memória, opinião e cultura política. a ordem dos advogados ... · ordinária. era a primeira...

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1 Memória, Opinião e Cultura Política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a Ditadura (1964-1974) 1 (Publicado em: Rollemberg, Denise . “Memória, Opinião e Cultura Política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a Ditadura (1964-1974)”.Daniel Aarão Reis; Denis Rolland. (Orgs.). Modernidades Alternativas. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2008, p. 57-96). Denise Rollemberg * À época a classe dos advogados não vacilou um só instante. J.B. Viana de Moares. 2 No dia 7 de abril de 1964, o Conselho Federal da OAB realizou uma reunião ordinária. Era a primeira após o golpe de Estado que depusera alguns dias antes o presidente João Goulart. A euforia transborda das páginas da ata que registrou o encontro. A euforia da vitória, de estar ao lado das forças justas, vencedoras. A euforia do alívio. Alívio de salvar a nação dos inimigos, do abismo, do mal. Definindo todos os conselheiros como “cruzados valorosos do respeito à ordem jurídica e à Constituição”, o então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil/OAB, Carlos Povina Cavalcanti 3 , orgulhoso, se dizia “em paz com a nossa consciência”. 4 1 Esse texto é resultado parcial do projeto As relações entre sociedade e ditadura: a OAB e a ABI, no Brasil de 1964 a 1974, que desenvolvi no Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC), da Universidade Federal Fluminense (UFF), financiado pelo CNPq, a quem agradeço a bolsa de produtividade. Agradeço também à Pro-Reitoria de Pesquisa da UFF e ao CNPq as bolsas de Iniciação Científica, bem como aos bolsistas Luciana de Castro Soutelo e Gabriela Marins, no projeto numa primeira etapa, e Ana Luiza Falcão de Souza e Giordano Bruno Reis dos Santos, posteriormente, estudantes de História da UFF. Sou grata a Daniel Aarão Reis as críticas e sugestões, além da “ assessoria” para desvendar a linguagem própria dos advogados. * Doutora pela Universidade Federal Fluminense e Professora Adjunta desta Universidade. 2 J.B. Viana de Moares, na VI Conferência Nacional da OAB, em 1976, em seu discurso como representante da delegação de São Paulo. “À época” refere-se ao momento do golpe de 31 de março de 1964. Citado por José Cavalvanti Neves, presidente da OAB entre 1/4/71 e 1/4/73, em entrevista à Marly Silva da Motta, em BAETA, Hermann de Assis (coord.). História da Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB na voz dos seus presidentes. Marly Silva da Motta. Vol. 7. Brasília, OAB-Ed. 2003, p. 52. 3 O presidente da OAB é também o presidente do Conselho Federal (Conselho Pleno). Carlos Povina Cavalcanti, presidente da OAB de 11/8/62 a 6/4/65. 4 Ata de 7 de abril de 1964. A euforia permaneu na reunião seguinte: “O Conselheiro Eurico Raja Gabaglia disse que, embora não desejasse empanar o sentimento de júbilo de que estão possuídos todos os bons brasileiros pela recente redemocratização do País, julgava cumprir um dever requerendo ao Egrégio

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Memória, Opinião e Cultura Política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a Ditadura (1964-1974)1 (Publicado em: Rollemberg, Denise . “Memória, Opinião e Cultura Política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a Ditadura (1964-1974)”.Daniel Aarão Reis; Denis Rolland. (Orgs.). Modernidades Alternativas. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2008, p. 57-96).

Denise Rollemberg ∗

À época a classe dos advogados não vacilou um só instante. J.B. Viana de Moares.2

No dia 7 de abril de 1964, o Conselho Federal da OAB realizou uma reunião

ordinária. Era a primeira após o golpe de Estado que depusera alguns dias antes o

presidente João Goulart. A euforia transborda das páginas da ata que registrou o

encontro. A euforia da vitória, de estar ao lado das forças justas, vencedoras. A euforia

do alívio. Alívio de salvar a nação dos inimigos, do abismo, do mal. Definindo todos os

conselheiros como “cruzados valorosos do respeito à ordem jurídica e à Constituição”, o

então presidente da Ordem dos Advogados do Brasil/OAB, Carlos Povina Cavalcanti3,

orgulhoso, se dizia “em paz com a nossa consciência”.4

1 Esse texto é resultado parcial do projeto As relações entre sociedade e ditadura: a OAB e a ABI, no Brasil de 1964 a 1974, que desenvolvi no Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC), da Universidade Federal Fluminense (UFF), financiado pelo CNPq, a quem agradeço a bolsa de produtividade. Agradeço também à Pro-Reitoria de Pesquisa da UFF e ao CNPq as bolsas de Iniciação Científica, bem como aos bolsistas Luciana de Castro Soutelo e Gabriela Marins, no projeto numa primeira etapa, e Ana Luiza Falcão de Souza e Giordano Bruno Reis dos Santos, posteriormente, estudantes de História da UFF. Sou grata a Daniel Aarão Reis as críticas e sugestões, além da “ assessoria” para desvendar a linguagem própria dos advogados. ∗ Doutora pela Universidade Federal Fluminense e Professora Adjunta desta Universidade. 2 J.B. Viana de Moares, na VI Conferência Nacional da OAB, em 1976, em seu discurso como representante da delegação de São Paulo. “À época” refere-se ao momento do golpe de 31 de março de 1964. Citado por José Cavalvanti Neves, presidente da OAB entre 1/4/71 e 1/4/73, em entrevista à Marly Silva da Motta, em BAETA, Hermann de Assis (coord.). História da Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB na voz dos seus presidentes. Marly Silva da Motta. Vol. 7. Brasília, OAB-Ed. 2003, p. 52. 3 O presidente da OAB é também o presidente do Conselho Federal (Conselho Pleno). Carlos Povina Cavalcanti, presidente da OAB de 11/8/62 a 6/4/65. 4 Ata de 7 de abril de 1964. A euforia permaneu na reunião seguinte: “O Conselheiro Eurico Raja Gabaglia disse que, embora não desejasse empanar o sentimento de júbilo de que estão possuídos todos os bons brasileiros pela recente redemocratização do País, julgava cumprir um dever requerendo ao Egrégio

2

A reunião é uma celebração. Nos embates que marcaram os primeiros anos da

década de 1960 e, em particular na crise do pré-golpe, a OAB chama para si a defesa da

ordem jurídica e da Constituição ameaçadas, inclusive, com a cumplicidade do

presidente, cujo governo era “influenciado por um Ministério do Trabalho pelego”5.

Rejeitando-o radicalmente, a derrubada do presidente eleito pelo exército garantiria a

democracia. A celebração da vitória sobre o “totalitarismo” das “forças subversivas”

identificadas às reformas e ao “populismo”.

Povina Cavalcanti referiu-se à posição da OAB quanto à reforma constitucional

rejeitada no ano anterior.6 A reforma agrária aparece como o centro da polêmica do

conjunto de reformas pretendidas. Afirmava-a

“perigosa como precedente, [pois] atenta contra o direito de propriedade e resulta totalmente desnecessária ao fim declarado, o de proporcionar aos trabalhadores rurais o acesso às terras”. Acreditavam os conselheiros que “dentro da Constituição da República, como na legislação ordinária em vigor, há elementos suficientes para a mudança da estrutura agrária do país, atendendo ao homem e às necessidades da produção, sem que sejam golpeados os direitos fundamentais dos cidadãos, com grave risco para a ordem jurídica”.7

Assim, o presidente da OAB continua:

“....antecipando-nos à derrocada das forças subversivas, acionadas por dispositivos governamentais, que visavam, já sem disfarces, à destruição do primado da democracia e à implantação de um regime totalitário, no qual submergeriam todos os princípios da liberdade humana, tivemos a lucidez e o patriotismo de alertar, na memorável reunião extraordinária de 20 de março p findo, os poderes constiuídos da República para a defesa da ordem jurídica e da Constituição, tão seriamente ameaçadas. Mercê de Deus, sem sairmos da órbita constitucional, podemos hoje, erradicado o mal das conjuras comuno-sindicalistas, proclamar que a sobrevivência da Nação Brasileira se processou sob a égide intocável do Estado de Direito. Que a providência Divina inspire os homens responsáveis desta terra e lhes ilumine a consciência jurídica, pois que sem o direito, como pregou Rui Barbosa, não há salvação”.8 E, concluindo a sessão:

Conselho que se dignasse de inserir em ata um voto de profundo pesar pelo falecimento de um colega inscrito na Ordem,….”. Ata de 14 de abril de 1964. 5 Ata de 7/4/64. 6 Reunião de 14/5/63. 7 Ata de 7/4/64. 8 Ata de 7/4/64.

3

“’Srs. Conselheiros, se mais não fizemos em 1963, foi porque as condições adversas da vida nacional não o permitiram. Queira Deus que um Governo isento, de gabarito que não se meça pela altura dos demagogos, nos dê condições para servir à classe e ao Brasil’”. Por fim, a consagração das palavras do Presidente Povina Cavalvanti “coroadas por uma salva de palmas dos presentes”. 9

A lembrança de 1964 aparece em 1976, na VI Conferência Nacional da OAB, no

discurso de J.B. Viana de Moares, representante da delegação de São Paulo. A

redefinição da Ordem quanto à posição assumida, na época, não redefinia as palavras do

“ilustre advogado paulista”:

“ ‘Quando explodiu o grande movimento de 1964, para impedir o prosseguimento do caos, o povo acolheu a providência com radiosa expectativa. À época, a classe dos advogados não vacilou um só instante. Colocou-se ao lado da nova autoridade que buscava, com patriotismo, o concerto da paz social, do império da lei e, notadamente, da ordem coletiva. Aderiu afetiva e civicamente à transmutação ocorrida, hipotecando toda a energia de sua inteligência às novas perspectivas que se abriam, acreditando nos novos horizontes que se descortinavam para a democracia brasileira’ ”.10

Entretanto, a OAB mudou de posição. Saiu do clássico anticomunisto da época,

com todos os jargões e lugares-comuns conhecidos, para o enfrentamento do regime.

Marly Silva da Motta e André Vianna Dantas percorreram o caminho da OAB, da

participação no golpe à luta pela redemocratização. Ao longo do percurso, os autores

destacaram os temas recorrentes nas reuniões do Conselho Federal que mobilizaram a

Ordem, levando-a de um pólo a outro.11 Procurarei, então, trabalhar algumas dessas

questões, refletindo sobre a opinião e a cultura política da OAB que explicam as posições

assumidas, as rupturas e permanências, a memória construída de uma importante

organização civil sob a ditadura, memória que foi capaz de ler “à época, a classe dos

advogados não vacilou um só instante” pelo seu avesso.

Pilares da resistência

9 Ata de 7/4/64. 10 Citado por José Cavalvanti Neves, presidente da OAB entre 1/4/71 e 1/4/73, em entrevista à Marly Silva da Motta, em BAETA, Hermann de Assis (coord.). História da Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB na voz dos seus presidentes. Marly Silva da Motta. Vol. 7. Brasília, OAB-Ed. 2003, p. 52. 11 MOTTA, Marly Silva da. História da Ordem dos Advogados do Brasil. Da redemocratização ao estado democrático de direito (1946-1988). Vol. 5. Marly Motta e André Vianna Dantas. Coordenação Hermann Assis Baeta. Rio de Janeiro, OAB, 2006.

4

Em outra ocasião, procurei igualmente compreender a ABI ao longo da primeira

década do regime civil-militar.12 O objetivo tanto ao estudar a associação de jornalistas

como a dos advogados foi acompanhar duas das mais importantes instituições civis da

chamada resistência democrática no momento do golpe e nos dez anos seguintes, antes do

governo Geisel, ou seja, antes da distensão política; recuperar a opinião de segmentos

civis sobre as quais se estruturam, posteriormente, a memória coletiva da ditadura.

A partir de 1979, segundo Daniel Aarão Reis, consolidou-se uma memória

coletiva segundo a qual a sociedade em sua maior parte havia resistido à ditadura.

Resistência, a chave para a compreensão da maneira como a sociedade brasileira lida com

o seu passado sob o regime. Procurando as palavras que contam essa história, identificou

expressões cristalizadas como golpe militar, ditadura militar, anos de chumbo, porões da

ditadura. Segundo o historiador, essas expressões alimentaram – e alimentam - uma

necessidade da sociedade de se dissociar completamente das referências do regime. Nada

teria a ver com esse passado. Dessa forma, a defesa de valores democráticos de uma

sociedade emergindo do autoritarismo é projetada no passado, norteando um embate de

duas décadas.

