memórias de tempos sombrios: a resistência democrática ... · a história oral e a memória são...

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Memórias de Tempos Sombrios: A Resistência Democrática na UERJ. (1968/1978) CARLOS EDUARDO MARTINS DA SILVA* I - Os caminhos para a investigação Em outras palavras, quanto mais Superficial alguém for, mais provável será que ele ceda ao mal Hannah Arendt Tratando-se de uma pesquisa que partiu, inicialmente, dos depoimentos concedidos a nossa pesquisa pelos professores, acabamos por imergir através da memória individual (e coletiva) na história da universidade. Considerei que esses depoimentos orais, nos revelaram a trama na qual esses professores estavam inseridos em seu respectivo contexto. Como nos diz Sergio Castanho, “a história do tempo presente traz consigo as questões das fontes. Como é sabido as questões das fontes constituem um dos pilares básicos sobre que se assenta o que fazer histórico” (2010, p. 67). Por isso precisei recorrer à história oral, pois ela dá voz aos diferentes sujeitos e auxilia na construção da memória coletiva, afinal: “Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva (...). (HALBWACHS, 1990, p. 51). A memória ao trabalhar simultaneamente com passado e presente, possibilita, como nos indica Roger Chartier, romper com o distanciamento para realização da análise histórica. (...) o historiador do tempo presente é contemporâneo de seu objeto e portanto partilha com aqueles cuja história ele narra as mesmas categorias essenciais, as mesmas referências fundamentais(...) Para o historiador do tempo presente, parece infinitamente menor a distância entre a compreensão que ele tem de si mesmo e a dos atores históricos, modestos ou ilustres, cujas maneiras de sentir e de pensar ele reconstrói (1996, p. 216). A história oral e a memória são possibilidades de convívio com o inusitado, pois, como nos diz Paul Thompson (1992), sua riqueza consiste na “multiplicidade de pontos de vista” que podemos encontrar. É fundamental para o desenvolvimento da pesquisa, compreender os diversos e diferentes contextos de inserção, a relação de complexidade, de múltiplas inserções e a interação dos docentes da universidade em questão. O que a experiência do indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma modulação particular da história global. Particular e original, pois o que o ponto de vista micro-histórico oferece à observação não é uma versão atenuada, ou mutilada, de realidades macrossociais: é, e este é o segundo ponto, uma versão diferente (REVEL, 1994, p. 28).

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Memórias de Tempos Sombrios: A Resistência

Democrática na UERJ. (1968/1978)

CARLOS EDUARDO MARTINS DA SILVA*

I - Os caminhos para a investigação

Em outras palavras, quanto mais Superficial alguém for,

mais provável será que ele ceda ao mal

Hannah Arendt

Tratando-se de uma pesquisa que partiu, inicialmente, dos depoimentos concedidos

a nossa pesquisa pelos professores, acabamos por imergir através da memória individual (e

coletiva) na história da universidade. Considerei que esses depoimentos orais, nos revelaram a

trama na qual esses professores estavam inseridos em seu respectivo contexto. Como nos diz

Sergio Castanho, “a história do tempo presente traz consigo as questões das fontes. Como é

sabido as questões das fontes constituem um dos pilares básicos sobre que se assenta o que

fazer histórico” (2010, p. 67). Por isso precisei recorrer à história oral, pois ela dá voz aos

diferentes sujeitos e auxilia na construção da memória coletiva, afinal: “Cada memória

individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva (...). (HALBWACHS, 1990, p. 51).

A memória ao trabalhar simultaneamente com passado e presente, possibilita, como

nos indica Roger Chartier, romper com o distanciamento para realização da análise histórica.

(...) o historiador do tempo presente é contemporâneo de seu objeto e portanto

partilha com aqueles cuja história ele narra as mesmas categorias essenciais, as

mesmas referências fundamentais(...) Para o historiador do tempo presente, parece

infinitamente menor a distância entre a compreensão que ele tem de si mesmo e a dos

atores históricos, modestos ou ilustres, cujas maneiras de sentir e de pensar ele

reconstrói (1996, p. 216).

