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  • 8/19/2019 Memorial Luiz Alberto Oliveira Gonçalves

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    Universidade Federal de Minas Gerais

    Faculdade de Educação

    Departamento de Ciências Aplicadas à Educação

    “A trajetória acadêmica e intelectual 

    de um afrodescendente.”

    Memorial apresentado ao Departamento de Ciências Aplicadas à

    Educação da Faculdade de Educação da UFMG como requisito para

    progressão para o cargo de Professor Titular

    LUIZ ALBERTO OLIVEIRA GONÇALVES

    2015

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

    FACULDADE DE EDUCAÇÂO

    DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS APLICADAS À EDUCAÇÃO

    CANDIDATO: LUIZ ALBERTO OLIVEIRA GONÇALVES

    Banca de Professor Titular

    PROFa. DRa. PETRONILHA BEATRIZ GONÇALVES E SILVA (UFSCar)

    PROFa. DRa. MARÍLIA PONTES SPÓSITO (USP)

    PROF DR. HENRIQUE CUNHA JR (UFC)

    PROFa. DRa. MARIA ALICE NOGUEIRA (UFMG)

    BELO HORIZONTE, 01 DE DEZEMBRO DE 2015

    I-  Introdução

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    Gostaria de começar expressando os sentimentos que a elaboração do presentememorial me proporcionou desde o momento em que decidi escrevê-lo sem ter a mínimaconsciência do que isto iria significar para mim ao longo da sua elaboração. Tive demergulhar nas minhas memórias de intelectual negro brasileiro de 63 anos de idade,celibatário, pesquisador e amante da profissão de professor que atuou no ensinofundamental, médio e superior e que teve também um pequeno momento da vida, atuandocomo professor de piano, atividade deliciosamente ministrada que me auxiliou asobreviver durante o meu curso de graduação sem precisar interrompê-lo. Ao longo desse

     período, serão relatadas brevemente ações na gestão pública federal, como secretárioexecutivo da Secretaria da Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República(2003-2004).

    Considerando todos os estágios de provação que passei na vida, talvez aelaboração do presente memorial, tenha sido o que mais me obrigou a me refazer

    integralmente enquanto ser humano e enquanto intelectual. Isso me fez recorrer àsreflexões de Danilo Martuccelli sobre aspectos de nosso aprendizado social e cognitivoque nos coloca na condição de sujeito “ forgé par l´épreuve”1referindo-se exatamente aos“provações da vida” que cada um de nós é obrigado a se submeter ao longo de nossaexistência, na maioria das vezes inconscientemente.

    Tenho a sensação de que entendi, na elaboração do presente memorial, osignificado do uso da metáfora “forjado pelas provações2” que Martuccelli  usamagistralmente em seu estudo supracitado. Se aceitarmos a definição de que a forjaenquanto sistema de modelagem é o meio pelo qual o ferreiro atua no metal aquecido a

    fim de gerar uma forma desejada, teremos que aceitar, também, que a principal ação daforja é a deformação da estrutura inicial do metal. Uma vez deformado, segue-se para otratamento térmico com vistas a conferir ao metal as qualidades desejadas.

    Ao transpor a metáfora da forja para explicar os efeitos, sobre nossas trajetórias,das “provações da vida” aos quais somos submetidos quando acedemos ao mundo daescola e ao mundo do trabalho, Martuccelli destaca que não tem como, ao rememorarnossos percursos acadêmicos e profissionais, os aspectos forjados em cada uma dessas

     provações não virem `a tona. Serão desses aspectos que falarei a seguir ao apresentar omeu memorial

    Entre as diferentes memórias do passado têm aquelas que foram moldadas poresse tipo de teste da vida. Logo entendi que, para compor este documento, teria de fazeruma seleção, mais ou menos rigorosa, do material que o comporia. Aos poucos fui

     percebendo de que não era qualquer memória disponível em minha mente e em meus

    1 “Forjado por provação”. Tradução livre.2 Contrariamente ao uso que alguns pesquisadores brasileiros têm feito do termo “ épreuve” ao sereferirem ao texto de Martuccelli, traduzindo-o por uma de suas múltiplas acepções que é “provas”.Está correta mas um pouco distante da acepção primeira do termo. Neste memorial, eu o usarei no

    sentido que ele tem na língua francesa na sua primeira acepção que ressalta uma situação desofrimento, de calamidades que testa a nossa capacidade de superação, ou seja, épreuvres sãoprovações que temos de passar na vida.

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    arquivos, mas, sim, aquelas que poderiam melhor apresentar a minha trajetória enquanto professor e pesquisador e quiçá justificar a minha passagem de estágio de professorassociado IV para professor titular.

    De repente, me dei conta de que escrever o presente memorial estava sendo uma

    das provações mais difíceis que já passei em toda a minha vida. Comecei e recomeceiinúmeras vezes esboços de memoriais. Recorri evidentemente ao aconselhamento decolegas que já haviam passado por essa experiência. Professor Luciano Mendes de FariaFilho, colega de departamento, embora não tenha feito sua passagem para professor titular

     por meio memorialista, eu o consultei e lhe pedi socorro, e ele me enviou memoriais queele considerava modelar. Professor Carlos Roberto Jamil Cury, meu orientador demestrado, não só me apresentou sugestões de modelos que foram usados por colegas emoutras universidades, como me incentivou a indicar, no memorial, aspectos da minhatrajetória profissional e intelectual que não se limitasse aos ditames do Lattes, menos

    ainda a detalhamentos excessivos que tirassem o foco da minha formação.Com base nessas sugestões, fiz análise de vários memorais de colegas de

    diferentes universidades brasileiras, vi que, na sua maioria, seguiram um percurso ditado pelo modelo curricular, fortemente vinculado aos diferentes níveis de formação,associados à sua produção acadêmica, participação em seminários e congressos e assim

     por diante. Analisando, no conjunto, os memoriais encontrados, tive uma percepção óbviade que eles, sobretudo os dos últimos dez anos, reproduzem um modelo acadêmico que

     permite ver que há uma grande aproximação dos diferentes perfis que sinalizam aexistência de um padrão CAPES que identifica o que se espera de um professor titular

    nas universidades brasileiras. Li memoriais datados entre 1980 e 2014, escritos pormulheres e homens, respectivamente. O modelo era quase o mesmo, o que faz com quenão se tenha a percepção das diferenças quanto aos perfis individuais. Dá-se a sensaçãoque os percursos de ascensão de professores dentro da universidade se dão da mesmaforma para todo mundo. Entendi que o meu memorial poderia seguir, mais ou menos essemodelo, para não fugir tanto da regra. Entretanto, entendi que, embora o modelo fossesuficiente, não só não me agradava como tornava muito incoerente a minha trajetóriaenquanto pesquisador e formador de pesquisadores. As nossas identidades se misturam eisso passa, a meu ver, uma falsa imagem consensual do mundo acadêmico.

    Essa percepção inicial de insuficiência para realizar o memorial surge da leituraque tenho feito de sociólogos franceses que têm insistido sobre a necessidade de se fazeruma produção de retratos sociológicos dos sujeitos sociais com os quais dialogamos nasnossas pesquisas.

    O meu referencial para essa observação é o belo texto e Bernard Lahire, PortraitsSociologiques: Dispositions et Variations Individuelles (2005), no qual ele analisa nasmemórias dos seus entrevistados as suas respectivas atitudes ou mesmo o seu estado deespírito em relação a uma dada situação. É isso que ele chama de disposições. Estas,

    segundo o autor, não é outra coisa senão o suporte que pode nos fornecer uma descriçãodas práticas da sociação dos indivíduos(para falar como Georg Simmel), considerando,

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    sobretudo, os contextos sociais nos quais essas práticas ocorrem. Por exemplo, aplicandoesta proposta sociológica nos memoriais que selecionamos para nos orientar na presenteelaboração fica evidente que o contexto sócio histórico de cada um dos memorialistas édiferente e, por isso, contem diferenças que precisam ser consideradas quando osanalisamos.

    Adotado o modelo de Lahire surge o novo problema que é saber como aplicá-loàs nossas próprias memórias.

    Esse foi o critério que utilizamos para construir o presente memorial, dando ênfasenão apenas nos critérios formais que já estão de certa forma estabelecidos pelo mundoacadêmico, mas incorporando informações contextuais que subsidiam as justificativas dasescolhas que foram feitas ao longo da nossa formação e prática profissional. Comoescolhemos as escolas e as universidades nas quais estudamos? Por que se ingressou emtais e tais cursos de formação? Que relação essas escolhas tiveram com os acontecimentoshistóricos e sociais? A escolha dos objetos de pesquisa? As pesquisas encomendadas esuas relações com o contexto social e com a minha produção acadêmica? Como essasações se refletiram nas orientações dos meus mestrandos e doutorandos? E ainda, nasminhas funções administrativas na academia e em órgãos públicos, considerando, é claro,minhas perspectivas para o futuro? 

    II-  O memorialista e sua formação: papel da família e das instituições deensino.

    Eu, Luiz Alberto Oliveira Gonçalves, nascido em Santos, Estado de São Paulo, em 08 de janeiro de 1952, filho, mais de novo de Alberto Gonçalves e de Luizete de OliveiraGonçalves. Meu pai era funcionário da Associação dos Empregados da Companhia Docasde Santos e minha mãe trabalhava como cabelereira em um pequeno salão no centro dacidade, dividindo, com a sua irmã mais nova, a direção e a gestão do referidoestabelecimento que haviam herdado de uma tia com quem elas aprenderam a profissãoainda na adolescência. Em função do trabalho de meus pais, eu e meu único irmão, mais

    velho do que eu cinco anos, fomos criados, a maior parte do tempo, pela nossa avómaterna que morou conosco a sua vida inteira, compondo dessa forma o núcleo familiar,incluindo a tia que trabalhava junto com nossa mãe. Éramos seis. Eu e meu irmão fomoscriados por três mulheres que se dividiam nas nossas vidas, até o momento em que saímosde casa para cursar a universidade, no final dos anos de 1960.

    Éramos uma família que tinha vários cruzamentos étnicos. Minha vó materna,mestiça, antes de se casar como meu avô (pai de minha mãe que era um marinheiro negro),ela foi casada com um italiano, com que teve uma filha, irmã mais velha de minha mãe.

