meg haston oculos, aparelho e rock'n roll

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Super-rigorosa e cheia de estilo, Kacey Simon dita as tendências na escola Marquette. Ela

anda com as garotas mais bonitas e populares e tem seu próprio programa de TV no canal

do colégio, dando conselhos e explicando para seus colegas a verdade nua e crua - quer eles

queiram ouvir, quer não.

Mas então uma infecção ocular e uma visita ao dentista deixam Kacey com óculos fundo de

garrafa, a boca cheia de metal e... a língua “prefa”. Rejeitada pelos amigos populares, ela

despenca da pirâmide social de forma tão dramática que fica difícil enxergar o topo, mesmo

com aquelas duas lentes de aumento no rosto.

Sem ter mais a quem recorrer, Kacey começa a andar com uma vizinha nerd e um garoto que

leva a vida num ritmo próprio - na verdade, no ritmo do baterista de sua banda. Ele a quer

como sua vocalista, mas ela está decidida a recuperar seu trono. Será que Kacey vai alcançar

o topo novamente? Ou vai descobrir que chegar ao fundo do poço meio que é... o máximo?

Nesse divertidíssimo romance, Meg Haston conta a história de uma garota malvada que,

com um bom par de óculos, passa a enxergar melhor não só as coisas, mas também a vida.

O livro deu origem à série de tevê "How to Rock", recém-lançada pelo canal Nickelodeon.

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Para minha família, que sempre me amou apesar de tudo

(até mesmo dos óculos e do aparelho)

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Um LUZ, CÂMERA... CONSELHOS!

Quinta-feira, 7h42 da manhã

Jornalistas de verdade nascem com um sexto sentido. É nossa fonte mais confiável, uma voz interior que nos alerta quando há algo mais por trás de uma história. Meu sexto sentido nunca falhou, e é provavelmente por isso que sou a primeira jornalista na história da Escola de Ensino Fundamental Marquette a ter o próprio programa de tevê semanal. A maioria das pessoas pensa que meu sucesso se deve a meu estilo contundente de conduzir entrevistas, um método que já fez um vice-presidente corrupto do conselho estudantil se debulhar em lágrimas durante a transmissão. Ao vivo.

Mas tenho quase certeza de que é meu sexto sentido. É só ver o que aconteceu hoje de manhã, antes da chamada, quando minha

melhor amiga, Molly Knight, entrou tranquilamente no estúdio do jornal do Canal M no meio dos meus exercícios vocais e da checagem de figurino. Ela havia agasalhado seu corpo miúdo com uma parca marfim de matelassê, com um cachecol angorá branco e protetores de orelha como acessórios. Parecia que estava sendo estrangulada por um gato com pedigree de um comercial de ração chique.

Imediatamente, um arrepio familiar sacudiu meu corpo desde o dedo mindinho do pé direito até o lóbulo da minha orelha esquerda. Sexto sentido em ação. Os olhos azul-claros de Molly brilhavam com novidades.

— Eu sou Kacey Simon, e você está assistindo a Simon Falando. — Limpei a

garganta e dirigi o olhar a uma das quatro câmeras apontadas para minha bancada de mogno. Nem melhores amigas com fofocas para contar interrompem meu momento de preparação antes da transmissão. — Eu sou Kacey Simon.Eu…

— Ah, fala sério. Como se alguém na Marquette não conhecesse você. As portas duplas nos fundos do estúdio se fecharam sem ruído. Molly se

apoiou teatralmente na parede prateada do cenário ao meu lado e soprou uns fios dourados que caíam por cima dos seus olhos. O aluno do sexto ano que segurava o boom sobre minha cabeça se virou para dar uma conferida. Típico.

— Noventa segundos para entrar no ar! — gritou Carlos, meu produtor baixinho e atrevido, o único cara do estúdio que não estava babando pela

minha melhor amiga. Ele passou apressado pela confusão do set, carregando sua prancheta velha como se ela fosse a tocha olímpica e estivesse prestes a ganhar o ouro na final de pavoneamento rápido. — Alguém do figurino pode vir aqui, por favor?

— E aí, o que houve? — Girei algumas vezes na minha cadeira com rodinhas, e o cenário com a silhueta urbana de Chicago dissolveu-se em uma mancha brilhante de prata e cinza. Três giros e minhas longas mechas castanho-avermelhadas sussurravam espontaneamente despenteadas. Mais de seis voltas, no

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entanto, e elas estariam gritando SENSUALIDADE NA MONTANHA-RUSSA! MEIO ANTIPROFISSIONAL! — Por que você não está na sala para a chamada? — Parei de girar e olhei o relógio que fazia a contagem regressiva na parede dos fundos. Quase na hora do show.

— Nada de mais. Com um sorriso falsamente tímido, ela passou pelos quatro câmeras e

caminhou até meu foco de luz, quase me cegando com aqueles flocos de neve de diamante falso pendurados nas orelhas. Esfreguei os olhos para recolocar minhas lentes novas, cor de violeta, no lugar. Molly tinha até o fim do programa para notá-las. E para soltar o segredinho que estava escondendo.

— Oitenta segundos! Carlos pulou na sua cadeira de diretor e ajeitou o headset sem fio. — E eu ainda preciso de figurino! — gritei. Por baixo da minissaia lilás de lã, minha meia-calça preta estampada estava

começando a pinicar, mas não me importei. É como diz o provérbio: sem dor, sem programa de tevê.

— Estou chegando, Kacey! — gritou dos bastidores Liv Parrillo, a terceira integrante do nosso quarteto, que fazia um bico de estilista no meu programa.

— Entããão… — falou Molly com sua voz rouca, se debruçando na mesa. Sua voz sempre soou como se ela tivesse acabado de sair da cama com uma

leve crise de laringite. Os garotos do colégio achavam isso ainda mais sensual do que sua juba loura. Só eu sabia que o cabelo não contava, já que era falso. Ela havia gastado seis meses de mesada em apliques depois de destruir o cabelo em um alisamento japonês que descobrira na internet.

— Entããão… — Arregalei os olhos e pisquei três vezes. Nada ainda. — O que houve?

— Só resolvi dar uma passadinha para assistir à gravação. As maçãs do rosto salientes de Molly e a pontinha do nariz estavam coradas,

o que significava que ou ela estava mentindo ou estava envergonhada. O sexto sentido falou… mentindo. — Tudo bem, então. — Ajeitei o roteiro no tampo da mesa e o coloquei de

lado. Roteiros são como atores substitutos. Embora eu nunca tenha realmente planejado usar o meu, é sempre bom saber que ele está ali. — Agora, saia fora.

— Dei um puxão de brincadeira no cachecol dela. — Você e seu gato morto estão atrapalhando minha luz.

Ela se afastou da bancada e fez beicinho, fingindo estar magoada. — Tatyana acha que pareço uma profissional. Tatyana era sua professora russa de patinação no gelo. Todo ano Molly

começava uma nova atividade física extracurricular, ficava toda animada com as roupas e então a abandonava quando descobria que não chegaria às olimpíadas. No semestre passado foi ginástica olímpica; ela andava com rabos de cavalo superapertados e gel de cabelo com purpurina. No sexto ano foi equitação, o que significou múltiplos pares de botas de montaria.

— Eu falaria a mesma coisa se você me pagasse cinquenta dólares por hora.

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— Ah, por favor. — Ela se ajeitou e passou pelos câmeras boquiabertos para se sentar perto de Carlos. Quando cruzou as pernas, as botas de amarrar cor de creme fizeram sua entrada triunfal. — Você não faria isso.

— Não, não faria. Porque amigos de verdade não mentem. Fiz uma nota mental para não me esquecer de surrupiar as botas para o

programa da próxima quinta-feira. Diga o que quiser sobre as roupas das atividades extracurriculares de Molly, mas pelo menos ela tem coragem de se arriscar. Foi o que fez eu me aproximar dela ano passado, no início do sexto ano. O colégio forçou todos os alunos a irem a um acampamento/orientação em um fim de semana antes do início do semestre, o que pode parecer a coisa mais

tediosa do mundo, mas acabou se tornando o lugar ideal para recrutar algumas melhores amigas naquela fase de transição para o segundo ciclo do ensino fundamental. E não dá para não amar uma menina que aparece em uma caminhada/dinâmica de grupo com um tubinho camuflado, delineador verde-oliva combinando e botas com um saltinho anabela. Eu falei que ela parecia a Barbie Apalaches. E ela não saiu de perto de mim desde então.

As portas duplas abriram-se novamente, trazendo-me de volta à agitação do estúdio.

— OOOOI, GENTE! Abra Laing, uma aluna do sexto ano que mascava chiclete sonoramente,

falava super-rápido e apresentava o Minuto Marquette, programa que entrava no ar depois do meu, traçou uma linha direta em direção à tela verde à minha esquerda. Abra conseguiu a vaga porque gritava TODAS AS PALAVRAS PARA A CÂMERA COMO SE AQUELA FOSSE A NOTÍCIA MAIS IMPORTANTE DE TODOS OS TEMPOS NA HISTÓRIA DA HUMANIDADE. Ela também era a única pessoa capaz de falar rápido o suficiente para conseguir encaixar as manchetes matinais em um intervalo de sessenta segundos.

— Trinta segundos para entrar no ar! — anunciou Carlos enquanto Abra arrancava o casaco e o jogava atrás das câmeras. — FIGURINO?

— Calma, cara. Estou bem aqui. Liv entrou correndo pelo cenário, enrolando os cachos escuros na altura dos

ombros em um nó bagunçado na altura da nuca. Estava com uma camiseta branca justa e um casaco largo cor de carvão do avô italiano, acinturado por

uma faixa de smoking vintage. Só Liv poderia pensar em acentuar suas curvas com roupas antigas de um velhinho. E só Liv poderia fazer uma coisa assim funcionar.

— Menina, você vai amar isso. — Liv ergueu o estojo de flauta coberto de adesivos que usava para guardar as primeiras peças da linha de acessórios dela, LiVlinhas, e colocou-o na bancada. — Fiz usando uma camisa velha do meu pai e um tutu. — Ela destravou as fechaduras prateadas do estojo e vasculhou por

entre uma pilha cheirando a mofo de bijuterias brilhantes, amostras de tecido e tiaras com penas. Segundos depois, ergueu um broche de flor feito com uma flanela xadrez e um tule roxo puído que combinava certinho com a cor da minha saia.

— Liv! É lindo. — Examinei as bordas delicadamente recortadas das pétalas. — Vai esgotar antes do almoço.

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Eu nunca ia ao ar sem um dos acessórios de Liv. Eles eram meu talismã da sorte. E, a julgar pelas vendas da LiVlinhas este ano, Simon Falando era o talismã dela.

— Espero que sim. Os grandes olhos cor de jade de Liv brilharam de gratidão enquanto ela se

inclinava para prender a flor na minha blusa de seda preta. Ela cheirava a óleo de rosas e ao cachimbo do avô.

Meu olho direito tremeu sem querer. — Lentes de contato! — Liv pulou para a frente. — Violeta? — Ela segurou

meu rosto entre suas mãos quentes. — Essa cor vai saltar na câmera. — Sua pele

morena brilhou sob as luzes do estúdio. No fundo, sempre invejei o bronzeado italiano de 365 dias de Liv. Minha pele tem dois tons: transparente e, quando não tomo cuidado no verão, camarão. — E combina com o broche! E realça suas mechas ruivas!

— EU SEI! — gritei. Virei para o lado e revirei os olhos para Molly. Pelo menos alguém reparava

nos detalhes importantes da vida. Mols fingiu estar ocupada demais tirando a neve das botas para reparar em

mim. — Dez segundos! — Carlos remexeu o bumbum minúsculo dentro da calça

jeans de marca na cadeira. — Manda ver, srta. Simon. Liv fez um sinal da paz, saiu do cenário e se sentou ao lado de Molly. — Oi, boneco da Michelin. Amei seus pneus. — Aposto que está morrendo de inveja. — O nariz de Molly ficou vermelho

de novo. Envergonhada.

As luzes do estúdio se acenderam acima de mim, e minha pulsação diminuiu imediatamente. Você poderia pensar que apresentar um programa ao vivo na frente da escola inteira toda quinta-feira de manhã me deixaria nervosa. Engano seu. Nunca me sinto mais tranquila do que durante as gravações.

O estúdio ficou quieto e silencioso, exceto pelo zumbido baixo das luzes e pela minha voz, cantarolando baixinho o novo tema de abertura que eu tinha composto para o programa. Em questão de segundos eu iria inspirar uma escola inteira e ajudar alguém desesperado por conselhos. Ajudar as pessoas era

a minha vocação. Será que Madre Teresa descobriu a sua antes do oitavo ano? — Em três, dois… Carlos ajeitou o colarinho e então fez um sinal com o indicador levantado. Ergui os olhos para a câmera dois, ignorando a repentina sensação de

queimação sob minhas lentes violeta. — Bom dia, Marquette. E bem-vindos a mais uma edição de Simon Falando.

Eu sou Kacey Simon. Olhei para o relógio para conferir a hora. Os números vermelhos ficaram

borrados e pisquei até que as linhas entrassem em foco novamente. Três segundos. Preste atenção.

— A carta de hoje vem da Perseguida na Aula de Estudos Sociais. — Fiz uma pausa e abri meu Sorriso Simon de marca registrada que herdei da minha mãe jornalista: amplo, confiante e apenas ligeiramente misterioso. —

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Perseguida diz: “Querida Kacey, adoro seu programa. Você é a melhor.” — Verdade. Tenho três prêmios M Marquette para provar isso. — “Espero que você possa me ajudar. Então, tem um cara que senta do meu lado na aula de estudos sociais desde o sexto ano, e estamos no oitavo agora. Ele é muito nerd e não para de me perguntar se preciso de ajuda para estudar. Já tentei de tudo: olhar feio, não ser mais amiga dele no Facebook, até mesmo ir à casa dele para estudar história dos Estados Unidos e falar que preferia ter um encontro com um dos patriarcas da independência a sair com ele. Mas ele não está entendendo. O que eu faço?”

Lancei um olhar direto para a câmera.

— Querida Perseguida. Vou contar um segredinho para você. Acabei de colocar lentes novas, o que significa que minha visão está mais aguçada do que nunca. O que, por sua vez, significa que vejo exatamente o que está acontecendo.

Molly se esticou para a frente, com a boca entreaberta. Liv inclinou a cabeça, e suas covinhas ficaram um pouco mais marcadas pela expectativa.

— Deixar de ser amiga do seu perseguidor no Facebook significa que você era amiga dele, para começo de conversa. Contraditório. Ir à casa dele para estudar e então partir o coração do rapaz? Contraditório. E se os seus, abre aspas, olhares feios, fecha aspas, se parecem com isso aqui… — Lancei para a câmera meu melhor sorrisinho sedutor, que Molly me ensinou na última vez em que dormiu lá em casa. — Con-tra-di-tó-rio. — Entrelacei os dedos na bancada, encarando Perseguida com firmeza. — Odeio ter que dizer isso a você, mas você adora ter um maluco perseguindo você. Aqui é a Simon falando: aceite a oferta antes que ele encontre outra amiga de estudos.

Um dos câmeras (acho que o Número Três) soltou uma gargalhada. Mols e Liv fingiram trocar um high five.

Na mosca. Apertei os lábios em um sorriso sagaz.

— Esta foi Kacey Simon, lembrando a vocês que é melhor ouvir quando a Simon está falando. AcessóriosdeLivParrillo, encomendasemwwwpontofacebookpontocombarraLiVlinhas.