A história oral e a memória são possibilidades de convívio com o inusitado, pois,

como nos diz Paul Thompson (1992), sua riqueza consiste na “multiplicidade de pontos de

vista” que podemos encontrar. É fundamental para o desenvolvimento da pesquisa,

compreender os diversos e diferentes contextos de inserção, a relação de complexidade, de

múltiplas inserções e a interação dos docentes da universidade em questão.

O que a experiência do indivíduo, de um grupo, de um espaço permite perceber é uma

modulação particular da história global. Particular e original, pois o que o ponto de

vista micro-histórico oferece à observação não é uma versão atenuada, ou mutilada,

de realidades macrossociais: é, e este é o segundo ponto, uma versão diferente

(REVEL, 1994, p. 28).

*Doutorando PPFH/UERJ-Bolsista Capes/DS

Ao tentar compreender o contexto histórico que compõe o cenário dos sujeitos

sociais participantes da pesquisa através de suas memórias, nos aproximamos do conceito de

experiência pois ele é útil para resgatar a dimensão humana do processo social e político, pois:

... o que descobrimos (em minha opinião) está num termo que falta: “experiência

humana”. É esse, exatamente, o termo que Althusser e seus seguidores desejavam

expulsar, sob injúrias, do clube do pensamento, com o nome de “empirismo”

(THOMPSON, 1988, p.182).

Nesse sentido, retornarmos, aqui, a rica e complexa relação entre objetividade e

subjetividade, como nos indica, também, de forma explicativa, Gohn (2005):

Devem-se explicar também as ideias, os valores e as ideologias que organizam os

interesses e a forma de os sujeitos e grupos sociais. (...) Há sempre liberdade de

escolha para os sujeitos: a realidade não é uma página já escrita, os sujeitos as

escreve, com suas ações, sob determinadas condições (p. 258).

Hoje, na perspectiva da história do tempo presente, pensar as condições de ação

social em determinadas situações, faz-se necessário, em nossa pesquisa, pensar o controle social

e as relações de dependência, temáticas que encontramos nas fundamentações teóricas em

Norbert Elias. Revel nos indica:

Elias pensa o social em termos de interdependências, quer se trate dos indivíduos ou

dos grupos: a noção de configuração (figuration) serve para identificar o complexo

de ligações de dependências recíprocas que constituem a matriz do jogo social e que

estão em permanente atualização entre aqueles que são os protagonistas (REVEL,

2009, pag. 83).

Assim, a perspectiva metodológica da história oral, possibilitou um novo olhar do

complexo jogo social da universidade no período autoritário e é nessa linha de raciocínio que

um aspecto essencial a nossa pesquisa histórica está presente em,

... uma palavra que pode servir para identificar o que está no centro da questão aqui,

uma palavra que (e isto talvez não seja por acaso) nem sempre encontrou seu

equivalente em francês: é o termo inglês agency, proposto por E.P Thompson, e que

designa ao mesmo tempo as disposições à ação e as possibilidades de agir em uma

dada situação (REVEL, 2009, p. 121).

Agência humana desenvolve-se no tempo e no espaço e em cada espaço social os

agentes humanos agem de forma que as condições podem (ou não) oferecer as possibilidades

de ação, assim, cada espaço contém a sua própria historicidade.

II – Memórias e experiências da ditadura e da resistência democrática na UERJ: indícios

e singularidades.

Esse “novo” caminho de repensar a universidade nos levou a essa operação histórica

diacrônica, complexa, porém mais interessante dentro desse campo “aberto” assim em nossa

primeira entrevista com o professor Ricardo Donato, compreendi que no caso do Hospital

existia um campo político crítico ao regime instalado com o golpe civil-militar, tomando como

parâmetro a passagem do entrevistado de discente à docente, solicitei ao professor que

confirmasse os marcos cronológicos do seu processo na universidade e, assim, fui assinalando

com o entrevistado: “você entra aqui em 1964 como aluno, em 1969 o senhor se forma, passa

por 1968 aquele movimento todo, em outubro de 1968, em 1969 o senhor termina a graduação,

faz residência em 1971” (Entrevista com o prof. Ricardo Donato, em 28/03/2012); e ele

confirma: “ainda em de 1971 eu sou contratado como docente” (Entrevista com o prof. Ricardo

Donato, em 28/03/2012).

