas da tradição realista, em Miramar e Serafim são conduzidos até o
limite. Na Trilogia, as inovações encontram-se presas a um ponto de vista moral,
vinculado de certa forma ao padrão realista tradicional, e no Marco zero, Candido
identifica um recuo no uso desses processos de composição em favor de uma
tentativa de Oswald de Andrade em buscar uma unidade estrutural com o propósito
de retratar um panorama social na sua totalidade. Seria isto um engano de Oswald
de Andrade, pois, diante da nova e complexa realidade urbano-industrial do século
XX, a representação ampla de um panorama social não era mais alcançada pela
narrativa unitária realista. Ao contrário, essa realidade social seria mais bem
apreendida pelo leitor com a multiplicidade de enfoques e cenas, justapostas,
apresentadas como estruturas móveis, de maneira descontínua. Dessa forma, se
atingiria a representação do objeto com mais amplitude do que com a narrativa
unitária.
Antonio Candido aborda ainda o inconformismo, traço presente em todos os
romances oswaldianos, ressaltando que quando tratado pelo viés do sarcasmo, da
ironia, da sátira, aumenta em muito a sua expressividade. O mesmo não ocorre
33
quando o tom é sério. O inconformismo, neste caso, parece não ter o mesmo
alcance, perdendo em intensidade e precisão, como ocorre na Trilogia e no Marco
zero, cujos romances estão ancorados na retórica decadentista e naturalista,
respectivamente. Pelo sarcasmo, Oswald de Andrade dirige a sua crítica ao seu
próprio meio social, e assim expõe as estruturas elitistas da sociedade paulista
provinciana do início do século passado. Mas esse aspecto do estilo de Oswald de
Andrade não se constitui baseado apenas no sarcasmo. Antonio Candido observa
também que “o tom melhor de Oswald implica a sua fusão com a poesia, sobretudo
pela extensão de processos poéticos a contextos quaisquer. Sarcasmo-poesia, e
não sarcasmo-sarcasmo” (1970a, p. 79-80). Dessa forma nos deparamos com um
tipo de ruptura com as formas fixas dos gêneros literários e dos critérios tradicionais
de valoração do material literário. Como consequência desse procedimento,
engendram-se novas possibilidades estilísticas, em que se compreende a estrutura
do romance como uma extensão de visões poéticas. Candido, com o propósito de
sintetizar em uma expressão o que considera o melhor de Oswald de Andrade,
estabeleceu a seguinte fórmula: “máximo de descontinuidade + máximo de
sarcasmo-poesia = máximo de expressividade” (1970a, p. 86).
Outro aspecto apresentado por Antonio Candido para a caracterização do par
enquanto o melhor da prosa oswaldiana foi a transfiguração das experiências
pessoais vivenciadas pelo escritor para os seus livros. Esse é um importante
aspecto que não foi considerado no ensaio de 1945, provavelmente devido à
abordagem dos estudos literários daquele momento, em que a vida do personagem
Oswald de Andrade se sobrepunha à sua literatura, conforme já dissemos, e a
necessidade de romper com esse paradigma. Podemos identificar a presença
consolidada dessa transfiguração tanto no par como na Trilogia, enquanto no Marco
zero, Oswald tende a se afastar desse procedimento, pois nesta fase a intenção do
autor é mais documentária, no sentido histórico-social. Segundo Antonio Candido,
em “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”, quanto mais Oswald se
afasta das transfigurações das experiências pessoais, mais se afasta de si mesmo,
das qualidades que fazem dele um grande escritor. Dito de outra forma, o melhor da
produção romanesca de Oswald de Andrade está exatamente nos textos amparados
nessa transfiguração. Entretanto não apenas isso. Comparando a transfiguração na
Trilogia e no par, Antonio Candido observa que a associação com o veio humorístico
é determinante para a qualidade dessa realização. Em Miramar e Serafim a
34
transfiguração ocorre dessa forma e tem por resultado um dinamismo no enredo e a
elaboração de personagens convincentes, pois preservam a humanidade
característica da vida “real”. Quando o tom é sério, conforme ocorre na Trilogia, as
personagens tendem a aproximar-se de clichês, assim como o enredo parece
forçado, com propósitos moralistas.
Após a publicação de “Estouro e libertação” e com uma convivência mais
próxima com o escritor, Antonio Candido passou a insistir para que Oswald de
Andrade escrevesse a sua autobiografia. O crítico, de alguma forma, intuía as
contribuições desse trabalho para uma melhor compreensão da obra. Em 1952,
Oswald iniciaria a redação de suas memórias, no mesmo dia em que havia recebido
Candido em um almoço e lhe teria prometido começar a escrever o “diário
confessional”, que viria a ser publicado em 1954 sob o título: Um homem sem
profissão. Memórias e confissões. Sob as ordens de mamãe. Esse primeiro e único
volume escrito e publicado das memórias de Oswald, um projeto de quatro tomos
interrompido pelo falecimento do autor, fora apresentado pelo texto “Prefácio inútil”,
escrito por Antonio Candido, em que o crítico deixa claro já no primeiro parágrafo
que vida e obra nunca se separam em Oswald de Andrade. Em 1970, numa carta
endereçada a Antonio Candido após a leitura dos originais do ensaio “Digressão
sentimental sobre Oswald de Andrade”, Rudá de Andrade corrobora com essa
compreensão: “Creio que a obra de Oswald não pode ser estudada desvinculada de
sua vida”7 (apud CANDIDO, 1970a, p. 89). De fato, a leitura de Um homem sem
profissão faz ver ao leitor a relação profunda entre a vida e a obra do escritor.
Quando cotejamos, por exemplo, as Memórias e confissões de Oswald de Andrade
com as Memórias sentimentais de João Miramar, há passagens do primeiro que
saíram do segundo, e vice-versa, a ponto de não haver uma fronteira rígida entre o
mundo “real” e o mundo “ficcional”. Ficção e confissão interagem. Há um espaço
biográfico reconhecível, traduzido como matéria ficcional, que a nosso ver antecipa
um debate que ganharia vulto ao longo do século XX e do atual, inclusive no campo
das chamadas ciências exatas, sobre a demarcação de limites entre realidade e
ficção. A autobiografia de Oswald de Andrade possibilita-nos ainda perceber como o
escritor captava na vida os seus personagens, moldando-os conforme a sua
7 Carta publicada como anexo do ensaio “Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade”.
35
sensibilidade. E é esta sensibilidade, conforme registra Candido, a responsável pela
desenvoltura quando o tom é satírico, como no par Miramar-Serafim.
Podem ser observados ainda em “Digressão sentimental sobre Oswald de
Andrade” a apresentação de dois traços fundamentais para o estudo da obra
oswaldiana e que estão presentes também na personalidade do escritor: devoração
e mobilidade. A devoração, segundo Antonio Candido, para além do aspecto
simbólico da Antropofagia, atua como um dispositivo ligado à compreensão do
mundo por Oswald, constituinte de sua personalidade. É um procedimento de
captação, moagem e recomposição do mundo, para assim compreendê-lo e
expressá-lo. Daí resultaria o seu discurso fragmentário, aos pedaços, que exige do
leitor a atitude de recompô-lo. Portanto, essa devoração não teria o sentido
destrutivo como valor absoluto, mas seria uma estratégia de construção de outro
mundo, de outra literatura, de outras utopias. Nesse procedimento há um certo
anarquismo espontâneo e boêmio, que comporta uma perspectiva libertária. Para
Candido, mesmo após a adesão de Oswald ao marxismo, esse anarquismo nunca
foi superado, “porque ele foi o segredo da sua elasticidade e um dos fatores da sua
mobilidade sem fim” (1970a, p. 78). Este é o outro traço fundamental da vida e da
obra de Oswald de Andrade abordado por Antonio Candido: mobilidade. Na vida do
escritor, é flagrante a mobilidade enquanto diretriz: as mudanças de endereços, de
amores, de amizades, as viagens, as polêmicas etc. Na literatura, Candido reflete
sobre a composição dos romances de Oswald com as seguintes palavras:
Quando é boa, a sua composição é muitas vezes uma busca de estruturas móveis, pela desarticulação rápida e inesperada dos segmentos, apoiados numa mobilização extraordinária do estilo. É o que explica a sua escrita fragmentária, tendendo a certas formas de obra aberta, na medida em que usa a elipse, a alusão, o corte, o espaço branco, o choque do absurdo, pressupondo tanto o elemento ausente quanto o presente, tanto o implícito quanto o explícito, obrigando a nossa leitura a uma espécie de cinematismo descontínuo, que se opõe ao fluxo da composição tradicional. (1970a, p. 78)
Em 1954, Antonio Candido escreveu o ensaio “Oswald viajante”, dedicado à
questão da mobilidade. Tanto as Memórias sentimentais de João Miramar como
Serafim Ponte Grande têm nas viagens intercontinentais realizadas pelos
personagens um elemento fundamental da narrativa que estabelece a articulação
entre o novo e o arcaico, processo pelo qual se forja a consciência da necessidade
de revisão dos valores tradicionais arraigados na América diante das novas
experiências vivenciadas no deslocamento. Nesse sentido, mesmo quando
36
realizadas apenas por entretenimento, as viagens representam não apenas a
descoberta de novidades, mas acabam por fornecer a compreensão a respeito das
lacunas culturais dos personagens em relação ao próprio país. Dito de outra forma,
as viagens permitem, a partir do distanciamento e do deslocamento, uma nova
percepção que resulta em outro reconhecimento do Brasil. Esse seria o sentido das
viagens nas obras de Oswald de Andrade, que se estende também ao estilo, como
movimento constante das frases e estruturas. Seria ainda o sentido do drama de
João Miramar e Serafim Ponte Grande, o choque entre as poderosas amarras
ancestrais de classe e os impulsos de libertação, sempre em conflito e inconciliáveis.
Seria também o drama de Oswald de Andrade, transfigurado para a literatura: em
Memórias sentimentais de João Miramar como instintivo, em Serafim Ponte Grande
como processo consciente e utópico. Conforme já vimos anteriormente, quanto mais
os procedimentos empregados por Oswald de Andrade na elaboração do texto se
aproximam da essência do próprio autor, maior é a expressividade literária. Nas
palavras de Antonio Candido, uma espécie de síntese em relação à questão da
mobilidade: “Oswald consegue na verdade encarnar o mito da liberdade integral pelo
movimento incessante, a rejeição de qualquer permanência” (1970c, p. 56).
Vimos, portanto, um quadro de aspectos, sem o propósito de esgotá-lo, que
levou Candido a eleger o par Miramar-Serafim enquanto o melhor da produção
romanesca de Oswald de Andrade. Esse quadro também nos oferece uma boa
reflexão sobre essa produção. Por fim, recolocamos a questão de que as Memórias
sentimentais de João Miramar constituíram uma base sobre a qual Serafim Ponte
Grande seria desenvolvido, num processo de radicalização do experimento
oswaldiano. No ensaio de 1945, Antonio Candido escreveu que Miramar era “mais
bem comportado” do que Serafim. Essa afirmação se explica pois, na comparação
entre os dois romances, aquele estaria mais próximo de um modelo de estrutura que
tem a unidade como elemento fundamental. Sobre esse aspecto, Haroldo de
Campos, no ensaio “Serafim: um grande não-livro”, afirmou que embora Miramar
seja montado em estilo fragmentário, o que produz “um efeito desagregador sobre a
norma da leitura linear”, preserva sobre essa mesma norma “um rarefeito fio
condutor cronológico” (1971b, p. 104). Isso porque há em Miramar certa unidade
estrutural sustentada por índices de uma cronologia das fases da vida do narrador-
-personagem, que orienta a recepção das Memórias sentimentais. Estamos diante
de um romance que articula uma “desordem” sincrônica apoiada em indícios de uma
37
“ordem” diacrônica. Ou seja, o princípio articulador dos episódios não é a lei da
causalidade, como ocorre em um romance tradicional, no qual um capítulo é seguido
necessariamente de outro, até o desfecho, como um processo de causa e efeito, o
que conduz a narrativa a uma sequência com início, meio e fim, facilmente
detectada pela recepção. Em Miramar, há uma colagem de episódios que
justapostos formam blocos, digamos, autônomos. Daí a ordenação dos episódios
não obedecer a uma lógica imperativa, entretanto há um fio condutor cronológico
sobre o qual aportam esses episódios que, teoricamente, podem modificar as suas
posições.
2.2 A VANGUARDA NA MIRA
Todos os estudos sobre o movimento modernista brasileiro concordam com o
fato de haver uma sintonia deste com a vanguarda artística europeia. Esse é um
ponto pacífico, no entanto nos interessa ver como Haroldo de Campos analisou a
estrutura das Memórias sentimentais de João Miramar, tendo por referência o
cubismo e o futurismo. No ensaio “Estilística miramarina”, publicado no Suplemento
Literário de O Estado de São Paulo, em outubro de 1964, e incorporado ao livro
Metalinguagem, cuja primeira edição saiu em 1967, o crítico debruçou-se sobre o
estilo do Miramar, enfatizando os aspectos cubistas. Na conclusão desse estudo,
Haroldo fez a seguinte afirmação: “Desidentificando berrantemente seu estilo dos
padrões aceitos, rompendo inclusive consigo mesmo, Oswald, através das Memórias
sentimentais de João Miramar e, depois, do Serafim Ponte Grande, plantou o marco
definitivo de nossa prosa nova” (2010, p. 106). Temos nessa sentença três aspectos
que nos chamam a atenção: a criação por Oswald de Andrade de um estilo
inaugural, excessivamente distinto dos padrões vigentes aceitos pela comunidade
que dominava o cenário literário no Brasil daqueles tempos; o fato dessa criação ser
também uma ruptura com o que o próprio autor já produzira; e, como terceiro
aspecto, serem as Memórias sentimentais um marco, consolidado depois por
Serafim Ponte Grande, para toda a nova prosa de caráter inventivo que viria a ser
elaborada. Procuraremos ver, primeiramente, como esses três aspectos, que
necessariamente se articulam como um conjunto, foram desenvolvidos ao longo do
texto de Haroldo de Campos.
38
O crítico iniciou o ensaio “Estilística miramarina” observando que a prosa de
Oswald de Andrade contém o impacto provocado pela linguagem pictórica da
vanguarda europeia com a qual o escritor travara contato nas exposições de Paris,
no período anterior à Primeira Grande Guerra. Daí a visualidade como elemento
marcante no texto de Oswald. Em especial, os elementos futuristas e cubistas
pareciam dar a Haroldo de Campos o sentido da prosa em Miramar. A partir dessa
observação, o crítico recorreu a Roman Jakobson para buscar uma chave que
conduzisse a uma possível decifração da prosa oswaldiana, naquilo que talvez
caracterize o que há de mais perturbador nessa obra. Reproduziremos aqui algumas
considerações, expressas por Haroldo, sobre o estudo de Jakobson dedicado à
investigação dos aspectos linguísticos na síndrome da afasia, no qual o linguista e
crítico literário russo, instalado nos Estados Unidos, concluiu poder haver dois tipos
de perturbações em decorrência da síndrome que afetariam as operações de
substituição ou de combinação. No primeiro caso, atingiria as relações de
similaridade, que viabilizam a elaboração da metáfora, enquanto no segundo caso,
afetaria a capacidade de hierarquização das unidades linguísticas e formação de
contextos, abrangendo as relações de contiguidade, que propiciam a metonímia.
Segundo Jakobson, ambas as orientações atuam no discurso em sua forma natural,
mas em situações específicas pode prevalecer uma das operações. Este seria o
ponto de relevo para Haroldo de Campos, pois no processo de elaboração artística
tende-se a enfatizar uma dessas operações. Daí Haroldo observou haver nas
Memórias sentimentais de João Miramar uma ênfase na operação metonímica que
lhe pareceu caracterizar essa obra. Caberia, então, buscar compreender como a
operação metonímica ocorre no romance de Oswald de Andrade e como ela
surpreende, a ponto de gerar os três aspectos acima destacados.
Para Jakobson, na arte, conforme o estilo, há preferência por uma das
operações. Na poesia romântica, por exemplo, ocorre o predomínio da operação
metafórica, que se realiza sobretudo no plano semântico e evidencia os mecanismos
de substituição, similaridade e contraste; enquanto no realismo, a operação
metonímica é primordial, pois prevalece neste estilo o princípio da contiguidade, que
se estabelece nas relações sintagmáticas, pelo qual o autor vai da realidade exterior
às representações nas obras, hierarquizando as unidades linguísticas e formando
contextos. Esta última operação envolve tanto a metonímia como a sinédoque.
Considerando que esse processo não se destina única e exclusivamente à
39
linguagem verbal, pode-se observar que na pintura cubista também predomina uma
orientação metonímica, entretanto realizada de forma diferente da representação
realista e renascentista, pois se rompe com a mimética tradicional, cujo conceito é
posto em xeque. O aspecto fundamental da pintura cubista está na especificidade da
linguagem, pois o objeto representado é decomposto em partes que constituem os
elementos organizados na estrutura da obra, em diferentes planos e ângulos, em
espaços múltiplos e descontínuos, constituindo um “sistema sinedóquico”. Cabe ao
espectador, com o seu olhar, remontar o objeto.
Assim, nessa pintura, não há mais a representação do objeto enquanto cópia
da forma apreendida tradicionalmente pelo nosso olhar na realidade exterior ao
quadro, e a sua compreensão se dá no material do universo próprio da pintura, na
composição das possíveis relações dos elementos. Da mesma forma, a realização
da prosa cubista “não se refere imediatamente à representação de um objeto do
mundo exterior ao texto, mas sim ao texto em si mesmo, como seu próprio objeto
estético, no sentido da realidade do mundo que lhe é privativo” (BENSE, 1962 apud
CAMPOS, 2010, p. 101). Ou seja, o estilo cubista é constituído por partes de
objetos, poderíamos dizer fragmentos, que são articulados na obra dando-lhe o
sentido estético. Portanto, a obra cubista, em princípio, é “um objeto variável, cujos
elementos se prestariam sempre a uma outra apresentação, a um outro arranjo”
(CAMPOS, 2010, p. 101). Antonio Candido, em “Digressão sentimental sobre
Oswald de Andrade”, apresenta semelhante conclusão ao abordar a mobilidade
como um aspecto relevante da obra de Oswald de Andrade, cuja composição seria
feita pela “busca de estruturas móveis, pela desarticulação rápida e inesperada dos
segmentos, apoiados numa mobilização extraordinária do estilo” (1970a, p.78).
Dessa forma, Candido explica a escrita fragmentária de Oswald de Andrade,
observando que ela tende à obra aberta, conforme já referido. Assim, os fragmentos
das Memórias sentimentais de João Miramar são estruturas móveis, com as quais
Oswald de Andrade cria um estilo novo na prosa brasileira ao realizar uma colagem
por justaposição desses fragmentos, que requer a participação efetiva do leitor na
formulação dos significados do texto.
Haroldo de Campos destacou do capítulo “50. ADEUS E JAZZ BAND”, do
Miramar, um exemplo da prosa cubista de Oswald de Andrade: “Um cão ladrou à
porta barbuda em mangas de camisa e uma lanterna bicolor mostrou os iluminados
40
na entrada da parede.”8 (1971a, p. 34). Nessa frase, a porta recebe qualidades que
são do porteiro, que por sua vez é apresentado ao leitor por elementos realçados de
sua figura total, ou seja, a barba e as mangas de camisa. Percebe-se claramente o
“sistema sinedóquico” da operação metonímica, em que elementos da realidade
exterior são selecionados e combinados livremente, numa nova ordem, constituindo
o objeto estético. O mesmo procedimento ocorre para dizer que o porteiro trazia uma
lanterna com a qual iluminou as pessoas que ali chegaram, na porta de entrada,
numa prosa sobremaneira plástica, que possibilita ao leitor compor a cena na sua
totalidade. Verifica-se que na prosa miramarina o estilo cubista guarda certa relação
criativa com o mundo exterior. Diferentemente do realismo tradicional que busca
formar um contexto ficcional que, de certa forma, reproduz com “fidelidade” a
percepção comum da realidade exterior à obra, o que conduz a um enfoque que
prioriza as articulações temáticas, no Miramar é a nova estrutura da obra que está
realçada. Com ela, Oswald de Andrade narra um fato corriqueiro da realidade, cuja
temática por si só não seria matéria artística, transformando-o em informação
estética. Assim, pode-se inferir que nesse procedimento do escritor está implícita
uma crítica à maneira naturalista de representar a realidade exterior.
Posto isso, vê-se que a prosa miramarina mantém, em certa medida, um
vínculo com a realidade extralinguística. E isso é necessário por exigência de uma
das linhas fundamentais das Memórias sentimentais de João Miramar: a sátira. Para
a sua realização, tanto ao nível social como linguístico, é preciso que se estabeleça
um vínculo com a realidade da faixa social satirizada no texto, situada no tempo e no
espaço do mundo exterior. O próprio Oswald de Andrade registrou a necessidade
desse vinculo entre a sátira e a realidade exterior à obra em conferência proferida
em 1945, que consta no livro Estética e política, com o título “A sátira na literatura
brasileira”. Afirma Oswald:
Qual o prestígio da sátira? Qual a sua finalidade? Qual a sua função? Fazer rir. Evidentemente isso está ligado ao social. Ninguém faz sátira rindo sozinho. A eficácia da sátira está em fazer os outros rirem de alguém, de alguma instituição, acontecimento ou coisa. Sua função é, pois, crítica e moralista. (2011, p. 102)
8 Todos os trechos das Memórias sentimentais de João Miramar têm por referência a edição de 1971, mesmo
quando citados por outro autor.
41
Mais à frente nesse texto, referindo-se a Bergson, Oswald diz “que o riso deve ser
uma espécie de gesto social” (2011, p. 103, grifo nosso). Portanto, não há sátira sem
a referência à realidade exterior à obra. No entanto esse vínculo não deve ser
limitador das intenções críticas do autor, função de fundo da sátira.
Como a operação metonímica realizada nas Memórias sentimentais localiza-
-se na estrutura da obra, um novo contexto é fundado no próprio texto. Na
autobiografia de Oswald de Andrade, Um homem sem profissão, já vimos que
conforme se avança na leitura mais se reconhece nas pessoas “reais” as
personagens das Memórias sentimentais de João Miramar, e também da Trilogia e
de Serafim Ponte Grande. Portanto, várias personagens das Memórias sentimentais
foram extraídas dos ambientes frequentados por Oswald, com as deformações
criadas pela impressão pessoal e intenção do autor. Mas em todas as personagens
das Memórias sentimentais, reafirmamos, foi mantido o caráter humano, tal qual se
manifesta na realidade da vida exterior ao texto. Isso demonstra o nível de
articulação do texto com essa realidade, e também que a experiência de Oswald de
Andrade diante da vida transposta para a obra literária é parte importante do
procedimento de criação artística do romancista.
Assim, a prosa miramarina vincula-se à realidade exterior ao texto para o
efeito da sátira, mas sem se submeter a essa realidade, que é livremente
reordenada na obra numa perspectiva humorística que dê ampla liberdade para o
escritor exercer a crítica. Esse é um aspecto importante, e Oswald faz a crítica a
partir de seu próprio meio social pelo recurso da paródia. Talvez por isso, quando
Oswald de Andrade acerta o tom do sarcasmo, aumenta a expressividade, e em
caminho oposto, quando o tom é sério, o texto perde a contundência da crítica, pois
fica limitado pela necessidade de provar um ponto de vista moral ou ideológico
vinculado à realidade exterior ao texto. Nesse procedimento, com o tom sério,
Oswald parece perder a medida exata da linguagem dada pela orientação
metonímica do estilo cubista, e então a tendência é lidar com a realidade exterior ao
texto sob os limites da temática. Talvez seja esse um dos motivos para a Trilogia
conter traços conservadores em seu estilo, ou conforme registrou Haroldo de
Campos, pela predominância da orientação metafórica, enquanto prosa poética.
Em relação às Memórias sentimentais de João Miramar, o procedimento
metonímico conduziu Oswald de Andrade a romper estilisticamente com ele mesmo,
enquanto autor da Trilogia. Portanto, sintetizando, a partir da orientação metonímica
42
assimilada das pinturas cubistas expostas no início do século passado em Paris, e
de outros experimentos da vanguarda europeia vivenciados pelo escritor, como o
futurismo, tudo isso submetido ao filtro de uma ótica pessoal, o que possibilitou a
reelaboração dessas técnicas modernistas sob sua sensibilidade, Oswald de
Andrade criou uma prosa liberta das convenções do “bem escrever” ditadas pela
sociedade provinciana em que se formara, dominada por uma mentalidade
oligárquica rural e arcaica. Assim, com Memórias sentimentais de João Miramar,
Oswald de Andrade abriu uma porta para um campo de experiências artísticas a ser
explorado na evolução da literatura brasileira e, de forma mais ampla, da arte
brasileira.
Na sequência, buscaremos encorpar a análise crítica da obra de Oswald de
Andrade com outro estudo do próprio Haroldo de Campos, intitulado “Miramar na
mira”, publicado no mesmo ano de 1964, pouco antes de “Estilística miramarina”,
como introdução à segunda edição das Memórias sentimentais de João Miramar.
Nesse ensaio, Haroldo de Campos tem por intenção analisar a estrutura do Miramar
a partir de uma possível aproximação desse romance de Oswald de Andrade e
Ulysses, de James Joyce, este último escrito a partir de 1914 e publicado em 1922.
Ao nosso estudo não interessa seguir esse percurso, mas buscar registrar
importantes observações e análises que Haroldo fez das Memórias sentimentais.
Como em “Estilística miramarina” o crítico deteve-se nas influências cubistas, aqui
nos dedicaremos em especial às influências futuristas.
Dos muitos manifestos futuristas, os mais importantes voltados à literatura
foram publicados por Marinetti em 20 de fevereiro de 1909, o manifesto fundador “O
Futurismo”, e em 11 de maio de 1912, o “Manifesto técnico da literatura futurista”,
que recebeu um “Suplemento” em 11 de agosto do mesmo ano, em resposta às
publicações na imprensa que polemizaram com o manifesto, o que demonstra a
efervescência da época em Paris. As datas são importantes, pois Oswald de
Andrade embarcou no porto de Santos em 11 de fevereiro de 1912, rumo à Europa,
de onde retornou ao Brasil, sete meses depois, a 13 de setembro. Foi a primeira
viagem de Oswald ao continente europeu, quando ocorreu um dos mais decisivos
contato de um modernista brasileiro com os movimentos da vanguarda artística
europeia (BRITO, 1978). Nessa viagem, quando estava em Paris, Oswald teve a
oportunidade de ler os manifestos futuristas, que associavam a literatura às novas
técnicas urbano-industriais da vida moderna, combatiam frontalmente “a imobilidade
43
pensativa” do academicismo, dos museus, das bibliotecas, do moralismo – tudo que
se encontrava estagnado –, e exaltavam “a coragem, a audácia e a rebelião”, “o
movimento agressivo”, “o salto mortal”, “o bofetão e o soco”, “a beleza da
velocidade”. Pregavam uma nova literatura a partir da “destruição da sintaxe”, a
abolição da pontuação, o uso das “palavras em liberdade”, cujas relações se dariam
por analogia, para assim “fundir diretamente o objeto com a imagem que ele evoca,
fornecendo a imagem de esguelha, mediante uma única palavra inicial”
(MARINETTI, 1912 apud BERNARDINI, 1980, p. 82). Além da agressividade
enquanto elemento imprescindível no processo de ruptura com o passado, nota-se
nos manifestos a extraordinária atenção com a imagística.
Pela importância da visualidade no futurismo, e pelo propósito de buscar uma
possível aproximação entre Miramar e Ulysses, Haroldo de Campos recorreu a
James Johnson Sweeney, crítico de artes visuais que produziu um estudo sobre a
obra joyciana, observando a sua evolução da escrita em direção à imagística.
Segundo Haroldo, Sweeney analisou as influências futuristas sobre Joyce
considerando apenas o futurismo plástico, evocando A Pintura Futurista – Manifesto
Técnico, publicado em abril de 1910. Entretanto os preceitos do futurismo plástico
têm seus correlatos na poesia e na prosa futuristas, entre os quais a simultaneidade,
tratada por Sweeney como “interpretação simultânea de superfícies” (apud
CAMPOS, 1971a, p. xxxiii). A simultaneidade é um elemento fundamental da arte
moderna, imprescindível na vanguarda. A simultaneidade já havia sido apontada no
primeiro manifesto, de 1909: “O Tempo e o Espaço morreram ontem. Nós vivemos já
no absoluto, já que nós criamos a eterna velocidade onipresente.” (MARINETTI apud
BERNARDINI, 1980, p. 34). A velocidade atrai as imagens, abolindo dessa forma as
referências de tempo e de espaço, à procura de um eterno presente.
O poeta e pintor Ardengo Soffici, em sua Estética Futurista, pensou a
simultaneidade enquanto a manifestação de “todas as sensações e emoções, sem
perspectiva de espaço ou de tempo, atraídas e fundidas num ato criativo poético”
(apud CAMPOS, 1971a, p. xxxix). A simultaneidade entrecruza os tempos e os
espaços. Dessa forma, por exemplo, um simples objeto do cotidiano se liga como
imagem a um pensamento profundo sobre a existência, a um estado de espírito, que
por sua vez se liga a outro elemento mundano. Esse é um procedimento da técnica
do romance moderno. Por exemplo, nas Memórias sentimentais de João Miramar, a
simultaneidade já ocorre no capítulo “1. O PENSIEROSO”: uma recordação da
44
infância, em que as imagens do quarto materno se misturam com uma prece e com
impressões maliciosas surgidas no pensamento da criança, sem que haja
referências rígidas sobre espaço e tempo. Importam as sensações, as impressões,
as emoções – ingênuas e irônicas, nesse caso. Assim há uma reunião de assuntos,
espaços e tempos. A simultaneidade, a superposição, a fragmentação são aspectos
que não dizem respeito só ao futurismo, mais também ao cubismo e a outras
tendências da vanguarda artística, e da arte moderna.
A partir da simultaneidade, Haroldo de Campos percorreu dois caminhos em
“Miramar na mira”: um no qual apontou uma aproximação de Miramar da sintaxe
analógica do cinema – entendido à maneira eisensteiniana, neste caso, a nosso ver,
sem o devido aprofundamento teórico –, que de certa maneira deságua no segundo,
em que seguiu um percurso para a reflexão sobre a simultaneidade, a
descontinuidade e a fragmentação, considerando o procedimento da arte moderna
que remonta à estética do fragmentário, a qual possibilita uma reflexão consistente
sobre a estrutura da obra oswaldiana.
Quanto ao primeiro caminho, Haroldo de Campos tomou a ideia da
simultaneidade do ensaio “Estouro e libertação”, no qual Antonio Candido,
analisando Os condenados, escreveu ser Oswald de Andrade quem “lançou
ostensivamente e em larga escala (pelo menos no Brasil) a técnica cinematográfica”,
caracterizada pelo processo “da descontinuidade cênica, a tentativa de
simultaneidade, que obcecou o modernismo” (1970b, p. 38). No contexto dessa
afirmação, Candido considerou o emprego da técnica cinematográfica por Oswald
em oposição ao da técnica do contraponto que o escritor, em uma entrevista,
segundo o crítico, disse ter lançado no romance. Contraponto, para Antonio
Candido, exige “na narrativa uma pluralidade de focos de atenção que não existe
nos romances de Oswald de Andrade antes de A revolução melancólica” (1970b, p.
38). No ensaio “Miramar na mira”, Haroldo de Campos cita Candido confirmando a
simultaneidade na caracterização da prosa cinematográfica e considera o emprego
dessa técnica nos romances oswaldianos esteticamente mais bem realizada no par
Miramar e Serafim, pois sem o propósito da monumentalidade da obra cíclica, a
síntese de Oswald alcançou um resultado pleno com a montagem de fragmentos. A
longa frase que dá sequência às conclusões de Campos, transcrita a seguir, além de
tratar do emprego da técnica cinematográfica por Oswald, apresenta a noção, que
não foi desenvolvida, da existência de diferentes tipos de cinema.
45
Uma vez que a ideia de uma técnica cinematográfica envolve necessariamente a de montagem de fragmentos, a prosa experimental de Oswald dos anos 20, com a sua sistemática ruptura do discursivo, com a sua estrutura fraseológica sincopada e facetada em planos díspares, que se cortam e se confrontam, se interpenetram e se desdobram, não numa sequência linear, mas como partes móveis de um grande ideograma crítico- -satírico do estado social e mental de São Paulo nas primeiras décadas do século, esta prosa participa intimamente da sintaxe analógica do cinema, pelo menos de um cinema entendido à maneira eisensteiniana. (1971a, p. xli)
A caracterização da prosa oswaldiana como cinematográfica já havia sido
feita na década de 1920 por ensaístas como Mário de Andrade, Sérgio Buarque de
Holanda, Prudente de Moraes, neto, Tristão de Athayde. Isso porque os
procedimentos oswaldianos pareciam análogos aos da narrativa cinematográfica,
muito ainda em relação ao grande salto dado com o cineasta norte-americano David
Wark Griffith, pioneiro na montagem cinematográfica com o propósito de
desenvolver a capacidade narrativa do cinema. Com Griffith, a câmera deixou de
assumir a posição fixa de um espectador de teatro, sentado no centro da plateia, de
onde se observam as cenas que ocorrem no palco, e passou a se movimentar,
aproximando-se e se afastando da cena, saltando para ocupar posições que um
espectador de teatro jamais ocuparia, fazendo enquadramentos inusitados para
aquela época, tudo isso em prol de uma narrativa cinematográfica que ganhava
identidade própria ao afastar-se do teatro. O romance de Oswald de Andrade
parecia trazer esses aspectos da montagem do cinema em sua composição. Assim,
a caracterização da prosa de Oswald de Andrade como cinematográfica se deu
principalmente pelos aspectos técnicos.
Quando Antonio Candido abordou essa questão em “Estouro e libertação”, o
fez de forma pontual, em que comparava duas técnicas narrativas. Haroldo de
Campos, anos depois, recuperou a relação da prosa oswaldiana com o cinema e, a
nosso ver, tentando escapar da generalização, buscou localizar a prosa
experimental de Oswald de Andrade dentro do campo do cinema – “pelo menos de
um cinema entendido à maneira eisensteiniana” –, não aprofundando o tema e se
limitando à questão da técnica cinematográfica, o que, de certa forma, reduz a
compreensão da montagem ao aspecto da junção de fragmentos, e assim cria uma,
digamos, fragilidade de ordem teórica. É certo que a fragmentação seja uma
característica do fazer cinematográfico, de tal forma que a emenda tende a
46
permanecer visível, por isso a montagem é tão evidente no cinema. No entanto, a
fragmentação está na arte de vanguarda e é também uma característica da
modernidade, incorporada à linguagem. A montagem é tanto mais visível quanto
mais ela evidencia a descontinuidade. No caso da arte moderna, por exemplo, a
poesia tende a uma ruptura da ordem sintática, do encadeamento da frase, em que
a justaposição de palavras soltas evidencia a ideia de montagem. Daí a montagem
não ser um processo exclusivo do cinema, mas de todas as expressões artísticas.
Talvez a principal fragilidade nessa citação seja não se ter levado em conta que
Eisenstein (2002a; 2002b) concebeu a sua teoria da montagem cinematográfica
para além do campo fílmico e para além das fronteiras puramente técnicas,
colocando-se profundamente comprometido com as questões ideológicas do período
histórico em que produziu a sua arte.
Em relação ao segundo caminho a que nos referimos, Haroldo de Campos
assinalou que o fragmentarismo das Memórias Sentimentais de João Miramar é um
marco da introdução na nossa prosa moderna, e também de sua projeção, da
estética do fragmentário. Campos recorreu a estudo de Hugo Friedrich para afirmar
que a fragmentação pode ser vista na poesia e na prosa da última fase de Mallarmé,
cujo estilo se caracteriza pela decomposição da frase em fragmentos, pela
destruição da sequência linear e substituição das ligações sintáticas por
justaposições, sinais “de uma descontinuidade interior, de uma linguagem nas
fronteiras do impossível” (FRIEDRICH apud CAMPOS, 1971a, p. xlii). Nesse sentido,
o fragmentário tornou-se um postulado da Estética moderna, originado de um mundo
transformado pela Primeira Revolução Industrial. Mallarmé, com o procedimento de
fragmentação da linguagem, estampou a crise da linguagem lógico-discursiva para a
poesia, e para a prosa que dela se avizinharia, que não dava conta da nova
realidade urbano-industrial. Com a transformação das cidades e da realidade,
vieram as vanguardas do início do século XX, e muitas das concepções de Mallarmé
foram reintroduzidas pelo futurismo, e aparecem de maneira explícita, sobretudo, no
“Manifesto técnico da literatura futurista”, de 1912, tanto nos itens que abordam a
sintaxe, como nos que tratam da imagem.