     Nesta época, minha avó morava na cidade, São Paulo, no bairro do Bixiga, onde nasceue trabalhava como operária em umas das fábricas de tecelagem do império de Francesco

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    Matarazzo. Com a morte do primeiro marido se muda para Santos e passa a trabalharcomo tintureira em um dos hotéis turísticos de grande porte, na orla santista, talvez omaior da cidade, naquele momento. No lado paterno de minha família, tinham tambémmarcas interétnicas. Vários casamentos que geravam filhos mestiços. Diferentemente dafamília de minha mãe, meu pai advém de um núcleo familiar maior e diversificado emtermos de locais de nascimento e de residência, compreendendo as cidades de Descalvado(terra de minha avó paterna) Ribeirão Preto (terra de meu avô paterno), São Paulo eBertioga (locais de nascimento de primos e primas), locais que até hoje temos laçosfamiliares. Meu pai era o mais novo dos seus sete irmãos, era “filho temporão” como sedizia na época. Na realidade, ao completar 12 anos idade, ele parte de Sertãozinho paraSantos com a irmã mais velha, tia Guiomar,que, naquele momento, assumia a sua criaçãoe com qual morou até o dia de seu casamento com minha mãe.

    Em suma, essa foi uma condição que marcou profundamente a minha formação.

    O núcleo familiar, com o qual convivi, intensamente, morando junto até a minha entradana universidade, aos dezoito anos, nunca nos deixou (eu e meu irmão) desinformadosdesse pertencimento étnico-racial. E faziam questão de dizer que, embora eles tivessemapenas o curso primário, nós, eu e meu irmão, teríamos que quebrar essa lógica. Nósnunca trabalhamos. Pai, mãe e tia cumpriam essa função para que pudéssemos estudarem tempo integral O acesso à escola, como todos sabem, era difícil naquele momento,

     para a maioria da população brasileira e em especial para as crianças da população não- branca. Poucos negros conseguiam estudar. E a maioria que, por ventura, chegavam aníveis mais elevados de ensino, tinha que fatalmente trabalhar. Mas esse não foi o meucaso e nem o de meu irmão. O nosso núcleo familiar assumiu esse risco. Fato quedificilmente conseguimos esquecer.

    Isto posto, fica mais claro entender as estratégias que minha família adotou paraque esse desejo fosse cumprido, destacando-se o papel de minha mãe que capitaneou esse

     processo o tempo todo.

    Aos quatro anos de idade, fui encaminhado para um jardim da infância, ExternatoSanta Rita, escola privada, que era bem próximo de minha casa e de propriedade de umafreguesa do “salão de beleza” de minha mãe. Mais tarde compreendi que essa escolha seajustava às estratégias de minha mãe que, por ter que trabalhar o dia todo, precisava contar

    com a participação de minha avó. Sua escolha facilitou a entrada e a permanência minhae de meu irmão, no referido estabelecimento, e os cuidados de minha avó que nos levavae buscava todos os dias na escola. Essa rotina se modificou um pouco, quando mudamos

     para outro bairro da cidade de Santos e passamos a ser transportados pelo que, na época,se chamava de “perua escolar”. A marca dessa escola era a sua clientela. Enquadrava-se,na modernidade do momento escolar, que incluía classes mistas, meninos e meninas, commuitas atividades conjuntas. Entretanto, concentrava crianças de classe social bem maisabastada do que a nossa de trabalhadores diários. E ainda, na minha turma e na de meuirmão, éramos os únicos alunos negros, embora houvesse mais dois ou três estudantes

    com o mesmo perfil que o nosso, dispersos em outras turmas, éramos minoria esmagadoranaquele contexto.

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    Além dos três anos no jardim de infância, cursei as quatro séries do ensino primário no Externato Santa Rita, incluindo o quinto ano que na época era comum cursá-lo, pelo fato de que ele funcionava como uma espécie de preparação para os exames deadmissão no ensino ginasial. Em Santos como na maioria das cidades brasileiras, no finalde década de 1960, a passagem do primário para o ginasial não se fazia automaticamente.Era obrigatória a realização do exame de admissão. Disputavam-se vagas tanto nasescolas pública quanto nas da iniciativa privada. Essa passagem era um ritual aguardadocom muita ansiedade que fazia parte dos debates em família, entre os amigos e entre nósalunos. Como todos de minha geração eu vivi intensamente esse momento, como muitasalegrias, mas também como muitas aflições. Mas antes de memorizar a minha experiênciaginasial, incluo outro aspecto de minha formação que impacta até hoje minha na vida.

    Mais uma iniciativa de formação em função de um acaso que minha mãe utilizoumais uma de suas estratégias. Quando nos mudamos para a nova casa que meus pais

    haviam comprado, eu tinha seis anos de idade. O proprietário que a vendeu disse a meus pais que estava com dificuldade de transportar um piano que fora de sua filha falecida.Perguntou se meus pais tinham interesse em adquiri-lo por um preço razoável. Minha mãenão titubeou. Não só aceitou como convenceu meu pai a comprá-lo.

    Posteriormente descobrimos sua intenção. Ela fizera conhecimento, em seu salãode beleza, com uma freguesa que era professora de piano e ainda tinha formação emLetras, especialista em língua inglesa e era cinéfila igual minha mãe e meu pai. Eu as vi,várias vezes conversando, sobre outra paixão que ambas compartilhavam que era o jazz,mas precisamente, os blues dos quais minha mãe tinha vários discos da época. Mais uma

    vez, ela conseguiu estrategicamente conciliar a possibilidade de termos outra formaçãoque não se restringisse apenas a que era oferecida pela escola regular com a chance de

     poder realizá-la a alguns quarteirões de nossa casa, pois a referida professora, IaniFigueiredo Viegas, morava no mesmo bairro, em uma rua próxima da nossa.

    studei com essa professora durante quatro anos. Basicamente, fui introduzido, aomundo musical para estudar esse tipo de linguagem, por meio da sua competência ededicação. A sua dupla formação em música e língua inglesa me levou inicialmente a meaproximar não apenas dos compositores de música clássica para piano, mas também dosdas canções em língua inglesa que faziam sucesso no Brasil nos anos de 1960 e os quais

    minha mãe tanto adorava. Mas ao final desses quatro anos, a própria professora Ianientendeu que eu deveria me preparar para entrar, no Conservatório, e que, naquelemomento, as nossas atividades encerravam. Em contato com minha mãe ela me indicavaoutra professora que ela havia conhecido ao longo de sua formação. Tratava-se de RositaAlvarez Quintana, musicista erudita, de origem espanhola, criada e educada no Brasil,grande conhecedora dos românticos de Castela, como Manuel de Falla, Enrique Granadose Isaac Albeniz e, ainda, era, na época, conhecida, nos Conservatórios de Santos, comouma especialista da obra Johann Sebastian Bach. Era também brilhante professora dadisciplina de Harmonia por meio da qual ela introduzia seus estudantes na área da

    composição musical

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    Minha mãe não só aceitou a sugestão como me levou à casa da referida professora,onde conversamos e acertamos todas as condições para a continuidade de meus estudosde música. Iniciei com ela as aulas em sua casa. Fiz exame de admissão e fui aprovadono Conservatório Carlos Gomes, onde a professora Rosita Alvarez Quintana lecionavanão só piano como também a disciplina Análise de Harmonia. Eu me formei em Pianosob sua orientação em 1969 (cf. diploma em anexo) e em 1970, com o patrocínio de uma

     bolsa de estudo adquirida em um concurso estadual de piano, realizado pela Secretaria deCultura do Estado São Paulo, fiz um aperfeiçoamento de piano com o maestro João deSouza Lima que, na época, era professor visitante no Conservatório Carlos Gomes (cf.diploma em anexo).

    Com a professora Rosita consegui aprender a escutar dentro de mim os sons antesde executá-los. Construir todos os acordes, tons e semitons. Antes das audições e dosconcertos, ela me dizia bem baixinho, próximo de meu, ouvido: “não se esqueça: saber

    contar é sabe tocar, conte os compassos do seu coração”. Rosita desvendava nas suasaulas os mistérios do tempo musical, não apenas os assinalados matematicamente, paradistinguir a temporalidade da colcheia e da semicolcheia, da fusa e da semifusa dentro deum mesmo compasso quaternário, mas sobre tudo no meu respirar. Ela dirigia eu e outrocolega também seu aluno, meu saudoso amigo Luiz Sérgio D`Allava de Oliveira, peças

     para dois pianos. Rosita nos coordenava pelo ritmo das nossas respirações. Era genial.

    Estudei piano e fiz o ginásio, ao mesmo tempo. Ingressei no Conservatório, eu fuiaprovado no exame de admissão do Colégio Tarquínio Silva, onde meu irmão já estudavahá três anos. Era também uma escola da iniciativa privada. As escolhas que orientavam

    meus pais, ao decidirem para qual escola nos encaminhar, estavam ligadas muita mais ao prestígio que essas escolas tinham no imaginário social da cidade do que outra coisa.Tarquínio Silva era uma escola que concentrava, na sua imensa maioria, estudantes filhosde profissionais liberais, em geral médicos, advogados e engenheiros. Ou seja, eu e meuirmão éramos, em termos de pertencimento étnico-racial, minoria quase absoluta. Masem termos socioeconômicos havia uma variabilidade média que se aproximava à nossacondição. Famílias com pais e mães no mercado de trabalho. Na minha sala de aula dos30 alunos matriculados, eu e mais dois colegas, éramos os não-brancos, e apenas um denós era filho de pai com ensino superior, um farmacêutico-bioquímico. Mas tínhamos,

    entretanto, vários colegas de origem sírio-libanesa, judeus e nisseis. Na sala de meuirmão, ele era o único negro, mas tinha vários colegas de origem sírio-libanesa e italiana.Frequentamos nessa escola o ginásio e o científico.

     No segundo ano ginasial, começamos a ter aulas de francês, com a professoraMaria das Dores, muito dedicada. Eram duas aulas por semana que me atraíam porqueela introduzia canções francesas que permitiam que eu as articulasse com as aulas de

     piano. Ao ver meu entusiasmo, perguntou-me se eu tinha interesse de ter uma bolsa paraestudar francês. Disse-lhe que sim e dois dias depois estava matriculado na AliançaFrancesa e durante seis anos frequentei o Cours de la Langue et de la Civilisation

     Française, a única exigência que eu tinha para não perder a bolsa era a de não serreprovado. Como isso nunca ocorreu fiquei até o final do curso como bolsista.