Procurei pistas sobre esse processo na tentativa de avançar a investigação, perguntei

sobre a relação dele com alguns professores que tinham um significativo poder no Centro

Biomédico, com: o professor Piquet Carneiro, o professor Jayme Landmann e o professor

Suassuna e como estes professores atuaram no período da ditadura civil-militar, ou seja, se eles

se posicionaram contra a ditadura. O prof. Ricardo Donato respondeu: “em determinado

momento sim, com certeza, eu não considero nenhum deles tenha sido aliado da ditadura”

(Entrevista realizada em 28/03/2012).

Continuei as reflexões e busquei dialogar com informações de outras entrevistas

para avançar nos questionamentos sobre esse processo de ingresso na universidade e dialogando

com o professor Bruno1, quando debatíamos a repressão na universidade, ele afirmou:

Então, essa questão da repressão, o 477, entendeu? O 477 eu não me lembro de ter

sido aplicado no hospital. Mas certamente você vai encontrar pessoas lá do campus

1 J. E. Bruno é formado em medicina pela PUC/MG, e foi simpatizante da organização de esquerda POLOP.

Chega ao Rio de Janeiro em janeiro de 1969 para fazer residência médica.

que podem te guiar sobre isso aí. (...) (Entrevista com prof. Bruno, realizada em

20/03/2012).

Procurando indícios sobre o uso do 477/68 no Hospital, obtivemos a inédita2

informação apresentada por L. Roberto Tenório3, indicando um elemento que nos dá pistas

sobre a diferenciação entre o campus e o hospital, o 477 no centro biomédico,

LT: Expulsou o Andrade, expulsou o Fritz, expulsou o Campos, expulsou o Ivan.

Expulsou gente que depois voltou. O Andrade é uma pessoa importante para você

entrevistar. É professor de Microbiologia lá, professor titular de Microbiologia, o

Andrade. Voltaram durante a ditadura. O Piquet ajudou muito nessa volta.

(Entrevista com Luiz Roberto Tenório, realizada em 01/08/2013)

Na entrevista realizada com o prof. José Eustáchio Bruno, ao tratar de sua atividade

política logo após a chegada Hospital, o professor da medicina chama a atenção para a

existência de uma significativa militância entre os médicos, o que possibilitou a convocação de

uma greve dos residentes4 no HUPE, nos primeiros dias de 1969, eis o relato do prof. Bruno:

(...) Como os R2s recebiam, os R1s estavam querendo receber também. E eu era R1.

Aí eu fui para essa assembleia, sentei lá no fundo no teatro e algumas pessoas falando

e foi nessa época que eu até conheci o Tenório e outros companheiros lá. (...) o

pessoal votou pela greve e eu também votei, tinha o meu direito a opção (...).

(Entrevista com o prof. José Eustáchio Bruno, realizada em 20/03/2012).

Mesmo após participar das atividades do movimento dos residentes, o então

grevista José E. Bruno torna-se médico, assistente do professor Jayme Landmann e, ainda na

ditadura, professor da FCM. Ao saber do acontecimento de greve dos médicos-residentes em

1969 e 1970 no hospital das clínicas após o fechamento político implantado pelo AI-5, indaguei

Tenório sobre esses acontecimentos e ele, para a minha grata surpresa, me indicou mais uma

greve,

A liderança principal dessa greve se chama Paulo Gadelha5. Em 78. Presidente da

Fiocruz hoje. Presidente eleito, eleito! O Gadelha foi lá da escola, liderança do