Liv fez um sinal da paz com a mão direita. — Fiquem agora com Abra Laing e o Minuto Marquette. Abra? — Enquanto

falava, girei um quarto de volta para a esquerda, evitando olhar os elásticos cor-

de-rosa bufantes que algemavam as marias-chiquinhas dela. — OB-OBRIGADA, KACEY! — gaguejou Abra. Ela vinha agindo de forma

muito estranha perto de mim desde que falei que com aquela voz ela teria um belo futuro em comerciais de carros usados. Ela nem ao menos me agradeceu por indicar um caminho para sua carreira. — EU SOU ABRA LAING, E VOCÊ ESTÁ ASSISTINDO AO MINUTO! MARQUETTE!

Cheguei minha cadeira de rodinhas para trás e me inclinei até minha bolsa-carteiro do Canal 5 embaixo da mesa. Assim que me ergui novamente, Mols e Liv já estavam sentadas de pernas cruzadas em cima dela.

— Ótimo programa — sussurrou Molly, apressada, fazendo e desfazendo a trança em “seus” cabelos. — Hum… tenho novidades.

— Sabia.

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Coloquei a bolsa casualmente no ombro e fiquei de pé. Se as novidades de Molly fossem um furo de reportagem, eu já teria falado sobre elas no programa. Não é?

— Meus pais acabaram cedendo ontem à noite. — Que fique registrado: ela ainda não tinha notado minhas lentes novas. — Minha festa de aniversário vai ser com meninos e meninas!

— O quê? — Quase engasguei. — Mas a festa é daqui a dois dias! Liv fez cara feia. — Mas e o Drake? — A mãe de Molly era relações-públicas do Hotel Drake,

no centro da cidade, e tinha descolado um sábado no spa do hotel seguido por

uma noite na suíte presidencial. Estávamos planejando os tratamentos de beleza e os ataques ao frigobar havia meses. — E a minha máscara orgânica de algas?

— Meninos não curtem máscara de algas — sibilou Molly, me lançando um olhar de relance. — Não é?

Fingi que não ouvi. — Por que você não me mandou uma mensagem ontem à noite? —

perguntei. Molly mordeu o lábio inferior, tentando disfarçar um sorriso. Será que ela

achava que eu não era capaz de perceber a ansiedade dela em ganhar de mim com uma festa de meninos e meninas? Ah, por favor. Eu sou uma jornalista.

— UM LEMBRETE: O MUSICAL DE PRIMAVERA! GAROTOS E GAROTAS! ESTRELANDO KACEY SIMON COMO SARAH BROWN! E

QUINN WILDER COMO SKY MASTERSON! ESTREIA EM DUAS SEMANAS! — gritou Abra.

O sorriso de Molly vacilou ao ouvir a menção ao musical. Compreensível, já que ela era minha substituta. E Quinn Wilder, o bonitão de plantão do sétimo ano, era meu parceiro de beijo no palco. Nem mesmo uma festa de meninos e meninas poderia competir com Quinn e seus lábios sabor menta.

— Então, Kace, preciso da sua ajuda urgentemente — admitiu Molly, baixando ainda mais a voz. — Preciso de novas ideias para festas. Ideias de que os garotos gostem.

O relógio na parede atrás de nós marcou 7h55. — Hora da chamada, meninas — falei com firmeza. — Mas o que vamos fazer? — choramingou Molly. — Chamada. Agora. — Não que eu não soubesse como organizar uma festa.

Mas como eu poderia saber do que os garotos gostavam quando o único menino da minha casa tinha se mudado havia quatro anos? Molly tinha pai. Será que ela não podia perguntar a ele? — A gente pensa em alguma coisa durante o ensaio.

— Mas você está em todas as cenas! — choramingou Molly de novo. — Não vai dar tempo!

Engoli um suspiro. Às vezes eu queria que Molly apenas escrevesse para Simon Falando. Assim, eu poderia ser franca com ela. Ela merecia ouvir a verdade, como todo mundo.

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Querida Kacey, Estou com problemas. Não, não é que eu não seja capaz de notar lentes de contato violeta quando elas estão bem diante do meu nariz. O problema é a minha melhor amiga. É que eu sempre estou em segundo lugar. Por exemplo, ela ficou com o papel principal no musical de primavera, e tenho que ser sua substituta. Para piorar, sou incapaz de fazer qualquer coisa sem pedir conselhos para ela. Pelo menos uma vez quero ser a primeira em alguma coisa, como organizar uma festa de meninos e meninas. Mas, no fundo, sei que não posso fazer isso sem ela. Será que algum dia estarei sozinha sob os holofotes ou estou condenada a uma vida nos bastidores?

Assinado, Segunda Melhor do Sétimo Ano

Querida Segunda Melhor, Obrigada pela carta. Deve ser muito difícil admitir que você está com inveja. (Quem não estaria? Sua melhor amiga parece fantástica.) O negócio é o seguinte: na vida, sempre existe a estrela do show e os atores coadjuvantes. Parece que você se enquadra melhor na segunda categoria. Mas não fique triste, Segunda Melhor. Aqui é a Simon falando que coadjuvantes também têm (alguma) importância. Pense só. Sem um elenco de apoio, quem iria distrair o público enquanto a estrela troca de figurino?

Assinado, Kacey Simon (A estrela. No ar e na vida.)

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Dois

O VERDADEIRO AMOR É CEGO (OU ESTÁ CHEGANDO LÁ)

Quinta-feira, 2h42 da tarde

Quando o último sinal bateu naquela tarde, eu ainda estava curtindo uma adrenalina pós-programa. Talvez tenham sido os high fives que recebi durante a chamada ou o boato de que Perseguida havia passado todo o período de estudos flertando com o Nerd Maluco dela no Facebook. O sucesso era quase suficiente para me fazer esquecer que Molly tinha arruinado meu sonho de passar a noite em uma suíte presidencial. E o fato de que minhas lentes novas estavam operando um ataque mortal aos meus globos oculares.

Enquanto corria para o meu armário, o corredor do prédio do sétimo ano (também chamado de Hemingway Hall) já começava a lotar. A escola era formada por quatro prédios compridos interligados, formando um quadrado. O sexto, o sétimo e o oitavo anos tinham cada um seu próprio prédio (Joliet, Addams e Hemingway), e o quarto continha a cantina, o auditório, o estúdio de tevê e a administração (Silverstein). Cada um recebera o nome de um morto famoso de Chicago. E de tantos em tantos anos os alunos tinham que pintar seu corredor de novo, em homenagem à sua falecida celebridade do Meio-Oeste americano. Tem a ver com trabalho de equipe. Este ano, as meninas e eu pintamos todos os armários de prata e depois grudamos citações de Hemingway.

Quando cheguei ao meu armário, Molly e Liv já esperavam por mim. — Você nem imagina o que fiz durante o período de estudos! — anunciou

Liv orgulhosa. — Vendeu todos os broches de flor? — É. Obrigada, aliás. Mas não era isso que eu ia falar. Liv arranhou uma citação sobre pesca retirada de O velho e o mar do armário

ao lado do meu. A tinta descascou imediatamente sob sua unha. — Hum… desisto. — Rodopiei o cadeado, os números nele saindo de foco à

medida que eu o girava. Esfreguei os olhos até que ficassem nítidos de novo, e então sacudi o cadeado e abri a porta de metal meio solta.

— Então, você lembra como a saia do figurino no musical ficava logo abaixo do joelho?

A voz de Liv estava abafada. Atrás da porta, as botas de Molly se arrastavam impacientes.

— Lembro. Enfiei minha mochila em cima de uma pilha de livros e conferi meu reflexo

no espelho. A cor violeta estava mais incrível do que nunca, mas a parte branca dos olhos estava… cor-de-rosa.

— Bem, sua estilista amiga da vizinhança resolveu ser criativa. Bati a porta e ficamos cara a cara.

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— Sério? — No meio da coxa fica tão melhor. — Liv piscou. — Quinn vai adorar. — LIV! Ergui a mão para um high five.

Molly se intrometeu e bateu a mão contra a minha. — Quer saber o que eu fiz no período de estudos? Tentei ter uma super ideia

para a festa de meninos e meninas. Ela arregaçou as mangas finas do cardigã branco e colocou as mãos no

quadril. O casaco almofadado havia desaparecido depois do programa. Boa menina.

— Eu já disse, vá para Paris. Vanessa Beckett, a quarta integrante do nosso grupo, se aproximou. De

jaqueta aviador acinturada, calça jeans skinny e o cabelinho super curto, ela realmente parecia um tanto francesa. Eu teria dito isso se o cabelo curto não fosse, digamos, le assunto delicado.

Quando Nessa chegou ao meu armário, guardou no bolso os cartões de anotação coloridos que sempre carregava para uma prova ou outra e me deu dois beijinhos a distância. Tem sido assim desde que ela chegou de Paris semana passada, aonde foi com a mãe, que é psicóloga e participou de um congresso internacional de psiquiatria. Nessa resolveu testar a barreira da comunicação com um cabeleireiro francês animado demais.

— Garotos bonitos e padarias! Fiz um biquinho com os lábios rachados pelo inverno e joguei dois beijinhos

de volta. Molly leu meus pensamentos e me passou um tubinho já gasto de protetor labial Burt‟s Bees de morango.

— É uma boa combinação, n’est-ce pas? — Nessa tirou uma mecha dos cabelos escuros de cima dos olhos. — Ai, mal posso esperar para meu cabelo crescer de novo.

Eu não sabia por que ela estava tão insegura com o corte de cabelo. Com aqueles exóticos olhos amendoados, a pele morena e o sorriso amplo e bonito, ela ficaria linda mesmo usando máquina zero.

— Eu já falei, seu cabelo está lindo. — Passei uma camada de protetor labial. Era o mais perto que eu podia chegar de um gloss antes do ensino médio. —

Fato: o cabelo comprido suavizava um pouco sua mandíbula. Os dedos delicados de Nessa correram para seu queixo. — Outro fato: o cabelo curto ressalta suas orelhas. Mas isso também é fato:

um corte desses exige muita autoconfiança. Não conheço nenhuma outra menina do colégio que tenha essa coragem.

— Pardon? — Os olhos de Nessa se estreitaram. — Quem falou das minhas

orelhas? — Será que dá para voltarmos ao assunto? — interrompeu Molly. — A

minha festa? — Depois. Hora do ensaio. Dei meia-volta nos meus velhos All Star com purpurina e me esgueirei pelo

corredor lotado. Os alunos à nossa frente pareciam abrir caminho enquanto eu seguia pelo corredor, com as meninas logo atrás.

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— Dois dias — lembrou Molly por cima do burburinho no corredor e dos toques de celulares esquecidos. — A festa é daqui a dois dias.

— Já entendi — falei com um suspiro. Na esquina do Hemingway com o Silverstein, dei uma olhada pela porta

que se abria para a Praça, o agitado pátio que ficava no meio dos quatro prédios da Marquette. Desenhos coloridos, frases e as linhas de uma quadra tinham sido riscados com giz no piso de ardósia. O banco de pedra no meio da Praça, onde as meninas e eu almoçávamos, era a única parte da propriedade que não tinha sido atacada pelo giz. As pessoas eram espertas.

Contornamos a Praça na direção do Silverstein. A porta mais próxima estava

logo ali. O que significava que Quinn Wilder estava logo ali. Meu coração bateu mais forte ao pensar que talvez Quinn estivesse

passando protetor nos próprios lábios, naquele exato segundo, na expectativa da minha chegada. Todas as meninas do colégio tinham uma queda por Quinn Wilder, mas eu não tinha reparado nele até o começo do mês, quando nós dois fizemos o teste para o musical Garotos e Garotas.

Correção: quando ouviu dizer que eu com certeza ganharia o papel de Sarah Brown, a protagonista romântica e boazinha, ele simplesmente resolveu aparecer

nos testes para o papel de Sky Masterson, o apostador de fala mansa que ganha a confiança de Sarah... e seu coração.

Coincidência? Pas du tout. Principalmente porque, para participar do musical, Quinn teve que abrir mão do posto de capitão do time de basquete nessa temporada. Isso é o que chamo de verdadeiro amo…

— Kacey! — Do nada, uma nerd com o uniforme completo da orquestra da escola veio correndo na minha direção, puxando uma mala de rodinhas e bloqueando meu caminho até Quinn. — Kacey Simon?

Ela só parou quando estava a centímetros do meu rosto. — É assim que me chamam. Eu e as meninas demos um passo para trás ao mesmo tempo, e fiz uma

careta. A garota tinha tanto metal dentro da boca que eu praticamente podia ver meu reflexo nos seus incisivos.

— Ai, meu Deus… É você. — Sem fôlego, a Nerd da Orquestra escavou o bolso da frente da mala e puxou uma caneta e uma folha de papel manchada,

com cheiro de molho de queijo velho. — Eu sou… sua maior… fã. Você pode assinar o meu plano de estudos de jornalismo?

— É sério? Nessa revirou os olhos e tirou do bolso da jaqueta um caderninho amarelo e

uma caneta. Como assistente de direção do Garotos e Garotas, ela sempre carregava um bloquinho para anotar quando os atores faziam besteira. Ultimamente, ela vinha fazendo anotações sobre qualquer um além de nós que fizesse alguma idiotice na vida real. Sem tirar os olhos da Nerd da Orquestra, ela passou as páginas até uma folha limpa e fez uma anotação rápida.

— Tudo bem. — Mordi o lábio para reprimir uma risada e apoiei o papel na coxa. — Aqui é a Simon falando: tente sorrir de boca fechada. Vai realçar seus lábios carnudos em vez do sorriso metálico. — E devolvi o plano de estudos para ela. — Pronto.

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Os lábios da Nerd da Orquestra tremeram quando ela tentou esticá-los sobre os dentes. Eles não chegaram exatamente a se tocar.

— Melhor. — Balancei a cabeça em um gesto encorajador. — Você precisa praticar.

— Huuuuuuuuuuuuuuummmmmm. — Ela assentiu, com os lábios rachados ficando brancos de tanto esforço. E então virou-se e saiu apressada pelo corredor.

— Bom trabalho, amiga. — Liv apertou meu ombro. — Mais uma alma salva.

— O que posso dizer? — Fui com as meninas até a entrada do auditório e

abri as portas. — Minha vocação é ajudar. O auditório tinha sido construído para parecer um teatro antigo, com

cadeiras felpudas que rangiam e plaquinhas douradas com os números nos braços. Um tapete salpicado de dourado cobria o corredor vindo das portas de entrada até o poço da orquestra. Pesadas cortinas de veludo com borlas grossas se estendiam do teto ao chão, e três holofotes lançavam uma luz dourada sobre o palco. O palco principal. Fui feita para estar ali, pelo menos quando não estava na televisão.

Diante de nós, o elenco de Garotos e Garotas estava de pé em um círculo, de mãos dadas, fazendo exercícios vocais por sobre o som da banda se aquecendo no poço da orquestra.

— Já estamos acabando o aquecimento, meninas — falou Sean, o professor de governo dos Estados Unidos do primeiro ano durante o dia e orientador de teatro durante a tarde.

Ele tinha insistido para que a gente o chamasse de Sean desde o primeiro dia, porque achava que isso fazia dele um cara legal. Provavelmente o mesmo motivo pelo qual usava jeans de marca nos ensaios. Eca.

— Desculpa mesmo pelo atraso, Sean. — Caminhei apressada pelo corredor do teatro, seguida pelas meninas. — Esses fãs malucos, sabe?