Ainda nesse ensaio, Haroldo de Campos afirmou que por trás das Memórias
sentimentais de João Miramar (e também de Ulysses) “atuaram os manifestos, a
poesia e a prosa de combate dos futuristas” (1971a, p. xxxi). Sem dúvida, tanto no
aspecto estético do texto como na atitude de confrontação veem-se as raízes
47
futuristas. Para demonstrar a forte influência que a literatura de Oswald de Andrade
recebeu da “imagística sonoro-visual” do movimento futurista, Haroldo comparou
trechos da prosa de Marinetti com trechos do Miramar. No entanto o crítico ressalvou
a presença de elementos tradicionais no romance Mafarka de Marinetti, publicado
em 1910, e apontou os manifestos como os principais textos do movimento. O
futurismo, com seus inúmeros manifestos sobre diversas áreas – literatura, pintura,
escultura, música, ciência, moral, política etc. – caracterizou-se principalmente como
um movimento de manifestos, forma sobre a qual divulgou e fixou os seus preceitos.
Oswald de Andrade também fixaria os seus preceitos modernistas em
manifestos publicados em 1924, “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”, e em 1928,
“Manifesto antropófago”. Mas, além dos manifestos, produziria com qualidade uma
poesia e uma prosa nas quais se encontram esses preceitos, que estruturam a sua
obra. Ficaremos em nosso objeto de estudo: Memórias sentimentais de João
Miramar. O texto inicial desse romance, “À guisa de prefácio”, escrito ficticiamente
pelo Sr. Machado Penumbra, em estilo empolado e repleto de clichês acadêmicos –
uma linguagem estagnada, que não deve ser tida como modelo literário –, contrasta
brutalmente com o próprio estilo do livro que o Sr. Penumbra apresenta aos leitores,
este sim um exemplo de escrita moderna. Há nesse texto de apresentação jocoso,
de forma sutil, os preceitos programáticos de Oswald de Andrade que se
contrapõem à retórica artificial e falsa do academicismo que então predominava no
campo literário brasileiro. Haroldo de Campos sintetizou de maneira bastante precisa
esse jogo dual que Oswald realiza dizendo haver “um antimanifesto na paródia
linguística e um manifesto verdadeiro nas definições de técnica de composição que
nele estão insertas” (1971a, p. xviii). Essa paródia linguística está embebida de
futurismo, tanto na sua crítica ao estilo retórico, artificial e passadista, como na
atitude de “bofetear” ao ridicularizar o discurso oficial. Estão, portanto, nas
entrelinhas, muitas das ideias programáticas de Oswald de Andrade que seriam
explicitadas nos axiomas do “Manifesto da Poesia Pau-Brasil”. Não só no pseudo-
-prefácio, mas também em vários episódios das Memórias sentimentais de João
Miramar, a paródia foi empregada por Oswald de Andrade como recurso estilístico e
estrutural que põe em evidência e ridiculariza a linguagem pretensamente rebuscada
e falsa que servia de jargão a uma faixa social urbana letrada, caracterizada
satiricamente pela paródia, e um dos alvos da crítica oswaldiana. Assim, esse
48
recurso fundamental da literatura moderna assume o papel de sátira social na prosa
de Oswald de Andrade.
Em novembro de 1922, Oswald de Andrade publicou no Jornal do Comércio o
artigo “O futurismo tem tendências clássicas”, em que estabeleceu uma diferença
entre classicismo e academismo: “clássico é o que atinge a perfeição de um
momento humano e universal (Fídias, o Dante, Nicolas Poussin, Machado de Assis).
Academismo, não. É cópia, imitação, é falta de personalidade e de força própria”
(2011, p. 32). Vemos, portanto, que o ataque é destinado a um passado estagnado,
a serviço dos ideais conservadores, oposição à possibilidade de “ver com olhos
livres”, ou seja, à elaboração de novos significados e novas ideias num novo mundo
em transformação. E conclui o artigo com preceitos futuristas:
Queremos mal ao academicismo porque ele é o sufocador de todas as aspirações joviais e de todas as iniciativas possantes. Para vencê-lo destruímos. Daí o nosso galhardo salto de sarcasmo, de violência e de força. Somos boxeurs na arena. Não podemos refletir ainda atitudes de serenidade. Essa virá quando vier a vitória e o futurismo de hoje alcançar seu ideal clássico. (2011c, p. 34)
Como o futurismo pregava a ruptura e tinha o combate enquanto um de seus
principais métodos de atuação, isso viria a incomodar a elite literária paulista
acadêmica, cuja mentalidade era ainda ruralista, patriarcal e muito conservadora.
Veremos agora, a partir de estudo de Mário da Silva Brito sobre os antecedentes da
Semana de Arte Moderna, a conotação que a palavra “futurismo” ganhou no Brasil.
Em 1912, Oswald de Andrade retornou da Europa trazendo na bagagem o
impacto das novidades que conhecera no velho continente, tornando-se, conforme
registra o crítico, “o primeiro importador do futurismo”, com o qual anunciou “o
compromisso da literatura com a nova civilização técnica” (BRITO, 1978, p. 29).
Cabe situar que o ambiente literário no Brasil daqueles tempos era
predominantemente parnasiano e a “civilização técnica” encontrava-se ainda em
estágio inicial. Contagiado pelo que vira na Europa, Oswald buscaria divulgar no
Brasil as experiências europeias, principalmente o futurismo. Naquele tempo, em
São Paulo e no Rio de Janeiro, a estrutura material obtivera os seus primeiros
avanços mais significativos sob o signo do progresso, com a implantação de
fábricas, a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, o combate à febre
amarela com o saneamento da capital federal sob a coordenação de Osvaldo Cruz,
a reformulação do porto, a grande reforma urbanística do Rio de Janeiro e a
49
expansão urbana e populacional da cidade de São Paulo, para onde se deslocavam
imigrantes que ocupariam postos de trabalho do setor industrial em crescimento.
Cabe registrar que a lei do povoamento do solo de 1907 facilitou a imigração, que já
ocorria de forma mais tímida desde o século XIX, possibilitando ao Brasil receber
uma espantosa quantidade de imigrantes de várias partes do mundo, o que levaria
Ronald de Carvalho a dizer que o brasileiro “não é mais o exclusivo produto da
mistura de três grupos raciais – o índio, o africano e o português” (apud BRITO,
1978, p. 27). O Brasil, entenda-se os principais núcleos urbanos, ingressava no ciclo
da técnica em busca de uma afirmação civilizadora. De fato, essa euforia não ia
além dos limites muito rígidos de uma sociedade ainda predominantemente agrária e
conservadora, sobretudo no que diz respeito à mentalidade, presa ao passado e ao
espírito tradicionalista. No plano literário, predominava o mito do “bem escrever” e a
extrema valorização da forma ideal, rigidamente construída. A atualização da
literatura brasileira exigiria uma atitude de conflito. Nessa perspectiva, o futurismo,
importado da Europa, com seu propósito de ruptura violenta com as velharias
estagnadas, desempenharia um importante papel para o movimento modernista
brasileiro.
A princípio, os preceitos do futurismo foram divulgados por iniciativas
pontuais. Posteriormente, o termo ganharia um significado particular no Brasil em
decorrência do acirramento do confronto entre a nova arte e a estética passadista
então consagrada. Nesse conflito, a palavra criada por Marinetti é aplicada pelos
tradicionalistas, conforme registra Mário da Silva Brito, como etiqueta de “sentido
pejorativo e significa, no mínimo, falta de equilíbrio; está ligada à ideia de loucura, de
patológico” (1978, p. 162). Essa era a maneira de as forças conservadoras atacarem
os artistas que se distanciavam dos padrões vigentes naquela época. Todos que se
afastavam um pouquinho das normativas consagradas eram etiquetados como
futuristas, e tudo que continha algo um tanto diferenciado era futurismo. Em
contrapartida, pode-se dizer, foi também uma forma de os adversários dos
modernistas arregimentarem diferentes artistas em um mesmo grupo, classificando
todos como futuristas, mesmo que não fossem seguidores dessa estética. Se por um
lado os conservadores erraram ao tratar indiferentemente todos por futuristas, por
outro, vieram a reconhecer a existência de uma arte que se opunha aos padrões
estéticos em vigência. Portanto, o bloco futurista era composto por artistas que,
50
nesse sentido específico no Brasil, se distanciavam da arte acadêmica então
reinante, sem que fossem consideradas as diferenças específicas dos estilos.
Os artistas desse grupo, que viriam a realizar a Semana de Arte Moderna, em
1922, começaram a se encontrar mais constantemente por ocasião da exposição de
Anita Malfatti, em 1917, quando a pintora, após viver uma temporada na Europa,
onde travou contatos com o expressionismo alemão, e outra em Nova York, em que
pintou o primeiro nu cubista brasileiro, expôs os seus quadros que criaram grande
polêmica após a publicação em O Estado de São Paulo, edição da noite, em 20 de
dezembro de 1917, do artigo de Monteiro Lobato, “A propósito da Exposição de
Malfatti”. A princípio esses poucos artistas não constituíam ainda um grupo
propriamente dito. Depois receberam a incorporação de alguns outros artistas, como
a do escultor Victor Brecheret, também combatido pelo elitismo conservador, mas
que angariou elogios de parte da crítica, contribuindo com a causa modernista.
Monteiro Lobato foi um dos críticos que reconheceu a grandeza de Brecheret,
apesar de ter conservado a sua opinião de 1917 sobre Malfatti. E os artistas
modernos foram se fortalecendo com discussões, reuniões, debates, polêmicas.
Em 1920, a palavra “futurismo” já fazia parte do vocabulário paulista. Foi
nessa ocasião que os artistas da nova arte começaram a se definir e a se
movimentar objetivamente como grupo em oposição ao que era na época a
“inteligência nacional”. Oswald de Andrade achava interessante o uso da palavra
“futurismo” como um identificador do grupo, pois julgava que naquele primeiro
instante do movimento ela servia bem aos seus interesses. Então os “vanguardistas”
adotaram o rótulo – designaram-se “futuristas”, os “futuristas de São Paulo”. No
artigo “Futurismo”, publicado no Correio Paulista, em dezembro de 1920, sob o
pseudônimo Hélios, Menotti del Picchia nos dá uma impressão, mesmo que irônica,
que se tinha da palavra na época: “Que é o futurismo? Aí está um nome pavoroso,
que arrepia a pele ao conservador pacífico, bolchevismo estético, agressivo e
iconoclasta, lembrando um camartelo sonoro a estilhaçar a espinha vertebral da
ordem e do bom senso” (apud BRITO, 1978, p. 168). Entretanto, se a princípio
aceitou-se o epíteto “futurista”, depois começaram a renegá-lo. Segundo Oswald de
Andrade, os escrúpulos partiram principalmente de Mário de Andrade: “Ele, nacional
e nacionalista como era, não se sentia à vontade dentro do rótulo estrangeirante.
Assim, pouco a pouco, foi encontrada a palavra „modernista‟ que todo mundo
51
adotou.”9 (2011, p. 191). O grupo paulista tinha se decidido pelo rompimento com as
tradições artísticas acadêmicas. As polêmicas foram acirradas ao longo do ano de
1921, para desaguar na Semana de Arte Moderna, em 1922, ano do centenário da
independência do Brasil, como consequência da evolução de um modo de pensar
contrastado com o estabelecido.
Nesse contexto, desde 1916, ou mesmo antes, Oswald de Andrade vinha
escrevendo e reescrevendo as Memórias sentimentais de João Miramar. A forma
definitiva foi alcançada em 1923, conforme já dissemos. A versão final e as
anteriores nos permitem observar que o estilo do Miramar foi se definindo conforme
o projeto modernista avançava. E nesse sentido, as Memórias sentimentais se
situam na linha mais vanguardista do movimento modernista brasileiro.
2.3 UMA NARRATIVA ORGANIZADA EM ESTRUTURAS MÓVEIS
Em 1972, o norte-americano Kenneth Jackson defendeu a sua tese de
doutorado sobre a prosa de vanguarda na literatura brasileira tratando dos romances
Memórias sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, de Oswald de
Andrade. Parte desse estudo foi publicada no Brasil em 1978, em um livro intitulado
A prosa vanguardista na literatura brasileira: Oswald de Andrade. Jackson reforçou a
tese de que o Modernismo brasileiro teve a vanguarda artística europeia do início do
século XX como principal referência, e que no período anterior à Primeira Guerra
Mundial se estabeleceu o contato decisivo do Modernismo brasileiro com essa
vanguarda, com as viagens de futuros modernistas ao velho continente, os estudos
e as leituras, além dos relacionamentos de nossos artistas com artistas
vanguardistas europeus.
Inicialmente, em seu estudo, Kenneth Jackson buscou caracterizar o termo
“vanguarda”. O emprego do conceito francês de avant-garde em sentido literário
remete ao final do século XIX, quando pela primeira vez foi usado “para designar
artistas ou escritores parisienses que eram audaciosamente experimentalistas, no
sentido de rejeitar ou zombar das tradições literárias ou acadêmicas” (1978, p. 10).
Vemos aí a acepção do termo se referindo a uma arte de ruptura com as
convenções estabelecidas, sendo esse um procedimento audacioso, que se
9 Artigo intitulado “O Modernismo”.
52
confronta com radicalidade com os modelos de uma tradição estagnada, que não
quer e não consegue acompanhar as mudanças da sociedade. “Ser radical é tomar
as coisas pela raiz. E a raiz, para o homem, é o próprio homem” (MARX apud
CAMPOS, 1972, p. xi). Essa expressão de Karl Marx citada por Haroldo de Campos
no ensaio “Uma poética da radicalidade” ajuda-nos a perceber, mesmo que em outro
contexto, o sentido das vanguardas enquanto tentativas radicais de compreender a
vida humana em uma nova configuração social e material, resultado das
transformações engendradas pela revolução industrial. No Brasil, os artistas
modernistas absorveriam as tendências da vanguarda europeia para efetuar a
ruptura com os ideais e modelos retóricos parnasianos e pensar o país a partir de
novos paradigmas. Por ter sido o Modernismo brasileiro bastante heterogêneo,
essas rupturas com os modelos passadistas não ocorreram todas no mesmo nível
de confrontação nem de radicalismo, de tal forma que só algumas poderiam ser
vistas enquanto rupturas no sentido vanguardista. Sendo assim, Kenneth Jackson
buscou reconhecer o que efetivamente havia de vanguarda na prosa brasileira
daquele período, tendo por parâmetro os procedimentos ousados efetuados pelo
experimentalismo da vanguarda artística europeia do início do século XX,
reconhecendo ser o contexto daqui bastante diferente do europeu. Enquanto a
vanguarda europeia se situava em uma realidade de grande avanço tecnológico,
implementado para além das fronteiras nacionais, no Brasil, as inovações na
linguagem artística foram associadas a temas nacionais cuja perspectiva era “uma
observação mais precisa da vida brasileira” (JACKSON, 1978, p. 13). Daí Kenneth
Jackson estabeleceu que as obras vanguardistas do Modernismo brasileiro seriam
aquelas que reivindicam mudanças radicais, empregando o lastro do
experimentalismo das vanguardas artísticas europeias do início do século XX
adaptado ao contexto brasileiro. Seria esse o caso dos romances Memórias
sentimentais de João Miramar e Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade.
Embora Kenneth Jackson tenha abordado vários aspectos das Memórias
sentimentais de João Miramar, apontando possíveis caminhos a serem
aprofundados, nos deteremos aqui aos aspectos estruturais da obra. O crítico
apresenta dois conceitos que consideramos fundamentais para a recepção das
Memórias sentimentais: a existência de um processo de amadurecimento de João
Miramar, conforme ele rememora os eventos de sua vida e procede à escrita; e o
fato de caber à recepção do texto realizar dois níveis de leitura complementares,
53
uma “horizontal” e outra “vertical”. Na leitura “horizontal”, mesmo que não haja um
enredo evidente na superfície do texto do Miramar, o “fio condutor” da vida de João
Miramar, apesar de camuflado pelo estilo cubista, conforme observou Haroldo de
Campos, proporciona uma coerência interna à obra fundamentada numa cronologia
que abarca desde a infância até a meia-idade do protagonista, fornecendo indícios
sobre os quais os episódios podem ser estruturados, permitindo ao leitor uma
percepção de continuidade, mesmo que não haja uma linearidade que determine a
ordenação dos episódios. Já a leitura “vertical” se concentra em cada episódio do
romance que se apresenta fechado em si mesmo, ou seja, cada episódio contém
uma experiência completa de uma vivência do protagonista, o que gera a
“autonomia” dos capítulos. Essas experiências eleitas pelo memorialista enquanto
fundamentais para as suas Memórias são escritas conforme relatos relembrados ou
reproduzidas em forma documentária – cartas, discursos, notícias, por exemplo –,
que assumem um valor de documento de uma época e de um contexto social.
Assim, o encadeamento desses episódios, como uma “colagem de impressões” feita
com ironia e humor, dá ao romance “o relato de memórias sob a forma de uma
antologia de acontecimentos, como um álbum de fotografias que apresentasse uma
visão sincrônica da vida de Miramar” (JACKSON, 1978, p. 27). A articulação das
duas leituras, a “horizontal” e a “vertical”, numa perspectiva complementar em busca
de um sentido ao que parece caótico, possibilita a organização de estruturas que
permitem a identificação dos níveis de consciência e das atitudes críticas de Miramar
ao longo da história de sua vida rememorada. No trecho que transcrevemos a
seguir, podemos reconhecer uma síntese das ideias de Kenneth Jackson sobre esse
ponto:
A possível estruturação dos fragmentos em Miramar é, na verdade, muito mais flexível do que o seria uma antologia diacrônica uma vez que muitos fragmentos não se ajustam a um padrão fixo. A obra pode ser organizada em muitas estruturas críticas potenciais que se estendem para além do “fio condutor” da vida de João Miramar, em termos dos materiais internos das Memórias Sentimentais. Por conseguinte, a obra tem uma variedade de estruturas significativas possíveis que abrem perspectivas pessoais e cronológicas (vertical e horizontal) para o desenvolvimento de João, as viagens e o contexto social. Cada fragmento pode ser lido separadamente, como partes de uma antologia, ou em grupos – ambas as maneiras levam a visões críticas no interior das memórias. (1978, p. 28-29)
Jackson a fim de caracterizar as “estruturas significativas”, que são os grupos de
fragmentos organizados em torno de uma visão retrospectiva da vida de João
54
Miramar, sempre flexíveis na obra de Oswald de Andrade, recorreu a Jean Piaget
que a define da seguinte maneira:
[...] há estrutura (em seu aspecto mais geral) quando os elementos se reúnem numa totalidade que apresenta certas propriedades enquanto totalidade e quando as propriedades dos elementos dependem, total ou parcialmente, dessas características da totalidade. (apud JACKSON, 1978, p. 22, grifo do autor)
Existe assim uma coerência interna numa “estrutura significativa” que se
estabelece pelas relações entre os diversos elementos ali presentes, construída ao
redor de um tema da vivência de João Miramar. Nesse sentido, um mesmo episódio
pode integrar diferentes grupos de fragmentos desde que os elementos de cada um
desses grupos estabeleçam relações entre si e apresentem “certas propriedades
enquanto totalidade”. Portanto, os episódios da vida de Miramar apresentados como
fragmentos em um total de 163 capítulos podem ser lidos de duas formas
complementares, o que exige da recepção uma postura ativa. Kenneth Jackson
referiu-se a essa estrutura como um “quebra-cabeça” a ser montado e interpretado
pelo leitor. Usando de outra imagem que nos parece mais próxima ao dinamismo
das estruturas móveis das Memórias sentimentais de João Miramar, Flávio Loureiro
Chaves, no ensaio “Contribuições de Oswald e Mário de Andrade ao romance
brasileiro”, refere-se ao Miramar como um “discurso caleidoscópico, composto de
fragmentos, sempre expostos a novas perspectivas de leitura” (1970, p. 17).
Também Lucia Helena, em Totens e tabus da modernidade brasileira, diz da
descontinuidade compondo “um painel caleidoscópico móvel e fragmentado” (1985,
p. 92). A ideia do caleidoscópio que rearranja os fragmentos coloridos formando
novas imagens nos parece dimensionar o potencial contido no processo de colagem
dos fragmentos das Memórias sentimentais, que exige um leitor ativo, não só do
ponto de vista interpretativo, mas também da própria montagem, selecionando e
combinando os fragmentos disponibilizados pelo autor, numa associação de
imagens e ideias. Numa perspectiva global da obra, as estruturas podem ser
compreendidas tendo por base o estilo cubista ou metonímico, conforme descrito por
Haroldo de Campos em “Estilística miramarina”.
Na década de 1920, os primeiros críticos a analisarem as Memórias
sentimentais já apontavam para a necessidade de um leitor ativo, capaz de juntar as
“peças soltas” que constituem uma antologia da vida de João Miramar. Sérgio
55
Buarque de Holanda e Prudente de Moraes, neto, em ensaio publicado em 1925 na
revista Estética, afirmam:
Uma das características mais notáveis deste „romance‟ do Sr. Oswald de Andrade deriva possivelmente de certa feição de antologia que ele lhe imprimiu. [...] Se o autor em vez de situar esses episódios [da infância de Miramar] na página 15 ou 16 onde estão, os houvesse colocado na página 119 onde o romance termina, o conjunto pouco perderia. Isso não importa em dizer que o livro não tem unidade, não tem ação e não é construído. É a própria figura de João Miramar que lhe dá unidade, ligando entre si todos os episódios. A construção faz-se no espírito do leitor. Oswald fornece as peças soltas. [...] É só juntar e pronto. (1974, p. 218-219)
No entanto, essa junção não se apresenta de modo óbvio. As experiências
relembradas por João Miramar em episódios que isoladamente detêm autonomia,
por serem completos, e por isso criarem perspectivas críticas sobre si mesmo, são
dotadas de imagens poéticas que encobrem, em certa medida, os acontecimentos
da vida de Miramar e exigem do leitor a postura de “descobrir e elaborar um
significado e uma continuidade mais profundos, inerentes aos fragmentos, mas
nunca formulados explicitamente” (JACKSON, 1978, p. 26). Assim, o plano poético,
além de velar os acontecimentos de cada episódio, camufla a sua continuidade, pois
o estilo cubista da obra em geral desarticula o relato cronológico. Entretanto, João
Miramar, como narrador, só se reconhece no ato de escrever as suas memórias,
restabelecendo a continuidade como um procedimento fundamental das Memórias
sentimentais de João Miramar. Daí que as “estruturas significativas” da obra
implicam numa “inter-relação entre as perspectivas críticas de João Miramar e a
composição dos fragmentos de prosa” (JACKSON, 1978, p. 23).
56
3 NACIONALISMO E RADICALISMO
A influência da vanguarda artística europeia do início do século passado,
conforme já vimos, foi determinante para o Modernismo brasileiro. No entanto,
mesmo que os contatos iniciais de futuros modernistas do Brasil com essa
vanguarda tenha se dado antes da Primeira Guerra Mundial, a aplicação dessa
influência por aqui só provocou repercussão em 1917, com a exposição individual de
Anita Malfatti. Inicialmente a exposição foi bem aceita pelo público, que assinava o
livro de presença, e com a venda de quadros. Entretanto, após o artigo de Monteiro
Lobato, que funcionou como um catalisador, a resistência dos tradicionalistas foi
vigorosa e destrutiva. A fragilidade dos novos artistas brasileiros e da arte nova ficou
exposta. Anita Malfatti, que já vinha sendo pressionada pela própria família que não
assimilava a sua pintura, sofreu profundamente com o choque da crítica. Houve
compradores que devolveram as obras que haviam adquirido. Oswald de Andrade
buscou defendê-la pelas colunas do Jornal do Comércio, entretanto, como afirmou
no artigo “O Modernismo”, “fi-lo timidamente, pois não tinha autoridade para
enfrentar Lobato e sua grei” (2011, p. 194). O acontecido em 1917 levou a uma
maior aproximação daqueles que compartilhavam os valores do movimento de
renovação artística. Porém a atuação dos futuros modernistas ainda seguiu de
maneira espontânea e individualizada até que os artistas viessem a se constituir
como um grupo, por volta de 1920, para então consolidar o movimento na Semana
de Arte Moderna, em fevereiro de 1922, ponto crítico de um processo histórico. Esse
pequeno grupo heterogêneo, mas unido pelo propósito de uma nova arte em
oposição à arte acadêmica e à inteligência nacional de então, a partir da Semana,
assume um ponto de vista na história da cultura nacional.
No contexto posterior à Semana de Arte Moderna, a heterogeneidade dos
modernistas se manifestou mais nitidamente, com desdobramento em grupos que
tendiam a aplicar a bagagem fornecida pela vanguarda artística europeia, cujos
métodos inovadores de composição foram explorados por aqui para tratar de temas
ou caracterizações nacionais. Há, nesse aspecto, uma diferença significativa entre o
que se produzia na Europa e o que se produzia no Brasil. Enquanto lá as
experimentações usavam de uma linguagem arrojada para tratar de temas
universais, sintonizados com um espaço-tempo tecnológico que imprimia uma nova
realidade no cotidiano das pessoas, para além das fronteiras nacionais, aqui, a
57
aplicação dessas inovações na linguagem vinculava-se a temas nacionais. Nicolau
Sevcenko, sobre o cubismo de Picasso e sua relação com o contexto, observa:
Picasso já trabalhava com temas predominantemente sociais, não só no seu início em Paris [...], como também desde seu ambiente original na Catalunha [...]. Sua inovação com o cubismo não foi assim uma transição para uma linguagem mais elitizada de impenetrável sofisticação formal. Ao contrário, por mais incrível que pareça atualmente, o cubismo significou um esforço de Picasso para traduzir em novos códigos formais as transformações radicais pelas quais passava o cotidiano dos trabalhadores dos subúrbios. (1995, p. 7-8)
Os modernistas brasileiros, portanto, apoiaram-se na vanguarda europeia em
relação às técnicas de composição para desenvolver temas nacionais. Assim, as
tendências do movimento buscaram imprimir uma nova perspectiva à literatura
brasileira, e fizeram isso com o emprego de técnicas de composição lançadas pela
vanguarda artística europeia adaptadas de maneira original e singular a temas
brasileiros, rompendo com o que então se produzia por aqui, imprimindo à produção
brasileira uma configuração própria, em que a ruptura com os modelos retóricos e os
ideais passadistas se dava dentro de um espaço-tempo nacional. Diante disso, faz-
-se necessário uma reflexão de nossa parte, mesmo que simplificada, sobre o
“nacionalismo”. Outro termo sobre o qual também precisamos refletir é “radicalismo”.
3.1 O NACIONALISMO NA LITERATURA E NA CRÍTICA LITERÁRIA
Vejamos, primeiramente, a questão do nacionalismo a partir da contribuição
de Antonio Candido com o texto “Uma palavra instável”, escrito em 1984, que trata
de acepções que a palavra “nacionalismo” ganhou durante alguns períodos do
século XX. Esse é um tema longo que não pretendemos um grande
aprofundamento, pois não é o objeto central desse estudo. Conforme nosso
interesse, vamos delimitá-lo nas décadas iniciais do século passado. Candido
apresenta uma primeira conotação para “nacionalismo” que se vincula “a um orgulho
patriótico de fundo militarista”, alimentado pelas vitórias brasileiras em conflitos
contra outras nações, sobremaneira a Guerra do Paraguai, na segunda metade do
século XIX, que marcou profundamente o jovem país. Nessa mesma linha, vincula-
-se também o “nacionalismo” às grandezas do país, sempre extraordinárias, com as
mais belas e mais férteis terras, onde vivia um povo generoso e trabalhador, sem
58
preconceitos nem violências, etc. Esta visão “ufanista” seria ironizada pela parcela
mais crítica dos modernistas. Ambas as acepções acima, cujas origens encontram-
-se no período colonial, foram fortificadas pela campanha nacionalista por ocasião
da Primeira Guerra Mundial. Mesmo que a participação do Brasil no conflito tenha
sido pouco relevante, a guerra propiciou a intensificação da implantação da indústria
nas maiores cidades do país e a mudança de hábitos no convívio social. Nesse
tempo, pronunciavam-se discursos febris de amor pelo Brasil, discursos retóricos,
empolados, em que o patriotismo ganhou uma conotação nacionalista, num sentido
de superioridade e com certo toque de xenofobia.
Mas havia também uma outra face do nacionalismo, a face pessimista. Esta,
mais recente, de Sílvio Romero, de Euclides da Cunha, tem em Os sertões, de
autoria deste último, publicado em 1902, um marco por revelar um Brasil oposto ao
divulgado pelas classes dirigentes, com um interior miserável, cruelmente reprimido
pelas forças militares, mas tenaz, e por isso capaz de imprimir derrotas ao governo
central da recente República. A desmoralização das classes dirigentes veio em
função tanto das derrotas parciais sofridas, como do comportamento amoral das
tropas e dos procedimentos oficiais. Cabe frisar que o romance de Euclides da
Cunha apresentou grandes novidades, já que a censura à imprensa imposta pelo
governo na época do conflito criou uma outra “realidade” bem distinta da dos fatos
ocorridos, como o financiamento externo viabilizado pelos interesses do antigo
regime que patrocinava a rebelião com o propósito de derrubar o governo central e
restaurar a monarquia. Segundo Antonio Candido, a partir de Euclides da Cunha, o
tom eufórico que caracterizou um tipo de nacionalismo deveria ter se constrangido.
Além da literatura, trabalhos científicos confirmavam as mazelas das populações
rurais e sua cultura rústica, atrasada, segregada, o que comprometia a visão
otimista. Mesmo o saneamento do Rio de Janeiro, sob orientação de Oswaldo Cruz,
feito entre os anos de 1902 e 1906, e que redimiu a capital diante do olhar
estrangeiro, não suplantava o estado catastrófico do interior. Na metade da segunda
década do século XX, o médico Miguel Pereira – que dissera ser o Brasil ainda “um
vasto hospital” (apud CANDIDO, 2004b, p. 217) –, referindo-se à campanha pelo
serviço militar obrigatório, pela ótica de uma pátria que não oferece as mínimas
condições de vida digna para os seus filhos, afirmou que não havia o direito de se
pedir ao homem desassistido pela pátria que lutasse por ela. Diante dos conflitos e
contradições, ao invés de se constranger, houve uma intensificação na ação dos
59
partidários da visão eufórica, como contraposição à visão pessimista. Vê-se,
portanto, que no início do século passado, havia pelo menos duas faces opostas e
complementares para a palavra “nacionalismo”: “a exaltação patrioteira, que hoje
parece disfarce ideológico, e o contrapeso de uma visão amarga, mas real”
(CANDIDO, 2004b, p. 217). No entanto, apenas na década de 1920, essas visões se
confrontariam de forma mais decisiva, com o Modernismo.
Em outro ensaio, “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, publicado em 1965,
Antonio Candido divide a literatura brasileira no século XX em três etapas: de 1900 a
1922, de 1922 a 1945 e a terceira a partir de 1945. A primeira fase corresponde a
uma literatura que reproduz os traços literários do período que se seguiu ao
Romantismo, em que se buscou um equilíbrio evitando-se a ruptura. Se nas duas
últimas décadas do século XIX, a contraposição ao Romantismo apresentava vigor,
isso já não ocorria no século XX, em que a reprodução sem a criação de novos
desenvolvimentos dava a impressão de estagnação da produção literária. O
propósito artístico nesta época era o que se chamou de academismo, em que pela
cópia se buscava alcançar o equilíbrio e a harmonia. Na prosa, o romance tinha por
objetivo entreter o leitor, com uma crônica social rala. Mesmo Os sertões, obra
diferenciada mencionada acima, só ganhariam uma leitura mais consistente a partir
do Modernismo. Assim também na poesia, em que a regularidade plástica
predominava, num tipo de “expressão ornamental”10.
Quanto à crítica literária, no final do século XIX, “por suas três principais
figuras – Sílvio Romero, Araripe Júnior e José Veríssimo, – havia [sido] desenvolvido
e apurado a tendência principal do nosso pensamento crítico, isto é, o que se
poderia chamar a crítica nacionalista, de origem romântica” (CANDIDO, 2010a, p.
123, grifo do autor). Com a independência política brasileira, o Romantismo se
constituiu enquanto uma busca de “afirmação nacional”, e nessa perspectiva
também de uma “consciência literária”. Entretanto, no século XX, quando já não
havia mais a necessidade e nem a coerência do século XIX, o “critério de
nacionalidade” permanecia como critério judicativo de uma obra artística em níveis
semelhantes ao do pensamento crítico do século anterior, sem um aprofundamento
ou uma renovação. Da primeira etapa do desenvolvimento da literatura brasileira no
século XX, Antonio Candido sintetiza:
10
Enunciação de Antonio Candido.
60
As tendências oriundas do Naturalismo de 1880-1900, tanto na poesia quanto no romance e na crítica, propiciaram na fase de 1900-1922 um compromisso da literatura com as formas visíveis, concebidas pelo espírito principalmente como encantamento plástico, euforia verbal, regularidade. É o que se poderia chamar Naturalismo acadêmico, fascinados pelo Classicismo greco-latino já diluído na convenção acadêmica europeia, que os escritores procuravam sobrepor às formas rebeldes da vida natural e social do Novo Mundo. (2010a, p. 122)
A segunda etapa da evolução da literatura brasileira no século XX, de 1922 a
1945 – o Modernismo –, se desdobra em duas fases, a primeira nos anos de 1920 e
a segunda após 1930. No terreno da cultura, a década de 1920 foi de muita agitação
e novidade, rompendo-se com a estagnação das duas primeiras décadas do século.
Antonio Candido vê o Romantismo e o Modernismo como dois momentos decisivos
na literatura brasileira, que representam a ênfase do particularismo na “dialética do
local e do cosmopolita”. Isto é, Candido concebe uma possível “lei de evolução de
nossa vida espiritual” regida pela “dialética do localismo e do cosmopolitismo”, em
que ora prevalece “a afirmação premeditada e por vezes violenta do nacionalismo
literário, com veleidades de criar até uma língua diversa; ora o declarado
conformismo, a imitação consciente dos padrões europeus” (2010a, p. 117). Diante
das novas condições estéticas e ideológicas do Modernismo, os debates em busca
de uma teoria e uma prática nacionalistas ganharam fervor. Deveria o nacionalismo
se opor ao socialismo e ao anarquismo, por serem tendências estas antipatrióticas e
internacionalistas? Seria uma necessidade estabelecer um socialismo dos oprimidos
que teria de ser nacionalista enquanto contrapeso ao colonizador e explorador, em
decorrência da opressão econômica e política dos países ricos em relação aos
pobres? Enfim, eram muitas as questões que se desdobrariam no decorrer do
século. O Brasil enquanto um país jovem e periférico culturalmente dependia das
referências dos países ricos do velho continente. Foi nessa encruzilhada que se
criou um paradoxo: se no campo social e político buscava-se a autonomia e para
isso entendia-se que o nacionalismo desempenhava um importante papel de
afirmação, no terreno da cultura, a jovem nação se espelhava nos países que
economicamente a dominavam. Daí uma dialética complexa que os modernistas
brasileiros tiveram de enfrentar. Nesse sentido, para Candido, foi fundamental a
valorização da temática nacional e a consciência a respeito da realidade brasileira,
com a reabilitação dos grupos sociais e seus valores marginalizados pela elite
61
dirigente do país. Os modernistas brasileiros fizeram essa operação recorrendo aos
instrumentos libertadores da vanguarda europeia, mesmo que isso representasse ir
ao império cultural do qual buscassem se livrar.
Se o Romantismo e o Modernismo ocupam o mesmo campo do localismo na
“dialética do local e do cosmopolita”, e igualmente se inspiraram na arte europeia,
diferem quanto aos propósitos dessa relação. O Romantismo, expressão artística do
pós-independência política do Brasil, momento de nossa afirmação como nação, se
confrontou diretamente com os valores portugueses, procurando superar a influência
e a presença ostensiva de Portugal, afirmando uma literatura com características
peculiares, buscando assim uma identidade nacional pela diferenciação com o
antigo colonizador, mesmo que o modelo literário francês e inglês que seguimos no
século XIX tenha chegado a nós através de Portugal, que fixava o exemplo e o tom
da imitação. Esse processo de elaboração de uma identidade própria teve um
percurso em que lentamente fomos nos separando dos portugueses para nos
tornarmos brasileiros.