Com o processo de abertura política, desencadeado com o projeto de distensão

Geisel-Golbery, em 1974, e sobretudo a partir de 1979, a OAB, ao lado da Associação

Brasileira de Imprensa (ABI) e da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)

aparecem como pilares da chamada resistência democrática, na luta contra a ditadura

militar.

Quanto à CNBB, sua Comissão Central divulgou, em julho de 1964, a

“Declaração da CNBB sobre a Situação Nacional” na qual se posicionou: “Atendendo à

geral e angustiosa expectativa do Povo Brasileiro, que via a marcha acelerada do

comunismo para a conquista do Poder, as Forças Armadas acudiram em tempo, e

evitaram se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa Terra”.

E adiante:

12 Denise Rollemberg. “As Trincheiras da Memória. A Associação Brasileira de Imprensa e a ditadura (1964-1974)”. Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadrat (orgs.). A construção social dos regimes autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008.

5

“Logo após o movimento vitorioso da Revolução, verificou-se uma sensação de alívio e de esperança, sobretudo, porque, em face do clima de insegurança e quase desespero em que se encontravam as diferentes classes ou grupos sociais, a Proteção Divina se fez sentir de maneira sensível e insofismável. De uma à outra extremidade da pátria transborda dos corações o mesmo sentimento de gratidão a Deus, pelo êxito incruento de uma revolução armada. Ao rendermos graças a Deus, que atendeu às orações de milhões de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos Militares que, com grave risco de suas vidas, se levantaram em nome dos supremos interesses da Nação, e gratos somos a quantos concorreram para libertarem-na do abismo iminente”.13 No caso da ABI, não houve formalmente apoio ao golpe, como se deu na OAB e

na CNBB14. No entanto, a leitura das Atas das Reuniões Ordinárias e Extraordinárias e do

Boletim do Conselho Administrativo da ABI15 revela a diversidade das posições nos

debates. A ABI, antes de 1974, travava discussões internas a respeito do regime

instaurado no país, de como se posicionar como instituição sem a unanimidade construída

a posteriori pela memória. As contradições e os embates internos parecem reforçar a

idéia da memória coletiva como instrumento de coesão social e não exclusiva ou

principalmente de coerção.16 Entretanto, o estudo da ABI no período traz à tona

sobretudo as ambivalências que fundiam apoio e rejeição; as posições que diluíam as

fronteiras rígidas entre uma coisa e outra, que não podem ser compreendidas nos campos

bem demarcados de uma memória reconstruída.

13 A íntegra do documento “Declaração da CNBB sobre a Situação Nacional” está publicada em LIMA, Luiz Gonzaga de Souza. Evolução política dos católicos e da Igreja no Brasil. Hipóteses para uma interpretação. Petrópolis: Vozes, 1979, pp. 147-149; cit. p. 147. 14 Sobre a posição da CNBB no golpe, ver SERBIN, Kenneth P. Diálogos na sombra. Bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 104. 15 Para o período aqui trabalhado, a primeira Ata disponível é de 7 de maio de 1964. As atas referentes ao momento logo depois do golpe de 31 de março de 1964 não foram localizadas na ABI. Como informa a edição número 1, o Boletim do Conselho Administrativo da ABI foi criado em novembro de 1972, sendo distribuído por via postal aos sócios da ABI. Segundo Edmar Morel, a sua criação ocorreu em maio de 1952, por iniciativa de Herbert Moses, circulando com regularidade até 1961; depois, apareceu entre 1962 e 1974, com edições descontínuas; um terceiro período iniciou-se em 1974, seguindo desde então, com regularidade. Cf. verbete de Edmar Morel da Associação Brasileira de Imprensa, em ABREU, Alzira Alves de et al. Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930. 2ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: FGV, 2001, pp. 393-394. 16 Cf. POLLAK, Michael. “Memória, esquecimento, silêncio”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989, p. 3, a partir de Maurice Halbwachs. Para a coesão, no caso específico do fim da ditadura no Brasil, ver os textos citados de Daniel Aarão Reis, na Bibliografia.

6

O livro de Edmar Morel, por exemplo, jornalista, conselheiro da ABI17 ao longo

da ditadura, lançado em 1985 – o último ano do regime – A trincheira da liberdade,

História da ABI –, subentende, até pela metáfora trincheira, que a luta da instituição foi

de enfrentamento em campo claramente definido em relação a outro campo, como numa

guerra, opostos pela guerra.

No entanto, e ao contrário de separações rígidas, o conceito de Pierre Laborie de

zona cinzenta pareceu-nos uma chave para a compreensão da opinião da ABI como

instituição ante o autoritarismo que se instaurava e consolidava como regime políico

entre 1964 e 1974. Pensado para compreender os franceses sob Vichy, o conceito pode

contribuir na reflexão de outras experiências históricas. Ele rompe com os campos bem

definidos – as trincheiras. Ao contrário, a zona cinzenta indica as nuanças existentes

entre o apoio e a rejeição; a realidade de uma ABI que ora assumia uma posição ora outra

e, na maior parte das vezes, incorporava as duas ao mesmo tempo. A zona cinzenta como

o lugar da ambivalência, que não é sinônimo de contradição, o lugar do penser-double no

qual os dois extremos se diluem na cultura do duplo.18

Inspirada em Laborie, diria que a ABI não foi, primeiro, defensora dos militares e,

depois, resistente à ditadura. A recuperação das discussões e dos embates, cujo eixo foi a

liberdade de expressão e de jornalistas, até o desencadeamento da abertura política, indica

que esteve bem mais próxima do penser-double do que da trincheira inexpugnável. Não

era coesa, abarcava embates que desapareceram na memória. Mas, sobretudo, era

ambivalente, capaz de ser a favor e contra os governos militares ao mesmo tempo. Assim,

se a ABI denunciava as prisões de jornalistas, perseguidos por suas idéias, atuava para

que fossem libertados, mantinha relações com os governos militares, os celebrava em

homenagens, banquetes etc., e identificava-se com valores e princípios que os definiam.

Durante a ditadura e depois do seu fim, muitos que estiveram no campo da resistência

democrática argumentaram que esta duplicidade fora um recurso para combater o regime

por dentro. Esta posição, entretanto, não pode ser entendida exclusivamente pela

impossibilidade de se agir de outra maneira sob uma ditadura ou para evitar o isolamento

17 Marco Morel me chamou a atenção para o fato de que, apesar de conselheiro e da intensa atividade na ABI, Edmar Morel jamais se tornou membro da direitoria da entidade. 18 Para os conceitos de zona cinzenta, penser-double e ambivalência, ver Pierre Laborie. Les Français des années troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris, Seuil, 2003. ----- . L´opinion française sous Vichy. Les Français et la crise d' identité nationale. 1936-1944. Paris, Seuil, 2001.

7

da Instituição, visando uma atuação concreta. A história da ABI nestes anos é a história

da defesa da liberdade de expressão e também a história destas relações cinzentas com a

ditadura. Esta ambivalência a estrutura nestes dez anos e não se explica, exclusivamente

nem sobretudo, em função de uma disputa entre grupos, facções ou tendências. Trata-se

de uma realidade dentro dos grupos, facções ou tendências; de uma realidade que define

individualmente muitos dos membros da ABI, que dá o tom às suas atuações.

OAB: da colaboração ao enfrentamento

Se a zona cinzenta e o penser-double ajudam na compreensão dos caminhos da

ABI nesses dez anos, contribuem pouco no estudo da OAB. Não sendo um bloco uno, a

OAB mostrou-se muito mais homogênea como instituição. Além disso, a OAB saiu do

pólo de apoio integral ao golpe – lugar no qual a ABI jamais esteve –, identificando-se

com uma cultura política de direita, para uma posição de crítica explícita e contundente

ao regime. O vocabulário e as expressões que deram o tom aos discursos dos conselheiros

desapareceram em grande parte. A mudança ocorreu antes de 1974. Na OAB, não houve

zona cinzenta nem ambivalências, ao menos da maneira como ocorreu na ABI. Ao

contrário, a Ordem esteve em campos delimitados: solidamente fincada num campo,

assumiu plenamente o outro. Passou de uma trincheira a outra. Dois dos pilares da

chamada resistência democrática tiveram, então, pontos de partida e percursos diversos.

Uma primeira mudança significativa a ser assinalada apareceu em abril de 1967

com a posse de Samuel Vital Duarte na presidência da OAB. Mas tampouco a trajetória

da Instituição foi linear. O AI-5, decretado no fim do mandato de Samuel Duarte, não

provocou o acirramento da reorientação que vinha se assinalando. O silêncio foi a

resposta da Ordem ao ato que eliminou o que ainda restara de direitos civis.

****

Em 1964, ao lado do entusiasmo com a limpeza que o novo governo promovia,

apareceram duas questões que atingiam a classe dos advogados diretamente.

A primeira dizia respeito ao direito ou não de o advogado exercer a profissão uma

vez cassados seus direitos políticos pelo primeiro Ato Institucional19. Após debates e

19 Ver, por ex., Atas de 23/6/64 e 30/6/64.

8

declarações, o Conselho Federal decidiu que a perda dos direitos políticos não acarretaria

a cassação da inscrição na Ordem, não impedindo, portanto, o exercício da profissão.20

Apesar de a decisão final ter sido a favor dos atingidos pelo AI, o fato de a OAB discutir

a questão, é significativo. Ao fazê-lo, aventava a possibilidade de reproduzir dentro da

Ordem o próprio Ato institucional, legitimando-o, portanto.

A segunda refere-se às notícias de advogados presos e, em seguida, ao tratamento

desrespeitoso do qual os advogados de presos políticos eram alvo por parte das

autoridades militares, ameaçando inclusive suas prerrogativas. Para as prisões, o primeiro

registro se deu logo na segunda reunião após o golpe, em 14 de abril de 1964. É curioso

notar a maneira como esse tema que mobilizará tão intensamente a OAB nos anos

seguintes constou pela primeira vez em ata: “O Conselheiro Jorge Botelho protestou

contra a omissão, na ata, da notícia do requerimento que formulou, verbalmente, na

sessão anterior, ao senhor Presidente, com referência à situação dos advogados presos”.21

A omissão havia ocorrido justamente na primeira ata pós-golpe. Prisão de advogados não

rimou com a celebração. Nos meses seguintes, ainda se podem encontrar referências

pouco firmes a “pretensas prisões arbitrárias de advogados no exercício da profissão”.22

As primeiras críticas ao regime surgiram em 1965. Antes do AI-2, decretado em

27 de outubro. Apareceram para extremar a posição de direita. Apontavam os limites da

revolução para completar sua obra: pôr fim à subversão e à corrupção. A não-

radicalização das duas bandeiras que mobilizara as direitas – e a OAB - era motivo de

frustação. Assim, em 27 de abril de 1965, já sob a presidência de Themístocles

Marcondes Ferreira, o vice-presidente da Ordem, Alberto Barreto de Melo, 23 discursando

em homenagem ao conselheiro falecido, Carlos Bernardino Aragão Bozano, fez a

20 Na Ata de 30/6/64, o conselheiro Gaston Luiz do Rêgo, declarando omissão de sua declaração de voto nesse processo, “explicou que o seu ponto de vista era contrário à conclusão do relator por entender que, sendo a Ordem dos Advogados do Brasil um service público federal e os seus membros órgãos da justice, não podia admitir que continuassem no exercício da profissão os que tivessem suspensos os seus direitos politicos que constituem um dos requisitos paa o seu ingresso no quadro dos advogados; (…). Entretanto, observava o conselheiro a “desigualdade” nos casos de funcionários públicos civis e militares que, uma vez cassados continuavam a receber seus proventos, em oposição aos advogados que “ficariam privados dos meios de subsistência”. Diante dessas circunstâncias, Gaston do Rêgo apoiava o parecer do relator no sentido de destituir aos advogados cassados a inscrição na OAB. Ata de 30/6/64. 21 Ata de 14/4/64. 22 Cf, por exemplo, Ata de 9/7/65. 23 Presidia, entretanto, a reunião, o vice-presidente Albero Barreto de Melo, devido à sua ausência.