Subimos correndo até o palco. Fiquei bem de frente para Quinn, de modo que pudesse vê-lo tirando o cabelo louro dos olhos como se estivesse saindo da piscina. Molly, Liv e Nessa ficaram à minha direita, empurrando Jilly (“Desde que passei para a escola de teatro Northwestern, é Jillian”) Lindstrom para o

lado. — Mais um exercício antes de começarmos — disse Sean. — Por favor,

fechem os olhos. Enquanto Sean e Jilly fingiam ser árvores agitando-se despretensiosamente

ao vento, Quinn dava uma de juiz para uma guerrinha de polegares entre dois garotos do time de basquete, Jake Fields e Aaron Peterman. Apertei os olhos, tentando focalizar aquela silhueta magra e atlética. Mas não conseguia enxergá-lo direito. Sua franja se misturava ao rosto, fazendo-o parecer um borrão bege flutuando sobre uma camisa polo cinza e calça jeans.

— Tudo bem? O hálito quente de Molly na minha orelha me fez pular. Tudo, movimentei os lábios.

— É que seus olhos estão meio vermelhos.

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— Deve ser só a luz — sussurrei. — Tem certeza? Você não pode perder minha festa. — Certo. — Sean bateu as mãos uma vez e abriu os olhos. — Bom trabalho.

Agora, vamos começar. Liv, vá com os alunos do sexto ano até os bastidores e tire as medidas deles para a fantasia de dado dançarino.

— Pode deixar. Liv deixou o palco pela esquerda, seguida por uma horda de figurantes. — Onde está minha assistente de direção? Sean desceu do palco e sentou-se na cadeira no centro da terceira fileira. — Aqui!

Nessa acenou com o caderno, cheia de autoridade. Ser assistente de direção era mesmo o papel perfeito para ela. Podia mandar em todo mundo e incrementar seu histórico escolar ao mesmo tempo.

— Já que a banda está aqui, por que não ensaiamos alguns dos números musicais? — sugeriu Sean.

Agora que ele estava mais distante, eu podia ver cada um dos fios do cavanhaque cheio de gel. Mas Quinn, que havia se aproximado um pouco mais de mim, parecia um reflexo embaçado em um daqueles espelhos de parque de diversões.

O que estava acontecendo? — Ou a gente podia treinar “a cena do casamento”. — Nessa fez o gesto de

aspas, já que todo mundo sabia que aquele era o código para o beijo romântico de Kacey e Quinn. — Estou sentindo que a cena ainda precisa melhorar.

Nessa era um gênio. Cruzei os dedos mentalmente. Mas Sean ignorou a sugestão. — Vamos começar com “I‟ve Never Been in Love Before”. Kacey e Quinn, à

frente, no meio do palco, por favor! Os outros não se afastem muito. — Então… oi. A mancha que pairava na minha frente tinha cheiro de chiclete de menta. Esfreguei os olhos. Com força. Mas dessa vez, quando abri, ainda havia um

Monet com tons de dourado e cinza e cheirinho gostoso diante de mim. — Oi — respondi, sorrindo como se estivesse vendo-o perfeitamente. — Você vai ao Sugar Daddy depois do ensaio? Senti uma onda de essência de amêndoas que indicava uma jogada de

cabelo. — Vou. Tremi enquanto o cheiro tomava conta de mim. É óbvio que Quinn só estava usando um pretexto para continuar falando

comigo, já que a gente sempre ia ao Sugar Daddy depois dos ensaios. Há duas

semanas pedi um cupcake especial de caramelo com cobertura de chocolate amargo e mini marshmallows. E na semana passada? Ele pediu exatamente a mesma coisa. Era só uma questão de tempo até que a gente dividisse um. O que era quase a mesma coisa que nos beijarmos.

— Então — falei, procurando seus olhos azul-claros em meio à neblina —, você vai à festa da Molly no sábado?

— Vou. — E ainda completou: — Lentes maneiras.

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Quinn! Wilder! Gosta! Das minhas lentes! Minhas pernas tremeram. Não foi de nervoso. Foi mais como… o tremor da

paixão. Misturado com destino. E com um leve medinho de que talvez eu estivesse ficando cega.

A banda começou a tocar a introdução da música. Deixei Quinn segurar minhas mãos e me levar pelo palco enquanto ele cantava o solo, uma balada sobre como seu “personagem” nunca tinha sentido aquilo por “nenhuma outra garota”. A força da voz de Quinn e o jeito como apertava minhas mãos me

diziam que estava sendo sincero. Ninguém era tão bom ator assim. Quando ele terminou, abri a boca para berrar minha primeira fala: — Nuuuuuunca me apaixonei aaaaaaaaantes… — Peraí! — gritou Sean, interrompendo a banda. E a mim. — CORTA! — acrescentou Nessa, sem necessidade. Semicerrei os olhos sob a luz forte e soltei as mãos de Quinn. — O que foi? — Kacey, está tudo bem? — A testa de Sean se dividiu em quatro dobras. —

Você precisa trabalhar naquele bloqueio de novo? — Não. — Meus olhos estavam ardendo de verdade. — Porque você está olhando por sobre os ombros de Quinn em vez de olhar

“apaixonadamente dentro dos olhos dele” — explicou Nessa. — Como diz no roteiro.

— Acho que tem algo de errado com seus olhos — sugeriu Molly, sentada na segunda fileira. — Talvez eu devesse substi…

Corri para a esquerda do palco. — Não há nada de errado com meus olhos, muito obrigada. Cruzei os braços na frente do peito para me impedir de arrancar as lentes. — Talvez a gente devesse fazer uma pausa — sugeriu Sean. — Não! — guinchei. — Nada de pausa. Enquanto o resto de nós só estava tentando seguir em frente com o ensaio,

Molly estava de olho no seu grande momento. E eu a conhecia bem o suficiente para ver a cena se desenrolando na cabeça dela.

MOLLY Kacey, qual o problema? Você está péssima.

SEAN Talvez você devesse ficar fora dessa, Kacey. Talvez Molly devesse substituir você pelo restante do ensaio.

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MOLLY (chocada) Meu Deus! Eu nem estava pensando nisso! Tudo bem! Quero dizer, se Kacey não se importar.

KACEY Esperem! Não! (Desmaia de horror e precisa ser carregada do palco pela equipe técnica.)

Molly corre para o palco e ensaia as músicas com Quinn.

Entra Caça-talentos da Broadway.

CAÇA-TALENTOS DA BROADWAY Você é fantástica! Já pensou em seguir a carreira de atriz?

MOLLY (chocada) Meu Deus! Eu nem estava pensando nisso! Tudo bem! Quero dizer, se Kacey não se importar.

Molly ganha um número recorde de prêmios Tony por Melhor Performance de Aluna do Ensino Fundamental.

Por. Cima. Do. Meu. Cadáver (cego). — Vamos tirar cinco minutos de descanso, gente — disse Sean. — Acho que

todos nós precisamos de uma pausa. — Até mais, Simon. A essência mentolada de Quinn desvaneceu em direção aos bastidores. Eu me curvei em um acesso de raiva. Precisava de uma entrega expressa de

cupcake de caramelo com cobertura de chocolate amargo e mini marshmallows no palco. Agora.

Depois de alguns segundos, senti o cheiro de protetor labial de morango. — Kace? Quer que a gente leve você até o banheiro? O cabelo falso de Molly roçou no meu ombro. Ela ao menos parecia estar sendo sincera. E eu precisava mesmo dar uma

renovada no protetor labial antes do beijo técnico com Quinn… — Tudo bem — concordei. Senti Nessa apertando meu braço esquerdo, e

Molly, o direito. Fiquei de pé em um salto. — Seu solo foi ótimo — elogiou Molly enquanto caminhávamos pelo

corredor. — Perfeito — concordou Nessa. — É verdade. Foi demais — disse o borrão menino que bloqueava as portas

duplas.

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Parei de repente. Molly e Nessa também. — Hein? O máximo que eu conseguia identificar era um risco azul fluorescente no

topo da cabeça do Menino Misterioso, uma camiseta branca e jeans… Olhei de novo, só para confirmar. … apertado no tornozelo. — Eu disse que foi demais — repetiu ele. — Você tem uma voz ótima. — Ah. Eu sei. Plantão de notícias: calça skinny? Inaceitável como vestimenta masculina. — Tudo bem se eu ficar para ouvir?

Muita coragem para um garoto em roupa de menina. Quem é esse cara? Eu conhecia todo mundo que valia a pena na Marquette e nunca tinha visto aquele sujeito antes.

— Na verdade, é um ensaio fechado — informei. — Calça maneira. Molly suspirou, balançando o rabo de cavalo sugestivamente. Engoli em seco. Será que ela estava ficando cega também? O sr. Calça Skinny passou a mão na mecha de cabelo azul. — Eu só ouvi a música e achei vocês muito bons, então… — Então compre um ingresso — rebati. — Três dólares antecipado, cinco na porta — completou Molly, com a voz

dez vezes mais rouca do que o normal. — Vamos vender os bilhetes mais tarde no Sugar Daddy.

O sr. Calça Skinny pareceu não ouvi-la. — Legal. Vou ver como é. — A risada dele era lenta, descontraída. —

Quebre a perna. Ele se virou e saiu. — Com essas lentes novas é bem capaz de acontecer mesmo — disse Molly.

A voz dela se reduziu a um sussurro quando as portas se fecharam. — Quem é ele?

Ela obviamente estava perguntando para mim, já que eu era sempre a primeira a saber de tudo no colégio. O corpo discente deixou isso muito claro no ano passado, quando fui eleita “A pessoa que mais provavelmente sabe todos os seus segredos e vai transmiti-los ao vivo”. Molly foi eleita “A pessoa com o cabelo mais sedoso”. Uma pena que ela tenha destruído o de verdade.

— Ele é novo, veio de Seattle. Ouvi dizer que toca em uma banda — respondeu Nessa.

— Adoro bandas. Molly suspirou.

Joguei-me em uma cadeira da última fila, e minha cabeça rodava. O que seria pior: Nessa saber quem era o sr. Calça Skinny antes de mim ou Molly paquerar publicamente um garoto que usava calça apertada?

— Peraí. Como eu não conhecia esse menino? — Talvez você não saiba de tudo que acontece por aquiii — cantarolou

Molly. — O quê?

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Ergui a sobrancelha esquerda. — Com certeza vou convidar o garoto novo para a minha festa. Molly tirou o elástico do cabelo e balançou a cabeça feito uma modelo de

comercial de xampu. Um ventinho atingiu meu rosto. — Talvez você queira repensar essa história de sair com um menino de

cabelo azul — falei com um sorrisinho. — Aquela mecha não combina com você. Ah, aliás, um pouco de blush faria maravilhas para seu tom de pele agora.

Molly prendeu a respiração. Nessa tossiu. — Fim do intervalo, gente! — anunciou Sean no palco. — Vamos recomeçar. Segurei Molly pelo braço antes de ela descer pelo corredor.

— Só estou dizendo que você merece alguém muito mais legal. Alguém com um cabelo normal.

Mas, em vez de me agradecer, ela se afastou e correu até o palco. Fiquei boquiaberta. Quis lembrar a ela que eu tinha acabado de salvá-la de

uma humilhação pública. Que eu podia ter observado em silêncio enquanto ela se apaixonava por um intrometido de cabelo azul. Mas, em vez disso, escolhi o caminho correto e disse a ela a verdade. Porque amigas de verdade não deixam amigas namorarem punks.

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Três O CALOR DO FOGO

Sexta-feira, 7h02 da manhã

Parar de dividir o quarto com minha irmã caçula, Ella, e ficar com o terceiro andar só para mim era necessário por vários motivos. Em primeiro lugar, nenhum aluno do sétimo ano que se preze deveria acordar com a visão de calcinhas do Come-Come.

Em segundo lugar, o sótão tinha sido projetado praticamente para mim. Minha mãe costumava produzir os próprios programas aqui em cima, então tenho uma tevê de LCD na parede em frente à minha cama, logo acima da escrivaninha de acrílico cor-de-rosa. As prateleiras de alumínio em que ficavam os DVDs dos programas agora exibem minha famosa coleção de tênis. Nós até transformamos a cabine de som no canto em uma cabine de fotos com cortinas de veludo azul-petróleo. O piso e uma das paredes eram pintados com uma tinta de quadro-negro verde-clara. Liv havia desenhado toda a linha de outono dela acima da minha cama. As outras paredes eram cobertas de cortiça.

Mas a melhor coisa de ter o terceiro andar só para mim? Mamãe e Ella talvez não ouvissem meus lamentos atormentados enquanto as lentes queimavam crateras violetas nas minhas córneas.

— Kacey? Ouvi os pés descalços de mamãe subirem a escada de madeira encerada. Eu me enfiei debaixo dos lençóis e enterrei o rosto na fronha de cetim fresca,

desejando que o edredom xadrez preto e rosa me engolisse por inteiro. — Seu café da manhã vai… — Ela parou na entrada do sótão. — Kacey?

Você está doente? O colchão afundou quando minha mãe se sentou na beirada da cama. Ela

colocou as costas da mão no meu pescoço. A mão esquerda, já que não tinha nenhum anel. Na mão direita ela usava duas alianças de prata: uma com o meu nome e a data do meu aniversário gravados na parte de dentro e a outra com o nome e o aniversário de Ella.

— Só estou descansando os olhos — menti, com o rosto enfiado no travesseiro. Eu não podia admitir derrota, já que minha mãe fora contra as lentes desde o início. Precisava esperar até que parecesse que a ideia havia sido minha. E então eu poderia informar, calma e casualmente, que EU IA FICAR

CEGA SE NÃO TIRASSE ESSES DISCOS DE FOGO DOS INFERNOS. AGORA MESMO.

Houve um barulho de coisas caindo e se quebrando na cozinha, dois andares abaixo.

— Manhêêêêêêêêêê! — berrou Ella. — Liceeeeeeeeeeeeeeeença! Bufei no travesseiro. Desde que descobriu que se dissesse “por favor”, “com

licença” e “obrigada” ela não se meteria em encrencas, Ella tem usado as palavrinhas mágicas para tudo. Aleatoriamente.

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— O que vou fazer com vocês? — A cama rangeu quando mamãe se levantou. — Você vem?

— Em um segundo. Rolei para o lado e fitei a parede. Ao lado da lista de presentes de

aniversário de Molly havia uma grande foto em preto e branco com as meninas e eu encolhidas em torno de uma fogueira de acampamento, a primeira noite do fim de semana de orientação, antes do início do sexto ano. Usávamos casacos de capuz do colégio e segurávamos marshmallows derretidos em espetos. Havíamos sido agrupadas na mesma equipe da gincana. Quando ganhamos, Liv falou que isso era o Universo dizendo que era nosso destino sermos

melhores amigas. Nessa não acreditava no Universo, mas disse que éramos muito mais inteligentes e descoladas que os antigos amigos dela, o que já era um sinal bom o bastante.

Saí da cama e tirei a imagem do mural, correndo os dedos pelas bordas ligeiramente curvas. Quase engasguei quando vi a foto que estava por baixo.

Era um retrato antigo meu e do meu pai, o último que tiramos juntos antes de ele se mudar para Los Angeles. Estávamos na roda gigante do Navy Pier; meus olhos estavam fechados e eu segurava um algodão-doce cor-de-rosa gigantesco. Ele tinha comprado aquilo para mim logo antes de dizer que estava indo embora. O cheiro de algodão-doce ainda fazia meu estômago embrulhar.

Coloquei a tachinha de volta na cortiça, cobrindo o rosto do meu pai. Então, prendi o cabelo em um coque bagunçado com uma das presilhas de Liv e me inclinei diante do espelho de corpo inteiro que ficava atrás da porta do armário.

