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Paulo Victorino CAPÍTULO UM 1964 REVOLUÇÃO OU GOLPE ? A QUEDA DE JOÃO GOULART No dia 27 de março de 1964, marinheiros liderados por um agente duplo, que ficou sendo conhecido como "cabo" Anselmo, e com a evidente cumplicidade do almirante Aragão, recusaram-se a reassumir seus postos de trabalho. Presos em um quartel do Exército, foram inexplicavelmente liberados, horas depois, e saíram em ruidosa passeada pela cidade do Rio de Janeiro. Passados três dias, o próprio presidente da República, despachando há vários dias do Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, consentiu em comparecer a uma reunião de sargentos realizada no Automóvel Clube e lá discursou, ao lado do "cabo" Anselmo e do Almirante Aragão. Estava quebrada a cadeia de comando, indispensável para a manutenção da ordem e da disciplina militar. Era o próprio chefe supremo das Forças Armadas que se juntava a praças insubmissos, dando-lhes apoio e desmantelando toda a hierarquia das Forças Armadas. Na quebra da autoridade, só restava a opção da força e seu emprego acabaria acontecendo um dia após. Vetado pelos ministros militares, odiado pelos conservadores, que o queriam ver longe do governo, com seu poder diminuído, no início, pela emenda parlamentarista, e sem pulso suficiente para conter os radicais da esquerda, o presidente João Belchior Marques Goulart foi vítima de múltipla conspiração, desde sua posse, ocorrida em 7 de setembro de 1961.

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Paulo Victorino

CAPÍTULO UM

1964 – REVOLUÇÃO OU GOLPE ?

A QUEDA DE JOÃO GOULART

No dia 27 de março de 1964, marinheiros liderados por um agente

duplo, que ficou sendo conhecido como "cabo" Anselmo, e com a

evidente cumplicidade do almirante Aragão, recusaram-se a

reassumir seus postos de trabalho. Presos em um quartel do

Exército, foram inexplicavelmente liberados, horas depois, e saíram

em ruidosa passeada pela cidade do Rio de Janeiro. Passados três

dias, o próprio presidente da República, despachando há vários

dias do Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, consentiu em

comparecer a uma reunião de sargentos realizada no Automóvel

Clube e lá discursou, ao lado do "cabo" Anselmo e do Almirante

Aragão. Estava quebrada a cadeia de comando, indispensável para

a manutenção da ordem e da disciplina militar. Era o próprio chefe

supremo das Forças Armadas que se juntava a praças

insubmissos, dando-lhes apoio e desmantelando toda a hierarquia

das Forças Armadas. Na quebra da autoridade, só restava a opção

da força e seu emprego acabaria acontecendo um dia após.

Vetado pelos ministros militares, odiado pelos conservadores, que o queriam

ver longe do governo, com seu poder diminuído, no início, pela emenda

parlamentarista, e sem pulso suficiente para conter os radicais da esquerda, o

presidente João Belchior Marques Goulart foi vítima de múltipla conspiração,

desde sua posse, ocorrida em 7 de setembro de 1961.

- 010 -

No princípio, eram movimentos ocultos, contidos em certa parte, pela atuação

moderada do Gabinete parlamentarista formado pelo experiente primeiro-

ministro Tancredo de Almeida Neves.

Mas, com a volta do presidencialismo, recolocando todos os poderes de

governo nas mãos do presidente da República, e com o recrudescimento da

ação das esquerdas, a conspiração se tornou aberta, num confronto entre as

forças conservadoras e aquelas ditas revolucionárias, que disputavam o mesmo

espaço.

Escreve Francisco de Assis Silva, em seu livro "História do Brasil":

"Todo mundo conspira: direita e esquerda; civis e militares;

moderados e radicais; operários e camponeses. Os governadores

Ademar de Barros (SP), Magalhães Pinto (MG) e Carlos Lacerda

(GB) conspiravam com a ala militar anti-janguista. O golpe estava

em andamento. A direita congregava-se em organizações como o

Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) e o Instituto

Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), financiados pelos Estados

Unidos, e outras tantas que se uniram para impedir as reformas

sociais."

Verdade é que o presidente João Goulart em nada contribuía para baixar a

temperatura efervescente nos meios políticos e na caserna: ignorava o

Congresso e a ala conservadora, procurando impor suas reformas baseado no

lastro da popularidade de que dispunha, e na expressiva votação que obtivera

nas eleições, ocasião em que quebrou a unidade partidária.

Com efeito, Jango fez-se vice-Presidente pela esquerda, junto com Jânio,

que representava a ala mais reacionária da política brasileira. Era

dobradinha "Jan-Jan" (Jânio e Jango), que selou o fim da carreira política de

Teixeira Lott (candidato a Presidente, com Jango) e de Milton Campos

(candidato a vice-Presidente com Jânio). Lott e Campos, na ocasião, foram

derrotados por acordos espúrios entre grupos políticos. Dessa união entre

desiguais, nada de bom poderia acontecer.

- 011 -

Embora dispersa em vários comandos civis e militares, principalmente no Rio

de Janeiro, em São Paulo e em Minas Gerais, a oposição ao governo reconhecia

a ascendência das lideranças do Rio, onde se achava o general Artur da Costa

e Silva, e para onde, mais tarde, foi removido o general Humberto de Alencar

Castelo Branco, que deixou o comando do 4º Exército, em Recife, para assumir

o comando do Estado Maior do Exército (EMEx), onde era maior o seu poder de

articulação.