Cem anos após a independência política, com o amadurecimento da relação
com Portugal, o Modernismo ocorreu a partir de condições e propósitos diversos dos
que mobilizaram os românticos, apesar de as questões nacionais constituírem um
eixo essencial. A reação dos modernistas concentrava-se contra a estagnação
artístico-cultural patrocinada pelo academismo, que se consolidou na primeira etapa
do século XX, e investia no sentido de tentar superar uma série de recalques
históricos, sociais, étnicos, que seriam trazidos à tona na arte moderna. Isso porque
há uma ambiguidade em nossa cultura, cuja herança europeia, historicamente
valorizada, sempre foi a contragosto das classes dominantes perpassada pela
mestiçagem e influenciada por culturas primitivas, ameríndias e africanas, o que
dava “às afirmações particularistas um tom de constrangimento, que geralmente se
resolvia pela idealização” (CANDIDO, 2010a, p. 127). Após a Primeira Guerra
Mundial, com o rápido aumento do nível de industrialização no Brasil, o que fez com
que o país ficasse mais ligado aos problemas sociais e econômicos europeus, o
desnível cultural entre os dois continentes tornou-se menos drástico. Nesse sentido,
a afirmação do local pelos recursos da linguagem artística europeia tem, no
Modernismo, um caráter bastante diverso em relação ao Romantismo, pois rompe
com a idealização ao reinterpretar as nossas “deficiências”, supostas ou reais.
62
Portanto, assinala Antonio Candido, “o Modernismo foi um momento crucial
no processo de constituição da cultura brasileira, afirmando o particular do país em
termos tomados aos países adiantados” (2004b, p. 219), e também um esforço de
construção de uma literatura universalmente válida. É importante situar que as
acepções que vimos da palavra “nacionalismo” apresentadas por Candido, a face
otimista e a face pessimista, converteram-se em correntes culturais e políticas. Se
por um lado tivemos a exacerbação da primeira face desdobrando-se no
nacionalismo autoritário e conservador, representado na literatura pelo Verde-
-amarelismo e o grupo da Anta, com um nacionalismo sentimental, romântico,
patrioteiro e xenófobo, que se converteu em linha política nos anos de 1930,
corroborando com as modernas ideologias de direita, com suas derivações fascistas,
desaguando na ditadura do Estado Novo; por outro lado, da segunda face, tivemos a
poesia pau-brasil de exportação, buscando inverter a lógica da importação cultural
ditada às colônias, e a teoria da Antropofagia na qual Oswald de Andrade propõe a
devoração da cultura estrangeira, macerada e incorporada como “coisa nossa”, tudo
feito com muito humor, grande ousadia formal e autenticidade. Portanto, apesar dos
temas análogos, o espírito das duas faces é oposto. O embate entre essas correntes
no terreno das artes se acirraria no final da década de 1920, e no campo político, na
década de 1930.
Se as observações de Antonio Candido sobre esse ponto se situam mais na
produção artística, já que a produção crítica, com ensaios históricos e sociológicos
vinculados ao pensamento nacional, sob a perspectiva de uma redefinição de nossa
cultura diante dos novos fatores surgidos, teria na década de 1930 o seu período
mais importante, com os trabalhos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e
Caio Parado Júnior, as observações de Pascoal Farinaccio, em seu estudo Serafim
Ponte Grande e as dificuldades da crítica literária, abordam o caráter limitador que o
nacionalismo, enquanto critério de valoração da obra de arte, imprimiu à crítica
literária. No contexto em que se dava o embate entre a nova arte e a tradição
acadêmica, havia também o descompasso entre a produção artística moderna e
uma crítica bastante desatualizada. Um bom exemplo pode ser visto no próprio
contexto preliminar do movimento modernista, com o já mencionado episódio da
exposição das pinturas de Anita Malfatti e a crítica feita por Monteiro Lobato,
naquela época um escritor e crítico já reconhecido. Hoje, passado quase um século,
pode-se observar a fragilidade teórica da crítica da época em função da imensa
63
repercussão que obteve o artigo publicado em O Estado de São Paulo. Esse
aspecto da incompreensão da arte moderna por parte da crítica se estende pelos
anos de 1920, o período da primeira fase do Modernismo brasileiro. E, pode-se
dizer, não é um privilégio da arte moderna no Brasil. Os artistas de vanguarda,
mesmo na Europa, tiveram de elaborar as suas próprias reflexões sobre a arte que
produziam, situando-a no contexto da produção material da sociedade capitalista. O
artista vanguardista é também um pensador da arte e do sistema cultural em que
está inserido, e precisa travar esse debate tanto por conta da desatualização da
crítica, como, sobretudo, pelo movimento complexo inerente à vanguarda no
processo de inserção no mercado capitalista, com a mercantilização da arte.
Em relação à exposição de Anita Malfatti, Monteiro Lobato produziu uma
crítica a partir de categorias analíticas realistas e naturalistas que efetivamente não
davam conta da análise do trabalho artístico de Malfatti e, consequentemente, da
arte moderna. Lobato, sem qualquer mediação, apelou para a aproximação, em tom
pejorativo e preconceituoso, da arte moderna com a expressão de alienados
mentais, estabelecendo como diferença entre ambas a sinceridade dos desenhos
estampados nas paredes internas dos manicômios e a falta de sinceridade da outra,
cujo propósito seria ludibriar o espectador. Isso porque a recepção de Lobato estava
condicionada por concepções estéticas estagnadas. Esse episódio ilustra bem a
incompreensão, digamos, generalizada da crítica em relação às novas propostas
estéticas da arte moderna e revela a ausência entre nós, naquele primeiro momento,
“de recursos intelectuais para incorporar organicamente a expressão moderna à
tradição nacional” (FARINACCIO, 2001, p. 27). Essa debilidade é um dos traços que
explicam a capacidade de resistência das formas e convenções passadistas.
Pascoal Farinaccio registra ainda que Oswald de Andrade tratou, no terreno
literário, nas Memórias sentimentais de João Miramar, desse descompasso entre a
produção artística de vanguarda e a recepção crítica desatualizada. No capítulo
“163. ENTREVISTA ENTREVISTA” (1971a, p. 94), em tom satírico, observa-se o
despreparo da inteligência local para compreender as experimentações modernistas.
No episódio, um jornalista busca saber as razões que levaram João Miramar a
interromper a escrita de “suas interessantíssimas memórias”. As primeiras
explicações do memorialista, seguindo advertência do Dr. Mandarim Pedroso, estão
no fato de ser viúvo e por já contar com trinta e cinco anos, por isso são indevidas as
atividades sentimentais escandalosas. Portanto, Miramar tem de se impor um recato
64
a fim de não “servir de exemplo pernicioso às pessoas idosas”. Mas o entrevistador
insiste, mostrando que tanto a crítica como a posteridade irão cobrá-lo por não
continuar “tão rico monumento da língua e da vida brasílica”. Ao que Miramar
responde já possuir “o melhor penhor da crítica”, pois já lera o seu livro ao Dr.
Pilatos, que o aprovara, dizendo lembrar-lhe Virgílio, “apenas um pouco mais
nervoso no estilo”.
Dr. Pôncio Pilatos da Glória é um acadêmico do Instituto Histórico e
Geográfico. Ao comparar a prosa miramarina com Virgílio, produz uma
impropriedade analítica. Como seria possível um estilo vanguardista ser analisado
tendo-se por referência padrões estéticos do período clássico da literatura? Essa
incongruência revela ao leitor o universo cultural provinciano em que estão inseridos
os personagens. Dr. Pilatos é um intelectual incapaz de renovar as suas concepções
estéticas, por isso lê o novo pelo viés de uma tradição secularizada, o que gera uma
crítica anacrônica. Diante desses fatos, seja o de Monteiro Lobato, na vida “real”,
seja o do Dr. Pilatos, no mundo “ficcional”, há de se indagar sobre as razões desses
disparates. Segundo Farinaccio, o novo provoca um distúrbio nas expectativas da
recepção, que se vê forçada a redimensionar os critérios de avaliação, tarefa essa
nada fácil. Nesse ponto, o crítico recorre a Umberto Eco que aborda a relação entre
códigos retóricos e complexos ideológicos, que transcrevemos:
Mas toda verdadeira subversão das expectativas ideológicas é efetiva na medida em que se traduz em mensagens que também subverteram os sistemas de expectativas retóricas. E toda subversão profunda das expectativas retóricas é também um redimensionamento das expectativas ideológicas. Nesse princípio se baseia a arte de vanguarda, mesmo nos seus momentos definidos como “formalistas”, quando, usando o código de maneira altamente informativa, não só o põe em crise, mas obriga a repensar, através da crise do código, a crise das ideologias com as quais ele se identificava. (ECO, 1976 apud FARINACCIO, 2001, P. 28-29)
Nesse percurso, o que Pascoal Farinaccio busca averiguar são as possíveis
razões que oportunizaram uma resistência aos valores dos movimentos de
vanguarda. Então faz uma reflexão sobre o nacionalismo. Segundo ele, a arte
moderna no Brasil se deparou com várias dificuldades no seu processo de
implementação, dentre as quais teve no nacionalismo, entendido nesse caso
especificamente como critério de valoração das obras de arte, um elemento de
limitação em relação aos recursos formais e temáticos. Para sustentar os seus
argumentos, Farinaccio exemplifica com Portinari, pintor oficial no após 1930, por
65
conter em seus trabalhos a expressão dos elementos nacionais definidos então
como critério essencial para a produção artística brasileira. Como consequência, o
prestígio de Portinari “alcançou tamanha amplitude que acabou por sufocar a
divulgação de outras soluções estéticas, como um Guignard e um Goeldi, fora dos
princípios estreitos preconizados pela compreensão nacionalista do moderno” (2001,
p. 30).
Em sentido geral, enquanto a vanguarda europeia propunha uma estética de
caráter universal, o Modernismo brasileiro, tributário de uma “ideologia da
brasilidade”, tinha a matéria nacional como questão central, que servia inclusive de
categoria analítica para o julgamento de uma obra de arte. Assim, mesmo que
renovadora, a ação modernista brasileira manteve-se afastada de pressupostos
radicais da vanguarda europeia, da qual selecionou aquilo que julgava adequado ao
nosso contexto. Pode-se explicar isso pela realidade sócio-econômica do Brasil,
muito diferente da europeia. A Europa vivia uma transformação radical, com a
intensificação das ações do movimento operário no contexto da luta de classes, e
também com o avanço continuado da técnica à disposição da industrialização e das
invenções modernas, como o automóvel, o cinema, a transmissão radiofônica, o
avião, entre outras. Inserida nesse quadro, a vanguarda artística europeia buscava
operar no mesmo nível da produção industrial, dessacralizando dessa forma a arte.
A consequência disso foi a redefinição dos papéis do artista e da obra. Esta passa a
ser pensada criticamente como um produto do sistema, uma mercadoria entre outras
tantas, sintonizada em um espaço-tempo tecnológico, e feita não mais por um ser
iluminado, possuidor de um dom (BENJAMIN, 1994).
Já no Brasil, o progresso científico e tecnológico, as linhas de montagem e
técnicas gerenciais encontravam-se muito aquém da desenvoltura europeia, o que
implicava na manutenção de uma economia e uma mentalidade tradicionalistas e
conservadoras. Sem esquecermos ainda de que fora dos maiores centros urbanos
do país, não se obtivera a conquista da técnica moderna. Portanto, sendo o poder
político conservador, havia pouca flexibilidade e tolerância para mudanças, e
consequentemente para a arte moderna. Não que a vanguarda europeia não tenha
enfrentado um confronto duro, porém havia mais lastro para sustentá-lo. No Brasil, o
contexto sócio-econômico definitivamente não se encontrava em patamar próximo
ao europeu, o que não impediu, entretanto, que as novas ideias transitassem por
aqui, mesmo que sob limitações, conforme observa criticamente Nicolau Sevcenko:
66
“as latências do „novo homem‟ e da „ideia nova‟ se avolumaram num contágio
crescente e irreversível, mas sem raízes fundas, se propagando rápido no imediato
pós-guerra, porém com um horizonte de difusão limitado e sob compressão”
(SEVCENKO, 1992, p. 43).
O pós-guerra foi internacional, atuou em todo o mundo civilizado, abrindo
brechas nos sistemas culturais que apresentavam algum nível de esgotamento. Em
São Paulo, que se urbanizava com rapidez, fez-se sentir mais nitidamente o conflito
entre o provinciano e o citadino. Daí que as novas ideias circulavam, mas não
fincavam “raízes fundas” por conta do histórico do provincianismo e de sua presença
ainda muito forte. Segundo Alfredo Bosi, os modernistas, para tocarem o seu
projeto, precisaram consolidar uma cidade moderna, por isso “as imagens novas da
indústria, da máquina, da metrópole, do burguês, do proletário e do imigrante, e,
sinal de relevo, do intelectual sofrido e irônico, puderam surgir na poesia de Mário e
no mosaico futurista de Oswald de Andrade” (1988b, p. 116). Com esse espírito de
progresso, Oswald de Andrade, no artigo “O Modernismo”, buscou explicar as
razões que levaram o movimento de 1922 a eclodir em São Paulo:
Se procurarmos a explicação do porquê o fenômeno modernista se processou em São Paulo e não em qualquer outra parte do Brasil, veremos que ele foi uma consequência da nossa mentalidade industrial. São Paulo era de há muito batido por todos os ventos da cultura. Não só a economia cafeeira promovia os recursos, mas a indústria, com sua ansiedade do novo, sua estimulação do progresso, fazia com que a competição invadisse todos os campos de atividade. (2011, p. 196)
É certo que São Paulo tinha outros ares em relação ao restante do país, que
vivia ainda no compasso do passado arcaico, agrário, estagnado. Mas é possível
perceber certa euforia nas palavras de Oswald diante de nosso ainda incipiente
progresso tecnológico e científico. Pascoal Farinaccio observa que os modernistas
brasileiros superdimensionaram tal progresso. Vinculado ao capital da economia
cafeeira, este era um progresso cujo modo de produção era atrasado, mas que a
falta de um olhar crítico deu-lhe forma mais evoluída do que de fato era, e também
menos opressor, pois ao se omitir a exploração brutal do trabalho – estafante, com
agressões físicas aos empregados como resquícios explícitos da escravatura, a
exploração sistemática e irrestrita do trabalho infantil, a opressão policial nos bairros
operários (SEVCENKO, 1992) –, criou-se uma imagem menos violenta do conflito
entre as classes sociais. Assim pode-se compreender a euforia em relação à
67
modernização paulista como a “expressão de um desejo de ser”11 que não coincidia
com a realidade de fato. Para Farinaccio (2001), a afirmação nacionalista, nessa
perspectiva, gerou uma percepção falsa, produzindo uma identidade brasileira um
tanto abstrata ao colocar um véu sobre particularidades do sistema, ocultando os
procedimentos de exclusão social.
No campo da crítica literária, o critério nacionalista limitou, por exemplo,
conforme observa ainda Pascoal Farinaccio, a análise das Memórias sentimentais
de João Miramar feita por Mário de Andrade, em dois textos escritos após o
lançamento do romance: “Oswald de Andrade”, publicado na Revista do Brasil em
setembro de 1924, e “Oswald de Andrade: Pau-Brasil, Sans Pareil, Paris, 1925”, na
época “inédito, provavelmente”12 (BATISTA, 1972, p. 225). No segundo, apesar de
dedicado ao livro de poemas Pau-Brasil, Mário de Andrade fez uma
complementação ao estudo feito no primeiro texto, dedicado às Memórias
sentimentais, em relação à construção das personagens. Nesses ensaios, Mário
sinalizou a modernidade do Miramar em comparação a Os condenados, que
descreveu como “uma contemporização”, “no fundo obra realista”, em que “o
discurso corria lento” (1972a, p. 220). Observou que o prefaciador das Memórias
sentimentais expôs algumas intenções de Oswald, “francamente construtivas”, e
arrematou afirmando que o livro de Oswald “saiu a mais alegre das destruições”
(1972a, p. 220). Frisou ainda a “volta ao material”, “ou pelo menos a apresentação
do material literário puro, em toda a sua infante virgindade” (1972a, p. 220), citando
procedimentos semelhantes, porém mais radicais de Aragon e Maiakowsky, que
combinaram letras do alfabeto, enquanto Oswald “utilizou-se de palavras”. No
ensaio, Mário de Andrade vem descrevendo as Memórias sentimentais até chegar
ao seu ponto de maior interesse naquele momento, a afirmação do nacionalismo
literário, pela veleidade da criação de uma língua literária brasileira. Nas palavras do
próprio Mário: “A volta ao material implicava por certo dar toda atenção à língua
brasileira que está se formando” (1972a, p. 221).
Apesar de importantes observações sobre a simultaneidade, a sátira
extraordinária, a deformação “para expressar com maior verdade”, da fixação do
ambiente paulista sem ser regionalista, da ruptura com a “pasmaceira artística” de
então, em sua análise, Mário de Andrade valorizou em especial os aspectos
11
Enunciado de Farinaccio. 12
Opinião dos organizadores.
68
nacionalistas, mesmo que abstratos, sem se dar conta de potentes contradições
expostas pelo romance. O então ensaísta fixou-se em dois aspectos: a língua
utilizada por Oswald e a tentativa de identificação de uma psicologia nacional.
Quanto ao primeiro, o interesse maior de Mário de Andrade estava no seu propósito
de formação de uma “língua brasileira”. Entretanto, Oswald não tinha intenção em
formular essa língua, mesmo que sua linguagem fosse desmistificadora em relação
aos aspectos linguísticos. Mas as preocupações nacionalistas de Mário de Andrade
conduziram-no a uma crítica em que se reduz o vigor da linguagem oswaldiana ao
emprego de neologismos que o ensaísta julga impraticáveis, refuta o seu aspecto
destruidor da linguagem cubo-futurista e demonstra a sua insatisfação pela
escassez de elementos marcadamente nacionais, que contribuíssem com uma
diferenciação entre o falar brasileiro e o lusitano. Observa-se também em Sérgio
Buarque de Holanda e Prudente de Moraes, neto, preocupação semelhante:
Seria um horror se todo mundo daqui em diante se pusesse a “escrever brasileiro” e cada qual a seu modo. A prova é o próprio brasileiro Miramar, tentativa proveitosa apenas enquanto destruição. Acabou com o erro de português. Mas criou o erro de brasileiro, de que está cheio o livro. Ninguém fala o brasileiro de Miramar. Sua construção, de um raro poder expressivo, é personalíssima. De artista. Portanto, de exceção. Ora, nossa língua em formação tem de obedecer a leis determinadas, as leis gerais da evolução linguística. É nos submetendo às suas tendências que a criaremos e não lhe dando a feição inconfundível da frase de Miramar. (1974, p. 221).
Também a consciência nacional deveria ser fixada pelos modernistas. Para
Mário de Andrade havia consciências parciais, isto é, em certas circunstâncias
históricas assimilavam-se as noções nacionais, mas que não se estendiam a outros
espaços e tempos. De tal forma que não havia uma consciência nacional unânime e
popular. Em sua busca por elementos nacionais, Mário de Andrade detectou no
Miramar o que considerou da maior importância e que depois aplicaria em
Macunaíma: o tratamento analítico dos caracteres, o que possibilitou a criação de
personagem em contínua evolução. Assim, ao invés de fixar os personagens em
determinadas virtudes ou defeitos enquanto figuras estáticas, o “personagem-em-
-evolução”, conforme denominação sua, propiciaria a apresentação de tendências
psicológicas brasileiras, possibilitando uma síntese geral da psicologia nacional. Os
tipos específicos, sintéticos, constituíam as sínteses individuais, enquanto os tipos
analíticos atuariam na elaboração das sínteses nacionais. Portanto, seria possível
assim se fixar o caráter nacional.
69
Esses dois aspectos analisados por Mário de Andrade refletem o que Antonio
Candido chamou de “dialética do localismo e do cosmopolitismo”, já referida, uma
linha mestra da evolução da vida espiritual brasileira. Essa dialética, segundo
Farinaccio, ganharia “relevância conflitiva na esfera do nacionalismo em sua versão
modernista” (2001, p. 35). O nacionalismo como uma característica do pensamento
crítico modernista, que exigia na arte a expressão do elemento local, de certa forma,
segundo crítico, limitou o desenvolvimento de recursos formais e temáticos. Isso não
significa, entretanto, que grandes obras não tenham sido produzidas, mas o
nacionalismo impôs determinados obstáculos. Limitou também a análise de obras
polissêmicas, como Miramar e Serafim, de Oswald de Andrade, por não oferecer
subsídios analíticos que correspondessem à complexidade dessas obras. Talvez por
isso a crítica dos anos de 1920, que identificou a fragmentação no discurso
miramarino, a simultaneidade, além de outros aspectos, contribuiu pouco para a
compreensão das Memórias sentimentais de João Miramar, na qual o
cosmopolitismo perpassa a obra, num diálogo subliminar, sarcástico, de contrastes
com o localismo. Oswald de Andrade, portanto, não descuida da matéria local, sem
no entanto buscar um ajuste acomodatício, restritivo, entre a linguagem poética e as
características próprias do país. No artigo “Carta a Monteiro Lobato”, o escritor deixa
clara a sua preocupação com a representação da matéria local, além de creditar ao
nacionalismo o rumo da crítica de Lobato contra Anita:
Hoje, passados vinte e cinco anos [dos Urupês], sua atitude aparece sob o ângulo legitimista da defesa da nacionalidade. Se Anita e nós tínhamos razão, sua luta significava a repulsa ao estrangeirismo afobado de Graça Aranha, às decadências lustrais da Europa podre, ao esnobismo social que abria os salões à Semana. E não percebia você que nós também trazíamos nas nossas canções, por debaixo do futurismo, a dolência e a revolta da terra brasileira. (1971b, p. 4).
No processo histórico, os anos de 1930 viram, em relação à “dialética do
localismo e do cosmopolitismo”, o primeiro termo se sobrepor ao segundo de forma
mais evidente, quando as questões sociais brasileiras mais pragmáticas passaram a
determinar os roteiros. De certa forma, já nos últimos anos de 1920, o conflito maior
não era mais entre o localismo e o cosmopolitismo, mas entre matizes do
nacionalismo, o que já indicava uma predominância do local naquela dialética.
Mudou, entretanto, que o “resto” do país, aquele que não era a cidade industrial de
São Paulo ou as tribos indígenas das regiões remotas do país, se mostrou através
70
de um realismo, ora ingênuo ora crítico. Se nos anos de 1920, a temática girou em
torno da vida urbana com a conquista das técnicas modernas e os ritos da selva
brasileira – o civilizado e o primitivo, o urbano e o tribal, no rastro do que se passava
na Europa –, representando assim um Brasil mítico cujo caráter nacional era
instável, nos anos de 1930, a representação do mundo sertanejo, com a sua
realidade social sofrida, a sua psicologia brotando das relações sócio-culturais mais
pragmáticas, exigia uma nova linguagem mais sóbria e realista, diferente da
linguagem da década anterior. Então, a prosa experimental dos anos de 1920
passou a ser vista pela crítica dos anos de 1930, em última instância, “como um
esteticismo formal e individualista, totalmente desvinculado das necessidades reais
da massa” (FARINACCIO, 2001, p. 39). Daí a importância, reafirmamos, do ensaio
“Estouro e libertação”, da década de 1940. Além do resgate da prosa de ficção de
Oswald de Andrade, Antonio Candido, ao tratar dos aspectos estético-estilísticos das
obras, ofertou à crítica uma nova perspectiva mais ampla do que a proporcionada
pelo critério do nacionalismo da crítica literária das décadas anteriores. Mais adiante,
os poetas concretos em seus ensaios críticos sobre a obra de Oswald de Andrade
fariam descobertas importantes, aprofundando a análise no campo da linguagem
literária. A potência da obra oswaldiana não se esgotou aí, e novos estudos têm
possibilitado uma melhor compreensão dessa obra, um dos pilares do Modernismo
brasileiro e de nossa literatura.
Retornando ao início de nossa reflexão neste capítulo, sobre a necessidade
de se considerar o nacionalismo no estudo de autores modernistas, de sua
importância no contexto da época, cabe assinalar que hoje não se concebe o
nacionalismo como critério de valoração na análise de uma obra, muito menos como
um procedimento de redução da obra artística a uma representação colada na ideia
de reflexo, em que o texto se iguala à realidade externa da obra, como retratos do
Brasil tirados a partir da matéria nacional, como chegou a ocorrer em dado
momento. Nos estudos literários, hoje, é consenso de que a representação do
mundo numa obra ficcional, mesmo quando mimética, está submetida a uma
seleção, feita pelo artista, dos sistemas sócio-culturais e linguísticos já existentes.
Daí que o mundo representado em uma obra artística é uma realidade transformada
em signo, com novas articulações semânticas, e assim convertido em “objeto de
percepção”. Quanto ao nacionalismo, fazendo uma ponte com o pensamento de
Manoel Bomfim, que veremos a seguir no exame sobre o “radicalismo”, concluímos,
71
registrando uma concepção que nos parece mais apropriada, com Alfredo Bosi
referindo-se à interpretação de Caio Prado Jr.:
[...] que vê na exploração mercantil europeia o sentido de nossa colonização e a matriz de uma funda divisão de classes, não abolida mas complicada no período que se segue à independência política. Aí estaria o caminho racional para entender as contradições do povo brasileiro que não se pode reduzir a qualquer postulado genérico de um caráter nacional. (BOSI, 1988a, p. 166)
3.2 O DISCURSO RADICAL E O PENSAMENTO CONSERVADOR
O segundo termo que ficamos de analisar é “radicalismo”. Para isso, nos
apoiaremos em outro ensaio de Antonio Candido, escrito em 1988, intitulado
“Radicalismos”. Nesse texto, o crítico tem o propósito de refletir sobre algumas
manifestações de cunho radical na história do Brasil a fim de alcançar uma melhor
compreensão dos rumos possíveis para as transformações políticas. O período
escolhido pelo ensaísta vai do movimento abolicionista ao golpe de Estado de 1937,
que compreende a crise da Monarquia, a consolidação da República oligárquica e
sua crise. Os pensadores contextualizados foram Joaquim Nabuco, Manoel Bomfim
e Sérgio Buarque de Holanda.
Inicialmente, Antonio Candido estabeleceu uma oposição entre as ideias
radicais e o pensamento conservador, observando que este último, no Brasil, é um
dos traços persistentes da mentalidade e do comportamento político, quase
intransponível. O radicalismo seria o conjunto de ideias e atitudes surgidas como
oposição ao conservadorismo. Isso porque o radicalismo é uma ação progressista
diante dos problemas sociais prementes, em contraposição ao modo conservador de
agir. Entretanto, esse conjunto de ideias e atitudes nunca funcionou como um
sistema no Brasil, como pode ser visto em outros países sul-americanos, mas como
decorrência da ação isolada de alguns autores, políticos ou intelectuais. Embora
contenha elementos transformadores, o radicalismo não constitui um pensamento
revolucionário, pois, oriundo da classe média e, circunstancialmente, de setores
inconformados da classe dominante, não se identifica plenamente com os interesses
da classe trabalhadora, que teria o papel histórico de fazer a ruptura revolucionária.
Portanto, a oposição do radical aos interesses de sua classe social vai até certo
ponto, nunca chegando à tal ruptura. O radical pensa os problemas e as soluções na
72
esfera da nação, como um todo, neutralizando o antagonismo entre as classes. Por
isso, a tendência desse processo é a harmonização e a conciliação, e não a
superação revolucionária. Apesar de o radicalismo no Brasil, em certas
circunstâncias, provir até mesmo das oligarquias tradicionais, como desvios
ocasionais de parcela insatisfeita dessa classe, Candido conclui ser este um
movimento por excelência da classe média, provavelmente por ser “a única atitude
transformadora possível dentro do seu destino, da sua posição na estrutura da
sociedade e da função histórica dos seus setores esclarecidos” (2004a, p. 197).
Posto isso, vejamos como Antonio Candido trata do pensamento de Joaquim
Nabuco e de Manoel Bomfim. Nabuco era um aristocrata levado pelo movimento
abolicionista a se afastar, por cerca de dez anos (1879 a 1888), de interesses
vinculados à sua classe. Nessa condição, ele percebeu ser o escravo um
trabalhador espoliado ao máximo grau, e também de que “os interesses da
oligarquia levavam não apenas a querer manter o regime escravista, mas a
transformá-lo numa espécie de modelo permanente do trabalho” (CANDIDO, 2004a,
p. 198). Essa clarividência de Nabuco conduziu-o à compreensão de que os projetos
de imigração que se iniciavam, e mesmo a contratação do homem livre para
trabalhar no campo por tempo determinado, eram concebidos pela mentalidade
escravista que procurava estender as características desse sistema a todo
trabalhador, subjugado ao senhor ou ao patrão. Na luta abolicionista, substituiu os
argumentos humanitários, habitualmente usados, pelos aspectos econômicos e
sociais. A escravidão, nessa perspectiva, era desfavorável à produção e
extremamente concentradora de riqueza, além de comprometer a ética do trabalho.
Assumiu a posição em defesa da abolição imediata e sem indenização. Nessa
mesma linha, Nabuco radicalizava contra a mentalidade dominante, vendo o
trabalhador escravo como a parcela mais numerosa do povo, devendo, portanto, ter
direitos de atuação na vida política. Entretanto havia freios no seu radicalismo.
Apesar de ver a oligarquia, da qual se originara, como uma classe exploradora e os
escravos como explorados, nunca pensou essa relação como luta de classes. Para
ele, a abolição seria o primeiro passo para uma reforma social que integrasse o ex-
-escravo numa sociedade plurirracial, conforme o seu conceito de povo, constituído
pela totalidade da população. No entanto, pelas limitações do radicalismo, Nabuco
via todo esse processo regido pela harmonia, pela reconciliação. O resultado, após a
abolição da escravatura, foi o ex-escravo marginalizado na sociedade.
73
Após o período da campanha abolicionista, com a proclamação da República,
Joaquim Nabuco ficou afastado politicamente, tachado como monarquista,
retomando as atividades políticas após 1899, quando entrou para a diplomacia.
Antonio Candido caracteriza Nabuco como um radical temporário, que atuou por dez
anos pela abolição da escravatura.
Manoel Bomfim é considerado por Antonio Candido um radical permanente,
isto é, manteve o seu radicalismo ao longo da vida. De sua produção intelectual,
Candido dá ênfase ao livro A América Latina, publicado em 1905. Nessa época, no
Brasil, no terreno filosófico, predominava o evolucionismo, com a aplicação de
concepções biológicas nos estudos sociais e a convicção da existência de raças
superiores e inferiores. No campo ideológico, ocorriam os primeiros contatos de
brasileiros, ainda insipientes, com o anarquismo e o socialismo. Na política
internacional, o imperialismo norte-americano começava a intensificar o seu
movimento na América Latina, buscando se fortalecer. Nesse contexto, Bomfim iria
desenvolver um pensamento que discrepava das ideias dominantes. Sua referência
central era o que chamou de “parasitismo”, que vinha desde a época da colônia,
pela forma como Portugal e Espanha exploraram a América. A desqualificação do
trabalho, imposto ao escravo, e portanto indigno ao homem livre, foi um dos grandes
males dessa herança. Assim, a acumulação de riquezas se deu de forma parasitária,
com a exploração do trabalho alheio. Esse sistema, segundo Bomfim, tem duas
facetas dramáticas: a exploração econômica brutal pode levar à destruição do
explorado, sendo necessária a substituição do escravo; e o fato de que o explorado,
além de produzir a riqueza do explorador, deve defendê-lo e apoiá-lo, “como
capanga, soldado ou eleitor, quando liberto”. Foi o que aconteceu na Guerra do
Paraguai. Daí conclui-se, seguindo as ideias de Bomfim, que a base de nossa
sociedade “é a exploração econômica de tipo ferozmente parasitária, e seus efeitos
atuam sobre toda a vida social” (CANDIDO, 2004a, p. 206), configurada pela
oposição nítida da classe privilegiada, de origem europeia, e a população
predominantemente mestiça e miserável, sendo o trabalho rejeitado, como algo de
escravo.
Essa situação perdura como uma tradição, uma herança que implanta
automatismos que nos fazem agir sem a devida consciência. O traço mais danoso
dessa herança colonial é “um conservantismo, [...] em grande parte inconsciente, [...]
mais afetivo que intelectual” (BOMFIM apud CANDIDO, 2004a, p. 207). Antonio
74
Candido vê essa como uma das ideias fundamentais de Manoel Bomfim para uma
análise da sociedade tradicional, e de sua sobrevivência e presença determinante
até os dias atuais. Assim Candido sintetiza as ideias de Bomfim:
O brasileiro seria um homem tornado conservador pela herança social e cultural derivada da mentalidade espoliadora da Colônia, baseada no trabalho escravo, pois esta mentalidade pressupunha a continuação indefinida de um status quo favorável à oligarquia, já que qualquer alteração poderia comprometer a sua capacidade espoliadora. (2004a, p.207)
Como a intenção de fundo é manter as condições de exploração, Manoel
Bomfim detecta que as classes dirigentes concordam com a ideia de progresso, mas
só em sentido retórico. As Constituições liberais do Brasil, por exemplo, foram
respostas retóricas circunstanciais para que a situação social continuasse inalterada.
Na América Latina, os conservadores sempre impuseram a sua vitória sobre os
radicais, criando obstáculos ao progresso. Para Bomfim, o conservadorismo é
estrutural na sociedade escravista e se contrapõe à lógica da evolução das
sociedades modernas. Aproxima-se da ideia de Joaquim Nabuco ao dizer que a
prática da classe dominante é transmitir aos seus sucessores a herança do regime
escravista, mesmo que a abolição já tivesse sido decretada. Foi dessa forma que
Bomfim compreendeu o processo de formação de nossa sociedade moderna,
marcado pela opressão e pelo atraso, em benefício da oligarquia conservadora.
Entretanto, apesar de demonstrar lucidez em suas análises, Manoel Bomfim
confirma as limitações do radicalismo, refreando as perspectivas revolucionárias,
substituídas pela tese conciliadora de que a instrução do povo seria suficiente para
resgatá-lo. Só mais tarde, com o livro O Brasil nação, de 1931, assinala Antonio
Candido, Bomfim defenderia a transformação revolucionária como solução contra a
marginalização histórica do povo brasileiro.
Voltemos então ao nosso objeto de estudo, as Memórias sentimentais de
João Miramar. Conforme já vimos, embora haja nesse romance uma relativa
independência entre a estrutura discursiva e os eventos da realidade extraliterária, o
texto guarda relações com essa realidade, até mesmo pelo sentido da sátira. Sem
ser uma representação mimética, ou como diz Lucia Helena uma “mimética de
representação”, aquela que se amolda a uma realidade previamente existente, as
Memórias sentimentais articulam uma relação crítica com a realidade que lhe serve
de referência. Daí pode-se observar, a partir da leitura do texto, que essa crítica
75
parece ter como alvo os costumes da elite paulista. Nesse romance, não ocorrerem
denúncias de caráter social envolvendo as classes subalternas, da forma como as
fazem Nabuco e Bomfim. Dos setenta e um personagens, concebidos
essencialmente como tipos, inclusive Miramar (JACKSON, 1978, p. 33), todos ou
são ricos, ou circulam em torno dessa elite. Por não ser mimético, a ligação do
romance com o horizonte das ideias desse contexto é mais frouxa. Daí que o
discurso miramarino possibilita ao leitor ampliar a percepção dessa realidade pelas
brechas do não dito, conjugando montagem e interpretação. Ou seja, o que não está
explicitado, mas sugerido, pode ser completado pela recepção. Esse é o princípio do
jogo literário que Oswald de Andrade faz com o leitor.