Apertei os olhos diante do meu reflexo e dei alguns passos para trás, para que eu pudesse de fato ver alguma coisa. Talvez estivesse ficando cega, mas isso não significava que o restante do mundo também estava. Vesti minha calça jeans skinny rasgada, uma camiseta preta justinha de manga curta e uma camisola de seda verde-esmeralda que chegava ao joelho e era da irmã mais velha de Liv. Isso até Liv colocá-la na secadora. Agora ela batia no meio da coxa. E era minha.

— KACEY! — gritou mamãe. — Já vou! Amarrei o cadarço do meu All Star e desci correndo as escadas.

— Olá. Na ilha no meio da cozinha minha mãe tirava alguma coisa de dentro de um

potinho de comida chinesa para viagem. Resquícios de sopa de ovos e batata frita se espalhavam pela superfície.

— Jantar no café da manhã! Sorri, e a dor nos meus olhos se atenuou de imediato. No ano passado, quando comentei que a família de Nessa às vezes comia

café da manhã na hora do jantar, como um agrado, mamãe resolveu que devíamos fazer nossa própria versão: jantar no café da manhã, já que, por ser a única apresentadora do jornal da noite no Canal 5, ela normalmente não estava em casa para o jantar.

Cantarolando minha parte do dueto com Quinn, joguei minha bolsa-carteiro do Canal 5 no chão ao lado do lava-louça de aço inoxidável e me sentei à mesa,

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no cantinho do café da manhã. Corri os dedos pelos sulcos da madeira escura. Quando eu era criança, tinha entalhado os nomes de todo mundo diante dos seus lugares para que ninguém esquecesse onde sentar.

Na minha frente, um par de asas de fada brancas com purpurina escapava de debaixo da mesa, subindo e descendo devagar.

Eu me virei na minha cadeira e revirei os olhos ardidos para mamãe. — CADÊ ELLA, MÃE? Um som alto de respiração veio do banco sob a janela. As asas de fada

chacoalharam com uma risada silenciosa, salpicando purpurina prateada sobre as batatas fritas no prato das princesas Disney de Ella.

— Não sei, meu bem. — As mechas avermelhadas de mamãe dançavam ao redor dos seus ombros enquanto ela deixava, apressada, um prato de comida chinesa ao lado da travessa de frutas à minha frente. — Melhor a gente começar a procurar.

— PRONTAS OU NÃO, AÍ VOU EU! — gritou Ella, ficando de pé no banco e rindo histericamente, os cachinhos vermelhos quicando ao redor das bochechas rosadas.

Abri a boca, fingindo que estava apavorada. Mas meu medo não era de todo falso quando vi o que ela estava vestindo. Ella havia colocado as asas sobre a camisa do Canal 5 extragrande que eu usava para dormir, que estava enfiada para dentro de um tutu rosa-shocking. A meia-calça listrada de vermelho e branco estava gasta e tinha uma mancha roxa difícil de identificar no joelho esquerdo. Tudo isso seria quase aceitável para uma menina da idade dela — se meu sutiã roxo de ginástica não estivesse sendo usado como tiara.

— Mãe! — gritei. — Sentada, por favor. — Minha mãe pegou Ella pela mão e gentilmente a

sentou no banco. — Coma suas batatas. Ella enfiou uma batata frita na boca e pegou a colher, segurando-a como um

microfone. — Kacey, o que você está comendo no café da manhã? Ela enfiou a colher-microfone na minha cara. — Frango-xadrez — respondi, com a boca cheia de comida fria. — Eca — retrucou Ella, puxando o microfone de volta. — De volta para

você, mãe. — Obrigada, Ella. Mamãe se virou para mim. Tentei apertar os olhos para colocar seu moletom preto em foco. Inútil. — Você tem certeza de que está tudo bem? — A voz dela soou cheia de

preocupação. — O que há com seus olhos? — Estão vermelhos — anunciou Ella na colher. — Tudo bem com as lentes? — perguntou mamãe. — Tudo. — Coloquei açúcar no meu chocolate quente e tomei um gole. Opa. — Sal. Tossi, me dobrando sobre o prato enquanto meus olhos se enchiam de água.

Peguei o suco de laranja de Ella e dei um gole para me livrar do gosto.

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— Kacey — disse mamãe com firmeza. — O que... está...havendo... com as lentes?

— Nada, mãe. — Peguei uma banana da tigela de frutas e levantei da cadeira. — Preciso ir para a escola.

— Essa banana é de cera. — Tudo bem! Meus olhos estão ardeeeeendo! — reclamei, fechando os olhos

e apertando-os. Ah, que alívio. Quanto tempo eu conseguiria ficar sem abrir os olhos?

Talvez eu pudesse arrumar um daqueles cães-guias fofos. Eu sempre quis ter um labrador preto, mas mamãe dizia que nossa casa era muito pequena. Ela

não poderia negar um bichinho de estimação se fosse uma necessidade médica. — Já chega. — Ouvi suas unhas batendo contra as teclas do BlackBerry. —

Estou marcando uma consulta de emergência com o dr. Marco para depois da escola.

— Mas eu tenho ensaio! — reclamei. — Hoje não tem, não. Ela não usava aquele tom desde a entrevista implacável que fez com o

prefeito. E toda a cidade de Chicago é testemunha do que aconteceu quando ele tentou discutir.

— Beijinhos! Ella desapareceu sob a mesa e reapareceu ao meu lado. Eu me abaixei para beijá-la na bochecha. — Tchau, mãe. Peguei minha bolsa e fugi da cozinha antes que ela me forçasse a tirar as

lentes ali mesmo. — Dr. Marco! Não se esqueça! — gritou ela. Puxei o casaco e o cachecol do gancho de latão junto à porta e corri para

fora. Os degraus da nossa entrada estavam congelados, por isso me agarrei ao

corrimão da escada e desci bem devagar, apertando os olhos por causa do sol. Eu devia estar parecendo a sra. Weitzman, nossa vizinha que tinha catarata e cheirava a atum e cânfora.

Descendo a Clark Street, me perguntei como lidar com Mols quando eu

chegasse à estação Armitage. Ela não havia mandado nenhuma mensagem durante a noite, o que provavelmente significava que ainda estava brava comigo por causa do ensaio. Mas eu não ia fingir estar arrependida por dar um bom conselho. Ela é que deveria me pedir desculpas por fazer uma cena na frente do meu futuro primeiro namorado.

— Ai! — De repente, um poste comprido e ossudo bateu em mim e soltou um gritinho. Só que não havia postes no meu quarteirão, muito menos postes ossudos que gritavam. — Kacey?

Dei alguns passos para trás. — Paige? — O poste era Paige Greene, minha outra vizinha, presidente do

sétimo ano, e minha ex-melhor amiga da escola primária Joliet. — Ou devo dizer “Dona Morte”?

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— Estou de luto — disse ela, olhando para o casaco, a legging e as botas, tudo preto. Então alisou o cabelo preto em corte chanel, cheia de si. Lutei contra a vontade de perguntar se ela mesma havia cortado a franja.

— Pela sua carreira política? Todo mundo sabia que Paige ia perder a eleição de presidente do oitavo ano

para Imran Bhatt, porque o pai dele era gerente de um parque de diversões e ia distribuir entradas grátis para todo mundo. Quando isso acontecesse, seria igual ao quinto ano. Só que, dessa vez, apenas uma de nós ficaria com vergonha.

— De luto pelo meio ambiente.

Paige ajeitou os óculos estilo Tina Fey sobre o nariz comprido. Até dois anos atrás Paige e eu éramos melhores amigas. Planejávamos ir

para a mesma faculdade e juramos morar juntas quando nos formássemos. Escolhemos até o lugar perfeito: um apartamento lindo com uma varanda que dava para o rinque de patinação do Millennium Park, onde meu pai costumava nos levar todas as quintas-feiras durante o inverno.

Quando era criança eu achava que seríamos amigas para sempre, mas então cresci e percebi que as pessoas seguem em frente. As pessoas vão embora, e você não pode se deixar abalar por isso. Nada dura para sempre. É a vida.

Eu me apressei às cegas na direção da estação, e Paige veio correndo atrás de mim.

— Tenho uma reunião de conselho — falou, como se eu tivesse perguntado alguma coisa. — Vamos votar pela substituição dos doces das máquinas automáticas por lanches orgânicos.

Quis soltar uma reclamação. Será que Paige não tinha entendido que não éramos amigas? Se o obituário da amizade que escrevi no quinto ano não havia sido suficiente, ela poderia ter sacado pelos últimos dois anos e meio de gelo.

— É só que minhas plataformas esse ano são bem importantes. E acho que tenho uma boa chance de ser reeleita, já que ganhei no ano passado com o compromisso de fazer mudanças e cumpri com a minha palavra, não é? Você se lembra do meu slogan? É hora de virar a página?

— Paige! — gritei por sobre o ruído do ônibus que passava na rua, jogando uma camada de neve fina e suja na calçada e encharcando meu All Star. —

Odeio ter que contar isso para você, mas presidentes não mandam em nada. Especialmente no ensino fundamental. Você realmente acha que alguém vai votar a favor de biscoitos de cereal integral nas máquinas do colégio?

As sobrancelhas de Paige desapareceram embaixo da franja mal cortada. — Para ser sincera? Acho, sim. Cinquenta e seis por cento das meninas entre

dez e onze anos têm interesse de moderado a alto em cortar gorduras trans da dieta.

Em outras palavras, cem por cento das Kacey Simons de treze anos não tinham a menor ideia de por que um dia haviam sido amigas de Paige Greene.

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Quatro UM ENCONTRO COM O DOUTOR PERVERSO

Sexta-feira, 3h37 da tarde

— Kacey Simon. Não esperava revê-la tão cedo. Quando o Dr. Marco se debruçou sobre a cadeira de exames com sua

lanterninha, o cheiro do seu perfume subiu por minhas narinas até o cérebro, intensificando a enxaqueca umas dez vezes. Eu o perdoei porque ele pronunciava o “r” de um jeito engraçado, o que seria fofo se ele não fosse inteiramente responsável por me fazer perder o ensaio.

— Minha mãe me forçou a vir. — Sei. E você tem usado o colírio que eu passei duas vezes por dia? Colírio? Fechei os olhos para proteger minhas pupilas daquelas minúsculas

adagas luminosas. — Aquilo não era opcional? — Era meio que obrigatório. — Ele soltou aquele som. O tsc. O tsc é o som universal que os médicos fazem quando você está com um

problema sério. Meu dentista, o Dr. Marvin Haussmann, era um fazedor de tsc de primeira. Especialmente quando eu jurava que usava o fio dental e então a assistente dele, Darleen, cujo auge da fama tinha sido uma menção honrosa em um concurso de sósias de Jessica Simpson, informava que havia escavado metade de um cupcake de chocolate dos meus molares superiores.

— Estou preocupada que ela esteja desenvolvendo uma reação alérgica — sugeriu minha mãe da cadeira junto à porta. — Os olhos de Kacey pioraram desde que ela saiu para o colégio hoje de manhã.

— É mesmo. — Ella puxou o elástico do tapa-olho preto que tinha achado na sala de espera. — Ai.

Tsc.

— Parece que você está com uma infecção leve, srta. Kacey. — Mas deve ser só um defeito desse par, não é? — Enfiei as unhas no couro

da cadeira. Eu já tinha escolhido minha roupa para a festa de Molly: um vestido de tricô com decote canoa, botas de cano longo acima do joelho e um fascinator com véu de tela. E LENTES VIOLETA, para um toque de cor. — Você só precisa me dar outro par, não é? E vai ficar tudo certo?

A cada segundo que se passava sem que o Dr. Marco respondesse meu coração saltava, batendo ao ritmo da voz de Quinn. Lentes maneiras. Lentes maneiras. Lentes maneiras. E se Molly beijasse o Sr. Calça Skinny antes de eu conseguir beijar Quinn fora do palco? Será que não havia limites para o que ela faria só para me vencer em alguma coisa?

— NÃO É? Minha garganta começava a fechar. Eu devia estar tendo uma reação

alérgica à ideia de Molly me vencendo em algo. Não seria natural.

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O dr. Marco se afastou no seu banco de rodinhas e caminhou em direção à porta. Assim que ele entrou em foco, notei que continuava usando gel demais no cabelo preto e cacheado, mesmo depois de eu ter dito a ele na última consulta que, quando as instruções dizem para usar uma pequena quantidade,

estão falando sério. — Tire as lentes. Eu já volto — disse ele. — Kacey Elisabeth Simon — disse mamãe assim que a porta se fechou. O

temido nome completo. E, no escuro, ele era mais assustador que o habitual. — Qual foi o nosso combinado?

— Um minuto.

Eu me curvei na cadeira e fingi que tirar as lentes exigia os mesmos níveis de concentração de uma cobertura ao vivo. No instante em que elas pousaram na ponta do meu dedo, o incêndio sem controle que acontecia nos meus olhos ficou ligeiramente mais contido.

— Kacey! Você sabia que grilos ouvem pelos joelhos? Aquele foi um momento único, em que fiquei feliz por Ella não ter a menor

ideia de quando deveria ficar calada. — Mentirosa — respondi, torcendo por uma briga. — Foi a Srta. Deirdre quem falou! — Ella bateu o pé direito, bem como

esperado. — As orelhas deles ficam nos joeeeeelhos! Mas mamãe nem piscou. — Kacey? Nosso combinado? — Queeupodiaficarcomaslentesdesdequecuidassedireitodelas. Havíamos combinado o mesmo quando ganhei um furão no quinto ano.

Também não durou muito. Mas só porque Ella fez um parque de diversões em miniatura, inclusive com um Gravitron, que era só um nome rebuscado para uma voltinha na máquina de lavar roupa. Descanse em paz, Oprah Winfurry.

— Isso mesmo. E você acha que demonstrou responsabilidade suficiente para tomar conta delas?

Como não respondo a perguntas capciosas, continuei quieta. O Dr. Marco reapareceu na porta de entrada e acendeu a luz do consultório. — Ahhh! — Apertei as palmas das mãos contra os olhos. — Dr. Maaaaarco! — POLO! — gritou Ella animada.

— Desculpe. — O Dr. Marco riu, reduzindo a intensidade de luz. — É o seguinte: a infecção vai levar umas duas semanas para melhorar.

— Eu vou pingar o colírio todos os dias. Duas vezes. Prometo. — Duas vezes por dia — repetiu mamãe. O dr. Marco abriu seu jaleco falso e procurou por algo nos bolsos internos;

quem sabe um panfleto sobre glaucoma juvenil. Estalei o pescoço para os dois lados e fechei os olhos. — Você devia trocar essas cadeiras por assentos massageadores. Assim as

pessoas provavelmente não odiariam tanto ter que vir aqui. — Kacey. Mesmo sem olhar, eu sabia que mamãe estava massageando as têmporas. — Vou pensar nisso. — A voz do Dr. Marco se aproximou da minha orelha,

e senti algo gelado e pesado no nariz. — Experimente esse aqui.

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— O quê? — Abri os olhos assustada. Os cachos pretos e cobertos de gel estavam quinze centímetros mais

próximos e umas seis vezes mais definidos do que um minuto antes. De repente, ficou dolorosamente evidente que alguém precisava com urgência de uma limpeza de pele.

Ergui as mãos rapidamente até o rosto, e elas esbarraram em um plástico duro.

— O que está acontecendo? — Engoli em seco, levantando da cadeira. — O que é isso? — Meus dedos se contraíram dentro do All Star.