Correndo por fora da raia, como um franco atirador, estava o general Olímpio

Mourão Filho, com opiniões próprias, infenso a qualquer orientação vinda de

fora de seu comando, ele mesmo capaz de desequilibrar o plano integrado das

demais forças que participavam da conspiração anti-Jango. E foi Mourão que,

na madrugada de 31 de março de 1964, por sua própria conta e risco e sem

conhecimento dos demais, saiu de Juiz de Fora com um punhado de jovens

soldados inexperientes para a derrubada do governo, antecipando em pelo

menos 20 dias o movimento que deveria eclodir a partir do Rio de Janeiro.

Revolução ou golpe ? Essa discussão até hoje está em aberto, embora a

opinião da maioria se incline para a segunda hipótese. Para os militares que

participaram do movimento, foi uma revolução objetivando exterminar o

comunismo que atentava contra as liberdades democráticas; para a ala

esquerda, não pairavam dúvidas de que se tratava de um golpe bem articulado

para impedir a realização das reformas. Para os mais equilibrados, foi uma

revolução legitimada pela participação popular na Marcha com Deus e pela

Liberdade, que levou multidões às ruas, mas que passou a ter a conotação de

um golpe de estado após o Ato Institucional nº 2, seguido de outro 15 Atos

Institucionais editados no correr do processo.

Para o general Mourão Filho, teria sido uma revolução legítima, partindo de

Minas Gerais, a qual chegou vitoriosa ao Rio de Janeiro, mas lá encontrou o

general Costa e Silva já instalado no gabinete como ministro da Guerra, e o

general Castelo Branco virtualmente empossado como presidente da República.

Era o que o próprio Mourão chamou de "golpe de 1º de abril".

É importante nos determos nos acontecimentos que levaram ao movimento

vitorioso de 1964, que rapidamente afastou as lideranças civis ou colocou-as a

seu serviço, dando início a uma série de governos militares que se sucederam

no poder até março de 1985.

- 012 –

No primeiro plano, o general Olympio Mourão Filho (2 estrelas), artífice da

operação “Popeye” em 31 de março. Ao seu lado, o governador de Minas,

José de Magalhães Pinto, considerado o líder civil da revolução. No segundo

plano, o general Antônio Carlos Muricy.

Como era estranho

esse general Mourão

Olímpio Mourão Filho (1900-1972) nasceu em Diamantina (MG), a mesma

cidade de Juscelino Kubitschek. É a única identidade entre os dois. Ao contrário

de JK, Mourão Filho tinha índole belicosa e um temperamento irrefreável,

transcorrendo toda sua vida ao meio de conspirações, desenvolvidas

abertamente, seguindo sua própria avaliação e em prejuízo de qualquer opinião

que não a sua própria.

Se tivermos de compará-lo a alguma figura história, poderíamos melhor

aproximá-lo de Tiradentes, outro mineiro notável que assumiu como seus os

ideais da Conjuração Mineira e saiu pelas cidades de seu Estado e do Rio de

Janeiro pregando a queda do Império, descuidando-se do sigilo, elemento

essencial para a vitória de qualquer movimento contestatório.

- 013 -

Em 1937, como capitão do Exército, Mourão identificou-se com a Ação

Integralista Brasileira e teve seu nome envolvido no Plano Cohen, usado como

pretexto para a implantação do Estado Novo.

Em verdade, tal plano de pretensa ação comunista para tomada do poder foi

redigido por ele próprio, mas apenas para treinamento dos integralistas no

combate ao comunismo.

Por ardil do presidente Getúlio Vargas, auxiliado pelos generais Góis

Monteiro e Caiado de Castro, mas com a cumplicidade do Ministro da Guerra,

general Eurico Gaspar Dutra, a peça foi tomada como verdadeira e serviu de

pretexto para o fechamento do Congresso Nacional e a instituição de um novo

regime, o do Estado Novo.

O maior prejudicado, além da nação brasileira, foi o próprio Mourão, que por

quase trinta anos teve sua carreira militar bloqueada, enquanto seus

companheiros de turma subiam rapidamente. Em 1956, o Presidente Juscelino

Kubitschek, finalmente promoveu-o a general-de-brigada (duas estrelas), ficando

estacionado nessa posição durante cinco anos.

Foi na patente de general de brigada (2 estrelas) que, em 1961, voltou-se

contra os ministros militares que se opunham à posse de João Goulart, seguindo

então para a casa do marechal Teixeira Lott, este já na já na reserva, onde se

encontravam outros militares favoráveis à posse de Jango, dentro dos termos da

Constituição. Lott havia emitido um manifesto, publicado pelos jornais matutinos,

e vinha com uma outra declaração, quando Mourão, irritado, contestou:

"Marechal, chega de manifesto! Põe tua farda, vou em casa pôr a

minha, tocamos para a Vila Militar e vamos revoltar as tropas!"

Lott recusou-se a fazê-lo. Pior para ele que, horas depois, estava preso, por

ordem de seu amigo e companheiro, o ministro da Guerra, general Odílio

Denys.

João Goulart foi finalmente empossado e, pouco depois, Mourão Filho passou

a conspirar contra o novo Presidente, primeiro em Santa Maria (RS), depois em

São Paulo e finalmente em Juiz de Fora, causando mal-estar e inimizades até

dentro nas hostes anti-janguistas.

- 014 -

Vitorioso o movimento de 1964, do qual Mourão foi o estopim, voltou-se

também contra essa conquista, considerando que a revolução foi traída com a

permanência dos militares no poder. Já não tinha, porém, qualquer poder, pois,

ainda em 1964 caiu na compulsória, com direito a uma promoção automática

para general de divisão e um pijama para viver a vida fora da caserna.

Enquanto outros de sua turma se aposentaram com o título de marechal,

Mourão foi para a reserva como general de três estrelas, quase ignorado nas

referências sobre o movimento militar que resultou na instituição da Quarta

República.