2 Não encontramos, nos livros, nenhuma referência ao processo dos professores no centro Biomédico. 3 Luiz Roberto Tenório foi cassado pelo AI-5 e retorna ao Hospital em 1975 sob proteção do seu tio paterno, Oscar

Accioly Tenório reitor da UERJ entre 1972-1976. Após a saída de seu tio da reitoria, L. Tenório permaneceu na

universidade. Ao Tomar conhecimento da segunda sessão de tortura (1972) em seu sobrinho, o reitor Oscar

Accioly Tenório demitiu a esposa e a sobrinha do General Sílvio Frota, ambas, funcionárias da Universidade. 4 Ricardo Donato afirmou que foram realizadas duas greves de médicos residentes no HUPE, uma em 1969 e outra

em 1970. 5 Graduado em Medicina pela FCM/Uerj, 1970-1976. Residência Médica no Hospital de Clínica da Uerj, 1977-

1978. Foi presidente da Associação Nacional dos Médicos Residentes.

movimento residente, e fez a primeira greve nacional6 no regime militar ainda em 78!

Em 78! (...) ele teve a petulância e a coragem política! Foi ótimo!(...). (Entrevista com

Doutor Luiz Roberto Tenório, realizada em 01/08/2013)

Percebe-se que havia, naquele contexto na UERJ, diferentes relações/ interações,

que não podiam ser resumidas apenas na relação entre a ação repressora no hospital e no campus

e o poder instituído em nosso país, mesmo nesse período as relações eram complexas e

contraditórias, não deveriam ser entendidas de modo unilateral, durante a entrevista com o prof.

Bruno com base nos indícios que considerei ter encontrado, insisti no papel que o prof. Piquet

Carneiro teve à frente da direção da FCM e do centro Biomédico, como uma pessoa que garantia

certa liberdade de atuação política, parece que ele exercia um papel de “protetor” de alguns

estudantes, médicos e docentes que atuavam neste espaço:

(...) outras pessoas talvez, não só dele, mas de outras também. Você não tinha [como]

falar sobre isso, o nível de repressão do hospital era um pouco mais atrasado com

relação à universidade como um todo (...) Então, a coisa estava muito mais

direcionada para o campus, essa repressão era mais direcionada para o campus (...)

Para o bem foi isso ... um certo esquecimento da área biomédica (Entrevista com o

prof. José Eustáchio Bruno, em 20/03/2012).

“Outras pessoas? O nível de repressão do hospital era um pouco mais atrasado com

relação à universidade” ... belos indícios do prof. Bruno que nos dão conta do distanciamento

entre as diversas unidades na dual universidade. Ao pesquisar as resistências no Hospital

Universitário/Faculdade de Ciências Médicas no Banco de dados o grupo Tortura Nunca Mais,

me deparei com uma interessante informação: o professor catedrático da Universidade tinha

respondido um IPM7 que é assim relatado no Boletim8

(...) O diretor da faculdade, Américo Piquet Carneiro, em que pesem várias

evidências contidas nos autos, de ter cooperado com as investigações sobre seus

colegas e sobre a professora Nina9, acabou sendo indiciado no final do inquérito, por

omissão na repressão aos alunos(...)

6 Primeira greve nacional ocorrida durante a ditadura militar. Essa greve foi anterior a greve dos operários do ABC

paulista liderado por LULA, segundo L.R. Tenório. 7 IPM: Inquérito policial Militar. A primeira pista sobre o IPM do professor Américo Piquet Carneiro encontrei no

site do Instituto de Biologia da UERJ, a segunda informação foi em pesquisa no jornal Correio da manhã e a

terceira fonte foi no Boletim do grupo Tortura Nunca mais (BNM n.400). O IPM foi aberto no dia 11 de julho de

1969 na escola de comando e Estado-Maior da Aeronáutica. 8 Boletim Nunca Mais - número 400/Grupo Tortura Nunca Mais. 9 Professora Nina Pereira Nunes, professora do Instituto de medicina social e filha do médico, ex-deputado estadual

e ex-preso político, Adão Pereira Nunes.