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    Ao longo de meu curso ginasial tive muita dificuldade na disciplina dematemática. Peguei recuperação no primeiro e no terceiro anos. Tive que ter professora

     particular nas férias. Entretanto, no final, fui aprovado em todos os exames do quarto anoginasial e passei para o curso científico. Naquela ocasião, esta modalidade era divididaem dois blocos: científico de medicina e científico de engenharia. Eu cursei o segundodeles não porque eu quisesse estudar em área associada a Ciências Exatas. Não tinhanenhum interesse em ingressar em cursos desta natureza. Quis ir para o científico deengenharia porque o meu grupo de oito colegas do ginásio a quem eu era ligado queriamser engenheiros. Desenvolvemos uma amizade intensa, que dura até hoje. Aliás, todoseles, ao finalizarem o científico, prestaram o vestibular e entraram para um dos cursos deEngenharia, uns foram para mecânica, outros para civil, e outros para área petroquímicae da marinha. Lembrando que Santos, além de ter, naquela época o maior porto deexportação da América latina tinha (e tem) ao seu lado a cidade com o maior suporte

     petrolífero do país, Cubatão. Isso funcionava como o maior atrativo para todos jovens da

    minha geração que pretendiam cursar engenharia. Não era o meu caso. Eu vislumbravaas Ciências Sociais. Nesse período de científico, fui atraído pelas aulas de portuguêscentradas exclusivamente em literatura. A professora Sara Rosa Curi dividiu a disciplinasem dois módulos, no primeiro e até a metade do segundo científico líamos autores

     portugueses. Dessa metade para o final do terceiro ano líamos autores brasileiros. Nessaárea específica eu me sentia seguro. Meus pais eram leitores e incentivavam a leitura.Tínhamos biblioteca em casa. Na época havia uma livraria famosa no Rio de Janeiro queimprimia livros de autores clássicos da literatura brasileira , mas também de história, trata-se da Livraria Saraiva, hoje conhecida como editora. Meu pai assinava a coleção de livros

     produzida por eles. Era um ritual que eu e meu irmão acompanhávamos mensalmente. Olivro era entregue em casa. Na época não tínhamos televisão. A atividade antes de dormirde meu pai e de minha mãe era leitura à noite. Meu pai era sempre o primeiro leitor donovo livro que chegava. Mas, às vezes, ele dividia com minha mãe essa primazia. Ela,

     por sua vez, comprava livros por sua conta, em geral, estimulados no debate com suasfreguesas em seu salão de beleza. Jorge Amado ocupava o primeiro lugar na galeria dosseus favoritos. Lia-o com entusiasmo e com muitos risos no meio da leitura. Eu e meuirmão ficávamos curiosos para saber do que tanto ela ria ao ler as obras de Amado.

     Na realidade, trazendo hoje à memória essas imagens, vejo que eu não tinha

    consciência do quanto esse ritual e material me ajudavam diretamente com as aulas deliteratura com professora Sara Rosa. Na realidade a maior nota que eu tive no vestibularfoi na prova que, na ocasião, tinham questões de literatura, lembrando que eu nuncafrequentei cursinhos preparatórios para entrar para universidade. Apesar da não definiçãoimediata para qual curso me dirigir, diferentemente dos meus colegas decidi ir para ocurso de ciências sociais.

    III-  As Ciências Sociais e meu contexto sócio histórico

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     Não foi uma escolha fácil. O exemplo que tinha em minha família de ingressantes emcurso superior era meu irmão que já estava cursando Farmácia e Bioquímica na USP deAraraquara e um primo, do lado paterno, Henrique Carlos Gonçalves, que ingressara naFaculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo. Na história das nossas famílias tantodo lado paterno quanto materno, fomos nós três os primeiros descendentes a entrar emum curso superior, isso se deu no final da década de 1960. Não preciso dizer que aexpectativas dos nossos parentes eram enormes, eram motivos de conversas coletivastodas as vezes que nos encontrávamos em festas de família.

    Eu estava muito balançado com a minha formação em música. Terminava o cursode piano no mesmo ano em que terminava o científico de engenharia. Naquele momento,eu tinha uma afeição muito maior para mundo da arte, mas muitas incertezas quanto a suaconcretude. Cogitava prestar concurso na área da regência musical, mas não me sentiamuito preparado para enfrentar essa etapa com perspectiva para o futuro.

    Em compensação, vários eventos e acontecimentos, ocorridos na cidade deSantos, me mobilizavam, profundamente, naquele momento, 1969. Com a ditaduramilitar, Santos sofre intervenção, com carros do exército nas ruas, tendo de voltar a pécom meu irmão da escola porque os transportes públicos foram interditados Tínhamosnotícias que os trabalhadores das docas eram fortemente reprimidos. Isto teve impactodireto na minha família, uma vez que meu pai, como dito acima, era funcionário daassociação dos doqueiros, nesta época. Não só ele se sentia ameaçado como todos os seusamigos e companheiros que trabalhavam juntos passavam pela mesma angústia(ALEXANDRINO & MARQUES DA SILVA, 1988)3..

    A cidade perde sua autonomia. Esmeraldo Tarquínio, advogado, o primeiro prefeito negro eleito, em Santos foi cassado em 1968 pelo regime militar, dois dias apóstomar posse. Foi impedido de assumir o cargo e detido com outros políticos militantesem um navio prisão batizado com o nome de “Raul Soares” (GATTO, 1965,4MELO,19955). Além de ser amigo de meu pai que era filiado ao mesmo partido que ele,Esmeraldo Tarquínio estimulava minha geração a nos associarmos para combater adiscriminação racial no país6. Era um apologista da educação. Para aquele bacharel em

    3 Esses dois autores recuperam vários documentos que retomam os efeitos do golpe militarem Santos  ALEXANDRINO, Carlos Mauri; MARQUES DA SILVA, Ricardo. Sombras sobreSantos, Secretaria Municipal de Cultura, 1988 4  A mais fiel descrição das condições vividas pelos presos no Raul Soares está no livro: NavioPrisão: a outra face da “revolução” , de Nelson Gatto. Publicado em 1965, foi imediatamenteretirado das livrarias pelos militares. Mas é possível lê-lo na íntegra através da página:

    http://www.novomilenio.inf.br . 5 MELO, Lídia Maria de. Raul Soares um navio tatuado em nós. São Paulo: EditoraPioneira, 1995 6 Esmeraldo Tarquínio foi pessoalmente preso pelo Comandante do exército Antonio ErasmosDias encarregado pelo alto comandante da ditadura militar, o general Arthur da Costa e Silva ,para ocupar integralmente a cidade de Santos e prender todos os comunistas que pretendiamtomar o poder. Em um de seus arroubos delirantemente nacionalista, Dias declara para a

    imprensa que “Em Santos o esquerdismo adquiriu uma força potencial que não existia no Brasilinteiro. Durante um ano, não houve um dia em que não tinha uma greve. A Câmara de Santosera dominada pelos comunistas, o prefeito de Santos era ligado aos comunistas, toda a

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    Direito, era por meio de estudos e da instrução escolar que os negros chegariam aconquistar mais direitos no Brasil. Foi nesse período com apoio de meu pai e de algunsde seus amigos que criamos uma associação que congregava majoritariamente jovensnegros e profissionais santistas, de ambos os sexos, para discutir questões de desigualdaderacial no Brasil. A associação constituiu-se, assim, como um “clube recreativo”, aliás, era

    a única denominação possível naquela época repressiva. Legalmente, no papel, ele foicriado para promover festas e comemorações das famílias negras que o compunham.Cumprindo o ritual estatutário, ele foi batizado e registrado com o nome de “Itamaraty”.Hoje podemos falar sem problemas que se tratava de um “clube negro” no sentido claroque esse termo tem hoje para a militância afro-brasileira. Foi ali que fortaleci laços deamizade e de irmandade com Luiz Silva, o Cuti, escritor negro brasileiro de altíssimaqualidade, com uma extraordinária criação imaginativa de contos e romances tratando,entre outros temas, da questão racial em nosso país. Fomos criados juntos, no mesmo

     bairro, só não estudamos na mesma escola, mas compartilhamos os mesmos ideais. Esseseventos e mais os exemplos de meu pai na sua militância, as conexões com o Cuti e anossa relação com o mundo político naquele momento me conduziram às Ciências

    Sociais.

    Quando resolvi por esse caminho, praticamente as chances de concorrer aovestibular já estavam praticamente finalizadas. Pensei de imediato tentar nas CiênciasSociais da Universidade de São Paulo. Queria ajudar meus pais a não precisarem pagarmais escola para mim. Embora eles nunca reclamassem sobre isso e sempre se dispuserama me apoiar caso eu precisasse. Eu sabia que poderia mudar o rumo das coisas que a minhavida escolar tinha tomado até aquele momento, mas teria que aguardar mais um ano paraconcorrer ao vestibular em uma universidade pública, porque para aquele ano já não davamais.

    Conversando com meu pai, vi que ele tinha uma posição contrária à minha. E

    como era de se esperar, ele era reforçado por minha mãe, que achava que a espera a qualeu me dispunha fazer era perda de tempo. Insistiam para que eu procurasse uma saída,nem que fosse por um ano, e depois, se eu não estivesse satisfeito que eu tentasse umauniversidade pública. Foi aí que consultando editais de concurso divulgados pelaimprensa comecei a buscar informações das possibilidades que ainda restavam para essanova empreitada.

    Duas chances estavam ainda em aberto, no ABC paulista. Santo André e SãoCaetano do Sul. Aquela que eu consegui maiores informações foi a de um curso queacabava de ser criado nesse último polo industrial. Tratava-se do Instituto de EnsinoSuperior de São Caetano do Sul7criado pela gestão municipal em uma região, talvez, mais

    potencialidade política de Santos estava nas mãos do que eu costumo chamar de peleguismosindical comunista. Essa força vinha do sindicalismo. Aqui, tinha um tal de Fórum Sindical deDebates que era uma espécie de soviete, que para mim foi o primeiro soviete que tentaramimplantar no Brasil, para a revolução socialista. Eles paravam Santos quando queriam.” (Coronel

    Erasmo Dias). O coronel fazia esse tipo de declaração mesmo sabendo que o prefeito que elecassou e aprisionou não tinha nada a ver com o partido comunista, era filiado ao partidoMovimento Trabalhista Renovador (MTR), uma das cisões do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB)7 Aqui se refere ao Instituto Municipal de Ensino Superior de São Caetano do Sul ,cuja memória tem sidorecuperada pela historiadora Priscila F. Perazzo coordenadora do Grupo de Pesquisa Memórias do ABC:Memória e Imaginário em novos contextos da Comunicação/CNPq/UMSCS/2011. Cf. PERAZZO, P. F &

    BARBOSA, D. R. Memória e História do Instituto Municipal de Ensino Superior de São Caetano do Sul(1968-2005), disponível em http://www.uscs.edu.br/simposio_congresso/congressoic/trabalhos.php, 13/08/2015

    http://www.uscs.edu.br/simposio_congresso/congressoic/trabalhos.phphttp://www.uscs.edu.br/simposio_congresso/congressoic/trabalhos.phphttp://www.uscs.edu.br/simposio_congresso/congressoic/trabalhos.php

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    rica do país, naquele momento. Três cursos apareciam concomitantemente:Administração de Empresa, Ciências Econômicas e Ciências Sociais.

