hannah arendt - a testemunha dos tempros sombrios

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ESTUDOS E PESQUISAS Nº 505 Hannah Arendt: A Testemunha dos Tempos Sombrios Lucia Cavalcante Reis Arruda * XXV Fórum Nacional (Jubileu de Prata – 1988/2013) O Brasil de Amanhã. Transformar Crise em Oportunidade. Rio de Janeiro, 13-16 de maio de 2013 * Doutora em Filosofia, Coordenadora do Programa de Pós-graduação Lato Sensu da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro (FSB/RJ).. Versão Preliminar – Texto sujeito à revisões pelo(s) autor(es). Copyright © 2012- INAE - Instituto Nacional de Altos Estudos. Todos os direitos reservados. Permitida a cópia desde que citada a fonte. All rights reserved. Copy permitted since source cited. INAE - Instituto Nacional de Altos Estudos - Rua Sete de Setembro, 71 - 8º andar - Rio de Janeiro - 20050-005 - Tel.: (21) 2212-5200 - Fax: (21) 2212-5214- E-mail: [email protected] - web: http://forumnacional.org.br

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ESTUDOS E PESQUISAS Nº 505

Hannah Arendt: A Testemunha dos Tempos Sombrios

Lucia Cavalcante Reis Arruda *

XXV Fórum Nacional (Jubileu de Prata – 1988/2013)

O Brasil de Amanhã. Transformar Crise em Oportunidade.

Rio de Janeiro, 13-16 de maio de 2013

* Doutora em Filosofia, Coordenadora do Programa de Pós-graduação Lato Sensu da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro (FSB/RJ).. Versão Preliminar – Texto sujeito à revisões pelo(s) autor(es). Copyright © 2012- INAE - Instituto Nacional de Altos Estudos. Todos os direitos reservados. Permitida a cópia desde que citada a fonte. All rights reserved. Copy permitted since source cited. INAE - Instituto Nacional de Altos Estudos - Rua Sete de Setembro, 71 - 8º andar - Rio de Janeiro - 20050-005 - Tel.: (21) 2212-5200 - Fax: (21) 2212-5214- E-mail: [email protected] - web: http://forumnacional.org.br

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Hannah Arendt: A Testemunha dos Tempos Sombrios

Lucia Cavalcante Reis Arruda 1

Resumo: O propósito da explanação é trazer o testemunho de Hannah Arendt sobre seus contemporâneos em tempos sombrios, através de suas próprias observações; enfatizando a possibilidade de superação. Desordena-se o encadeamento de sua apresentação com o intuito de agrupar os poetas na categoria de criatividade, e, sequenciar os demais em categorias específicas a cada um, a partir de suas experiências, e marcar, desta maneira, a pertinência dos testemunhos para manter-se o sentido de humanidade. Palavras-chave: Testemunhos. Tempos Sombrios. Humanidade. Ética. Superação.

Introdução

A filósofa2 Hannah Arendt testemunha a experiência de alguns poetas, filósofos, e literatos que viveram as adversidades nos chamados “tempos sombrios”. Relata sobre “pessoas afetadas pelo tempo histórico”, por intermédio de suas falas e ações, em um período onde tentam “preservar um mínimo de humanidade num mundo que se tornara inumano” (ARENDT, 2008, p. 7 e p. 25-26). Através da experiência de cada um desses pensadores, ela desenha o real contexto de uma época, sem máscaras ou discursos que “degradam toda a verdade a uma trivialidade sem sentido” (Ibid., p. 8). A sua trajetória de vida já é um testemunho desses tempos difíceis. Johanna Arendt3 nasceu em Hanover, num período de paz na Alemanha, no ano 1906. Descendente de famílias tradicionais judaicas de Königsberg; retorna a esta cidade, com apenas três anos, em razão da precariedade da saúde de seu pai. Ele e, logo em seguida, o seu avô paterno, falecem. A perda dos dois trouxe uma profunda dor para a menina. Mas Hannah leva uma vida nos moldes da cultura e política alemãs, porque os Arendt eram judeus educados e isto os diferenciava dos judeus pobres (chamados de judeus do Leste). Já havia tensões na Alemanha do século XIX sobre os judeus, e Hannah relata isto na sua obra Origens do Totalitarismo, ao apresentar as duas principais opções oferecidas a eles: permanecer como párias, excluídos da sociedade alemã ou aceitar o papel de parvenus onde adotariam as características, entre outras, de “servilismo rastejante” se quisessem “ser alguém” (ARENDT apud MAY, 1988, p. 14). Não era uma situação confortável, mesmo que se acomodassem a um papel ambíguo. Porém, “uma coisa era certa: se o indivíduo queria evitar todas as ambiguidades da existência social tinha que resignar-se ao fato de que ser judeu significava ou pertencer a uma classe superior privilegiada ou a uma massa desprivilegiada” (MAY, Ibid., p. 15). Esse fato certamente tocou-a de maneira tão profunda, que fez conduzir seus relatos e apreciações, sob a perspectiva de pensadores desse período, unidos apenas por sua contemporaneidade (excetuando Lessing), na ótica da influência de um mundo, cuja 1 Doutora em Filosofia, Coordenadora do Programa de Pós-graduação Lato Sensu da Faculdade de São Bento do Rio de Janeiro (FSB/RJ). 2 Escolhemos anunciá-la como “filósofa” por entender ser mais pertinente ao pontuarmos, sobremaneira, o aspecto ético presente nessa coletânea. Embora ela preferisse ser reconhecida como cientista política. 3 Seu nome verdadeiro, mas sempre foi chamada de Hannah.

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realidade inumana não os endureceu a ponto de afastá-los de temas caríssimos à humanidade. Humanidade “que para todas as gerações precedentes não passava de um conceito ou um ideal, tornou-se algo dotado de uma realidade premente” (ARENDT, 2008, p. 91). E que se busca resgatar de uma forma ou de outra, cada um reagindo à sua maneira. Ao relatar, a partir dessas vivências, a simplicidade audaciosa de João XXIII, a responsabilidade de Jaspers, a necessidade de um padrão ético em “o que faremos então?” de Broch, a consequência na retomada do “pensar alguma coisa” heideggeriano, o efeito do “corcundinha” presente em Benjamin,... Arendt mostra que apesar de toda a adversidade da época em que viveram e da exposição aos desastres morais; estes pensadores não se abateram e deixaram um legado (de ordem prática) para resgatar o humanismo.

Mesmo no tempo mais sombrio temos o direito de esperar alguma iluminação, e que tal iluminação pode bem provir, menos de teorias e conceitos, e mais da luz incerta, bruxuleante e frequentemente fraca que alguns homens e mulheres, nas suas vidas e obras, farão brilhar em quase todas as circunstâncias e irradiarão pelo tempo que lhes foi dado na Terra (Ibid., p. 9).

É sob esse aspecto que esta coletânea de ensaios e artigos arendtianos traz as iluminadas reflexões de uma mulher, testemunha de seu tempo igualmente sombrio. E busca na companhia de outros viventes, não só um alento para suportar as suas perdas, mas, sobretudo, poder testemunhar o conhecimento adquirido com e por eles. Período em que “o âmbito público se obscureceu e o mundo se tornou tão dúbio que as pessoas deixaram de pedir qualquer coisa à política além de que mostre a devida consideração pelos seus interesses vitais e liberdade pessoal”. (Ibid., p. 19). O perfil do homem ensimesmado por sua excessiva individualidade, indigna essa mulher, uma das poucas expressões femininas no universo filosófico de maioria masculina. Em solidariedade aos contemporâneos de um período devastador, de miséria, desordem, “do ódio legítimo” indutor à fealdade, de “uma ira fundada que torna a voz rouca”; a filósofa evidencia as suas inquietações não apenas ao passado recente como ao futuro que se anuncia, através de um progresso que conduz a uma dubiedade: “A tecnologia, tendo proporcionado a unidade do mundo, pode destruí-la com a mesma facilidade, e os meios de comunicação global foram projetados ao lado de meios de uma possível destruição global”. (Ibid., p. 92). A philia compreendida, na cotidianidade, como um fenômeno de intimidade entre pessoas muito próximas, merece resgatar, de acordo com a sua visão, o seu significado aristotélico de sociabilidade humana, numa comunhão intelectual presente na estrutura da sociedade. Nele (Aristóteles) a amizade assume uma dimensão política. E é neste sentido que, em “Sobre a Humanidade em Tempos Sombrios”4, Hannah Arendt faz uma referência explícita à importância da amizade nos gregos.

A essência da amizade consistia no discurso. [...] No discurso tornavam-se manifestas a importância política da amizade e a qualidade humana própria a ela. [...] Pois o mundo não é humano simplesmente por ser feito por seres humanos, e nem se torna humano simplesmente porque a voz humana nele ressoa, mas apenas quando se tornou objeto de discurso (Ibid., p. 33).

4 No discurso por ocasião do recebimento do Prêmio Lessing. (Cf. Ibid., p.10.)

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Ao escolhermos fundamentar os testemunhos sob categorias específicas, verificamos que a coletânea nos brinda, através de constatações criativas de homens e mulheres em tempos adversos, com superações ou na tentativa de, e sempre apostando na viabilidade de o homem re-conquistar a categoria de humanidade num mundo inumano, hostil e excludente para alguns. Por isto podemos indagar com a autora:

Quando a realidade se deve reter mesmo num mundo que se tornou inumano, se não quisermos que a humanidade se reduza a uma palavra vazia ou a um fantasma? [...] Em que medida ainda temos alguma obrigação para com o mundo, mesmo quando fomos expulsos ou nos retiramos dele? (Ibid., p. 31).

Os testemunhos

A pessoa que não consegue enfrentar a vida sempre precisa, enquanto viva, de uma mão para afastar um pouco de seu desespero pelo seu destino [...] mas com sua outra mão ela pode anotar o que vê entre as ruínas, pois vê mais coisas, e diferentes, do que as outras; afinal está morto durante a vida e é o verdadeiro sobrevivente. (KAFKA apud ARENDT, Ibid., p. 185).

1. O testemunho da criatividade dos poetas A criatividade está presente em todas as pessoas referidas nesta coletânea, sob os diversos aspectos de criação, seja filosófica, política, religiosa, poética ou literária. São formas de lidar com a adversidade sem deixar-se abater numa inação. Sem dúvida que isto motivou Arendt e acredito ser o fio condutor na reorganização destes ensaios e artigos, sobretudo, os que se dirigem aos poetas.