(http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/docreader.aspx?bib=REL_BRASIL&pesq=

americo+piquet+carneiro&pesquisa=Pesquisar. Acesso dia 15/08/2014/13: 42).

Sobre o IPM de Piquet carneiro, o diálogo com L. Tenório nos dá uma pista

interessante sobre esse processo complexo:

LT: Na minha prisão da aeronáutica, os caras (...) Em 69. Queriam que eu dissesse

qual era a participação do Piquet Carneiro nos movimentos de esquerda da

faculdade. E eles falavam: “Não é possível que ele não tenha.” Moisés era assistente

dele, Hésio Cordeiro era assistente dele, Ricardo Donato foi, Emilio Francisco, todos

eles de esquerda. (Entrevista com Luiz Roberto Tenório, realizada em 01/08/2013)

Se o professor Landmann, mantinha-se em uma posição de resistência fechada, o

professor Catedrático Américo Piquet Carneiro mantinha-se em uma postura mais aberta como

podemos observar na sua participação ativa contrária ao sistema. Segundo informações de

Tenório, ele contribuindo financeiramente com a rede de solidariedade as famílias de presos

políticos, em nosso campo de visão, essa atitude marcava durante o auge da ditadura uma

postura de resistência, confiança e solidariedade do cristão e progressista que negou-se a

entregar os estudantes em 1968 e será defendido, pelo seu grande nome na medicina carioca e

pelo papel de representante da FCM, publicamente pelo conselho universitário, conforme indica

o jornal O Correio da Manhã: “UEG solidária ao diretor da faculdade de C. Médicas”:

Em face do Inquérito Policial Militar (IPM), na faculdade de ciências médicas, da

Universidade do Estado da Guanabara, o conselho universitário da UEG, em sua

última sessão, enviou ao professor Américo Piquet Carneiro, diretor da faculdade de

Ciências médicas, a seguinte mensagem – “o conselho universitário da Universidade

do Estado da Guanabara resolveu em sua última reunião apresentar irrestrita

solidariedade ao professor Américo Piquet Carneiro, membro do colegiado e diretor

da Faculdade de Ciências Médicas, em face da conjuntura que injustamente envolve

sua reconhecida devoção ao ensino superior, ao qual se tem dedicado com isenção

ideológica, amor ao apostolado, total probidade, exemplar desprendimento e

admirável mobilização de cultura científica (Correio da Manhã. 09/08/63. Sábado.

pag.09).

A luta pela incorporação do Hospital possibilitou a criação de uma frente de

resistência dos alunos e professores contra a política impositiva (heterônoma) do governo

autoritário de aumento das vagas na universidade (excedentes) que na UERJ colocou em lados

opostos o corpo médico e a política educacional do governo federal e estadual. É interessante

pensar que essa luta em pleno autoritarismo aprofundou a opção no centro biomédico pela sua

autonomia.

Esse trio10 me chamou perguntando qual seria a posição nossa em relação aos

excedentes (...) fomos contra a entrada dos excedentes, porque os excedentes

transformariam uma faculdade, que se a capacidade para ministrar para 80 e 100

alunos, iria para 300 alunos. A Universidade do Brasil naquela época aceitou os

excedentes e caiu a qualidade de ensino porque aceitou os excedentes. E o que era

mais grave nos excedentes, eles foram negociar a entrada deles diretamente com o

Costa e Silva, Presidente da República, levado pelo Suplicy, Ministro da Educação e

Cultura. E ai eles criaram a turma Iolanda Costa e Silva, que era mulher do Costa e

Silva, para agradar o regime militar e poder entrar na faculdade com notas

baixíssimas etc. E era uma quantidade enorme de excedentes. Então essa luta de

resistência contra os excedentes, contra esse clientelismo do governo em cima da

Faculdade de Ciências Médicas, unificou o Movimento Estudantil com o movimento

dos Professores, independente da ideologia dos dois movimentos. Isso foi muito

importante. Uma frente única para resistir (....)(Entrevista com Luiz Roberto Tenório,

realizada em 01/08/2013).