    Para introduzir a minha chegada ao Instituto de Ensino Superior de São Caetanodo Sul, em 1969, recorri a documentos, anotações, a cartas de ex-colegas daquela épocaque ainda as guardo. Mas só consegui juntar alguns nós que estavam desatados recorrendo

    a trabalhos que retomam a história e as imagens do Instituto que hoje é uma Universidade.Um dos trabalhos que me orientou para dar sentido às minhas memórias foi uma pesquisarealizada por Perazzo& Barbosa (2011) que cuidadosamente articularam vários registrosimportantes que me ajudaram a me ver naquele espaço, quarenta anos atrás. Que sensaçãoextraordinária!

    O que, para mim e meus familiares, era intuição na época em que eu hesitava sobrefazer ou não o vestibular naquela instituição, ficou mais claro ao ler o resultado da históriaoral que Perazzo & Barbosa (op. cit.) resgataram a partir dos idealizadores do referidoInstituto. Lembrando que as autoras recuperam a memória desses sujeitos (ex-gestores,ex-docentes e ex-discentes), cruzando-as com documentos norteadores nos quais sefirmavam convênios e compromissos, e ainda se explicitavam quais eram as ambições

    dos seus idealizadores. Fica evidente que era um projeto político que “fazia parte do projeto nacional da época de ampliar o ensino superior no Brasil” (idem, p 12). Mas eratambém, segundo os dados apresentados pelas referidas autoras, “um projeto local deeducação na cidade de São Caetano do Sul” (idem). Mas ambos os projetos estavamconectados e “voltados para o desenvolvimento econômico pautado na industrialização

     baseada no capital estrangeiro” (ibidem).Os dados coletados apresentavam um claro diagnóstico do que acontecia na região

    do ABC paulista naquele momento histórico da ditadura militar. “O crescimentoindustrial e a entrada maciça de capital estrangeiro na região” (idem) foram os grandesdesencadeadores do desenvolvimento do “ensino superior em São Caetano do Sul”(ibidem). Diga-se de passagem, o município de Santo André, como mostrarei mais àfrente, foi em direção muito semelhante, embora com parceiros diferentes. Cresciaenormemente a imigração de trabalhadores de outras partes do Brasil para a região deABC paulista. Havia muito incentivo para que isso ocorresse, com a participação ativa doempresariado.

    A gestão municipal, diante do alto percentual de migração de pessoas em buscade emprego, teve de tomar uma posição em relação ao grande crescimento populacionalque impactou não só a dinâmica da rotina urbana daquelas cidades que correspondiamum enorme complexo industrial. Esse crescimento populacional e diferenciado trouxe,também, “mudanças culturais consideráveis que levou à elaboração de propostas de

     políticas de investimentos na área educacional, incluindo, formas progressivas de

    qualificação e especialização” (idem).  Naquele momento, a região demandava mão-de-obra especializada com formação profissional. Essa era uma demanda que partia, sobretudo, do empresariado industrial.Como se pode ver, São Caetano do Sul, no final dos anos de 1960, muito antes da Lei deDiretrizes e bases da Educação de 1996 e da Lei da Pareceria Público-Privado de 2004,

     já introduzia, ainda que, embrionariamente, uma tentativa de articular o poder público emundo empresarial em projetos de formação educacional para atuar naquele contexto(SGUISSARDI, LUCCHESI, SAMPAIO).

    Algo importante a ser lembrado: qual era o perfil dos discentes naquele momento? No memorial de Perazzo & Barbosa, no período inicial, em que vigoravam apenas os trêscursos Administração de Empresa, Ciências Econômicas e Ciências Sociais, o perfil dos

    discentes tinha um viés de gênero. Quase não eram vistas mulheres nas salas. Os homenseram maioria, pelo menos nos cursos de Administração e de Economia. Quase todos eram

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    casados e um número muito grande deles já possuía empregos nas indústrias da região e buscavam declaradamente no curso uma especialização. Havia um percentual bastantesignificativo de estudantes que tinham bolsas pagas pelas indústrias nas quaistrabalhavam. Este acordo, entre os empresários e o poder público municipal, fortalecia o

     projeto político pedagógico da comissão gestora municipal, permitindo, inclusive, não só

    as condições infraestruturais necessárias para o bom funcionamento do curso em termosde instalações e material didático pedagógico, bem com na composição de seu corpodocente (PERAZZO e BARBOSA, op. cit. p. 23-4).

    A maioria dos professores, sobretudo dos cursos de Administração de Empresas ede Economia, era residente no ABC paulista e estavam envolvidos ou em projetos

     políticos de São Caetano do Sul ou em projetos empresariais nas grandes empresasindustriais da região (PERAZZO e BARBOSA, idem). Essa forma de inserção do corpodocente facilitava e aproximava profundamente os estudantes da área de estágio,concedendo a eles uma situação altamente privilegiada.

    Já o curso de Ciências Políticas e Sociais se deu com outra configuração. Estecontava não só com o apoio, mas, também, com a assessoria de um pool de professores

    que estavam ligados à Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo8. Alguns delescompunham o corpo docente lecionando diferentes disciplinas. Por exemplo, CelsoSebastião de Souza além de professor de Sociologia era vice-diretor do próprio Institutode Ensino Superior. Luiz Osiris de Ciência Política coordenava seminários internacionaiscom especialistas europeus sobre questões ambientais. O professor chileno deMetodologia de Pesquisa Alfonso Trujillo Ferrari coordenava projetos de pesquisa para

     prefeituras da região metropolitana de São Paulo, com intuito de avaliar o perfil deimigrantes recém-chegados. Havia também no corpo docente do Curso de CiênciasPoliticas e Sociais, professores que tinham forte ligação com o mundo empresarial, comofoi caso de professor Orestes Gonçalves especialista na área da Economia e, na época,tinha um cargo executivo na prefeitura e era o profissional que fazia a interlocução comas grandes empresas da região.

    Dadas áreas escolhidas, Perazzo & Barbosa interrogaram os ex-alunos que foramdas turmas iniciais, para saber o que os atraiam para fazer aquele curso naquele momento.

     Na compreensão das autoras, os que passaram pelo curso de Administração de Empresasressaltaram que as disciplinas e a orientação dos professores estavam voltadas para odesenvolvimento industrial e, consequentemente, para a introdução de estratégias de

     planejamento da gestão empresarial. Já os ex-alunos do curso de Economia enfatizavama teoria desenvolvimentista predominante naquele momento histórico em torno do mitodo “Milagre Econômico brasileiro”. As disciplinas, segundo eles, giravam em torno deestudos pautados nas estratégias do crescimento econômico a qualquer custo. Por fim, os

    ex-estudantes de Ciências Políticas e Sociais, pelo que pude entender da análise das pesquisadoras, explicitaram uma série de argumentos que ressaltavam o clima de tensão política do momento histórico que se refletia dentro do Instituto envolvendo diretamenteo debate na área acadêmica. Segundo elas, os entrevistados sintetizavam a suaslembranças acerca do que ocorria no curso enfatizando que “era a instauração da ditaduramilitar que despertava o interesse de pessoas politizadas pelas Ciências Sociais” (idem,

     p. 22). Em suma, parece que os formados em Ciências Políticas e Sociais, no períodoinicial do IMESSC, não associavam a sua formação diretamente ao que acontecia emtermos socioculturais a partir do boom migratório de São Caetano do Sul, mas sim àrepressão política pela qual passava o país naquele momento histórico.

    8 Vale lembrar que a Escola Livre de Sociologia e Política e São Paulo nasce

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    Como estudante de Ciências Políticas e Sociais que fui naquela época, quandorevejo registros desse momento da minha formação intelectual não dá para não trazer àtona as tensões que vivíamos constantemente, no ambiente acadêmico, dado ao grau derepressão à liberdade de expressão e ao diálogo. Tudo era controlado, o que dizer e comodizer. Mas como mostrarei a seguir essas tensões foram postas, a meu ver, em evidência,

    ao longo de todo o processo de minha formação. Ficou claro que o mundo acadêmico nãoé e nunca foi neutro. A crença na neutralidade científica embora tenha sido tratada erequerida por alguns docentes em algumas disciplinas, ela foi questionada, por outros

     professores e isto é o que mais fascinou nessa fase da minha formação.Recuperando, neste memorial, um pouco da história da implantação desse curso

    do qual eu fiz parte na sua segunda turma, consigo identificar a direção das disputasteóricas do mundo acadêmico que alguns clássicos da sociologia já haviam identificadoem suas produções. Aliás, a obra de um deles sobre a qual falarei um pouco mais à frentefoi objeto da minha monografia de graduação, Karl Mannheim. A escolha desse autor

     para o trabalho final não foi aleatória e sim orientada. Celso Sebastião de Souza, professorSociologia III e IV teve um papel muito importante nessa etapa de minha formação.

    IV –  Na Sala de Aula: embates, conscientizações e dissensos

    Fiz parte da segunda turma do curso de Ciências Políticas e Sociais. Minha sala

    tinha 40 alunos. Tal como o correu em toda minha trajetória escolar anterior, eu era o

    único estudante negro na sala de aula. Entretanto, diferentemente dos outros cursos, a

     presença de mulheres na turma era quase 50%. Revendo fotos da época, dá para

    identificar 15% dos meus colegas eram nisseis. Aliás, em meu grupo de estudo, de 8

    estudantes, eu era o único homem e duas colegas eram nisseis.

