memoriae oralidade entre o individual e o socia

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Memoriae Oralidade Entre o Individual e o Socia

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  • CARLA MONTEIRO DE SOUZA*

    ARTIGO MEMRIA E ORALIDADE: ENTRE O INDIVIDUAL E O SOCIAL

    A oralidade constitui-se, nos dias de hoje, em um importante campo de investigao histrica. impossvel negar o seu avano e evoluo na historiografia brasileira, cumprindo funo cada vez mais destacada nos estudos regionais. Se tratando de Roraima - inclusive a par das dificuldades relacionadas exiguidade, disperso ou inexistncia de fontes -e pelo fato de lidarmos muito com acontecimentos recentes, com uma realidade situada em um tempo muito prximo, a constituio de fontes orais se colocou como recurso bastante frutfero.

    Mesmo que j exaustivamente discutidas, algumas questes sempre devem ser relembradas quando se trabalha com fontes orais. A Histria Oral (HO) uma metodologia que permite a constituio de fontes histricas e documentais por meio do registro de testemunhos, depoimentos e narrativas. Como afirma Verena Alberti, o uso da HO possibilita o acesso a "histrias dentro da Histria" (2005,155), visto que as narrativas coletadas sero sempre vises ou verses subjetivas da realidade. Justamente por isso, o uso da HO oferece ao pesquisador a possibilidade de ampliar os horizontes de sua pesquisa, ou seja, de interpretar, explicar e compreender de forma mais ampla e aprofundada seu objeto de estudo.

    Na atualidade, a aplicao da histria oral um impor tante instrumento nas cincias humanas e sociais.

    ^iPUBora em Histria - Departamento de Histria/UFRR

  • Segundo Meihy as verses e vises apresentadas nas narrativas devem ser encaradas como "um legado de domnio pblico" (2005, 24). Ao incorporar ao trabalho vises e verses permite dar voz e ouvir aqueles que tem algo a dizer sobre o assunto.

    A vinculao direta com a Histria - inclusive no nome - no anula seu carter abrangente, pois a histria oral uma metodologia de uso multidisciplinar, aplicada hoje reas consideradas anteriormente dspares. Neste sentido, o seu uso vem se difundindo principalmente em funo: do questionamento das abordagens tradicionais, nas quais havia uma supervalorizao do escrito, do oficial, da objetividade; e da busca por novas possibilidades de pesquisa, que resultem em trabalhos mais aprofundados e que apresentem vises mais criativas do objeto. Pode-se dizer, ento, que ampliao do uso da HO liga-se a uma inquietao dos pesquisadores em relao ao seu fazer.

    Uma das questes que cumpre destacar, so aquelas relativas memria, sua credibilidade na constituio de documentos e a suas pecualiaridades no que tange as demais fontes. Trabalhar com fontes orais, ento, no gravar uma srie de testemunhos e relatos e depois cit-los. Delas se espera o mesmo que dos outros tipos de fontes: que permitam obter o mximo de informao o mais confivel possvel. A sua incorporao ao trabalho acadmico e cientfico implica um esforo de crtica apurado, no por serem consideradas fontes pouco confiveis - posio h muito ultrapassada - mas por estarem geneticamente vinculadas aos meandros da memria e da oralidade, elementos estes que colocam o pesquisador diante de uma riqueza mpar mas, tambm, de armadilhas resultantes de sua fluidez, flexibilidade e particularidade. Requerem que cada entrevista seja confrontada com as outras e com os demais tipos de documentao selecionada, que se forme um corpus documental coerente e eficiente aos objeti vos da pesquisa.

    Ronald Fraser, em artigo intitulado Histria Oral, Histria Social (1993, 131-139), discute a questo da constuio das fonte orais e prope uma diferenciao entre estas e as fontes escritas, tomando como base os seguintes elementos constituintes: a subjetividade, a auto-representao, a forma narrativa e o fato de se construrem com a interveno do investigador. Os quatro elementos arrolados devem ser examinados de maneira iintegrada, pois aparecem entrelaados nas narrativa.

  • Em relao subjetividade, afirma que no se refere a subjetividade em si, encarada como algo genuno e ntimo, mas aquela acessvel ao historiador. S se o investigador a reconhece assim, e a separa de forma metodolgica da informao factual, pode apreciar a condio congnoscitiva da subjetividade. A subjetividade definida pelo autor, ento, no aquela concebida como caracterstica pessoal, sob uma perspectiva eminentemente comportamental ou personalstica, mas aquela concebida como representao, resultado do cruzamento do pblico com o privado, da formao sociocultural do indivduo, das exigncias e ajustes requeridos pelo cotidiano e requisitadas pela narrao. A questo da objetividade passa, portanto, por minimizar o subjetivismo e a espontaneismo, sem excluir o sujeito, sua historicidade, bagagem, interesses, aes, elementos que o narrador lana mo para constituirseu texto oral.