1.1. Hermann Broch Ao referir-se a Broch em sua criatividade, Hannah diz tratar-se de um triângulo cujos lados são literatura, conhecimento e ação. A literatura em seu trabalho artístico, o conhecimento, no trabalho científico e a ação, no trabalho político. “Em relação à vida, ele concedeu primazia absoluta à ação, e em relação à criatividade, ao conhecimento. Assim, a tensão entre literatura, conhecimento e ação o assediava diariamente, quase todas as horas, afetando permanentemente sua vida cotidiana e seu trabalho diário” (Ibid., p. 122-123). Segundo Arendt, esse homem “ter nascido poeta e não querer sê-lo [o poeta relutante], mostra o traço fundamental de sua natureza” conflituosa (Ibid., p. 121). Necessariamente conduzem a conflitos as suas exigências de que a literatura tivesse a mesma validade que a ciência, e que esta se concentrasse em ser totalidade do mundo, da mesma forma que a obra de arte (sua tarefa é a recriação constante do mundo); e que unidas arte (impregnada de conhecimento) e conhecimento (que adquiriu visão) abrangessem e incluíssem todas as atividades práticas cotidianas do homem. A questão de ser um poeta à revelia é tratada na maioria de seus ensaios e é decisivo, para compreendê-lo, “o modo como resolveu em sua ficção os conflitos resultantes, e os papéis que aí atribuiu à literatura, ao conhecimento e à ação” (Ibid., p. 126). Broch jamais questionou a primazia absoluta e inviolável da ética, a primazia da ação. À questão “o que faremos então?” em relação à Primeira Guerra Mundial, o esmagava como um trovão; atesta Hannah Arendt. Para obter uma resposta válida, Broch atribui à necessidade da força do logos concomitante à força coercitiva do

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mythos. Entretanto, no final de sua vida ele se encaminhou mais para o logos por não ter mais fé no “novo mythos”: descrença que não remete à relutância em ser poeta, mas a sua atitude em relação à literatura, “uma crítica social e da posição do artista em seu tempo” (Ibid., p. 130).

A pergunta sobre o que fazer pode ter sido iluminada pelas tarefas da época; mas, para Broch, era também uma investigação sobre a possibilidade de uma conquista terrena da morte. Sua resposta, portanto, devia possuir a mesma necessidade inelutável da própria morte (Ibid., P. 130).

A dissolução dos valores era, para Broch, o resultado da secularização do Ocidente, e, neste processo perdeu-se a crença em Deus5. Surge, então, a “anarquia de valores” como consequência da fragmentação do valor absoluto, supremo, da visão platônica. Valor não terreno, e é o referencial de todas as ações humanas que se relacionam com ele na hierarquia de valores. Naquela “anarquia de valores” cada um passa “a seu bel-prazer de um sistema fechado e coerente de valores para outro qualquer” (Ibid., p. 132). E os sistemas tornaram-se adversários uns dos outros ao reivindicarem cada um o absoluto. Por isto, “a anarquia do mundo, e o desesperado debater-se do homem em meio a ela, deve-se basicamente à perda do padrão de medida e à resultante excessividade, um crescimento como que canceroso das áreas que assim se tornaram independentes” (Ibid). Importa acentuar, de acordo com o “poeta relutante”, que a medida aplicada a qualquer área de valor é sempre um padrão ético. Explica-se porque com o desaparecimento do padrão as áreas de valor se transformaram em “áreas de não-valor” e assim, todo bem em mal. Uma vez que “o padrão absoluto, transcendente é um absoluto ético [...] confere um ‘valor’ à vida do homem em seus vários aspectos” (Ibid., p. 134). O conceito de ética de Broch, como se percebe, está ligado ao cristianismo, afastando-o de um platonismo incondicional. Em suas reflexões, está presente o pensamento de dissolver a consciência da morte pelo sentido do valor, ela não é um valor em si: “Nós experimentamos o sentido do valor da morte apenas a partir do pólo negativo, a partir do ponto de vista da morte. O valor significa a superação da morte [...] a ilusão salvadora que dissolve a consciência da morte” (BROCH apud ARENDT, Ibid., p. 137). A partir do século XII, com a filosofia cristã, a vida é o valor em si, o mais alto bem; e a morte, o não-valor absoluto, segundo Broch. Arendt afirma que ele se aproxima do cristianismo de forma não dogmática, porque não se filia à Igreja. Esta aproximação se dá pelo reconhecimento das “boas novas” no mundo agonizante da antiguidade clássica: o mundo morrerá, mas vocês viverão. E ele, “com os ouvidos aguçados pela percepção poética, ouviu-as novamente no mundo agonizante do século XX” (Ibid., p. 136). O sacrifício da vida (entendido como perda da certeza absoluta em relação à eternidade da vida como tal) em favor do mundo, em favor de algo terrestre, nos tempos modernos, relaciona-se ao que está destinado a morrer. Nos últimos escritos de Broch, esta visão perde sua importância, mas permanece aquela concepção original da vida e da morte, onde afirma que a morte não é um valor em si.

5 “O que uma vez ele chamou de ‘crime’ da Renascença, e repetidamente diagnosticou a qualidade assassina peculiar do processo de secularização, o ‘despedaçamento da visão católica estável do mundo’” (Ibid., p. 136).

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A autora de Sobre a Violência acrescenta uma reflexão pessoal a respeito de a morte ser um mal absoluto (summum malumm) e, consequentemente, podermos dizer que o assassínio é absolutamente mau. Para Broch, a pior coisa que pode fazer um homem é matar, logo, o pior castigo é a pena de morte, isto porque a maldade se radica no mal e torna-se o padrão para medi-la. Eis a reflexão de Hannah Arendt:

Essa concepção da morte e do assassínio sugere uma limitação empírica peculiar não só a Broch, mas a toda a sua geração. Foi característico da geração da guerra e da filosofia dos anos 1920 na Alemanha que a experiência da morte alcançasse uma dignidade filosófica até então desconhecida, dignidade que só tivera uma vez antes na filosofia política de Hobbes, e mesmo então aparentemente. Pois embora o medo à morte desempenhe um papel central em Hobbes, não é o medo à mortalidade inevitável, mas à ‘morte violenta’. Sem dúvida, a experiência da guerra vinha ligada ao medo à morte violenta; mas o que foi precisamente característico da geração da guerra foi que esse medo se tornou o pretexto para a apresentação do fenômeno muitíssimo mais geral e central da ansiedade (Ibid., p. 138).

A partir da geração procedente, a experiência crucial se deu não mais com a morte (deixa de ser “a quintessência de todo o aterrorizante”), mas com as formas totalitárias de governo (Ibid.). Arendt é enfática ao afirmar que existe “penas muito mais severas que a pena de morte”, o maior temor do homem não é mais a morte, mas a dor insuportável: “não fosse a morte, tal dor seria ainda mais insuportável para o homem” (Ibid.). Ela fecha o seu raciocínio acrescentando que “o horror das punições eternas do inferno consiste exatamente nisso”, portanto, deve-se investigar a dignidade filosófica da experiência da dor (menosprezada), no lugar da morte. Ao evocar essa investigação, Arendt torna-se a própria testemunha de seu tempo sombrio. Com a questão “como conseguiria o conhecimento abolir a morte?” Arendt reflete sobre a teoria do conhecimento do “poeta relutante”. A tarefa de suportar a morte é atribuída (ou imposta) à cognição humana, mas é interessante perceber que o eu, enquanto sujeito de conhecimento, não pode refletir sobre ela pela incapacidade de pensar (imaginar) a sua própria morte. Diante disto, a experiência fundamental do homem que deriva do mundo empiricamente dado (do tempo, da transitoriedade e da morte) se apresenta inteiramente estranha e ameaçadora ao núcleo do eu, por isto, o mundo é reconhecido como “não-eu” e não como mundo. “Em meados dos seus trinta e poucos anos”, diz Hannah Arendt, ao expor o pensamento premonitório de Broch sobre a capacidade do logos de redimir o homem pelo caminho da ciência; que esta esperança se tornará certeza no final de sua vida. Isto realizaria, segundo Broch, a pacificação última do Ser (a redenção do mundo) de onde derivarão as aspirações metafísicas religiosas da humanidade, pois todo o conteúdo do mundo chegaria a um equilíbrio proveniente de um único sistema total (a ciência busca no âmbito estritamente racional) onde todas as partes coincidem e se sustentam reciprocamente. O logos no lugar do mythos restaurará (“numa ciência unitária futura”) a articulação do mundo em um sistema ordenado. Consequentemente, o homem perdido na anarquia retornará para os constrangimentos da necessidade (BROCH apud ARENDT, Ibid., p. 151-152). Afinal, além de Broch ter perdido a fé no “novo mythos”, descobre o “absoluto terreno”. Esse conceito absoluto terreno, para ser compreendido, exige que se evite uma equivalência às suas primeiras observações sobre a morte (absoluto da existência humana na Terra), nos alerta Hannah Arendt que a diferença entre elas é clara. Apenas o

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fato une as duas concepções: “ambas estão associadas à morte, são fundamentalmente determinadas pela experiência da morte” (Ibid., p. 153). A relação entre absoluto terreno e morte dá-se a partir da sua “convicção inicial basicamente cristã6 de que morte e perecibilidade estão enraizadas no mundo [‘mundo prenhe de morte’], mas a imortalidade e a eternidade estão ancoradas no eu [...] a vida que nos parece mortal é [...] imortal, e o mundo que nos parece eterno é [...] vítima da morte” (Ibid., p. 154). Portanto, a função do absoluto terreno é conquistar a morte na vida. Broch afirmara que a “estrutura da lógica formal repousa sobre fundamentos materiais”, mas as implicações só se tornaram plenamente visíveis neste período da teoria do absoluto terreno. Isto possibilita compreender a transferência da questão da morte de sua experiência puramente negativa (teoria do valor) para a experiência positiva em que a imortalidade e o absoluto se mostram tão tangível e faticamente como a morte. (BROCH apud ARENDT, Ibid., p. 155). Ressalte-se que o homem (sujeito cognitivo) enquanto suporte dos atos de cognição é fonte do absoluto. Segundo a visão de Broch, a teoria do absoluto terreno poderia ser aplicada à política. Mas a sua preocupação maior recaía em responder a questão que o atormentava desde a juventude: “O que faremos então?” (BROCH apud ARENDT, Ibid., p. 160). Agir e fazer difere entre si da mesma maneira que pensar e conhecer. Se observarmos a relação entre esses pares, percebemos no conhecer propósitos cognitivos ausentes no simples pensar. Por sua vez, no fazer, propósitos específicos de finalidade que o simples agir não teria, pois “o agir sempre ocorre onde quer que os seres humanos estejam juntos, mesmo que não haja nada a alcançar” (Ibid., p. 161). Mas, o fazer está sempre vinculado a categoria fins-meios, e, se vinculamos ao fazer o produzir, segundo Broch, isto se torna uma catástrofe quando aplicada ao agir. E ele “naturalmente interpretou o agir no sentido de fazer, e o ator no sentido de um eu produtor isolado, o sujeito de atos específicos” (Ibid., p. 162).