9

primeira – e severa - crítica ao regime instaurado havia um ano.24 Mais uma vez, o

período Goulart é lembrado como tragi-comédia de 61, vergonha nacional em que se

constituira o desgoverno de setembro de 61 a março de 64. Mas a Revolução, que viera

interropê-lo, logo frustara o colega desaparecido:

“’Não sofria pelo que de limpeza fizera o movimento, alijando uns poucos dentre os chefes da corrupção e da subversão. Alijamento de gozadores da cousa pública não traumatiza a ninguém. O que traumatiza é vê-los preservados nos postos pela corrupção e pela fraude, muitos até integrando bloco parlamentar “revolucionário’”.

O vice-presidente da Ordem bem compreendia o seu desespero, percebendo-se

derrotado no dia seguinte à vitória. Tal como Tântalo, tão perto da satisfação impossível:

“Não há idealista, por mais desprendido, capaz de sentir-se feliz ao ver o sacrifício não só de sua vida, mas da sua e de outras gerações, malbaratado por esses mesmos artistas, hábeis no fugirem do fragor das batalhas e prestos em se fazerem porta-bandeiras e beneficiários de todas as vitórias. Não adiantaram os exemplos de 45 e 54. A Nação assiste, estarrecida, a desisntegração do movimento de 64, no suplício de Tântalo de pretender consolidar-se, eleitoralmente, sem, ao menos, desmontar a máquina política de corruptores e subversivos. Chefes políticos que deram a vitória e sustentaram o Presidente deposto o ano passado dão lastro político ao governo da Revolução; e seus agentes, pelo Brasil afora, detêm os mais altos cargos da República. Revolução sem reformulação das Instituições e substituição dos homens que as encarnam é pilhéria e pilhéria, até, de mau gosto.”

Políticos do PSD e mesmo do PTB sobreviviam ante a debilidade da revolução.

Na perspectiva de certos setores mais extremados da UDN, segundo Daniel Aarão Reis,

era preciso cassar todos os ex-aliados de Jango, mesmo aqueles que agora se colocavam

ao lado dos revolucionários. Mais adiante, quando da formação da ARENA, por exemplo,

em suas fileiras, estarão muitos dos que votavam com o governo Jango. Que a mão das

cassações fosse mais dura e firme! Que recaísse não só nas fileiras do PTB, mas nas de

todos os partidos. O que os udenistas, golpistas de primeira hora, viam não bastava. O

historiador vê aí a impossibilidade de conciliar um campo conservador mais amplo, tal

como Castello Branco cogitou num primeiro momento:

“Essa virada deu-se ainda com Castello Branco, quando se desistiu de fazer uma revolução que seria, sob o ângulo de uma certa direita udenista, desmantelar

24 Ata de 27/4/65.

10

radicalmente o legado getulista. Os udenistas de extrema direita ficaram revoltados com a nova tendência imprimida por Castello Branco. O fracasso dos candidatos de Magalhães Pinto e Carlos Lacerda, nas eleições de 1965, os confirmaria na decepção e na amargura. De que adiantavam eleições sem um rigoroso saneamento prévio?”25

Assim, as primeiras críticas ao novo regime, expressas no discurso do vice-

presidente, Alberto Barreto de Melo, vêm pela direita, clamando por uma

radicalização das cassações.

Com o AI-2, de 27 de outubro de 1965, houve uma primeira crítica fora do campo

ultradireitista, uma fissura na homogeneidade favorável ao golpe.

Como notou Marly Motta, entretanto, essa não foi uma posição institucional

contra as diretrizes que o ato institucional estabelecia.26 Tratou-se antes de um posição

individual de Heráclito Sobral Pinto, conselheiro pelo Distrito Federal, posição que aliás

claramente o isolou. Ou melhor, confirmou o isolamento já notório nas reuniões e

ratificado na sua derrota ao concorrer à eleição para presidente da OAB, no início de

1965. Sobral Pinto recebera um único voto.27 Desde o primeiro Ato institucional, de 9 de

abril de 1964, criticara o movimento pelo qual tanto havia clamado.

Não somente a OAB não redefiniu sua posição como instituição na seqüência do

AI-2, como o Ato foi até mesmo percebido por conselheiros como instrumento para pôr

fim às frustrações com os limites da revolução. Nesse sentido, a conselheira Maria Rita

Soares de Andrade

“’...o recebeu como um ato de legítima defesa ditado pelo Estado de necessidade em que se viu a revolução que tem o dever de preservar seus objetivos. É conseqüência do processo revolucionário e da ação cada dia mais audaz de seus opositores, menos drástico do que a coerção a que foram submetidos os opositores do golpe de 55, desferindo sob auspícios e com o apoio dos comunistas, cujas normas para a censura estão em seu arquivo, junto às defesas dos oficiais democratas perseguidos, presos, destituídos de comandos, para cederem lugar a oficiais marxistas e para-marxistas. Muito do que está escrito no Ato e mais do que isso – a supressão das garantias individuais do habeas corpus e do mandado de segurança – os que se dizem hoje democratas impuseram à Nação na vigência do estado de sítio, em 55. O refúgio dos perseguidos foi, então, o poder judiciário,

25 Daniel Aarão Reis, enrevista com a Autora, 3 de setembro de 2007 26MOTTA, Marly Silva da. História da Ordem dos Advogados do Brasil. Da redemocratização ao estado democrático de direito (1946-1988). Vol. 5. Marly Motta e André Vianna Dantas. Coordenação Hermann Assis Baeta. Rio de Janeiro, OAB, 2006. 27 Ata de 30/3/65.

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notadamente seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal, cujas garantias para o controle dos atos dos outros poderes devem permanecer invulneráveis. Nunca houve no País a Democracia por que lutamos. Revolução é instauração de nova ordem, jurídica, política, econômica e social. Revolução para manutenir ordem jurídica, política, econômica e social anterior é contradição que só leva ao caos’”.28

O próprio presidente da OAB entre 11/8/56 e 11/8/58, Nehemias Gueiros,

conselheiro-nato do Conselho Federal, participara da elaboração do AI-2.29

O AI-2 determinava ainda a criação de cinco novas cadeiras no Supremo

Tribunal Federal (STF). Em novembro, Prado Kelly, ex-presidente da OAB (11/8/60-

11/8/62), ex-presidente da UDN (agosto de 1948) deixava o Conselho Federal, para

tomar posse como ministro numa das recém-criadas cadeiras.30 Na ata, os conselheiros

“rejubilavam-se” “pela escolha dos novos Ministros do Supremo Tribunal Federal e

Procuradoria Geral da República, recrutados entre antigos advogados e ex-membros do

Conselho Federal, propondo um voto de louvor”.31

Ao lado da comemoração do novo cargo de Prado Kelly e demais ex-colegas

conselheiros, Sobral Pinto evocava a figura de Rui Barbosa e o “apelo” que ele próprio

fizera no passado a Getúlio Vargas, “para que fossem garantidas a independência e a

soberania do Poder Jucidiário”. Diante do “atual momento político nacional”, pedia ao

Conselho Federal que encaminhasse ao presidente Castello Branco, solicitação no mesmo

sentido. Trazia a lembrança da ditadura de 1937-45 e do liberalismo do patrono dos

advogados para apoiá-lo no embate do presente. O próprio Prado Kelly havia tido o

mandato de deputado federal cassado com o Estado Novo.

Designado outro conselheiro, Plínio Pinheiro Guimarães, para “relatar a matéria”,

ou seja, dar parecer sobre o assunto, o Conselho Federal, em sessão seguinte, discutiu e

28 Discurso da conselheira na reunião, transcrito na Ata de 10/9/65. 29 Os presidentes da OAB, ao fim do mandato, tornam-se conselheiros-nato, com assento permanente no Conselho Federal. 30 Cf., na Ata de 18/11/65, o registro da carta de Prado Kelly desligando-se do Conselho Federal. Prado Kelly, adversário político de Getúlio Vargas, teve seu mandato de deputado federal interrompido em 1937, com o golpe do Estado Novo. Em 1945, participou da elaboração dos estatutos da recém-criada União Democrática Nacional (UDN) e, em seguida, foi eleito deputado para a Assembléia Nacional Constituinte e, em agosto de 1948, tornou-se presidente da UDN. Seu último mandato encerrou-se em janeiro de 1959 e, em 1960. elegeu-se presidente da OAB. Cf. ABREU, Alzira Alves de; BELOCH, Israel (coords.). Dicionário histórico-biográfico brasileiro, 1930-1983. Rio de Janeiro, Forense-Universitária/FGV-CPDOC/Finep, 1984, v.2. 31 Trata-se de proposta do conselheiro Arnold Wald, cf. Ata de 18/11/65.

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votou a indicação de Sobral Pinto, “pleiteando a restauração imediata da independência

do Poder Judiciário, face o Ato Institucional Nº 2”.32

Com efeito, na sessão de 18 de novembro de 1965, o relator, então, concluiu, na

línguagem jurídica, “por levantar a preliminar da competência do Conselho Federal para

conhecer da indicação”. Ou seja, colocou em debate e, em seguida, em votação, se era ou

não da competência do Conselho discutir o tema proposto. O curioso é que, antes de

iniciar a votação, a sessão foi interrompida pela visita do ministro dos Negócios do

Exterior, Juracy Magalhães. “Agradecendo a saudação, o Sr. Ministro afirmou que

necessitava, em benefício da democracia, da colaboração do Conselho, para vencer as

dificuldades da hora presente”. A sessão foi suspensa “a fim de proporcionar aos

presentes oportunidade de cumprimentarem ao ilustre homem público”. A votação da

indicação de Sobral Pinto, enfim, foi votada em seguida à retirada de Juracy Magalhães.

Dez delegações consideraram que o Conselho Federal podia discutir o assunto contra

nove “por entenderem incompetente o Conselho para se manifestar a respeito da

indicação”. Duas delegações tiveram seus votos anulados e o conselheiro Nehemias

Gueiros absteve-se de votar “por haver colaborado na feitura do diploma em debate [o

AI-2]”. Decidida, embora de forma muito apertada, que podiam discutir o assunto,

passou-se à votação do mérito: se o Conselho encaminhava ou não a solicitação de Sobral

Pinto a Castello Branco no sentido da “restauração imediata da independência do Poder

Judiciário”. Por 15 votos a 2, os conselheiros apoiaram a conclusão do relator em sentido

contrário. Assim, com uma expressiva margem de vantagem, a solicitação – palavra

usada nos documentos, jamais reivindicação - não seria encaminhada. Votaram a favor

da posição de Sobral Pinto apenas as delegações da Paraíba e da Bahia. Nesse episódio

também, o evidente apoio da OAB ao governo mesmo depois do AI-2.

No ano seguinte, Sobral Pinto fez constar em ata um verdadeiro manifesto contra

o governo Castello Branco e seu AI-2.33 Mas seu isolamento permanecia. Pela primeira

vez, um conselheiro chamava a revolução de golpe, o governo revolucionário, de

ditadura. Denuciava a existência de prisão política, desafiando diretamente o general-

presidente a provar o contrário. Após a leitura das cinco páginas escritas num tom de

32 Ata de 18/11/65. 33 Ata de 24/5/66.

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enfrentamento, nada foi debatido entre os conselheiros. Ao menos, não consta em Ata

qualquer discussão ou referência a qualquer das severas acusações. O Conselho Federal,

silenciosamente, confirmava a decisão tomada em novembro do ano anterior.

O texto de Sobral Pinto é uma peça de defesa da ordem jurídica do país.

Dirigindo-se ao colegas conselheiros e ao presidente da Ordem, evocou o seu estatuto de

27 de abril de 1963, que estabeleceu como obrigação tanto do advogado como do

Conselho Federal: “’defender a ordem jurídica e a Constituição da República, pugnar

pela boa aplicação das leis e rápida administração da Justiça e contribuir para o

aperfeiçoamento das instituições jurídicas’”.34 No art. 14 do AI-2, a violação à ordem

jurídica: “’Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade,

inamovilidade e estabilidade, bem como as de exercício em funções por tempo certo’”.