    Quando se tem acesso a fontes orais fica claro que o narrador busca representar-se como um ser coerente no tempo e no espao. A narrativa a representao da vida e do mundo no qual o sujeito est inserido. Racionalidade e irracionalidade, consciente e inconsciente, presente e passado, subjetivo e coletivo interagem na configurao que o indivduo d a si, aos fatos que viveu e que vai narrar, tendo como mediadora permanente a memria.

    Por outro lado , tambm, uma auto-representao, que dotada de um certo essencialismo, algo naturalizado. Atravs dela o sujeito se define, nomeia a si e os "outros", se posicionando em relao a isso e emitindo opinies, juzos de valor, criando laos de pertencimento, interao, integrao, os vnculos produzidos pela vivncia e pela convivncia mediados pelos elementos ligados cultura, posies na escala social etc.

    Quanto forma que assume, a narrao revela bastante da subjetividade do autor e daquilo que o mobiliza a falar. Ao se ativar a memria, quando o indivduo chamado a narrar, busca as suas lembranas sobre o tema suscitado, mas tambm tudo aquilo que a ele est ligado, expondo conexes que nem sempre so percebidas atravs de uma leitura comum. No momento da narrao o autor busca tambm a cdigos lingusticos e semnticos socialmente conhecidos para se fazer entender. Este processo de elaborao intelectual, consciente e/ou inconscientemente condicionado, dar a narrativa um estilo que muito importante na abordagem do texto oral. O que deseja comunicar tambm vai condicionar a forma que assume a narrativa,

  • ou seja, o gnero escolhido, sendo importante identificar palavras e frases chaves, repeties, omisses, modelos narrativos . A forma da narrativa permeada pela bagagem cultural do narrador, que deve ser conhecida e investigada pelo ouvinte/pesquisador.

    Fraser explica que o momento da narrao um encontro em que o passado e o presente, o cultural e o pessoal, o individual e o social, o eu e o outro se conjugam. As experincias e a subjetividade do falante e do ouvinte se cruzam. A conversa que se estabelece entre o entrevistador e o entrevistado, o dilogo, as trocas entre os dois, interferem na forma que assume a narrativa, na qual atuam as indagaes feitas pelo investigador, o problema investigado e os interesses que o movem. Aforma e o contedo da narrativa esto vinculados mediao entre narrador e ouvinte. Nenhuma narrativa oral pura, desinterrada, isenta ou neutra. sempre permeada pela viso de mundo do narrador, por interesses e objetivos alicerados no presente e no no passado.

    Entre a memria e a transmisso das lembranas intervm uma srie de mediaes que imprimem sua prpria lgica ao processo de rememorao ena forma como ser expressada, destacando a participao direta do ouvinte. No h objetividade pura e simples nas lembranas, os fatos e acontecimentos podem ser os mesmos, mas a significao dada pelo narrador trabalhada e transformada em funo do tempo e da sua situao de vida (Fernandes, 1993, 220). Pode-se dizer que cada narrativa dotada de objetividade, traduzida em termos subjetivos.

    Como em qualquer outro tipo de narrativa, a memria que incorpora o real, entendido como tudo que considerado concreto, palpvel e relevante. A memria faz conexes, realiza trabalho incessante, dinmico, produtivo e seletivo. Nem tudo que vivido pelo indivduo ser guardado e armazenado tal como foi. Pode-se dizer que o relato no tem estatuto de verdade, sendo antes uma verdade relativa, subjetivizada. Ao transmitir a sua verso/construo oralmente, o narrador o fazde acordo com as necessidades e possibilidades do presente, e nesse momento que as lembranas deixam de ser memrias para tornarem-se histrias.

    Sobre os processos da memria existe farta discuso, envolvendo vrias reas do conhecimento. Para a histria o mais importante a abordagem da memria como fenmeno social, como instncia produtora de sentidos e de representaes, como o espao privilegiado onde o individual e o social, o

  • privado e o coletivo, o passado e o presente se articulam, adquirindo significado nico.

    Esta concepo sobre os processos da memria se baseiam nos escritos de Maurice Halbwachs, segundo o qual a memria um fenmeno basicamente social. 0 trabalho psquico e psicolgico necessrio para a sua existncia, mas o social predomina sobre o individual, o que no significa a sua rejeio. Ento, tudo o que est guardado na memria, que vai ser lembrado e narrado pelos indivduos, produto das relaes engendradas com um mundo preexistente, com o sistema social. Para Halbwachs a memria deve ser abordada por meio dos "quadros sociais da memria" e no em si mesma. Segundo o autor, "cada memria individual um ponto de vista sobre a memria coletiva, que este ponto de vista muda segundo o lugar que ali ocupo e que o mesmo lugar muda segundo as relaes que mantenho com outros ambientes" (2006,69).