Vejamos, por exemplo, o capítulo “89. LITERATURA” (1971a, p. 54-55), em
que João Miramar viaja para Aradópolis, “junto à fazenda Nova-Lombardia”,
propriedade da família da esposa de Miramar, em companhia do Dr. Pilatos, do
poeta Fíleas e de Machado Penumbra, que a convite do Grêmio Bandeirantes
pronunciaria uma conferência em memória do conselheiro Zé Alves. O ambiente do
evento é um “auditório de fascistas sicilianos com professorado cow-boy”. Após o
evento, na estação de trem, de lambuja Penumbra proferiu um discurso
grandiloquente sobre “a plenitude cafeeira e pastoril” do estado de São Paulo que se
distendeu sobre a fuga “de índios e de feras”, cabendo aos “novos bandeirantes
[que] são a reencarnação estupenda da luta, a magnífica, a eterna ressurreição
simbólica da Força!”. Então, Minão da Silva, agregado da fazenda Nova-Lombardia,
“jovem orgulho mulatal do grêmio”, tomou “a palavra pela ordem” em comemoração
ao conselheiro Zé Alves, fazendo uma saudação em nome do Grêmio Bandeirantes.
Minão inicia o seu discurso anunciando não ter frequentado “as bancadas das
escolas” e termina pedindo desculpas pelos erros de português que cometeu. Se o
discurso do agregado se contrapõe ao discurso digressivo e nada prático de
Machado Penumbra, recompondo a pauta do evento, também revela a pouca
intimidade de Minão com as palavras, ora produzindo uma hipercorreção, ora
empregando um vocábulo que não contém o significado pretendido, ora usando uma
variável popular da língua, apesar de a intenção ser o emprego formal, na tentativa
global de proferir um discurso douto semelhante ao da elite intelectual. A forma
como os discursos dos personagens são explorados por Oswald de Andrade
possibilita a crítica humorística no texto e fornece ao leitor elementos para a
caracterização dos personagens do romance. Afinal, quais seriam as pretensões de
76
Minão da Silva como membro do Grêmio Bandeirantes, se ele tem tantas
dificuldades com as palavras? Como já dissemos, a estrutura do texto permite à
recepção o preenchimento das lacunas do discurso sincopado das Memórias
sentimentais. Nesse exemplo, podemos fazer pelo menos dois preenchimentos, isto
é, interpretações: a) os grêmios literários eram instituições da elite sobretudo para o
relacionamento social, ficando a literatura em plano inferior, haja vista o caráter tanto
do discurso de Machado Penumbra, como o do agregado da fazenda Nova-
-Lombardia; b) a estratégia de Minão da Silva ao frequentar o Grêmio Bandeirantes
seria buscar o reconhecimento social junto à elite. Portanto, nesse episódio, há uma
crítica ao modo de ser provinciano da elite paulista e também ao sujeito de origem
humilde que tem por referência essa elite. Talvez aí esteja uma das razões, mesmo
que subliminar, da composição do mulato pernóstico de “pronominais”, na poesia
pau-brasil. É certo, entretanto, que ao tratar o mulato como arquétipo, se expressa aí
um preconceito.
João Miramar também motivado pelos relacionamentos sociais, a pedido de
sua esposa, passou a frequentar, em seu caso, o Instituto Histórico e Geográfico,
com o qual Célia mantinha vínculos por intermédio do primo distante Pôncio Pilatos
da Glória. Nesse Instituto, Miramar conheceu o “orador ilustre escritor Machado
Penumbra” e “o fino poeta Sr. Fíleas” – capítulos “69. ETNOLOGIA” (1971a, p. 43-
44) e “70. RODINHA” (1971a, p. 44). Há algo de análogo entre Minão da Silva e
João Miramar no que diz respeito ao sentimento de se compreender como
pertencente a um grupo. Entretanto existem diferenças em relação à força que move
os personagens em direção às respectivas instituições. Minão vai por desejo próprio,
por ambições de ascenso social; Miramar, por desejo de Célia, uma consolidação de
sua condição social. Também pelo discurso, agora do narrador, o leitor pode efetuar
a leitura na perspectiva de que João Miramar parece crítico em relação a esse tipo
de ambiente literário, dedução possível pelo jogo da ironia no discurso miramarino,
em que as pessoas presentes ao evento aparentemente são como que “apagadas”
da cena na qual o narrador relata as suas primeiras impressões a respeito do
Instituto Histórico e Geográfico: “Mas naquela noite fui introduzido no enceramento
abobadal e branco do Instituto de cadeiras ouvindo mesa oblonga onde meridianos
comemoravam fastos fictícios” (capítulo 69). Tudo demonstra que Miramar tem
consciência da mediocridade humana ali instalada, mas não tem intenção de se
rebelar contra os seus iguais na sociedade de classes. Analisando
77
comparativamente Memórias sentimentais de João Miramar e Memórias póstumas
de Brás Cuba, Samira Nahid Mesquita escreve:
Nada de juízos expressos sobre os comportamentos alheios... Apenas pelo humor, pela sátira, deixam subtender que há uma forte crítica à sociedade, eles incluídos [João Miramar e Brás Cuba]. Mas não são eles que se propõem a corrigir o mundo, como, por exemplo, o herói romântico. (1995, p. 155)
Se Miramar não se rebela pela ação prática, rebela-se pela linguagem, mas
até certo ponto. Daí que Oswald de Andrade coloca o leitor diante de uma questão
complexa no último episódio, o desfecho da história. Como preencher as lacunas
que o autor ficcional deixou em aberto ao explicar as razões da interrupção da
escrita de suas memórias? Nossa hipótese é de que João Miramar, no campo da
linguagem, exerce um radicalismo que tem procedimentos semelhantes ao
analisado por Antonio Candido. Assim, Miramar produz uma linguagem literária de
ruptura com a literatura estabelecida, mas enquanto sujeito o confronto vai até
determinado ponto, em que ele evita a ruptura profunda com a sua própria classe
social. Essa seria uma questão de fundo, que em nosso entendimento potencializa
outras interpretações das Memórias sentimentais de João Miramar.
78
4 TÉCNICAS DO ESCRITOR JOÃO MIRAMAR
4.1 O PREFÁCIO E A PRIMEIRA INFÂNCIA
A apresentação aos leitores do livro Memórias sentimentais de João Miramar
é feita no prefácio escrito por Machado Penumbra, um personagem do romance.
Mais estritamente, Penumbra é um escritor e orador que, de certa forma, pontua a
trajetória da convivência de João Miramar no grêmio literário, desde seu primeiro
contato com o Instituto Histórico e Geográfico, quando o prefaciador fora o orador
daquela sessão, passando por uma viagem ao interior paulista, na qual Penumbra
discursou a convite do Grêmio Bandeirantes, até a publicação do livro de memórias
de Miramar, cuja autoria do prefácio coube ao amigo das letras. Portanto, Machado
Penumbra e João Miramar, em relação às realidades literária e extraliterária, estão
no mesmo nível, ambos são personagens do romance de Oswald de Andrade.
Como o prefácio das Memórias sentimentais foi escrito ficticiamente por um
personagem, para apresentar a obra supostamente escrita por outro personagem, o
autor ficcional, adquire uma função distinta da tradicional, pois não faz a
apresentação do romance do escritor Oswald de Andrade. Além do prefácio, o título
do romance indica que as memórias ali registradas são de João Miramar, que
assume ao mesmo tempo as funções de narrador, personagem e autor do romance,
registrando suas lembranças passadas. Resumindo, o prefácio não se dirige a
Oswald de Andrade, mas a João Miramar. Dessa forma, a relação tradicional dos
papéis que cabem aos agentes da realidade extraliterária e aos agentes ficcionais é
embaralhada, e portanto questionada. Afinal, quem seria o autor das Memórias
sentimentais, Oswald ou João Miramar? Na primeira frase do prefácio, Machado
Penumbra confirma a ficcionalidade, ao tratá-la como uma notícia: “João Miramar
abandona momentaneamente o periodismo para fazer a sua entrada de homem
moderno na espinhosa carreira das letras”13 (ANDRADE, 1971a, p.9). Portanto, o
prefácio faz parte do jogo ficcional que Penumbra anuncia, ou seja, ele se integra à
obra de ficção escrita por Oswald enquanto texto inicial. Por isso, mesmo
entendendo que o autor efetivo das Memórias sentimentais seja Oswald de Andrade,
haja vista não haver um texto miramarino e outro, diferente, oswaldiano, isto é, o
13
Os trechos de Machado Penumbra transcritos aqui estão em “À guisa do prefácio”, p. 9-11.
79
texto miramarino é prosa oswaldiana, tentaremos aqui extrair do prefácio e da
primeira infância um perfil do autor ficcional e de algumas de suas técnicas enquanto
escritor, visando compreender melhor a prosa oswaldiana.
Machado Penumbra buscou justificar aquela escrita moderna de João
Miramar como “o produto improvisado e portanto imprevisto e quiçá chocante para
muitos, de uma época insofismável de transição”. Essa época seria o período
forjado a partir da Primeira Grande Guerra Mundial, que acarretou mudanças
profundas na vida cotidiana. O estilo e a personalidade de Miramar, segundo
Penumbra, são frutos dessa época, “nasceram das clarinadas caóticas da guerra”.
Como decorrência da “embaralhada de inéditos valores”, o prefaciador chama de
guerra todo o período que se seguiu aos primeiros bombardeios, mesmo o pós-
-guerra, devido às mudanças políticas, econômicas, técnicas e comportamentais que
afetaram a sociedade. Inclusive a sociedade brasileira que, apesar de um tanto
distanciada da conflagração europeia, sofrera os seus reflexos, com o impulso à
industrialização, a maciça imigração de trabalhadores europeus e o progresso
tecnológico dos transportes e comunicação.
A cidade de São Paulo, portanto, crescia e se transfigurava num mundo onde
as coisas não tinham mais definição. As “ideias novas” e as “práticas novas” que
valorizavam a ação, em detrimento ao tradicional repouso dos finais de semana, se
inseriam com intensidade na vida da cidade no pós-guerra. Havia um frenesi pelos
esportes, danças, bebedeiras, tóxicos, competições, cinemas, passeios, viagens,
treinamentos, corridas, parques de diversões etc. (SEVCENKO, 1992, p. 33). A ação
irradiava novas significações na nova sociedade, e a herança cultural mantida no
mesmo formato do passado tornara-se obsoleta. Os novos valores estavam ligados
sobretudo à mobilidade e à ação. Nicolau Sevcenko escreve: “Nesse desempenho
físico, em que o corpo é a peça central, os agentes da „ideia nova‟ se expõem a um
intenso bombardeio sensorial e emocional, que se torna a substância energética em
si mesma da ação” (1992, p. 32). Essa exposição era uma característica dos novos
tempos, da nova civilização, daí que as investigações psicológicas, fundindo as
noções de interior e exterior do indivíduo, impulsionadas pelo trabalho de Freud, se
desenvolvem na literatura do século XX, como em Proust, Virginia Woolf, entre
outros.
A guerra deixara também um quadro político instável, um conflito social em
efervescência, com greves e agitações operárias crescentes. Talvez por isso
80
Machado Penumbra escreveu que o tratado de Versalhes “não foi senão um minuto
de trégua numa hora de sangue. Depois dele, assistimos ao derramamento orgânico
de todas as convulsões sociais”. A guerra foi transformadora da sociedade. Após o
seu fim, não houve um retorno ao estado anterior. Nas palavras de Sevcenko:
Mas foi a escala sem precedentes da destruição maciça desencadeada pela primeira guerra tecnológica que eliminou fisicamente das posições decisivas os homens ligados ao lastro cultural dos séculos anteriores. Após a Guerra, seja pela morte, afastamento ou desmoralização dos antigos líderes, uma nova geração emergiu: jovens portadores da “ideia nova”, gente vinda do seio do caos metropolitano e formada nele. (1992, p. 32-33).
As mudanças não dizem respeito só às instâncias de poder, como já dissemos, mas
também à sensibilidade. Sérgio Milliet escreveu em 1925:
A guerra fora um inferno de cinco anos que arruinou o mais enraigado sentimentalismo. Um Cendrars de após guerra, sem braço, de rosto recortado, não pode mais se comover com galanteios fáceis enxertados na sabença dos sonetos de colarinho engomado
14. (1972, p. 240)
As investigações psicológicas, portanto, são um aspecto da época. Segundo
Machado Penumbra, o modo de ser e de escrever de João Miramar parecem um
produto daquele período, que a conflagração europeia legou ao mundo moderno. E
com ironia afirma tornar-se “lógico que o estilo dos escritores acompanhe a evolução
emocional dos surtos humanos”. Assim, o texto de João Miramar e a sua
subjetividade contêm as marcas de um tempo de transição.
Entretanto, apesar de Penumbra inscrever Miramar em seu tempo, buscou
mostrar a recusa por parte do autor ficcional da investigação psicológica, substituída
por painéis de eventos cuja análise em profundidade ocorre em relação à
engrenagem da sociedade, conforme registra o prefaciador: “Memórias sentimentais
– por que negá-lo? – é o quadro vivo de nossa máquina social que um novel
romancista tenta escalpelar com a arrojada segurança dum profissional do
subconsciente das camadas humanas”. De fato, no texto miramarino não há um
processo meditativo, de interiorização, de autorreflexão do narrador ou de qualquer
personagem, mas pode-se observar que a exterioridade da personalidade de
Miramar se aproxima de sua interioridade no processo da escrita das memórias,
conforme ele adquire consciência. A palavra “subconsciente” na frase destacada não
14
Artigo intitulado “Tendências”.
81
diz respeito ao indivíduo, isoladamente, e pode ser vista como remissiva à
organização do enredo que se estabelece de forma subterrânea, aparentemente
não-lógica, através de um discurso não-linear, que produz uma crítica ao contexto
social em que João Miramar está situado. Já vimos anteriormente que Haroldo de
Campos observou o jogo dual contido no prefácio de Machado Penumbra em que há
“um antimanifesto na paródia linguística e um manifesto verdadeiro nas definições
de técnica de composição que nele estão insertas” (1971a, p. xviii).
Nos quatro primeiros capítulos, que em conjunto formam uma “estrutura
significativa” na qual João Miramar recorda a primeira infância, os painéis foram
constituídos por lembranças afetivas. Portanto o interior de Miramar se revela no
exercício da escrita, contudo sem a conotação de um romance psicológico. Nesse
sentido, uma análise desses quatro capítulos possibilita um melhor reconhecimento
de aspectos do estilo miramarino que Machado Penumbra busca apresentar ao leitor
no prefácio. Em todos eles há um tédio que se situa nos objetos da realidade
exterior relembrados, percebidos contemplativamente por Miramar, sem que esse
fastio seja evocado por um processo de mergulho interior. Entretanto, a identificação
do enfado revela uma percepção do narrador em relação à realidade em que estava
inserido. Vejamos, por exemplo, no capítulo “1. O PENSIEROSO” (1971a, p.13),
como o desencanto de João Miramar se relaciona com o seu olhar sobre o mundo:
uma cidade sem alegrias, um circo sem mistérios, a monotonia no interior de sua
casa. O tédio está no mundo das coisas, que por sua vez encontra-se destituído de
qualquer significação transcendental, apesar de marcado pela religiosidade. Esse é
também o mundo de um passado longínquo, cronologicamente falando em relação
ao tempo da escrita das Memórias, mas próximo do ponto de vista afetivo.
1. O PENSIEROSO
Jardim desencanto O dever e procissões com pálios E cônegos Lá fora E um circo vago e sem mistério Urbanos apitando nas noites cheias Mamãe chamava-me e conduzia-me para dentro do oratório de mãos
grudadas. [...] Vacilava o morrão do azeite bojudo em cima do copo. Um manequim
esquecido vermelhava.
82
Esse passado longínquo relembrado, o mundo antigo, o mundo da infância,
fora fixado na memória do autor pela monotonia das ações previsíveis e dos objetos
vagos: a obrigação religiosa com ritos repetitivos e monótonos, esvaziados de
significado; a mãe que também repetia as mesmas ações sem atrativos; o espaço
da casa e o espaço da rua assemelhavam-se pelo tédio. O mundo exterior não
continha outras opções, e marcaria João Miramar pelo viés do desencanto com que
encerra as Memórias. A digressão era uma tentativa de o menino lidar com aquele
mundo, escapulindo para a imaginação: “– Senhor convosco, bendita sois entre as
mulheres, as mulheres não têm pernas, são como o manequim de mamãe até
embaixo. Para que pernas nas mulheres, amém”.
Embora as Memórias sentimentais de João Miramar abordem o cotidiano
comum de seu autor ficcional, não se constituem como uma escrita trivial de
exposição de traços de uma época. Miramar enquanto narrador busca se aproximar
dos objetos com os quais estabeleceu uma relação afetiva, traçando o seu itinerário
como painéis montados pela recordação de suas impressões, se negando a uma
estratégia meditativa, introspectiva. Evita repetir fórmulas do passado, tais como as
românticas em relação ao fastio do mundo, e, como contrapeso, o escritor se vale da
ironia, do sarcasmo e do humor para tratar de uma realidade enfadonha, e faz isso
exatamente no instante da digressão, em que o menino, pelo discurso, torna-se
dono da ação. Miramar não busca resgatar uma origem ao escrever suas memórias,
ao contrário, escreve para desarticular o passado estabelecido, desencantado, e faz
isso desarticulando o discurso pelo viés humorístico. Esse seria o método do escritor
Oswald de Andrade que forjou, conforme vimos com Antonio Candido, o “par ímpar”.
No Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade foi explícito ao usar a alegria como
oposto ao conservadorismo, este representado pelo “estado tedioso”. Escreveu
Oswald: “A alegria é a prova dos nove” (1978a, p. 18). Ramon Domingues Maia, em
sua dissertação de mestrado, analisando os capítulos iniciais das Memórias
sentimentais, afirmou sobre a origem do estilo sarcástico de Miramar:
Talvez possamos dizer que esse relato inicial de João Miramar dará forma e será parte da chave explicativa ao seu estilo sardônico, uma vez que sua ironia se processa em grande parte como desencantamento do mundo que se abre e que mais tarde ganhará contornos mais precisos de alguma aversão aos costumes da elite ascendente. (2007, f. 57)
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Os títulos dos capítulos das Memórias sentimentais de João Miramar,
poderíamos ampliar e dizer da obra oswaldiana, em geral têm função que extrapola
a finalidade ilustrativa ou atrativa. Quase sempre integram o conteúdo do texto,
orientando ou completando a sua significação. O capítulo “2. ÉDEN” (1971a, p. 14)
faz a demarcação espacial do enredo. Mesmo que a narrativa percorra outros
espaços, a cidade de São Paulo será o referencial. O título desse capítulo é irônico,
pois São Paulo não é o Éden, o lugar de delícias, o paraíso tropical que muitos
europeus imaginaram ter descoberto com a chegada das caravelas à América. São
Paulo é uma cidade da América do Sul, na qual, para João Miramar, não há o
exotismo imaginado por muitos europeus que buscaram o primitivismo nos
continentes periféricos.
Esse capítulo é constituído por apenas duas frases que, justaposta, articulam
imagens e ideias: na primeira, o narrador contesta a imagem exótica do olhar
europeu sobre uma cidade sul-americana – “A cidade de São Paulo na América do
Sul não era um livro que tinha cara de bichos esquisitos e animais de história” –; na
segunda, ele fixa uma imagem que busca representar aspectos da nossa realidade
com suas contradições, a partir da cidade de São Paulo de quando Miramar era
ainda criança – “Apenas nas noites dos verões dos serões de grilos armavam campo
aviatório com os berros do invencível São Bento as baratas torvas da sala de jantar”.
Portanto, na cidade de São Paulo, “cara de bichos esquisitos” só aparecia “nas
noites dos verões”, com os insetos. “As baratas torvas” voavam pela sala de jantar
acompanhadas dos “berros do invencível São Bento”. Por essas lembranças serem
da infância de João Miramar, o tempo histórico talvez seja por volta do final do
século XIX, início do XX. Isso não é demarcado com precisão, nem importa muito.
Vale, entretanto, o registro de que a cidade ainda não apresentava grandes
evoluções da tecnologia, se comparadas com as que surgiriam por decorrência da
Primeira Grande Guerra. João Miramar escreve no pós-guerra, relembrando aqui
fatos provavelmente da passagem do século.
A Associação Atlética São Bento foi um time de futebol fundado em 1914,
campeão paulista desse mesmo ano com um time fortíssimo formado por jogadores
que haviam estudado no Ginásio São Bento, uma verdadeira seleção. Desse
“invencível São Bento”, Miramar/Oswald extraiu os berros, provavelmente da torcida,
e que portanto não são de pavor mas de diversão, mesmo que haja momentos de
tensão em uma partida de futebol. Esses berros de tensão e diversão são
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justapostos aos voos das “baratas torvas”, forjando uma imagem imprevista. Parece-
-nos ainda que a expressão “invencível São Bento” guarda uma referência também à
presença do imigrante na cidade de São Paulo. O futebol, esporte inicialmente
praticado por clubes de imigrantes, introduzido no Brasil na última década do século
XIX, se desenvolveu no início do século XX. O primeiro Campeonato Paulista de
Futebol foi disputado em 1902 por cinco clubes: São Paulo Athletic Club; Associação
Atlética Mackenzie College; Sport Club Internacional; Sport Club Germânia e Club
Athlético Paulistano. Em sua autobiografia, Oswald se declara mackenzista, apesar
de o “xodó da cidade” ser o Paulistano (2011a, p. 57). Em outro trecho do mesmo
livro, o som gerado pela torcida de futebol parece ter desde sempre despertado a
atenção do autor:
Da janela lateral de nossa sala de jantar eu avistava as copadas árvores da chácara do Conselheiro Ramalho, na Consolação, que desciam até a atual Avenida 9 de Julho. Detrás, vinha um clamor que se elevava de quando em quando na tarde quieta. Era o futebol que nascia. (2011a, p. 56)
Instalados na cidade sul-americana, esses europeus imigrantes não têm aquela
visão de “Éden” criada pelos europeus de além Atlântico. Assim, a partir das duas
frases justapostas, o corpo do texto desse capítulo acaba por se constituir em um
painel antiéden e estabelece uma relação antitética com o título.
Se a busca do artista vanguardista europeu pelo primitivismo desembocou
muitas vezes no exotismo, em Oswald de Andrade, como em outros modernistas
brasileiros, o primitivo não parece uma aberração, afinal esse é um elemento
sempre próximo em nossa cultura, jamais distanciado conforme se dava na cultura
europeia. Por isso Antonio Candido formulou que “as terríveis ousadias de um
Picasso, um Brancusi, um Max Jacob, um Tristan Tzara, eram, no fundo, mais
coerentes com a nossa herança cultural do que com a deles” (2010a, p. 128). Assim
a imagem de São Paulo do tempo da infância do autor ficcional, quando a cidade
ainda não apresentava grandes evoluções tecnológicas, recebeu dois elementos da
modernidade tratados humoristicamente para o exercício da crítica: mesmo sem
aviões, a cidade tinha “campo aviatório” para insetos; e “os berros do invencível São
Bento” podem representar também o frenesi dos esportes alcançado no pós-guerra.
Esses dois elementos da modernidade justapostos a elementos primitivos formam
em seu conjunto uma imagem que busca representar uma parte da realidade
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brasileira vista por dentro, na qual são encontradas as contradições do moderno e
do arcaico, ao invés de mostrar dela apenas o invólucro conforme as imagens
registradas por uma “Kodak excursionista”, que se limita a expor a casca, o
paisagístico, a cor local, o que resulta no exotismo pela falta do olhar crítico
(CAMPOS, 1972).
Portanto, no método de João Miramar, encontramos as primeiras matrizes da
poesia pau-brasil. Conforme Roberto Schwarz observou no ensaio “A carroça, o
bonde e o poeta modernista”, dedicado à poesia pau-brasil, no contexto histórico da
produção oswaldiana, e mesmo antes, a realidade da sociedade brasileira
costumava compor o cenário com os traços burguês e pré-burguês postos lado a
lado, de maneiras diversas, e até hoje presentes. Esse mecanismo dual atuou sobre
a “inteligência brasileira” e provavelmente, segundo o crítico, tenha animado a
parcela fundamental de nossa tradição literária, sendo que o enfoque da temática
brasileira costumava vir “associado a atraso e desgraça nacionais” (SCHWARZ,
2006, p. 13). Em Oswald de Andrade, no entanto, esse mesmo tema ganha um traço
de otimismo, em que o Brasil pré-burguês, inocente, inaugural, “assimila de forma
sábia e poética as vantagens do progresso, prefigurando a humanidade pós-
-burguesa, desrecalcada e fraterna” (SCHWARZ, 2006, p. 13, grifo do autor). Para
isso, o ensaísta identifica a matéria-prima do poema pau-brasil obtida por meio de
duas operações: “a justaposição de elementos próprios ao Brasil-Colônia e ao Brasil
burguês, e a elevação do produto – desconjuntado por definição – à dignidade de
alegoria do país. Esta a célula básica sobre a qual o poeta vai trabalhar” (2006, p.
12, grifo do autor). Uma fórmula bastante simples e eficaz, em que os elementos da
justaposição, observados no dia-a-dia do país, conferem ao resultado final – uma
alegoria do Brasil – certo fundamento realista. Daí a força da fórmula oswaldiana.
Aprofundando o seu estudo, Schwarz percebe esse “produto desconjuntado”
da primeira operação como decorrência de uma acomodação dos elementos
históricos antagônicos, pois se constitui como que pacificado, mesmo que a
operação seja processada em sintonia com a vanguarda estética europeia. Para o
ensaísta, é na exposição estrutural do descompasso histórico que está o ponto focal
da poesia pau-brasil. Por isso a importância da primeira operação dessa poesia, em
que os elementos burguês e pré-burguês são justapostos, e que desemboca na
segunda operação, a síntese final. Todo esse processo utiliza variados meios
formais, combinados com a familiaridade dos elementos usados e pela brevidade. O
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resultado do poema busca uma síntese que passa pela acomodação de soluções
antitradicionais e matéria tradicional. Assim, essa combinação própria do moderno
com o arcaico produzia uma alegoria que obtinha o “estatuto de emblema pátrio não-
-oficial” (SCHWARZ, 2006, p. 13). O trabalho formal da poesia pau-brasil foi
principalmente analisado aproximando-se as soluções oswaldianas das soluções
artísticas da vanguarda europeia, contudo, para Roberto Schwarz, pode-se analisar
também em função da matéria, o que exige pensar historicamente essa poesia.
Então o crítico aponta certas limitações de cunho ideológico da poesia pau-brasil na
“supressão do antagonismo” dos elementos justapostos. Ao apaziguar os contrastes,
ocorreria uma “correspondência entre esta estética e o progressismo conservador da
burguesia cosmopolita do café” (SCHWARZ, 2006, p. 27), ou seja, um progresso
cuja mentalidade e prática são atrasadas.
O título do terceiro capítulo, “GARE DO INFINITO” (1971a, p. 14), é uma
metáfora do falecimento do pai de João Miramar. O painel, neste episódio, é
constituído de índices que se somam até a configuração da morte. Escrito em
primeira pessoa e com o tempo verbal no pretérito, o narrador, inicialmente, anuncia
que o seu pai estava doente. E prossegue com o relato de movimentações que
giram em torno dessa situação, sugerindo ao leitor o agravamento do estado de
saúde do pai. O menino observa os acontecimentos a certa distância e sofre
mudanças em sua rotina que independem de sua vontade. Uma característica da
narrativa em primeira pessoa no texto memorialista é o estabelecimento da
dualidade em relação ao tempo, no caso, de João Miramar enquanto narrador e
como personagem que viveu o que ele próprio está narrando. A identidade desses
sujeitos não é exatamente a mesma, devido ao tempo transcorrido. Nessa
perspectiva, o escritor João Miramar explora outros níveis da temporalidade. O
narrador memorialista coloca os eventos no passado, estabelecendo uma relação de
ulterioridade com eles, por isso o tempo verbal da narrativa está no pretérito. No
entanto, nesse episódio, o narrador busca se aproximar do momento presente dos
acontecimentos narrados.
A técnica do escritor para alcançar este efeito está na elaboração “da sintaxe
do texto do capítulo, imitativa da sintaxe infantil, do tempo da matéria narrada”
(MESQUITA, 1995, p.153). Dessa forma, o menino assume o discurso narrativo,
revivendo os acontecimentos como se estivessem ocorrendo no presente da
narrativa. Na primeira frase do capítulo, por exemplo, os elementos são
87
coordenados por uma conjunção aditiva que se repete, tal qual a sintaxe infantil:
“Papai estava doente na cama e vinha um carro e um homem e o carro ficava
esperando no jardim”. A estrutura sintática infantil prevalece nas outras frases do
capítulo. Observa-se também que a representação, por exemplo, da casa para onde
o menino foi levado, na segunda frase, se estabelece a partir da seleção feita pelo
menino das coisas que mais lhe chamam a atenção, numa perspectiva também
infantil de livre associação de ideias e de imagens: “uma casa velha que fazia
doces”; “a sala do quintal onde tinha uma figueira na janela”. Ainda mais: a
linguagem infantil, além do predomínio da coordenação na sentença e da seleção de
ideias e imagens feita pela criança, instaura a inocência e a pureza diante do fato
trágico: “[...] a voz toda preta de mamãe ia me buscar para a reza do Anjo que
carregou meu pai”.
Oswald de Andrade, em outras obras, também faria uso dessa linguagem e
desenvolveria esse estilo infantil. Mais do que apenas um aspecto da sua linguagem
literária, o “estado de infância” caracteriza em Oswald uma visão de mundo, da vida
e da arte: “Neles [os artistas] bate a pulsação da desgraça alheia. E por isso tiram do
seu manto mágico as altas surpresas da poesia e da arte. É um estado de infância
esse que acompanha o artista em toda a sua vida”15 (ANDRADE, 2011c, p. 456).
Apesar de já ter sido reduzido a um entendimento superficial pela crítica com o
propósito depreciativo, o “estado de infância” no autor vem sempre vinculado às
experiências lúdicas da humanidade, que se confrontam com as pressões
racionalistas. Para a realização dessas experiências, necessita-se de garantias que
se estabelecem, conforme palavras de Oswald de Andrade, a partir de “um
sentimento que acompanha o homem em todas as suas idades e que chamamos de
constante lúdica” (1978a, p. 126)16, compreendida, assim como a religiosidade17,
enquanto uma dimensão do ser humano que o acompanha desde a origem, em
todos os tempos e espaços. É nessa “constante lúdica” que se deposita a
possibilidade de uma “arte livre”, autêntica, original. Nesse sentido é que está a
marca da infância em Oswald de Andrade, como a alegria das crianças em sempre
se depararem com um novo achado, a cada instante. Dessa forma, a vida é sempre
o momento presente, sem projeções, preocupações ou justificativas com um futuro
15
Artigo intitulado “Do órfico e mais cogitações”, escrito em 1954. 16
Tese “A crise da filosofia messiânica”, escrita de 1950. 17
Oswald compreendia o sentimento religioso como sentimento órfico.
88
por vir, ou com um passado que já não é mais. O presente é o próprio momento da
criança, no qual está contida a sua potência total. Por isso, na poesia pau-brasil, o
elogio ao lúdico humano, que prevalece na criança:
3 de maio Aprendi com meu filho de dez anos Que a poesia é a descoberta Das coisas que eu nunca vi (1972, p. 42)
Com esse espírito infantil, o artista se coloca diante da vida e da obra. Ele
situa-se, portanto, no “estado de infância” próprio ao artista e que o acompanha por
toda a vida, repetimos. Mas isso tem como consequência o seu desajuste na
sociedade, por não conseguir se adaptar aos padrões estabelecidos na engrenagem
social. O artista é incapaz de seguir o modelo de adulto ideal civilizado, por isso traz
consigo o estigma dos marginalizados, segundo Oswald, “do primitivo, do louco e da
criança” (2011c, p. 456). Walter Benjamin, em seus belíssimos estudos sobre a
infância, observou ser comum as crianças inventarem seus brinquedos com os
resíduos desprezados pelos adultos, pois têm um outro sentido que os adultos não
alcançam. Transcrevemos a seguir um longo trecho do próprio Benjamin sobre a
produção de brinquedos destinada às crianças, feita pelos adultos:
Desde o Iluminismo é esta uma das mais rançosas especulações do pedagogo. Em sua unilateralidade, ele não vê que a Terra está repleta dos mais puros e infalsificáveis objetos da atenção infantil. E objetos dos mais específicos. É que crianças são especialmente inclinadas a buscarem todo local de trabalho onde a atuação sobre as coisas se processa de maneira visível. Sentem-se irresistivelmente atraídas pelos detritos que se originam da construção, do trabalho no jardim ou na marcenaria, da atividade do alfaiate ou onde quer que seja. Nesses produtos residuais elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e somente para elas. Neles, estão menos empenhadas em reproduzir as obras dos adultos do que em estabelecer uma relação nova e incoerente entre esses restos e materiais residuais. Com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande. (2004, p. 57-58)
Portanto, o interesse das crianças costuma estar no que não teria utilidade na
perspectiva do adulto. As crianças criam os seus brinquedos a partir desses “restos”
e de sua imaginação. Com esse procedimento as crianças se aproximam dos
“inúteis”, ou seja, das pessoas que estão à margem da engrenagem social, que
desempenham papéis sociais imprevistos na civilização. Nessa perspectiva
podemos analisar o quarto e último capítulo deste bloco que montamos e estamos
89
investigando, “4. GATUNOS DE CRIANÇAS” (1971a, p. 14-15). O estilo infantil é o
mesmo com que se forjou o terceiro capítulo: narrativa em primeira pessoa, sintaxe
infantil e seleção de ideias e imagens sob a perspectiva da criança. Entretanto há
um elemento novo neste episódio: a presença dos marginalizados, representados
pelos ciganos. Há também uma diferença significativa em relação ao circo já citado:
aqui ele é vivo, em oposição ao “circo vago e sem mistério” do primeiro capítulo. E
quem propicia a magia do circo são os ciganos.
O episódio é constituído por três frases. A primeira diz: “O circo era um balão
aceso com música e pastéis na entrada”. Confirmam-se a sintaxe infantil e a livre
associação de ideias e imagens na perspectiva da criança. O mesmo ocorre na
segunda frase, na qual o narrador revela ao leitor que o menino Miramar se sentia
rei, pois toda aquela alegria do espetáculo circense parecia voltada para ele: “E
funâmbulos cavalos palhaços desfiaram desarticulações risadas para meu trono de
pau com gente ao redor”. Daí que o menino sentiu o desejo de viver sempre aquele
momento. Teve então “inveja da vontade de ter sido roubado pelos ciganos”. A
inveja surgiu porque a vontade de ser roubado pelos ciganos era um desejo
proibido, diante do medo que os adultos inculcavam nas crianças quando um povo
cigano chegava a uma localidade, repetindo continuamente que aquele povo
estranho, que vivia de forma diferente, tinha por hábito raptar crianças. Por isso os
pequenos deveriam se precaver. Daí a inveja que o narrador, o menino Miramar,
sentiu daqueles que podiam ter a “vontade de ter sido roubado pelos ciganos”,
aquelas pessoas diferentes que produziam todo aquele encantamento do circo.
Assim, o primitivo, o louco, a criança e o artista se identificam no estigma dos
marginalizados.
Conforme já dissemos, os quatro capítulos analisados constituem a “estrutura
significativa” da primeira infância das Memórias de João Miramar. Na elaboração de
seu romance, Miramar tem como estratégia configurar as personagens diante do
leitor mais pelos seus discursos do que pelas suas ações. Ou seja, mais importante
do que o relato de viagens, de passeios, de uma reunião no grêmio literário, de um
caso amoroso, são as cartas, os discursos, os bilhetes, as falas das personagens,
as notícias, o discurso do narrador. Trata-se de um texto, conforme observou Samira
Nahid Mesquita, mais voltado para “uma trama da linguagem do que de peripécias”
(1995, p. 152). Nessa perspectiva, ou seja, da ênfase na linguagem, supomos que
esse bloco de capítulos correspondente à primeira infância pode nos dizer também
90
da origem do estilo miramarino. Por isso a nossa análise sobre a apresentação do
estilo de João Miramar feita no prefácio por Machado Penumbra não se deteve
apenas ao texto inicial do romance. No entanto, voltemos agora ao prefácio.