Um ato ditatorial! Uma ditadura! Citando e, em seguida analisando, artigos do AI-2, ia

demonstrando a prevalência do Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário,

desrespeitando a Constituição. Ameaçados de expulsão do parlamento nacional, das

assembléias estaduais e das câmaras municipais, os membros dos órgãos legislativos

estavam reféns do poder executivo. Com o AI-2, a revolução confirma-se como golpe

militar de 31 de março. Na seqüência da análise, afirmava:

“consagrou, deste modo, o marechal Humberto Castello Branco todos os atos abusivos, despóticos, violentos e injustos praticados, à sombra do golpe militar de 31 de março de 1964, em todos os recantos do território nacional. É o jubileu da força, da vingança e do desrespeito”.

Sobral Pinto permanecia isolado no Conselho diante do apoio que seus colegas

mantinham à ditadura e ao presidente despótico, ao AI-2, ferido o estatuto da Ordem,

rasgada a Constituição. Denuncia “o atentado à verdade” do discurso de Castello Branco

pronunciado havia pouco em São Luís do Maranhão, quando afirmou a inexistência de

prisão política no país: “....numerosas pessoas já estão condenadas em processos

exclusivamente políticos, outras aguardam, na prisão, os seus respectivos julgamentos e

outras estão à disposição de Encarregados de Inquéritos Policiais-Militares”. Revoltado,

encaminhou o telegrama a Castello Branco, lido na reunião do Conselho. Embora longo,

vale a transcrição:

34 Este mesmo texto se repete no Estatuto tanto para se referir à obrigação do advogado (art. 87) como à do Conselho Federal (art.18, I). Ata de 24/5/66.

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“’Homem de ordem rendo Chefe Estado meu país homenagem meu respeito. Não devo, não posso e não quero ouvir silenciosamente sua inacreditável afirmação que só saudosos corrupção e subversão ousarão dizer, por má fé ou irresponsabilidade, que estamos em ditadura, não existindo entre nós um só preso político. Não sou saudosista da corrupção e subversão. Sou cidadão de boa fé e responsável. Informo, então, Vossência existem, nos cárceres, numerosos presos políticos, sendo, assim, inexata sua declaraçào feita Maranhão. Comunico, ainda, que no dicionário político universal instituições postas em prática governo Vossência são denominadas ditadura. É de lamentar que Chefe Estado Nação de oitenta milhões habitantes não saiba o que seja ditadura. Vossência revela, agora, desconhecimento idêntico ao do General Gosta e Silva quando, em junho de 1964, disse em oposição à realidade por todos sentida que o golpe militar de março de 1964 não nos mergulhara na ditadura. Não se iluda com palavras desleais e insinceras seus Assessores que procuram convencer Vossência de que não é Ditador. Dicionário político universal define como ditadura o regime em que o Chefe Poder Executivo cassa mandatos de representantes do povo, com assento Congresso Nacional, Assembléias Legislativas Estaduais e Câmaras Municipais; demite e aposenta Magistrados federais e estaduais para impedi-los enfrentar arbítrio esse Chefe Poder Executivo e seus agentes; desrespeita soberania Poder Legistativo; tira liberdade todos habitam território nacional; suspende, abusiva e violentamente, direitos políticos cidadãos brasileiros sem forma nem figura processo; reserva para mencionado Chefe Poder Executivo direito despótico escolher pessoas devam assumir Governo onze Estados Federação; arrancou do povo brasileiro, por simples decreto sua exclusiva autoria, direito impostergável eleger, em comícios públicos e através voto secreto, seu Presidente República; liquidou regime federativo, permitindo-se até nomear Prefeitos Municipalidades país, impedindo povo escolha aquele deve reger negócios sua cidade; deu militares, seus camaradas e encarregados inquéritos policiais-militares, direito prender, para averiguações, durante pelo menos 50 dias, qualquer habitante deste país, sem que Poder Judiciário, através seus Juízes e Tribunais, possa restaurar liberdade ilegalmente subtraída; mantém proscritos terra estrangeira numerosos brasileiros, que serão presos se regressarem território pátrio. Este é regime vigora Brasil atual. Seu nome no dicionário político-universal é Ditadura. Desafio prove o contrário. Respeitosamente, seu compatriota amargurado’”.35

Acreditava o conselheiro que a revolução que ele também apoiara já ia além da

bandeira de combate à corrupção e à subversão. No discurso de Castello Branco, a

restauração da ordem jurídica - “lesada pelo regime implantado entre nós pelas forças

Armadas” -, não estava no horizonte. Sem repercussão, o conselheiro chamava a atenção

do Conselho para o fato. Nesse momento, atribuía exclusivamente aos militares a

ditadura, contornando a participação civil – da OAB, dele mesmo - à sua obra. Golpe

35 Ata de 24/5/66.

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militar, ditadura, ditador, palavras enviadas ao marechal-presidente, de forma individual,

sem apoio do Conselho Federal e dos colegas. Acusando-o de ditador, acreditava-o

iludido por assessores? O problema do seu governo era mau-assessoramento? Ou se

tratava de mera retórica?

Após as declarações dirigidas ao Conselho e a leitura do telegrama enviado ao

marechal-presidente, nenhum pronunciamento de nenhum conselheiro está registrado.

No mês seguinte, Sobral Pinto voltou a se manifestar no Conselho, solicitando o

registro em ata de mais uma das suas declarações. Indignado, protestou contra a cassação

do mandato de governador de São Paulo de Adhemar de Barros. Mais um ato ditatorial

de Castello Branco: “Estamos é sob a pressão intolerável de uma ditadura militar”,

concluía.36 Destacou o fato de ser adversário do político paulista sob todos os aspectos.

Referia-se não somente a posições políticas, mas também a sua conduta pessoal e seus

métodos de administração. Mas isso em absoluto impedia o seu protesto. Tratava-se de

um atentado contra a autonomia do estado e o regime federativo: “O mandato do Sr.

Adhemar de Barros é um mandato conferido pelo povo paulista, do qual o Marechal

Castelo Branco não é tutor”. Humilhado e escravizado, São Paulo, o grande Estado,

transformara-se “numa fazenda sujeita aos caprichos e ao arbítrio de um Marechal do

exército Brasileiro”. Rasgava-se o mandato popular no ato de prepotência, mandonismo

e violência do militar.

É interessante notar que, segundo o presidente da OAB, Alberto Barreto de Melo,

em se tratando de manifestação de caráter pessoal, o Conselho Federal não seria ouvido.

O conselheiro Mário Guimarães chegou a se manifestar contrariamente à inclusão das

declarações de Sobral Pinto em ata, alegando se tratar de questão política inteiramente

alheia aos interesses da Ordem. Amparado no regimento interno, Barreto de Melo

garantiu o registro em ata, destacando, entretanto, que eram de sua [Sobral Pinto]

exclusiva responsabilidade. Ou seja, o conselheiro permanecia isolado em meados de

1966, ou melhor, sofrendo a oposição de colegas de Conselho.

Na reunião seguinte, Sobral Pinto referiu-se a “alguns membros integrantes do

órgão dirigente da classe dos advogados do Brasil [que] insurgiram-se contra a minha

36 Ata de 14/6/66.

16

crítica ao ato do Presidente Catello Branco....”. 37 Voltava à pauta a cassação dos direitos

políticos do cidadão Adhemar de Barros. Nessa ocasião, assim como em outros

momentos, Sobral Pinto procurava enfatizar que sua defesa nada tinha a ver com política.

O que lhe impulsionava era exclusivamente a questão jurídica. Como advogado, cabia-

lhe se opor à violação da Constituição. Aqui é interessante como Sobral Pinto recuperava

a sua própria trajetória ante a crise do início dos anos 60 e o Movimento Armado de 31 de

março de 1964. Retomava-a para demonstrar seu papel de homem da lei, que luta para

garanti-la como cidadão sem qualquer vínculo político. Lembrou seu combate “contra as

ilegalidades do Governo do sr. João Goulart e as ameaças que dele partiam contra as

instituições democráticas e republicanas da nossa Pátria”. Desvinculava completamente

seus atos no contexto do pré-64 com o que se seguiu logo após o golpe, como se não

houvesse aí uma ponte a unir os dois momentos. Não era o único a fazê-lo. Prosseguia:

“A partir de 1962 denunciei, em cartas e telegramas aos Chefes militares e aos Líderes políticos da UDN e do PSD, as desordens e as indisciplinas que se processavam nas áreas militares, universitárias, industriais e dos transportes em todos os recantos do território nacional. As colunas dos jornais desta cidade e da cidade de São Paulo estão cheias destas minhas denúncias definidas e precisas, pedindo aos dirigentes da Nação, civis e militares, que fizessem restaurar a ordem constitucional permanentemente violada”.38

Aqui, não estivera isolado. Ao contrário, juntava-se ao coro das direitas de

variados matizes a clamar pela intervenção militar. Um “esforço arriscado” no sentido

“de fazer voltar ao País a ordem jurídica, preterida pelos agentes do Poder Executivo, e

garantir as liberdades públicas,....”. Retomou ainda as mais sérias ameaças ao Congresso

Nacional feitas no Comício da Central, em 13 de março de 1964, pressionando-o para

votar as reformas de base. Como presidente eleito do Instituto dos Advogados Brasileiros

(IAB), mas ainda não empossado, Sobral Pinto encaminhou, na ocasião, à instituição uma

moção de apoio ao Congresso Nacional. Assim como a OAB, o IAB estava coeso na

defesa do golpe: “Nos últimos dias de março, foi a minha moção unanimente aprovada

[em reunião do IAB], entendendo todos que era dever das Forças Armadas defender e

garantir a soberania do Congresso Nacional”. Nesse momento, explicitava sua posição

partidária:

37 Ata de 28/6/66. 38 Na ocasição a que se refere, Sobral Pinto não era membro do Conselho Federal da OAB, como esclarece.

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“A vitória do Movimento Armado, em 1º de abril de 1964, me encontrou ao lado do Governardor Carlos Lacerda, no seu Gabinete, para aonde fora, na manhã daquele dia, pronto a correr os riscos e perigos que pendiam sobre a cabeça do valoroso político do Estado da Guanabara”.

Contudo, suas “inquietações” logo surgiram, “durante a primeira semana do mês

de abril”. Diziam respeito às informações sobre “alguns militares, com a colaboração de

alguns políticos” que “pretendiam cercear a soberania do Congresso Nacional e do Poder

Judiciário. Em seguida, com a informação de que o general Castelo Branco, chefe do

Estado maior do exército, ‘pretendia fazer-se elegar Presidente da Repúblca, para

terminar o mandato do Sr. João Goulart’”. Sobral Pinto, então, dirigiu-se a Castello

Branco, lembrando-o que a legitimidade do Movimento das Classes Armadas se dava na

medida em que restaurara a disciplina e a hierarquia militar. Havia sido organizado e

desencadeado justamente para restaurar a ordem constitucional. Mas, ao se candidatar à

presidência, Castello Branco ele mesmo atentava contra a Constituição uma vez que esta

estabelece inelegível o chefe do Estado maior de qualquer arma até três meses depois de

deixar o cargo. Referiu-se ainda ao anunciado ato institucional [o primeiro AI, de 9 de

abril de 1964] que, promulgado, instalaria no País uma verdadeira ditadura militar.

Quando o Ato se confirmou, deu uma entrevista ao Jornal do Comércio, afirmando “que

entrávamos num regime de arbítrio e de despotismo, que fazia desaparecer do País a

ordem constitucional legítima, decorrente da Constituição de 1946”. A Constituição

estava suspensa por seis meses e com ela, todas as garantias constitucionais.

Assim, acreditava o conselheiro que sua atuação sempre se pautara

exclusivamente na defesa da ordem jurídica quando ameaçada. Nada teria a ver com

posições políticas. Concluía com a citação de Ruy Barbosa ao ingressar no Instituto dos

Advogados do Brasil/IAB: “‘Outra coisa não sou eu, se alguma coisa tenho sido, senão o

mais irreconciliável inimigo do governo do mundo pela violência, o mais fervoroso

predicante do governo do homem pelas leis’”. Mesmo diante da longa defesa, o

conselheiro Mário Guimarães voltava a se manifestar contra a transcrição em ata das

suas declarações, no que recebeu apoio de Gaston Luiz do Rêgo, representante da Bahia.

Sobral Pinto, isolado, lançou mão uma vez mais do direito assegurado no regimento

interno de registrá-las.