Uma ou outra enciclopédia abre um verbete com seu nome e, assim mesmo,

para uma breve citação, sem se deter em sua agitada e profícua biografia ou na

importância capital que ele teve para o sucesso do movimento.

Em Santa Maria,

o "Plano Junção"

Promovido a general-de-brigada (duas estrelas) em 7 de setembro de 1956,

após processo de Justificação, já no mês seguinte Mourão assume o comando

da Infantaria Divisionária em Belo Horizonte, onde não fica mais que uns

poucos meses. Seu temperamento guerreiro incomodava muito e Juscelino

nomeia-o para cargos burocráticos, primeiro na Assistência Social do Exército e,

depois, na direção dos Serviços de Radiodifusão (hoje DENTEL), subordinado

ao naquela época ao Departamento de Correios e Telégrafos.

Congelado por vários anos, só em 21 de setembro de 1961 volta às atividades

militares, tomando posse como comandante da 3ª Divisão de Infantaria, em

Santa Maria, no Rio Grande do Sul.

Pouco tempo depois, já desconfiava não só do presidente João Goulart como

também do governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, achando que

ambos pretendiam aplicar um golpe de estado com subsequente comunização

do governo.

- 015 -

E, assim, não tarda em reiniciar a atividade conspiratória, traçando o Plano

Junção, pelo qual pretendia levantar o Exército, assim que pressentisse qualquer

atitude de Jango para o fechamento no regime. Uma tarefa nada fácil, já que o

comandante do 3º Exército era o general Jair Dantas Ribeiro, francamente

apoiador de Jango.

Parlamentarismo instável

Rememoremos. O parlamentarismo brasileiro foi engendrado como um

casuísmo para cortar os poderes do presidente da República e tornar mais

palatável a presença de Jango no poder, retirando-lhe as prerrogativas de

governo e transformando-o numa rainha da Inglaterra.

Votado às pressas, o Ato Adicional, ou emenda parlamentarista, apresentava

graves lacunas, que impediam sua execução.

Primeiro: adotou-se a fórmula alemã, em que o Presidente indica o Primeiro-

Ministro, a ser aprovado pelo Congresso. Aceito o nome, o Congresso indica o

Ministério, que deve ser aprovado pelo Presidente. Com um congresso

conservador e um presidente tido como reformista, cria-se um impasse difícil de

ser vencido.

Segundo: já que o Gabinete parlamentarista é composto sobretudo de

parlamentares, que precisam reeleger-se para garantir sua permanência no

Ministério, teria de ser suprimida, na Constituição, a exigência de

desincompatibilização 90 dias antes das eleições. Não o fizeram.

Terceiro: Se o presidente da República é apenas chefe de Estado, e o

Primeiro-Ministro chefe de Governo, com ascendência sobre os ministros

militares, então é o Primeiro-Ministro e não o Presidente quem deve ser

considerado chefe supremo das Forças Armadas. Também isso não foi

modificado.

Estava armado o cenário para a grande trapalhada. Em 30 de junho de 1962

(três meses antes das eleições parlamentares), cai o Gabinete de Tancredo

Neves, cujos ministros eram, quase todos, candidatos à reeleição e precisavam

se desincompatibilizar. Sem entendimento entre executivo e legislativo, na

prática, o poder voltou às mãos de João Goulart, chefe supremo das Forças

Armadas, situação que perdurou por dez dias.

- 016 -

O primeiro nome indicado para a chefia do Gabinete foi o do jurista Santiago

Dantas, prontamente rejeitado pelo Congresso que o considerava muito à

esquerda. Jango, então, concordou em indicar para Primeiro-Ministro o

presidente do Congresso, Auro Soares de Moura Andrade (conservador) mas,

em seguida, usando das atribuições que lhe eram conferidas, recusou o

ministério indicado pelo Congresso, por achá-lo conservador demais para as

reformas que tinha em mente.

Finalmente, executivo e legislativo se fixaram no nome de Brochado da

Rocha, o que era uma incoerência, pois este se achava mais à esquerda que o

já recusado Santiago Dantas. É claro que a ninguém interessava essa

nomeação, que se constituiu em novo casuísmo, enquanto, paralelamente, se

procurava detonar o parlamentarismo, com a realização de um plebiscito.

O gabinete de Brochado, empossado em 9 de julho de 1982, foi substituido

pelo de Hermes Lima em 17 de setembro de 1982 e este último se dissolveu

em 23 de janeiro de 1963 quando, de conformidade com plebiscito realizado em

6 de janeiro de 1963, o Brasil voltou a adotar o Presidencialismo, concentrando

nas mãos de Jango ambos os poderes, de chefe de Estado e de chefe de

Governo.

Testando o Plano Junção

Concluindo que a recusa do Gabinete apresentado por Auro Soares de Moura

Andrade era o primeiro passo de Jango para um golpe de estado, o general

Mourão, no comando da 3ª Divisão de Infantaria (Santa Maria-RS) pôs em

execução o Plano Junção levando ao ar a rede de emergência, o que originou

uma reprimenda e pedido de explicações por parte do 3º Exército.

Mourão desculpou-se, retirou do ar a rede de emergência, mas ordenou que

todos os setores envolvidos permanecessem na escuta, no aguardo de novas

instruções de comando.

Em sentido oposto, caminhava o comandante do 3º Exército, general Jair

Dantas Ribeiro que chamou a Porto Alegre todos os seus comandados diretos,

inclusive o general Mourão, propondo-lhes a emissão de um manifesto, exigindo

que o Congresso a aprovasse a realização de um plebiscito. Não obtendo apoio,

assinou o manifesto sozinho, enviando cópia aos demais comandos com a

ordem de que o comunicado fosse lido publicamente nos quartéis.