Machado Penumbra não identifica no texto de João Miramar um embate posto
entre um modernismo e um passadismo. Para ele, o estilo do autor das Memórias é
decorrência da confusão provocada pela guerra. Por isso a sua complacência para
com o colega das letras Miramar e seu estilo, e a ironia de “reconhecer o direito
sagrado das inovações”. De certa forma, tudo parece muito tranquilo, já que no
romance de João Miramar não há, na ótica de Machado Penumbra, ameaças
vigorosas ao status quo. Em seu foro íntimo, Penumbra permanece convicto quanto
a “um velho sentimentalismo racial [que] vibra ainda nas doces cordas alexandrinas
de Bilac e Vicente de Carvalho”. Para o prefaciador, as inovações daquela prosa de
João Miramar ameaçam apenas “o ouro argamassado pela idade parnasiana”. Ou
seja, a oposição que se configura no estilo miramarino seria entre uma suposta
idade de ouro parnasiana, anterior à guerra, em que havia um equilíbrio, segundo o
ponto de vista de Penumbra, e o período da conflagração europeia. Como considera
a guerra um distúrbio momentâneo, o prefaciador propõe que se espere “com calma
os frutos dessa nova revolução que nos apresenta pela primeira vez o estilo
telegráfico e a metáfora lancinante”. No fundo, Penumbra não acredita que aquelas
inovações vinguem em um país como o Brasil, que “desde a idade trevosa das
capitanias, vive em estado de sítio”. E arremata de um ponto de vista histórico:
“Somos feudais, somos fascistas, somos justiçadores”. Temos aí o sarcasmo
oswaldiano altamente corrosivo.
No texto inicial, “À GUISA DO PREFÁCIO”, Oswald de Andrade usa de uma
retórica empolada para fazer a crítica à “inteligência brasileira” da época, como
também de suas deduções intelectuais frágeis, elaboradas a partir de um ponto de
vista conservador. O erro maior de Penumbra foi tentar caracterizar a linguagem de
Miramar como deslocada do contexto brasileiro e circunstanciada pela guerra, numa
perspectiva nacionalista e retrógrada ao frisar que a guerra ocorreu na Europa,
portanto longe do Brasil. Daí a sua compreensão para com a obra de João Miramar,
apesar de não concordar com o seu estilo, fruto dos enganos do autor e das
confusões da guerra. A empreitada literária de Miramar como homem moderno seria
momentânea, não se sustentaria, pois estava dissociada do Brasil. Ou seria para
muito distante do mundo em que viviam: “Será esse o Brasileiro do Século XXI?”.
91
Machado Penumbra é um personagem conservador mas ardiloso. Ele encarna a
vocação do intelectual de província, mas ao mesmo tempo detém informações
atualizadas de sua época que extrapolam o provincianismo. Sabe, por exemplo, do
debate crítico de artes plásticas que ocorria naquele momento histórico na Europa:
“Há [...] nesse livro novo, um sério trabalho em torno da „volta ao material‟ –
tendência muito de nossa época como se pode ver no Salão d‟Outono, em Paris”. E
também do debate em torno da formação de uma língua por modernistas: “O fato é
que o trabalho de plasma de uma língua modernista nascida da mistura do
português com as contribuições das outras línguas imigradas entre nós [...], não
deixa de ser interessante e original”. De posse desse discurso, Machado Penumbra
finaliza o prefácio das Memórias sentimentais de João Miramar atacando a crítica
desprovida de habilidades intelectuais: “Pena é que os espíritos curtos e
provincianos se vejam embaraçados no decifrar do estilo em que está escrito tão
atilado quão mordaz ensaio satírico”. Talvez em Machado Penumbra esteja uma
pista para se entender como João Miramar, o herói que viveu a vida burguesa sem
se recriminar, aceitando as regras do jogo, sem qualquer propósito de atuar sobre a
realidade no sentido de modificá-la, escreveu uma obra tão moderna, na qual, pela
sátira, se subtende uma crítica mordaz à sociedade, ele incluído. O estilo de João
Miramar se constrói como avesso de Machado Penumbra: enquanto este emprega
um linguajar empolado, aquele é telegráfico. Mas no campo ideológico, ambos
pertencem a mesma classe social, e tudo indica que a unidade de classe prevalece
no final.
4.2 O COMPILADOR E EDITOR DE CARTAS PESSOAIS
Já foi dito por muitos críticos, e já registrado em nosso trabalho, que o
romance Memórias sentimentais de João Miramar congrega vários gêneros textuais,
constituindo-se assim, segundo as próprias palavras de Oswald de Andrade, no
“primeiro cadinho de nossa prosa nova”18 (1971b, p. 45). Essa técnica de articular
diversos gêneros textuais seria aprofundada em Serafim Ponte Grande, conforme
vimos anteriormente. Como temos por objetivo neste capítulo de nosso estudo
investigar algumas técnicas que o autor ficcional João Miramar lança mão na
18
Artigo intitulado “Antes do Marco Zero”.
92
elaboração de suas Memórias, para assim tentarmos alcançar uma melhor
compreensão da prosa oswaldiana, nos dedicaremos agora à análise do processo
de incorporação de cartas pessoais ao seu romance. Esse gênero textual permite
uma abordagem de aspectos mais íntimos das personagens, apresentados em seus
próprios discursos, sem que o narrador tenha de relatá-los ou de emitir opiniões.
Conjugada a essa análise que elege um gênero textual como referência norteadora
de nossa investigação, nos apoiaremos na montagem de “estruturas significativas”,
formando assim blocos, que não sejam constituídos necessariamente só por cartas,
ampliando a nossa possibilidade de análise. Já vimos anteriormente que o princípio
articulador da matéria narrada nas Memórias sentimentais de João Miramar não é a
lei da causalidade que estabelece uma determinada ordenação sequencial dos
episódios de um romance. Como exercício crítico, pode-se buscar a formação de
blocos a partir da articulação de segmentos da narrativa sob determinado aspecto
linguístico ou temático, ou mesmo sob a lógica da montagem com a junção de
imagens heterogêneas constituindo um todo, para assim se tentar interpretar o
conjunto da obra. Isso faz com que a organização estrutural do romance se dê como
uma rede, ao invés de uma sequência linear conforme a tradição romanesca, e cabe
à recepção tecer essa rede.
As cartas que analisaremos foram escritas por parentes de João Miramar e
pelo agregado da fazenda Nova-Lombardia, em momentos variados da trajetória do
autor ficcional, tendo por destinatários majoritariamente o próprio Miramar, ora
individualmente, ora enquanto casal Miramar e Célia. Mas há algumas cartas
enviadas a outros personagens que foram apropriadas por João Miramar: uma
destinada ao primo Pantico e duas à sua mulher Célia. Sistematizando esses dados,
são ao todo quatorze cartas escritas pelos seguintes personagens: quatro pela prima
Nair – destinadas a Pantico, Célia e duas ao casal Miramar e Célia –; três pelo primo
Pantico – duas remetidas a Miramar e uma a Célia –; duas pela prima e mulher Célia
– encaminhadas a Miramar –; uma pela tia e sogra Gabriela – para o casal Miramar
e Célia –; uma pelo primo longínquo Dr. Pilatos – escrita para Miramar – e três pelo
agregado Minão da Silva – postadas para Miramar. Nesse aspecto, João Miramar
assume uma função a mais no processo de elaboração de seu livro: além de autor,
narrador e personagem, passa a ser também compilador e editor de cartas pessoais.
Essa nova função traz para o autor ficcional um risco ético, já que esse gênero
textual tem por característica a escrita no âmbito da privacidade, portanto, sem a
93
intenção de se tornar pública. Em contrapartida, ao serem editadas no romance,
esse caráter de privacidade das cartas possibilita ao leitor um outro olhar para os
personagens e o contexto. Assim, a incursão pelo mundo do gênero carta pessoal
coloca o leitor diante de um cotidiano íntimo e privado, no qual se podem entrever
novos elementos por trás dos que se mostram num plano mais evidente. No entanto,
antes de entrarmos propriamente na análise que propomos, faremos um preâmbulo
sobre esse gênero textual, apoiado no estudo de Jane Quintiliano Guimarães Silva.
A carta pessoal é constituída essencialmente por procedimentos do diálogo
que se refletem no processo de produção da escrita do texto. Dessa forma, esse
gênero textual tem um funcionamento de produção de linguagem socialmente
situada, numa forma de interação particular entre sujeitos, na qual se dá também a
constituição dos próprios sujeitos. Na história das práticas comunicativas mediadas
pela escrita, a carta pessoal viabilizou os relacionamentos humanos à distância, na
esfera privada. Tornou-se uma forma de alguém dar notícias a uma pessoa ausente
do convívio cotidiano, ou mesmo para fortalecer com cordialidade e intimidade um
relacionamento. Há uma cumplicidade entre os interlocutores, o que tende a
conduzir a correspondência a uma informalidade e à superação das diferenças de
lugares sociais, mesmo numa relação marcadamente hierarquizadas. Nesse sentido,
há uma tendência dessa prática comunicativa se ambientar em um mesmo contexto
sócio-cultural, no qual se efetiva a interação entre os interlocutores. Quanto à
temporalidade, trata-se de um procedimento de interação social dissociado do aqui e
agora, em que existe uma diversidade de tempos que se relacionam: há o tempo da
escrita; o tempo da leitura; há outro tempo, o da matéria narrada, que quase sempre
se estabelece a partir do tempo da escrita. As Memórias sentimentais de João
Miramar não são um romance epistolar, mas empregam a montagem de cartas no
corpo da narrativa, e também da sua temporalidade. Por isso os momentos da
escrita das cartas, da leitura e da matéria narrada devem ser considerados em
relação ao percurso das personagens envolvidas e de João Miramar, assim como
em relação ao panorama da época a que se relacionam.
Importa também observar que os papéis dos interlocutores na carta pessoal
não são fixos, e também não se limitam a momentos estanques de atuação. Além da
constante troca de posições dos sujeitos entre remetente e destinatário, que ocorre
no exercício continuado da correspondência, a dinâmica desse processo
comunicativo se caracteriza também pelo fato de que a supremacia do remetente
94
sobre o texto produzido torna-se relativa à medida que o destinatário se insere no
texto já no momento da sua produção, como condição necessária para que este seja
elaborado. Assim, o destinatário não desempenha apenas o seu tradicional papel de
dar sentidos ao texto no momento da leitura. O remetente, no tempo da escrita, traz
consigo o destinatário como um co-enunciador, conhecedor de sua vida, confidente.
Portanto, o “movimento dialógico” oferece um novo sentido além da alternância de
papéis comunicativos entre os correspondentes. Os esquemas de participação dos
sujeitos no interior do evento comunicativo retratam, em larga medida, as formas
como as pessoas se organizam e se relacionam no cotidiano da sociedade
(BAKHTIN, 2003). Nessa perspectiva, as práticas comunicativas do gênero carta
pessoal e os textos delas oriundos devem ser considerados numa visão processual,
em que a língua, a linguagem e a realidade social se constituem como algo
dinâmico, construídos e reconstruídos constantemente pelos agentes sociais. Assim,
a incursão pelas cartas compiladas e editadas por João Miramar nos orienta a
investir no exame dos papéis dos participantes do ato comunicativo, das identidades
sociais reveladas nas relações interativas, como também do trabalho de construção
do texto.
A carta pessoal tem algumas etapas e sequências discursivas que organizam
a estrutura textual do gênero, estabilizadas por um trabalho coletivo contínuo e
permanente no âmbito dos eventos de interação, tais como a presença de vocativo,
a saudação, a despedida. A feição que o remetente dá a essas fórmulas pode
expressar um valor social, estético, de caráter, entre outros disseminados pelas
práticas comunicativas das cartas. Em relação ao corpo do texto, identifica-se aí o
uso de estratégias e de outros recursos linguísticos que podem ser de aproximação
dos interlocutores, de condução, conforme a intencionalidade estabelecida. O fato é
que os sujeitos, remetente e destinatário, operam o texto a partir de um
conhecimento convencionado sobre a estrutura textual e os elementos lexicais,
reconhecido socialmente conforme as práticas históricas de interação realizadas por
cartas e as situações comunicativas. Isso não significa que a situação de
comunicação lançada por esse gênero seja constituída apenas de dados
marcadamente objetivos. As fórmulas linguístico-discursivas próprias do gênero,
longe de tornarem a situação de comunicação previsível e objetiva, operam também
com um conjunto de representações interiorizadas pelos interlocutores e suscetível
de ser mobilizado no decorrer do processo interativo, o que produz um dinamismo
95
singular. A respeito das etapas e sequências discursivas que organizam a estrutura
textual do gênero carta pessoal em nossa cultura, e funcionam como um guia,
podem ser assim distribuídas: a abertura do evento; o corpo da carta; o
encerramento do evento; e o post scriptum, que é facultativo. Vejamos, a seguir, um
detalhamento dessas etapas.
A “abertura do evento” consiste, por parte do remetente, na instauração do
contato e da interlocução com o destinatário. É constituída pelo cabeçalho e pelo
exórdio. O “cabeçalho” tem a função de contextualizar o evento indicando a origem e
a época da produção do texto. O “exórdio” se divide em dois momentos: saudação e
solicitudes. A “saudação” vem acompanhada do vocativo, e se caracteriza como
estratégia interativa introdutória, indicando a natureza do relacionamento e o nível
de intimidade dos interlocutores. Nas “solicitudes” são expressos os votos de saúde
e paz, o sentimento de saudade, as desculpas em relação à carta anterior, etc. Sua
função é de natureza pragmática e interativa.
O “corpo do texto” é o lugar do desenvolvimento do objeto do discurso, no
qual o remetente apresenta os temas que reportam ao seu cotidiano. Ele escreve
sobre si, incluindo aí assuntos de foro íntimo, sobre outros com quem convive, relata
episódios vivenciados. O detalhe é que esse discurso nunca é centrado de tal forma
no próprio remetente a ponto de se tornar um monólogo. Por meio de estratégias
como perguntas e outros recursos linguísticos, o remetente envolve o destinatário
com o que está sendo enunciado, com o propósito de que este compartilhe com o
que vem ocorrendo em sua vida cotidiana. Sob essa perspectiva, o corpo do texto
deixa entrever o modo como os interlocutores representam e agem sobre uma
realidade ali recortada.
O “encerramento do evento” é a última parte da carta, em que ocorre a
preparação da finalização e o fim do evento comunicativo. Compreende um pré-
-encerramento, a despedida e a assinatura do remetente. No “pré-encerramento”, o
remetente anuncia que o encontro está chegando ao final. Nas cartas, não há um
término abrupto. O remetente vai preparando o destinatário para a separação, e
costuma empregar fórmulas linguísticas que permitem ao destinatário identificar
esse momento. É também nesse trecho da carta que se investe na revitalização do
contrato comunicativo, que dará sequência à troca de correspondência. A
“despedida” formaliza o fecho da interação, geralmente por meio de expressões de
afetividade. Tanto a despedida como a saudação são sequências discursivas que
96
permitem a observação da qualidade das relações interpessoais entre os
correspondentes. A “assinatura” é um ato simbólico, em que o remetente afirma a
autoria do texto, validando o que foi enunciado.
Por fim temos o “post scriptum”, que não se constitui como trecho obrigatório
da sequência textual. Sua função, em tese, é a de possibilitar a inclusão de alguma
informação ou detalhe que não constou da carta, e o remetente considera relevante
registrar. Feito esse preâmbulo sobre o gênero carta pessoal, passemos então à
análise de algumas cartas compiladas e editadas por João Miramar em suas
Memórias.
4.2.1 Cartas e sexualidade
Uma das marcas da prosa oswaldiana é a eliminação dos excessos na
linguagem. No prefácio das Memórias sentimentais de João Miramar, Machado
Penumbra chamou essa marca de “estilo telegráfico”. Seu resultado na
caracterização das personagens está na extrema economia tanto de traços físicos
como psicológicos. Ou seja, a brevidade nas definições das personagens acaba por,
aparentemente, simplificá-las. Entretanto, o não dito pelo narrador se potencializa
como possibilidades. Assim, ao não fixar, por exemplo, o retrato de uma
personagem do ponto de vista do memorialista, outros discursos que se inserem na
narrativa ganham densidade. Seria esse o caso das cartas. Escritas e lidas em
dadas situações comunicativas, agora aparecem nas Memórias de João Miramar
como documentos compilados e editados pelo autor ficcional. O ponto de vista das
matérias contidas nas cartas não é o de João Miramar, mas há uma apropriação e
seleção das missivas que passa por uma decisão dele. Nesse sentido, as cartas
pessoais têm uma função dupla, a de expor o discurso de outras personagens e a
de trazer uma lembrança documental que interage com a rememoração do escritor
ficcional João Miramar no processo de articulação da matéria narrada (MAIA, 2007).
Vejamos, por exemplo, a primeira carta editada no romance, que aparece no
capítulo “16. BUTANTÔ (1971a, p. 19). Escrita pela prima Nair, tem por destinatário
o seu irmão, o primo Pantico. Os dois eram ainda bem jovens e estudavam em
internatos, na época em que a carta foi escrita. O editor publicou apenas o corpo da
carta, o que exige do narrador uma apresentação do evento comunicativo. Por isso
97
há uma colagem em que se justapõem os discursos do narrador e o da personagem
Nair, sobre os quais o capítulo se estrutura.
No discurso do narrador, aparecem as informações que deveriam constar dos
trechos cortados da carta – a abertura e o encerramento do evento comunicativo –,
tais como a identificação do remetente e do destinatário da correspondência, além
do local de sua produção, neste caso o colégio interno onde Nair estudava com as
suas irmãs Célia e Cotita. A informação dada pelo narrador de que Pantico estudava
em outro colégio interno talvez pudesse constar nas solicitudes, devido à prática da
inserção do destinatário no texto já no momento da produção textual, ou talvez seja
apenas fruto do conhecimento do narrador das questões familiares. Com esses
dados, verifica-se a prática da elite ruralista, no processo de formação educacional
de seus filhos, de enviá-los para os internatos, que proporcionavam boa educação
conforme as convenções sociais. O narrador acrescenta ainda uma informação que
muito provavelmente não estivesse na carta, pois não se constitui como um
elemento da rotina comunicativa do gênero, isto é, a descrição sucinta, em estilo
telegráfico, de um traço físico das irmãs Célia e Cotita: ambas eram “bochechudas”.
Quanto à matéria narrada no corpo da carta publicada por Miramar, trata do
relacionamento entre as meninas do colégio interno onde as irmãs estudavam:
[...] As meninas aqui não são tão maliciosas como no internato de Miss Piss. Mas... nunca vi que espírito civilizado elas têm. Pois como elas não têm moços para namorar elas namoram-se entre si. Todas têm um namorado como elas dizem e é uma outra menina: uma faz o moço e outra a moça. E quando elas se encontram, se beijam como noivos. [...]
Na sequência da carta, Nair registra os reflexos desse comportamento em seu
interior: “Por mais que não se queira ficar como elas, inconscientemente fica-se”. E
conclui o texto afirmando que os tempos são outros, as meninas perdem a inocência
cada vez mais cedo, o que antecipa também a idade com que se compreende a
malícia. A carta, portanto, tem por matéria um cotidiano íntimo das estudantes de um
colégio interno que vivenciavam, a seu modo, um momento do despertar da
sexualidade, tema que sempre foi tratado como tabu em nossa sociedade
conservadora.
Considerando que as primas de João Miramar foram enviadas pela família
para o internato com o propósito de obterem uma boa formação escolar, e que, no
98
início do século XX, isso consistia quase sempre na perspectiva de as meninas
virem a ser esposas exemplares, pode-se supor que o ambiente escolar continha
margens em que se poderia escapulir dos rigores do que seria uma boa educação.
Nota-se ainda que a carta ao ser destinada a Pantico extrapola do universo
feminino, tornando o irmão cúmplice daquela realidade mais íntima. Entretanto, ao
afirmar que as meninas da classe amarante não eram tão maliciosas como as de
outro internato pelo qual provavelmente as irmãs passaram, Nair faz uma pausa,
registrada na sequência do texto por uma conjunção adversativa seguida de
reticências, como se ela buscasse as palavras, ou por ter dúvida sobre o que
acabara de afirmar a respeito da falta de malícia daquelas meninas, ou para melhor
definir as suas deduções sobre o fato que relataria a seguir. Então diz que as
meninas da classe amarante têm o “espírito civilizado”. Elas pertenciam a outros
tempos, a outras conjunturas, a outros contextos. Daí a fascinação de Nair, o
deslumbre pela novidade como marca de quem deixou o mundo rural para entrar em
um novo mundo, civilizado. Mais do que transferir segredos do mundo feminino ao
irmão, as descobertas da sexualidade e das novidades civilizadas parecem ser as
razões efetivas para a produção e envio da carta. O deslumbre pelas novidades da
civilização será a marca da família fazendeira em sua viagem ao mundo europeu.
Articulando-se os dois discursos, do narrador e da carta, observa-se que no
primeiro não há um juízo avaliativo da matéria narrada na carta, mas no título do
capítulo talvez haja uma caracterização da personagem Nair. “Butantã” deve se
referir ao instituto inaugurado oficialmente em 1901, na fazenda Butantã, onde
desde o início do século passado se produz, entre outros medicamentos e
pesquisas, os soros antiofídicos. Daí pode-se vincular o título do capítulo com a
expressão popular “língua de cobra” que remete a falas maldizentes, maliciosas,
capciosas. Seria essa uma caracterização da personagem Nair? Ou seria uma
caracterização imposta pela sociedade conservadora a todos aqueles que se
arriscam a tratar de temas tabus?
Feita uma leitura “vertical” do capítulo 16, que por si é uma unidade completa,
podemos enriquecê-la com uma leitura “horizontal”, articulando este com outros
episódios. Nossa proposta aqui seria constituir uma “estrutura significativa” a partir
do critério temático que diz respeito a aspectos afetivos do protagonista, até o
encontro decisivo com Célia, com quem se casa, conjugado à ocorrência de
expressões linguísticas que, de certa forma, orientam na articulação desses
99
segmentos narrativos. Como é prerrogativa da recepção montar as “estruturas
significativas”, optamos por formar um bloco com os capítulos 9, 16, 19, 32, 33 e 57.
Ainda na fase infância/adolescência de João Miramar, há uma segunda carta
publicada no romance, no capítulo “19. BICICLETA DE ONÔ (1971a, p. 20-21),
escrita por Pantico para Miramar. Dessa carta também foi publicado apenas o seu
corpo, o que resulta na necessidade de justapor ao discurso de Pantico o discurso
do narrador, que anuncia o remetente e o destinatário, além do local em que fora
escrita, Águas Enxutas, onde moram “tias longes”, e a época, as férias de Pantico. O
remetente encontra-se muito aborrecido, pois não há divertimento onde está. “O rio
é muito perigoso e pequeno. E também não tem meninos. Passo os dias que nem
na fazenda que não tinha nada para fazer senão vícios.” E termina o corpo da carta
com a ameaça de praticar os “vícios” caso sua mãe não lhe envie a bicicleta
solicitada para divertir-se: “Vou fazer como lá se mamãe não quiser mandar a
bicicleta que já estou pedindo”. Os “vícios” praticados na fazenda Nova-Lombardia,
provavelmente, conforme depreendido do título do episódio – “Bicicleta de Onã” –,
sejam os da automasturbação. Onã é um personagem bíblico designado a dar
posteridade a seu irmão, o que evita interrompendo o coito com a cunhada no
instante da ejaculação para evitar a fecundação. Daí o significado da palavra
“onanismo” ser também automasturbação.
O tema da sexualidade tratado nas cartas dos primos se apresenta, de certa
forma, bastante explícito, se cotejado com o que parece ser a primeira experiência
concreta da sexualidade do próprio Miramar relatada nas Memórias. Talvez aí esteja
a importância desses documentos incorporados ao romance, para se obter uma
representação mais direta, produzindo um efeito de objetividade no romance como
contrapeso às formas indiretas de expressão de temas difíceis, quando valores
morais tradicionais vêm à tona. Ainda no bloco infância/adolescência, Miramar se
enamorou por Madô, lembranças abordadas no capítulo “9. BOLACHA MARIA”
(1971a, p. 16-17). O episódio foi relatado com imagens um tanto oníricas, e parecem
corresponder, repetimos, a uma experiência concreta da sexualidade de Miramar.
Tudo indica que o texto nebuloso desse episódio ocorra devido uma filtragem
operada pela consciência do narrador. João Miramar, menino, portanto sem a
segurança que se adquire com as experiências da vida, estava na sala de Monsieur
Violet. Logo após o mestre ter saído do cômodo, surgiu Madô: “Amanhecia na sala
abandonada pelo mestre”. O nome “Madô” vem da redução de “Madalena”, que
100
pode ter como significado “mulher fácil” para o evento sexual. “Amanhecia na sala”
porque Madô ali aparecia, iluminando aquele cômodo escuro, cuja janela da rua
nunca era aberta. E a imagem sensual da menina vem a seguir: “Era Madô de meias
baixas saias curtas e pela mão vacilante nos palmitos o último rebento dos Violet”. A
ação do protagonista em direção a Madô também não é relatada de forma objetiva,
acrescentando-se que a narrativa foi posta em terceira pessoa, afastando
nitidamente a matéria narrada do próprio narrador: “O guri despegava a mãozinha
do braço distraído e fazia a volta científica da poltrona e gritava cabelos amostras”. E
mais uma imagem sensual de Madô: “Ela era um jorro das mangas rendadas das
pernas louras abertas”.
Considerando o capítulo “21. CLAQUE” (1971a, p. 21-22) como o primeiro do
bloco da juventude de João Miramar, a partir daí ocorrem algumas experiências
secretas nas ruas e quartos percorridos pelo jovem Miramar, e algumas paixões por
atrizes. Desse período da juventude, elegemos os capítulos 32 e 33, conforme já
anunciamos. No capítulo “33. VELEIRO” (1971a, p. 27), Miramar está atravessando
o Atlântico, rumo à Europa, numa viagem autorizada às pressas por sua mãe, e que
tudo indica ser parte do processo de formação do protagonista. A imagem do colégio
interno inserida nesse capítulo vincula o episódio aqui relatado ao da carta de Nair:
“Esquecia-me olhando o céu e a estrela diurna que vinha me contar salgada do
banho como estudara num colégio interno”. O título “Veleiro” dá ao navio Marta uma
imagem de pequenez, de isolamento no imenso oceano. Nessa imagem de um
objeto do mundo exterior, o narrador expressa um estado de espírito seu, o mesmo
procedimento técnico do escritor que vimos na análise dos primeiros capítulos do
romance. O episódio transcorre do entardecer ao amanhecer, sem aventuras para o
protagonista, que opta por se isolar diante da cena que sintetiza os eventos sociais
no navio: “Madama Rocambola mulatava um maxixe no dancing do mar”. No
capítulo anterior, “32. ROLAH” (1971a, p. 26-27), cujo título é o nome da futura
amante de João Miramar, a descrição de Madama Rocambola justifica
humoristicamente o afastamento de Miramar das atividades sociais noturnas do
navio: “Uma bola de vidrilhos rodava atrás de uma cabeça loura. A bola dava gritos e
chamava-se Madama Rocambola”. Ainda no capítulo 32, o narrador antecipa um
fato futuro de sua vida, se considerado o tempo cronológico da trajetória de Miramar,
o seu amor extraconjugal com a estrela Rolah e a falência de sua empreitada no
cinema: “E Rolah trazia ao meu céu de cinema um destino invencível de letra de
101
câmbio”. Entretanto a antecipação de um evento futuro não nos parece uma chave
para a interpretação do texto. Talvez seja mais fecundo pensar o enredo como um
jogo em que as peças estão posicionadas em todos os instantes, daí, insistimos, o
romance de Miramar ser uma rede a ser tramada pelo leitor.
Voltando ao capítulo 33, ao amanhecer, estando Miramar sozinho no convés,
encontra-se com a estrela diurna, que apesar de não ser nomeada pelo narrador, se
deduz ser Rolah: “Esquecia-me olhando o céu e a estrela diurna que vinha me
contar salgada do banho como estudara num colégio interno. Recordava-me dos
noivados dormitórios das primas.” A imagem que o discurso produz ainda é um tanto
onírica, mas não como no capítulo “9. BOLACHA MARIA”, nem tão ardiloso por parte
do narrador a ponto de mudar o foco narrativo. O protagonista já está mais
maduro.19 Podemos ver aqui mais uma função da carta da prima Nair, como
contraponto que, de certa forma, contribuiu para Miramar estabilizar as suas
emoções. E o narrador encerra o capítulo deixando o leitor entrever que o desejo de
Miramar por Rolah não é momentâneo: “Uma tarde beijei-a na língua”. A partir
desses dois capítulos, 32 e 33, vários outros blocos podem ser formados vinculando-
-os com o futuro de João Miramar. Talvez esse seja o grande desafio para a
recepção dessa obra, que não se submete a um roteiro de leitura. Em nosso
entendimento, a leitura dessa obra é construção necessariamente coletiva e
acumulativa, diante da quase infindável possibilidade de articulações que o texto
propicia. No entanto, vamos nos deter ao nosso propósito inicial. O último capítulo a
que recorremos para a constituição do bloco com o qual estamos trabalhando é o
“57. HINTERLAND” (1971a, p. 38).
Após retornar da Europa e se deparar com o falecimento de sua mãe, João
Miramar foi passar um período na fazenda Nova-Lombardia, onde encontrou Célia já
moça e se apaixonou. A descrição física de Célia nesse episódio o vincula também
ao capítulo “16. BUTANTÔ: “A laparotomia da adolescência cortara-lhe rentes
bochechas com próteses minúsculas de seios e maneiras de caça presa em
cachos”. Se buscarmos a caracterização física de Célia até o capítulo 57,
verificamos que apenas em três capítulos os traços da personagem são registrados:
em conjunto com suas irmãs, como “primas jambos”, indicando a tez morena, no
capítulo “13. MUDANÇAS” (1971a, p. 18); como “as irmãs bochechudas Célia e
19
Essa ideia de amadurecimento, de ganho de consciência de Miramar ao longo de sua trajetória, foi
desenvolvida por Kenneth Jackson (1978).
102
Cotita”; e como “as três moças primas de óculos bem falados”, no capítulo “27.
FÉRIAS” (1971a, p. 24). Apenas no capítulo 57, o narrador volta a descrever
fisicamente a personagem Célia, agora já moça constituída. Observa-se, então, que
a inserção de uma característica física pelo narrador no capítulo 16 é uma operação
milimétrica, já que aparentemente desnecessária, e tem por função mais estabelecer
vínculos narrativos do que descrever a personagem. Célia estudara com as irmãs
em colégio interno, assim como Rolah. E o discurso do narrador nesse episódio,
seguindo a linha do amadurecimento do protagonista, já não tem os volteios das
fases etárias anteriores, é direto para expressar a sua paixão: “E meus olhos
morenos procuraram almoçar os olhos de prima Célia”. A partir do capítulo 57, ele
incluído, até o capítulo o “62. COMPROMETIMENTO”, pode-se formar um outro
bloco, no qual o narrador descreve a vida no interior paulista e a paixão, o namoro e
o casamento do protagonista com a prima. Portanto, as cartas escritas na
adolescência por seus primos e editadas em suas Memórias sentimentais,
entendemos, correspondem a um artifício técnico do escritor para dar conta do
processo de amadurecimento do protagonista do romance.
4.2.2 Cartas e papéis sociais
No final capítulo 3 deste nosso estudo, “NACIONALISMO E RADICALISMO”,
já nos referimos a Minão da Silva e suas ambições sociais ao se filiar ao Grêmio
Bandeirantes. A nossa análise foi no sentido de que aos membros dos grêmios
literários importavam mais as relações sociais do que a literatura. Portanto, nessa
perspectiva, deduzimos que o mulato Minão da Silva buscava reconhecimento social
junto à elite, o que nos levou a reconhecer que talvez aí esteja uma das razões da
composição do mulato pernóstico em “pronominais”, na poesia pau-brasil, ou seja, o
sujeito de origem humilde que tem por referência a elite provinciana e seus valores
conservadores. Mantendo a mesma tese, analisaremos agora as três cartas escritas
por Minão da Silva, destinadas a João Miramar.
Cada uma das cartas foi editada no romance imediatamente a seguir de um
capítulo que narra algum evento da vida de Miramar, com o qual a carta pode
estabelecer um diálogo tácito. Sendo assim, enquanto recepção, podemos constituir
uma “estrutura significativa” com seis capítulos, organizados em pares: 75 e 76; 129
e 130; 146 e 147. Essa montagem, considerando a publicação das cartas no
103
romance sempre em par com um episódio relembrado da vida do autor ficcional das
Memórias sentimentais, permite forjar uma ordenação das correspondências de
acordo com uma sequência cronológica facilmente identificada no transcorrer da
vida de Miramar, com o nascimento de sua filha, a crise no casamento e a sua
falência. O tempo cronológico nessa “estrutura significativa” tem uma função
estratégica, pois o movimento de ascensão social de Minão da Silva é combinado
com o movimento de decadência econômica de João Miramar, consolidado no título
do capítulo da terceira carta: “O Antípoda”. Esses movimentos de ascenso e
descenso têm por parâmetros os valores dominantes na sociedade capitalista.
Como documentos, as três cartas escritas por Minão da Silva foram
publicadas no romance praticamente na íntegra, faltando apenas algumas poucas
sequências discursivas da rotina desse tipo de gênero textual, como a data, a
despedida e a assinatura na primeira carta e a data na terceira. Por isso não há
necessidade do discurso do narrador nos respectivos capítulos, para complementar
as informações sobre o evento comunicativo. Como consequência, o discurso do
personagem Minão da Silva ocupa integralmente esses capítulos destinados à
reprodução epistolar, excetuando-se os títulos que, como já vimos, são dotados de
significados diretamente relacionados com o texto. Embora cada episódio do
romance permita uma leitura vertical, por constituir uma totalidade, a articulação
desses capítulos, numa leitura horizontal, amplia o alcance da análise literária.
Comecemos observando alguns aspectos das missivas de Minão da Silva.
O corpo da carta, lugar do desenvolvimento do objeto do discurso, no qual o
remetente apresenta os temas que reportam ao seu cotidiano, pode estabelecer
uma relação com o discurso do narrador do capítulo anterior, que mais à frente
analisaremos. Por ora, observemos a abertura e o encerramento das cartas que
articulam um discurso com os movimentos de ascensão de Minão da Silva e de
decadência de João Miramar. Segundo as características desses segmentos, a
“saudação” e a “despedida” são sequências discursivas que permitem a observação
da qualidade das relações interpessoais entre os correspondentes. Quanto à
“saudação”, temos os seguintes discursos: na primeira carta, capítulo “76. CARTA
ADMINISTRADORA” (1971a, p. 48), – “Ilmo. Sr. Dr. / Cordeais saudações”; na
segunda, capítulo “130. RESERVA” (1971a, p. 74), – “21 de abril / Seu Dr.”; e na
terceira, capítulo “147. O ANTÍPODA” (1971a, p. 83), – “Sr. Dr. Joãozinho”. Já nas
“despedidas”, registra-se: não ocorre na primeira carta; na segunda carta temos:
104
“Seu criado às ordens”; e na terceira: “Amigo que lhe estima”. É nítida a evolução da
saudação de um tom bastante cerimonioso para uma linguagem que busca
intimidade, num processo de quebra da hierarquização do relacionamento. Mesmo
que seja uma tendência desse gênero textual o apagamento das marcas da
hierarquia social, o processo transcorre de forma muito abrupta nesse caso, ou seja,
da formalidade extrema da primeira carta, chega a um tratamento na terceira carta
em que o remetente parece querer se inserir na intimidade familiar de Miramar.
Dizemos isso porque a única personagem que trata João Miramar por “Joãozinho” é
a sua mulher Célia. Portanto, “Sr. Dr. Joãozinho”, no diminutivo, mesmo que
combinado com um tratamento respeitoso, pode ser visto como uma escolha que
denota certa intimidade e afeto do remetente para com o destinatário.
No entanto, observado todo o contexto, a demonstração dessa intimidade não
condiz com a situação em que se encontram os personagens. Não há tanta
intimidade entre eles. Talvez possamos ver nisso mais uma revelação da inabilidade
de Minão da Silva com a linguagem, que não se manifesta apenas em relação aos
aspectos gramaticais da língua, mas também em relação ao seu desempenho no
uso dos gêneros discursivos em desacordo com as situações comunicativas postas
em prática. Contudo, outra perspectiva a ser considerada seria haver um tom
exagerado na expressão de Minão da Silva para demarcar a sua ascensão social, já
que se tornará em breve um citadino. Em certo sentido, nos parece haver uma ironia
nesse discurso, que também podemos vislumbrar no emprego do diminutivo por
Célia, conforme o seu casamento com Miramar vai desandando. Portanto, o
tratamento pelo diminutivo nos parece conter uma ambiguidade, entre indicar uma
afetuosidade ou um sentido pejorativo, conforme a situação das personagens.