O dr. Marco levantou um espelho diante de mim, revelando um par de

óculos de lentes grossas e armação de casco de tartaruga que tomava basicamente setenta e cinco por cento do meu rosto. Então jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada maligna, com a luz da sala iluminando cada uma das suas rugas enquanto ele sussurrava: “Qual é o seu último desejo?”

Tá, tudo bem. Na verdade ele disse: — Seus óculos novos. Arranquei a armação do rosto. — Você acha isso engraçado? Minha voz falhou, fazendo com que eu soasse incerta. Mas nunca tive tanta

certeza de algo na minha vida. Óculos significam morte social. E ainda não era minha hora. Eu não seria uma daquelas meninas que atingiam seu auge no ensino fundamental.

Os lábios do Dr. Marco se moviam, mas não emitiam som algum. Tudo o que eu ouvia era o som de estática. Era como ar morto — o mesmo som que eu ouviria quando todos os meus amigos me abandonassem, quando Quinn Wilder se mudasse para o Canadá para fugir de mim e Simon Falando fosse cancelado por causa da feiura da apresentadora. E se o programa fosse por água abaixo então toda a minha carreira na televisão estaria arruinada. E sem minha carreira, o que eu teria?

Nada. Exceto um gigantesco naco de casco de tartaruga marrom-alaranjado empoleirado na minha cara inútil.

— … é só por um tempinho, até seus olhos sararem — dizia o Dr. Marco. — Você não está entendendo. — Lentesmaneiras. Lentesmaneiras.

Lentesmaneiras. — Eu não posso usar isso. — Por que não? O Dr. Marco franziu a testa. Quebrei a cabeça em busca de uma desculpa que não fosse a óbvia. O que

minhas amigas diriam se estivessem no meu lugar? Molly daria um jeito de fazer os óculos parecerem… estilo secretária sexy. Mas Liv iria…

— Isso é casco de tartaruga. É desumano com todas essas… tartarugas… em extinção. — Meu estômago revirou, nem tentei impedi-lo. Seria muito bem-feito se eu vomitasse sobre aquela cadeira que não era massageadora. — Vou ligar para o Peta.

— Kacey Elisabeth Simon. — De novo o nome completo. — Vocês viram a minha cara?

O Dr. Marco deu uma palmadinha no meu ombro.

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— Não é por muito tempo, Kacey — disse ele com gentileza. — É só por duas semanas. Quando a sua infecção melhorar, você pode voltar para as lentes.

Inclinei a cabeça para trás e pisquei para o teto, listando mentalmente minhas próximas aparições públicas. A festa de Molly. Colégio. Ensaio. NOITE DE ESTREIA. A festa do elenco, na qual deveria acontecer meu primeiro beijo fora de cena com Quinn Wilder.

Esfreguei os olhos, me rendendo às lágrimas que escorriam pelo meu rosto. Eu nem me importava se o Dr. Marco me visse chorando. Ele já havia visto o pior.

Ele havia me visto de óculos. — Eu acho que você parece inteligente — arriscou o dr. Marco, erguendo o

espelho de novo. Ele levantou a armação e ajeitou-a com cuidado sobre meu nariz, mas ela ficava escorregando.

Tentei uma segunda olhadela no espelho. Olhos verdes inchados, nariz vermelho e bochechas manchadas. Eu parecia outra pessoa. Uma menina que se escondia pelos cantos, tentando não ser notada. Uma menina cujas fotos do colégio a assombrariam pelo resto da vida. Uma menina solitária. Uma... perdedora.

— Já chega. — Arranquei os óculos de novo e saltei da cadeira, jogando minha bolsa sobre o ombro. — Estou fora.

Acho que minha mãe me chamou, mas eu só conseguia ouvir o som dos meus soluços patéticos e a voz de Quinn dizendo para mim Lentesmaneiras. Lentesmaneiras. Lentesmaneiras.

Meu telefone vibrou na bolsa enquanto eu cruzava a sala de espera em direção aos elevadores.

— O que é? — engasguei. — Mudança de plaaaanos — cantarolou Molly de um jeito irritante. — Em

vez do Drake, vamos a um lugar muito melhor. Não posso contar ainda, mas tenho uma dica…

Agora não ia dar. — Eu estou sem… — Enfiei a mão no bolso do casaco e achei um papel de

bala. Esfreguei o plástico contra o telefone. — Não estou ouvindo… túnel… E desliguei. É inacreditável como algumas pessoas podem ser tão

superficiais. Quem se importava com festas de aniversário com tantas coisas horríveis e trágicas acontecendo no mundo? Desastres inomináveis, devastações atingindo milhões de vítimas impotentes ao redor do mundo? Furacões. Inundações. Terremotos.

Óculos.

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Cinco GAROTAS SÓ QUEREM SE DIVERTIR

(DE PREFERÊNCIA NO DRAKE) Sábado, 7h45 da noite

Depois da pegadinha do Dr. Marco na sexta à tarde, eu estava sem paciência para surpresas. Por isso meus nervos já estavam no limite quando minha mãe e Ella me deixaram diante da localização misteriosa da festa de Molly na zona sul de Chicago.

Eu tinha escondido os óculos no bolso traseiro do assento do carro, e foi preciso um segundo até que minha visão se habituasse ao prédio: um armazém com revestimento de placas de vinil no meio de um quarteirão que, exceto pelo prédio em si, parecia abandonado. Fechei os olhos. Fique calma. Talvez seja uma alucinação, um efeito colateral indesejável do colírio. Mas, quando reabri os olhos, lá estava ele de novo.

O que Molly tinha feito? Ninguém em sã consciência apareceria em uma festa nessa espelunca, quanto mais promover uma ali por livre e espontânea vontade. Apertei os olhos por trás do meu véu na direção do letreiro de neon que piscava ROCK'N ROLL em cima das portas de vidro automáticas. Aquilo era um… rinque de patinação?

No instante em que atravessei as portas, Nessa e Liv deslizaram na minha direção.

— ONDE VOCÊ ESTAVA? — gritaram em uníssono. — Presa no trânsito. A mentira deixou um gosto azedo na minha boca. Eu deveria ser a menina

que dizia a verdade nua e crua, não a que por pouco não ia a uma festa e depois mentia a respeito. Meus dedos correram para o nariz. Mesmo sem os óculos, eu ainda podia senti-los espreitando no meu rosto.

— Dá para acreditar nesse lugar? — Liv fez um número oito instável ao redor de uma pilha de pipoca velha e amarela. As pontas gastas de uma faixa de cabelo vintage tremulavam atrás dela feito as birutas suspensas na varanda de trás da Sra. Weitzman. — É tão retrô chique.

Pisquei os olhos sem acreditar. — Você não vai acreditar na roupa de Molly — avisou Nessa, ajeitando o

suéter oversized preto. No calor abafado que fazia dentro do rinque, sua testa

começava a brilhar mais do que a delicada bandana de joias que coroava o cabelo curtinho. — É como se ela tivesse múltiplas personalidades. — Com uma mãe psicóloga e um pai que dava aula de estudos afro-americanos na Universidade Northwestern, Nessa se considerava uma especialista em três coisas: doenças mentais, como fazer provas e como entrar em uma boa universidade. — Só que hoje em dia chamamos de transtorno dissociativo de identi…

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Parei de ouvir o que ela dizia e apertei os olhos na direção do rinque, que ficava atrás de uma parede de acrílico (à prova de balas?). O piso era pintado de preto para parecer um disco de vinil e girava lentamente ao redor de um pequeno palco vermelho, onde alguém abandonara uma bateria e um teclado. Havia umas figuras borradas de cabelo branco circulando, mas a quatro minutos da hora marcada para o início da festa de Molly eu não via ninguém do sétimo ano, da escola ou deste século, aliás. Incluindo Quinn Wilder.

— Aimeudeus. Cobri minha boca aberta com uma das mãos. Será que Molly tinha caído na

última aula de patinação? Talvez isso explicasse a quedinha pelo garoto novo

de Seattle no outro dia. E… isto. — Ah, por favor. — Liv pressionou o freio de borracha de um dos patins no

carpete e então ajeitou as polainas roxas fofinhas. — É… kitschy. — Fala sério. Kitschy é só um jeito metido a besta de dizer cafona e fora de

moda. — Dei uma conferida nas polainas. — Pelo lado bom, isso aí combina completamente com o clima. Bom trabalho.

Liv mordeu a língua. — São de Rosemary — disse na defensiva. Os pais de Liv eram hippies e deram às filhas nomes que estavam ligados de

alguma forma à natureza. Rosemary, Autumn e, por último, Liv. Ela disse para todo mundo, inclusive Nessa e Mols, que Liv era apelido de Olivia. Só eu sabia a verdade.

— Isso não é desculpa, Willow. Ou será que eu devia dizer: Living Willow Parrillo? Sem brincadeira. — Hein? Agora Nessa parecia suada e confusa. Willow Parrillo escorregou para trás e bateu contra o balcão do rinque. — Qual é o seu problema essa semana, Kace? — Ai, não sei. — Tossi uma baforada de nachos dormidos e carpete mofado.

— Eu queria estar fazendo uma esfoliação com sal agora, mas tirar chiclete grudado nas minhas botas novas é tão divertido quanto, não é?

Nessa limpou a garganta, desconfortável. — Olha… Mols não contou para a gente o que estamos fazendo aqui. É para

ser uma surpresa. — Ela passou a mão pelo cabelo curtinho e indicou com a cabeça a mesa de piquenique do outro lado do rinque, onde Molly admirava o próprio reflexo em um gigante balão de aniversário prateado.

Joguei meus cabelos perfeitamente escovados para trás e caminhei ao redor do rinque, chutando embalagens velhas de balas para fora do caminho. Esta era a pior festa da história. Quinn provavelmente nem viria.

— Eeeeeeei! — Molly deixou o espelho improvisado subir até o teto quando me viu. O cabelo cortado em camadas ao redor do rosto tinha uma mecha pintada de rosa-shocking, e ela havia trocado os acessórios branco-neve por uma calça jeans skinny preta, um top preto e plaquinhas de identificação de metal. — E aí? O que acham? — perguntou, ansiosa, jogando o cabelo para o lado. — Ficaram superimpressionadas?

— Avril? — Pisquei. — É você?

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— Crise de identidade — sussurrou Nessa, fazendo o diagnóstico. Molly estava ocupada demais ajeitando a mecha cor-de-rosa sobre a orelha

esquerda para ouvir. — Testando. Testando. — Um som alto e latejante ecoou pelos alto-falantes,

seguido de um riff de guitarra. — Testando. Reconheci a voz. Devagar, me virei na direção do rinque. Estava tudo

desfocado, uma aquarela estragada, mas eu ainda era capaz de identificar um traço azul brilhante se movendo no palco.

— Sr. Calça Skinny? — Agora meu couro cabeludo começava a suar. — Você mudou a festa de lugar e pintou o cabelo de rosa algodão-doce por causa do SR.

CALÇA SKINNY? — Para sua informação, o nome dele é Zander Jarvis, e não sr. Calça Skinny

— corrigiu Molly, me entregando um par de patins fedorentos. — E a banda dele toca aqui todos os sábados à noite. A antiga banda dele em Seattle, Hard Rock Life, era o máximo. Eles ganharam um Sammy, o Grammy de Seattle, como melhor artista revelação.

— Hard Rock Life? — perguntei. — Que idiota. — Testando, testando. — A voz do Sr. Calça Skinny ecoou pelo salão. —

Meu nome é Zander Jarvis; temos Kevin Cho no baixo; Nelson Lund nos teclados e, na bateria, The Beat. Nós somos o Gravity e vamos tocar até a noite acabar.

Molly guinchou feito um brinquedinho de cachorro. — É a hora da terceira idade, e para mandar vocês para casa felizes vamos

terminar com um cover de um clássico do Sinatra. Molly enfiou os polegares por dentro do cinto de tachinhas e balançou com

os acordes iniciais de “My Kind of Town”. — Tá legal! — gritei por cima da música. Eu não conseguia mais olhar para

Molly, então comecei a andar de um lado para o outro. — A gente fala para as pessoas que você ficou doente e que vamos ter que remarcar a festa. Em algum lugar melhor do que este.

Só se faz treze anos uma vez na vida e eu não ia deixar minha melhor amiga (que costumava ser sã) comemorar seu aniversário neste lugar.

— Tarde demais — disse Nessa com frieza, observando a porta. — Está na

hora. — Oi, Simon. Uma onda inequívoca de loção para o corpo com essência marítima se

sobrepôs ao cheiro pesado de fixador para dentaduras e suicídio social. Os cabelinhos na minha nuca se arrepiaram. — Wilder. Eu me virei depressa, ficando cara a cara com Quinn. Jake Fields e Aaron Peterman estavam atrás dele, mas eu mal os notei. O

jeito como Quinn e eu nos chamávamos pelos sobrenomes fazia eu me sentir como se estivéssemos no nosso próprio filme policial, censura dezoito anos.

— Oi. — Quinn acenou para Molly. Ajeitou o cabelo. — Feliz aniversário ou sei lá.

Molly piscou os olhos.

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— Valeu, Wilder. Quando ela o chamava pelo sobrenome, era como se eles jogassem no

mesmo time de futebol. — Ah, e… você foi muito bem no ensaio ontem. Meu estômago revirou. Eu tinha esquecido por completo que minha

consulta com o Dr. Marco significava que Molly tinha finalmente assumido meu lugar no palco.

— Ah, para mim foi, assim, tão natural, sabe? Molly jogou a mecha rosa para o lado no mesmo instante em que Quinn

ajeitou o cabelo.

Enquanto Quinn, Aaron e Jake deixavam os presentes na mesa de piquenique mais próxima e uma nova horda de pessoas do sétimo ano passava por nós, revisei minha estratégia. Era tarde demais para mudar a festa para um lugar legal. Hora de minimizar os danos. Corri até Molly, agarrando-a pelo pulso que estava sem o bracelete de spikes.

— Ei! — Ela se contorceu quando a apertei. — Kacey! — Venha comigo. Puxei-a ao redor do rinque, tropeçando às cegas. Liv e Nessa nos seguiram

de perto. Quando chegamos ao banco próximo à porta de entrada eu me joguei nele. O melhor lugar da festa.

— O que está fazendo? — bufou Molly, esfregando o pulso. — Salvando sua festa. — Tirei minhas botas de festa e inspirei, enjoada.

Então, fiz o impensável e enfiei os pés dentro dos patins. Estavam quentes. E úmidos. Mas eu fiz aquilo por ela. Ecaecaecaecaecaeca. — Considere essa a área VIP — instruí, amarrando os cadarços tão apertados que meus dedos latejavam. — Deixe que os outros venham até nós.

Molly concordou devagar. — Beleza. — Nessa, falando sério, se você não tirar algumas dessas camadas de roupa

vai brilhar mais do que a garota do Antes em comercial de creme para espinhas — aconselhei, prendendo meu cabelo em um rabo de cavalo. Minha visão estava embaçada, eu sei, mas algumas coisas são impossíveis de não se notar. — E Liv?

Fiz uma careta para as polainas. — Hilário. Molly deu uma risadinha. — E, se você quer que algum cara perceba que você tem mais a oferecer do

que esse — e ergui meus dedos para fazer o gesto de aspas — “cabelo”, é melhor começar a usar frases completas.

Molly arregalou os olhos. Emburrada, Liv arrancou as polainas enquanto Nessa tirou o suéter, revelando uma camiseta cinza brilhosa.

— Agora sim. Estão lindas. Uma de vocês peça ao cara do balcão para diminuir as luzes. Quanto menos enxergarmos essa espelunca, melhor. Vou dar um jeito na música. — Levantei de um salto, me sentindo ligeiramente tonta. Mas de um jeito bom, como se tivesse comido cupcakes demais. — Prontas? Vamos lá.