    Em termos de formação, gostaria de destacar alguns aspectos que marcaram minha

    formação como sociólogo. Estes aspectos estão relacionados com todas as disciplinas que

    cursei. Lendo hoje essa minha experiência com essa longa distância de tempo, mais de

    quarenta anos depois, vejo o quanto de pedaços desse universo encontram-se ainda dentro

    de mim. Só que agora com muito mais leitura crítica sobre o meu próprio aprendizado e

    distanciado daquele contexto repleto de conflitos dos quais participei intensamente é que

     posso me dar conta do quanto a gestão do Instituto, com base em seu projeto político

    educacional, construiu coerentemente sua proposta curricular.

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    Algumas disciplinas, seja por seu conteúdo, seja pelo desempenho do docente,

    atingiam um alto grau de sensibilidade com as questões sociais, políticas e econômicas

    que vivíamos no país no período militar.

     Naquele momento, o curso de Ciências Políticas e Sociais era subdivido em 4

    anos. Assim no primeiro, foram oferecidas disciplinas que tinham como objetivo

    disseminar um tipo de conteúdo geral formativo pavimentando o terreno que seria trilhado

    nos anos posteriores. Como disciplina introdutória, por exemplo, tivemos aulas de

    história, com recorte mais político do que econômico e social e também de geografia com

    recortes sociais e demográficos. E foi nesse momento, também, que foi introduzida a

    disciplina de Economia, tendo à frente o professor Orestes Gonçalves, que se apresentou

    com uma equipe de auxiliares de pesquisa, com a qual ele dividia sua apresentação em

    sala de aula.

    Ao refazer minha memória de suas aulas, tive a possibilidade de recuperar,sobretudo, os livros que foram adotados por ele e as ênfases que eu havia assinalado emalgumas passagens desses livros, a partir das discussões em sua aula. Professor Orestesdeclarava recorrentemente sua tendência keynesiana e nos conduzia à leitura densa daobra de Paul Anthony Samuelson, “Fundamentos da Análise Econômica”, tendo comosuporte seus auxiliares de pesquisa ao apresentarem exemplos da aplicação de seusteoremas.

    Antes de introduzir nas aulas a ideia da intervenção do Estado na economia, ele buscava desconstruir qualquer ideia de que o equilíbrio da Economia no mundo se fariacom a intervenção de doutrinas políticas. Defendia a ideia de que teríamos muito aaprender com a Matemática e também com Física e a Termodinâmica, pois essas eram asciências que não fizeram outra coisa a não ser a buscar entender o equilíbrio do universo.Aliás, eram essas disciplinas que, segundo o prof. Orestes, nos fornecem os instrumentosde medição das várias técnicas que permitem equalizar o aumento da demanda, o plenoemprego e o controle da inflação. Entre as anotações registradas, por mim, na capa dolivro, há um exemplo que, se não me engano, foi apresentado por um de seus auxiliares

    no qual ele queria mostrar o quanto as “técnicas matemáticas” poderiam ajudar a equalizaros preços de fatores de produção que ocorrem no comércio internacional entre dois paísescom desenvolvimentos desiguais. Por exemplo, um rico e outro pobre. Se não houver umaforma de equilibrar esse processo, estar-se-iam produzindo diferenciais muito altos desalários entre os dois países Mas, com ferramentas matemáticas seria possível mostrarsob que condições esses altos diferenciais de salários poderiam ser zerados. Este é apenasum dos exemplos que marcaram os nossos debates em sala de aula. Claro que haviamuitas discussões. Naquele momento, eu aprendia um conteúdo que pela primeira vez euenfrentava como algo a ser decifrado.

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    Dada o fervor dos debates, eu entendia pelas objeções de alguns colegas quecertamente havia outras posições que se contrapunham a posição do professor. Este, porsua vez, expressava em sala de aula que, embora entendesse as críticas que o mundoempresarial estava fazendo naquele momento contra as intervenções no mercadocomercial, ele criticava toda a teoria do laissez-faire et laissez passer pelo fato de que ela,no seu entendimento, produzia inflação e diferenciais muito altos de salários. Mas elecriticava também a intervenção absoluta do Estado na Economia, fosse essa de tendênciade direita ou de esquerda.

    Analisando, agora em 2015,os conteúdos e as estratégias que o professor OrestesGonçalves usava, no início da década de 1970, com a segunda turma de estudantes deCiências Políticas e Sociais (da qual eu fazia parte)ao ensinar fundamentos da Economia,não dá para negligenciar as escolhas teóricas e práticas de suas aulas. A única intervençãoque suas teorias concebiam teria de passar forçosamente pela ciência. Um mercado para

    ser efetivo precisaria de uma regulamentação.Hoje não tenho dúvida de que o professor Oreste fazia uma leitura do que estava

    acontecendo na Economia brasileira e em especial na região do ABC paulista. A explosãodemográfica com a chegada de imigrantes associada aos muitos processos,acompanhados por flutuações aleatórias, o levava na sua condição de docente e deassessor da gestão pública regional a propor nos cursos de formação, como, por exemplo,os que estavam sendo oferecidos pelo Instituto, modelos para solucionar ou mais

     precisamente para controlar as referidas flutuações. Vem daí toda orientação dada nocurso com base em técnicas matemáticas. Levei muito tempo para entender as razões

     porque eu precisaria, por exemplo, conhecer, na minha formação de cientista social, atécnica de “OrdinaryLeastSquares” (Quadrados Mínimos Ordinários), termo que o nosso

     professor nunca o traduzia para a nossa língua. Como esta, muitas outras técnicas foramtransmitidas em suas aulas, sempre com exemplos concretos, com objetivo de que essastécnicas deveriam ser visualizadas nas suas respectivas aplicações.

    Hoje, nos fica claro, que o que se pretendia naquele momento era trabalhar comos estudantes das Ciências Políticas e Sociais do Instituto, a ideia de que, no mundocapitalista industrial em transformação e no Brasil em desenvolvimento, havia muitas“teorias rivais”, disputando as tomadas de decisão seja no âmbito empresarial, seja no da

    gestão pública. Avaliando hoje à distância, vejo que a proposta para nossa formação eraa de que, enquanto cientistas políticos e sociais deveríamos nos servir de técnicaseconométricas e não de argumentos parciais (na época chamados de ideológicos), paradecidir qual das teorias em disputa responderia melhor os problemas econômicos queafetassem diretamente a relação entre a crescente entrada de trabalhadores imigrantes nasindústrias e o aumento da demanda de consumo que impactava a região do ABC paulistanaquele momento histórico. Foi assim uma disciplina introdutória que nos colocavadentro das análises de regressão logística, das técnicas multifatoriais e assim por diante.

    Em função dessa parcialidade teórica, um grupo, eu mais nove colegas decidimos buscar outra bibliografia sobre a análise econômica. Foi nessa direção que chegamos às

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    obras de Karl Marx, Friedrich Engels. György Lukács e outros. Inspirados nessas obras eem outras cuja crítica ao modelo econômico dominante era aplicada aos contextosregionais em especial na no latino-americano, iniciávamos uma formação paralela, algoque era muito comum com estudantes dos cursos de Ciências Sociais na época, visto aforte censura a determinados autores e aos debates em torno de suas obras nas salas deaula9 

    Outro ponto que entendo como marcante na minha formação e, por essa razão,trago para esse memorial, veio da contribuição do professor de Metodologia de Pesquisa,Alfonso Trujillo Ferrari10, chileno de origem. Tivemos aula com ele durante dois anos.Tal como o professor Orestes Gonçalves, ele tinha também apoio de auxiliares, que eramseus orientandos na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Sobre sua formação emSociologia, o professor Trujillo Ferrari não deixava dúvida da influência que recebia do

     pensamento sociológico de Robert King Merton em seus ensinamentos metodológicos.

    Afastava-se, assim, tanto da sociologia que cultivava sistemas abstratos no ponto de partida da investigação, quanto do modelo sociológico que partia, exclusivamente, dedados empíricos e sensoriais. A articulação entre essas duas dimensões (teoria e empiria)era marcante em todas as suas aulas.

    Embora as articulasse, Trujillo Ferrari enfatizava as duas dimensões em suasaulas. Tratava a teoria na pesquisa de forma muito especial, no fundo, ele seguiaorientações de alguns clássicos da epistemologia.

    Sem dúvida posso afirmar, depois de todos esses anos passados, sem titubear, que

    foi, com ele, professor Trujillo (era assim que todos nós o chamávamos lá no Instituto),que eu e minha turma aprendemos a não tratar a teoria científica como uma meraespeculação.

     Não havia (e continua não havendo) como estudar Sociologia sem estudar teoriassociológicas. O curso tinha uma grande carga horária de conteúdos teóricos. Isto

    1.  9 Em geral, uma grande parte dos estudos sobre a repressão aos cursos deCiências Sociais na era da ditadura militar ficou centrada no que acontecia nasgrandes universidades estaduais e federais, em geral cos os cursos que e

    localizavam nas capitais. Mas, como mostram estudos mais recentes, talprocedimento foi muito mais difuso do que se imagina. No interior de São dePaulo, houve inúmeros registros que hora começam a serem revelados. Porexemplo, Maria Aparecida B. Amorim (2009) analisa a repressão em umaFaculdade de São José do Rio Preto. Ainda sobre esse tema cf o trabalho deRodrigo Patto Sá Motta (2008)

    2. 10 Alfonso Trujillo Ferrari foi durante muito tempo um professore autor de obras de metodologia depesquisa prestigiado. Para se ter uma ideia de seu papel na teoria da metodologia científica, há textosde prestigiosos metodologistas que escreveram obras sobre o método na pesquisa científica com basenos conceitos de Trujillo Ferarri. Um exemplo dessa relação é Eva Maria Lakatos e Marina de Andrade

    Marconi. Fundamentos de Metodologia Científica, Vol1, São Paulo: Editora Atlas, 1985 Outroespecialista da área Antonio Carlos Gil, que atuou como assistente de pesquisa de Trujillo Ferrari, seguecom muita precisão a teoria dos métodos de Trujillo. Cf. GIL, A. C.

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     provocava uma clara distinção com os dois outros cursos que ocorriam no Instituto deEnsino Superior de São Caetano do Sul, naquele momento. Eram cursos voltados às

     práticas, com um corpo docente quase que integralmente inserido no mercado de trabalhoempresarial do ABC paulista. Falavam de um lugar que era muito diferente dos docentesdas Ciências Políticas e Sociais.

     Não, por acaso, nos encontros com os colegas daqueles cursos, nos espaçoscoletivos do Instituto, éramos considerados teóricos demais. Quando emitíamos posiçõesem alguns debates que ocorriam nos auditórios, em conferências ou seminários conjuntos,éramos considerados especulativos, quando não ideólogos. Aliás, foi na minhaexperiência como estudante que os meus argumentos foram considerados como sendo“ideologia pura”. Essa era a forma que, na nossa época de graduação, nós, os estudantesde Ciências Sociais éramos tratados.