Quanto às despedidas, nota-se a mudança de um comportamento
inicialmente subalterno para um igualitário, ou seja, de “criado às ordens” do
destinatário a “amigo que estima” o seu interlocutor. Essas sequências discursivas
representam o processo de quebra da hierarquia no relacionamento entre os dois
personagens em decorrência da aproximação das condições sociais, segundo o
ponto de vista do remetente. Temos, portanto, mais uma representação mordaz de
Oswald de Andrade, pois a ascensão social de Minão da Silva se caracteriza pela
aquisição de “um lote de terra de Sociedade” (capítulo 147) junto à Estação da
cidade, onde irá morar. O escritor já vislumbrava o processo de migração da
população rural pobre para as periferias das cidades, que depois viria a se tornar um
105
movimento massivo. Não há resposta de Miramar às posições de Minão da Silva
expressas nas cartas, a não ser os títulos dos capítulos.
Como já dissemos, a nossa proposta para a análise do corpo das cartas é
realizar o estudo em par, ou seja, cada carta juntamente com o capítulo precedente.
O capítulo “75. NATAL” (1971a, p. 48) anuncia o nascimento da filha de Miramar,
Celiazinha, cujo título supre a ausência da data na primeira carta de Minão da Silva,
publicada na logo a seguir. Trata-se do capítulo mais econômico do romance, com
apenas quatro palavras: “Minha sogra ficou avó”. No capítulo “76. CARTA
ADMINISTRADORA” (1971a, p. 48), Minão da Silva tem por objetivo informar ao
patrão a rotina de trabalho da fazenda, ao modo de uma carta comercial, com uma
dinâmica interlocutiva cujo fluxo tende à mão única, ou seja, não se estabelece um
procedimento dialógico entre remetente e destinatário. Só ao final da carta, no
trecho do pré-encerramento, Minão anuncia que todos na fazenda estão bem e
deseja que “D. Célia fique restabelecida da convalescença”. Não há felicitação pelo
nascimento da filha de João Miramar ou qualquer outro índice que pudesse denotar
alguma intimidade entre os interlocutores. Percebe-se que a carta é burocrática, tal
como anuncia o título do capítulo. Podemos então inferir que o diminuto capítulo
anterior, bem ao estilo miramarino, é um discurso oposto ao da carta, longo apesar
de seu restrito conteúdo sobre a rotina da fazenda. Quanto a Miramar, sua vida
familiar e financeira transcorria bem, com o nascimento da filha e a rotina produtiva
das propriedades em ordem.
No segundo par, o capítulo “129. ATO III. CENA I” (1971a, p. 73-74) se
constitui por um jogo dramático com o qual Célia insinua saber do caso
extraconjugal do marido. Portanto a vida familiar de Miramar começa a sofrer abalos,
e por conseguinte a sua vida econômica. Temos no capítulo, inicialmente, o discurso
do narrador que vem seguido por um diálogo cujos interlocutores são Célia e
Miramar. O narrador expressa o momento de profunda tristeza de Célia com uma
imagem belíssima dimensionada pelo sentimento sul-americano, no qual o brasileiro
se insere: “Na preguiça solar da mesma sala grande onde fôramos felizes casais,
Célia e a cadeira de balanço choravam como um tango”. Segue-se o diálogo no qual
Miramar fala uma única vez e uma única palavra, “Já”, respondendo a uma
indagação da esposa sobre o relacionamento do protagonista com a filha. Célia é
uma personagem inteligente e astuta. Inicialmente demarca a falta de atenção do pai
em relação à Celiazinha, para então dizer da carta anônima que recebera, “contando
106
tudo”. E como estratégia discursiva, intensifica o drama na sequência ao dizer: “Não
há nada mais triste do que ser enganada”. O silêncio de Miramar, a falta de palavras
é a resposta que eleva ainda mais a cena dramática. Daí o título do capítulo. Mas
como dissemos, Célia é inteligente, e imprime uma nova sequência discursiva com o
objetivo de não enveredar por um discurso de ruptura, que naquele momento parece
não lhe ser conveniente: “Você está apaixonado por essa atriz, Joãozinho! Conte
tudo”. Na sequência do diálogo em que apenas a esposa fala, ela devolve a Miramar
as responsabilidades pela situação do seu casamento, num tom irônico de
humilhação e achincalhamento: “Acho você envelhecido, preocupado, com cara de
viciado, Joãozinho!”.
A segunda carta de Minão da Silva publicada no capítulo seguinte, “130.
RESERVA” (1971a, p. 74), tem em sua abertura a data “21 de Abril”, em referência a
Tiradentes. Constam da sequência discursiva das solicitudes justificativas patrióticas
para a escrita da carta destina a Miramar. O remetente dá notícias das pessoas de
seu convívio cotidiano e, então, entra no corpo da carta, em que informa da
oportunidade de servir em um regimento militar e faz o pedido a João Miramar: “Só
eu saí sorteado para o Regimento Suprimentar de Paracatu no Goiás e queria que
V.S. desse as providências para mim ficar em Caçapava no Regemento de
Infantaria Montada”. Como argumento para convencer Miramar a atuar em seu
favor, Minão aponta que ficando mais próximo à sua moradia, poderia estudar para,
segundo suas palavras, “ser a Luz de minha família”. Portanto, em movimento
oposto ao de Miramar, cuja família começava a desmoronar.
Em discurso confuso, Minão da Silva busca explicar a sua futura atuação no
regimento militar com o talento de seu falecido avô, “Capitão Benedito da Força
Pública”, assim como o talento de heróis da história nacional como “o grande Rio
Branco o Ouro Preto, O Padre feijó, José Bonifácio, Rui Barbosa e outros que nem
se sabe”, citados aleatoriamente na carta. Mesmo Tiradentes, cuja data
comemorativa associa-se ao motivo para a escrita da carta, parece ter o seu
significado esvaziado pela descontextualização. O conteúdo patriótico militar
registrado ao longo da carta acaba por constituir uma sátira ao patriotismo ufanista,
acrítico, sempre deslocado do contexto social e histórico. O encerramento da carta é
abrupto, indo o remetente direto à despedida e assinatura: “Seu criado às ordens /
Minão da Silva”. Talvez possamos ver nesse procedimento uma perda dos
referenciais, sem que sejam consideradas as convenções do gênero carta pessoal,
107
em que cabe ao remetente preparar a despedida ao final do texto. Se articularmos
esse capítulo com o anterior, o patriotismo ufanista, ornamental, fica reforçado com
o seu deslocamento em relação à realidade de João Miramar, pois Minão da Silva
faz um pedido com argumentações que estão completamente distanciadas do drama
familiar que vive o protagonista.
No capítulo “146. VERBO CRACKAR” (1971a, p. 83), do terceiro par, é
anunciada a falência de João Miramar. Em discurso que se apropria do exercício
escolar de conjugação verbal, o narrador João Miramar relata a sua quebra
financeira, como elemento do jogo capitalista. Enquanto um perde, no caso ele,
outro enriquece, e um terceiro foge. Nesse procedimento, o verbo “crackar” foi
conjugado nas três pessoas do singular e do plural, como um exercício de
aprendizagem para Miramar. Esse jogo não tem regras, há espertos e trouxas. E o
narrador termina o capítulo expressando que assimilara a lição: “Oxalá que eu
tivesse sabido que esse verbo era irregular”. Obviamente que a palavra “irregular”
tem um duplo sentido: o que denota o aspecto verbal e, o mais expressivo, o
significado “fora da lei”, numa crítica contumaz à ética, ou falta de ética, do sistema
capitalista. A terceira carta de Minão da Silva vem logo a seguir, no capítulo “147. O
ANTÍPODA” (1971a, p. 83). O título remete à oposição entre as situações de falência
de Miramar e de ascensão social de Minão. Nas solicitudes, o remetente nos parece
apenas educado ao dizer estarem todos de sua família satisfeitos por saberem que a
família de Miramar vai bem, o que reforça a tese da pouca intimidade entre os
interlocutores, já que a família do protagonista encontrava-se desmoronando. Como
um antípoda, Minão anuncia na carta: “nós aqui vamos indo Regular o Dito da
Belmira está muito crescido e experto, moram agora na cedade”, denotando a
passagem do tempo e as mudanças da vida moderna, cuja tendência seria as
pessoas do campo rumarem para as cidades que se desenvolvem e abrem vagas
para o trabalho nas fábricas. Daí também “o antípoda”, em que a vida moderna se
impõe sobre o estilo de vida passada.
4.2.3 Cartas e localismo
Pantico, único filho homem de tia Gabriela, completou os seus estudos no
exterior. Primeiramente, foi para os Estados Unidos e depois para a Europa. Em
certo momento, tia Gabriela e duas filhas, as irmãs Cotita e Nair, viajaram para o
108
velho continente a fim de se encontrarem com Pantico. Essa viagem acabou por se
transformar em uma viagem turística. Na Europa, a família escreveu algumas cartas
das quais João Miramar publica em seu romance o total de cinco: duas escritas por
Pantico, uma por tia Gabriela e duas pela prima Nair. Há ainda a reprodução do
texto de um cartão postal enviado por esta última. Cada uma dessas cartas foi
reproduzida nas Memórias sentimentais quase que na íntegra em capítulos próprios,
sem inserções do narrador, excetuando-se os títulos dos capítulos. Portanto, a
recepção do romance pode constituir desse conjunto uma “estrutura significativa”.
Como o nosso propósito em relação a essas cartas é investigar o que podemos
chamar de “cosmopolitismo de fachada” da família fazendeira de João Miramar, ou
seja, supomos que na “dialética do localismo e do cosmopolitismo”, concebida por
Antonio Candido como uma possível “lei de evolução de nossa vida espiritual”,
prevalece na perspectiva da família de forma conservadora o localismo, apesar do
deslumbramento das personagens diante das novidades do mundo civilizado,
cosmopolita. Como esse aspecto está presente na matéria de todas essas cartas,
trabalharemos com um bloco formado, para a nossa análise, com apenas as cartas
dos capítulos 71, 78 e 109. Acrescentaremos alguns trechos de outros capítulos, a
título de complementação. A matéria das missivas se apresenta como painéis
noticiosos dos eventos da família na Europa, tratada por uma escrita da intimidade
característica do gênero carta pessoal. Dessa forma, apesar de não haver uma
introspecção, é possível ver nas cartas a forma como a família se coloca diante das
novidades que o mundo lhe apresenta.
Vejamos, inicialmente, o capítulo “71. FAUSTA” (1971a, p. 44-45), no qual há
a reprodução da carta escrita por tia Gabriela. O editor excluiu o cabeçalho, com as
informações sobre local e data da redação do texto, que podem ser deduzidas no
corpo da carta, e o encerramento do evento comunicativo. Entretanto há um “post
scriptum”, que faz as vezes de encerramento do evento comunicativo. Na
“saudação”, tia Gabriela escreve: “Meus amados filhos / Afetuosas saudações”.
Como seus três filhos estão na Europa, com exceção de Célia, infere-se que a carta
é dirigida ao casal Célia e Miramar, sendo o genro tratado também por filho. Nas
“solicitudes”, tia Gabriela escreve: “Agradeço a confirmação da boa notícia sobre a
alta”. Trata-se da alta do café que Seu Toniquinho do Trancoso Carvalho já lhe havia
comunicada, diretamente de Santos. Por isso o emprego da palavra “confirmação”,
109
provavelmente em resposta a uma carta enviada pela filha ou pelo genro. Portanto,
tia Gabriela demonstra ter acesso às informações sobre a produção das fazendas.
No corpo da carta, a remetente relata os fatos mais atuais da sua vida e da
dos filhos no continente europeu. São essas informações que revelam o predomínio
do localismo em relação ao cosmopolitismo, apesar da aparente valoração da
família fazendeira em relação às novidades da civilização. De fato, percebe-se uma
dificuldade em a família lidar com o mundo europeu, um outro mundo, mais amplo,
estrangeiro, com muitas novidades que não são plenamente assimiladas e
incorporadas à sua cultura fazendeira arraigada. Daí o conservadorismo prevalecer
nessa família de cafeicultores. Já no início do relato sobre as vivências francesas,
nos deparamos com uma primeira crítica de tia Gabriela dirigida aos restaurantes de
Paris que, conforme suas palavras, “não prestam e têm galinha com pena”. Isso
porque suas referências certamente são as mesas fartas das fazendas caipiras do
interior paulista, e onde não há pratos enfeitados ao estilo francês. Se tia Gabriela
escreve afirmando não apreciar a culinária parisiense, no mesmo parágrafo,
entretanto, revela encantamento com a “ópera do Fausto”, que julga uma “beleza!”.
A justaposição das duas informações no mesmo parágrafo conduz o leitor a se
perguntar sobre os critérios judicativos de tia Gabriela, e a desconfiar de seus
conhecimentos sobre culinária francesa e ópera, e consequentemente de suas
avaliações. No conjunto das cartas escritas na Europa, observa-se que tia Gabriela
não detém os conhecimentos enfatizados pela educação destinada às mulheres
pertencentes a um estrato social elevado, que desde o século XIX aprendiam:
prendas domésticas, bordado, piano, a língua nacional e o latim, necessário para a prática religiosa, além de línguas estrangeiras, principalmente o francês, o que as qualificam não só para a convivência dos salões, como para os concertos de ópera e a leitura de obras universais. (BOECHAT, 2002, p. 269)
Dando sequência à leitura do corpo da carta, a remetente comunica aos
destinatários que tem recebido visitas do “Sr. Chelinini que disse que conhece meu
genro do colégio”. Tia Gabriela se casará com esse personagem, colega de turma
de João Miramar, que se torna para ela uma referência do Brasil na Europa. Além
disso, o Sr. José Chelinini conquistou a tia Gabriela se colocando como uma espécie
de intermediário do mundo rural brasileiro e das novas técnicas do mundo civilizado.
Foi por suas mãos que tia Gabriela, Cotita e Nair chegaram a um retratista. Também
110
seria o Sr. Chelinini, relatado em outra carta, o responsável pela efetuação da
compra de um automóvel por tia Gabriela. Além dessas experiências com as novas
tecnologias, coube a ele o apoio necessário à realização de passeios por paisagens
europeias. O anúncio do casamento do “Conde José Chelinini Della Robbia Grecca
e D. Gabriela Miguela da Cunha” consta do capítulo “90. PARTICIPAÇÃO” (1971a,
p. 55). Entretanto, Chelinini é visto pelos amigos da família, e pelo mundo, como um
oportunista. No capítulo “91. FALA DO MUNDO” (1971a, p. 55-56), o Dr. Pepe
Esborracha responsabiliza Pantico pela realização do casamento de Gabriela com
“esse tal Chelinini, [...] um piratão”, isso porque, segundo o doutor, o filho não tomou
uma atitude de proteção da mãe. E parodiando um “dramalhão” popular, o narrador
reproduz o discurso do Dr. Esborracha: “Era acobertar a mãe pois sabemos quanto
a mulher é frágil! Ele devia chegar e dizer: estou aqui, minha progenitora adorada,
sou eu! E com o revólver na outra mão afastar o miserável!”.
Voltando à carta do capítulo 71, a remetente relata ainda que as filhas Cotita
e Nair “estão estudando piano na aula do Seu Philippe não sei de quê, que é uma
celebridade”. Vemos aí a dificuldade de tia Gabriela em fixar o sobrenome do
professor de piano, apesar de ele ser uma celebridade. Essa dificuldade com as
palavras estrangeira é representada tanto pela incapacidade de lembrá-las como
também pela dificuldade com a pronúncia e com a grafia, marcada de forma
equivocada nas cartas. Portanto, temos aí mais um elemento que demonstra a
forma provinciana como a família lida com o cosmopolitismo, como se rejeitasse
assimilar outras culturas. Tia Gabriela conta ainda em sua carta que foram passar
“uma semana em Fontanablêao”, tecendo o seguinte comentário: “É um segundo
Brasil em beleza de natureza”. Neste caso, o localismo ganha contornos de um
nacionalismo ufanista ingênuo. No capítulo “73. GARAGE E ESCRITÓRIO” (1971a,
p. 46), João Miramar enquanto narrador ironiza essa passagem da carta de tia
Gabriela ao descrever a casa onde fora morar com Célia: “A casa de Higienópolis
sossegava preguiças tropicais por entre a basta erva do jardim aquintalado até outra
rua com árvores e sol lembrando a longe Fontainebleau de minha sogra”. No “post
scritum” da carta de tia Gabriela, duas informações encerram o texto: a remetente
anuncia ter visto “a Vênus de Milo”, obra da Antiguidade que adquiriu status de ícone
popular, e de ter tirado “o Pantico do colégio porque um padre deu um tapa nele”.
Por fim, interpretamos o título deste capítulo como uma ironia referente à tia
Gabriela e à família fazendeira: “Fausta”. Isto porque, como já vimos na crítica de
111
Antonio Candido ao se referir à sátira social das Memórias sentimentais, nas viagens
turísticas, a “burguesia endinheirada roda pelo mundo o seu vazio, as suas
convenções, numa esterilidade apavorante” (CANDIDO, 1971a, p. 43).
A segunda carta desse bloco, reproduzida no capítulo “78. A SABIDA” (1971a,
p. 49-50), foi escrita por Nair, destinada a Célia, e encontra-se no romance de
Miramar quase na íntegra, faltando apenas o local e a data da elaboração do texto,
que o leitor identifica no corpo da carta ser do período em que a família estava na
França. Na “saudação”, a remetente diz estar “com muitas saudades de vocês e da
pátria”. Ao final da carta, Nair reforça esse sentimento: “Com o coração naufragado
num lago Lemano de saudades um abraço muito apertado da irmã que muito lhe
estima”. A saudade da pátria e da parte da família que está no Brasil demonstra,
também, a força que o local exerce na “dialética do localismo e cosmopolitismo”,
mesmo na jovem Nair, que nos tempos da adolescência, quando escreveu a
primeira carta publicada no romance de João Miramar, externou seu
deslumbramento pelas novidades.
No corpo da carta, a remetente discorre sobre o atrevimento da irmã: “A
sapeca da Cotita, depois que nós tiramos cada uma uma fotografia com a mão
apoiada numa coluna e a perna cruzada, mandou uma fotografia ao „tal‟ Sr. José
Chelinini, escrevendo por detrás: Se não for sua, serei de Deus!”. Isso lhe custou
“uns cocres” aplicados pela mãe, para quem Chelinini mostrou “a fotografia com a
dedicatória”. Nair credita essa atitude da irmã ao cinema, novidade que mudava o
comportamento da juventude. Por isso Cotita “usa a boca da Mae Murray e o
cabelinho da Bebé Daniels”. Em situação oposta à irmã, Nair encontra-se entediada:
não frequenta bailes e tudo lhe parece chato, sobretudo após a chegada de Pantico,
que se tornou, na expressão de Nair, “um besta quadrado” depois de passar pelos
Estados Unidos e pelos internatos europeus. Portanto, as inovações da civilização já
não mais a impressionam. A remetente informa ainda sobre o pedido de sua mãe,
Gabriela, ao “„tal‟ Sr. José Chelinini para comprar um automóvel para ela”, e encerra
o corpo da carta anunciando algumas expressões em francês, corriqueiras, que sua
mãe já fala: “quelque chose, eau chaude e beaucoup d’argent”. Vê-se, portanto,
mais um reforço sobre a dificuldade de tia Gabriela em lidar com o estrangeiro, pois,
apesar de certo encantamento diante da civilização, a personagem é de algum modo
arraigada à sua cultura local. Observa-se que da família a única que mantém uma
euforia mais vibrante em relação às novidades da civilização é Cotita, devido
112
principalmente à influência do cinema. No entanto, no título do capítulo, “A SABIDA”,
que nos parece referir-se a uma postura soberba de Nair, também podemos
vislumbrar uma ironia do narrador quanto ao deslumbramento de Cotita, pois as
ações da jovem não têm qualquer consequência substanciosa, já que ela lida com
as novidades de forma superficial, como se a vida fosse um parque de diversão, ou
seja, sem que em suas atitudes haja a força de uma nova ética. Por isso, quando
ousou ser mais atrevida insinuando-se para Chelinini, levou “uns cocres” da mãe e
recuou.
A família deixa então a França e faz um tour pela Europa. O cartão postal
enviado de “Porto-Fino na Itália”, cujo texto foi publicado no capítulo “104. CARTÃO
POSTAL” (1971a, p. 62), orienta o leitor da movimentação da família. A terceira
carta de nossa análise, também escrita por Nair e publicada no capítulo “109. A
FARRA” (1971a, p. 64-65), parece destinada ao casal Célia e Miramar, tratados
afetuosamente: “Meus queridos irmãos”. A missiva traz um relato da passagem da
família por Veneza. No momento de sua elaboração, tia Gabriela e Chelinini já estão
casados. Escreveu Nair no corpo da carta: “Estivemos agora em Veneza, onde é
muito bonito e célebre”. E revela o jeito caipira da família por sentirem medo das
ruas de água e acharem que não poderiam sair do hotel. Mas uma criada do
estabelecimento ensinou-lhes “que tem ruas por detrás”.
Superado o medo inicial, a remetente narra: “Passeamos muito nas barcas
chamadas gôndolas e vimos homens andando sem chapéu até de casaca”. Mesmo
Cotita, que se mostrava avançada sob a influência do cinema, achou aquilo “um
escândalo”. Mas Chelinini pensou em levar o novo hábito para São Paulo: “Meu
padrasto disse que ia andar em São Paulo para pegar a moda”. Vemos, portanto,
que as referências culturais estão em São Paulo, tanto na rejeição de um novo
hábito, como no propósito de copiá-lo para apresentar a novidade à cidade sul-
-americana. Por fim, Nair critica o comportamento da irmã Cotita, que “aprendeu um
fox-trot ranzinza chamado We Have no Bananas”, e afirmou ainda sobre a irmã que
“fisicamente ela vai muito bem, mas moralmente, faça-me o favor!”. Diante desses
novos costumes em choque com seus valores morais conservadores, Nair afirma: “O
meu fim vai ser entrar para um convento!”. No encerramento da carta, escreve a
remetente que a família não vai “embora para o Brasil porque mamãe tem medo dos
sobremarinos”, ou seja, a inovação tecnológica dos submarinos da Primeira Guerra
Mundial submete a família a ficar na Europa. Há ainda um “post scriptum” que
113
confirma a perspectiva romântica das personagens, e o emprego da técnica
moderna em função desse romantismo: “Vimos a Ponte dos Suspiros onde morreu
Romeu e Julieta e tiramos um retrato pegando nas pombas”.
As cartas escritas na Europa e publicadas nas Memórias sentimentais
evidenciam, portanto, o conservadorismo da família fazendeira de João Miramar.
Mesmo Cotita que parece mais despojada diante das novidades não avança no
sentido de provocar uma ruptura efetiva com os costumes tradicionais e incorporar
outras culturas que lhe deem um sentido cosmopolita. Sendo assim, sua postura
acaba por reforçar os valores da tradição local dos cafeicultores, mesmo quando
estes buscam interagir com o mundo. Se no romance João Miramar cede a palavra
a outros personagens ao reproduzir, por exemplo, as cartas, o seu trabalho como
autor ficcional das Memórias está também na escolha das missivas a serem
editadas, o que remete a uma posição crítica diante da matéria ali tratada, o
cosmopolitismo de fachada de uma elite cafeeira. Com efeito, a crítica efetuada
parece ser dirigida à opulência, à ostentação, aos modos, aos costumes e à
moralidade dessa elite que guarda algumas correspondências com o curso da
história nas primeiras décadas do século XX. Não podemos perder de vista, no
entanto, que João Miramar é um personagem do romance de Oswald de Andrade.
Este sim é o autor efetivo, responsável por todo o texto, o criador das personagens
e, consequentemente, do discurso do narrador, assim como das cartas e da sátira aí
presente. Portanto, as técnicas postas em prática pelo autor ficcional são de fato
técnicas do autor efetivo e que caracterizam a prosa oswaldiana.
114
5 A MORAL CONSERVADORA E O ESTILO VANGUARDISTA
5.1 PROPRIEDADE E FAMÍLIA
Após o retorno ao Brasil da viagem à Europa, a tempo de estar presente no
enterro de sua mãe, João Miramar foi passar uma temporada no interior paulista, em
Aradópolis, na fazenda Nova-Lombardia, de propriedade da família. Nessas terras o
seu pai nasceu e foi criado, antes de ir para a capital. Diante desse fato, o narrador
se emocionou: “Molhei secas pestanas para o rincão corcunda que vira nascer meu
pai”. Miramar registrou essas lembranças no capítulo “58. NOVA-LOMBARDIA”
(1971a, p. 38), em que descreveu também a imensidão daquelas terras, com seus
cafezais e estrelas se fundindo no infinito do espaço. A narrativa do percurso feito
desde a estação de Aradópolis até a sede da fazenda, na qual chegaram já noite de
céu estrelado, reforça a imagem da vastidão do território em estilo sintético: “Fordes
quilometraram açafrões de ocaso. / E a noite pichada empinou terreiros brasílicos
por entre cafezais e papagaios de estrelas”. No entanto, Miramar não é saudosista,
reafirmamos, não está em busca de resgatar suas origens após ficar órfão – o pai
falecera quando ainda era criança e a mãe recentemente. Seu olhar é direcionado
para frente, e traz a questão de como se reintegrar na sociedade paulista após o
retorno da Europa, já adulto.
A fazenda Nova-Lombardia ficara para a tia Gabriela, mãe de sua prima Célia,
por quem se apaixona ao revê-la moça feita naquelas terras do interior paulista, e
que viria a ser a sua esposa. Na sequência dos capítulos 60, 61 e 62, o narrador
rememora esse momento de sua vida, quando da paixão sucederam o namoro e o
casamento, e também as noites tristes da fazenda, eterna monotonia descrita nos
versos do capítulo “61. CASA DA PATARROXA” (1971a, p. 40): “A noite / O sapo o
cachorro o galo e o grilo / Triste tris-tris-tris-te”. Samira Nahid Mesquita (1995), em
ensaio comparativo das Memórias sentimentais de João Miramar e Memórias
póstumas de Brás Cubas, observa que ambos os protagonistas desses romances
passaram por experiências coincidentes. E ao se afastarem da cidade, Brás Cubas
indo para o Alto da Tijuca e Miramar para a fazenda Nova-Lombardia, encontraram
uma namorada. Brás Cubas vai namorar Eulália, bela e coxa; Miramar, Célia,
apelidada pelo narrador de Patarroxa. Daí o título do capítulo, e a observação de
Samira sobre a coincidência sonora: Patarroxa / coxa. No capítulo seguinte, “62.
115
COMPROMETIMENTO” (1971a, p. 40), João Miramar relembra o seu casamento,
com uma boa festa, porém, sobre a união oficializada em cartório escreve: “tendo
havido entre nós apenas uma separação precavida de bens”. Afinal, ela era rica, ele
não.
A riqueza de Célia vem da terra, das grandes propriedades produtoras de
café. São enormes fazendas que pertencem à sua família. A posse dessas terras
coube aos ascendentes, e há indicação no texto de que possa ter se dado pela
grilagem. Afinal, assim se constituíram muitos dos grandes latifúndios no Brasil.
Essa informação sobre a grilagem é possível averiguar no capítulo “59. FAR-WEST”
(1971a, p. 39), cujo título remete a filmes norte-americanos que abordam as
aventuras no oeste daquele país e o apropriar-se das terras, enfatizando o heroísmo
de personagens mocinhos – o que caracteriza a conquista daquele território como
justa, mesmo que tenha sido violenta e injusta. A força do cinema em influenciar o
comportamento das novas gerações, afirmando novos costumes, serviu também
para levar a uma plateia pacata do interior paulista a cultura cowboy de heróis que
com seus revólveres fazem valer a sua vontade à bala, como um ato natural
introjetado. Nesse sentido, o cinema norte-americano tende a legitimar também os
assassinatos e as grilagens praticados no Brasil pelas classes dominantes. Daí a
justaposição das duas imagens que constituem esse capítulo: uma que diz da
influência do cinema norte-americano sobre as culturas locais dos rincões do mundo
– “Chapelões e revolvers de último modelo saíam mecanicamente das telas
bulhentas e passeavam calmos nas ruas irrigadas do pó vermelho” –; e outra que
trata da geração ilegal de documentos nos cartórios, apoiada por assassinatos
praticados por membros da força de segurança do Estado, representados pela
imagem do uniforme cáqui, proporcionando assim a riqueza do sertão para os
proprietários das vastas terras:
Tabeliães transmissões de papel tostado e selo do império com grilos milionários a saibam quantos.
[...] Caboclos bailes retretas filas pokers com assassinatos de calça
cáqui para records de pontaria humana na estrada. E o sertão para lá eldorava sempres e liberdades.
Com tanta terra, os cafeicultores praticam uma agricultura baseada na grande
propriedade, uma tradição do Brasil desde as Capitanias Hereditárias. Com o
116
propósito de verificar como essas propriedades foram caracterizadas nas Memórias
sentimentais, faremos uma leitura “horizontal” constituindo uma “estrutura
significativa” juntando, aos capítulos 58 e 59, os capítulos “64. MELOSOS
LUNÁTICOS” (1971a, p. 41) e “86. CAMPOS DE BATALHA” (1971a, p. 53), nos
quais há uma descrição feita pelo narrador das vastas fazendas pertencentes à
família de sua mulher, no caso a Nova-Lombardia e a dos Bambus,
respectivamente. Na primeira, de tantas terras se vê do terraço da fazenda “pastos
cercados com estrelas”, como se não houvesse limites e as terras se estendessem
para o céu. Na segunda, também a infinidade da propriedade é descrita, tendo a
linha do horizonte, o limite mais distante do planeta que a nossa vista alcança, como
referência da vastidão da propriedade: “fora e longe do terraço noturno dos Bambus
ia o recorte negro no horizonte na luz amarela do fim do céu”.
João Miramar, ao se casar com Célia, assumiu a administração das fazendas.
Diríamos que o casamento foi um bom empreendimento para ambos, pois Miramar
viria a se inserir na sociedade paulista e a família ganhou alguém que administrasse
a produção de suas propriedades. No capítulo “103. FINANÇAS MATRIMONIAIS”
(1971a, p. 61-62), constituído por um diálogo cujos interlocutores são Célia e
Miramar discutindo as finanças familiares, o protagonista, após se sentir insultado
por ouvir que estava botando “por água abaixo” a fortuna que o pai de Célia
construíra, disse: “Fique sabendo, se não sabe, que duas fazendas estavam
hipotecadas antes do nosso casamento. E sua mãe é que já sacou centenas de
contos de réis nessa viagem de núpcias”. Miramar estava sempre “em Santos
acompanhando as operações da praça, no escritório do Trancoso”, portanto
administrando os negócios de café da família. Ele tinha até certa autonomia como
administrador, a ponto de entrar num empreendimento de produção de filmes sem
nada comunicar à mulher, conforme se observa ainda no capítulo 103 quando esta
diz: “Só acho que é uma asneira esse negócio de cinema, em que você se meteu
sem me falar”. Se a perspectiva de Miramar é se aventurar em um novo negócio,
com o intuito de se tornar também rico, a postura de Célia é cautelosa, mantendo-se
nos negócios já tradicionais do café, que lhe davam fortuna. Temos aí um aspecto
importante, que aparece de outras formas no romance, ou seja, há certa
disponibilidade de Miramar diante da novidade, mas que parece mitigada pela visão
mais conservadora de Célia, que detém a riqueza do casal.
117
Família e propriedade, historicamente, estão vinculadas. Nas Memórias
sentimentais de João Miramar é possível à recepção buscar constituir um painel a
partir de capítulos escolhidos, a fim de que as relações existentes entre as
condições financeiras e a solidez da família sejam verificadas. Observa-se no
romance que enquanto há prosperidade, a família do protagonista se mantém
estruturada, mesmo que haja diferentes interesses e perspectivas de seus membros,
mas quando a falência se torna irremediável, casamentos se desfazem e indivíduos
se degradam moralmente e são execrados. Portanto, numa perspectiva
conservadora, observa-se que a moral se submete à economia, ou seja, diante da
prosperidade econômica, a moral burguesa é preservada, não sendo expostas
frontalmente as mazelas, por isso suas normas são violadas de maneira
dissimulada; entretanto, quando a economia se deteriora, as razões para essa
preservação deixam de existir. Nosso propósito é verificar como isso ocorre nas
Memórias sentimentais de João Miramar, a partir de uma “estrutura significativa”
formada pelos capítulos 65, 67, 69, 70, 73, 100, 118, 119, 128, 134, 135, 138, 139,
141 e 142.
No capítulo “65. O FORA” (1971a, p. 41-42), a família embarca em Santos no
“Almanzorra da Royal Mail”, que deixaria o casal Célia e Miramar no Rio de Janeiro
e seguiria viagem para a Europa, levando tia Gabriela e suas filhas Nair e Cotita ao
encontro de Pantico. Nesse capítulo, observa-se, quando da despedida na Estação
da Luz, a presença do “soturno médico de Pindobaville Dr. Pepe Esborracha e
primos longínquos do Instituto Histórico entre os Pilatos da Glória”, personagens
vinculados à Célia. Com o casal instalado no Rio de Janeiro, o leitor depara-se com
o capítulo “67. INSTITUTO DE DAMASCO” (1971a, p. 42-43), no qual está expresso
o desejo de Célia de que seu marido tivesse “uma vocação nobilitante”. O caminho
para o enobrecimento, entretanto, parece divergente nas perspectivas de Célia e
Miramar. Enquanto a esposa projetava nas atividades intelectuais e literárias a
maneira de o marido desenvolver a sua “vocação nobilitante”, João Miramar, que
não se via como um intelectual, desconfiava que talvez essa vocação pudesse estar
vinculada à sua constituição física, por isso, enquanto narrador, escreve nesse
capítulo: “Pensava vagamente em entrar para um club de box depois de ter sido
minha compleição elogiada por um entraîneur da Rua do Catete”. Tudo indica que
Miramar estivesse mais propenso aos novos costumes surgidos com a Primeira
Grande Guerra, em que a ação física, a desenvoltura do corpo humano, os esportes
118
ganharam grande relevância, em contraposição à mentalidade que prevalecia em
tempos anteriores – “Luís Edmundo Costa lembra que os brasileiros que viram
nascer a República eram „uma geração de fracos e enfezados, de lânguidos e
raquíticos [...] Condenava-se sumariamente a ginástica‟” (1998, MALUF; MOTT, p.
371). Essa diferença de perspectivas dos personagens é ironizada no título do
capítulo, pois o “Instituto de Damasco” é um local para treino de boxe, que também
adota a palavra “instituto” utilizada para designar os locais de encontros intelectuais.
Célia, no entanto, mantendo as suas convicções, articularia com seus amigos
“expoentes” da sociedade paulista a ida do marido para um instituto que se
dedicasse às causas intelectuais e literárias, consideradas nobres por ela e pelos
tradicionalistas, pois, conforme relata o narrador nesse mesmo capítulo, “Célia não
se sensibilizava ante meus racontares de possibilidades hercúleas entre pesos
trampolins argolas. Retorquia mesmo que não achava isso digno de um fazendeiro”.
Mas Miramar, que já adquirira certa consciência, conforme a tese de Kenneth
Jackson em relação ao processo de amadurecimento do protagonista ao longo da
narrativa, a que já nos referimos anteriormente em nosso estudo, sabia que ele “era
apenas um fazendeiro matrimonial”. Apesar disso, João Miramar não se opõe à
mulher e se torna membro do Instituto Histórico e Geográfico.
Ainda no capítulo 67, Célia recebe a visita do Dr. Pôncio Pilatos da Glória,
personagem caracterizado pela frivolidade dos “ohs e ahs” que emitia
constantemente em seu discurso. Era primo longínquo de Célia e seu “colega de
team”, expressão do narrador para referir-se aos colegas da esposa “expoentes” da
sociedade paulista. Vindo de São Paulo, Dr. Pilatos trazia de volta para o casal a
capital de seu estado, e propunha aos dois que deixassem “o Rio aborrecido e
paisajal”. Membro do Instituto Histórico e Geográfico, Dr. Pilatos vê em Miramar um
talento para a vida intelectual e lamenta: “Pena que seu marido, tão talentoso e
jovem, não seja dos nossos, oh! ah!”.