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Na reunião seguinte, Gaston do Rêgo fez constar em ata uma retificação na

posição assumida na polêmica:

“... embora com este [Mário Guimarães] concorde, fui mais além, entendendo que ainda estamos em fase de um Governo Revolucionário que enfeixa em sua autoridade os poderes Executivo e Legislativo e, nesse caráter, a ordem jurídico-política ainda está em elaboração; e que, assim sendo, só depois de constituída a nova ordem, é que poderemos falar em excessos do poder Executivo”. 39

Em meados de 1966, a defesa do regime, apoiando e justificando um executivo

forte, não expressava exclusivamente a posição individual do conselheiro. Sobral Pinto é

que permanecia isolado.

O embate com o regime e entre os próprios colegas continuou. No dia 29 de julho

de 1966, o então candidato à presidência da República, Costa e Silva, iria ao IAB.

“Exporia os seus planos de governo”, informou no Conselho Federal da OAB José

Ribeiro de Castro Filho, presidente do Instituto, futuro presidente da OAB (1/4/73 a

1/4/75), convidando todos para participar do encontro.40 Sobral Pinto, então, já anunciou

que lhe formularia “perguntas claras e categóricas, desde a sua ascensão à chefia do

Estado, da ordem jurídica tradicional da nossa Pátria, com a supremacia absoluta e total

do Poder Civil”.41 O evento, porém, acabou não acontecendo. Costa e Silva o cancelou

alegando “os acontecimentos brutais e terroristas, no Recife, em que pereceram três

inocentes” e o “cansaço acumulado”42. Referia-se ao episódio da explosão das bombas,

no Aeroporto dos Guararapes, no dia 25 de julho de 1966, no momento em que devia

desembarcar.

Opondo-se à decisão do presidente do IAB de receber Costa e Silva, aceitando a

condição de encaminhar-lhe previamente as perguntas, apenas Guilherme Gomes de

Mattos e Sobral Pinto. Segundo informou José Ribeiro de Castro Filho, todos os ex-

presidentes do Instituto aceitaram-na. Por fim, Sobral Pinto aceitou “o diálogo com

alguém que pede o diálogo”, mas igualmente sob condições: Costa e Silva devia

39 Ata de 12/7/66. 40 Ata de 19/7/66. 41 Sobre o encontro no IAB, além de Sobral Pinto, falou também na reunião do Conselho Fedeal Gaston Luiz do Rêgo. Entretanto, sua declaração não foi registrada em Ata. Sobre a visita de Costa e Silva ao IAB, ver também a ata da reunião do IAB, 21/7/66. Na reunião do Instituto, Sobral Pinto pediu a palavra e leu um texto que a ata indica que viria transcrito em seguida. Entretanto, não foi. 42 Ata da reunião do IAB, 28/7/66.

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responder às perguntas e se comprometer com a legalidade. Caso o presidente do IAB

não se colocasse a esse respeito, ele o faria.43

Ribeiro de Castro ainda tentaria remarcar o encontro para o dia 5/8/66. Entretanto,

o Correio da Manhã e O Jornal publicaram notícias segundo as quais “os estudantes

compareceriam em massa à referida sessão”. Mesmo tendo o IAB negado a possibilidade

de o encontro se dar nessas condições, ele foi definitivamente cancelado: “assessores do

Marechal viram nos termos das cartas do Prof. Sobral Pinto expressões que os levaram a

julgar, pretenderia o Prof. Sobral Pinto imprimir caráter de debate, incompatível com os

fins do encontro. Em vista disso, foi cancelada a iniciativa”, informou o Instituto.44 A

impossibilidade do diálogo proposto aos advogados foi lamentada, transparecendo a

responsabilidade atribuída a Sobral Pinto, que o havia inviabilizado. Suas críticas ao

regime o transformaram no “debate entre Costa e Silva e Sobral Pinto”.45

O ano de 1966 terminava com o Conselho se manifestando acerca do projeto da

nova Constituição a ser promulgada no ano seguinte. A comissão encarregada de estudá-

lo, propôs uma série de modificações, todas aprovadas por unanimidade. O conselheiro

Miguel Seabra Fagundes46, entretanto, ao votar, expressou algumas ressalvas:

“‘Não me pareceu próprio sugerir a supressão do art. 170, das Disposições Transitórias, que declara isentos de apreciação do Poder Judiciário os atos praticados com base nos Atos Institucionais. Não desconheço que muitos daqueles atos estão marcados pela injustiça (inclusive pela impossibilidade de defesa oportuna dos por eles atingidos) e exigem revisão. Mas o pronunciamento do Conselho, segundo me parece, deve cingir-se ao texto da própria Constituição, e aquele dispositivo constitui matéria contingente, nela aparecendo como um apêndice. A manifestação a respeito será cabível a cada um de nós como cidadão, porém não à Ordem, cujo dever é apreciar o texto do projeto, naquilo em que, uma vez votado, passará a ser lei básica e permanente do País’”. 47

O ex-presidente da OAB, jurista consagrado entre seus pares, defendeu que a

Ordem não devia se pronunciar a respeito da situação prestes a ser reconhecida na nova

43 Cf. Ata do IAB, 28/7/66. 44 Ata do IAB, 4/8/66. 45 Inclusive na ata (4/8/66), a princípio, foi registrado que Sobral Pinto, ao ser procurado por O Jornal, sobre a presença dos estudantes, teria negado “prestar declarações”, frase que foi riscada posteriormente e substituída por: “Sobral Pinto ao ser procurado, não se recusara a dar declarações, negando, então, a presença dos estudantes”. 46 Miguel Seabra Fagundes, presidente da OAB entre 11/8/54 a 11/8/56. 47 Ata de 20/12/66. O conselheiro Francisco Elias da Rosa Oiticica acompanhou o conselheiro-nato.

20

Constituição: os atos derivados dos AIs não seriam apreciados pelo poder judiciário.

Legalizava-se o ilegal, mais, o infame. Como justamente a Ordem dos advogados não

devia se pronunciar a respeito? Eram os atos derivados dos AIs estranhos aos juristas e à

sua instituição? Matéria a ser apreciada exclusivamente pelos “cidadãos” ou cabia a

rejeição da instituição cujo papel era a defesa da ordem judiciária, segundo o próprio

estatuto? Como o eminente jurista considerou os AIs injustos? Não eram ilegais? Por

meio dessa ressalva, acabava por se omitir acerca da sobreposição do executivo ao

legislativo, aceitando que aquele instituísse espaços próprios no âmbito deste,

legitimando, por fim, os AIs. Ao considerar que deviam ser revistos, não defendia a sua

extinção.

As ressalvas de Miguel Seabra Fagundes, em dezembro de 1966, entravam em

contradição com a conferência “Uma posição em face da reforma constitucional”, que

fizera em 7 de julho do mesmo ano no IAB.48 Na ocasião, chamou a atenção para a

concentração demasiada de poder no executivo a ser confirmada na nova Constituição.

Assim como Sobral Pinto, Seabra Fagundes fala do golpe de 1964 e do AI-2, como se

aquele nada tivesse a ver com este. O AI-2 era “uma das coisas mais tristes já ocorridas

no Brasil”. Criticou o bi-partidarismo que “exclui da coletividade o seu direito de

escolha”; defendeu na reforma constitucional a conciliação da “liberdade com

autoridade”; defendeu o “aprimoramento do liberalismo, do ponto de vista político”, a

volta da eleição direta, pois “a via indireta nas eleições, no Brasil, marginaliza o

eleitorado” e “a eleição indireta é a deseducação cívica”. Entretanto, acreditava que

“fazer, agora, a eleição direta seria irreal”. Defendeu ainda “um critério de controle das

prisões, tanto no plano militar como no plano civil, sendo como é um assunto dos mais

importantes, tratando-se de pessoa humana”. Opôs-se à rapidez dos julgamentos do

Supremo Tribunal Federal. O aumento do número de ministros, instituído no AI-2 “não

satisfaz e não resolve o problema”. Seabra Fagundes aceitou a integração na Comissão de

juristas da OAB que analisava o projeto constitucional “por entender que eram medidas

para uma restauração democrática, além do fato de estar de acordo com o movimento de

março de 1964”.49 Por que às vésperas da promulgação da Constituição recuava?

48 Cf. Ata da reunião ordinária do Instituto dos Advogados Brasileiros, 7/7/66. 49 Cf. Ata da reunião ordinária do Instituto dos Advogados Brasileiros, 7/7/66.

21

Em 24 de janeiro de 1967, a Constituição foi votada, entrando em vigor em 15 de

março. O artigo 173 confirmava a aprovação e a exclusão de apreciação judicial dos atos

praticados pelo governo com base nos AIs. 50 A legalização da ilegalidade, a

institucionalização do golpe. A obra castellista que curiosamente, para muitos, será

sinônimo de linha branda.

Morto em julho de 1967, o Conselho homenageou Castello Branco com um voto

de profundo pesar pelo falecimento do eminente homem público. A iniciativa partiu de

Gaston Luiz do Rêgo, solicitando ainda que o plenário de pé reverenciasse a sua memória

com um minuto de silêncio. Em seguida, a sessão foi interrompida por cinco minutos.51

Mudanças e recuos

Em 7 de abril de 1967, assumiu uma nova diretoria da OAB, tendo à frente

Samuel Vital Duarte52. Esse parece ser um momento de mudança em relação às posições

da Ordem. No discurso de posse do presidente, a defesa da ordem jurídica, tal como

Sobral Pinto vinha fazendo isoladamente. Sendo eleito presidente do Conselho Federal, a

posição crítica ao regime de Samuel Duarte não podia estar isolada: “O quadro atual da

nação brasileira reclama, mais do que nunca, o nosso esforço e a nossa compreensão. Não

se trata apenas de defender as prerrogativas e direitos da profissão”. Samuel Duarte

claramente se referia à postura da OAB até então, limitada à defesa do direito de

advogados cassados advogar e de advogados presos no exercício da profissão. E

contunuava: “trata-se de preservar os valores da ordem jurídica, sempre que estejam

expostos aos riscos e aos assaltos de forças adversas”. Pela primeira vez, desde o golpe,

um presidente do Conselho refere-se ao regime nesses termos. E continuou:

50 Art 173 da Constituição de 1967 estabeleceu: “Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como: I - pelo Governo federal, com base nos Atos Institucionais nº 1, de 9 de abril de 1964; nº 2, de 27 de outubro de 1965; nº 3, de 5 de fevereiro de 1966; e nº 4, de 6 de dezembro de 1966, e nos Atos Complementares dos mesmos Atos Institucionais; II - as resoluções das Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores que hajam cassado mandatos eletivos ou declarado o impedimento de Governadores, Deputados, Prefeitos e Vereadores, fundados nos referidos Atos institucionais; III - os atos de natureza legislativa expedidos com base nos Atos Institucionais e Complementares referidos no item I.”

51 Ata de 25/7/67. 52 Ata de 7/4/67. Samuel Vital Duarte, presidente da OAB entre 7/4/67 a 1/4/69.

22

“Sabemos que o exercício da advogacia, como profissão e como munus publicus só floresce num ambiente de garantias democráticas. Falando em Democracia não invoco as linhas do constitucionalismo clássico. Compreendo que o Estado tem problemas de segurança; mas não vejo como confundir-se o conceito de segurança com o de Estado policial, que gera o medo e a desconfiança e através da desconfiança e do medo, acaba destruíndo as melhores conquistas da liberdade, do pensamento e da cultura” (grifo meu).

Partidário da “escola sociológica”, no que diz respeito à democracia, os direitos

fundamentais eram superiores e anteriores ao Estado, devendo esse se subordinar ao

Direito. Cabia à OAB assumir seu papel na defesa da ordem jurídica, aperfeiçoando

“instituições expostas a tendências perigosas”.

Sob a presidência de Samuel Duarte, intensificou-se a discussão quanto à

necessidade de instaurar-se o Conselho de Defesa dos Direiros da Pessoa Humana, do

Ministério da Justiça, que tanto mobilizou o Conselho Federal nos anos seguintes. Essa

era outra reivindicação pela qual Sobral Pinto vinha lutando.53 O CDDPH fora criado em

16 de março de 1964, não tendo sido, entretanto, instalado até então.54

Nesse ano também, em 1967, a OAB começou a se manifestar contra a reforma

do seu estatuto, cujo projeto tramitava no Congresso Nacional.55 Em julho, a reforma

administrativa já aprovara o enquadramento da OAB no Ministério do Trabalho.