    Mas, hoje, devo agradecer esses imbróglios, pois foi por causa deles que euconsegui decidir qual seria o meu trabalho de conclusão de curso que fiz sob a orientaçãodo professor Celso Sebastião de Souza, de quem falarei mais a frente. Por ora, finalizo aexperiência com Trujillo Ferrari, pois por mais controversa que ela tenha sido, não foi àtoa que, quando, ao voltar anos depois de meu doutorado em Sociologia, decidi fazer, naUniversidade Federal de Minas Gerais concurso para professor de metodologia de

     pesquisa, função que desempenho até hoje, no momento em que me preparo paraconcorrer ao cargo de para professor titular da referida instituição.

    Trujillo Ferrari conseguiu nos mostrar, a partir de suas anotações realizadas em

    seus contatos com Robert King Merton, na Columbia University, que as teorias tinhamum papel extremamente importante no campo das Ciências Políticas e Sociais. Era, pormeio delas, que nós sociólogos conseguiríamos definir mais precisamente os conceitos aserem usados na pesquisa. Em sala de aula, o professor Trujillo nos ajudava ver como osícones da Sociologia estabeleciam, por meio das teorias, sistemas conceituais. Trujillonos mostrava, em aula, como as teorias nos ajudavam a identificar lacunas noconhecimento. Era assim que aprendíamos com ele que nunca as teorias eram absolutas.Sempre encontrávamos aspectos da realidade ou dimensões do fenômeno que ela nãoexplicava, ficava de fora. E isto acontecia, seja porque não suspeitávamos que algunsfenômenos poderiam estar interferindo, na nossa realidade, seja porque não tínhamos

    ainda um instrumento metodológico capaz de captar esses fenômenos. Este tipo deausência instrumental será identificado mais tarde por Trujillo Ferrari como sendolacunas metodológicas. Talvez seja por isso que, segundo ele, tenham existido muitas

     pesquisas para testar instrumentos de coleta de dados que captassem mais precisamentedetalhes dos fenômenos estudados uma vez que os instrumentos usados até o momentonão conseguiam captá-los.

    Levando-nos a leituras aprofundadas da obra de Robert King Merton, o professorTrujillo conseguia nos fazer refletir sobre alguns aspectos da produção intelectual no

    mundo acadêmico que esclarecia aspectos da situação sócia histórica que quebrava alguns paradigmas sobre a teoria científica que predominava naquele momento em várias áreas

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    do conhecimento. Trujillo Ferarri sintetizava em suas aulas um amplo debate que ocorriano campo das ciências sociais que mostrava que as teorias não eram absolutas. Para aquele

     professor, no âmbito das Ciências Políticas e Sociais, as teorias deveriam ser classificadastal como Merton as definiu: “teorias de médio alcance”. O que isso significava?

    Com a teoria de “médio alcance”, Merton se opunha aos modelos sociológicosque pretendiam apreender as sociedades ou a vida social na sua totalidade. Essa era a

     pretensão dos métodos estruturalistas, seja na sua versão funcionalista ou na materialistahistórica. Pelo que podíamos entender naquele momento, Merton se opunha em grande

     parte à sociologia de Talcott Parsons, autor que estudamos na aula de Sociologia, comoveremos mais à frente. Por ora, basta destacar que a Metodologia de Pesquisa enquantoinstrumento de trabalho de sociólogos não passou em branco na minha formação, aocontrário, carreguei-a para todos os lugares que circulei intelectualmente.

    Gostaria, também, no presente memorial ,de falar um pouco da experiência quetive com o professor Luiz Osiris da Silva, e do impacto que a sua disciplina Teoria daCiência Política teve na minha turma, visto ser um tema que se apresentava de formacontroversa naquele exato momento histórico em que vivíamos uma ditadura militar. Oque se teria para estudar? O que teríamos que aprender sobre a ciência que rege o governodos homens sobre ou com os homens, sob a égide de um regime de exceção?

    Eu e os meus colegas não tínhamos dúvida de que estudar Ciências Políticas emum contexto em que a sociedade vivia em estado de exceção se constituía um verdadeirotour de force. Lembro-me como se fosse hoje que havia entre nós uma complexa

     perplexidade. Como estudar, por exemplo, a teoria dos partidos como expressão dossistemas políticos democráticos em um momento em que vivíamos um bipartidarismocastrador. Como se portaria o professor Luiz Osiris da Silva naquela difícil condição? Elese revelou desde o início um “gentleman” do mundo acadêmico. Competente, equilibradoe altamente culto. Tinha uma erudição admirável. Caçava como podia toda a produçãosobre teorias da ciência política de autores importantes ainda não traduzidos, na época noBrasil, mais para os quais ele estava muito “antenado”, acompanhando tudo que havia demais avançado sobre o tema. Conhecia partes dos ensaios de Norberto Bobbio sobre" Lateoriadelle formedi governonella storia delpensiero politico” apenas traduzido no Brasilna década de 1990. Aliás, naquele momento, ele introduzia trechos do pensamento de

    Bobbio para justificar suas escolhas na formulação da ementa da disciplina. Ficava claroo percurso que seria adotado nas aulas com professor Osiris.

    Para mim, tudo era novidade, seria a primeira vez que eu estaria lendo autoresclássicos da Filosofia Política e da Ciência Política. E ainda o que me estimulava era ofato de que entre eles a maioria era de origem francesa. Professor Osiris, aos poucos,mostrava o quanto a França, ou mais precisamente, os pensadores franceses buscavamdominar o debate da teoria política europeia colocando-se como supostos pioneiros sobreo referido assunto que evidentemente a história francesa teve papel fundamental, mas não

    era tão absoluta como se imaginava.

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    Com muita argúcia, o professor nos fez discutir passagens das Lições do Príncipede Maquiavel . Sinto necessidade de dizer que as aulas nunca se apartavam integralmentedos eventos que estávamos vivendo, no Brasil naquele momento. Mas o professor LuizOsiris buscava mostrar que, para entendê-los em profundidade, era preciso no mínimoconhecer onde se assentava a origem da teoria moderna da ciência política. Para o nosso

     professor, foi com Maquiavel que a reflexão sobre o tema da política saiu do campo dametafísica e foi para o campo da ação/da prática. A metáfora de um pensador dar aulas

     para um soberano era uma coisa não só difícil para se digerir além de provocar múltiplasinterpretações.

    Por exemplo, em suas aulas, aprendíamos analisar os embates que se travavamnaquele momento sobre as reformas que estavam conduzidas pelo regime militar.Professor Luiz Osiris, havia publicado um livro, 1963, dois anos antes do golpe militar,uma obra cujo título se interrogava: “O que são as Reformas de base?”11. Naquele

    momento ele analisava os confrontos que ocorriam, em nível das políticas partidárias quevisavam interferir nas decisões do poder executivo, na época, sob a liderança de JoãoGoulart, entorno das Reformas que eram consideradas importantes para dar concretudeao modelo desenvolvimentista em vigor na época.

    A obra deixa clara a existência de grupos, formados por especialistas, incluindointelectuais de esquerda, produzindo todo o esboço doutrinário com vista a orientar omandatário acerca da direção a ser tomada em relação a Reformas de base. Ali ele nosdava um belo exemplo, na prática, do que chamava de procedimento maquiavélico.Posteriormente, descobrimos que ele próprio fez parte de um dos grupos que buscava

    influenciar o poder executivo no que tangia a reforma agrária no Brasil. Professor LuizOsires da Silva era um notório intelectual amazonense cioso das reformas em seu Estado

     para romper com dominação da oligarquia agrária que estendia sem limites naquelaregião. A mensagem que, a nosso ver, ele queria dar ao príncipe regente estava nas

     páginas 60 e 63 de sua obra onde afirmava, resumidamente, que “a reforma agrária era amais importante de todas as reformas de base, porque só por meio dela seria possívelromper o monopólio da propriedade e a democratização ao acesso à propriedadeobjetivando superar o maior empecilho ao desenvolvimento brasileiro”. 

    Essa posição ficava visível quando a aplicávamos a um regime político

    democrático. Os embates eram públicos. Os grupos de diferentes visões e versões usavamtodos os meios de comunicação para conseguir adeptos. E no regime militar queestávamos vivendo, como isso ocorria? Da mesma forma, como mostrava o professorLuiz Osires em suas aulas, o que havia de diferente, segundo ele, é de que no regime deexceção os elaboradores das doutrinas não chegam a ter visibilidade. São apenas osG=grupos seletos que passavam por formações específicas. Não era qualquer um que

     poderia passar por esse tipo de preparação. No regime militar, quem cumpriu essa funçãofoi a Escola Superior de Guerra (ESG). Instituição criada em 1949.Tinha e tem porfinalidade articular e consolidar conhecimentos voltados ao exercício das funções de

    11 SILVA, L.O. O que são as Reformas de base? São Paulo: Fulgor, 1963

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    assessoramento e planejamento da segurança nacional no âmbito do Ministério da Defesa.Oferecem cursos com foco na segurança nacional. Entre os participantes têm ministrosde Estado, senadores e deputados federais, diplomatas e oficiais-generais. Mas era abertotambém para cidadãos “comuns” indicados pelo alto comando das forças armadas.

    Essas informações, segundo, professor Luiz Osires, não podiam ficar fora da nossaformação, ou como ele dizia, da nossa conscientização. Só a partir daí, dessa tomada deconsciência, segundo ele, poderíamos falar em ciência política no sentido tal qual foisendo construída pelos pensadores modernos e os contemporâneos. Dentre esses estava

     Norberto Bobbio, por ser um dos autores clássicos que colocava o foco da teoria políticano conceito de poder.