No final do capítulo 3 de nosso estudo, já apontamos para a possibilidade de
a recepção efetuar a leitura do capítulo “69. ETNOLOGIA” (1971a, p. 43-44) na
perspectiva de que João Miramar parece crítico em relação ao ambiente dos
institutos literários, dedução possível pelo jogo da ironia no discurso miramarino, em
que as pessoas presentes ao evento aparentemente são como que “apagadas” da
cena em que o narrador relata as suas primeiras impressões a respeito do Instituto
Histórico e Geográfico: “Mas naquela noite fui introduzido no enceramento abobadal
119
e branco do Instituto de cadeiras ouvindo mesa oblonga onde meridianos
comemoravam fastos fictícios”. Tudo demonstra, como escrevemos, que Miramar
tem consciência da mediocridade humana ali instalada, mas não tem intenção de se
rebelar contra os seus iguais na sociedade de classes, contra a sua inserção na
sociedade paulista pelas mãos de Célia. Também no início do capítulo 69 do
romance, contradizendo o Dr. Pilatos que via um talento em Miramar para a vida
intelectual, este reconhece: “eu pendia mais para bilhares centrais que para
pesquisas científicas”. O narrador escreve ainda que, nessa época, levava uma vida
tranquila, pois “era dono de casa com safras longínquas livros quadros criados e a
senhora grávida”.
No Instituto Histórico e Geográfico, João Miramar entra num círculo de
amizade com Machado Penumbra, o poeta Fíleas, Dr. Pilatos da Glória, todos
colegas de Célia. No capítulo “70. RODINHA” (1971a, p. 44), Miramar nota que o
Ilustre orador da noite de sua primeira participação no Instituto “foi muitíssimo
cumprimentado” e reconhece no Sr. Fíleas um poeta “de muita cultura”, por isso
convida-os para sua casa, com a seguinte justificativa: “porque tinham talento”. Para
fortalecer os laços sociais, Célia proporcionaria outros encontros em casa, ocasiões
em que “expressionava a Prière d’une vierge e o fox-trot Salomé ao piano e servia
bananinhas com café com leite”, imagem síntese que remete ao acordo feito pelas
elites paulista e mineira para o controle da República brasileira, vista como uma
república das bananas, termo depreciativo para países latino-americanos
politicamente instáveis e submissos a um país rico. Assim, com apenas quatro
elementos o discurso miramarino satiriza o comando do país e a maneira como a
elite faz política: “bananinhas”, “café”, “leite” e “músicas estrangeiras”. No final deste
capítulo, o narrador registra a presença nesses eventos sociais em sua casa do
médico Dr. Pepe Esborracha: “vinha também lento mazorro silencioso como se
cavasse uma mina futuro adentro o Dr. Pepe Esborracha”.
Chamamos agora a atenção para os registros feitos pelo narrador, em alguns
capítulos, quase que despretensiosamente, da presença do Dr. Pepe Esborracha
próximo à Célia. No capítulo “73. GARAGE E ESCRITÓRIO” (1971a, p. 46), o
narrador retorna ao assunto: “O Dr. Pepe Esborracha e o sábio Pilatos vinham fiéis e
gulosos como estorvos para o jantar dos dias santificados de convite de Célia
imprudentíssima”. João Miramar parece expressar uma insatisfação com a
aproximação do doutor de sua mulher. Para refletirmos sobre essa situação,
120
tentaremos uma caracterização mais delineada de Célia, a partir de seu próprio
discurso, as cartas por ela escritas, endereçadas a João Miramar e publicadas nos
capítulos 100 e 138. O título do capítulo “100. RABO-LEVAS” (1971a, p. 59-60)
significa uma brincadeira de criança, em que se faz uma chacota com alguém que
carrega na parte de trás do corpo, sem saber, um rabo. Portanto, pelo título do
capítulo parece que alguém está sendo ludibriado. No momento da redação da
carta, Célia está instalada com a filha na fazenda dos Bambus, onde recebe visitas
constantes do Dr. Pepe Esborracha, que reside em uma cidade próxima,
Pindobaville. Enquanto isso, Miramar administra os negócios da família em São
Paulo e Santos, e vive um caso extraconjugal com Rolah. Solitária na fazenda, Célia
dedica o seu tempo ocioso à leitura de romances. Na missiva, a esposa pede ao
marido que lhe traga novos livros, pois, conforme suas palavras, “já acabei de ler o
Primo Basílio que muito me fez chorar”. Informa ainda: “O Dr. Pepe Esborracha
emprestou-me Les civilisés e prometeu trazer outros livros quando ele vier”.
Complementa os seus pedidos, solicitando a Miramar: “Veja se achas na livraria
Garraux a Arte de Bem Escrever do Padre Albalat e La garçonne que dizem que é
muito bonito e são as últimas novidades de Paris”.
Pelas leituras empreendidas por Célia, podemos traçar um perfil da
personagem. Se pensarmos no programa de ensino direcionado às mulheres
pertencentes a uma faixa social elevada, delineado desde o século XIX, a que já nos
referimos no capítulo anterior de nosso estudo, quando observamos que tia
Gabriela, pelas lacunas culturais apresentadas, não desfrutou desse programa,
podemos verificar que a recente fortuna feita pelo pai de Célia com o café
proporcionou à filha uma melhor formação educacional. No programa de ensino a
que nos referimos incluíam-se matérias, entre as quais piano, língua nacional e
línguas estrangeiras, principalmente o francês, qualificando assim as mulheres,
dentre outras habilidades, para “a leitura de obras universais” (BOECHAT, 2002, p.
269). Vê-se que Célia parecia dominar o piano, pois costumava tocá-lo nas
recepções que oferecia em sua casa. Percebe-se também que ela domina a língua
francesa, pois lê o livro Le civilisés, de Claude Farrère, emprestado pelo Dr. Pepe
Esborracha, além de pedir a Miramar que lhe traga o livro La garçonne, de Victor
Margueritte. Portanto, os títulos lidos por Célia podem nos fornecer chaves para
delinearmos um perfil da personagem como também para uma possível análise do
relacionamento do casal.
121
Nessa carta, como vimos, a esposa pede ao marido novos romances, pois já
acabara de ler O primo Basílio, que a fez chorar muito. O choro provocado pelo
romance de Eça de Queirós talvez possa ser interpretado como decorrência do
espírito emotivo característico das leitoras do século XIX, que faziam do ato de ler
apenas um passatempo para o preenchimento da ociosidade, da mesma forma
como Célia poderia estar preenchendo o tempo sem afazeres da vida monótona da
fazenda, o que conduz à hipótese de haver na personalidade da mulher de Miramar
um aspecto passadista. Neste caso, percebe-se uma crítica oswaldiana em relação
à literatura açucarada do passado. Mas também pode ser visto no choro da
personagem uma pista de um drama, o possível flerte de Célia com o Dr. Pepe
Esborracha, enquanto o marido encontra-se ausente por motivos de trabalho (MAIA,
2007). Essa é uma hipótese muito forte, já que identificamos no próprio discurso do
narrador, que escreve suas Memórias em um período ulterior aos fatos, um
incômodo com a presença constante do doutor como se cortejasse a sua mulher.
Até então parece que o movimento de aproximação seria iniciativa do Dr.
Esborracha. No entanto, o choro de Célia provocado pela leitura de O primo Basílio
sugere que o conteúdo do livro a tenha sensibilizado. A identificação da mulher de
Miramar com a personagem de Eça de Queirós parece ser uma pista bem
pertinente. Afinal, Luísa era também uma voraz leitora de romances, e a ausência de
seu marido Jorge, que viajara para o Alentejo a trabalho, propiciou o encontro dela a
sós com o primo e amigo de infância Basílio. Seduzida, Luísa acabou por cometer o
adultério. No entanto, em decorrência disso, começa a sofrer chantagem e
humilhações provenientes da criada Juliana, que obteve uma prova do
comportamento infiel da esposa. Após passar por uma tortura moral, Luísa veio por
fim a falecer. O tema do adultério, portanto, parece sensibilizar Célia, mesmo que a
ótica do romance seja a moralização dos costumes da burguesia média de Lisboa.
Até então temos um perfil de Célia que, em certo sentido, teria por referência
expectativas do século XIX. Entretanto, há o pedido a Miramar para que lhe traga o
livro La garçonne, pois, conforme escreve, “dizem que é muito bonito e são as
últimas novidades de Paris”. As palavras de Célia aparentam ingenuidade, mas se
considerarmos que o estilo literário de Oswald de Andrade acentua o não-dito ou o
não revelado, podemos ver aqui também uma sagacidade da personagem, que
parece ter informações sobre as novidades de Paris, apesar de não revelá-las
objetivamente. Já vimos anteriormente em nosso estudo, quando analisamos o
122
prefácio de Machado Penumbra, que este personagem demonstra estar atualizado
com as novidades europeias, ao ponderar sobre tendências do Salão de Outubro,
realizado em Paris. Quanto ao romance de Victor Margueritte, este foi publicado em
1922. Seu enredo aborda novos comportamentos surgidos na sociedade após a
Primeira Grande Guerra, o que provocou muita polêmica. A personagem principal, a
jovem Monique Lerbier, ao descobrir que seu noivo a traía, decide se libertar e viver
a vida do seu jeito. Afasta-se de sua abastada família, que não lhe dera apoio, e
com esforço próprio alcança a sonhada independência financeira, tornando-se uma
mulher livre. Dona do seu destino, ela passa a ter uma vida sexual liberta, e se
coloca diante da sociedade pelo viés transgressor, chocando os padrões então
vigentes. Portanto, talvez haja na leitura desse romance um desejo de contrapartida
às aventuras de João Miramar, mesmo que estas ainda fossem apenas suposições
de Célia por falta de provas confirmatórias.
Essas duas tendências parecem contraditórias quando nosso propósito é
delinear um perfil da personagem Célia, mas não o são. Além de ambas terem o
adultério como uma linha de força, apresentam-se como tendências
complementares, pois podem representar aspectos da classe cafeeira paulista do
início do século XX. Dito de outra forma, mesmo que a mentalidade ruralista fosse
conservadora, a necessidade de colocar o café no mercado internacional obrigou os
cafeicultores a conhecerem as novidades do mundo civilizado. No entanto, essa
relação se estabelece por um tipo de admiração em que se dá importância ao
estrangeiro sem que isso abale os valores tradicionais arraigados. Nesse sentido,
esse perfil da personagem Célia, longe de ser paradoxal, se conforma como uma
representação dessa classe. O outro livro solicitado pela esposa ao marido, A arte
de bem escrever, talvez esteja relacionado ao seu universo de convívio na
sociedade paulista, seus “colegas de team” que integravam o Instituto Histórico e
Geográfico.
Vejamos agora a outra carta escrita por Célia, destinada também ao marido,
como já dissemos, e publicada no capítulo “138. MEMENTO HOMO” (1971a, p. 78).
Nela a esposa relata alguns fatos do último dia de carnaval que passara em
Pindobaville, passeio que fizera influenciada pelo Dr. Pepe Esborracha, “o
organizador das festas do Clube”. Mãe e sua filha se hospedaram “em casa de D.
Teresinha”. A missivista conta que naquela tarde Celiazinha, fantasiada de “Fada do
Bem”, e outras meninas divertiram-se “na calçada jogando confetti e lança-perfume”.
123
E complementa: “O maior sucesso do dia foi um grupo de cinco estudantes que
passou pelas ruas bebendo cerveja em ourinóis e comendo linguiça que molhavam
na cerveja”. Mais tarde Célia soube que “foi o Dr. Pepe Esborracha que teve essa
ideia tão engraçada!”, e quase morreu de tanto rir. Parece-nos haver na carta um
certo encantamento de Célia em relação ao doutor. Além disso, nesse capítulo vê-se
a interiorização do carnaval inspirada nos bailes de clubes e nos festejos de rua da
elite paulistana, sem a suntuosidade do corso e das indumentárias.
Nicolau Sevcenko, ao estudar a sociedade e cultura paulista dos anos de
1920, observa que os novos tempos também metamorfosearam o carnaval,
ganhando importância os festejos mais populares, cuja alegria, descontração,
intensidade, favorecendo um “transe eufórico”, se sobrepõem à forma mais contida
da elite paulistana de festejar. Segundo o autor, nos anos anteriores a 1921, os
principais locais do festejo eram “o Triângulo central e a Avenida Paulista” (1992, p.
104), mas a partir dessa data, outros espaços, como o Brás, adquiriram “uma
visibilidade emocional repentina, que transformou a periferia em centro e o centro
em periferia” (1992, p. 106). Vejamos como Sevcenko descreve os festejos no
Triângulo e na Avenida Paulista antes de 1921:
No Triângulo os desfiles dos clubes carnavalescos em carros alegóricos eram o centro da pândega, enquanto na avenida o povo era mantido nas calçadas para assistir, como plateia, às batalhas de serpentina, confete e lança-perfume, no corso de carros refinados que rolavam pelo asfalto em fila quádrupla. (1992, p. 104)
O autor dá muita ênfase ao estilo moderado de festejar o carnaval nesses espaços
ocupados pelas classes tradicionais, com fantasias solenes que limitavam os gestos
e o luxo dos carros, uma transposição do carnaval europeu, especialmente o da
cidade de Veneza. Em outro trecho, Sevcenko afirma:
Enfim, o Carnaval recebido pela tradição burguesa, que misturava personagens estereotipados da commedia dell’arte com mesuras, rapapés e salamaleques de um pretenso repertório de diversões cortesãs, podia ser entusiástico, podia comportar expressões de alegria e paroxismos de exaltação – mas trazia consigo um claro limite de forma [...]. Era um Carnaval com receituário prescrito [...].” (1992, p. 104-105)
Observa-se na carta publicada no capítulo 138, que as pessoas em
Pindobaville, ao ficarem na calçada como plateia jogando confete e lança-perfume e
se divertirem com um grupo de estudantes “bebendo cerveja em ourinóis e comendo
124
linguiça que molhavam na cerveja”, parecem se comportar de forma contida tal qual
a elite paulistana ao festejar o carnaval. Quanto às fantasias inspiradas em
personagens da commedia dell’arte, com suas Colombinas e Arlequins, podemos
ver as dos rapazes influenciados pelo Dr. Pepe Esborracha como personagens de
hábitos grosseiros também saídos da commedia dell’arte, não havendo portanto um
antagonismo entre os carnavais do interior e o da Avenida Paulista, no sentido de
um ser grotesco e o outro sublime. Na carta, Célia narra ainda outros fatos do último
dia de carnaval em Pindobaville, mostrando que a rotina da festa não sofreu
qualquer extravagância que desafiasse as convenções. No entanto, a ausência de
Miramar junto à esposa e filha no carnaval remete a nossa leitura aos capítulos “134.
CORSO” (1971a, p. 76) e “135. PASSA O AMOR” (1971a, p. 76-77), em que o
narrador relembra a festa carnavalesca na capital paulista, quando se divertia com a
amante Rolah e amigos. Descrições sintéticas como instantâneos forjam imagens
cubistas desse carnaval da elite paulistana, tais como: “o Carnaval acendeu o
charuto roliço do Britinho, vaqueiro de automóvel”; “baixo do toldo de veludo verde, a
bola de Madama Rocambola era um saco de confetti na direção da Avenida”;
“serpentinas explodiam ao nosso lado na extensão toldada de bandeiras e asfalto”;
“famílias iam por quatro filas de máscaras carruagens”; “Rolah ria como um animal
espancado e fazíamos regressar as serpentinas vindo voando”. Nota-se ainda a
influência e os interesses de Chelinini ao se apoderar da “William Six”, automóvel da
família, que Miramar precavidamente evitou disputar.
Se compararmos as duas cartas escritas por Célia, especialmente as
sequências discursivas da “despedida”, que permitem a observação da qualidade
das relações interpessoais entre os correspondentes, nota-se que a publicada no
capítulo 100 registra muita afetividade da remetente: “Abraça-te e beija-te. / tua
Célia”. Já na carta publicada no capítulo 138, Célia parece mais distanciada: “Um
abraço da tua / Célia”. O motivo pode ser o fato de a personagem, encontrando-se
só na fazenda dos Bambus, apenas com sua filha, ter decidido passar o último dia
de carnaval na pequena cidade do Dr. Pepe Esborracha. Portanto, foi Célia que se
deslocou para o espaço do outro. Nessa perspectiva, o título do capítulo parece um
alerta: a expressão latina “memento homo” pode ser traduzida por “lembra-te
homem”, talvez uma alusão ao próprio narrador. Dizemos isso porque, sendo o
conteúdo mais visível do capítulo o carnaval relatado por Célia, não há qualquer
condenação da folia por parte do autor ficcional do romance, até porque ele também
125
participa da festividade na cidade de São Paulo. Porém a presença do Dr. Pepe
Esborracha ao lado de Célia representa mais um momento melindroso para João
Miramar. No capítulo “128. CHIFRES” (1971a, p. 73), a ofensiva do doutor sobre a
esposa de Miramar parece ter se intensificado: “A chifrada do boi preto na perna
branca de minha mulher estava entregue aos cuidados solicitosos e solicitados do
invencível Dr. Pepe Esborracha ocorrido numa corrida de Pindobaville”. O
“invencível” doutor não recua em suas investidas sorrateiras, “solicitosas” e
solicitadas, consolidada na última imagem deste capítulo: “Quarto escuro no quarto
dia e ele na sombra”. Vale a pena resgatarmos uma imagem do capítulo “70.
RODINHA” (1971a, p. 44), em que João Miramar indicou as intenções do rival,
sempre presente e silencioso, em relação à sua mulher, “como se cavasse uma
mina futuro adentro”. Mais do que um possível enlace extraconjugal de Célia com o
Dr. Pepe Esborracha, tudo indica que a preocupação maior de Miramar seria uma
intriga que pusesse fim ao seu casamento, ou seja, à sua “mina”. Para João
Miramar, o casamento lhe trouxe boas condições financeiras, que seriam perdidas
com uma possível separação. Daí a expressão latina do título do capítulo 138:
“Memento homo”.
O temor de João Miramar se concretiza no capítulo “139. A DENÚNCIA”
(1971a, p. 78-79), no qual ele recebe um telegrama de Célia que exige a sua
presença na fazenda dos Bambus – “Célia sabia tudo laconicamente”.
Provavelmente sempre soube, pois não é inocente, como pode às vezes aparentar.
Célia desempenha o seu papel social de mulher em uma sociedade patriarcal,
criando condições para a ascensão econômica e social do marido. Mas vinha
reunindo provas contra Miramar, que em sua percepção dilapidava a fortuna da
família com o negócio de cinema. O capítulo “141. O GRANDE DIVORCIADOR”
(1971a, p. 80) constitui-se por vários instantâneos que formam um painel de clientes
do advogado contratado por Célia, exposição de mazelas da sociedade paulista,
observados por Miramar na sala de espera do escritório enquanto aguarda ser
recebido. O título do capítulo diz respeito à situação do narrador, em que será
atacado pelo viés da moral burguesa, como ironicamente está anunciado na última
imagem do capítulo em que o narrador tem por recurso humorístico e crítico igualar
a fala do advogado à literatura naturalista: “E foi a minha vez de ouvir num romance
naturalista o dossier dactilado de meus detalhados desvios”.
126
O capítulo seguinte, “142. LENGA-LENGA” (1971a, p. 81), apresenta um
recorte da conversa do advogado com Miramar em quatro parágrafos. No primeiro, o
“homem célebre” se apresenta como um antigo advogado da família, que conheceu
tios e avós, o que lhe dava condições especiais de ser mais um conselheiro do que
um advogado. Feita a apresentação maviosa, vem o segundo parágrafo no qual o
“grande divorciador” afirma ser insustentável o casamento, pois, segundo suas
palavras dirigidas a Miramar, “sua senhora, coitada, reuniu provas esmagadoras
contra o seu leviano proceder”. A moral burguesa aparece como justificativa para o
divórcio, e seria também um instrumento de desmoralização. No entanto o motivo de
fundo que levou Célia a recorrer ao campo jurídico estava na iminente falência de
João Miramar, que como administrador dos negócios de café vinha comprometendo
as finanças da família. Verifica-se isso ainda no segundo parágrafo do capítulo,
quando sequencialmente o advogado diz:
À margem disso [os amores extraconjugais] o caso financeiro negreja no horizonte. O Sr. adquiriu rapidamente uma reputação de dilapidador. O seu nome já figura no Boletim das Falências e Protestos, no pasquim secreto e implacável, a destilar condenação, a destilar desonra!
Pressionado, Miramar se coloca no mesmo patamar do conde Chelinini,
marido de tia Gabriela, ao que o advogado retruca, no último parágrafo do capítulo:
“Mas o conde acusa-o de se ter locupletado. Perfeitamente, o conde acusa-o”.
Parece que João Miramar havia sido traído pelo conde Chelinini com quem fizera
negócios escusos, prejudicando a família. Pode-se confirmar a existência dessa
prática acordada entre os dois personagens, por exemplo, no capítulo “118.
CONFERÊNCIA” (1971a, p. 69), no qual o narrador relembra que o conde o
chamara “para o escritório do Tico-Tico Bezerra”, pois havia descoberto uma “mina”,
a “Empresa Carioca de Caibros e Sementeiras”, na qual pretendia empregar muitos
recursos. Chelinini “entendera-se já com a Trancoso Carvalho & Comp.”, de quem a
família era cliente nos negócios de café, mas dependia de um endosso. Neste ponto
do capítulo, o discurso do narrador nos parece bastante revelador: “Precisava [o
conde] de um endosso que não fosse da família, tendo sido esgotado em descontos
meu imprevidente nome ofertado. Propus-lhe Britinho calmíssimo no uso de
colaterais situações sacadoras”. Logo, tudo indica que Miramar e Chelinini agiam em
comum acordo em negócios escusos, que decerto geravam lucros para ambos. Mas
127
como Britinho desaparecera e a “Trancoso Carvalho & Comp.” mostrou-se
desconfiada de seus velhos clientes, a transação acabou sendo feita com a
“Companhia Industrial e Segurista de Imóveis Móveis”, fato relatado no capítulo
seguinte, “119. TRANSAÇÕES” (1971a, p. 69). O próprio nome da firma a
caracteriza como trapaceira: “Imóveis Móveis”. E também o nome do advogado
responsável pelo parecer, que “aceitara o negócio depois do vesgo exame”, cuja
sonoridade gera uma cacofonia sugerindo as segundas intenções do assistente
jurídico: o “grande advogado Bica-Bam-Buda”.
Portanto, o casamento de João Miramar era insustentável, sobretudo pelas
razões financeiras. Associados ao processo de divórcio, ocorreriam um processo
cível e uma campanha de desmoralização de João Miramar. Constituiremos, então,
uma “estrutura significativa” com os capítulos 143, 145, 148 e 152, a fim de analisar
essas tramas. No capítulo “143. MOBILIZAÇÃO” (1971a, p. 81), cujo título remete a
uma ação política, a falência de Miramar e a sua desonra foram “cornetadas” em
Higienópolis, bairro paulista onde morava o protagonista e a família. Duas frases
desse capítulo nos parecem bastantes significativas. A primeira foi assim escrita pelo
narrador: “Meu folhetim foi distribuído grátis a amigos e criados”. A palavra “grátis”
sugere tratar-se de uma campanha ideológica que visava desmoralizar João
Miramar junto aos amigos e também aos criados, buscando isolá-lo completamente,
com o propósito de retirá-lo do convívio social a que fora alçado após o casamento.
A outra frase, pela sonoridade gutural das palavras, gera para o leitor uma imagem
que exprime o grande ódio que o procedimento de Miramar despertou em sua sogra:
“E tia Gabriela sogra granadeira grasnou graves grosas de infâmia”. A combinação
dessas duas sentenças justapostas fornece à recepção a dimensão emocional da
situação e a estratégia severa de difamação imposta contra o protagonista para
salvaguardar a família.
O capítulo “145. CRIAÇÃO DE PAPAGAIOS” (1971a, p. 82-83), gíria que
significa “acumulação de dívidas”, apresenta Miramar, Chelinini e Britinho como os
mais citados no “Forum Cível Paulista”. A rotina de João Miramar era de “saques e
protestos e intimações e juízos e termos e advogados e prazos e ofícios e praças e
petições no contemporâneo Forum de N. S. Jesus Cristo”. A repetição contínua da
conjunção aditiva expressa a infinidade de obrigações a que Miramar encontrava-se
submetido, intensificada pelo nome do Forum, ou seja, a referência religiosidade
como expressão das causas impossíveis. Seus “bens legados por inventário” de sua
128
mãe foram destinados a credores. Vários instantâneos sobre a peregrinação do
protagonista intercalada com situações de personagens típicos da justiça oficial
constituem um painel nesse capítulo. Ressaltamos os pedidos de Machado
Penumbra, amigo, na tentativa de resguardar os nomes da família: “Noites vexames
de redações pedidas com prestígio prestado de Machado Penumbra para discrições
dos nomes da família conspurcada vindos em bonde dos tabeliães protestantes”.
A expressão “corrida de ganso”, que dá título ao capítulo 148 (1971a, p. 84),
significa algo que não vale a pena fazer, pelo qual se esforça muito mas o resultado
é desastroso. Portanto, pelo título que o narrador deu ao capítulo, tudo indica que
Miramar tem uma avaliação das consequências de suas atitudes. E talvez, em certo
sentido, haja um arrependimento. O texto do capítulo apresenta um painel que gira
em torno de desdobramentos de teor negativo das ações que praticara. Na parte
inicial do texto, interpelado e pressionado por um banqueiro, João Miramar se
defende responsabilizando o outro parceiro, fazendo aquele “ver o Conde Chelinini
ter rebentado como qualquer mortal que exagera as próprias forças no Automóvel
Club”. Esta imagem foi forjada a partir do Automóvel Club, reduto da elite paulistana,
conforme caracterizado por Nicolau Sevcenko, “o clube mais reservado e importante
da cidade, marco referencial da área nobre do centro e ponto de encontro da elite
que decidia os destinos da República” (1992, p. 74). O automóvel era a mais alta
ostentação da elite. Sendo assim, infere-se que as dívidas eram pesadas. Mas
Miramar tenta, com ajuda do Britinho, um acordo, porém recebe a resposta: “Aqui
nong teng agordo. Teng pagamento!”. Em outro evento, João Miramar encontra-se
com o Dr. Pilatos “recém-vindo do Guarujá”, com a resposta negativa da “Trancoso
Carvalho & Comp.”, que em relação às dívidas “não cediam, não reformavam, não
esperavam”. A situação parecia impossível de ser resolvida. Dr. Pilatos trazia
também notícias sobre a fuga do conde, que insultou a família chamando a “prima
Gabrielinha [...] de velha gaiteira”. Também ele, Pôncio Pilatos da Glória, fora
destratado, chamado de “coco da Bahia” e ameaçado de ser atingido por um “mata-
-borrão na cara” que Chelinini tinha em mãos. Diante dos insultos e ameaças, Dr.
Pilatos saiu do local, justificando para Miramar: “Eu saí para evitar uma cena de
sangue! Oh! Ah!”.
E o conde desapareceu, conforme registrado no primeiro parágrafo do
capítulo “152. LOOPINGS” (1971a, p. 86). Já analisamos anteriormente o capítulo
“146. VERBO CRACKAR” (1971a, p. 83), e resgataremos aqui a conjugação verbal
129
das três pessoas do discurso que expressam o aprendizado de Miramar em relação
ao sistema capitalista: “Eu empobreço [...] / Tu enriqueces [...] / Ele azula [...] / Nós
entramos em concordata / Vós protestais [...] / Eles escafedem [...]”. João Miramar
ficou em São Paulo, empobrecido, difamado e submetido à Justiça, enquanto o
conde Chelinini sumiu no mundo. Como no poder não há vácuo, no segundo
parágrafo do capítulo 152, após o desaparecimento do conde, Nair “apareceu
fulminante esposa do filho matadoural do gigante Bretas do Rio”. O rico empresário,
com quem Nair se casara e vivia no Rio de Janeiro, salvou as fazendas com a
renovação dos direitos hipotecários. Enquanto a família se reestruturava, o “divórcio
recrudesceu”. No último parágrafo desse capítulo, o narrador diz da sentença que
homologou a sua filha Celiazinha junto à mãe e definiu outras perdas de seu “pátrio
poder”.
Como dissemos no início desse capítulo de nosso estudo, família e
propriedade, historicamente, estão vinculadas. As fazendas salvas voltariam a ser
produtivas. O falecimento de tia Gabriela reordenaria os poderes familiares sobre a
herança. E mais à frente, quando do óbito de Célia, no capítulo “156. BATEM SINOS
POR D. CÉLIA” (1971a, p. 88-89), a notícia publicada na imprensa apresenta a
família já reconfigurada, sem qualquer vestígio de João Miramar. Célia retomou o
nome de solteira e mesmo a filha Celiazinha não fora mencionada.
“Faleceu anteonte, na fazenda dos Bambus, [...] a Exma. Sra. D. Célia Cornélia da Cunha. A extinta que era filha do saudoso paulista Coronel Belarmino Elesbão Arruda da Cunha e da falecida Sra. Condessa Gabriela Chelinini, foi sempre figura de relevo na nossa sociedade [...]. Era cunhada do distinto capitalista carioca Sr. Carlos Bretas, irmã do Sr. José Elesbão da Cunha, comerciante em Antuérpia, das Sras. D. Nair da Cunha Bretas e D. Maria dos Anjos da Cunha Meireles e prima do nosso eloquente confrade e ilustre geógrafo, Dr. Pôncio Pilatos da Glória. [...] Pêsames à distinta família enlutada.”
5.2 O HUMOR E A RIGIDEZ DO CARÁTER, DO ESPÍRITO E DO CORPO
Machado Penumbra, ao ocupar a função de diretor em um jornal, contratou
João Miramar como assistente e redator. A lembrança deste momento foi registrada
no primeiro parágrafo do capítulo “153. NEGROLOGIA” (1971a, p. 86): “Quando
Machado Penumbra tomara-me a seu valente lado no jornal mundano e moderno
que o chamara para repentino diretor como orientador e grande prosador”. É certo
130
que o trabalho no jornal veio após a falência do protagonista, pois antes Miramar
fora administrador das fazendas de café da família e sócio de empresa produtora de
filmes. Mas também sintaticamente pode-se chegar à mesma conclusão, pois o
advérbio “quando” na primeira frase do capítulo, destacada acima, estabelece uma
relação de tempo também com a frase seguinte, pertencente ao segundo parágrafo,
já que esta fora iniciada com a conjunção “e”, coordenando assim as duas frases.
Como a segunda contém a notícia do falecimento de tia Gabriela, compreende-se
que Miramar fora trabalhar no periódico em um momento posterior à sua derrocada.
Diante de tudo que vivenciara nos últimos tempos – as dívidas, a Justiça, a
campanha de difamação, o divórcio –, Miramar reconhece a valentia de Penumbra
ao lhe oferecer o emprego e a possibilidade de escrever em um jornal. Seria esse o
trabalho que, de certa forma, o resgataria diante da sociedade, entretanto como um
homem já amadurecido, sofrido, sem ilusões e sonhos diante do convívio social. Na
primeira frase do prefácio das Memórias sentimentais, Machado Penumbra refere-se
ao autor ficcional do livro como um profissional da imprensa que então se
apresentava para o público leitor como um escritor literário: “João Miramar abandona
momentaneamente o periodismo para fazer a sua entrada de homem moderno na
espinhosa carreira das letras” (1971a, p. 9). A amizade com Machado Penumbra e
Dr. Pôncio Pilatos da Glória se fortaleceu em decorrência da atitude amiga de
ambos, principalmente nos momentos difíceis enfrentados por Miramar.
Foi, portanto, na redação do jornal em que trabalhava que “aportou a notícia”
do falecimento de tia Gabriela, levada pelo Dr. Pilatos. O narrador discorre sobre
esse fato nos dois últimos parágrafos do capítulo 153, cujo título é um neologismo
que aglutina as palavras “necrologia” e “negror”, que pode ser entendido como a
intensificação do luto da seção do obituário do jornal por se tratar da morte de uma
pessoa muito próxima ao narrador, apesar das desavenças. Fraterno, o amigo de
Miramar e também primo da falecida, que levara a notícia, pretendera indicar a visita
à casa da família ao narrador, que assim escreve: “E porque tia fosse tia exigia com
abraços minha inoportuna presença em Higienópolis de janelas cerradas e acessos
silenciosos”. Miramar sabia que a sua presença naquela casa seria desconfortável,
por isso não fez a visita. Mas reviu a casa silenciada pelo funeral, e expôs no final do
capítulo a sempre incômoda presença de seu rival – “onde mudo, pomposo e lívido,
o Dr. Pepe Esborracha atenderia flor de laranjeiras crises de cá pra lá” –, como se
essa fosse o selo de sua derrocada, registrada em vários episódios do romance.
131
Deduz-se, consequentemente, que Machado Penumbra e Dr. Pôncio Pilatos
da Glória, membros do Instituto Histórico e Geográfico e integrantes do círculo de
amizade de João Miramar, tornaram-se pessoas ainda mais próximas do
protagonista após a sua ruína. Tinham concepções literárias diferentes. A escrita
moderna de Miramar, por exemplo, se opõe à visão tradicional dos amigos, que se
afinava com a dos gramáticos que proliferaram no início do século passado, e
orientou a produção pseudo-artística feita nos grêmios literários, tanto pela devoção
ao “bem escrever” como pela importância dada a um certo humanismo cuja
referência é a Antiguidade Clássica. Esse humanismo não continha, entretanto, a
substância necessária que lhe desse um significado consistente, por isso
manifestava-se apenas como um conhecimento enciclopédico com efeito retórico,
um ornamento, algo decorativo e distanciado da vida, e das perspectivas dos novos
tempos e dos novos valores. O passado longínquo para esses intelectuais
funcionava como a reafirmação de valores que se desejam eternos e universais e
que, assim, não se perturbariam, por exemplo, com a volubilidade moral acelerada a
partir da Primeira Grande Guerra Mundial.
Conforme já afirmamos anteriormente em nosso estudo, o discurso é a
principal forma de caracterização das personagens. O Dr. Pôncio Pilatos da Glória,
com seus “ohs e ahs”, foi caracterizado também em certos episódios do romance
como um “sábio da Grécia”, um conhecedor da cultura grega clássica. No capítulo
“72. SOSSEGADAS CARAMBOLAS” (1971a, p. 45-46), por exemplo, em um
encontro social na casa do casal Célia e Miramar, Dr. Pilatos volta a emitir sua
opinião a respeito de João Miramar, enquanto desfruta de umas bananinhas com
café com leite oferecidos pela dona da casa, com as seguintes palavras: “Seu
marido, minha senhora, parece Telêmaco segundo o Fénelon na tradução
portuguesa em quem era de admirar tanta facúndia em tão verdes anos”. Mais do
que uma descrição de Miramar, já que o locutor pretende demonstrar uma erudição
entretanto esvaziada de significado pelos volteios ornamentais, temos aí a descrição
do próprio Dr. Pilatos da Glória, feita por seu discurso. Nessa referência greco-
-romana clássica há uma pretensão de universalidade que não se coaduna com a
noção de cosmopolitismo imprimida pela modernidade. O universal, nessa referência
clássica, se refere a palavras, sentenças, juízos de um humanismo idealizado que
não se situa historicamente, pois se concebe com valores pretensamente eternos,
válido para todos os espaços, para todos os tempos e para todo o gênero humano.
132
Nesse sentido, a valorização desse humanismo seria um artifício retórico empregado
como estratégia argumentativa, por exemplo, por Machado Penumbra no prefácio
das Memórias sentimentais, para rejeitar a instabilidade da “embaralhada de inéditos
valores” (1971a, p. 9) surgida com a conflagração europeia. Portanto, os amigos de
João Miramar representam o espírito passadista e conservador que seria um dos
alvos principais dos modernistas da Semana de Arte Moderna.