O fazer, como o produzir, inicia-se com o pressuposto de que o sujeito dos ‘atos’ conhece plenamente o fim a ser atingido e o objeto a ser produzido, de modo que o único problema é encontrar os meios adequados para realizar esses fins. Tal pressuposto por sua vez supõe um mundo onde há uma única vontade, ou que é disposto de tal forma que todos os sujeitos-eu ativos nele existentes estão suficientemente isolados entre si para não haver interferência mútua nos seus fins e propósitos (Ibid., p. 161).

E para a ação o inverso é verdadeiro:

Há uma infinidade de intenções e propósitos que se intersectam e se interferem reciprocamente e, tomados todos em conjunto em sua complexa intensidade, representam o mundo onde cada homem deve situar sua ação, embora nesse mundo nenhum fim e nenhuma intenção jamais tenham se realizado tal como originalmente se pretendera (Ibid.).

A partir dessas reflexões, podemos pensar que Broch, de certa forma, explica a origem de atrocidades dos tempos sombrios. Ao trazer conceitos fundamentais à moralidade, como a liberdade, as intenções das ações, suas finalidades, e quais meios empregados para o alcance delas, ele esbarra na possibilidade de arbitrariedades condutoras à radicalização da injustiça. E, reforça este nosso argumento ao afirmar “a 6 Apesar de se voltar para o positivismo lógico. Segundo Hannah Arendt trata-se de “um positivismo lógico de tipo altamente idiossincrático e original” (Ibid., p. 154).

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liberdade depende da imprevisibilidade absoluta das ações humanas”, ou, ao concordar com o Evangelho ao dizer “eles não sabem o que fazem” interpretando como “nenhum agente jamais sabe o que está fazendo; ele não pode saber e, para o bem da liberdade humana, não lhe é permitido saber” (Ibid.). Hannah Arendt dirá que, para Broch, a liberdade é o esforço anárquico, latente em cada eu, em direção ao ‘desapego’ diante dos companheiros humanos. Este esforço já vem representado no mundo animal pelo ‘mais isolado’. Se o homem segue apenas o empenho pela liberdade do seu eu, é o ‘animal anárquico’. E, complementa o raciocínio de que “o homem é ‘incapaz de subsistir sem seus companheiros homens, portanto incapaz de viver plenamente suas tendências anárquicas’, ele tenta subjugar e escravizar outros seres humanos”. (Ibid., p. 147). Logo adiante adverte, ao referir-se ao dever nas interrelações humanas, para que não se incorra no erro: “O homem nas suas relações com os seus companheiros humanos deve ser submetido à mesmíssima compulsão a que necessariamente se submete em sua cognição7, em outras palavras, no seu intercurso consigo mesmo” (Ibid., p.147-148). Broch acreditava, através de sua teoria do absoluto terreno, que se pode encontrar e demonstrar algo absoluto na Terra. Há um “absoluto limitador”, uma espécie de “justiça absoluta”, contida na aglomeração anárquica de seres humanos nas condições de vida da Terra. Essa “justiça” promoveria uma declaração dos “direitos do homem” renovada, sob a soberania de um “sujeito criador de direito” – mentalmente justo. Hannah Arendt percebe serem todas as relações com os homens, na visão de Broch, “governadas pela ‘prestimosidade’, pela imperatividade do pedido de auxílio” (Ibid., p. 164). E relata isto na experiência de solidariedade dele com os outros (“não só amigos [...] mas qualquer conhecido”), quando se encontravam em dificuldade (grande parte era de refugiados), sem dinheiro, doentes ou até mesmo à morte. Broch estava presente, embora não tivesse dinheiro nem tempo (Ibid., p. 123). “O absoluto do apelo ético”, diz Arendt a respeito de suas convicções, “era algo que admitia tão plenamente que julgava não precisar sequer de demonstração” (Ibid., p. 164). 1.2. Bertolt Brecht Um homem dotado de inteligência penetrante, não contemplativa, que ia direto ao centro do assunto, provavelmente tímido, silencioso, relutante em se revelar, não interessado em si mesmo, mas incrivelmente curioso (Ibid., p. 246-247). Estas são as palavras de Hannah Arendt sobre esse poeta. “Como Brecht nunca pensou em termos de autopiedade [...] recortava-se como uma figura solitária entre todos os seus contemporâneos”. (Ibid., p. 237). Mas ela já nos adverte que estamos, sobretudo, diante de um poeta:

Falar sobre poetas é uma tarefa incômoda; os poetas são para se citar, não para se falar. [...] A voz dos poetas, porém concerne a todos nós, não apenas aos críticos e especialistas; concerne a todos nós em nossas vidas privadas e também na medida em que somos cidadãos. Não precisamos tratar de poetas engagés para nos sentirmos justificados por falar sobre eles de um ponto de vista político, como cidadãos, mas para uma pessoa fora da área literária parece mais fácil empenhar-se nessa atividade se as atitudes e compromissos políticos desempenharam um papel totalmente importante na vida e obra de um autor, como no caso de Brecht (Ibid., p. 227).

7 O homem em sua máxima abstração, a pessoa física no “ato de ver em si”.

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Hannah Arendt tem o cuidado em sempre preparar o terreno toda vez que expõe a trajetória desse homem singular que certamente cometeu muitos “pecados”, entretanto, “há pecados e pecados” (Ibid., p. 228). “O mal comportamento crônico dos poetas e artistas é um problema político, e às vezes moral, que vem desde a antiguidade” (Ibid., p. 235). E em outra passagem completa: “A biografia política de Brecht, uma espécie de história de caso sobre a relação incerta entre poesia e política, não é um assunto ligeiro, e agora que sua fama é sólida, pode ter chegado o momento em que é possível levantar certas questões sem ser mal entendidas”; referindo-se à sua adesão doutrinária à ideologia comunista, segundo ela, muitas vezes ridícula (Ibid., p. 225). E, “a primeira coisa a ser indicada é que os poetas muitas vezes não foram cidadãos bons e confiáveis” (Ibid., p. 227). Mas o pior que pode acontecer a eles é deixar de serem poetas, e, foi isto que aconteceu a Brecht nos últimos anos de sua vida (Ibid., p. 230). Pergunta-se, então, onde se situa a criatividade desse poeta para superar a adversidade? O poeta quando jovem se apaixonou pela vida, por tudo que a terra tinha para oferecer. “O frescor infantil e terrível do mundo pós-guerra se reflete na horrível inocência dos primeiros heróis de Brecht” (Ibid., p. 248). Estes eram aventureiros, piratas e infanticidas.

Tal como parecia a Brecht, quatro anos de destruição tinham limpado o mundo, e as tempestades varreram consigo todos os traços humanos, tudo a que alguém poderia se agarrar, inclusive objetos culturais e valores morais – os caminhos batidos do pensamento e também os padrões sólidos de avaliação e as referências firmes de conduta moral. Era como se, provisoriamente, o mundo tivesse se tornado tão inocente e cândido como no dia da criação (Ibid.).

No mundo de pós-guerra, um mundo varrido, limpo e fresco, o poeta sentiu-se à vontade para começar. Mas um sentimento quase matou a sua poesia: o de compaixão. Ele foi “a paixão mais ardente e fundamental” de Brecht (Ibid., p. 255). “Disseram-me: você come e bebe – feliz é você! Mas como posso comer e beber quando roubo meu alimento do homem que tem fome, e quando meu copo de água é necessário para alguém que morre de sede?” (BRECHT apud ARENDT, Ibid.). O poeta tentava ocultar esse sentimento, mas ele transparece em quase todas as suas peças: o conflito dramático delas é o daqueles que, “movidos pela compaixão, decidem mudar o mundo [mas] não se podem dar ao luxo de serem bons [...] O leitmotiv era a tentação impetuosa de ser bom num mundo e em circunstâncias que tornam a bondade impossível e autodestrutiva” (Ibid., p. 256). Em sua peça Santa Joana dos matadouros, sobre uma jovem, do Exército da Salvação, que aprende que, no dia em que deixar o mundo será mais importante ter deixado um mundo melhor do que ter sido bom. Por isto o tema desta peça é “como não ser bom”. Hannah Arendt afirma ser um tema recorrente das peças de Brecht o render-se ou não à tentação de ser bom, resolver os conflitos que a bondade sempre conduz (Ibid., p. 257).

Desde a Revolução Francesa, quando pela primeira vez o imenso fluxo dos pobres irrompeu como uma torrente na ruas da Europa, muitos foram os revolucionários que, como Brecht, agiram por compaixão e a ocultaram por vergonha sob a capa de teorias científicas e retórica insensível. Contudo, uns pouquíssimos entre eles entenderam o insulto que se acrescentava às vidas insultadas dos pobres com o fato de seus sentimentos permanecerem nas sombras e não serem sequer registrados na memória da humanidade (Ibid., p. 258).

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Brecht ao escrever boa parte de sua poesia em forma de balada significa, na visão de Arendt, um sentimento de solidariedade em relação aos oprimidos e esmagados. A balada, “sempre constituiu o veio da poesia não escrita, a forma de arte, se é que foi, em que pessoas condenadas à obscuridade e ao esquecimento tentaram registrar suas histórias pessoais e criar sua imortalidade poética própria” (Ibid., p. 259). E adiante conclui que “nenhum poeta antes de Brecht aderira com tal coerência a essas formas populares e fora tão bem-sucedido em obter para elas a categoria de grande poesia” (Ibid.) Em vista das circunstâncias da época, o que levou Brecht a se alinhar com o Partido Comunista foi a compaixão, enquanto incapacidade de suportar a visão do sofrimento de outras pessoas. Diria ele que o principal fator para tal decisão deu-se em razão de o Partido assumir como sua a causa dos infelizes. Além de levá-lo a leituras de Marx, Engels e Lênin. Arendt argumenta, entretanto, que o principal motivo foi levá-lo a “um contato diário com aquilo que sua compaixão já lhe dissera ser a realidade: a obscuridade e o grande frio nesse vale de lágrimas” (Ibid., p. 260).