Considerada absurda, o Conselho defendeu por unanimidade o enquadramento no

Ministério da Justiça.56

Vale notar que, em dezembro de 1964, o então presidente Carlos Povina

Cavalvanti, “citando fatores à época existentes, oficiara ao Exmo. Sr. Ministro da

Justiça, oferencendo ante-projeto de lei que lotava no referido Ministério os

53 Cf. por exemplo a ata de 12/7/66: “O Conselheiro Sobral Pinto propôs e o Conselho aprovou, que se oficiasse à Comissão de Justiça, comunicando que o assunto está sendo estudado pelo Conselho Federal” . 54 “O CDDPH foi criado pela Lei 4.319, de 16 de março de 1976, por projeto do deputado Olavo Bilac Pinto, ilustre jurista mineiro, e sanciosanado pelo presidente João Goulart, sendo ministro de Justiça, à época, o advogado Abelardo Jurema. Mas a regulamentação desse diploma legal somente ocorreu por força do Decreto n. 63.681, de 22 de novembro de 1968, sob a presidência do marechal Artur da Costa e Silva”. Entrevista de Marly Motta com José Cavalvanti Neves, em 7/7/2003, em BAETA, Hermann de Assis (coord.). História da Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB na voz dos seus presidentes. Marly Silva da Motta. Vol. 7. Brasília, OAB-Ed. 2003, p. 46. 55 Ata de 31/10/67. 56 Ata de 25/7/67. O decreto executivo, publicado no DOU em 18/7/74, reafirmou a vinculação da OAB ao Ministério do Trabalho. Cf. Ata 23/7/74.

23

funcionários deste Conselho”.57 Naquele momento, abria mão da autonomia da

Ordem. Possivelmente, pensava 1964 para além de um intervalo na trajetória

democrática do país. Em janeiro de 1972, votado em plenário, o Conselho Federal

decidiu, por unanimidade, o arquivamento do processo. Já então a luta da OAB era

contra as iniciativas do governo de submetê-la ao Ministério do Trabalho ou ao

Ministério da Justiça.58

Ao final do ano, a OAB apoiou advogados presos no exercício da profissão,

dirigindo aos ministros do exército e da Justiça, “a decisão adotada por este Conselho e

manifestando-lhe [lhes] a necessidade de fazer cessar, de imediato, as violências

cometidas contra advogados paranaenses, no exercício da profissão,...., com apuração das

responsabilidades”.59

O 1º semestre de 1968 foi marcado pelo posicionamento do presidente do

Conselho e dos conselheiros nas reuniões contra a repressão a estudantes nas

manifestações de rua. Tornava-se urgente a instalação do CDDPH.60

Ao mesmo tempo, em 1968, ficaram mais explícitas nas atas as perseguições e a

repressão a advogados bem como o comprometimento da OAB em sua defesa. Já não

eram mais presos supostamente no exercício da profissão. Alguns advogados do Paraná

e um de Santa Catarina foram atigidos “por medidas ilegais através de IPM”, registrava-

se na ata de 2/4/68. E mais: “impediu-se a comunicação de advogados com seus

constituintes presos; invadiu-se o domicílio e o escritório de um daqueles profissionais,

sem ordem judicial, a pretexto de busca de material subversivo”. Nesse momento a OAB

constituiu Augusto Sussekind de Morais Rêgo como advogado de defesa dos advogados

que haviam sido inclusive cassados nos seus direitos de exercer a profissão. O IAB

apoiou a OAB. 61 Sussekind de Morais, Heleno Fragoso e George Tavares eram

constantes nas reuniões, denunciando arbitrariedades, defendendo não apenas advogados,

mas presos políticos em geral.

57 Ata de 25/4/72. 58 Em 18/7/74, foi publicação no Diário Oficial da União o decreto executivo vinculando a OAB ao Ministério do Trabalho. Cf. Ata de 23/7/74. 59 Ata de 18/10/67. 60 Cf. Ata de 2/4/68. 61 Ata de 2/4/68.

24

Diante da situação da repressão a estudantes e advogados, Samuel Duarte

apresentou um relatório, no qual abordou, entre outros assuntos, os “Direitos da Pessoa

Humana”:

“Não podemos calar nossas preocupações quanto às dificuldades que afetam a sociedade brasileira no campo da normalidade jurídica. Violências ao direito de advogados e, em outra escala, os episódios de massacre dos índios no interior de alguns Estados, bem como a agressão armada da Polícia contra estudantes nesta cidade, da qual resultaram mortos e ferimentos [sic], atestam a necessidade de uma severa vigilância em favor dos direitos da pessoa humana, por parte de setores qualificados, como a OAB, para o exercício dessa alta responsabilidade. Assim, torna-se urgente o funcionamento do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, (....). Como é sabido, esse Conselho é constituído do Ministro da Justiça, como Presidente, do Presidente do Conselho Federal da OAB, do Presidente da Associação Brasileira de Imprensa, do Presidente da Associaçào Brasileira de Educação, dos líderes da maioria e da minoria da Câmara dos Deputados e do Senado, e de um professor de Direito Constitucional escolhido pelos integrantes do Conselho”.62

O presidente da OAB dirigiu, então, mensagens ao presidente da República e ao

ministro da Justiça sobre os “acontecimentos ocorridos na Guanabara”, insistindo na

instalação do CDDPH.63

Na véspera da Passeata dos Cem Mil, que reuniu nas ruas do Centro do Rio de

Janeiro, além dos estudantes, uma ampla parcela da classe média, vários conselheiros

indignados somaram-se às vozes dos revoltados com a repressão a seus filhos. Após

muitos pronunciamentos indignados, o Conselho fez aprovar a transcrição do protesto do

conselheiro Carlos Alberto Lacombe: “... depois que se instalou no país o Estado

policialesco e militarista que aí está, só temos presenciado cenas brutais de violência

contra os jovens, quando estes, defendendo causas justas,....”. As autoridades tinham

preferido métodos da repressão violenta, processos bárbaros e cruéis contra a juventude

ao diálogo. Defendia o conselheiro os estudantes como conscientes de suas opções e não

vítimas de agitadores em oposição à política anacrônica, reacionária, intransigente e

mesquinha do Governo. E concluía:

“Esses tristes episódios vêm se repetindo, aliás, desde abril de 64, contra todos os movimentos culturais, especialmente contra a classe estudantil e teve a encabeçá-los, inicialmente, o ultra-reacionário, o paranaense Suplicy de Lacerda, então

62 Ata de 2/4/68. 63 Ata de 25/6/68.

25

Ministro da Educação. De triste memória, secundado agora pelo não menos omisso e insensível Ministro Tarso Dutra”.64

Nos discursos contra a ação policial de repressão aos estudantes, inclusive de

Miguel Seabra Fagundes, mais uma vez a completa separação entre 1964 e 1968, como se

a limpeza apoiada na época do golpe, mesmo depois, cuja radicalização havia sido

demandada naquele mesmo forum, nada tivesse a ver com o que, atônitos, assistiam. Os

poucos anos entre aqueles acontecimentos e os acontecimentos da Guanabara os

distanciavam irremediavelmente.

Nos meses seguintes, intensificou-se a pressão para a instalação do CDDPH, o

que ocorreu em 30 de outubro de 1968. Na ocasião, Sobral Pinto interveio no Conselho,

congratulando-se com o presidente Samuel Duarte, diante da sua atuação nesse sentido.

Entretanto, não perdeu a oportunidade de registrar:

“Disse que, sem quebra das congratulaçoes, queria fazer ressalva quanto à publicação, pela imprensa, do discurso do Senhor Presidente. As glórias da instalação da Comissão, disse o Conselheiro Sobral Pinto, devem recair no Instituto dos Advogados Brasileiros e na Ordem dos Advogados do Brasil e não no Senhor Ministro da Justiça. Pediu que o reparo constasse da ata, como subsídio histórico”.65

1968 terminou no Conselho Federal antes do AI-5.66

Na presidência do biênio seguinte, na seqüência do AI-5, a OAB recuou em

relação às posições que vinham sendo assumidas na gestão de Samuel Duarte.

Na primeira reunião após a decretação daquele que é o símbolo do fechamento do

regime, do fim dos direitos civis ainda existentes, inclusive do habeas corpus, ocorrida

em 18/3/69, curiosamente, não há qualquer registro sobre o AI-5. Nela há sim a breve

referência à prisão de Sobral Pinto em Goiânia, quando esse agradeceu o apoio dos

colegas do Conselho e de Brasília.67

Para José Cavalcanti Neves, presidente da Ordem entre 1/4/71 e 1/4/73, “desde

então [desde o AI-5] o descontentamento [com o governos dos militares] tornou-se

evidente. Mas desconheço qualquer manifestação do nosso órgão de classe sobre o

64 Ata de 25/6/68. 65 Ata de 29/10/68. Cf. também, na ata de 12/11/68, um discurso de Sobral Pinto sobre o CDDPH. 66 A útima reunião do Conselho Federal foi em 26/11/68. 67 Ata de 18/3/69. A prisão ocorreu dia 17 de dezembro de 1968.

26

assunto”. Citando Raymundo Faoro, presidente entre 1/4/77 e 1/4/79, o Ato nº 5 foi até a

sua presidência – de Cavalcanti Neves – “’tolerado ou simplesmente ignorado pela

cúpula de nossa instituição’”.68

Entretanto, o próprio Raymundo Faoro ocupou cargo de confiança no governo

Médici, em 1971, como membro, entre 1969 e 1977, do Conselho Federal de

Cultura/CFC, órgão criado, em 1966. Como representante do CFC tinha assento no

CDDPH no momento do julgamento do processo da morte de Stuart Angel, militante do

MR-8, assassinado no CISA (Centro de Informações da Aeronáutica), em julho de 1971.

O caso foi arquivado contra apenas um voto, o do representante da OAB, o então

presidente José Cavalcanti Neves. Faoro, presente à reunião, retirou-se antes de

terminada a sessão, causando polêmica acerca do seu comportamento. Faoro alegou que o

fez porque compreendeu a farsa do suposto julgamento e, como representante do CFC

não estava obrigado a aceitar a indicação, ao contrário do presidente da OAB, cuja

participação impunha-se por lei. No dia seguinte ao arquivamento do processo de Stuart,

Faoro renunciou ao seu lugar no CDDPH, mas permaneceu no CFC.69 Note que, em 15

de dezembro de 1971, o governo havia ampliado o número de membros na Comissão,

acrescentando quatro representantes do governo, inclusive do CFC, na época, Raymundo

Faoro. Com a medida, visava a garantir a maioria nas decisões. Assim como a

determinação dos representantes no CDDPH – inclusive o da OAB - estivera prevista em

68 Entrevista de Marly Motta com José Cavalvanti Neves, em 7/7/2003, em BAETA, Hermann de Assis (coord.). História da Ordem dos Advogados do Brasil. A OAB na voz dos seus presidentes. Marly Silva da Motta. Vol. 7. Brasília, OAB-Ed. 2003. pp. 52-3. O depoimento de Raymundo Faoro está em Correio Braziliense, 2 de julho de 2001, cf. op cit, nota 11, p. 51. 69 Cf. Entrevista de Marly Motta com José Cavalvanti Neves, em 7/7/2003, op cit., p. 49. Cf. ainda a nota 7 da p.48: “Em sua composição original, pela Lei 4.319, de 16 de março de 1964, o CDDPH era integrado pelos seguintes membros: ministro da Justiça, presidente da OAB, professor catedrático de direito constitucional, presidente da Associação Brasileira de Imprensa, presidente da Associação Brasileira de Educação e líderes da maioria e da minoria da Câmara Federal e do Senado. Com as transformações impostas pela Lei 5.763, de 15 de dezembro de 1971, o Conselho passou a ser composto pelos seguintes membros: ministro da Justiça, representante do Ministério das Relações Exteriores, representante do Conselho Federal de Cultura, representante do Ministério Público Federal, presidente da OAB, professor catedrático de direito constitucional, professor catedrático de direito penal, presidente da Associação Brasileira de Imprensa, presidente da Associação Brasileira de Educação e líderes da maioria e da minoria da Câmara Federal e do Senado”. Além da ampliação com membros do governo, diminuiu-se para a metade o número de reuniões ao ano (que passaram de 12 para 6) e estabeleceu o sigilo das reuniões do CDDPH. Cf. também www.mj.gov.br/sedh/ct/cddph/cddph_dita.htm, consultado em 12 de dezembro de 2007.