Para melhor delinearmos o círculo de amizade de João Miramar após a sua
falência, estabelecemos uma “estrutura significativa” para uma leitura horizontal com
os capítulos 88, 155, 160 e 162. No capítulo “155. ORDEM E PROGRESSO”
(1971a, p. 87-88), Miramar encontra-se em um jantar de final de ano patrocinado
pela administração do jornal onde trabalha, que reúne funcionários da empresa e
convidados. Ao seu lado senta-se o Dr. Mandarim Pedroso, descrito pelo narrador
como “um paralelepípedo de carne com óculos sem pé”. O Dr. Mandarim é um
personagem que encarna certa discórdia, sobretudo de ordem pessoal, que havia
internamente nas instituições intelectuais, artísticas e recreativas. Por exemplo, no
capítulo “88. JABUTICABAS” (1971a, p. 54), o narrador registra que “o Dr. Pilatos
ficou fulo” porque o Dr. Mandarim em palestra referiu-se a um jovem, genro do
próprio orador, por “esses incógnitos”. Na ótica do Dr. Pilatos, essa seria uma
grande ofensa porque atinge a vaidade de uma pessoa. Na época, dirigindo-se a
Miramar, depois de qualificar o rapaz como uma pessoa correta que estava a galgar
socialmente, pois já tinha “o seu cobrezinho”, Dr. Pilatos discorre dramaticamente
sobre si mesmo, dos tempos em que passou “com um almoço por semana” para
alcançar a posição a que chegou, exprimindo o que considera as suas virtuosas
conquistas: “E já fui citado pelo padre Berlangete da Universidade Católica de
Beirute. Escrevi a biografia do patriarca Basílio 8 que foi torrado numa igreja por
causa de Orígenes. Irei à Ravena estudar de perto o 5º século”. Vê-se, por
conseguinte, que mais valem as citações e a lista de pesquisas e trabalhos
apresentada, que envaidecem os seus realizadores, do que a importância dessa
produção para a humanidade. Ainda nesse capítulo, o narrador relaciona, com
sarcasmo, os importantes cargos de tesoureiro e presidente exercidos pelo Dr.
Mandarim, mas em instituições com nomes que revelam a sua insignificância:
“tesoureiro pé-pé do Banco Nordeste de Engole-Marmanjos e presidente do Recreio
Pingue-Pongue”. Observa-se, também, que a própria maneira de escalada ao cargo
é ridicularizada.
133
Voltemos ao capítulo 155, ao jantar de ano novo na empresa jornalística.
Miramar sentado ao lado do Dr. Mandarim Pedroso, que lhe explica o que era o
Recreio Pingue-Pongue: “Uma forja de temperamentos e um ninho de pombas
gárrulas. O Sr. precisa entrar para lá, principalmente depois que o seu nome de
poeta e jornalista começa a raiar nos galarins da fama”. E, confidente, Dr. Mandarim
diz que o presidente da República, o prefeito de São Paulo e o vice-prefeito, assim
como muitos da alta administração saíram das fileiras do Recreio. Por fim aconselha
Miramar, que disse em resposta a uma pergunta ter uma filha de seis anos, a
colocá-la no Recreio Pingue-Pongue, “se quiser salvá-la dos perigos
contemporâneos”, conforme as palavras do doutor. E complementa a sua
argumentação moralista: “Lá não se dança o paso doble, meu caro senhor! O paso
doble! Devia chamar-se a cópula de salão! Olhe, nós vivemos numa civilização de
dancings...”. O discurso do Dr. Mandarim Pedroso, tanto na forma como no
conteúdo, é bastante revelador do conservadorismo que representa. A instituição
que preside, objeto de sua fala, cumpre um papel de reprodução ideológica da
república oligárquica, nepotista e excludente, atuando na formação moral de seus
jovens e na preparação de quadros dirigentes para o poder instituído.
O título do capítulo, “Ordem e Progresso”, expressão positivista impressa na
nova bandeira brasileira quando da substituição do regime monárquico pelo
republicano, estabelece um vínculo do episódio relembrado por Miramar com a
República. A explicação do Dr. Mandarim Pedroso sobre o Recreio Pingue-Pongue
parece, pelo veio humorístico, abranger a República brasileira, cujo significado mais
autêntico deveria ser a promessa de “cidadania”, o interesse comum da população,
já que o poder desse sistema político teoricamente emerge do povo e se volta para o
povo. Entretanto, o que se estabeleceu com o novo regime foi uma cidadania
precária, assentada em uma estrutura social sem qualquer equidade. Um Estado
federativo que não supera as estremas diferenças e distâncias entre as regiões e a
herança do trabalho escravo como uma chaga social, além de se instituir enquanto a
continuidade do poder oligárquico que reduz o Estado ao servilismo político. Entre
os intelectuais do início do século XX, o advento da República proporcionou uma
esperança. Mas, como herdeiros do positivismo e do evolucionismo, em sua ampla
maioria, não foram além de modelos deterministas. A ansiada “modernidade
nacional” dos novos tempos republicanos parecia inviável naquele país que se
apresentava de modo insólito. Elias Thomé Saliba, no ensaio intitulado “A dimensão
134
cômica da vida privada na República”, analisando as fronteiras entre o espaço
público e o espaço privado no início do século passado, observa que a “indefinição –
ou existência difusa – da vida pública no país” é um fator de confusão. E, na
sequência do texto, afirma ainda: “a República brasileira assiste à remodelação e à
modernização, quase sempre compulsórias, das cidades e as incentiva, mas não
permite que se formem cidadãos” (1998, p. 329).
Assim, a modernização do país não enfrenta as suas encruzilhadas, e se
espelha num desejo sôfrego de europeização, um cosmopolitismo de fachada, já
que a realidade da rotina brasileira, com seus arcaísmos, seria a negação do
progresso. Daí resulta que a sociedade brasileira convivia com desejos e elementos
antagônicos, como o cosmopolitismo e o provincianismo, a modernidade e o atraso,
o liberal e o oligárquico. No entanto, nos contrastes, nos deslocamentos de
significados, na permeabilidade do formal e informal, do imaginário e do vivido,
estaria a matéria da representação tipicamente cômica da República. Obviamente
que durante o período monárquico já se fazia humor, mas o contexto republicano
ofereceu novas dimensões à representação cômica da vida nacional. Os espaços
públicos e privados ganharam novos matizes com a urbanização de cidades
brasileiras feita de forma intensa e tumultuada, instigando novos desejos e novos
comportamentos sociais configurados em uma estrutura ainda bem arcaica. Cabe
ressaltar também que a vida privada urbana era possível para uma elite brasileira
que se formava nas grandes cidades, e que tratava a coisa pública como se fosse
particular; enquanto que para as classes populares, a privacidade não existia, nem a
coisa pública. Daí haver um embaralhar das esferas pública e privada, que Elias
Thomé Saliba assim registrou:
Os espaços sociais [...] eram, afinal, os espaços da desordem e confusão reinante entre as esferas pública e particular. [...] Sabemos o quanto esse embaralhamento das esferas e essa desordem, necessários ao sistema de poder escravista e à hierarquização social dele decorrente, persistiram tanto nos processos de construção do Estado republicano quanto na intensificação dos conflitos sociais no decorrer de todo o período republicano. (1998, p. 305)
Henri Bergson, em seu famoso estudo publicado em 1900, O riso: ensaio
sobre a significação do cômico, apresenta três observações preliminares, mas
fundamentais, sobre o cômico. Na primeira, Bergson escreve que “não há
comicidade fora do que é propriamente humano” (1980, p. 12, grifo do autor). Ou
135
seja, mesmo quando se ri, por exemplo, de um animal, é porque se foi surpreendido
por uma atitude humana. Na segunda observação, o autor afirma que “o maior
inimigo do riso é a emoção”, o que o leva a concluir que o cômico “se destina à
inteligência pura” (1980, p. 12-13). E por fim, observa que “essa inteligência deve
permanecer em contato com outras inteligências” (1980, p. 13), já que há uma
cumplicidade entre as pessoas que intensifica o riso, donde se conclui que “o riso
deve ter uma significação social” (1980, p. 14). Já vimos anteriormente, no segundo
capítulo de nosso estudo, que Oswald de Andrade, na conferência intitulada “A
sátira na literatura brasileira”, cita Bergson ao afirmar “que o riso deve ser uma
espécie de gesto social” (2011, p. 103, grifo nosso). Por conseguinte, para a
realização do cômico necessita-se de um vínculo com a realidade satirizada, situada
no tempo e no espaço do mundo extraliterário.
A teoria do riso e do cômico de Henri Bergson surge, portanto, na passagem
do século, momento em que na Europa a revolução tecnológica se intensificava e
conduzia o ser humano a uma nova maneira de se deparar com o tempo, com a sua
duração, pelo aumento drástico da velocidade e pelas possibilidades da
simultaneidade. Assim, a percepção da duração do tempo vem também demarcada
pela diferença entre o tempo cronológico e o tempo psicológico. Nesse contexto,
Bergson busca compreender a manifestação do cômico, tendo por parâmetro o seu
surgimento em dada situação como a antítese entre “elementos mecânicos” e
“elementos vivos”. Estabelece ainda como uma das condições para o riso a ruptura
com o tempo cronológico, privilegiando o tempo psicológico, na sua duração. Dito de
outra forma, para Bergson, o riso surgia do processo psicológico de inversão e
sobreposição de dimensões espaço-temporais. Em um de seus exemplos, uma
pessoa em uma rotina de ocupações cumpridas dentro de uma “regularidade
matemática” é surpreendida com o embaralhar de seus objetos, o que a faz agir de
forma aparentemente estúpida ao manter a mesma rotina. Assim, ao não deter o
movimento costumeiro ou lhe dar outra direção, gera-se o cômico, pois o risível
nessa situação decorre de “certa rigidez mecânica onde deveria haver maleabilidade
atenta e a flexibilidade viva de uma pessoa” (1980, p. 15, grifo do autor).
No exemplo acima, o efeito cômico foi determinado por um obstáculo exterior,
ou seja, a desorganização dos objetos dentro da rotina de uma pessoa. Mas é
possível interiorizar esse processo, e revelar a rigidez mecânica internalizada pelo
136
ser humano. Vê-se assim que o obstáculo vem desse mundo interior. Para esse
outro caso, Bergson apresenta a seguinte situação:
Imaginemos certa fixidez natural dos sentidos e da inteligência, pela qual continuamos a ver o que não mais está à vista, ouvir o que já não soa, dizer o que já não convém, enfim, adaptar-se a certa situação passada e imaginária quando nos deveríamos ajustar à realidade atual. (1980, p. 15)
Quando a rigidez mecânica se sobrepõe à flexibilidade própria da natureza humana,
os “elementos vivos”, o cômico surge enquanto manifestação de inquietação, que
combina o imaginário vivo com aspectos de uma montagem mecânica. Nessa
perspectiva, segundo Bergson, “toda rigidez do caráter, do espírito e mesmo do
corpo será, pois, suspeita à sociedade, por constituir indício possível de uma
atividade que adormece, e também de uma atividade que se isola” (1980, p. 19, grifo
do autor). Ou seja, o afastamento do centro comum no qual a sociedade gira conduz
à excentricidade. O riso reage com um gesto simples, um “gesto social”, uma
inspiração que combate as excentricidades, mantendo “constantemente despertas e
em contato mútuo certas atividades de ordem acessória que correriam o risco de
isolar-se e adormecer; suaviza, enfim, tudo o que puder restar de rigidez mecânica
na superfície do corpo social” (BERGSON, 1980, p. 19).
A paródia foi a forma cômica mais empregada para representar a realidade
brasileira, desprendendo-se, pela amplitude de seu emprego, de uma prática apenas
textual, isto porque a representação do país passava “pelos caminhos da inversão e
recriação de sentidos, pelo jogo dialógico e tenso entre o real parodiado e a
representação paródica” (SALIBA, 1998, p. 310). Desde o Império, a paródia
compunha uma espécie de “dialética da ordem e da desordem” numa sociedade
extremamente hierarquizada. Mas na República, pelo deslocamento, pela inversão
ou pela transposição, assumiria uma função de ponta-de-lança do cômico, se assim
podemos dizer. Mais do que no Império, os contrastes entre o imaginário e o real
tornaram-se dramáticos na República, provavelmente em decorrência da rigidez e
do formalismo da organização burocrática do Estado brasileiro republicano.
Nesse contexto, a paródia associaria a vida pública com a vida privada para
corroer por dentro, pelo riso, qualquer rigidez do sistema. Um dado novo das
cidades que cresciam e se urbanizavam seria a ocupação das novas avenidas e dos
novos espaços públicos, gerando uma nova sociabilidade que incorporava hábitos
137
mundanos. A mobilidade passa a ser essencial para a representação dos novos
tempos. Não só a mobilidade dos novos meios de transporte, mas também a
mobilidade corporal. Daí que o humor da paródia, segundo Elias Thomé Saliba,
apegou-se ao movimento da dança e do jogo, ao movimento dos corpos e ao apelo aos sentidos – que se constituiu numa alternativa anárquica ao registro mais rebarbativo e anódino do grã-finismo e do cosmopolitismo de fachada. Por tudo isso, a única imagem paródica possível para essa representação alternativa da República talvez tenha sido aquela cheia de movimento, de jogo, de volubilidade e, até, de sensualidade, expressa, por exemplo, na dança mais popular do Rio de Janeiro no início do século: o maxixe. (1998, p. 319)
Essa dança, perseguida nas ruas pela polícia, condenada pela elite, era, no entanto,
“dançada no interior das casas brasileiras por sinhazinhas e sinhás” (SALIBA, 1998,
p. 320). De certo modo, era pela dança, pelo movimento e pela animação que se
filtravam os formalismos e a rigidez do Estado republicano brasileiro.
Voltemos às Memórias sentimentais de João Miramar, ao discurso do Dr.
Mandarim Pedroso sobre o Recreio Pingue-Pongue. Se uma das representações
alternativas à rigidez institucional da República no início do século passado estava
na dança, especialmente no maxixe, que com sua sensualidade contagiava a capital
do país, também a São Paulo da segunda década do século vivenciava o que o Dr.
Mandarim chamou, em tom moralista, de uma “civilização de dancings” (capítulo
155). A rigidez do espírito conservador, que fixa os sentidos e a inteligência em
“certa situação passada e imaginária” e impossibilita o ajuste à realidade atual,
revela-se no discurso do presidente do Recreio Pingue-Pongue, por exemplo, ao
rechaçar de seu clube “o paso doble”, uma dança sensual chamada por ele de “a
cópula do salão” (capítulo 155). O cômico aflora desse contraste, como observou
Bergson, da rigidez dos elementos mecânicos e da flexibilidade dos elementos
vivos. E corrói por dentro ao expor a mentalidade medíocre que predominava na
sociedade paulistana.
No capítulo “160. DISCURSO ANÁLOGO AO APAGAMENTO DA LUZ
DURANTE O FOX-TROT PELO DR. MANDARIM PEDROSO” (1971a, p. 91-92),
João Miramar, enquanto autor ficcional, reproduz na íntegra um discurso do Dr.
Mandarim Pedroso proferido aos rapazes e moças do Recreio Pingue-Pongue. Após
a saudação inicial, vê-se que o orador embaralha os espaços público e privado,
prática comum à elite ali representada: “Este clube é um lar!”. E prossegue o
discurso apregoando os nobres propósitos do Recreio que preside:
138
Nele, o espírito hospitaleiro é uma prerrogativa ao lado do catecismo moral da juventude! E é devido a isso que o Recreio Pingue-Pongue se tornou célere a mais progressista artéria de nossa vida social, com floridas ramificações pela política e pela literatura!
É interessante observarmos que o discurso do Dr. Mandarim Pedroso busca
assimilar alguns elementos da realidade atual, mesmo que revertidos para o espírito
passista em voga naqueles tempos. No trecho destacado acima, o orador
caracteriza o Recreio Pingue-Pongue como “a mais progressista artéria de nossa
vida social”. A palavra “progressista” vincula-se a um ideal que certamente não
corresponde ao papel político e artístico-cultural exercido por aquela instituição. Nem
mesmo a vida social e a República brasileira eram progressistas. Mas o termo dá um
verniz de atualidade ao discurso do Dr. Mandarim. Em outro trecho, o orador
enaltece as práticas esportivas, uma das principais novidades que eletrizavam as
cidades desde a Primeira Guerra Mundial, conforme já vimos anteriormente em
nosso estudo. No entanto, o Dr. Mandarim, digamos, acalma os nervos e os
músculos de uma percepção que deveria se centrar no corpo ao associar a prática
desportiva do Recreio Pingue-Pongue à Grécia clássica:
Porque aqui, meus senhores e senhoras, revelando uma cultura pouco vulgar, em juventude desta idade, as sócias e sócios não cogitam tão somente dos adornos que eletrizam os do respectivo sexo oposto. Não! Praticam os desportos! Seguindo a lição da Grécia, realizam o eterno anexim Mens sana in corpore sano.
Como se vê, o discurso do Dr. Mandarim Pedroso é “análogo ao apagamento
da luz durante o fox-trot”, conforme diz o título do capítulo, não no sentido literal da
pane elétrica que deixou o salão do clube às escuras na noite anterior, quando os
jovens dançavam “uma valsa lânguida”. As trevas aqui são a resistência aos novos
valores do mundo, à nova arte, à nova literatura. Por isso o Dr. Mandarim Pedroso
prossegue em seu discurso pelo viés do apagamento: “Aqui não se leem romances
de baixa palude literária nem versos futuristas! Só se lê Rui Barbosa”; enaltece a
“frase cinzelada e lapidar” de Bilac: “Astuta e forte, a grande mãe das raças, Eva!”;
desfere um ataque moralista ao que chamou de “feminismo contemporâneo”; e
encerra o discurso em tom ufanista: “Bendita terra que possui tais efebos! Pátria,
latejo em ti!”.
139
Se o Dr. Mandarim Pedroso busca incorporar em seu discurso elementos da
atualidade, adequando-os ao seu conservadorismo que desemboca na ufania
patriótica, o Dr. Pôncio Pilatos da Glória fixa-se no passado longínquo e nobre do
Velho Mundo. No último capítulo desse bloco que montamos e estamos analisando,
o “162. NOTICIÁRIO” (1971a, p. 93), o autor ficcional reproduz na íntegra uma carta
escrita na Europa, no “Gênova Hotel”, pelo Dr. Pilatos, endereçada ao próprio
Miramar. Observa-se que o remetente é bastante afetuoso para com o destinatário,
o que confirma o bom relacionamento entre os dois personagens, como se vê nas
sequências discursivas da “saudação” – “Meu querido amigo e confrade” – e da
“despedida” – “Recomendações e abraços sinceros / do amº. crº. venºr e primo /
Pilatos”. No corpo da carta, o Dr. Pôncio Pilatos da Glória enaltece as belezas da
Itália e de Portugal, segundo seus paradigmas. Da “bela Itália”, o remetente escreve
ser aquele o “país da arte, cheio de templos de mármore de Carrara, onde a Fé se
escuda na égide da tradição”. De Portugal, por onde o missivista passara, ele
aprecia a “célebre Torre de Belém, donde partiram as gloriosas caravelas de Cabral,
singrando o Oceano”. A rigidez do pensamento mecanizado desencontrado de uma
viva Europa em efervescência produz o humor do texto. E quando o Dr. Pilatos usa
de um dado da atualidade, o câmbio desfavorável aos portugueses, o faz pelo viés
do passado, valorizando a “epopeia histórica” em detrimento da situação atual de
Portugal. Verifica-se isso no trecho da carta em que o Dr. Pilatos descreve o que
sentiu quando estava diante da Torre de Belém:
Não pude deixar de concentrar-me e transportar o meu espírito àqueles tempos gloriosos. E senti a mais profunda gratidão por esses intimoratos descobridores, reconhecendo que se não houvesse tamanha epopeia histórica, eu hoje não estava aqui e talvez fosse um português que com o lastimável estado do câmbio nem pudesse andar viajando.
Apesar das diferenças que delineamos entre o Dr. Pôncio Pilatos da Glória e
o Dr. Mandarim Pedroso, não se pode perder de vista que ambos se localizam no
mesmo campo ideológico. Também nesse campo encontra-se Machado Penumbra.
O círculo de amizade no qual João Miramar transita é constituído por conservadores.
140
6 CONCLUSÃO
Na introdução de nosso estudo, anunciamos o propósito de tentar
compreender o ponto de vista da crítica à sociedade brasileira da época esboçada
nas Memórias sentimentais de João Miramar, considerando o que é externo à obra e
se torna elemento interno em sua composição. Fizemo-nos então uma pergunta
inicial: Como João Miramar, representativo da oligarquia cafeeira paulista, da
mentalidade conservadora dessa classe, escreveu um livro cuja linguagem e projeto
são tão avançados, tão arrojados? Percorrido um roteiro de leitura, que, insistimos,
cabe sempre à recepção definir, podemos agora tentar congregar alguns aspectos
do romance abordados em nosso estudo com o intuito de melhor refletirmos sobre a
questão que nos colocamos. João Miramar, como já constatamos, foi inserido na
sociedade paulista por iniciativa de Célia, e não por uma autodeterminação. Daí que
os laços sociais constituídos dessa operação se assentaram em relações de
conveniência. Mesmo após o divórcio e da execração do protagonista, o resgate
social de João Miramar coube a personagens que lhe foram apresentados por
iniciativa de Célia. Portanto, Miramar mantém-se dentro de um círculo de
relacionamento, ainda que mais restrito, concebido a partir da ex-mulher. Assim,
perduram as relações de conveniência, porém com os laços afetivos para com
Machado Penumbra e Dr. Pilatos mais fortalecidos. Talvez seja essa uma das
possíveis razões da imensa consideração do escritor João Miramar para com esses
colegas, inclusive no terreno literário, cujas concepções são bastante distintas da
dele. A essas possíveis razões juntamos o estudo de Antonio Candido sobre o tema
“radicalismo”, em que o autor busca caracterizar o comportamento de membros da
classe dominante que se voltam politicamente contra a própria classe a que
pertencem, mas que vão até certo ponto, situado antes da ruptura.
O último capítulo das Memórias sentimentais, o capítulo “163. ENTREVISTA
ENTREVISTA” (1971a, p. 94), sugere, nas entrelinhas das respostas apresentadas
por João Miramar a um entrevistador, ter o autor ficcional uma formação teórica
bastante consistente, o que se verifica também pela própria escrita do romance. No
entanto esse conhecimento não vemos ter sido assimilado por mecanismos formais
de um processo educacional, mas adquirido ao longo do percurso biográfico,
relembrado em suas Memórias. Tudo indica que as experiências da vida, a escola, a
boemia, as paixões por atrizes, a viagem à Europa, o casamento, os grêmios
141
literários, os colegas “expoentes” da sociedade paulistana, os amores
extraconjugais, a administração dos negócios, enfim, parece que tudo isso, mesmo
que às avessas, serviu para lhe forjar a consciência crítica e estimular a escrita livre.
Daí serem as Memórias sentimentais uma obra crítica ao quadro social e inovadora
em sua linguagem, como forma de João Miramar se rebelar no terreno da literatura,
enquanto que nas ações práticas da vida ele não demonstra qualquer intenção de
transformação da realidade.
A validade das experiências vivenciadas enquanto mecanismo para a
formação de alguém pode ser vistas, por exemplo, no capítulo “157. ERRATA”
(1971a, p. 89). Lá, Miramar reencontra o primo e cunhado José Elesbão da Cunha
que viera ao Brasil. Pantico estava mudado, já não era mais aquele menino “que não
tivera educação desde criança e por isso amava vagamundear” (capítulo 15). A
prática da vida lhe ensinara muito: “Encontrei o novo Pantico magro e oposto a todas
as visões da infância e da adolescência epistolar longínqua. O trabalho raivoso
formara-o homem. Conhecia todos e tudo de nítida e póstuma visão” (capítulo 157).
O título “Errata” refere-se à nova situação de Celiazinha, que foi feita milionária pela
revisão do processo judicial. Mas também pode se referir ao novo Pantico, forjado
na vida. Assim como João Miramar, cuja literatura foi talhada, parece-nos, ao longo
de seu percurso biográfico.
A recepção poderia constituir uma “estrutura significativa” para uma leitura
horizontal que substanciasse essa hipótese. Não faremos isso aqui, pois temos por
objetivo nos ater ao último capítulo das Memórias sentimentais e não abrir uma nova
frente de pesquisa, mas apontamos essa investigação como um possível
desdobramento de nosso trabalho. Quanto a isso, podemos registrar, por exemplo,
que durante a sua viagem à Europa, Miramar assistiu às “paradas” que
congregavam artistas da inventividade de Picasso, Satie e Cocteau (capítulo 51).
Não nos parece possível que algum autor literário que escreve da forma como
Miramar o faz tenha passado incólume por essas experiências. No entanto,
reafirmamos que, em sentido prático, as vivências do protagonista proporcionadas
pela viagem ao continente europeu, viagem essa concebida por sua mãe como mais
uma etapa de sua formação, não transformam o seu mundo, na volta ao Brasil. Há
nessa situação uma incógnita a ser pensada, já que o seu mundo prático não sofre
mudanças, mas há uma universalidade, uma consciência crítica e uma liberdade em
sua escrita.
142
O capítulo 163, por ser o último do livro, demarca o final das Memórias
sentimentais de João Miramar. Temos aí a questão da unidade e da completude da
narrativa, que no caso não segue a tradição do romance realista, no qual existe a
confluência do fim da ação imitada e da narrativa propriamente dita. No Miramar,
não há um enredo que se organiza em tal sequência, com início, meio e fim. No
entanto vimos nos estudos de Haroldo de Campos que apesar da pulverização dos
capítulos, existe um camuflado fio condutor cronológico que estrutura o romance em
fases da vida do protagonista, como infância, juventude e maturidade. Vimos
também em Kenneth Jackson uma leitura que assunta o amadurecimento do
narrador-personagem conforme este relembra os eventos de sua vida. Assim,
poderíamos dizer que a infância e a juventude preparam a maturidade. Não no
sentido de uma formação espiritual, de um engrandecimento moral. Não há no
Miramar essa perspectiva. A maturidade vem com o conhecimento da engrenagem
social, o jogo que João Miramar não pretende modificar. Pelas respostas irônicas
dadas na entrevista reproduzida no último capítulo, diríamos que Miramar busca,
sobretudo, se resguardar diante da “máquina social”. Portanto, a maturidade do
protagonista não estabelece o final do enredo, da conclusão das ações. O final do
livro se dá por uma decisão do autor, que põe um ponto final na escrita, sem que as
ações do enredo tenham sido concluídas. Daí a primeira pergunta da entrevista ser
sobre o prosseguimento de “suas interessantíssimas memórias”. O entrevistador,
assim como o “grosso público ledor”, tem por perspectiva a narrativa realista, por
isso percebe o livro como incompleto. João Miramar ao responder sobre “as razões
ocultas da grave decisão que prejudica assim a nossa nascente literatura”, conforme
as palavras do entrevistador, ironicamente dá uma resposta no mesmo nível da
pergunta, tangenciando o absurdo: “Razões de estado. Sou viúvo de D. Célia”.
Parece-nos que Miramar se diverte com o despreparo da inteligência local para
compreender a sua literatura, ou, numa perspectiva mais ampla, sob a batuta de
Oswald de Andrade, as experimentações modernistas. Afinal, o título do capítulo,
constituído pela repetição da mesma palavra, sugere ao leitor a ocorrência
simultânea de mais de uma entrevista.
Na sequência, para esclarecer o que seriam “razões de estado”, João
Miramar recorre à apologia das virtudes pelo Dr. Mandarim Pedroso. Explica então
que por ser viúvo deve ser circunspecto e por já ter chegado aos trinta e cinco anos,
segundo suas palavras, “nossa atividade sentimental não pode ser escandalosa, no
143
risco de vir a servir de exemplo pernicioso às pessoas idosas”. Miramar também
evoca a figura do Dr. Pilatos ao dizer que já possui “o melhor penhor da crítica”,
dando pouca importância à advertência do entrevistador sobre supostas acusações
da crítica e da posteridade devido à interrupção do livro, este “tão rico monumento
da língua e da vida brasílicas no começo esportivo do século 20”. Reproduzimos
esta fala do entrevistador, que assim caracteriza o livro de Miramar, com o propósito
de observarmos o discurso empolado da intelectualidade provinciana. Afinal, vimos
com Samira Nahid Mesquita que no Miramar há “mais uma trama de linguagem do
que de peripécias. Quase todas as personagens, quando falam ou escrevem, o
fazem para servir de instrumento à sátira, que visa à sociedade da época” (1995, p.
152). Nesse último capítulo, supomos, há uma espécie de desafio ao leitor para a
compreensão de uma história no plano da enunciação, norteada pela ironia como
pistas daquilo que não está escrito. Se a trama principal do Miramar não está na
sucessão de eventos, mas na enunciação narrativa, isso parece se confirmar neste
último capítulo. Dessa forma, a nosso ver, é que se dá a conclusão do livro, cujo
vértice é a apresentação para os leitores de um João Miramar escritor em plena
maturidade, irônico e convidativo a uma leitura na qual o papel crítico-reflexivo de
escritor se sobrepõe à trama do romance. A plena liberdade de um escritor é
representada na decisão que cabe a ele de pôr um ponto final na história.
No entanto, se no terreno da literatura João Miramar é arrojado, na vida
prática ele se acomoda às convenções estabelecidas. Vimos em nosso estudo a
incongruência da crítica do Dr. Pilatos feita ao romance escrito por Miramar, por sua
incapacidade, como intelectual de província que é, de renovar as suas concepções
estéticas, e por isso lê o novo pelo viés de uma tradição secularizada, o que gera
uma crítica anacrônica. Daí a comparação do Miramar a Virgílio: “O meu livro
lembrou-lhe Virgílio, apenas um pouco mais nervoso no estilo”. São com essas
palavras que o autor ficcional põe um ponto final no livro. Entretanto, diante dessa
afirmativa, há uma pergunta a ser feita: Por que o escritor João Miramar reconhece
essa crítica como uma garantia que legitima a sua obra? Afinal, o escritor parece já
ter atingido a plena maturidade literária, e portanto deveria ter consciência de como
fora forjada a crítica do Dr. Pôncio Pilatos da Glória. Buscando refletir sobre essa
questão, poderíamos considerar que existe um propósito em João Miramar de
afastar o escritor de sua obra. Dito de outra forma, há um processo de “apagamento”
do autor ficcional em favor da obra. Dessa maneira, na vida prática, Miramar
144
mantém-se no campo conservador de seus amigos de classe, deixando no terreno
da literatura a obra que fala por si mesma, como se aguardasse uma futura
recepção capaz de desvendá-la, talvez porque não acredite haver essa possibilidade
naquela realidade provinciana.
Esta seria uma leitura possível, mas não a única. Em nosso estudo vimos que
o discurso miramarino possibilita ao leitor ampliar a percepção da realidade que lhe
serve de referência pelas brechas do não dito. O que não está explicitado, mas
sugerido, pode ser completado pela recepção. Esse é o princípio do jogo literário
que Oswald de Andrade faz com o leitor, um jogo complexo e por isso dificilmente
esgotável. Afinal, não seria esse o valor de uma obra de arte, proporcionar
possibilidades de reflexão? Assim, o que dissemos acima sobre a assimilação do
discurso do Dr. Pilatos por Miramar não esgota o potencial do texto. Diante do
universo provinciano em que estão imersos os personagens, e considerando que
nas Memórias sentimentais os elementos textuais, como a fala de um personagem,
são em geral chaves paródicas, podemos expandir a nossa interpretação pelo viés
da ironia. Ou seja, ao reconhecer a crítica apoiada numa concepção clássica,
Miramar estaria sendo irônico. O alvo, supomos, seria a produção literária
hegemônica da época, que se realiza enquanto seguidora anacrônica dos autores
parnasianos do século anterior.
A linguagem parnasiana, refratária à realidade, muito se parece
ideologicamente com o método crítico do Dr. Pilatos, tanto pela busca de um ideal
descontextualizado, como pela incapacidade de se renovar diante das mudanças da
vida. Por essa estagnação em um passado idealizado, como tentativa de isolar
artificialmente a literatura de outras áreas de conhecimento e expressão cultural, o
estilo parnasiano ainda hegemônico na produção literária no início do século XX
torna-se alvo do combate modernista, pois é um entrave que não serve às intenções
renovadoras dos novos artistas diante da nova realidade. Por enfatizar a forma e
esvaziar o conteúdo, a linguagem parnasiana tende a produzir uma espécie de
naturalização dos signos, amenizando-os, o que numa sociedade de classes realiza-
-se como uma operação ideológica que escamoteia o lugar de onde se fala, no caso,
a faixa elevada da sociedade. O Miramar, conforme vimos em nosso estudo, é
constituído essencialmente por personagens cunhados da elite paulista, mas pela
sátira o discurso é localizado socialmente. Portanto, podemos ver na última frase
das Memórias sentimentais de João Miramar também uma crítica ao discurso
145
parnasiano realizado fora de seu tempo, em um mundo em rápida transformação.
Há nessa crítica uma intenção que não se limita a uma substituição de estilo, mas de
forma mais ampla se quer desestabilizar a rede conceitual de sustentação da
maneira como o mundo é apreendido pela parcela hegemônica da elite brasileira.
Daí a proposta de uma nova postura artística dos modernistas para uma sociedade
que se desdobrava em faces, se fragmentava. Portanto, a crítica aos aspectos da
linguagem do Miramar, bastante desenvolvido pela crítica literária, sugere também
uma leitura que se atente aos aspectos ideológicos do texto.
Já dissemos que, em Miramar, Oswald é mais intuitivo, enquanto em Serafim
há mais consciência do processo revolucionário. Não nos referimos a um
engajamento político tradicional, mas há de se ver que Oswald de Andrade propõe
uma leitura crítica de seu tempo, feita através do discurso. Por isso nos parece uma
leitura mais rica da obra oswaldiana quando se considera indissociável a análise
estética da análise ideológica. Com Memórias sentimentais de João Miramar,
Oswald propõe uma nova postura artística para uma nova sociedade fragmentada,
veloz, urbana, multifacetada, enfim, na qual não cabem mais discursos pomposos
que primam pela conservação de uma tradição unissonante estagnada no passado.
O progresso revoluciona a sociedade a cada instante. Não cabem, portanto, mais
discursos como os do Dr. Mandarim Pedroso, do Dr. Pôncio Pilatos da Glória ou de
Machado Penumbra. Oswald escreve pelo avesso, e a crítica deve tentar entendê-lo
também pelo avesso, afinal, todo discurso retórico em Miramar é a própria ironia do
retórico.
Já apontamos neste último capítulo de nosso estudo alguns possíveis
desdobramentos desse trabalho. Podemos citar outros, como a presença do cinema
nas Memórias sentimentais, tanto pelo aspecto técnico da linguagem, como pelo fato
de Miramar ter sido sócio em uma empresa que produzia filmes. Acreditamos que
essa seria uma pesquisa a ser desenvolvida a fim de que se preencha uma lacuna
situada entre as primeiras análises do Miramar, que identificaram técnicas do fazer
cinematográfico no texto de Oswald, até uma compreensão mais complexa que
temos hoje do cinema, que nos sirva de instrumental para relermos a década de
1920 através do Miramar. A indústria cinematográfica, além de um próspero
empreendimento que fez muita fortuna, não é à toa que Miramar imagina ficar rico
ao tornar-se sócio da “Grande Empresa”, teve um papel crucial para o imperialismo
norte-americano. Nesse sentido, talvez, David Wark Griffith seja uma figura central
146
dessa análise, tanto pelos aspectos técnicos da linguagem, como pela questão
ideológica. Registra-se também o papel das belas atrizes, símbolo de desejos. E
Miramar sempre se apaixonando pelas atrizes... Outro possível desdobramento, que
nos parece inesgotável, seria uma análise ideológica a partir da linguagem
humorística, definindo eixos e buscando dissecar o texto. Acreditamos que há muito
além do que já se descobriu por esse viés. Enfim, a potencialidade do Miramar nos
propicia uma quase infinidade de desdobramentos.
Por fim, retornamos a uma questão que norteou o nosso estudo, o fato de as
Memórias sentimentais de João Miramar não se submeterem a um roteiro de leitura
definitivo. Talvez esse seja o grande desafio para a recepção dessa obra. Em nosso
entendimento, a sua leitura é construção necessariamente coletiva e acumulativa,
diante das tantas possibilidades de articulações que o texto propicia, como um texto
caleidoscópico. Portanto, o grande desafio que o Miramar propõe, a nosso ver, são
as estratégias de montagem que cabem à recepção definir e que potencializam as
interpretações do texto. Como disse Antonio Candido a respeito da obra de Oswald
de Andrade, a sua escrita fragmentária tende “a certas formas de obra aberta”
(1970a, p. 78).
147
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