- 017 –

A atitude do general Jair não era isolada, mas um repique de outro manifesto

feito anteriormente pelo comandante do 1º Exército no Rio de Janeiro,

general Osvino Ferreira Alves. Os outros dois comandos (2º Exército em São

Paulo e 4º Exército em Recife) se revelavam aparentemente neutros.

Com a desistência de Auro Soares de Moura Andrade à chefia do Gabinete

e com a indicação de Brochado da Rocha para compor um novo Ministério, foi

jogada água na fervura. Jair Ribeiro recolheu-se às suas atividades de comando

e Mourão desativou o Plano Junção, registrando todo inconformismo em seu

diário particular, em data de 5 de julho de 1962, quinta-feira:

"Hoje de tarde soubemos que o Auro se demitira. Cantou de

galinha o homem. Se ele tivesse reagido, João Goulart fechava o

Congresso e iria levar o maior susto da vida dele, porque ali de

Santa Maria ia partir fulminante o movimento que poria para fora

ele e o Brizola."

No remanejamento de comandos, em 15 de março de 1963, o general

Mourão, assumiu a 2ª Região Militar, em São Paulo, subordinado ao general

Pery Constant Bevilacqua, descendente de Benjamin Constant e comandante

do 2º Exército.

Exultei, porque desejava conspirar em São Paulo, escreveu Mourão em seu

diário. Mas em Santa Maria, deixou em andamento um IPM-Inquérito Policial-

Militar contra 40 sargentos. Motivo: conspiração.

Em São Paulo, o blefe

Conquanto a cerimônia de posse no comando da 2ª Região Militar tenha sido

concorrida, com a presença de altas autoridades, inclusive do governador

Ademar de Barros, Mourão Filho descobriu logo que não lhe seria possível agir

em São Paulo com a mesma desenvoltura com que o fazia em Santa Maria.

Alguns, como Assis Chateaubriand, dos Diários Associados, deram-se

apoio, reservado, mas efetivo; outros, como Ademar de Barros, desconversavam

e evitavam a ação de Mourão, que consideravam predatória e perigosa; seu

superior, general Pery Bevilacqua, que também viera transferido do Rio Grande

- 018 -

do Sul, tentava refrear-lhe os ímpetos, que poderiam precipitar os

acontecimentos, em prejuízo à causa a que se dedicavam. E Júlio Mesquita

Filho, diretor de O Estado de S. Paulo, jornal que se constituía no carro-chefe da

conspiração em São Paulo, nada fazia para esconder sua antipatia ao açodado

general.

Pior do que isso, é que já chegavam aos ouvidos do presidente João Goulart

e aos setores ligados a ele as notícias sobre as atitudes de Mourão Filho,

criando-lhe uma situação deveras embaraçosa.

Foi então que ocorreu a Mourão aplicar um blefe para acalmar as hostes

governistas e escolheu para isso as comemorações do aniversário da Revolução

Constitucionalista, em 9 de julho de 1963, nas quais deveria comparecer, pela

sua unidade e também representando o comandante do 2º Exército. Esperava

que pelo menos um orador fizesse um paralelo entre a revolução de 1932 e os

dias atuais, atingindo verbalmente o presidente João Goulart.

Durante a cerimônia, não precisou esperar muito. A certa altura, a palavra foi

dada a Waldemar Ferreira, um dos líderes civis de 1932, que iniciou o discurso

dizendo:

"Esta solenidade é um grito de alerta a toda a nação, no momento

em que se prepara um movimento comunista, chefiado do Palácio

da Alvorada, pelo próprio presidente da República."

É o próprio Mourão quem conta:

"Levantei-me com um gesto espalhafatoso, o gorro na cabeça e

com os dois braços fazendo gestos para os oficiais, gritei bem alto:

‘Levantem-se, vamos nos retirar daqui. Não admito insultos contra

o chefe das Forças Armadas, presidente João Goulart’."

O truque deu certo. Havia transmissão ao vivo pelo rádio e toda a imprensa

paulista estava dando cobertura à solenidade. Ademar mandou um mensageiro

procurá-lo na sala onde havia se alojado, garantindo que faria um discurso

desmanchando tudo, e pedindo-lhe que, após, voltasse à cerimônia. E assim

aconteceu. A gente vê cada coisa...

- 019 -

No Palácio do Planalto, a repercussão não podia ter sido melhor. O general

Mourão Filho passou a ser considerado um elemento pró governo e em tal grau

que, no mês seguinte, recebia como bônus a transferência para uma função da

mais alta confiança, qual seja, o comando da 4ª Região Militar e da 4ª Divisão

de Infantaria, em Juíz de Fora, desalojando dessa posição o general Carlos

Luís Guedes, elemento muito chegado ao governador de Minas, Magalhães

Pinto. Nada melhor para Mourão, juntando a fome com a vontade de comer.

A posição dos governadores

Neste ponto, será útil mapear o posicionamento dos principais governadores

envolvidos no processo conspiratório, de um lado e de outro.

Miguel Arraes, em Pernambuco fazia o movimento das esquerdas, dando

amplo apoio às Ligas Camponesas de Francisco Julião, um movimento

extremista que objetivava a reforma agrária à força, criando situações de fato,

com a invasão de propriedades produtivas, sobretudo engenhos, e criando

situações de conflito armado, sob as vistas grossas, quando não, sob a proteção

do Governador.