Frente para resistir à quebra da qualidade acadêmica da faculdade, frente pra resistir

à política de intervenção “disfarçada” do governo, frente pela autonomia, durante a entrevista

com o médico Luiz Tenório fui percebendo mais nitidamente a ação pessoal e política que

alguns professores da FCM tiveram frente a alguns acontecimentos e é apresentado pela

memória dele sobre seus mestres:

(...) Quando eu fui cassado pelo AI-5, foi na época que estava fazendo seleção para

residente, o Landmann falou: “Tenório não pode mais continuar como residente. Está

muito visado. Vai acabar sobrando problema para gente.” Quem segurou a peteca

foi o Virgílio Pinto, que era o diretor do (trecho não identificado 1.20.11) dentro do

hospital, assistente do Landmann. Virgilio tentou ali. O Malta Maia, por exemplo,

quando eu fui preso na aeronáutica, ficava incomunicável. (...) Malta Maia quando

soube que eu fui torturado, ele era presidente da Academia Brasileira de Medicina,

ele foi pro Hospital da Aeronáutica, chamou o diretor e falou “eu quero ver meu

assistente porque eu soube que ele tá preso ai.” Ai um brigadeiro que era médico

“Professor, você não pode ver, ele está incomunicável, Lei de Segurança Nacional”,

“Como não? Eu não posso ver?”. Desceu, sentou num banquinho que tem no jardim

do hospital, figura conhecidíssima (...) sentou ali, todo quanto era médico que entrava

ali conhecia o professor Malta Maia, diretor do Miguel Couto, “o que o senhor está

fazendo?” “estou esperando para poder falar com meu assistente”. Ai foi criando um

clima dentro do hospital que o diretor foi ficando, chegou no final da tarde, ele lá,

sem comer, sem nada, ai o brigadeiro voltou com ele, me trouxe, levou ele até o quarto

que eu estava preso. Malta Maia me perguntou o que eu estava precisando, se estava

sendo bem tratado e tal. E a partir dai quebrou a incomunicabilidade, no dia seguinte

o advogado foi me ver, os familiares puderam me visitar e etc. Graças à atitude dele.

Foi esse que te levou para o sítio que o senhor comentou ...

LT: Não, quem me levou para o sítio foi o médico do Lacerda, Antônio Rebello Filho.

Professor da FCM de clínica médica. E o Antônio Rebello era de direita, lacerdista!

Criou o clube do Lacerda depois que o Lacerda morreu, ele e uma outra galera.

10 Américo era diretor, o vice era o Jaime que acumulava a direção do hospital e o Paulo de Carvalho que era o

diretor do Centro Biomédico

Morava ali em frente a UERJ. E nós ficamos amigos, ele foi médico do meu pai. E

ele, um dia eu chegando ao hospital Pedro Ernesto de manhã cedo, ele estava na

porta do hospital, eu deixei o carro. “Entra no meu carro”, eu “Mas por quê?” e ele

“Entra! Você não confia em mim?” ai eu entrei. Assim que entrei no carro: “Você

está na lista para ser jogado do helicóptero!”. A lista que Burnier fez que o Sérgio

macaco denunciou. Sabe dessa história, né? “Você está nesta lista! Então você vai

ficar escondido lá no sitio” Mario Lago passou por lá. (Entrevista com Luiz Roberto

Tenório, realizada em 01/08/2013)

Professores Virgílio Pinto, Malta Maia e Antônio Rebello Filho, homens que não

eram considerados “progressistas”, mas se colocaram, pontualmente contra o sistema, inclusive

no tangente ao processo de violação aos direitos humanos. A posição política desses mestres

pode ser vista como uma atitude isolada em relação a Tenório, mas pode também nos indicar

que na modulação social do centro biomédico, segundo os indícios, esta seria uma unidade

acadêmica com menor grau de vigilância repressora, como indicado acima pelos entrevistados

e/ou locus de uma maior possibilidade de ação política, inclusive dos lacerdistas, presença

significativa nas ciências médicas e críticos aos rumos da ditadura já em 1968. Durante a

entrevista, Tenório me chamou a atenção para atitude individual de outros professores, entre

eles, o então diretor do hospital,

A Nilcéa11 foi casada com o Eduardo Farestein professor de medicina social. Os dois

estavam um pouco visados pela repressão. O Landmann12 chamou os dois e mandou

os dois para os EUA13 para fazer curso lá para livrá-los da prisão. Nilcéia deve isso

ao Landmann.