A sua adesão ao Partido não foi tão simples. Primeiro, por compreender que para transformar um mau mundo em um mundo bom era preciso, mais do que não ser bom, que a própria pessoa se tornasse má. E para exterminar a mesquinharia não devia haver nada de mesquinho que ela não se dispusesse fazer. Em segundo lugar, não aceitava passivamente o comando do Partido: “não deixe ninguém lhe falar das coisas, olhe por você mesmo”, isto caracterizava uma heresia, porque o Partido tem mil olhos para ver o que não se pode ver (BRECHT apud ARENDT, Ibid., p 261). E, finalmente, quando começaram a matar os seus próprios camaradas e inocentes. Brecht escreve a peça Medida Adotada relatando a morte de inocentes, dos bons, dos humanitários por prestarem auxílio aos injustiçados e ultrajados. A “medida adotada” era a morte de um membro do Partido pelos seus camaradas, e, a peça não deixa dúvida que ele era o melhor deles. O autor foi duramente criticado pelos opositores de Stálin e pelos stalinistas que negavam a existência de situações como aquela. Hannah Arendt diz que Brecht fez o que todo poeta faz: “anunciara a verdade ao ponto de então se tornar visível. Pois a simples verdade da questão era que pessoas inocentes eram mortas e que os comunistas [...] começaram a matar seus amigos” (Ibid., p. 262, grifo da autora). E chegaram os pecados... Eles se revelaram “pela primeira vez depois que os nazistas tomaram o poder e ele [Brecht] teve de enfrentar de fora8 as realidades do Terceiro Reich” (Ibid., p. 264). Começou a mentira, a elogiar Hitler (acabou com a fome e o desemprego), se recusou a reconhecer que os perseguidos não eram os trabalhadores e sim os judeus (importava a raça e não a classe); “recusando-se a ‘olhar por si mesmo’, aderiu” (Ibid.).

Não foi tanto falta de coragem, e sim esse distanciamento em relação ao real que o fez não romper com um partido que matava seus amigos e se aliava ao seu pior inimigo, e recusar-se a ver, por amor aos ‘clássicos, o que realmente ocorria em sua terra natal – algo que, em seus momentos mais prosaicos,entendia muito bem (Ibid., p. 268).

O fato de ser um homem extraordinariamente inteligente tornou incompreensível aos homens bons perdoarem seus pecados. E, aceitarem “o fato de que ele podia pecar e escrever boa poesia” (Ibid.). Hannah Arendt cita Goethe, ao falar da relação dos poetas com a realidade, para que se compreenda Brecht: “Eles não podem arcar com o mesmo 8 Brecht partiu para o exílio no dia 28 de fevereiro de 1933.

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peso de responsabilidade dos mortais comuns; precisam de uma dose de distanciamento e, no entanto não mereceriam o pão que comem se nunca fossem tentados a trocar esse distanciamento por uma vida como a dos outros” (GOETHE apud ARENDT, Ibid., p. 269). E finaliza complementando esta colocação: “Nessa tentativa Brecht marcou sua vida e sua arte como poucos poetas jamais fizeram; ela o levou ao triunfo e à catástrofe” (Ibid.). 1.3. Randall Jarrell “Jarrell teria sido um poeta mesmo que nunca tivesse escrito um único poema”, declara Hannah Arendt sobre este amigo que ao visitá-la “enfeitiçava” a sua casa com seu riso (Ibid., p. 274). A filósofa encontrou o poeta logo depois do final da guerra, em Nova York9: “eu ficara muito impressionada com alguns de seus poemas de guerra e lhe pedi que traduzisse alguns poemas alemães para a editora10” (Ibid., p, 272). Jarrell lia para Hannah, durante horas, poesias em inglês. Antigas, novas e, às vezes, algumas poesias de sua autoria.

Abriu-me um mundo totalmente novo de sons e métricas, e ensinou-me o peso específico das palavras em inglês, cujo peso relativo, como em todas as línguas, é determinado em última instância pelo uso e padrões poéticos. O que conheço de poesia em inglês, e talvez do gênio da língua, é a ele que devo (Ibid., p. 273).

Era um homem que encarava o mundo de frente e este mundo “não recebia bem o poeta, não lhe era grato pelo esplendor que trouxera, parecia dispensar seu ‘poder imemorial de converter as coisas desse mundo, vistas e sentidas e vivas, em palavras’” (Ibid., p. 275). Na visão de Randall Jarrell, o poeta é condenado à obscuridade por um mundo povoado por “telespectadores e leitores de Seleções do Reader’s Digest” e por uma “nova espécie”, o “crítico moderno”. Um crítico que não se volta para as peças e poemas que critica, mas para si mesmo, em sua própria consideração. Isso não abalava a sua paixão pela poesia. Sempre que possível, envolvia-se “em longos e ardorosos debates sobre os méritos e categorias de escritores e poetas”, constata Arendt ao descrever as suas visitas ao seu marido (Ibid., p. 274). Jarrell escreveu uma vez sobre estes encontros (“disputas aos gritos”, segundo Arendt): “é sempre espantoso (para um entusiasta) ver alguém mais entusiástico que você – como o segundo homem mais gordo do mundo ao encontrar o mais gordo” (JARRELL apud ARENDT, Ibid.). O riso que tanto encantara Arendt, expressão de sua “maravilhosa presença de espírito”, não significava (ela compreende isto um tempo depois do início de convívio entre eles) uma descrença em qualquer tipo de vulgaridade ou facilidade, ou, uma crença de que qualquer um possuísse o seu próprio sentimento absoluto pela qualidade; mas a existência de um “tom de alguém acostumado à impotência” – o irônico e o auto-irônico (Ibid., p. 276). Perto de sua morte, Jarrell estava “quase prestes” a admitir a derrota. O riso “quase se fora”. Aquela derrota prevista em seu poema “Uma conversa com o demônio” expressa o pequeno público de leitores, os poucos amantes da poesia. 9 Jarrell esteve na cidade para editar a seção de livro do The Nation. 10 Editora Schocken Books: local de trabalho de Hannah Arendt.

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2. O testemunho do “corcundinha” em Walter Benjamin

Como alguém que se mantém à tona num naufrágio por subir no topo de um mastro que já desmorona. Mas dali ele tem uma oportunidade de fazer sinais que levam à sua salvação. (BENJAMIN apud ARENDT, Ibid., p. 186).

O contato de Hannah Arendt com Benjamin se deu em Berlim, através de seu primeiro marido, primo distante do filósofo. Mas foi em Paris que se estabeleceu uma amizade entre eles, pela constância dos encontros entre “os judeus emigrados e outros personagens locais que foram fundamentais na condução de uma vida razoavelmente normal para uma apátrida” (CORREIA, 2007, p. 22). As reuniões aconteciam quase sempre no apartamento de Walter Benjamin. A primeira vez que ele foi a Paris, em 1919, sentiu-se mais em casa do que em Berlim11. Vinte anos depois, ao refletir sobre aquela impressão causada, ao lembrar Haussmann, o reconstrutor da cidade, declara:

Essa Paris por certo ainda não cosmopolita, mas era profundamente europeia, e assim já desde os meados do século anterior se oferecera com uma naturalidade incomparável como um segundo lar a todas as pessoas sem lar. Nem a acentuada xenofobia de seus habitantes, nem os deliberados embaraços postos pela polícia local jamais foram capazes de alterar isso (BENJAMIN apud ARENDT, 2008, p.186).

Hannah Arendt também tem uma opinião favorável à cidade de Paris, sob a ótica do estrangeiro: ele “se sente em casa, pois pode morar na cidade da mesma forma como vive entre suas próprias quatro paredes. [...] é a única cidade que pode ser comodamente percorrida a pé [...] sua animação depende das pessoas que passam pelas ruas [...] o tráfego automobilístico moderno ameaça [...] sua própria existência”. (Ibid., p. 188). E lastima ao compará-la ao subúrbio americano (ou “outros bairros residenciais de muitas cidades”) afirmando ser exatamente o oposto de Paris, “onde toda a vida das ruas se concentra nas pistas e a pessoa pode andar pelas calçadas [...] por quilômetros a fio sem encontrar um único ser humano”, em contrapartida, “as ruas de Paris realmente convidam todos a fazer aquilo que as outras cidades parecem permitir [...] apenas à escória da sociedade – a perambulação, o ócio, a flânerie” (Ibid.). A cidade instigou Benjamin à flânerie, ao “estilo secreto de andar e pensar do século XIX” e “o gosto pela literatura francesa”; separando-o da vida intelectual alemã (Ibid.). Arendt cita Benjamin, em carta a Hofmannsthal, para constatar esta afirmação: “Na Alemanha sinto-me totalmente isolado em meus esforços e interesses entre os de minha geração, ao passo que na França há certas forças – os escritores Giraudoux e, em especial, Aragon; o movimento surrealista – onde vejo atuar aquilo que também me ocupa” (BENJAMIN apud ARENDT, Ibid., p. 189). Entretanto, só no pós-guerra iria “ocupar ‘posições’” (Ibid., p. 190).

Benjamin fora levado a uma posição que realmente não existia em lugar algum e só depois poderia ser identificada e diagnosticada. Era a posição no ‘topo de mastro’, de onde se poderia observar, melhor do que do porto seguro, os tempos tempestuosos, muito embora os sinais aflitos sobre o ‘naufrágio’ desse único homem que não aprendera a nadar, com ou contra a corrente, dificilmente seriam percebidos – seja por quem nunca se expusera a esses mares ou por quem conseguia se mover mesmo nesse elemento (Ibid.)

11 Arendt se pergunta: “algum dia sentiu-se ele à vontade na Alemanha do século XX? Há razões para duvidar disso” (Cf. ARENDT, 2008, p. 186).