Em Minas Gerais, Magalhães Pinto, mineiramente, dava uma no cravo e

outra na ferradura. Conspirava contra o presidente da República, mas sem

alarde, fazendo mesmo a entender que estava ao lado do governo central.

Nesse propósito, chegou até a financiar, com dinheiro público, a realização,

em Belo Horizonte, do 1º Congresso Nacional de Trabalhadores do Campo,

arcando com as despesas de instalação, transporte e alojamento. Como não

podia deixar de ser, a maior representação, com cerca de 200 camponeses, foi

a de Francisco Julião, que pedia a desapropriação sumária de todo latifúndio

acima de 500 hectares. Diante de uma multidão calculada em 5 mil pessoas, foi

transmitida uma gravação com a voz de Fidel Castro, dando apoio cubano à

reforma agrária brasileira.

Na Guanabara, reinava absoluto Carlos Lacerda, com mandato diferenciado

dos demais, já que o Estado foi criado em 1961 e sua presença no governo

deveria se estender até 1965.

- 020 -

Magalhães e Lacerda conspiravam contra o governo, mas evitavam

comunicar-se. Ambos eram candidatos virtuais à presidência da República e

cada um deles, isoladamente, procurava fortalecer sua posição, enfraquecendo

o adversário. Magalhães, recatado, levava a melhor; Lacerda, destemperado,

expunha-se demais, mas, em compensação, fazia uso da máquina para

esmagar movimentos pró-Jango, com medidas nem sempre em plena

conformidade com a lei.

Ademar de Barros, em São Paulo, era um meio termo entre os dois. Falava

e agia com franqueza, mas medindo as reações e, no interesse da causa, não

teve dúvidas em aliar-se ao seu maior inimigo, Júlio Mesquita Filho, diretor do

jornal O Estado de S. Paulo.

No Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti era uma incógnita, mas, estourando

o movimento, em 31 de março, mudou a sede do governo para o interior,

anunciando sua adesão aos militares anti-jango.

Leonel Brizola, cunhado de João Goulart e um dos representantes mais

importantes da esquerda, encerrara seu mandato como governador do Rio

Grande do Sul, mas elegera-se deputado federal e mantinha sua ascendência

política sobre o seu Estado e sobre uma boa parte do país. Era também um

demolidor e, na esquerda, servia de contraponto à agressividade de Lacerda na

Guanabara.

Sem ser comunista, Brizola adotava a técnica de organização de células

revolucionárias, que chamou de grupos de onze. Esse era o número de

componentes de cada célula e, no momento oportuno, pretendia ativar todas as

células para detonar o regime.

A ação das esquerdas

Se as forças anti-janguistas se articulavam para a derrubada do Governo, do

outro lado, as forças pró-Jango se preparavam para uma mudança radical do

regime, dando a João Goulart poderes absolutos para realizar as reformas que

tinha em mente. Enquanto as primeiras, firmadas em líderes políticos e

empresários, e também mantendo o controle de comandos vitais nas Forças

Armadas, tinha uma noção exata de seu poder, os janguistas se iludiam em sua

força aparente, seduzidos pela ideia do sucesso e divorciados da realidade.

- 021 -

Por todo o lado as organizações esquerdistas se organizavam para um golpe

final às instituições. Organizações trabalhadoras e estudantis recrudesciam em

sua ação, produzindo greves e movimentos populares de apoio e sustentação

ao presidente da República.

Se as associações de trabalhadores eram mais experientes e práticas, a

UNE–União Nacional de Estudantes apresentava-se idealista e

intelectualizada, estendendo sua ação junto às escolas e fazendo um trabalho

de proselitismo que utilizava sobretudo o teatro, com a cooperação do CPC –

Centro Popular de Cultura, onde se abrigavam os mais conhecidos artistas

jovens de nosso país. Contavam-se, entre eles, Oduvaldo Viana Filho

(Vianinha), Gianfrancesco Guarnieri, Cacá Diegues, Leon Hirzmann. Vera

Gertel (mais tarde reporter de TV) e outros.

E apoiavam a UNE, também, cantores e compositores, como Edu lobo,

Carlos Lyra e Sérgio Ricardo O sociólogo Luís Werneck Vianna, reconhece o

excesso de idealismo juvenil que lhes vedava os olhos à realidade que,

sobretudo no Rio de Janeiro, lhes era adversa, com a polícia do governador

Carlos Lacerda e o peso das forças bem articuladas da direita:

"Nós tínhamos, particularmente os jovens, que haviam sido

mobilizados pela política de esquerda daquela época, uma

confiança muito grande nas lideranças. E as lideranças diziam que,

‘se a direita levantasse a cabeça, essa cabeça seria cortada’. Isso

é textual. Foi uma frase que o Prestes [Luiz Carlos Prestes,

secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro] lançou na ABI

[Associação Brasileira de Imprensa] quinze dias ou um mês antes

do golpe. Nós fomos para a UNE com um espírito de resistência

(...) Fomos para a UNE como para mais uma jornada, onde as

coisas aconteceriam e, no dia seguinte, tudo voltaria ao normal,

como tantas outras crises que havíamos assistido no período."

Oduvaldo Viana Filho foi uma das vítimas dessa imprudência. Preso pela

polícia de Lacerda, desapareceu por alguns dias nas dependências do DOPS

carioca, sendo ineficaz o habeas-corpus, porque não era localizado em lugar

algum. Foi preciso a interferência do general Nelson de Mello que, mesmo sem

concordar com o posicionamento da UNE, agiu no sentido de localizar e libertar

Vianinha.

- 022 -

Heron Domingues, o célebre Reporter Esso, reproduziu na TV os

acontecimentos:

"Mocinho falador, você está preso – foi o que disseram a Oduvaldo

Viana Filho, o Vianinha, preso na avenida Rio Branco, esquina da

Araújo Porto Alegre."