(Entrevista com Luiz Roberto Tenório, realizada em 01/08/2013)

Contraditória e diferente os caminhos percorridos pela UERJ durante a ditadura

civil-militar e interessante pensar, mais uma vez, que a universidade que tinha a “velha” Escola

Superior de Guerra e ao mesmo tempo tinha tamanha resistência na FCM/HUPE a ponto de ter

força acadêmica e política para criar o respeitado e novíssimo Instituto de Medicina social.

11 Professora da FCM, ex-reitora da UERJ (2000/2004) e ex-Ministra da Secretaria Especial de políticas para as

Mulheres (2004/2006). 12 Segundo o próprio, em entrevista realizada em 1996 ao Jornal MED ON LINE/n.5, foi fundador do PSB (Partido

Socialista Brasileiro) em 1945 e esteve na Rússia com o Historiador Jacob Gorender em 1959. 13 México. Segundo informações de Eduardo Farestein, seu companheiro a época.

Durante a entrevista com o professor Ricardo Santos,1415 ex-aluno do Cap/UERJ e

da UFRJ, tratamos de abordar a sua forma de ingresso na universidade e o processo de

contratação na Universidade,

Em 75, o Guilherme me indica junto com o professor Romildo Bueno para ser

contratado pela Farmacologia da UERJ. (...) Eu entro com carteira, como contratado

da faculdade de Ciências Médicas e passo depois em 76 ou 77, não me lembro

exatamente, para o IB, automaticamente com a fundação do Instituto de Biologia (...)

a disciplina de Farmacologia passa a compor o Instituto de Biologia. (Entrevista

realizada em 02/04/2012).

Retornei à questão da sua prisão política e do seu processo de ingresso na

Universidade e indaguei se tal acontecimento havia interferido no seu relacionamento com o

prof. Roberto Alcântara Gomes16 e assim Ricardo Santos respondeu:

Não. (...) De forma nenhuma. Ele era uma pessoa [que] eu já conhecia do Instituto

de Biofísica da UFRJ, tínhamos uma visão dele de uma pessoa conservadora, com

competência técnica brilhante, membro da Escola Superior de Guerra, o que era

currículo favorável ao poder da época. E, no entanto, ele não colocou nenhuma

objeção, ou seja, eu encontrei na UERJ um sistema que não exigia atestado

ideológico. Até que a UERJ me parecia muito segura (sentido irônico, naturalmente),

porque aqui dentro estava a Escola Superior de Guerra (...). Aqui dentro estava a

Escola Superior de Guerra, então não existia exigência de atestado ideológico, aqui

era muito mais disfarçado, embora efetiva a repressão. (...). (Entrevista realizada em

02/04/2012).

A reflexão do professor nos indica um dos caminhos de pesquisa, pois, por ser a

UERJ a universidade que abrigava a própria encarnação do sistema, não seria necessário

solicitar o atestado ideológico, porém, em 1968, a universidade já tinha colaborado com o

processo de perseguição e prisão de vários dirigentes estudantis e, inclusive, com a cassação

pelo decreto-lei 477 de três professores do campus17,

Pelo menos um deles, o professor Carlos Haroldo Porto Carreiro de Miranda,

considerado um dos melhores na sua área, recorreu argumentando que a UEG era

fundação de direito privado, situando-se, portanto, fora da jurisdição do AI-5. O

Conselho Universitário,o entanto, aprovou o parecer do relator, confirmando o ato.”