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Walter Benjamin levava uma vida mais livre (“embora constantemente ameaçada” acentua Arendt): era um homme de lettres, tinha por lar uma biblioteca montada com extremo cuidado, não a serviço de nenhuma profissão, mas com a garantia de ser inútil; gostava de lembrar. Na Alemanha, por sobrevivência, exercia a função de crítico e ensaísta (“pago por linha”) e jamais a de um historiador e erudito da literatura. Preparou-se para a “profissão” de colecionador particular e para ser um estudioso totalmente independente (chamado de Privatgelehrter).

Sob as condições da época, seus estudos, que iniciara na Primeira Guerra Mundial, só poderiam desembocar numa carreira universitária, mas os judeus não batizados ainda estavam impedidos de seguir essa carreira no serviço público civil. Esses judeus podiam prestar uma Habilitation e, no máximo, alcançar o nível de um Extraordinarius não remunerado; era uma carreira que antes pressupunha que assegurava um rendimento garantido (Ibid., p. 192).

Hannah Arendt, sua contemporânea de tempos sombrios, entendia bem essa situação. “A Alemanha fragmentada das primeiras décadas do século passado poucas vezes se mostrou um lar para ela” (CORREIA, 2007, p. 10). E, de acordo com o crítico Derwent May, a “impiedosa e penetrante exposição das dificuldades experimentadas pelos judeus aplicava-se a muitos dos judeus do século XIX sobre os quais [Arendt] escrevia – e constituía [...] a expressão de um estado de espírito de que a própria Hannah, com seu fino senso moral, sofreria mais tarde profundamente” (MAY, 1988, p.15). Não só a situação da época em que viveu Benjamin trouxe infelicidade a este ensaísta e crítico literário, algo “imanente” contribuiu para agravar o cenário de sua trajetória: o “corcundinha”. “Ele era um velho amigo de Benjamin, que o encontrou pela primeira vez quando, ainda criança, se deparou com o poema num livro infantil e nunca o esqueceu” (Ibid., p. 171). Arendt classifica de “o elemento da má sorte” (talvez de forma simbólica) e Benjamin tinha “uma extraordinária consciência dela”, tanto que em seus escritos ou nas conversas falava sobre o “pequeno corcunda” – personagem daquele conto de fadas de sua infância – de uma famosa coletânea da poesia popular alemã. Esse personagem marcou a sua infância. Todas as vezes que ocorria uma das inúmeras pequenas catástrofes, sua mãe se referia ao “corcundinha”: foi ele que lhe passou uma rasteira quando você caiu – lhe dizia. E a sua presença não se restringiu a sua infância. Em sua fase adulta ele lhe acompanhou: agora não era mais uma falta de jeito, era má sorte. Arendt atribui à companhia do “corcundinha” a sua fama póstuma: “[A fama] chegou agora na Alemanha para o nome e a obra de Walter Benjamin, um escritor judaico-alemão que era conhecido, mas não famoso, como colaborador de revistas e seções literárias de jornais, durante menos de dez anos antes da tomada de poder por Hitler e sua própria emigração” (Ibid., p. 165). Outras situações em sua vida são atribuídas à presença do “corcundinha”, de acordo com a interpretação de Hannah Arendt:

Para qualquer ponto da vida de Benjamin que se olhe, encontrar-se-á o corcundinha. Muito antes de irrupção do Terceiro Reich, estava pregando suas peças maldosas, fazendo com que editores que tinham prometido a Benjamin um pagamento anual pela leitura de manuscritos ou edição de um periódico fossem à falência antes de surgir o primeiro número. Mais tarde, o corcundinha permitiu que fosse impressa uma coletânea de magníficas cartas alemãs [...] mas a seguir providenciou que terminasse no porão do editor suíço falido [...] (Também se poderia atribuir ao corcundinha o frequente fato de que as poucas coisas que se

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encaminhariam bem inicialmente se apresentavam sob um disfarce desagradável (Ibid., p.182).

Ao realizar essa breve explanação sobre a trajetória de vida do seu amigo Benjamin, Arendt testemunha as inúmeras adversidades que pontuaram o seu percurso. Os seus tempos sombrios. Por isto dedica uma parte do texto ao tema. Mas não é ao acaso que a primeira parte se intitula “o corcunda”. Benjamin viveu problemas financeiros: “há lugares em que consigo ganhar um mínimo e lugares em que consigo viver com um mínimo, mas não há nenhum lugar onde consigo ambos” (BENJAMIN apud ARENDT, Ibid., p. 193). Mas também não se empenhou em resolvê-los: “O fato de, ainda que arruinado, nada ter feito a seguir é digno de admiração” (Ibid., p. 195). Viveu o período do antissemitismo. Obteve fama postumamente. A pior “intervenção”, entretanto, do corcundinha na vida de Benjamin ocorreu, em 26 de setembro de 1940, ao tirar a sua vida na fronteira franco-espanhola. “A causa imediata para o suicídio de Benjamin foi um golpe incomum de má sorte” (Ibid., p. 184). Após os Estados Unidos terem liberado os vistos de emergência, através de seus consulados na França não ocupada, para os refugiados em perigo de serem embarcados de volta para a Alemanha; Benjamin foi um dos primeiros a recebê-lo em Marselha. E, com a mesma rapidez, recebeu um visto de trânsito espanhol que lhe permitia dirigir-se até Lisboa, mas não tinha o visto de saída francês12. A situação era contornada em razão da alternativa de um caminho, jamais vigiado pela polícia francesa de fronteira, mas que, embora fosse curto, era muito árduo e deveria ser percorrido a pé, pelas montanhas, até alcançar Port Bou. Entretanto, há quatro aspectos condutores ao fracasso da situação, a partir da perspectiva de Benjamin: 1) Ele era uma pessoa com baixa resistência, aparentemente tinha problemas cardíacos; 2) O percurso, mesmo pequeno, o deixou num estado de grave exaustão (supõe Arendt); 3) O seu grupo de refugiados, ao chegar à cidade da fronteira, soube que a Espanha fechara suas fronteiras naquele dia; e, 4) Os oficiais não aceitavam vistos expedidos de Marselha. Diante deste quadro, o grupo teria de voltar à França no dia seguinte pelo mesmo caminho. Naquela noite, Benjamin se matou13. Lamenta a sua grande amiga Hannah:

Um dia antes, Benjamin teria passado sem nenhum problema; um dia depois, as pessoas em Marselha saberiam que, de momento, era impossível passar pela Espanha. Apenas naquele dia particular foi possível a catástrofe (Ibid., p. 185)

3. O testemunho da responsabilidade de Jaspers

O seu mestre e amigo Karl Jaspers14 merece apreciações especiais nesta coletânea. Ao ressaltar as qualidades deste professor, em um discurso por ocasião da entrega do Prêmio da Paz15, Arendt não economiza nas belas palavras na laudatio a sua pessoa.

12 O governo francês (em razão do acordo de armistício entre a França de Vichy e o Terceiro Reich), como queria agradar à Gestapo, segundo Arendt, invariavelmente recusava o visto de saída aos refugiados alemães (Cf. Ibid., p. 184-185). 13 O fato impressionou os oficiais de tal maneira que permitiram o seu grupo seguir até Portugal. 14 Orientador de sua tese sobre o amor em Santo Agostinho (“O conceito de amor em Santo Agostinho”), defendida em 1928, aos vinte e três anos de idade. Trata-se de um estudo austero, sistemático, relacionando os diversos conceitos de amor em Agostinho à experiência humana da época (Cf. MAY, 1988, p. 25-26). 15 Prêmio concedido pela Classe Livreira Alemã pela excelência literária de Jaspers.

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Ao pontuar o seu comportamento diante do mundo e da vida, assevera a presença de uma responsabilidade sem peso, sem culpa pessoal, mediante um prazer inato em clarear o escuro, iluminar as sombras. “Ele amou tanto a luz que ela marcou toda a sua personalidade” (Ibid., p.84). A leveza dessa responsabilidade é compreendida através de sua postura nos assuntos públicos e no compromisso de assumi-la ao manifestar suas ideias em numerosos pronunciamentos, abandonando a “torre de marfim da mera contemplação” (Ibid., p. 95).

Comprometer-se em comunicar de forma simples, clara, esquivando-se do uso corrente de uma terminologia técnica, faz desse filósofo mais que apenas uma testemunha de seu tempo sombrio; marca a sua personalidade pelo amor à luz, à claridade. “Na experiência de se comunicarem com um filosofar vivo presente” solicita que seus pensamentos devam manter-se em comunicação constante com todo o pensar anterior, “porque a filosofia presente não pode ser senão ‘a conclusão natural e necessária do pensamento ocidental até hoje, a síntese honesta realizada por um princípio [comunicação] suficientemente amplo para compreender tudo o que, num certo sentido, é verdadeiro’” (JASPERS Apud ARENDT, Ibid., p. 94). Mas, só é possível se tornar uma prática entre os homens, mediado pelo diálogo, porque ele concebe a comunicação e a verdade como um só e mesma coisa.

Desenvolveu e praticou sua incomparável faculdade de diálogo, a maravilhosa precisão de sua forma de ouvir, a constante presteza em apresentar uma cândida análise de si próprio, a paciência em se prolongar sobre um assunto em discussão e, sobretudo, a capacidade de atrair coisas que, de outro modo, passariam em silêncio pela área do discurso, de torná-las dignas de serem comentadas. Assim, no falar e no ouvir, ele consegue mudar, ampliar, agudizar – ou, como ele mesmo belamente diria, iluminar. (Ibid., p. 88).

Hannah Arendt ao referir-se a ele como “cidadão do mundo” acentua essa disponibilidade não só ao diálogo, reforçando a comunicação, como a espacialidade de seu pensamento em referência ao mundo e às pessoas: “espaço para sempre iluminado [...] por um cuidado ao falar e ao ouvir [...] onde a humanitas do homem possa aparecer pura e luminosa” (Ibid., p. 88). Um pensamento sempre relacionado intimamente aos pensamentos dos outros é político e, por isto, traz consigo a responsabilidade política, a responsabilidade do cidadão. O papel marcante de Jaspers nesse “tempo sombrio” é exatamente o de iluminar o âmbito publico.