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Eram apenas alguns míseros metros até o rinque. Devagar, deslizei meus patins para trás e para a frente como se estivesse no aparelho elíptico da mamãe, mantendo os braços esticados diante de mim. Quando cheguei ao corrimão pegajoso e com a tinta descascando, me agarrei a ele com força. Fui até o palco bem no instante em que o Sr. Calça Skinny encerrava a música do Sinatra.

— Ei! — gritei por cima da bateria. — Sr. Calça Skinny! — Ei. Garotos e Garotas! — A voz do Sr. Calça Skinny soou através do

microfone. Eu me vi sendo puxada até o palco enquanto o rinque inteiro ficava em silêncio. — Quer pedir alguma música?

— Ah, sei lá — disse casualmente. — Alguma coisa desse século, quem sabe? Ou seria pedir muito para o aniversário de treze anos de Molly Knight?

— Molly está fazendo aniversário, é? — Aquele cabelo azul se afastou, dirigindo-se aos outros garotos da banda: — Ouviram isso?

— CINCO, SEIS, SETE, OITO! — gritou The Beat, e a banda deu início a uma versão rock‟n‟roll de “Parabéns pra você”.

— Ééééééééééé! — gritou a multidão no exato instante em que as luzes diminuíram e o globo de espelhos no teto se iluminou, projetando estrelas prateadas sobre o rinque.

Alguns dos meninos entraram com uma bola de futebol americano. E de pé, bem em frente ao palco, estava Quinn Wilder, com um sorriso que brilhava mais do que o globo de espelhos.

— Vem para cá! Wilder agarrou minha mão e me puxou até o rinque. — Quinn! Tive que me apoiar nele. Por mim, tudo bem. — Você patina muito bem — disse ele, ainda me segurando. Bem. Você patina muito bem. Mas não falei isso em voz alta. — Obrigada! — gritei. — A gente devia fazer uma corrida. — Seu hálito parecia ainda mais fresco

do que antes, o que fazia sentido. Aprendi na aula de ciências que, quando você começa a ficar cego, seus outros sentidos ficam sobre-humanos. — Meninas contra meninos.

— A gente está no High School Musical? — revidei. — Tá com medo? Seus lábios não estavam a mais de dez centímetros da minha orelha. Eu não sabia se era o ribombar da bateria passando pelo piso, o globo de

espelhos ou a proximidade da boca de Quinn Wilder, mas, de repente, eu estava absolutamente certa de que uma corrida de meninas contra meninos era a…

Melhor. Ideia. De todos os tempos. — Vou pegar um cupcake! — gritei, e um arrepio atravessou meu corpo.

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Com alguma sorte, o que Quinn teria visto em seguida seria eu patinando languidamente em direção à escuridão, em vez de me ver cambaleando às cegas pelo rinque lotado em direção à parede de acrílico.

Molly jogou os braços ao meu redor assim que cheguei ao banco VIP. — Aaron Peterman acabou de me dizer que minha festa está, tipo, dez vezes

mais legal que a que ele deu no ano passado! — Seu olhar se voltou para o palco, e os lábios se entreabriram ligeiramente. — Zander não é o cara mais maravilhoso do mundo?

— Espero que seja uma pergunta retórica. — Eu me ajeitei, peguei dois cupcakes de uma caixa do Sugar Daddy e passei um para Liv. — Wilder e eu

estamos organizando uma corrida de meninos contra meninas. Vocês topam? — Que coisa mais meiga — implicou Nessa, dando um gole na Coca-Cola

diet. — Eu tive um sonho na noite passada. — Liv abriu espaço no banco e me

sentei ao lado dela. — Você e Quinn começavam a namorar, tipo, na festa do elenco!

E escorregou seus patins para a frente e para trás no carpete. — Liv, você não é vidente. — Um bando de meninas que eu meio que

reconhecia da chamada passou patinando devagar, doidas para parar no nosso banco. — Seu sonho foi só bom senso.

— Ou talvez seja… — Liv semicerrou os olhos, cheia de mistério — … um Dom Divino?

— Posso captar… — Nessa fechou os olhos — … um monte de asneiras. Caí na gargalhada, com reflexos prateados passando por mim. O estresse da

consulta com o Dr. Marco e de toda a discussão com mamãe por causa daquela porcaria de óculos estava começando a se dissolver.

— Vamos fazer um rápido intervalo — anunciou o Sr. Calça Skinny. — Mas voltamos já, já. Então não saiam daí.

— Vou chamar Zander para patinar com a gente. Molly se ergueu com um pulo. — Peraí. O sr. Calça Skinny? Agora? — Engoli um pedaço duro de cobertura.

Ela não podia começar a sair com o Sr. Calça Skinny antes de eu começar a sair com Quinn. — Não. Não faça isso.

— Por que não? — Porque — suspirei — eu acabei de fazer essa festa ficar boa. Preciso

descansar antes da corrida. — Então não venha. — Molly deu de ombros, retocando o protetor labial. — Tá. Eu vou. — Suspirei. — Mas só porque é seu aniversário. Quando voltamos ao palco, o Sr. Calça Skinny nem olhou para cima. — Já de volta, Garotos e Garotas?

Ele tocou um acorde. — À força — expliquei para o cabelo azul. — Que provavelmente foi a única

maneira de você conseguir entrar nessa calça jeans. Dica: tente dar uma olhada na seção masculina.

A banda inteira ficou em silêncio. Ao que parece, nerds alternativos não tinham o gene do humor.

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— Ei. — Molly me deu uma cotovelada ao passar na minha frente. — Eu sou Molly.

— É, eu me lembro. Feliz aniversário. Outro acorde. — Obrigada. Sua banda é muito legal. Fico feliz que vocês tenham tocado no

meu aniversário. Vocês parecem uma mistura genial entre Weezer e Radiohead. Genial? Radiohead? Weezer?! — Enfim, eu estava pensando que talvez a banda pudesse segurar a onda

por algumas músicas. Nós vamos fazer uma corrida de patins e você podia participar.

— É. Eu meio que estou trabalhando. O Sr. Calça Skinny deu de ombros. — Então faça uma pausa. Molly inclinou a cabeça para o lado. — A gente meio que acabou de fazer uma. Foi mal. Silêncio. — Peraí. “Foi mal”? Molly parecia confusa. Aparentemente ninguém havia informado ao garoto

novo que você não dizia não para Molly Knight. A menos que você fosse eu. Peguei o microfone. — Aqui é a Simon falando: todos no rinque — anunciei para o abismo

cintilante e rodopiante em frente, salvando Molly pela milionésima vez. Acenei para a banda e eles começaram outra música. — Meninas contra meninos.

Assim que pulei do palco, falei para ela: — Não acredito que ele deu o fora em você. Aquela calça deve estar

cortando a circulação sanguínea para o cérebro dele. Mas quando apertei os olhos para focalizar o rosto dela só o que vi foi um

sorriso enorme. — Ele é tão dedicado à sua arte — suspirou ela. — Que gato. — Você está enlouquecendo — resmunguei, puxando-a para o círculo que se

formava em torno do rinque. Quinn dançava break no centro. — Wil-der! Wil-der! Wil-der! — gritavam os meninos enquanto Quinn

girava sobre a cabeça. Quinn ficou de pé e a multidão explodiu em gritos e aplausos. Então ele fez

uma volta da vitória. E chegou até mim. — Bora, Simon! — berrou ele, puxando meu braço. — Vamos lá! — Quinn! — gritei, espalmando o ar às cegas.

— Si-mon! Si-mon! Si-mon! — Os garotos mudaram o grito enquanto Quinn me levava para o centro da roda e me girava.

Sem nem ao menos tentar, eu estava patinando de costas por pura adrenalina, flutuando em meio ao ar pulsante e estrelado, ao som dos gritos de toda a Marquette. Foi uma experiência extracorpórea. Tem gente que chama isso de nirvana. Outros, de paraíso. Eu chamo de sábado à noite, estrelando Kacey Simon e Quinn Wilder.

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Quinn Wilder. De alguma forma acabei perdendo-o de vista no meio da multidão de rostos fora de foco que cantava. Girei o corpo em busca do meu par romântico. Mas, antes que pudesse achá-lo, bati em alguma coisa. Alguém? E

então meu cérebro passou a funcionar em câmera lenta. De repente meus patins estavam no ar, acima da minha cabeça. Peraí. Eu não sei dar mortal de costas. Definitivamente isso não estava no roteiro do romance Kacey-Quinn. Para! Começa de novo! Volta tudo! Em algum lugar a distância alguém gritou meu nome. Molly?

Lá no alto um enorme globo de espelhos girava. E aí meu filme foi cortado.

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Seis EFEITOS COLATERAIS

Sábado, 9h39 da noite

Em uma situação típica de um plantão de notícias, um jornalista responsável reúne a maior quantidade de fatos possível para evitar conclusões precipitadas e, consequentemente, pânico. Nós do mercado chamamos isso de as cinco perguntas fundamentais: quem, o quê, onde, quando e por quê.

Permitam-me. Quem: Eu. O quê: Uma luz branca e quente sobre mim. A cabeça latejando. Mamãe

chamando meu nome a distância. Onde: Na última vez que chequei, um armazém caindo aos pedaços. Quando: Algum momento depois da festa caída-barra-muito-maneira de

Molly. Por quê: Não é óbvio? Uma luz branca e quente? EU. MORRI. — Kacey. Kacey. — Agora ouvi uma voz masculina, profunda e grave.

Minhas pálpebras se abriram e encarei a luz diretamente. — Deus? — sussurrei. Só que na verdade o que saiu foi algo como: Mraaaaau? Isso porque havia

alguma coisa grossa, seca e felpuda dentro da minha boca, nas minhas bochechas, que estavam dormentes. E minha mandíbula latejava, doendo mais do que quando fiz uma cobertura de sessenta e cinco minutos semestre passado sobre o motim das merendeiras.

Tentei erguer a mão para massagear o queixo, mas estava pesada feito chumbo.

— Kacey. Senti alguém pressionando meu ombro com a mão e me contorci sob ela,

fugindo da luz. Não era minha hora! Eu ainda não tinha feito tudo que queria fazer antes de terminar o ensino fundamental. Como revolucionar a televisão! Beijar Quinn Wilder fora de cena! Comer um cupcake Big Daddy inteiro no Sugar Daddy, para ter meu nome no quadro em cima da caixa registradora!

— Olha ela aqui. A respiração quente de mamãe fez cosquinhas na minha orelha, e a luz foi

reduzida. Então senti os óculos se encaixando no meu nariz. Tentei gritar, mas

não saiu nada. — Bem-vinda de volta, mocinha. Uma sombra escura se inclinou, ficando entre mim e a luz, e fogos de

artifício dourados explodiram diante das minhas pupilas enquanto a visão se ajustava. As listras finas e bem-definidas em vermelho e branco foram a primeira coisa a entrar em foco. E então vieram as letras cursivas bordadas em azul-marinho: MARVIN HAUSSMAN, CIRURGIÃO-DENTISTA.

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Não era Deus. Era só o meu dentista nerd de morrer, que dizia coisas como “mocinha” (e que chegou uma vez a dizer “ora bolas, carambolas”, o que já devia ser motivo suficiente para um afastamento por más práticas).

— O que está acontecendo? — murmurei, meio grogue, o que saiu como: Mraaaaau mraaaaaau mrau mrau?

Por sorte, minha mãe era capaz de ler minha mente. — Você caiu na festa da Molly — explicou ela gentilmente, as pontas dos

dedos acariciando minhas bochechas. Aquilo me fez lembrar de quando eu era criança e ficava em casa porque estava doente. — Parece que você quebrou um molar. O Dr. Haussman foi muito gentil em vir até o consultório para atendê-la.

— Não tem de quê, Sterling. — Ele colocou seus óculos de aro fino e se debruçou sobre a cadeira de exames. — Certo, menina, vamos tirar essas bolas de algodão da sua boca. E então podemos conversar sobre as suas opções.

Enquanto o Dr. Marvin Haussman, cirurgião-dentista, se inclinava para retirar o algodão, sua manga sedosa encostou na minha bochecha. Isso deve ter provocado alguma espécie de flashback de transtorno de estresse pós-traumático, porque, de repente, a noite inteira voltou a toda velocidade, com som e tudo. E vi a manchete de domingo de manhã em letras frias em preto e branco: MAIS JOVEM JORNALISTA CEGA DO MUNDO TROPEÇA EM GALÃ DESCABELADO DURANTE DANÇA SENSUAL PRÉ-PRIMEIRO BEIJO; A JOVEM É MANTIDA EM CATIVEIRO POR DENTISTA ESTABANADO EM PIJAMAS DE SEDA.

Gritei e ergui o corpo, batendo com a cabeça na luminária acima da cadeira de exames.

— Kacey! — Mamãe ofegou. — Cuidado! — Aaaaaaaaaaaiiiiii! — berrei, desabando de volta na cadeira. Mas as dores

na cabeça e na boca não eram nada comparadas à dor de saber que Quinn Wilder tinha visto a minha queda. Será que ele havia mudado de ideia a meu respeito? A nosso respeito?

— Calma, mocinha. O dr. Haussman chacoalhou quando ele soltou uma risada. Ah, você está achando isso engraçado?,eu queria gritar. A minha humilhação

pública está divertindo você?

— Agora vamos levantar o encosto da cadeira para poder conversar. A cadeira zumbiu atrás de mim. Passei as mãos pelo cabelo. Como ele podia ficar tão calmo em uma hora

dessas? Ele não tinha ideia do que era para uma figura pública atingir o fundo do poço.

— Acredite se quiser, mas foi bom você ter caído quando caiu. — O Dr.

Haussman limpou a garganta. O botão do meio da camisa do pijama balançou perigosamente, ameaçando se libertar da casa. — Fui obrigado a dar uma olhada nos seus sisos, que estão nascendo muito apertados. E estão alterando todo o alinhamento dos outros dentes.

A luz sobre a cadeira começava a me fazer suar. — Qual é a questão aqui? — Kacey, deixe o Dr. Haussman terminar.

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A ternura na voz de mamãe estava começando a desaparecer. — A questão é que você vai precisar de uma intervenção ortodôntica para

resolver o problema, ou infelizmente vai experimentar um prognatismo maxilar severo nos próximos anos.

— Tradução? Virei a cabeça na direção da minha mãe. Eu odiava quando os adultos usavam palavras compridas. Foi como quando

alguém só queria ajudar certas professoras de geometria, avisando educadamente que camisas de manga curta com bordados de ursinhos em roupas patrióticas eram indicadas tão e somente para enfermeiras pediátricas e

velhinhas loucas por gatos. Mas aí certas professoras de geometria mandavam um bilhete para sua casa com ameaças de uma intervenção disciplinar. Traduzindo, “suspensão”.

Mamãe apertou os lábios como faz quando está tirando o excesso de batom. — Você vai precisar usar aparelho, ou sua arcada inferior ficará mais para a

frente do que a superior — disse ela com delicadeza, entrelaçando os dedos nos meus e apertando minha mão.

Meu corpo formigou por inteiro e então ficou completamente dormente, como se o Dr. Haussman tivesse injetado uma dose gigante de novocaína em mim.

— Por causa da localização do seu siso, não podemos usar aparelhos invisíveis — disse o Dr. Haussman ao longe. — Você precisa de um aparelho fixo, um mordedor para a noite e um aparelho extrabucal.