É o próprio Vianinha que conta, mais tarde:

"A ordem era total intimidação e a mais completa humilhação.

Cheguei à conclusão de que, com aquela polícia, até mesmo um

homem santo como D. Helder [Arcebispo do Rio] ou um retardado

como o almirante Pena Boto [um dos conspiradores contra a posse

de Juscelino em 1956] poderiam ser transformados em

revolucionários."

Oduvaldo Viana (pai e filho)

- 023 -

Os espíritos se armavam para uma luta sem fronteiras. Não havia uma voz

pacificadora, capaz de serenar os ânimos e reencaminhar o país para o

entendimento. De um lado e de outro, todos queriam o bem-estar da nação,

cada um à sua maneira, usando a força como argumento.

A articulação da direita

Se as esquerdas contavam com apoio ostensivo de Cuba, da União Soviética

e da China, inclusive com a presença de agentes subversivos no Brasil, a direita,

por sua vez, tinha uma cobertura de retaguarda dos Estados Unidos, através da

Operação Brother Sam, que garantia a interferência americana até o ponto em

que fosse necessária para impedir a implantação de um regime comunista no

Brasil.

Os EUA já tinham Cuba bem próximo de si, o que era um problema mais do

que suficiente, não lhes interessando, de maneira alguma, o surgimento de outro

núcleo justamente no Cone Sul, o que facilitaria a propagação revolucionária

pelos países vizinhos. Não custa lembrar que o Brasil faz divisa com todos os

países da América do Sul, com exceção de Equador e Chile.

Na conspiração anti-Jango, o setor militar estava fortemente guarnecido. O

general Costa e Silva entregou o comando do 4º Exército (Recife) ao general

Castelo Branco e veio para o Rio de Janeiro.

O próprio general Castelo Branco, tempos depois, foi transferido para o Rio

de Janeiro, assumindo o comando do Estado Maior do Exército (EMEx). Na

Marinha, havia o almirante Sílvio Heck, na Aeronáutica, o prestígio do

brigadeiro Eduardo Gomes. Ao lado deles, o ex-Presidente, marechal Eurico

Gaspar Dutra.

No setor civil, a presença, em peso, da União Democrática Nacional, mais

o apoio de populistas e integralistas, representados sobretudo pelo PSP de

Ademar de Barros e, no Rio de Janeiro, o coração do movimento era o

governador Carlos Lacerda, com todo poder de fogo, tanto na imprensa como no

governo do Estado da Guanabara.

- 024 -

Se você imagina que a capital do Brasil era, de fato, Brasília, esqueça

tudo isso. O novo Distrito Federal existia há apenas três anos e o centro do

movimento político e militar permanecia no Rio de Janeiro. Ali se encontravam

os principais ministérios, as repartições públicas, ali se realizavam os conchavos

e até o presidente da República podia ser encontrado com mais facilidade no

Palácio das Laranjeiras que no Palácio do Planalto.

Além do que, constituindo-se no centro nervoso do país, qualquer

manifestação popular, pró ou contra, realizada na cidade do Rio, ganhava

rapidamente repercussão nacional, servindo de agente multiplicador de novas

reações em outras partes do país. Brasília era apenas uma ilha, cercada de

selva por todos os lados.

Em Brasília, a única força efetivamente atuante era o Congresso Nacional,

preso ali por sólidas amarras, já que sua sede não podia ser itinerante. Mas as

grandes decisões saiam mesmo do Rio de Janeiro e era ali que deveria eclodir

o movimento revolucionário, programado inicialmente para meados de abril de

1964.

Os acontecimentos se precipitam

O mês de março de 1964 marcou a radicalização das posições de um

lado e de outro, numa escalada impressionante que fazia prever uma

substituição do embate de ideias pelo confronto armado direto.

No dia 13 de março de 1964, o presidente João Goulart promoveu o Comício

das Reformas, em frente à estação da Estrada de Ferro Central do Brasil, mas

em área militar, onde manifestações públicas não são permitidas. Os mais

modestos estimaram a presença de 150 mil pessoas, havendo quem garantisse

haver na concentração mais de 250 mil pessoas.

Na ocasião, assinou um ato determinando a desapropriação de todas as

terras às margens de rodovias e açudes, mediante prévia e efetiva indenização.

Ou era um ato demagógico, ou então contava com o rompimento institucional,

por um golpe de estado, com o que os pagamentos seriam feitos em papéis de

dívida pública, resgatáveis em 15 ou 20 anos, tal como acontecera com as

desapropriações em Cuba.

- 025 -

E havia momentos de alucinação, como aquele em que um punhado de

senhoras católicas se ajoelharam diante de um estúdio de TV em São Paulo,

com seus terços entre as mãos, para impedir a entrada de Miguel Arrais, que

deveria participar de um debate.

Houve também movimentos mais organizados, como as Marchas da

Família, com Deus e pela Liberdade, em São Paulo, Santos e, tardiamente, no

Rio de Janeiro. Em São Paulo, num dia de semana, que não era feriado, os

organizadores conseguiram colocar nas ruas 250 mil pessoas, às três horas da

tarde. Fábricas fecharam suas portas e colocaram operários em caminhões e

ônibus para levá-los à passeata.

No centro histórico de São Paulo, que tem uma população ativa em torno de

2 milhões de pessoas, escritórios e bancos fecharam suas portas ao mesmo

tempo, colocando uma multidão nas ruas, sem condição de retornar a suas

casas, por falta de condução. Uns poucos por convicção, a maioria por

curiosidade, acabou se infiltrando na passeata, que ganhou, assim, um reforço

considerável de manifestantes.