Na medida em que esse espaço público é também um âmbito espiritual, há manifesto nele aquilo que os romanos chamavam de humanitas, entendendo por isso algo que era a própria estatura da qualidade humana, pois era válida sem ser objetiva. É precisamente o que Kant, e depois Jaspers, entende por Humanität, a personalidade válida que, uma vez adquirida, nunca abandona um homem, ainda que todos os outros dons do corpo e da mente possam sucumbir à destrutividade do tempo. (Ibid., p. 82).

4. O testemunho da consequência na retomada do “pensar alguma coisa” heideggeriano A insatisfação nas universidades alemãs, tanto por parte dos docentes como dos discentes, recaía no fato de terem se tornado “simples escolas profissionais”. A filosofia perdera o seu caráter de aspirar à sabedoria e “quem se interessava pela solução de todos os enigmas tinha à sua disposição um vasto sortimento no mercado das concepções do mundo e respectivos partidos; para fazer sua escolha, não havia necessidade de um ensino filosófico” (Ibid., p. 278). A crítica de Hannah Arendt

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pontua sobre uma redução dos cursos de filosofia às escolas neoplatônicas, neokantianas, entre outras; ou às velhas disciplinas (lógica, teoria do conhecimento, estética, etc) transmitidas de forma “esvaziada de sua substância por um tédio sem fim” (Ibid.). Surge um grupo de “rebeldes” contra essa atividade, de certa maneira, confortável, bem estabelecida e despreocupada com o verdadeiro filosofar. A proposta agora é atingir as coisas proclamadas por Husserl e que têm continuidade com Heidegger: Há uma distinção “entre um objeto de erudição e uma coisa pensada” (HEIDEGGER apud ARENDT, Ibid., p. 279). O pensar de Heidegger determinou a fisionomia espiritual do século XX, por sua “qualidade de abertura que lhe é exclusiva e, para apreendê-la e indicá-la em palavras, reside no uso transitivo do verbo ‘pensar’” (Ibid., p. 280). Nisto residia a sua fama dentro da universidade, pois havia apenas um nome que viajava por toda a Alemanha, “como a novidade de um rei secreto” (Ibid., p. 277). Diferenciava dos círculos em torno de um mestre que os monopolizava e dirigia, mantendo-se afastados do público “por trás de uma aura de um mistério” que apenas os seus pares do círculo conheceriam. Com Heidegger não havia iniciados nem mistério, todos eram estudantes e formavam grupos para discussões, sem qualquer pretensão de no futuro estabelecer círculos. Hannah Arendt foi aluna de Heidegger e esse seu depoimento quer prestar uma homenagem por ocasião dos oitenta anos de vida e o cinquentenário de atividade acadêmica. O seu primeiro curso com ele foi sobre o diálogo O Sofista de Platão, no inverno de 1924-25. Ela fala, então, com propriedade, sobre o método utilizado pelo filósofo que na época era uma verdadeira novidade. Posteriormente, muitos professores passaram a proceder de acordo com maneira heideggeriana. Fato é que nesta nova condução das aulas, podia se afirmar: “há um mestre; talvez se possa aprender a pensar” (Ibid., p. 280). Não pensamentos mortos, mas “pensamento apaixonado, no qual o pensamento e o ato de viver se tornam um só”, nas palavras de Hannah Arendt.

O decisivo no método era que, por exemplo, não se falava sobre Platão e não se expunha sua doutrina das ideias, mas seguia-se e se sustentava um diálogo durante um semestre inteiro, até não ser mais uma doutrina milenar, mas apenas uma problemática altamente contemporânea [...] A novidade simplesmente dizia: o pensamento tornou a ser vivo, ele faz com que tesouros culturais do passado considerados mortos e eis que eles propõem coisas totalmente diferentes do que desconfiadamente se julgava (Ibid.).

A novidade do aprender a pensar traz a ideia de um pensar apaixonado, onde pensar e estar-vivo se tornam um só. Um pensar que toma seu desenvolvimento como paixão pelo fato de ter-nascido-no-mundo e, portanto, “pensa sobre o traço do sentido que reina em tudo que é” (HEIDEGGER apud ARENDT, Ibid., p. 282). Mas ele pode não ter nenhum objetivo final além da própria vida. “O fim da vida é a morte, e, no entanto o homem não vive pelo desígnio da morte, mas por ser um ser vivo; ele não pensa em vista de qualquer resultado que seja, mas por ser um ‘ser pensante, isto é, meditativo’” (Ibid.).

Todo pensador, se se torna muito velho, deve assim aspirar a dissolver o que há de resultado propriamente dito em seu pensar, e simplesmente porque ele o medita novamente. [...] O eu pensante não tem idade, e, na medida em que os pensadores não existem efetivamente senão no pensar, sua felicidade ou infelicidade, é o se tornarem velhos sem envelhecer (Ibid., p. 283).

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Heidegger pensa alguma coisa e nunca sobre alguma coisa. Trata-se de uma atividade absolutamente não contemplativa. Mergulha-se nas profundezas, mas não para descobrir ou revelar um solo último e seguro, o intuito é manter-se nas profundezas para abrir caminhos e colocar pontos de referência. Desta forma, no pensar “pode se propor tarefas, atrelar a ‘problemas’[...] tem sempre algo de específico com que se ocupa ou [...] com que se estimula” (Ibid.). Importa perceber é que “não se pode dizer que há um fim”, é um processo aberto, em permanente atuação. E ao formar-se caminhos eles servem à abertura de uma dimensão, e, não à realização de um fim previamente estabelecido. Esses caminhos podem ser pacíficos: “caminhos florestais” 16 (Holzwege17) e por não conduzirem a um fim fora da floresta se perdem no não-aberto. Por isto são mais adequados a quem ama a floresta e se sente à vontade nela, do que “as rotas de problemas cuidadosamente traçadas onde se acotovelam as pesquisas dos especialistas em filosofia e ciências humanas” (Ibid., p. 281). Dentre os pensamentos heideggerianos, o único que fez escola foi o de ter derrubado o “edifício da metafísica existente, onde, em todo caso ninguém mais, há muito tempo, se sentia realmente à vontade” (Ibid.). Hannah Arendt compara esta derrubada com as galerias subterrâneas que fazem desmoronar tudo cujos alicerces não têm profundidade suficiente (Ibid.) É apenas a Heidegger que se deve agradecer a demolição (iminente) da metafísica, segundo Arendt.

É ele [...] que se deve agradecer que tal desmoronamento tenha ocorrido de maneira digna do que o precedeu; que a metafísica tenha sido pensada em todas as suas consequências e não apenas repassada e ultrapassada pelo que veio a seguir. ‘O fim da filosofia’, como diz Heidegger [...] mas um fim que honra a filosofia e mantém sua honra, preparado por aquele que lhe era mais profundamente apegado. (Ibid.)

O primeiro a falar em pensar como pathos foi Platão no diálogo Teeteto. O começo da filosofia se dá com o espanto (thauma) enquanto pathos – o pensamento se funda sobre alguém que deve suportá-lo. Heidegger acrescenta: deve-se aceitar esse espanto (thauma) como morada. Arendt afirma ser este acréscimo “decisivo para uma reflexão sobre quem é Martin Heidegger” (Ibid., p. 285). Muitos pensadores vinculam o pensar com a solidão, mas não têm aí a sua morada. A morada, de que nos fala Heidegger, se encontra (metaforicamente falando) longe das casas dos homens; a morada do pensador é o lugar da calma. É o próprio thauma que engendra e difunde a calma e é por causa dela que o abrigo contra todos os ruídos (inclusive o da própria voz) se torna a condição indispensável para, que a partir do thauma, um pensar possa ser desenvolvido. (Ibid.). O poder de se espantar é próprio de todos os homens. A partir deste espanto (thauma), vem o poder de pensar que também lhes é próprio. Mas, em Heidegger, temos o poder de aceitar esse espanto como morada – aí as coisas são diversas, argumenta Arendt. Entretanto, Heidegger cedeu à tentação, uma vez, de mudar de “morada”: de se inserir no “mundo dos afazeres humanos”. Isto foi pior que Platão – no Teeteto ele se pronunciou contra os perigos dessa morada. O filósofo grego na República além de proibir o ofício dos poetas, proíbe o riso, por temer que as zombarias dos concidadãos 16 Em alemão essa metáfora significa que a pessoa está engajada em um “caminho que não leva a lugar nenhum”, mas do qual não se afasta e, igual ao lenhador, segue caminhos que ela mesma desbravou; desbravamento que faz parte do ofício como da derrubada da árvore. 17 Título de uma coletânea de ensaios dos anos de 1936-1946.

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sejam piores do que a hostilidade das opiniões contra a exigência do caráter absoluto da verdade. Talvez porque soubesse que o pensar quando quer negociar seu pensamento é incapaz de se defender contra o riso dos outros. Por que em Heidegger foi pior que em Platão? Ao mudar a sua morada e inseri-la no mundo dos afazeres humanos, o seu tirano não estava além mar (como em Platão ao ir à Siracusa ensinar matemática ao tirano), mas em seu próprio país. 5. O testemunho da simplicidade audaciosa de João XXIII Uma das preocupações de Ângelo Giuseppe Roncalli18 recaía nas reflexões em como fazer o bem e evitar o mal. Questões essencialmente básicas a um homem escolhido para uma liderança espiritual. E a escolha se deu “porque os cardeais não conseguiam chegar a um acordo e estavam convencidos [...] de que ‘seria um papa provisório e transitório’19, sem maiores consequências” (Ibid., p. 67). O “Papa da bondade” ou o “Papa bom”, como viria a ser reconhecido, devido à sua bondade, simpatia, sorriso, jovialidade e, sobretudo, simplicidade, não era um dos papabile. Hannah Arendt lembra que a Igreja prega, desde os primórdios, a imitatio Christi. Mas a simplicidade da fé de Roncalli quando, aos dezoito anos, buscou efetivamente ter em Jesus Cristo o modelo, assemelhar-se ao bom Jesus, apesar de correr o risco de ser “tratado como louco”, talvez tenha sido desconsiderada. Ocupada e preocupada em manter crenças dogmáticas20, a Igreja, segundo observa Arendt, “não abria a carreira eclesiástica para homens que tivessem assumido literalmente o convite: ‘Siga-me’. Isso [...] porque [...] simplesmente julgariam que ‘sofrer e ser desprezado por Cristo e com Cristo’ era uma política equivocada” (Ibid., p. 68). Torna-se claro, portanto, compreender a “relutância da Igreja em indicar para altos cargos aqueles poucos cuja única ambição era imitar Jesus” (Ibid.) Explica-se porque Roncalli, por ocasião do conclave, não estava entre os papabile e nem os alfaiates haviam preparado paramentos adequados ao seu tamanho. O seu pontificado, por uma postura transparente calcada na mansidão e humildade (o que diferencia de “ser fraco e complacente”, segundo uma anotação sua) foi observado por todos, não se restringindo aos católicos. Os motivos foram expressos pelo próprio Roncalli, ao enumerá-los em dois aspectos. O primeiro, após ter o cuidado em desviar as atenções sobre ele, aceitar com simplicidade a honra e o cargo. E em segundo, pela capacidade de “efetivar imediatamente certas ideias que eram [...] perfeitamente simples, mas com efeitos de longo alcance e plenas de responsabilidade para o futuro” (RONCALLI apud ARENDT, Ibid., p.. 69). O Papa João XXIII disciplinou-se sob os artigos da fé, a tal ponto, até não se importar com os julgamentos do mundo, inclusive do mundo eclesiástico. “A enorme força dessa fé nunca se tornou mais evidente do que nos ‘escândalos’ que inocentemente provocou, e a estatura desse homem só pode rebaixar se se omitir o elemento de escândalo” (Ibid., p. 70). O livro Diários de uma alma que reúne os diários espirituais de Roncalli é uma prova de sua impressionante fé. Pronunciou, em seu leito de morte, inspirado pela fé “palavras grandiosas”, reproduzidas por Hannah Arendt: “Todo dia é um bom dia para nascer, todo dia é um bom dia para morrer” (RONCALLI apud ARENDT, Ibid., p. 79).