    Embora tenha feito essa observação não foi na obra de Bobbio que, nas aulassubsequentes, aprofundamos o conceito de poder, mas, sim, no denso estudo de outroícone da teoria política do século XX. Raymond Aron12. Os estudos foram completadoscom as obras de outros clássicos, Maurice Duverger 13,Alexis de Tocqueville. Jean-JacqueRousseau, Louis Althusser e outros

    Examinando à distância os livros dos autores que foram estudados na época eassociando-os ao contexto em que estávamos analisando seus respectivos textos, só tivea grata satisfação de confirmar a genialidade do professore Luiz Osiris em colocar, emnossas mãos, clássicos que refletiam sobre as teorias modernas das ciências políticasmostrando o cenário de embates políticos em torno do qual elas eram produzidas. ´

    A forma que o nosso professor de ciência política encontrou para nos estimular a

    entrar no mundo nebuloso de uma ciência que estuda e analisa o poder em todas as suasdimensões foi apresentando em suas aulas a astúcia metodológica de um dos filósofosmais polêmico do século XX. Raymond Aron introduzia o tema da teoria política comuma pergunta; “Qu´est -ce que la théorie politique? Para respondê-la, o filósofo francêsmergulhou em um denso universo de textos escritos por filósofos e politicólogos quevinham debatendo, ao longo de dois séculos mais ou menos, se havia de fato uma “teoriada teoria política”. 

    Para nós, ficava claro a partir das orientações do professor Luiz Osiris que

    estávamos entrando em um universo intelectual que contava com um grande arsenal deideias que eram debatidas e disputadas no mundo acadêmico europeu, mas que depois seestendia para outros centros de estudos de outros continentes.

    Raymond Aron buscava mostrar que, na área da ciência política, nada estavaacabado. Ao contrário, o debate apenas começava e por trás dele havia um oceano deincertezas que devíamos considerar. Para esclarecer essa pluralidade teórica e filosófica,Aron escreve em várias de suas obras como o termo teoria política vinha sendo tratado

    12 ARON, Raymond. A Propos de laThéorie Politique, RevuesFrançaise de Science Politique, 1962, v.12, n

    1, pp5-2613 DUVERGER, Maurice. Sociologia dos Partidos Políticos. In: Gurvitch, Georg. Tratado de Sociologia, v 2,Lisboa: Iniciativas Editorias, 1968

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     por filósofos e politicólogos até a primeira metade do século XX. Alguns filósofosdistinguiam a filosofia da filosofia política para mostrar que esta última refletia sobre “os

     problema da política em si, hic et nunc (no aqui e agora)”. Reflexão essa queinevitavelmente abarcava uma “concepção de mundo”. Essa distinção, segundo Aron,tinha herança da filosofia da antiga Grécia por meio da qual se interrogava comodeterminar o que deve ser uma Cidade exemplar e porque razão os cidadãos devemobedecê-la sem ignorar o lugar do indivíduo na sociedade e do homem na natureza. Essasquestões éticas e metafísicas sempre fizerem parte da reflexão daqueles que pensam ateoria política, uma vez que é por meio dela que se tem a pretensão de governar o conjuntode cidadãos em todos os níveis.

    Embora eu tenha me dedicado até o momento a apresentar o que teoricamenteestudávamos, isso não significa que a disciplina de teoria da ciência política tenha sidoeminentemente teórica. Não foi, grande parte da sua realização, sobretudo, nos dois

    últimos semestres do curso, esteve pautada em seminários que nós estudantes tínhamosde preparar e apresentar publicamente, com um tema que tivesse a ver com o contextoque estávamos vivenciando.

    Havia um claro roteiro que o professor Luiz Osires estabelecia e que deveríamosseguir na risca. Como tem muito tempo que o executei não consigo apresentá-lo emdetalhes, mas buscarei sintetizá-los da melhor maneira que eu dou conta.

    O trabalho apresentado precisaria estar pautado em dados empíricos justificadosem critérios científicos. A contextualização do tema e a sua relevância para o momento

     político deveria estar incorporada na introdução da apresentação do trabalho. Deveríamoster o cuidado de distinguir o problema político que estava sendo analisado sem confundi-lo com outras esferas da vida social. Como o foco central era a análise do poder ou dasdiferentes formas de poder que se exercia na sociedade, esperava-se que o tema escolhidotrouxesse luzes indicando que problema estaríamos trazendo para a reflexão. Luiz Osiresnos estimulava a pensar em temas tratando de problemas políticos brasileiros quetivessem impacto internacional. A proposta é que todos os membros do grupo de trabalhoapresentassem e dissessem como que foi a sua contribuição no conjunto da obra.

    Para finalizar, lembro que o trabalho do meu grupo foi análise do papel do

     pensamento político conservador religioso brasileiro e seu impacto nas relações internasda própria igreja católica e suas conexões com ligas cristãs da América latina. Nosso focoera estudar as repercussões que o resultado do Concílio de Medellin de 1968 provocouno Brasil, recuperando a reação de uma ala do bispado à posição dos defensores daTeologia da Libertação e do próprio governo militar que na época tentava coibir os bisposque se manifestavam a favor da referida Teologia. Na ocasião havíamos reunido osdiscursos proferidos pelo arcebispo de Diamantina, Dom Geraldo de Proença Sigaud,reconhecido membro do pensamento conservador brasileiro. Dadas as ricas fonteslevantadas nesse trabalho, acabei transformando algumas obras de um dos clássicos da

    sociologia, Karl Mannheim, que tratou do tema sobre o pensamento conservador, emmaterial da minha monografia de curso sobre a qual passo a falar a seguir.

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    V-  A Sociologia e a monografia de final de curso

     Na realidade, fiz uma monografia, orientado por meu professor de Sociologia,Celso Sebastião de Souza, com quem depois trabalhei como estagiário quando eleocupava o cargo de Secretário da Promoção Social do Estado de São Paulo. Na época

    estagiei tanto na assessoria de planejamento do órgão quanto no Centro de RecolhimentoProvisório Menores no Tatuapé, que acolhia adolescentes infratores entre 14 e 17 anos.Falaremos dessas duas experiências mais à frente

    O professor Celso Sebastião de Souza tinha inspiração dos sociólogos da EscolaChicago: Robert E. Park, Louis Wirth, Ernest Burgess e Evertt Hughes. Mas também dossociólogos da Columbia University, Robert King Merton e Charles Wright Mills.

    A disciplina transitou não apenas nas teorias produzidas por essas duas escolasestadunidenses como também trabalhou os modelos de pesquisas que aqueles cientistas

    desenvolviam para estudar as transformações pelas quais passavam as grandes cidadesdos Estados Unidos com a ascensão de algumas categorias sociais e a imigração crescentenaquele país. Autores brasileiros foram integrados nesse repertório, sobretudo, aquelesque faziam estudos sobre as populações que imigraram, fossem elas de imigrantesestrangeiros ou da imigração interna nacional, buscando conhecer como foram criandoseus nichos e se adaptando no novo habitat. Estudavam o processo de integração nassociedades industriais que os acolhiam. Lembrando que a região do ABC paulista maisdo que nunca vivia as transformações provocadas pelo boom econômico da época. Decerta forma, a orientação da disciplina, incluía conteúdos voltados para esse tipo de

    fenômeno, via-se que não era por acaso que se privilegiava essa discussão. Nesse rol,entram as obras do sociólogo Florestan Fernandes estudando a integração dos negros nasociedade de classe (1964) e nessa mesma linha são incorporados ao repertório dadisciplina autores da Sociologia urbana, igualmente, atentos para o mesmo tema: RogerBastide, Luz Costa Pinto, Guerreiro Ramos, Darcy Ribeiro e alguns outros

    As aulas ministradas pelo professor Celso Sebastião de Souza cumpria, a meu ver,o ideário que o Instituto de Ensino Superior de São Caetano do Sul havia estabelecido

     para formar sociólogos, naquele exato momento,tendo como referência um contexto,como o do ABC paulista, que passava por grandes transformações. Tínhamos um curso

    integralmente voltado para a vida urbana ou mais precisamente para áreas metropolitanas.Os clássicos da Sociologia comoÉmile Durkheim, Georg Simmel e Max Weber tiveramuma presença significativa, sobretudo, no primeiro ano da disciplina. Outro autor cujaobra teve momentos de muitos debates foi Ferdinand Tönnies e sua famosa dicotomia -comunidade e sociedade, sendo a primeira representada pelo conceito de tradição e asegunda pela ideia de modernidade. Estes autoresentravam como fundadores das ideiasque os sociólogos urbanos produziam na primeira metade do século XX.

    Karl Marx ficava fora desse rol, embora sua obra fosse lida por todos que tivesseminteresse por ela, mas não era discutida em sala de aula. Paradoxalmente, estudamos, com

    o nosso professor, obras de autores que abarcaram o pensamento marxista e foram emalguns casos inspirados por suas ideias, como, por exemplo, Karl Mannheim.Em geral

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    esses autores eram discutidos por nós em seminários amplos nos quais buscávamosrevelar os paradigmas que os orientavam. A partir daí se fazia a conexão de suas obrascom as dos seus seguidores, sobretudo, nos Estados Unidos com os autores acimareferenciados.

    Karl Mannheim entrou na minha produção monográfica por ter sido ele o autorque me ofereceu o instrumental que me auxiliava a costurar a rede de teorias quecompuseram a minha formação ao longo de quatros anos. A Sociologia do Conhecimento

     proposta por ele foi para mim, naquele momento inicial de formação sociológica, adescoberta mais fascinante. Desde o início, quando li sobre essa especialidade sociológicaem sua obra germinal “Ideologia e Utopia” eu nãotinha dúvida de que enquanto sociólogo

     buscaria construir o meu percurso profissional levando aqueles pressupostos emconsideração, pelo tempo que eles conseguissem responder os problemas do pensamentosociológico em todas as suas direções e dimensões

    A história de Mannheim é fascinante. Filósofo húngaro, judeu. Foi um sercorajoso que apesar de ter enfrentado duas situações dolorosas de exílio, ele nuncadesistiu de pensar a sociologia como uma ciência capaz de produzir conhecimentos sobreo viver em sociedade, com também sobre o papel das determinações sociais no

     pensamento humano e consequentemente nas formas de conhecimento. Foi orientando deGeorg Lúkacs, que, na época, integrava o gabinete de governo dirigido pelo partidocomunista em Budapeste. Com a queda do regime, embora não sendo filiado ao partido,Mannheim foi obrigado a deixar o país. Foi inicialmente para Viena e Freiburg até chegara Heidelberg, cidade em que viveu na década de vinte do século passado. Em 1930,

    Mannheim assume a cadeira de Sociologia na Universidade de Frankfurt, tendo NorbertElias como de seus assistentes. Mas se vê obrigado adeixar a Alemanha em função docrescimento do pensamento conservador sustentado por grupos de jovens que vinham deuma geração de classes ascendentes, mas sem oportunidades concretas de ascensão, a nãoser por via do mundo de trabalho ainda precário, na realidade germânica, que não osabsorvia satisfatoriamente. Essa situação histórica levou um grande grupo de jovens dasnovas gerações a integrar um movimento nacionalista radical que agregou à sua doutrina

     política o mito da supremacia racial. Essa doutrina, segundo os registros de Mannheim,era uma das expressões dos conflitos que assolavam a Alemanha na era da República

    liberal de Weimar e que se espalharam pelo mundo, como registra o sociólogo alemãoLouis Wirth (1968), professor proeminente da Escola de Chicago.