(Bessa, José Ribamar. Uerj em questão. Ano II, nº 9. Novembro de 1990, pp.4-5.)

14 Militante do PC do B, preso entre junho e agosto de 1973 no DOI-CODI RJ. 15 Professor do instituto de Biologia e primeiro presidente da Asduerj (1979/1981) 16 Diretor do instituto de Biologia. 17 Professores: Bayard Boiteux, Carlos Haroldo Porto Carreiro de Miranda e Helio Marques.

É, aqui, que encontramos um elemento contraditório e que nos coloca, novamente,

de frente a questão-problema de nossa reflexão: uma universidade que usou o decreto-lei 477 e

o AI-5, mas que não solicitava o atestado ideológico18, e é nesse sentido que uma das possíveis

compreensões para não solicitar o dito atestado estaria na instalação da ESG19, no pós-68, pois

a sua presença:

... força os homens desarmados, nos espaços sociais pacificados, a controlarem sua

própria violência mediante precaução ou reflexão. Em outras palavras, isso impõe às

pessoas um maior ou menor grau de autocontrole (ELIAS, 1993, p. 201).

Podemos “sentir” que os (micro)poderes tiraram proveito desse fato político e

cultural para “passar” elementos que não puderam estar “oficialmente” nesse espaço, essa

perspectiva de raciocínio, dada pela “oportuna” vinda da ESG para a UERJ, é um dos elementos

da linha de investigação para compreender a existência de uma gama de professores

progressistas dentro da universidade. Ou o “filtro” não funcionava ou não o queriam colocar

em funcionamento na, singular, Uerj.

Um conjunto de fatores foram fundamentais para consolidar um espaço na

universidade, apesar de toda a perseguição política e ideológica dentro e fora do espaço

uerjiano, com certa garantia de movimentação intelectual e política aos militantes do

movimento estudantil que viraram (ou não) professores e/ou médicos e por enquanto podemos

afirmar categoricamente que o encontro positivo entre a história da escola fundadora com as

lutas unificadas (incorporação do Hospital/contra os excedentes) dos professores e estudantes,

as posições críticas dos progressistas, liberais e, mesmo, nessa singular configuração social, dos

lacerdistas pós-68, com a mentalidade e cultura científica nesse espaço formador, possibilitou

durante o processo de redemocratização que esse espaço fosse o impulsionador de uma nova

mentalidade universitária, de uma nova síntese.

(In)Conclusão provisória

Nesse artigo, percebemos que ao longo das entrevistas uma grande riqueza

empírica, assim, por limitação e opção, apresento algumas passagens in totem, outras, carentes

18 A UERJ também não solicitava o comprovante de participação eleitoral. 19 Não encontramos em nenhuma obra sobre a História universidade referências sobre a vinda da ESG para a

universidade.

ainda de aprofundamento analítico, mas sem perder o foco na intenção de, a partir da relação

entre oralidade e memória apresentar indícios em que as ricas experiências apontam ações,

opções e emoções e indicam o caminho de investigação na História do tempo presente que

possibilite aos historiadores novas investigações, questionamentos e reflexões para identificar

singularidades e novas elaborações sobre o passado com o qual compartilhamos uma

proximidade temporal. Nesse sentido, em tempos de “comissão da verdade” e “abertura dos

arquivos” desses tempos sombrios e tristes, a pesquisa histórica na vertente do tempo presente

sobre a universidade que estamos iniciando ganham novos elementos e novas reflexões.

Interessante foi perceber que na FCM/HUPE ocorreu uma rede crítica ao sistema vigente. Essa

é uma pesquisa em construção, portanto um caminho longo, árduo e profundo ainda teremos

que continuar a trilhar incluindo o trabalho de constituição de fontes e de avançar em nossa

capacidade analítica.

Referências

BESSA, José Ribamar. UERJ em questão. Ano II, nº 9. Novembro de 1990, pp.4-5.

CASTANHO, Sérgio. Teoria da história e história da educação: por uma história cultural não

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