Atordoada, encarei o reflexo quatro olhos de armação casco de tartaruga nos olhos da minha mãe. Aquilo invadia a minha cara. Aquela garota não era eu. Ela estava com o rosto inchado e os olhos vidrados. O cabelo estava emplastrado na testa. Ela era… feia. Mordi a parte de dentro da minha bochecha. Com força.

— Mãe — consegui falar, apertando a mão dela. — Não. Por favor. Ela precisava entender. Se eu aparecesse na escola daquele jeito, todo

mundo iria me abandonar. Exatamente como papai a abandonou. Como abandonou nós duas.

— Sinto muito, Kacey. Mas precisamos fazer isso.

— Mas… eu não posso. Uma onda quente de raiva dominou o meu estômago. Não deixe ele fazer isso,

mãe. Por favor. — Kacey — disse ela gentilmente. — É só um aparelho, meu bem. Mas eu sabia que ela estava mentindo. Nunca era só um aparelho. Primeiro

você colocava o aparelho. Depois perdia seu programa de tevê porque o câmera

tinha ficado cego com os reflexos do aparelho, o que constituía um caso de acidente de trabalho. Então Quinn Wilder decidia que não gostava mais de você, afinal quem trocaria beijos técnicos com uma menina cheia de metal nos dentes? E então o restante do colégio decidia que não gostava de você porque Quinn Wilder ajeitando o cabelo conseguia ser muito persuasivo. Alguns anos à frente e você estará lendo os números da loto em um canal de tevê a cabo em

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uma das Dakotas porque ninguém mais sequer olharia para você, que dirá contratá-la como jornalista.

É evidente que o Dr. Haussman também não compreendia essa cadeia inevitável de eventos. Caso contrário ele não teria colocado aquela máscara de papel e dito as palavras mais torturantes da história:

— Abra bem a boca.

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Sete E.D. É PARA ENSINO DOMICILIAR

Segunda-feira, 6h45 da manhã

Na manhã de segunda-feira a única coisa que vibrava mais alto do que o alarme com o jingle do Canal 5 do meu celular era a minha mandíbula. Mantive meus olhos bem fechados e dei um tapa na mesinha de cabeceira até que o telefone caísse no chão e parasse de tocar.

— Já acordou, meu bem? — chamou mamãe da escada. — Aaaaarrrghhh — gemi. Eu nunca mais iria levantar. Não depois de cair de cara no chão na frente do

meu ex-futuro-namorado-hífen-par-romântico. — Kacey? Um dedo macio cutucou meu braço. Levantei um pouco a cabeça do meu travesseiro babado e vi o borrão que

era Ella, com a boca suja de suco pairando apenas a alguns centímetros da minha bochecha. Uma faixa brilhante de papel-alumínio estava enrolada ao redor do rosto dela feito… feito…

Freio de burro.

Bati nas minhas bochechas latejantes. Ou tentei bater, mas havia uma cerca de arame farpado em volta da minha cabeça, a pelo menos uns quinze centímetros de distância da boca. Quando toquei o freio de burro, parecia que uma água-viva havia feito do meu rosto sua morada.

Frenética, passei a língua pelos dentes. Mas meu sorriso Simon, liso e perolado, não existia mais. Desaparecido. Substituído por uma parafernália de peças de metal que me incomodava mais do que Nessa na época de provas.

— Aaaaaaaaaaaaaaaahhhhh! — gritei, chutando o edredom para fora da cama.

Ella despencou para trás, uns óculos velhos de leitura da minha mãe caindo do seu nariz pequeno para o chão.

— Aaaaiiiii! Ignorando-a, pulei da cama e corri para o closet, chutando do meu caminho

calças jeans skinny pelo avesso. Agarrei as laterais do espelho de corpo inteiro atrás da porta do armário e me aproximei do vidro.

— Meninas? — Os passos de mamãe ecoavam na escada. Ela correu para o quarto, se abaixando para passar por baixo do telhado inclinado. — O que está acontecendo?

Encarando meu reflexo aprisionado em metal, belisquei a coxa. Mas, em vez de acordar, deixei duas meias-luas marcadas logo acima do meu joelho roxo. Não era um pesadelo. Era real.

— Kacey me empurrou! — gritou Ella através de todo aquele papel-alumínio.

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— Kacey? — Mamãe sentou na beirada da cama e puxou Ella para seu colo. — Isso é verdade?

Normalmente, a voz dura das perguntas implacáveis de mamãe faria com que eu me contorcesse. Mas todas as células do meu corpo já estavam doloridas.

— Kacey? — perguntou ela de novo, dessa vez com mais carinho. Eu queria gritar. Berrar. Bater em alguma coisa. Coisas como óculos e

aparelho não deveriam acontecer comigo. Acontecem com historiadores do clube de xadrez e com fundadores do clube de matemática. Viciados em aula de governo dos Estados Unidos. Com as Paige Greene do mundo. Com os nerds de

orquestra. E não com as Kacey Simon. Eu me afastei do espelho e agarrei a cortina de veludo da cabine de fotos.

Então dei um suspiro profundo e me joguei no banco lá dentro. A cabine jamais mentia.

— Meu bem — tentou mamãe de novo. — Fique calma. Ignorando-a, bati com o punho fechado no botão verde que brilhava. A

maior parte das pessoas não teria coragem de se ver neste estado. Mas eu precisava da verdade nua e crua. Mesmo que ela me matasse.

O flash disparou quatro vezes. — Filha. Você precisa respirar fundo. A voz de mamãe mal sobressaía aos meus batimentos cardíacos e ao barulho

da cabine de fotos. Como ela podia ter deixado isso acontecer? Eu nunca mais falaria com ela.

Ella abriu a cortina e subiu no meu colo, puxando a tirinha de fotos. E então sorriu, aparentemente superando o ataque de pirraça.

— Achei lindo. Brilhoso! Como se seus dentes estivessem de brincos! Gemi, pegando as fotos. Encarei as imagens em preto e branco pixeladas.

Lábios e bochechas inchados me encararam de volta, com um hematoma que escurecia na maçã do rosto e um arame grosso que orbitava minha cabeça.

— Sabe, Kacey, não importa como você fica com aparelho. Minha mãe abriu a cortina. Tá bom. Agora ela ia me dizer que o que importava era como você era por

dentro. Sabe quem escreveu isso? Gente de óculos e aparelho.

— Talvez você até comece uma moda. Você se lembra de quando quebrou o braço no quinto ano? O que aconteceu quando você apareceu no colégio com o braço engessado?

Certo. Talvez alguns alunos tenham aparecido na semana seguinte com gessos falsos, decorados com purpurina e canetinha. Talvez o diretor até tenha pegado em flagrante uma menina prestes a pular do trepa-trepa só para poder quebrar um osso de verdade. Mas isso era diferente. Ninguém em sã consciência iria falsificar óculos e aparelho.

— Seus amigos amam você — disse mamãe com sinceridade. — Você é Kacey Simon. E qual é o acessório mais importante de uma Simon, na frente e atrás das câmeras?

— Eu sei! Eu sei! — Ella pulou do meu colo e balançou a mão no ar. — Autoconfiança!

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Mordi meu lábio inferior rachado e engoli em seco. — Eu me lembro da primeira vez em que soube que você seria jornalista. —

Mamãe me puxou da cabine direto para um abraço. O roupão dela cheirava a sabonete. Fiquei com vontade de chorar. — Você tinha seis anos e…

— Igual a mim! Ella envolveu nós duas em um abraço. — Igualzinha a você — respondeu mamãe, animando-a. — Eu estava

cobrindo aquele protesto estudantil em Loyola e, como não tinha conseguido arrumar uma babá, levei você junto.

Fiz uma careta, meio rindo.

— Você estava entrevistando o presidente do corpo estudantil com sua colher do Elmo como microfone. Nunca vou me esquecer de como você estava animada, lá no meio do burburinho. — Ela apertou meu ombro. — Você ainda é Kacey Simon. E ainda tem um trabalho a fazer.

Por mais que eu odiasse admitir, ela estava certa. Eu tinha uma responsabilidade com o público. Se os óculos e o aparelho me tirassem do ar e do mapa, quem iria ajudar as pessoas no colégio? E daí que eu teria que memorizar o roteiro, já que não poderia ler o teleprompter? Nada impossível. E daí que eu precisaria aprender ventriloquia para nunca mais ter que abrir a boca durante o programa? Tudo bem. Poderia pagar pelas aulas com o dinheiro do processo contra o rinque de patinação por ter condições impróprias para festas.

— Vai, quero ouvir você dizer. — Mamãe me deu um empurrãozinho. — Quem é você?

Revirei os olhos. — Eu sou Kayfe Fimon. Meu coração subiu até a garganta. Peraí. Havia alguma coisa errada. Certo, só

preciso enuuuuuunciar, como Sean sempre dizia nos ensaios. Tomada dois. — Eu fou Kayfe Fimon — repeti, dessa vez mais alto. Meu sangue ficou mais gelado do que sobra de frango-xadrez. Não. Não era

possível. — Kayfe! Fimon! Kayfe! Fimon! — guinchou Ella. Fiquei boquiaberta, a mandíbula pesada de tanto metal e destruição.

Não. Nãonãonãonãonão. Arranquei o freio de burro, me encolhendo de dor. — KAYFE. FIMON. — O quarto rodopiou diante dos meus olhos, girando

fora de controle. Agarrei o braço de mamãe para me apoiar. — EU EFTOU COM A LÍNGUA PREFA?

Mamãe evitou me encarar, fingindo puxar um fiapo do roupão. — Tenho certeza de que vai passar quando se acostumar com o aparelho.

Você provavelmente só tem que se habituar a falar novamente. Mas talvez leve um tempo — disse ela com gentileza.

Um tempo? Eu não tinha um tempo. A chamada era em menos de uma hora. Plano B.

— Acho que tô pafando maaal — gemi, me jogando na cama.

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— Ah, meu amor. — Minha mãe balançou a cabeça. — Esquentei sopa e fiz uma vitamina para você não precisar mastigar. — Ela agia como se nem tivesse me ouvido. Como se nem ligasse. — Esteja lá embaixo em dez minutos. Ella e eu levamos você até o colégio se for rápida.

Ouvi seus passos descendo a escada, seguidos pelos tropeços lentos de Ella. Interrompemos nossa programação para um aviso especial: Kayfe Fimon tá fuperferrada.

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Oito VISTA, MAS NÃO OUVIDA Segunda-feira, 8h04 da manhã

Antes de me arrastar até a porta da sala de Sean enfiei os óculos na bolsa, me abaixei e balancei os cabelos. Uma menina tinha que torcer para que cachos volumosos e um cachecol dourado pesado pudessem esconder os lábios rachados e as bochechas de esquilo. E, se sangue suficiente subisse até o meu cérebro, talvez eu desmaiasse, quebrasse alguma coisa e tivesse que ficar em casa até o fim do semestre.

Minha palma suada escorregou na maçaneta. Sequei as mãos na legging cor de chocolate e tentei de novo. A porta abriu e entrei pelo fundo da sala.

— INGRESSOS PARA A NOITE DE ESTREIA DE GAROTOS E GAROTAS!

À VENDA! AGORA! — guinchava Abra na tela plana instalada no canto da sala quando entrei na ponta dos pés. Sean ficou de pé, de costas para a turma, e usou uma régua comprida para baixar o volume da tevê. Todos os outros já haviam colocado os fones de ouvido dos seus iPods.

De nossos costumeiros assentos no fundo da sala, as silhuetas enevoadas de Molly e Liv se viraram para mim. A mecha rosa de Molly se inclinou de curiosidade, e as ondas escuras do cabelo de Liv sacudiram de preocupação. Na fileira da frente os cartões amarelos fluorescentes de Nessa pararam de se mexer.

Na primeira fileira, Paige Greene estava ao lado dos outros nerds, incluindo metade da sessão de instrumentos de corda da banda da escola e Imran Bhatt. Mesmo com a visão prejudicada, dava para reparar que o corte de cabelo dela não parecia muito simétrico.

— Kacey. Achei que você tinha morrido ou sei lá! — sussurrou a mecha rosa quando pulei uma pilha de mochilas e sentei no meu lugar de sempre, entre Molly e o chapéu de crochê feito à mão de Liv. Na fileira seguinte os cartões fluorescentes de Nessa voltaram a voar.

— Hummm — concordei, olhando para a televisão à frente como se não pudesse sequer pensar em perder o programa de Abra.

Molly colocou uma agenda nova, preta e cheia de purpurina, na frente da boca e se inclinou na minha direção.

— Peraí. Isso não é protetor labial. Você está… usando gloss?

Consegui abrir um sorrisinho de canto de boca. Eu tinha grudado os lábios com duas camadas do gloss de pêssego super grudento da minha mãe. Medidas desesperadas.

— EU SOU ABRA LAING, E VOCÊ ESTÁ ASSISTINDO A MINUTO! MARQUETTE! — berrou Abra. — DE VOLTA A RYAN BURKE DO SEXTO ANO! PARA O CARDÁPIO DA SEMANA!

— Você sentiu as energias de cura que enviei do meu quarto? — sussurrou Liv à minha direita. — Passei o domingo inteiro gerando boas vibrações.

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— Hummm — sussurrei novamente, mirando a nuca de Nessa. Estava muito assombrada por ela conseguir tratar esta manhã como outra

manhã de segunda-feira qualquer. Como se o meu mundo inteiro não tivesse virado de pernas para o ar e depois desmaiado no meio do rinque de patinação. Apertei ainda mais os lábios e apontei a garganta com o indicador. O metal duro do aparelho arranhou minha boca, ameaçando se libertar.

— O quê? Molly enrolou a mecha rosa ao redor de um anel enorme que tinha no

indicador. Eu me aproximei. Aquilo era… uma caveira? Peguei a agenda de Molly e arranquei uma página do final. Liv puxou o

lápis do coque desgrenhado e me entregou. Larinji Laringo Perdi a voz. O médico disse que peguei algum tipo de doença da garganta na sua

festa. Molly engasgou. — Kacey! ME DESCULPE! Ela agarrou meu braço e o apertou com força. O mar de cabeças flutuantes na nossa frente se virou. O cabelo irregular de

Paige pendeu para a esquerda. Sean desligou a tevê. — Meninas? Algum problema? Balancei a cabeça depressa, minhas bochechas de esquilo pegando fogo. — Kacey perdeu a voz! — Molly apertou meu braço com força. — E ela

desmaiou e quase morreu. Na minha festa de meninos e meninas. Ela abaixou a cabeça. Eu teria me sentido mal em mentir para ela se a minha

vida não estivesse se dirigindo a toda velocidade em direção à Nerdlândia. — Você deveria arrumar alguém para falar por você nas aulas — opinou

Liv. — Ser seu porta-voz ou algo assim.

— Eu faço isso. — Molly balançou o braço. — E anoto as aulas para você. — Ela ainda pode escrever, gênia. Nessa se voltou para nós e revirou os olhos para mim. Sorri, e aí levei a mão à boca na mesma hora. A dor pulsante nas minhas

gengivas não era nada comparada ao medo de meu aparelho aparecer. — O que você vai fazer com Simon Falando? Liv apoiou os cotovelos na carteira. As colheres prateadas que ela havia

transformado em pulseira tilintaram feito um sino dos ventos. — E o ensaio esta tarde! — Nessa ajeitou a cintura da meia-calça roxa. —

Você vai sair do musical? O ensaio. Eu ainda não havia pensado que, enquanto eu desse uma de muda,

Molly ficaria com meu papel. Mas, se interpretar a Kacey Simon de verdade significasse ser uma esquisitona com língua presa, óculos e aparelho, talvez eu não quisesse mais aquele papel.