    Mannheim foi um autor cujas obras foram bastante estudadas,por nós, eu e meuscolegas, na disciplina de Sociologia. Dentre elas foram contempladas: “Diagnóstico de

     Nosso Tempo (1967), Ideologia e Utopia (1968) e Liberdade, Poder e PlanificaçãoDemocrática (1972.)

    Ainda que esses três trabalhos tratassem de nuances diferentes do problema doconhecimento, ambas traziam o fundamento do pensamento humano que era, de certa

    forma, negligenciado, pelas outras disciplinas que estávamos cursando naquele momento.

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    O que mais me marcou na obra desse autor foi o fato de ele ter tirado o mundoacadêmico de sua torre de marfim e mostrado os embates entre os diferentes grupos deintelectuais disputando o poder pela supremacia de seus respectivos paradigmas. Era umaverdadeira luta pelo poder simbólico. O mundo acadêmico era marcado por disputas cujosinteresses estavam relacionados com os acontecimentos sócio históricos.

    Mas esses embates não eram coisas que emergiram de uma hora para outra. Avisibilidade dos mesmos no momento em que Mannheim elabora os seus relatos se deveao contexto de crise que, de certa forma, rompe com as barreiras visionárias e coloca àluz todos osimbróglios que envolviam a produção do conhecimento, no mundo euro-ocidental.

    O criador da Sociologia do Conhecimento deixa entrever na sua obra “Ideologiae Utopia” o quanto o mundo ocidental ao longo de toda era cristão viveu esses embatesque ficavam enclausurados e eram altamente controlados. Mas, independentemente doclaustro,as divergências estavam lá marcando a vida intelectual indelevelmente eintensificavam conflitos de pensamento inimagináveis, como veremos mais à frente, aofalar do meu mestrado quando conheci a obra de filósofo franco-romeno marxistarefinadíssimo, LucienGoldmman. Este mostra os embates políticos, no século XVII, entreos seguidores de CorneliusJansen, bispo holandês, que se fecha no Monastério de PortRoyal e cria o movimento jansenista e produz uma doutrina que operava na contramão dadoutrina jesuítica.

    Mannheim refletia sobre o teor da crise que o mundo ocidental estava vivendo no

    final do século XIX e na primeira metade do século XX com a eclosão de duas guerrasmundiais, explicitando em última instância a barbárie que detonava séculos de crenças noiluminismo ou para falar como Alain Touraine, tomava-se consciência de que não havianada que impedisse de ver que se estava vivendo o fim do triunfo da razão.

    A obra de Karl Mannheim é produzida no momento histórico em que os europeusse dão conta de que estavam vivendo a derrocada de toda a fantasia criada pela Filosofiadas Luzes. Esta criou a ilusão de que a ciência moderna estaria acima do bem e do mal.Herdeiros do pensamento empiricista da era de Francis Bacon e do racionalismo de RenéDescartes, os partidários desses movimentos do pensamento científico criaram o

     paradigma da neutralidade, traduzido pelo conceito de objetividade que vai impregnartodo conhecimento, primeiramente o das Ciências Naturais (iniciada pela Física-matemática) e depois das Ciências correlatas e das Ciências Sociais. Foi nesse períodoque conceito de verdade, anteriormente tomado como algo transcendente, passa serconcebido como algo que pode ser encontrado e verificado no próprio plano da existência,

     por meio da faculdade da razão.

    De posse desse paradigma, parte significativa da produção científica vai defendero que, para ela, significa ser objetivo. No mundo anglo-saxão, como destaca Mannheim,ter uma atitude objetiva era ser imparcial, não ter preferências, predileções ou

     preconceitos, tendências, valores ou mesmo juízos diante dos fatos (cf. Objetividade e

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    Subjetivismo, 1969, pp. 96-101). É exatamente essa dimensão que ele critica nas teoriasdo conhecimento que defendiam certa objetividade neutra.

    Para Mannheim todo conhecimento está vinculado à posição social do pesquisador(op. cit., p. 298). Para ele, essa conexão já havia sido detectada pelo marxismo. Essa

    observação, nós podíamos constatá-la na obra de Marx e Engels, Ideologia Alemã14. Já acrítica que Mannheim fazia sobre o não avanço do pensamento marxista no século XXsobre esse tema nos surpreendia. Sua crítica era de que os seguidores do referido

     pensamento não avançaram um milímetro nessa descoberta. Mannheim desafia as pretensões universalistas dos marxistas. Para ele,o marxismo deveria ter formulado, hámuito tempo, de maneira mais teórica, as descobertas fundamentais da Sociologia doConhecimento concernente à relação do pensamento humano e as condições de existênciageral (idem, p.298). Deveriam ter feito, mas não o fizeram, ou mais precisamente,fizeram parcialmente.

    Essa parcialidade, segundo Mannheim, se dava, na época, pela “relutânciasubconsciente” dos marxistas em “meditar sobre as implicações de suas percepçõesconcretamente formuladas”. Isto impedia, na visão de nosso autor, que os formuladoresmarxistas conseguissem clarear, nas formulações, “as suas próprias posições sociais ecomo estas eram, também, eivadas pelo contexto social que, por sua vez, era tão parcialquanto o de seus oponentes” (ibidem. p. 298). Dito de outra forma, os marxistas nãoconseguiam ver que a sua forma de pensar era também penetrada pelos eventos do mundosocial e histórico.

     Na realidade, o exemplo que Mannheim dá usando a posição dos pensadoresmarxistas para chamar a atenção daqueles que estão sendo preparados para aplicar os procedimentos da Sociologia do Conhecimento ou que já estão, de certa forma,utilizando-os rudimentarmente, é apenas uma forma heurística de apresentar os passos deuma descoberta que está por vir. Os elementos que ele utiliza para exemplificar oscuidados na investigação sobre o pensamento tomando-os de empréstimo do marxismo

     poderia ser aplicado a qualquer outro tipo de pensamento que o efeito seria o mesmo.

    O mais importante da sua observação é registrar que, para Mannheim, a Sociologiado Conhecimento enfatiza a prevalência da determinação social na produção do

    conhecimento. Sendo assim, não importa que tipo de pensamento se estejaestudando, osseus partidários, tenham eles consciência ou não, são determinados existencialmente pelocontexto histórico social.

    Com a obra de Mannheim, eu e meus colegas de turma aprendíamos que aSociologia era, ao mesmo tempo, uma teoria e um método de pesquisa. Ambos teriam deser cultivados por todos aqueles que se dispusessem entrar para esse campo doconhecimento. No conjunto de seus estudos, ficava claro que, para o nosso autor, aSociologia enquanto teoria assumia duas formas. De um lado. Mannheim a definia como

    14 Vale lembrar que, como dito anteriormente, obras desses autores não faziam parte da bibliografia.Eram leituras paralelas que eu e um grupo da minha sala fazíamos por nossa conta.

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    uma investigação puramente empírica e, por meio dela, descrevia e analisavaestruturalmente as maneiras por meio das quais as relações sociais influenciavam o

     pensamento. Por outro lado, ele mostra que a Sociologia do Conhecimento pode se lançara uma densa inquirição epistemológica voltada a desvendar, nas inter-relações sociaisidentificadas nos estudos empíricos, os significados que ajudariam a resolver o problemada validade do conhecimento tão exigido pelos epistemólogos clássicos, ou seja, nosauxiliariam a responder as “questões acerca da verdade ou da falsidade” das respostasdadas a um problema de pesquisa,

    Como se vê, Mannheim dava à Sociologia do Conhecimento a missão de elaborarum estatuto denso acompanhado de um arcabouço teórico-metodológico que prometiamuito trabalho para quem o escolhesse como guia de orientação. Entretanto, deixava claroque, embora os dois procedimentos acima, fossem importantes não eram necessariamenteligados, cada um tinha a sua própria fundamentação. Por exemplo, a investigação

     puramente empírica buscava aquilo que Mannheim chamava de “determinantes sociaisdo conhecimento”, sem levar em conta as implicações epistemológicas. Era, assim, queo nosso autor definia a Sociologia do Conhecimento como sendo a “teoria dadeterminação social e existencial do pensamento efetivo” (op.cit, 1968, p) 

    Era impressionante como os conceitos usados ou formulados por Mannheimganhavam densidade e significados especiais ao referi-los como instrumentos queauxiliariam na descoberta dos determinantes sociais. Na segunda parte da sua “Ideologiae Utopia” (p288-320), ele aprofunda os significados do termo “determinante existencialdo conhecimento”. 

     No conjunto do que chama de determinação existencial, Mannheim identifica umainfinidade de fatores que podem ser descobertos, apenas por meio de uma investigaçãoempírica. Aliás, esta, para ele, era o único procedimento metodológico que permitiademonstrar e explicitar até que ponto é estrita a correlação entre a situação de vida e o

     processo de pensamento. Além disso, esse tipo de investigação permitia, também,visualizar a gama de variações existentes nesta correlação.

    Para mim, o surpreendente, na proposta da Sociologia do Conhecimento de KarlMannheim, residia na sua convicção de que qualquer tipo de pensamento estaria

    impregnado por determinações existenciais. Abria-se, assim, um acirrado embate diretocom epistemólogos clássicos que rejeitavam, veementemente, o determinismo históricona produção das chamadas Ciências Exatas.

    Mannheim, em diferentes passagens de “Ideologia e Utopia” desafia essa crençada neutralidade científica. Ao contrário, na ocasião, eu e meus colegas de turma“brincávamos” no bom sentido com a possibilidade de aplicar esses desafios, como

     propunha Mannheim a alguns dos clássicos das Ciências Exatas. Como aplicar aneutralidade em torno da qual foi construída a “teoria da gravitação” de Isaac Newton?Começávamos com a seguinte conjectura: se partirmos do princípio de que Mannheim

    tem razão sobre as situações existenciais determinando o conhecimento, então podemossupor que o processo que levou Isaac Newton a descobrir os determinantes da gravitação

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    não se desenvolveu historicamente de acordo com as leis imanentes, tal como eleformulava