- 026 -

Essas manifestações eram muito mais um trabalho de mídia. Na verdade, os

acontecimentos que mais pesaram no desenvolvimento do processo foram a

revolta dos marinheiros e a reunião dos sargentos no Automóvel Clube fatos que

saltavam à vista e não podiam ser ignorados por ninguém, por atingirem uma

das pedras basilares da segurança nacional, que é a disciplina militar.

No dia 27 de março de 1964, marinheiros, liderados por um agente duplo,

que ficou sendo conhecido como cabo Anselmo, e com a evidente cumplicidade

do almirante Aragão, recusaram-se a reassumir seus postos de trabalho. Presos

em um quartel do Exército, foram inexplicavelmente liberados, horas depois, e

saíram em ruidosa passeada pela cidade do Rio de Janeiro.

Três dias após, em 30 de março, o próprio presidente da República,

despachando há vários dias do Palácio das Laranjeiras, no Rio de Janeiro,

consentiu em comparecer a uma reunião de sargentos realizada no Automóvel

Clube e lá discursou, ao lado do cabo Anselmo e do Almirante Aragão.

Estava quebrada a cadeia de comando, indispensável para a manutenção da

ordem e da disciplina militar. Era o próprio chefe supremo das Forças Armadas

que se juntava a praças insubmissos, dando-lhes apoio e desmantelando toda a

hierarquia das Forças Armadas. Na quebra da autoridade, só restava a opção

da força e seu emprego acabaria acontecendo logo depois.

Voltando a Minas Gerais

Deixemos de lado, por um momento, os cabos e soldados da marinha e

voltemos a Minas Gerais, onde Mourão Filho encontrava dificuldades em

articular seu plano de ação revolucionária a que deu o nome de Operação

Popeye, talvez em lembrança ao cachimbo que sempre levava consigo.

Em Juiz de Fora, nem tudo saiu como esperava, pois seus comandados

imediatos, em que pese o respeito à sua autoridade, recusavam-se a participar

de qualquer movimento conspiratório, assegurando que só pegariam em armas

se houvesse, em efetivo, um golpe do presidente da República contra as

instituições. Antes disso, não.

- 027 -

Nessa situação, Mourão Filho passou a catequizar a jovem oficialidade,

contando com seu comando para, no momento oportuno, tirar os soldados dos

quartéis e marchar sobre o Rio de Janeiro. Nesse propósito, todavia, era

contestado veementemente pelo general Luís Carlos Guedes, comandante da

Divisão de Infantaria sediada em Belo Horizonte, e pelo governador Magalhães

Pinto, que não acreditavam em uma revolução desse porte feita com meninos

recrutas comandados por jovens oficiais.

Entretanto, no momento exato, conseguiu um importante apoio do marechal

Odilio Denys, que se deslocou para Juiz de Fora, a fim de dar-lhe retaguarda à

ação planejada.

O motivo é simples. Na ação revolucionária, Mourão, general de brigada (2

estrelas), não seria acatado pelos generais de Divisão (3 estrelas) ou de Exército

(4 estrelas). Sendo Denys um marechal, o comando geral ficaria em suas mãos,

enquanto Mourão, hierarquicamente sob as ordens de Denys, colocaria as

tropas a caminho do Rio de Janeiro.

Mas o Manifesto preparado por Magalhães Pinto, chefe civil da revolução,

era uma mistura de água com açúcar. O governador deixava a porta aberta para

um recuo e, nessas circunstâncias, toda responsabilidade caia sobre o comando

militar!

O general Mourão lamentou o tempo perdido esperando pelo Governador e

estabeleceu novo cronograma, prevendo a saída das tropas em 31 de março às

5 horas da madrugada, com ou sem manifesto, com ou sem Governador. Não

havia mais tempo ou condições para recuar.

Tropas na rua!

Juíz de Fora, 31 de março de 1964, 5 horas da manhã. O general Olímpio

Mourão Filho desencadeia a Operação Popeye promovendo o levante das tropas

da 4ª Região Militar e da 4ª Divisão de Infantaria, apoiado pelo entusiasmo da

jovem oficialidade e dos meninos recrutas, submetidos que foram a um mês de

rigoroso e mortal treinamento. É o momento de provar se aqueles meninos, com

seu entusiasmo, teriam condições de usar a audácia para superar as limitações

da inexperiência. À frente das tropas seguia o general Murici.

- 028 -

A notícia estourou no Rio de Janeiro e em São Paulo como uma bomba.

Ninguém no alto comando queria acreditar. Mas, ao ser confirmada sua

veracidade, o general Castelo Branco teria dito: "Agora, ou damos apoio ao

Mourão, ou ele estará perdido!"

Em São Paulo, o comandante do 2º Exército, general Amaury Kruel aderiu

ao movimento e enviou tropas ao encontro de Mourão. Não foi tão espontâneo

quanto possa parecer. Ficou até o último minuto em cima do muro e acabou

saltando sobre um cavalo que passou já encilhado, entusiasmado mais pelo

apoio que vinha do Rio de Janeiro, do que pela aventura mineira.

Do Rio de Janeiro partem, também, tropas do Regimento Sampaio (1ª

Regimento de Infantaria), comandadas pelo coronel Raimundo Ferreira de

Sousa, supostamente para dar combate aos rebeldes. O coronel Raimundo,

entretanto, após um contato telefônico com Juíz de Fora, falando diretamente

com o marechal Odílio Denis, adere ao movimento. Juntando seus soldados aos

de São Paulo e Minas, passa a integrar as forças rebeldes que entram

vitoriosamente na cidade do Rio de Janeiro.