    A lembrana no um ato individual, mas estaria relacionada com toda a vida material e moral das sociedades da qual o indivduo fez ou faz parte (Santos, 1993, 70). Halbwachs explica que "para evocar o p'roprio passado, em geral a pessoa precisa recorrer s lembranas de outras, e se transporta a pontos de referncia fora de si, determinados pla sociedade" (2006, 72). Rememorar requer um contnuo relacionamento solidrio e interativo com outras lembranas, no qual busca amparo, confirmao, coerncia e legitimidade, o que justifica a abordagem dos contextos nos quais se constitui e expressa, os chamados quadros sociais da memria.

    Lembrar, assim como narrar, um processo consciente, informado pelo que "a est" e no pelo "que foi". o presente que solicita o passado, que construdo e reconstrudo incessantemente. Este processo motivado pela necessidade que o indivduo tem de compreender a si mesmo e pelas demandas, indagaes e conscincia atuais, ou seja, por uma variedade de estmulos externos.

    Note-se, no entanto, que apesar de Halbwacks no negligenciar o papel do passado na constituio das lembranas, atribui a ele uma certa flexibilidade perigosa, o que implica dizer que ao lembrar o indivduo refere-se mais ao presente que a ao passado, como se o passado fosse um dado. No resta dvida que no seu trabalho incessante a memria seleciona, resignifica, apaga, reprocessa, silencia o passado vivido. Contudo, no h como negar que

  • quando o indivduo chamado a lembrar a este passado - de experincias vividas e introjetadas, composto de uma bagagem repleta de fatos, nomes, datas, costumes, situaes, e que interessa muito ao pesquisador acessar -que ele recorre. A forma como essas vivncias sedimentadas no passado aparecem nas narrativas da memria pode variar conforme as condies do presente, mas o passado sempre estar ali - representado de maneira mais ou menos evidente, com maior ou menor intensidade -, cabendo ao pesquisador munir-se de instrumental terico e metodolgico que propicie o seudesvelamento.

    Pode-se dizer, ento que a memria constitui-se atravs da interao de diferentes instncias, individuais e coletivas. Nas narrativas engendradas pela memria as fatos, pessoas, acontecimentos aparecem de forma explcita, visvel, verificvel, manifesta e/ou encobertos, velados, implcitos, revestidos de silncios e de esquecimentos.

    Neste sentido, o passado no passvel de resgate. A experincia humana, o vivido e todos os seus elementos constituintes s sobrevivem se lembrados e contados. Halbwachs afirma que "o funcionamento da memria individual no possvel sem esses instrumentos que so as palavras e as ideias, que o indivduo no inventou, mas toam emprestado de seu ambiente" (2006, 72). Linguagem e memria so parceiras inseparveis. A linguagem a grande mediadora dos processos sociais e sem ela no existiria contato entre o presente e o passado, entre o eu e o outro, entre o individual e o coletivo.

    atravs da linguagem, portanto, que se processa o nico "resgate" possvel do passado, isto , atravs dos indcios, dos vestgios, dos sinais de um real vivido, sentido, experienciado apresentados na narrativa oral. Paul Thompson afirma que, ao solicitar a memria, a histria oral pode devolver s pessoas que fizeram e vivenciaram a histria um lugar nesta histria, mediante suas prprias palavras (199 , 22). Rememorar e narrar , portanto, mais que produzir uma espcie de biografia, em que cada narrador produz uma interpretao pessoal do que viveu, mas textos carregados de novos e surpreendentes significados. Pode-se dizer que a memria expressa nas narrativas orais atemporal.

    Paul Thompson explica que "o processo da memria depende do da percepo". A compreenso antecede a apreenso, a qual se d atravs de categorias, segundo as quais as informaes se ajustam. Esse processo

  • mental possibilita que em uma ocasio futura esta memria possa ser reconstruda, constituindo, geralmente, uma aproximao daquilo que foi

    compreendido. 0 processo de descarte, ou seja, de seleo do que ser guardado e lembrado, depende no s da capacidade de percepo e compreenso do indivduo, mas tambm de seu interesse. Sendo assim mais provvel que uma lembrana seja fidedigna quando corresponde a um interesse ou necessidade social ou individual (199,150-153).

    O mesmo autor explica que nos relatos orais "a construo e a narrao da memria do passado, tanto coletiva quanto individual, constituiu um processo social ativo que exige ao mesmo tempo engenho e arte, aprendizado com os outros e vigor imaginativo". Por isso, deve-se procurar nas narrativas no s eventos, estruturas, padres de comportamento, mas, acima de tudo, experincias vivenciadase lembradas com imaginao (199,184-185).

    Neste sentido, torna-se essencial a busca de novas maneiras de analisar a narrativa oral nas suas vrias modalidades. Da mesma forma, a sua incorporao como fontes enriquece o trabalho de pesquisa em cincias humanas e sociais, no sentido da construo de um conhecimento plural, multifacetado, polifnico, onde indivduo e sociedade interagem, onde ambos tm voz e expresso.

    RESUMO: O presente artigo apresenta uma breve discusso sobre as potencialidades do uso da metodologia da histria oral na constituio de fontes para a pesquisa. Aborda aspectos e elementos relativos este tipo de fontes e a sua relao instrnseca com a memria.

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