27

lei (4.319 de 16/3/64), a presença dos novos integrantes se deu da mesma forma (lei

5.763 de 15/12/71).

Com o AI-5, portanto, não houve a confirmação das críticas ao regime que a

presidência de Samuel Duarte parecia indicar, mas justamente o contrário, o recuo.

Povina Cavalcanti, conselheiro-nato do Conselho Federal da OAB, por exemplo,

integrou a Comissão Geral de Investigações/CGI, como vice-presidente “sem que tenha

havido qualquer protesto do Conselho”, como testemunha José Cavalcanti Neves.70

Criada já no contexto do AI-5, em 17 de dezembro, a CGI tinha a função de “promover

investigações sumárias para o confisco de bens de todos quantos tenham enriquecido,

ilìcitamente, no exercício de cargo ou função pública, da União, dos Estados, do Distrito

Federal, dos Territórios ou dos Municípios, inclusive de empregos das respectivas

autarquias, emprêsas públicas ou sociedades de economia mista.”71

Povina Cavalcanti, contudo, não estava sozinho, tampouco os conselheiros

federais: “vários presidentes de seccionais integraram também as subcomissões de

investigações nos seus respectivos estados, ressalta José Cavalcanti Neves.72 Durante

todo o período em que existiu, não há nenhum registro em ata sobre a CGI, nem mesmo

no obituário de Povina Cavalcanti, falecido em dezembro de 1974.73

Após o 13 de dezembro de 1968, a única referência ao AI-5 se deu através da voz

de Sobral Pinto.

O primeiro ano do AI-5 teve à frente da OAB novo presidente, Laudo de Almeida

Camargo, eleito para o biênio 1/4/69-1/4/7174. No processo sucessório, justamente no

contexto da recente decretação do Ato, Sobral Pinto renunciou à representação no

Conselho Federal. Discordâncias com seus colegas também representantes de Brasília

sobre a sucessão explicaram o afastamento. Na mesma reunião em que deixava o

Conselho, Sobral Pinto pediu que “fosse posta em debate, com a maior urgência, a

70Entrevista de Marly Motta com José Cavalvanti Neves, em 7/7/2003, op cit, p. 51.

71 Decreto-lei nº 359 - de 17 de dezemro de 1968 – DOU DE 18/12/1968. Cria a Comissão Geral de Investigações e dá outras providências. Cf. www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/24/1968/359.htm (consultado em 20 de dezembro de 2007).

72Entrevista de Marly Motta com José Cavalvanti Neves, em 7/7/2003, op cit, p. 52. 73 Ata de 19/12/74. 74 Entre o AI-5 e essa reunião de 1/4/69 só ocorreu uma reunião, em 18/3/69, ainda sob a presidência de Samuel Duarte, sem nenhuma referência ao Ato.

28

proposta feita no sentido de ter o Conselho Federal uma manifestação ao Poder Judiciário

‘pela ofensa que sofreu e vem sofrendo do Poder Executivo desde dezembro do ano

passado, com base num ato de força alta e profundamente lesivo à ordem jurídica

estabelecida na Constituição do Brasil de 24 de janeiro de 1967’”. 75 Por meio de suas

palavras, o AI-5 apareceu pela primeira vez em ata. Isoladas de novo.

Ao longo de 1969, o tom agressivo presente em 1968 desapareceu.

Em vigor o AI-5, a vinda de Marcello Caetano ao país mobilizou a OAB. Laudo

de Almeida Camargo havia sido recebido em Lisboa pelo chefe do Estado Novo

português e “encareceu ... que a Ordem participe das homenagens a serem oficialmente

prestadas ao Professor Marcello Caetano, ao ensejo de sua próxima visita ao Brasil”.76

No mês seguinte, o registro da homenagem:

“O Presidente Laudo Camargo agradeceu o comparecimento da maioria absoluta dos senhores Conselheiros à homenagem prestada pela Ordem, no Museu de Arte Moderna, ao Prof. Marcelo Caetano, Presidente do Conselho de Ministros de Portugal, consistente no oferecimento de uma placa de prata, alusiva ao regozijo dos juristas brasileiros por sua visita ao Brasil. O Presidente Laudo Camargo salientou que ressaltara, em seu discurso, a personalidade do ilustre visitante, cujas qualidades de cidadão, jurista emérito, estadista da lei e do direito, fora colocado em destaque”.77

Na seqüência do AI-5, a saudação ao ditador revelando os limites da cultura

política dos conselheiros federais.78

Ainda em 1969, a menção à correspondência do “sr. Embaixador C. Burke

Elbrick agradecendo a mensagem de solidariedade recebida, relativamente (sic) aos

incidentes em que se viu envolvido, recentemente”79 e às comemorações do centenário de

nascimento de Gandhi.80

O ano terminava com reunião do CDDPH, de 2 de dezembro de 1969, no gabinete

do Ministro da Justiça, quando Laudo de Almeida Camargo “...nomeou as conclusões da

Reunião dos Presidentes dos Conselhos Secionais, efetuada em Belo Horizonte, de 27 a

29 de novembro (...): I- restabelecimento da instituição do ‘habeas corpus’; II-

75 Ata de 1/4/69. 76 Ata de 24/6/69. 77 Ata de 29/7/69. 78 Para os conceitos de família política e cultura política, cf. BERSTEIN, Serge, 1992 e 1998. 79 Ata de 23/9/69. 80 Ata de 30/9/69.

29

restabelecimento da soberania popular do júri;...”. As demais nove conclusões referiam-

se a aspectos trabalhistas.81

Embora a oposição à censura prévia, denunciada como insconstitucional82, à pena

de morte83, ao Esquadrão da morte84, às mudanças no CDDPH, quando se debateu se o

presidente da OAB devia ou não nela permanecer em função da ampliação do número de

representantes do governo e a imposição do sigilo das reuniões85, assim como a defesa de

presos políticos, sobretudo, em torno do trabalho notável de Augusto Sussekind de

Morais Rêgo, Heleno Fragoso e George Tavares86, do restabelecimento do habeas

corpus87, fossem temáticas constantes nas reuniões ocorridas já sob o AI-5, não se

cogitava de uma ruptura com o regime existente.

Nem o AI-2 nem o AI-5 foram capazes de provocá-la. O marco da ruptura da

instituição com o regime está bem adiante. Ainda citando Raymundo Faoro, localiza-se

na gestão de Cavalvanti Neves, formalizado no VI Encontro da Diretoria do Conselho

Federal, em Curitiba entre 31 de maio e 2 de junho de 1972. O Encontro produziu a

Declaração de Curitiba elaborada a partir do discurso de abertura do presidente. O

documento firmou a OAB no campo da luta pela redemocratização. Nele, a defesa do

restabelecimento das garantias do Judiciário e da plenitude do habeas corpus; da

“harmonia entre a segurança do Estado e os direitos do indivíduo, na conformidade dos

princípios superiores da Justiça”; do “livre exercício da atividade profissional do

advogado; do respeito à pessoa humana; dos princípios da Declaração Universal dos

Direitos do Homem. Diretamente sobre a repressão política afirmava:

“A repressão à crimimalidade – mesmo quando exercida contra os inimigos políticos – deve fazer-se sob o império da lei com respeito à integridade física e moral dos presos e com observância das regras essenciais do direito de defesa, notadamente a comunicação da prisão à autoridade judiciária competente”.

81 Ata de 9/12/69. 82 Ata de 3/3/70, por exemplo. A OAB foi unânime contra a pena de morte. 83 Ata de 9/6/70, por exemplo. 84 Atas de 25/8/70, de 29/9/70, por exemplo. 85 Ata de 23/5/72, por exemplo. A seccional da GB propôs a retirada da OAB do CDDPH, mas foi voto vencido no Conselho Federal. Abandonaram-no os líderes da oposição na Câmara e no Senado e o presidente da ABI. Cf. também entrevista de Marly Motta com José Cavalvanti Neves, em 7/7/2003, op cit, 2003, p. 48. 86 Ata de 28/7/70, por exemplo. 87 Ata de 25/8/70, por exemplo.

30

Aqui, é interessante notar como, mesmo em meio ao combate à legislação

produzida pela ditadura, a OAB não fez a distinção entre crime comum e crime político,

em conformidade com a perspectiva da própria ditadura. Vindo de juristas, não deixava

de ser um reconhecimento da opinião divergente como crime.

A Declaração ainda se referiu ao “progresso econômico e social”, tema do

Encontro, eixo do governo Médici:

“o legítimo progresso econômico e social só se fará em conformidade com os princípios do estado de Direito e o respeito aos direitos fundamentais do homem. Se é verdade que para o desenvolvimento são indispensáveis paz e segurança, não é menos verdade que não existem tranqüilidade e paz quando não há liberdade e justiça”.88 Na primeira reunião sob sua presidência, José Cavalcanti Neves havia

encaminhado ao general-presidente Médici ofício, seguindo decisão unânime dos

presidentes dos conselhos secionais, “reivindicando o restabelecimento da plenitude do

uso do habeas corpus, o respeito ao livre exercício da profissão de advogado, o eficaz e

sempre presente funcionamento do Conselho de Defesa da Pessoa Humana e a revogação

das disposições legais que deram à pena de morte extensão até então inexistente”.89

Em fins de 1971, Sobral Pinto já não estava isolado. Desde o início do ano,

voltara a ser conselheiro pela Guanabara.90 No aniversário de Rui Barbosa, 5 de

novembro, havia sido agraciado com a Medalha Rui Barbosa, prêmio “por serviços

prestados à causa do Direito e da Justiça”91, atribuída pela primeira vez pela OAB. Nesse

dia, também o conselheiro fazia aniversário.

Assim, a OAB, como instituição, só rompeu com o regime oito anos depois do

golpe civil-militar, três anos e meio depois do AI-5, sem nem mesmo se manifestar sobre

ele.

88 O texto da Declaração de Curitiba está transcrito na ata de 20/6/72. 89 Ata de 27/4/71. 90 Ata de 1/4/71. 91 Ata de 9/2/71. “O sr. Pres, dr. José Cavalcanti Neves, comunicou que designara o Conselheiro Luiz Rafael Mayer para representar este Conselho na solenidade de comemoração do sesquicentenário da Independência, realizada pelo Supremo Tribunal Federal, havendo o mesmo falado em nome dos advogados. “Prosseguindo, o sr. Pres informou ao Conselho que enviara expediente a todos os Conselhos Secionais, sugerindo que os msmos, ao curso do mês de outubro próximo, realizassem sessão solene de comemoração do sesquicentenário da Independência, versando, a um só tempo, esse tema histórico e a atuação dos advogados. Acrescentou que era seu propósito efetuar, em novembro próximo, com a presença dos srs Presidentes dos Secionais, sessão solene deste Conselho, com aquela mesma finalidade”.

31

Memória, opinião, cultura política

A elite de juristas do país participou do golpe de 1964 como um movimento

dentro da normalidade da lei e mais, como instrumento de defesa do Estado de Direito, o

que não impediu que, em 1976, J.B. Viana de Moraes reconstruísse a memória como um

sacrifício da classe dos advogados de alguns princípios jurídicos.92

Nas discussões que mobilizaram o país, a OAB demonstrou a incorporação do

ideário, da argumentação, do vocabulário, dos valores anticomunistas típicos da Guerra

Fria dos anos 1960 e de instituições brasileiras militares e civis como a Escola Superior

de Guerra/ESG, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais/Instituto Brasileiro de Ação

Democrática/IPES-IBADE, a Campanha da Mulher pela Democracia/CAMDE93, a

Conferência Nacional dos Bispos do Brasil/CNBB etc. Em outras palavras, na

documentação das atas, registro de posições individuais, de grupos e da Instituição, é

evidente a identidade da OAB com a cultura política de direita que estruturou as forças

civis na derrubada do governo eleito democraticamente. Essas instituições, mais do que

apoiarem o golpe, dele participaram.

A OAB não redefiniu sua posição quanto ao golpe. A maneira como viu os

primeiros anos da década de 1960, o governo Goulart e a participação popular na defesa

das reformas não mudou nos anos seguintes. Julgou na época a necessidade da

intervenção militar. Em nenhum momento no período estudado – 1964 a 1974 – apareceu

nas discussões do Conselho Federal qualquer reavaliação quanto a essa posição. O que

veio depois nada tinha a ver com a revolução na qual a Ordem se engajara. Essa – a

revolução - permaneceu intocável, imaculada. O abismo entre o golpe e a ditadura.