18 Aos onze anos de idade entra para o seminário de Bérgamo. 19 Colocação do próprio João XXIII. E, ele ficou de 1958 até a sua morte em 1963. 20 Principalmente a partir da Contra-Reforma.

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Mas não superam as histórias que circulavam em Roma a respeito de sua fé neste período dos quatros dias finais de sua agonia.

Era uma época em que a cidade oscilava, como de hábito, sob a invasão de turistas, que, devido à sua morte que viera mais cedo do que se esperava, era acrescida por legiões de seminaristas, monges, freiras e padres [...] Todos, desde o taxista ao escritor e editor, do garçom ao balconista, fiéis e infiéis de todos os credos, tinham uma história para contar sobre o que Roncalli fizera ou dissera, com se conduzira em tal ou qual ocasião (Ibid., p. 70).

Os tempos sombrios para Roncalli são reconhecidos, por ele mesmo, como sua “cruz”. Como, por exemplo, as suas relações tensas (quando era bispo) com Roma, em 1925. Por isto, é indicado para um cargo de semi-obscuridade – visitador apostólico na Bulgária – onde permaneceu por dez anos. Foi tão infeliz nesta função, que 25 anos depois ainda desabafa, ao escrever sobre “a monotonia daquela vida, que era uma longa sequência de alfinetadas e arranhões diários”. E na própria época soube de “muitas provocações [...] causadas [...] pelos órgãos centrais da administração eclesiástica. É uma forma de mortificação e humilhação que não esperava e que me fere profundamente” (RONCALLI apud ARENDT, Ibid., p. 71). Roncalli enfrenta as situações sombrias com sua “simplicidade audaciosa”, faz exames de autoconsciência e mais raramente autocríticas21. Em uma situação ocorrida na Turquia, durante a guerra, “impediu que o governo turco embarcasse para a Alemanha algumas centenas de crianças judias que haviam escapado à Europa ocupada pelos nazistas” (Ibid., p 72). Isto o levou a sérias reprovações a si mesmo, e, se questionou: “Eu não poderia, eu não deveria ter feito mais, ter feito um esforço mais decidido e ido contra as inclinações de minha natureza? A busca de calma e paz, que considerei estar em maior harmonia com o espírito de Deus, não terá talvez mascarado uma certa falta de vontade em tomar a espada?” (Ibid.). Ao escrever a introdução do Diário, o editor e ex-secretário do papa João XXIII, monsenhor Lóris Capovilla, declara que a “sua habitual humildade perante Deus e sua clara consciência de seu próprio valor perante os homens” deveria irritar muitos e confundir a maioria. Ele possuía uma autoconfiança22 e não buscava conselhos de ninguém, e, no entanto, “não cometia o erro de pretender saber o futuro ou as consequências últimas do que tentava fazer. Sempre se contentou de ‘viver dia a dia’ [...] como os lírios do campo [...] a ‘regra básica de conduta’ [era] ‘não ter nenhuma preocupação com o futuro’” (RONCALLI apud ARENDT, Ibid., p. 75). Essa liberdade lhe permitiu firmar a sua humildade, pois podia dizer sem qualquer reserva “seja feita a vossa vontade”. “Foi a fé, e não a teoria, teológica ou política, que o protegeu”, constata Arendt. Uma proteção contra “qualquer conivência com o mal, na esperança de, com isto, poder ser útil a alguém” (Ibid.). A sua fé, de extrema sinceridade, jamais era perturbada pela dúvida, distorcida pelo fanatismo e nunca abalada pela experiência (Ibid., p. 76). Esse homem nascido pobre (“quem é mais pobre do que eu? Desde que me tornei seminarista, nunca vesti um paramento que não tivesse sido dado por caridade”) e que escolheu morrer pobre (distribuiu tudo o que lhe chegou às mãos, durante os anos 21 Segundo Hannah Arendt, Roncalli “não era absolutamente dado a autocrítica” (Cf. Ibid., p. 72). 22 A sua autoconfiança, não só a humildade, o conduziu ao tratamento igualitário dirigido a todos. Facilitou chamá-los por irmãos e filhos, e, para não torná-las “palavras vazias”, Roncalli sempre contava umas histórias que, de certo modo, os aproximava deles (Ibid., p. 75).

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de sacerdócio e episcopado), compreendia que a sua pobreza era um sinal evidente de sua vocação. Mas, “sem dúvida foi a ‘pobreza de espírito’ que o preservou ‘das ansiedades e cansativas perplexidades’ e lhe deu a ‘força da simplicidade audaciosa’” (Ibid., p. 79). 6. O testemunho da águia Rosa Luxemburgo O mito tem pouca importância se o intuito é discorrer sobre a atuação dessa cientista política que caiu no esquecimento e “merece ter a sua trajetória recuperada para a vida histórica”, afirma Hannah Arendt (Ibid., p. 44). Em consonância com o seu biógrafo Senhor Nettl23 ao referir que “suas ideias pertencem a todos os lugares que se ensine seriamente a história das ideias políticas” (Ibid., p.66). Mulher discreta24, Rosa Luxemburgo tinha uma excelente relação com sua família. “Seus pais, irmãos, irmã e sobrinha, dos quais nenhum jamais mostrou a mínima inclinação pelas ideias socialistas ou atividades revolucionárias, mas que fizeram tudo o que puderam por ela, quando teve de se esconder da polícia ou quando esteve na prisão”. (Ibid., p. 50). Casada com Leo Jogiches com quem brigaria em razão do breve caso que ele teve com outra mulher. Rosa Luxemburgo mostrou-se uma típica pessoa de sua época e ambiente, através da reação a este fato, e, da recusa em perdoá-lo. “Essa geração ainda acreditava firmemente que o amor ocorre apenas uma vez, e sua despreocupação em relação a papéis de casamento não deve ser erroneamente considerada com alguma crença no amor livre” (Ibid., p.54). Mas, segundo o biógrafo, a história de Leo Jogiches e Rosa Luxemburgo era “uma das grandes trágicas histórias de amor do socialismo”. Não é preciso discordar deste veredicto se entender que não foi um “ciúme cego e autodestrutivo” que provocou a tragédia final em suas relações, mas a guerra e os anos de prisão, a revolução alemã condenada e o final sangrento (Ibid., p. 54). Um fato é certo, nunca saberemos o quanto as ideias políticas de Rosa Luxemburgo derivam das de Jogiches25. Em um casamento não é fácil separar as ideias dos cônjuges. (Ibid., p. 55-56). Há lendas sobre o perfil dessa mulher. Na interpretação de Arendt, tem situações em que o Sr. Nettl erra como ao atribuir a Rosa uma ambição e senso de carreirista. Indigna-se Hannah, num tom apaixonado: “Julga ele que seu violento desprezo pelos carreiristas e ávidos de status no Partido Alemão […] é mera hipocrisia? Acredita ele que uma pessoa realmente ‘ambiciosa’ se teria permitido ser tão generosa como ela foi?” (Ibid., p.52-53). Mas, ela afirma ser verídico o episódio narrado abaixo, pois lhe foi transmitido em confiança quando criança e confirmado mais tarde por Kurt Rosenfeld (amigo e advogado de Rosa) que afirmava ter testemunhado a cena.

A imagem sentimentalizada da observadora de pássaros e amante de flores, uma mulher de quem os carcereiros se despediam com lágrimas nos olhos, ao deixar a prisão como se não pudessem continuar a existir sem se entreterem com essa estranha prisioneira que insistia em tratá-los como seres humanos (Ibid., p. 45).

Em outubro de 1918 iniciou-se a revolta dos trabalhadores, através de um levante dos marinheiros da base naval de Kiev e isto representava uma ameaça

23 “É o primeiro retrato plausível desta mulher extraordinária, traçado con amore, com tato e grande delicadeza. É como se ela tivesse encontrado seu último admirador” (Cf. Ibid., p. 52). 24 Não se sabia até então de sua vida privada, pela simples razão de que ela se protegera cuidadosamente da notoriedade (Ibid., p. 52. Tomou-se conhecimento através do Sr. Nettl. 25 Jogiches foi preso dois meses depois do assassinato de sua mulher.