- 029 -

O presidente João Goulart viaja para Brasília, daí para Porto Alegre e,

por fim, se exila no Uruguai. O Congresso Nacional, declara vago o cargo e

empossa como presidente da República, dentro da linha de sucessão, o

presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli. Um Presidente de fantasia, já que todas

as decisões políticas estavam sendo tomadas pelo novo comando militar, no Rio

de Janeiro.

Com efeito, ao chegar ao Rio de Janeiro, comandando as tropas

revolucionárias, o general Mourão encontra um esquema previamente

montado que torna inútil a sua presença ali. Costa e Silva se fizera ministro

da Guerra; Castelo Branco era o nome indicado para assumir a presidência da

República, cumpridas as formalidades; o general Ururaí assumira o comando do

1º Exército; o general Taurino, a 1ª Região Militar. Os comandantes do

movimento no Rio de Janeiro tomavam posse de seus cargos antes mesmo que

o Congresso declarasse a vacância do cargo de Presidente, e Mazzili tivesse

tempo de nomear seu ministério. Isso vai melhor contado no próximo capítulo.

"Tio Sam" na batucada

Para finalizar, cabe estabelecer a participação dos Estados Unidos da

América, durante o período de conspiração e no momento em que se verificou a

eclosão do movimento militar de 1964. Ela aconteceu e recebeu o nome de

Operação Brother Sam, representando um apoio importante para que o

movimento anti-Jango se desenvolvesse e chegasse a bom termo.

No correr dos tempos, os Estados Unidos desenvolveram um estranho

conceito de domínio que ficou conhecido como Doutrina do Destino Manifesto.

Segundo ele, em linhas gerais, Deus entregou aos americanos o dever de zelar

pelos destinos do mundo, cabendo-lhes interferir, quando necessário, para

garantir a estabilidade das nações.

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Esse conceito se aplicou particularmente ao continente americano, sobretudo

a partir do século 19, com a doutrina Monroe (A América para os americanos),

reavivada, de tempos em tempos, com nomes e propósitos diversos, mas

sempre dentro do mesmo princípio. Foi o pan-americanismo, a política da boa

vizinhança, a Aliança para o Progresso, etc.

Por outro lado, a partir da 2ª Guerra Mundial, os militares brasileiros se

afastaram da escola francesa, que treinava nossos soldados, e se aproximaram

dos Estados Unidos, junto aos quais deveríamos lutar nos campos da Itália.

Com isso, nosso conceito de segurança militar foi adaptado também às

doutrinas do National War College, segundo as quais o verdadeiro perigo pode

não vir de fora mas se achar instalado dentro do próprio país; não são

necessariamente as potências militares estrangeiras, mas podem estar

enraizados na própria sociedade civil. Em resumo, por esse conceito, o

verdadeiro perigo à nação brasileira, pode ser o próprio cidadão brasileiro, que

passa a ser tratado como inimigo em potencial.

Foi dentro desse espírito que os conspiradores anti-Jango, desde o princípio,

aproximaram-se dos Estados Unidos, procurando obter destes a garantia de

apoio na luta contra o perigo interno.

Nesse processo, exerceram papel importante o embaixador dos EUA no

Brasil entre 1961 e 1966, professor Lincoln Gordon, e seu assessor, o coronel

Vernon Walters. Este último tinha uma proximidade maior com o Brasil, pois, na

Segunda Guerra, quando era ainda major, atuou como interprete entre os

comandos do 5º Exército e a Força Expedicionária Brasileira, trabalhando ao

lado do tenente-coronel Humberto de Alencar Castelo Branco e em

permanente contato com o nosso comando militar.

Como falava fluentemente o português e tinha um grande relacionamento

com os setores civil e militar, Valters era um contato valioso entre a embaixada

americana e os conspiradores, levando a vantagem de poder circular com maior

liberdade, sem chamar tanto à atenção, o que não aconteceria se as

conversações de dessem diretamente com o embaixador.

- 031 –

O adido americano, coronel Vernon Walters conversa, em bom português,

com o general Castelo Branco. Ambos atuaram juntos durante s Segunda

Guerra Mundial, em que o primeiro era major e o segundo, coronel

Foi a partir desses contatos, transmitidos fielmente por Lincoln Gordon ao

Secretário de Estado americano, Dean Rusk, que surgiu a ideia de se montar a

Operação Brother Sam, pela qual os Estados Unidos se comprometiam a dar

toda cobertura de retaguarda para evitar a comunização do país.

Não se conhece toda extensão do acordo. Oficialmente, a participação dos

Estados Unidos se deu apenas com o envio de uma força-tarefa às águas do

Atlântico Sul sob o pretexto de garantir a retirada dos 40 mil cidadãos americanos

residentes no Brasil. A chegada dessa força-tarefa, ainda em águas

internacionais, ocorreu em 28 de março de 1964, um Sábado de Aleluia,

quando ainda se pensava que a revolução só iria eclodir na segunda quinzena

de abril.

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Como os acontecimentos foram precipitados pela ação do general Mourão

Filho, liquidando o assunto em dois dias, não é possível avaliar até que ponto os

Estados Unidos estariam dispostos a intervir para garantir o sucesso do

movimento, se este se prolongasse por mais tempo.

Sabe-se que a frota americana foi deslocada do Caribe para o Brasil e tinha

considerável poder de fogo para intervir militarmente, se necessário. E sabe-se

que ela foi também decisiva no convencimento de Jango de abandonar o país e

buscar asilo no Uruguai, evitando assim o derramamento de sangue. E o

movimento militar se encerrou sem uma vítima sequer.