Críticos do AI-2, apenas se expressaram, no Conselho Federal, Sobral Pinto e

Miguel Seabra Fagundes. Os demais conselheiros lhe foi favorável – ou não se

manifestaram -, mantendo o apoio ao governo após a sua decretação. Fato curioso pois os

princípios da UDN e do lacerdismo são nítidos nesse forum. Coesos no golpe e, com

92 Discurso de J.B. Viana de Moraes, em Anais da VI Conferência Nacional da OAB. Salvador, BA, 17 a 22 de outubro de 1976, p. 33. 93 Para a CAMDE, ver CORDEIRO, Janaína Martins. A Nação que se salvou a si mesma. Entre Memória e História, a Campanha da Mulher pela Democracia (1962-1974). Dissertação de mestrado apresentado ao PPG em História, da UFF. Niterói, 2008.

32

poucas exceções no AI-2, justamente o Ato que atingiu em cheio o partido e o seu líder.

Com ele, frustrava-se a aspiração de a UDN chegar à presidência com Carlos Lacerda,

depois de excluídos trabalhistas e comunistas. Contudo, entre o governo Castello Branco

e Lacerda, a OAB manteve-se ao lado do primeiro.94 Com o fim do sistema partidário,

ficava claro que o período pós-golpe não seria um breve lapso antes da restauração da

normalidade democrática, eleitoral, com autonomia do Judiciário. Ao apoiá-lo, a OAB

afastava-se dos ideais do golpe associados exclusivamente à limpeza, à manutenção da

ordem. O AI-2 estabelecia a ponte com o que veio depois. A separação entre um

momento e o outro faz parte da memória construída a posteriori.

Os conselheiros da OAB, mesmo considerando suas diferenças e divergências,

pertenciam a uma família política. Se foram atingidos pelas arbitrariedades do governo,

este, entretanto, não lhe era estranho. Partilharam com seus integrantes a cultura política

que justificou a eliminação do sistema institucional democrático instaurado em 1945,

inclusive com o sacrificio do próprio partido e do seu principal líder. A OAB radicalizou

ali, no AI-2, seu conservadorismo, acompanhavam Castello, e não Lacerda. Daí a solidão

de Sobral Pinto, golpista de primeira hora, udenista, lacerdista, que não atravessou essa

ponte. Isolado, vai aparecer na memória reconstruída mais tarde como o símbolo da

resistência democrática da OAB. Alçado a essa condição, seu isolamento será esquecido

– ou silenciado.

A atribuição do adjetivo militar ao golpe e ao regime construído em seguida foi

igualmente uma construção da memória, quando os civis procuraram demarcar-se em

relação, não somente aos militares, mas também a si mesmos, a seu passado.

É a identidade com essa cultura política autoritária, intolerante às diversidades,

que clama pelas Forças Armadas quando a partida está supostamente em risco, pela

limpeza, por sua radicalização, que explica o próprio desparecimento da UDN.

É essa identidade que explica como se manteve a interpretação acerca do governo

Goulart, da conjuntura pré-golpe, e do próprio golpe. Explica o silêncio sobre a CGI, o

94 Janaína Martins Cordeiro, em seu trabalho sobre a CAMDE, organização criada em 1961, articulando mulheres de classe média e classe alta no combate ao comunisto, às reformas, ao governo Goulart, partidárias da UDN e do lacerdismo, mostrou igualmente como elas ficaram ao lado do governo Castello Branco, quando do AI-2. CORDEIRO, Janaína Martins, op. cit., 2008.

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silêncio sobre a colaboração de Povina Cavalvanti – da OAB - até a extinção do órgão,

em 1973.

Explica a colaboração de Raymundo Faoro no CDDPH como representante do

governo, o mesmo Faoro, depois eleito presidente da OAB, para o biênio 1/4/77 a

1/4/79, consagrado e reconhecido por seus pares, Faoro outro símbolo da resistência

democrática.

Explica o fato de José Cavalvanti Neves, o presidente de cujo discurso na

Conferência de Curitiba saiu a Declaração, participar das comemorações do

Sesquicentenário da Independência, festa-síntese do regime, através da qual o general

Médici comemorou seu milagre, emancipando o país economicamente, tal qual D. Pedro

o fizera politicamente. O mesmo Cavalvanti Neves que enviou mensagem a Médici e que

atuou contra o arquivamento do processo Rubens Paiva no CDDPH95. Também o IAB,

em setembro de 1972, nas comemorações do Sesquicentenário, inaugurou o retrato de D.

Pedro I, na sala de sessões. Presente à cerimônia, Marcello Caetano, em visita ao Brasil.96

Explica ainda a homenagem do Conselho Federal ao general Olympio Mourão

Filho, quando faleceu, já em 30/5/72, ou seja, no contexto da Declaração de Curitiba. Na

ocasião, o combativo Augusto Sussekind de Moraes Rêgo, notabilizado pela defesa dos

presos políticos “informou que comparecera ao sepultamento de Mourão Filho,

pronunciando em nome do Conselho oração junto ao túmulo.”97 Embora como ministro

do Superior Tribunal Militar tenha criticado duramente o regime, o general entrara para a

história por sua atuação no golpe.

95 Em função da atuação do deputado Pedroso Horta e de José Cavalvanti Neves, no julgamento do processo do deputado desaparecido, requerendo vistas do processo, no momento em que o relator, senador Eurico de Resende, indicava o arquivamento, a Lei sobre o funcionamento do CDDPH foi alterada, visando a impedir novos enfrentamentos. Cf. Entrevista de Marly Motta com José Cavalvanti Neves, em 7/7/2003, op cit, 2003, pp. 46-48. 96 Cf. carta do ex-presidente do IAB, Thomas Leonardos, endereçada ao general Antonio Jorge Correia, presidente da Comissão Executiva das Comemorações do Sesquicentenário da Independência, datada de 17 de março de 1972, quando Miguel Seabra Fagundes era presidente do Instituto. Arquivo Nacional (RJ). Fundo Comissão Executiva da Comemoração do Sesquicentenário da Independência. Arquivo Nacional/SDE - Documentos Públicos, código 1J. Pasta 51. Agradeço à Janaína Martins Cordeiro a indicação do documento. 97 Ata de 30/5/72. A homenagem foi sugerida pelo conselheiro Oswaldo de Souza Valle.

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Explica como Heleno Fragoso, outro valoroso advogado de presos políticos, se

refira ao “saudoso Presidente Castelo Branco”, em reunião na qual denunciava

violências do governo, tortura, prisão de advogados.98

Explica a homenagem ao cardeal arcebispo D. Jaime de Barros Câmara, ao

morrer, representante da Igreja no combate ao comunismo, participando como entidade

civil ao lado dos militares. Nas palavras do Conselheiro José Motta Maia, a continuidade

em 17/3/71 dos valores de 31 de março de 1964:

“’(...) venho.....realçar a figura do grande sacerdote que foi ao mesmo tempo notável homem público deste país, no melhor sentido! Na fidelidade aos princípios, que são também os princípios dos advogados brasileiros, os do respeito às tradições mais caras de nossa pátria, de preservação da liberdade, dos direitos humanos e da justiça social. Assinalamos que D. Jaime sucedeu a dois eminentes Cardeais da Igreja, com um propósito e uma intenção: a de destacar sua atuação corajosa, em tempos muito mais difíceis, tempos de mudanças e de transição, tempo de perigo para a humanidade e para instituições que se pretende sejam defendidas e nem sempre se preservam, com aquele espírito de sacrifício diante das ameaças próximas ou remotas, surgidas dentro do país e vindas de fora, como evidente no mundo em que vivemos. Os perigos e os riscos de uma decisão diante dos males que nos ameaçaram nos primeiros anos da década de 60 não o afastaram do cumprimento do dever àquele de clamar e conclamar para defesa de alguma coisa que é a razão de ser da vida dos homens livres. Na quaresma de 64 foi sua voz que se elevou mais alta, em nome da Igreja, denunciando o perigo próximo e formando com os homens que sempre desejaram e ainda desejam este país livre, senhor dos seus próprios destinos, com progresso e com justiça social. Quando outros transviados de sua sagrada missão, se juntavam ao poder conspirador, que ameaçava levar o Brasil a destinos incertos a pretexto de reforma social – lêde os jornais da época e relembrai os que se acumpliciaram com a traição à Pátria – foi sua voz que se levantou para dizer que a voz verdadeira do catolicismo era por um Estado de Direito, infenso a qualquer forma de violência, com um Brasil fiel às suas raízes, às suas tradições e aos sentimentos de solidariedade humana que inclui o progresso econômico com justiça social.”99

Explica as divergências quanto ao apoio a brasileiros exilados no Chile, quando

do golpe que derrubou o presidente eleito Salvador Allende. Heleno Fragoso propôs “que

a OAB se dirija ao Governo do Chile solicitando seja respeitada a situação jurídica dos

brasileiros que ali se encontram protegidos pelo instituto do asilo”. Sobral Pinto,

apoiando a proposta de Fragoso, defendeu ainda que OAB se dirigisse à ONU,

98 Ata de 28/5/74. 99 Ata de 17/3/71. Homenagem por indicação do conselheiro José Motta Maia.

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“ante os rumores de que o novo Governo do Chile estaria disposto a fazer retornar ao Brasil aqueles exilados, o que significaria entregá-los às prisões do nosso país. Lembra que, se forem confirmados tais propósitos, estarão feridas as Declarações dos Direitos do Homem e a Declaração de Bogotá de 1948, ambas garantidoras do direito de asilo”. A polêmica instaurou-se sob o argumento contrário do conselheiro Godoy Bezerra

para quem a proposta tinha caráter político. Em discussão também a urgência da matéria,

que, se não confirmada, cabia a designação de um relator para a sua análise. Submetida

ao plenário, a urgência foi negada.100 A votação do mérito e da competência, enfim,

ocorreu em 12/10/73. Após as manifestações das delegações se o Conselho devia se

endereçar apenas ao embaixador do Chile no país em favor dos brasileiros detidos ou,

além de fazê-lo, deveria se dirigir igualmente aos organismo internacionais, como a

ONU, por fim, venceu essa última.101

Explica os valores presentes nas palavras de J.B. Viana de Moraes, em 1976, que

defendendo a eliminação dos Atos institucionais e condenando a tortura – “a violência

como forma de apuração da verdade”- , o arbítrio, a censura, “a forma processual

restritiva do exercício amplo da defesa e as leis agressivas aos direitos humanos”,

mantêm a avaliação do momento do golpe de 1964. Opunha desordem e ordem, falta de

disciplina e disciplina, desmando e mando, quando se objetivava ver a Pátria

reintegrada no primórdio do Direito, da Paz e da Segurança. O possível interregno, a

zona intermediária, a área “grígia”, “na qual, momentaneamente, poderiam ser

sacrificados alguns princípios jurídicos em benefício, todavia, de um porvir melhor, de

um futuro límpido, cristalino, onde a Lei, a Paz e a Justiça haveriam de imperar”.

Explica como em meio ao combate aos AIs, “corpos estranhos na estrutura

jurídica, [que] desnaturam as tramitações processuais e conferem a ilimitação de poderes,

de cuja amplitude alcança a área de injustificado arbítrio”, é possivel separar as criaturas

dos poderes detidos por elas, elogiando aquelas como se não fosse responsáveis por estes:

“Não cogitou [a classe dos advogados] e não cogita das criaturas humanas, que detêm eventualmente estes poderes, porque, ainda que sobriamente manifestados, equilibradamente usados, honestamente utilizados, cuidadosamente exercidos, como é o caso do eminente Presidente da República, general Ernesto Geisel, que busca o acerto e a verdade, são eles, contudo, uma arma de terrível capacidade

100 Ata de 25/9/73. 101 Ata de 12/10/73.

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agressiva e verdadeiramente destruidora das mais sensatas e elementares manifestações de Direito”. 102 Ao contrário da ABI, não é através da ambivalência que se podem compreender

esses momentos e comportamentos, a opinião da OAB, mas sim pela coerência da sua

cultura política.

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102 Discurso de J.B. Viana de Moraes, em Anais da VI Conferência Nacional da OAB. Salvador, BA, 17 a 22 de outubro de 1976, p. 33 e 34.

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