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bolchevique na Alemanha. Sucederam-se várias ações organizadas até o início do ano de 1919, quando os spartakistas26 tomaram a sede dos principais jornais de Berlim. Após alguns dias, foram violentamente reprimidos, Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo são assassinados – sob o olhar indiferente dos governantes da república que acabara de nascer –, finalizando a revolta. A morte de Rosa Luxemburgo tornou-se o “divisor de águas” entre as duas eras na Alemanha, e, o ponto sem retorno para a esquerda alemã. Os que haviam derivado para os comunistas (em razão do amargo desapontamento com o Partido Socialista) ficaram ainda mais desapontados com o rápido declínio moral e desintegração política do Partido Comunista (Ibid., p. 44). Arendt relata que logo após a morte de Rosa Luxemburgo, ocorreu uma curiosa alteração em sua reputação. Publicaram dois pequenos volumes com suas cartas, inteiramente pessoais, de uma beleza simples, comovedoramente humana e muitas vezes poética (Ibid., p. 44). Este fato foi o suficiente para destruir a imagem propagandística da sanguinária “Rosa Vermelha” que se criara em razão de um dos seus inúmeros equívocos. “Pelo menos em todos os círculos que não eram os mais obstinadamente antissemitas e reacionários” (Ibid., p. 45). Um dos seus equívocos remonta ao período procedente ao seu doutoramento, em Zurique, no ano de 1898. Ao chegar à Alemanha, após ter sido aprovada a sua tese sobre um tema referente ao desenvolvimento industrial da Polônia, e ter sido elogiada pela banca com a incomum “distinção de publicação imediata” e por seu orientador (Professor Julius Wolf); Luxemburgo torna-se especialista sobre a Polônia no Partido Alemão. Isto significava ser propagandista entre a população polonesa nas províncias da Alemanha Oriental. E “entra numa incômoda aliança com gente que desejava ‘germanizar’ os poloneses, incluindo o socialismo polonês” (Ibid., p. 57). Arendt completa lamentando o ocorrido: “Seguramente, o brilho da aprovação oficial era para Rosa um falso brilho” (Ibid.). Há outros mal-entendidos que lhe causaram profundos constrangimentos. Destacamos alguns, de forma breve, apenas para registrar esses “desencontros” condutores ao agravamento dos tempos difíceis. Os primeiros triunfos de Rosa Luxemburgo no Partido Alemão (relata Arendt) se fundavam num duplo mal-entendido. Ela não se deu conta do que se tratava realmente a colocação de August Bebel (“Sou e serei sempre o inimigo mortal da sociedade existente”) que lhe parecia com a proposta do grupo polonês de iguais, mas na verdade o desafio era um obstinado não envolvimento com o mundo em geral e sim uma preocupação exclusiva com o crescimento da organização do Partido. O segundo mal-entendido vincula-se diretamente ao debate sobre o revisionismo. Ela toma equivocadamente a relutância de Kautsky em aceitar as análises de Bernstein como um autêntico compromisso com a revolução (Ibid., p. 60). Em meio à opacidade, brilham algumas luzes na vida dessa mulher. O contato com uma revolução real lhe proporcionara captar a natureza da ação política, aprender com os conselhos operários revolucionários (os posteriores sovietes) que a boa 26 Membros da Liga Spartakus (em alusão ao escravo líder da rebelião escrava na Roma Antiga). Trata-se de um movimento marxista fundado por Karl Liebknecht, Rosa Luxemburgo, Clara Zetkin… A Liga atuou intensamente no período da Revolução de 1918 na Alemanha onde pretendia instaurar uma revolução socialista. Em dezembro de 1918, a Liga adere à Comintern e torna-se o Partido Comunista da Alemanha (KPD).

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organização não precede a ação, é o seu produto; que a organização da ação revolucionária pode e deve ser aprendida na própria revolução. Para concluir-se que só se pode aprender a nadar na água. As revoluções não são “feitas” por ninguém, elas irrompem “espontaneamente”. E, finalmente, “a pressão para a ação” sempre vem “de baixo” (Ibid., p. 62). Arendt reconhece: “o seu primeiro contato com uma revolução real lhe ensinou mais e melhores coisas que a desilusão e as refinadas artes do desdém e da desconfiança” (Ibid.) Rosa Luxemburgo pertencia ao grupo de iguais, composto por judeus assimilados oriundos de famílias de classe média com formação cultural alemã. (Ela conhecia Goethe e Morike de cor e seu gosto literário era impecável, muito superior ao dos seus amigos alemães). De formação política russa e padrões morais na vida pública e privada exclusivamente seus. Esses judeus permaneciam fora de todos os escalões sociais, judaicos ou não judaicos, não possuindo, portanto nenhum tipo de preconceito convencional e desenvolveram, nesse isolamento realmente esplêndido, seu próprio código de honra (Ibid., p. 49). “Foi esse meio, e jamais o Partido Alemão, que sempre se manteve como o lar de Rosa Luxemburgo. O lar era, até certo ponto, móvel e, visto ser predominantemente judaico, não coincidia com nenhuma ‘pátria’” (Ibid., p. 50). É-nos apresentada nesse emocionante relato sobre as ações e a vida de Rosa Luxemburgo, uma homenagem póstuma, inesperada e brevíssima de Lênin. Isto inspirou anunciá-la ao adjetivarmos o termo “águia”. Eis a situação.

Paul Levi, sucessor de Leo Jogiches na liderança da Spartakusund, três anos após a morte de Rosa Luxemburgo publicou as suas observações [...] sobre a Revolução Russa, redigidas em 1918 ‘apenas para vocês’ – isto é, sem pretender publicá-las. ‘Foi um momento de considerável embaraço’ tanto para o Partido Alemão como para o Russo, e seria perdoável se Lênin tivesse respondido incisivamente e sem moderações. Ao invés disto, escreveu: ‘Nós respondemos com […] uma bela fábula russa antiga: uma águia às vezes pode voar mais baixo que uma galinha, mas uma galinha nunca pode atingir as mesmas alturas de uma águia. Rosa Luxemburgo […] apesar de seus equívocos […] era uma águia’” (Ibid., p. 64-65).

Conclusão

Viver em tempos sombrios desafia a nossa capacidade para a reação, ao exigir ou criatividade ou uma entrega ao desespero – o sem saída. Se assumirmos a primeira, nos deparamos com o compromisso de extrair, da própria adversidade, a seiva para a (re)construção do caminho. Ir ao âmago do mal para encontrar o germe da possibilidade de uma reversão. Em contrapartida, se nos entregamos ao desespero, apodera-se de nós o vazio porque negamos a própria espera. A inação dessa passividade a qual nos submetemos sequer nos torna espectadores. A essas pessoas extraordinárias que “conviveram” conosco, no período em que escutávamos os relatos de Hannah Arendt, e, nos brindaram com as experiências criativas de suas vidas, só nos resta reverenciá-las pelo ensinamento proporcionado.

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Referências

Fonte primária ARENDT, H. Homens em tempos sombrios. Tradução de Denise Bottmann. . Posfácio de Celso Lafer. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. Fontes secundárias CORREIA, A. Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. MAY, D. Hannah Arendt: a notável pensadora que lançou uma nova luz sobre as crises do século XX. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Casa-Maria Editorial, 1988.

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Conferência 

Hannah Arendt: A testemunha dos Tempos Sombrios

Profa. Dra. Lucia Cavalcante Reis Arruda

Rio de Janeiro, de 16 de maio de 2013

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Hannah Arendt (1906‐1975)

Filósofa – Cientista Política

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Filósofa sem seu consentimento“Minha profissão, se é que se pode chamar assim, é a teoria política [...] Para mim o importante é compreender. Escrever é uma questão de procurar essa compreensão [...] o importante é o processo de pensar. Se consigo expressar de modo razoável meu processo de pensamento por escrito, isso me deixa satisfeita”.(Hannah Arendt em entrevista concedida a Günther 

Gaus em 28 de dezembro de 1964)

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Tempos Sombrios

Testemunha do nascimento e implantação do nazismo

“Será que a maldade não é uma condição necessária para o fazer‐o‐mal? Será possível que o problema do bem e do mal, o problema de nossa faculdade para distinguir o que é certo do que é errado, esteja conectado com nossa faculdade de pensar?” (A Vida do Espírito).

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“A ausência de pensamento – uma experiência tão comum em nossa vida cotidiana, em que dificilmente temos tempo e muito menos desejo de 

parar e pensar [...]” (Ibid.)

“As pessoas acostumam‐se com mais facilidade à posse de regras [...] que ao seu conteúdo, cujo exame inevitavelmente às levaria à perplexidade. Se aparecer alguém, não importa com que propósitos, que queira abolir os ‘velhos’ valores ou virtudes, esse alguém encontrará um caminho aberto, 

desde que ofereça um novo código”. (Ibid.).

“E a facilidade com que tais mudanças ocorrem, sob certas circunstâncias, sugere realmente que todo mundo estava dormindo profundamente 

quando elas ocorreram”. (Ibid.)

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“Estou me referindo, é claro, ao que houve na Alemanha nazista e, em certa medida, também na Rússia stalinista, quando subitamente os mandamentos básicos da moralidade ocidental foram invertidos: no primeiro caso, o mandamento ‘não matarás’; e, no segundo, ‘não levantarás falso testemunho’”. (Ibid.)

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Os TestemunhosDa criatividade dos poetas

Hermann BrochBertolt BrechtRandall Jarrell

Da responsabilidade de JaspersDo ‘corcundinha’ em Walter BenjaminDa consequência na retomada do ‘pensar alguma 

coisa’ heideggerianoDa simplicidade audaciosa de João XXIIIDa águia Rosa Luxemburgo

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Da criatividade dos poetasHermann Broch(1886‐ 1951)

“O poeta relutante” (Arendt)

“O que faremos então?” (Broch)

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Bertolt Brecht(1898‐ 1956)

“Como posso comer e beber quando roubo meu alimento do homem que tem fome, e quando meu copo d’água é necessário para alguém que morre de sede?” (Brecht)O pecado

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Randall Jarrell(1914‐1965)

“Maravilhosa presença de espírito”(Hannah Arendt)

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O ‘corcundinha’Walter Benjamin(1892‐1940)

A flânerieA intervenção do “corcundinha”

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A responsabilidade de JaspersKarl Jaspers(1883‐1969)

“Cidadão do mundo” (Arendt)

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O “pensar alguma coisa” heideggerianoMartim Heidegger(1889‐1976)

“Aprender a pensar” (Arendt)A criatividade dos “rebeldes”

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A simplicidade audaciosa de João XXIIIAngelo Giuseppe Roncalli(1881‐1963)

“Um cristão no trono de São Pedro”(Hannah Arendt)

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A águia Rosa Luxemburgo

(1871‐1919) 

“Mulher extraordinária” (Arendt)Os equívocos

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Hannah Arendt e os Homens em Tempos Sombrios