*

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— Ser autêntico no seu personagem significa comprometer-se com o papel em todos os sentidos — anunciou Sean no início do ensaio esta tarde. A maior parte do elenco estava sentada, com cadernos e lápis, de pernas cruzadas em um círculo no palco, tentando não ter um derrame induzido por tédio enquanto Sean andava de um lado para o outro lendo um livrinho quadrado. Sentei entre Molly e Quinn, com os joelhos encostados no peito, tentando não relaxar meus lábios trêmulos que passaram as últimas nove horas grudados no aparelho. — Isso significa comprometer-se com a voz do seu personagem, com suas emoções e seus movimentos.

Um fedor repulsivo emanava do copo de papelão que Molly segurava. Olhei

feio para ela e depois para o copo. — Liv preparou para mim — sussurrou ela animada. — É tipo uma poção

de ervas para minha voz no palco. Fiz um olhar de “como é que é?”. — Se você não estiver bem — disse ela depressa, levando o copo até a boca. Quinn me deu uma cotovelada nas costelas, fazendo a última parte em

funcionamento do meu corpo pulsar de dor, assim como o resto. — Sean é tão nerd, não é? — sussurrou ele. Sua franja desgrenhada roçou o lóbulo da minha orelha e teria feito o meu

corpo todo se contorcer em espasmos de amor se eu não estivesse suando com a echarpe de lã orgânica que Liv havia tricotado para mim durante o almoço para acelerar meu processo de recuperação da laringite.

— Hoje vamos nos concentrar no movimento. — Sean fechou o livro e o enfiou no bolso de trás da calça. — Durante o ensaio, quero que todos se concentrem em estar dentro dos seus personagens, não apenas emocionalmente, mas fisicamente. Explorem como é o corpo do personagem.

— Posso explorar como é o corpo do personagem de uma das meninas? — falou Brady Kane, um dos caras da iluminação, pelo sistema de som da cabine técnica.

— Que sexista — declarou Nessa com firmeza, balançando seu bloquinho. — Em outras palavras. — Sean suspirou. — Como é ser o seu personagem?

Ele ou ela manca? Ou tem a postura perfeita? — Ele bateu palmas. — Todos de pé, vamos começar.

Vasculhei o cérebro, procurando uma estratégia para ganhar tempo. Elogie a calça dele. Pergunte onde ele desenvolveu tanta presença de palco. Puxe-o de lado e peça para ele repetir aquela palestra MARAVILHOSA da semana passada sobre a Segunda Emenda da Constituição. Um minuto. Todas essas opções envolviam abrir a boca.

Molly ficou de pé. — Certo, Sean! — Kacey, imagino que você não vai participar desse ensaio — intuiu Sean.

— Tudo bem se Molly ficar no seu lugar? — Fico feliz em ajudar! Molly tirou o cabelo de trás da orelha. A franja caiu sobre o rosto dela,

criando uma cortina entre nós que meu olhar mortal não conseguia atravessar. De qualquer forma, sorri com desdém para a mecha rosa. De repente, tudo o

que eu queria era correr para casa, mergulhar debaixo das cobertas e começar o dia de novo. Não. A semana. O ano. Minha vida. O que eu deveria fazer? Deixar

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Molly encenar com Quinn? Ou me revelar uma mentirosa de língua presa e aparelho? Não havia uma alternativa boa.

— Kacey? — chamou Sean com gentileza. Minha cabeça estava pesada. Assenti lentamente. Eu não tinha escolha. — Maneiro — guinchou Molly, sem nem olhar para mim. — Ah, e tive umas

ideias para o posicionamento de palco que são, tipo, um pouco diferentes do que Kacey estava fazendo.

— Tudo bem, vamos tentar. — Vi os óculos de Sean se moverem para cima e para baixo antes de ele dar as costas para mim e ficar de frente para o restante do elenco. — Preciso de Molly e Quinn no palco, por favor. Molly e Quinn.

Molly e Quinn. A combinação me deu ânsias de vômito. — Os outros, por favor, sentem-se nas primeiras fileiras. Liv veio atrás de mim e passou o braço ao redor do meu ombro. — Vamos, doentinha. Evitei olhar para Molly, para Sean ou para qualquer um enquanto me

arrastava escada abaixo. Mesmo de costas para o palco eu sabia que todo mundo estava olhando para mim. Mas, em vez de produzir a descarga de adrenalina costumeira, isso só fez com que eu tivesse vontade de me enfiar debaixo do palco e morrer envenenada com o metal do meu próprio aparelho.

— Quer se sentar no fundo? — sussurrou Liv. — Posso atualizar você com as notícias de sábado à noite.

Balancei a cabeça e arrastei Liv para a fileira da frente. Se Molly ia assumir o papel principal, eu precisava ficar de olho nela. No sentido figurado.

— É sério? — provocou ela, se largando no lugar ao meu lado, no meio da fileira. — Você não está nem um pouco interessada em ouvir a parte em que Molly experimentou nachos no rinque e como ela talvez tenha intolerância à lactose?

— Nojento — acrescentou Nessa antes de sentar ao lado de Liv. A iluminação baixa deu a seus grandes olhos castanhos um ar malicioso. — Sorte a sua ter perdido a cena.

Praticamente tive que segurar os lábios para não rir. Pelo menos dois terços das minhas amigas sabiam do que uma menina precisava para se sentir melhor.

— Silêncio, por favor! — Sean pulou do palco e sentou-se ao lado de Nessa.

As luzes diminuíram e dois holofotes correram pelo palco antes de encontrarem Molly e Quinn. No fundo, uma das árvores arrotou. — Quando estiverem prontos, pessoal. Vamos começar em Havana, no final da página quarenta e sete, com a fala de Molly.

A fala de Kacey!,eu quis gritar. Também quis dizer que Molly não devia estar tão perto assim de Quinn. Por que Nessa não estava fazendo seu trabalho e mandando-a dar uns passos para trás?

— Mas você DEVE me achar uma grandessíssima PURITANA. A voz de Molly sobressaiu, clara e segura. Sua silhueta embaçada inclinou-

se para perto da silhueta embaçada de Quinn. Ela ficou tão perto que provavelmente podia sentir o cheiro da loção dele. Enfiei as unhas no braço de madeira da poltrona, tentando invocar aquele cheiro na minha memória. Nada.

— Eu não sei o que você é — flertou Quinn.

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Uma falsa, traidora, ladra de cena, intolerante à lactose, uma SUBSTITUTA! Por que eu sempre era a única a conhecer verdadeiramente as pessoas?

— Mas você deve achar que sou algo.

Ah, não. Molly estava usando exatamente a mesma voz que havia usado no sexto ano para convidar Jake Fields para dançar na festa do Dia das Bruxas. E eles desapareceram por uns bons quatro minutos no meio da festa. E quando ela apareceu de novo? Estava com palha no cabelo. Só estou comentando.

— É, acho que você tem algo de fechada — observou Quinn, como se o roteiro o obrigasse a falar com a voz mais sensual da história. Ele atuava como se não importasse o fato de eu estar morrendo de laringite ou de a minha

melhor amiga não ter precisado ser nem um pouco persuadida a roubar meu papel. Ele dizia as falas como se nada tivesse mudado. — Mas não totalmente.

E então algo bizarro aconteceu. Enquanto a mão de Quinn se aproximava do zíper do casaco preto de Molly, a cena ficou em câmera lenta. Em vez de vê-lo se aproximar dela por dois segundos, tive que assistir àquilo por pelo menos oito. E provavelmente foi por isso que aconteceu isso:

— COOOOOOOOOOOORTA! — gritei. E então eu estava de pé, correndo para o palco, e os holofotes apontavam

para mim e Quinn, como de costume. Só que, dessa vez, Molly estava entre nós dois.

Ela abriu a boca, com as bochechas vermelhas. — Kacey — disse ela, olhando para o chão. — Quinn e eu estamos no meio

da cena. Você disse que não queria fazer. Mesmo sem olhar para mim, sua voz estava firme como jamais ouvi. Sem

abreviações. Sem pedir uma segunda opinião. — Achei que devia dar uma ajudinha à minha fubiftituta — ataquei, as luzes

arrancando o suor dos meus poros. Ah, não. A língua presa. Mas agora era tarde demais. — Kacey? — Mais do que tudo, Molly parecia confusa. — A gente conversa

depois. — Depoif? — Quando inspirei pela boca, uns fios do meu cabelo se

enrolaram no aparelho. — Quer difer depoif que vofê fizer a minha fena? — Qual é o seu problema?

Agora ela me encarava diretamente. — Você está de aparelho? — Quinn protegeu os olhos do brilho na minha

boca. — Hard-core. — Ele riu. — Não sabia que você curtia heavy metal. — Eu tô BEM — falei, com meus punhos cerrados. — E vofê? Vofê é perfeita

para o que é… uma FUBIFTITUTA. Nunca efquefa que eu fou a eftrela. E ifo não vai mudar.

— Meninas! — Sean se levantou, como se alguém fosse dar atenção a um professor de governo dos Estados Unidos em uma hora dessas. — Já chega.

— Hum, eca. — Molly levantou a barra da camisa e limpou a testa, como se eu a tivesse encharcado de cuspe por causa da língua presa. Exagerada. — Alguém tem álcool em gel? — perguntou para a turma.

Aqui e ali, risadas surgiram nas primeiras fileiras do auditório. — Para com ifo.

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Engasguei. Agora todo mundo estava gargalhando. Tentei recuperar o fôlego, mas não

consegui. Ela não podia estar fazendo aquilo comigo. Não podia, depois de tudo que fiz por ela, todas as vezes em que a ajudei, inclusive sofrendo uma concussão ao tentar deixar a festa dela mais legal.

— Corta! — gritou Sean. Passei por Molly e Quinn e voei pelas escadas. Por favor, não caia. Por favor,

não caia. Em algum lugar a distância ouvi Sean me chamar, mas continuei correndo. Molly podia tentar tudo que quisesse para me humilhar, mas ninguém iria me forçar a ficar ali e aguentar.

Varei as portas do auditório e corri até o Silverstein antes de as lágrimas escorrerem, o que me fez sentir ainda mais idiota e totalmente sozinha. Eu não chorava desde que… desde que meu pai tinha ido embora.

— Ei, Sarah Brown. Eu me virei. — Fenhor Calfa Fkinny? Ofeguei, me curvando para recuperar o fôlego. Meus olhos encheram-se de

água de novo, e o cabelo azul dele ficou parecendo uma aquarela. — Zander — corrigiu ele. Usava uma camiseta dos Beatles sobre uma

camisa marrom de manga comprida. Ele podia muito bem ter usado uma placa ao redor do pescoço com a palavra POSEUR. — E você é Kacey. Kacey Simon?

Não mais.

— E então. Ensaio ruim, é? — A voz dele era meiga. Ele enfiou os polegares nos passadores do jeans e deu um passo à frente.

— Tanto faz. Dei de ombros. — É — disse ele, pensativo, como se eu tivesse dito algo muito profundo e

ele precisasse de alguns segundos para refletir a respeito. Depois de um tempo ele falou: — Já usei aparelho também. Não é tão ruim depois que você se acostuma.

— Ferto — respondi, finalmente olhando para ele. — Maf quando eu me acoftumar com ele já vou ter fido demitida do mufical.

— Claro que não — tentou me animar o Sr. Calça Skinny. — Tenho certeza

de que você não vai perder o papel. — Vofê não viu o que acontefeu lá dentro. Balancei a cabeça. — E daí? Ouvi você cantando outro dia e você é muito boa. — Hum, ferá que vofê não ouviu o meu probleminha de fala? — Eu me

odiava um pouco mais cada vez que abria a boca. — Ah, sim. — C. S. deu de ombros. — Depois de um tempo passa. Além do

mais, a língua presa some quando a gente canta. É bem estranho. Meu queixo caiu. — Tanto faz. É da fua conta? — Na verdade, é. — C. S. deixou os braços caírem e deu um passo à frente.

Será que ele ia me abraçar? Ai. Meu. Deus. — Eu estou, er, procurando um

vocalista para a minha banda. Você está… interessada?

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Pior que um abraço. Um convite para me misturar a ele e aos amigos esquisitos dele. Nem eu tinha me rebaixado tanto. Examinei o corredor para ter certeza de que ninguém tinha ouvido aquilo. Era assim que boatos horríveis começavam.

Por sorte, o Silverstein estava vazio. — Ah, não. — Desviei dele. — Tô atolada. A comefar por agora. — Precisa de companhia? — disse ele às minhas costas. — Não fua! — A porta mais próxima fica do lado de cá. A risada dele era áspera, como se tivesse gritado.

— Vou fazer a ROTA TURÍFTICA — gritei de volta. Kacey Simon recebendo incentivos do Sr. Calça Skinny? Ah, por favor. De

jeito nenhum. Apressei o passo, me recusando a dar a ele a satisfação de olhar para trás. Pelo menos eu ainda era capaz de uma saída decente.

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Nove JULGADA POR SEUS PARES

Terça-feira, 10h05 da manhã

Na manhã seguinte me arrastei pelo Hemingway sozinha, de cabeça baixa, enquanto os outros alunos seguiam para o próximo tempo em grupos. Quando não havia mais ninguém olhando, peguei os óculos na bolsa-carteiro e coloquei.

Em minha defesa, eu precisava fazer aquilo. Na noite passada, depois que Sean ligou para contar sobre o ensaio desastroso, mamãe me fez jurar três vezes pela minha carreira jornalística. Ela falou para ele dos óculos, então, se eu aparecesse na aula sem eles, estaria com sérios problemas.

Por isso cedi e resolvi tentar um estilo nerd chique. Prendi o cabelo em um coque alto e desarrumado. Minha calça cigarrete preta batia certinho no cano do All Star prateado. Vesti uma camisa branca de seda por dentro da calça e prendi meu cardigã vermelho justo com um cinto de couro de cobra fininho.

E, por fim, os óculos. Meus passos ficaram mais lentos à medida que me aproximava da sala de

Sean e da turma de governo dos Estados Unidos. Na falta de algum tipo de milagre, eu precisava de um mantra. Algo que me ajudasse a passar por aquele dia até descobrir um jeito de sair dessa. Liv era ótima com mantras. Mas, já que ela não tinha ligado nem mandado nenhuma mensagem desde o ensaio de ontem, eu estava sozinha. Até então eu só tinha o seguinte: Nunca mais vou dizer nenhuma palavra que comece, termine ou envolva de qualquer maneira letras com o som de s ou de z.

Quando cheguei à porta, girei relutantemente a maçaneta de metal. Conseguia sentir a armação laranja-amarronzada no meu nariz, zombando de mim. Esperando para se revelar para a turma toda. Respirei fundo e entrei na sala.

— Bom dia, Kacey. — Sean levantou os olhos dos papéis, mas não sorriu. — Espero que esteja se sentindo melhor hoje.

Sua sobrancelha esquerda arqueou-se sobre os óculos pretos, transmitindo sua desaprovação.

— B-Bom dia. Todo o meu corpo ficou quente, depois frio, enquanto eu esperava que meus

colegas de turma apontassem para os óculos. Mas estranhamente ninguém olhou para mim. Todo mundo na sala estava curvado sobre os iPhones, BlackBerrys ou celulares.

— Essa doeu — bufou Quinn Wilder para seu Android. Na última fila, Molly guinchou com uma risada uns dez decibéis mais alta

do que o permitido. Liv e Nessa se aproximaram dela, abafando o riso. Peraí. Por que Nessa estava sentada no meu lugar?

O que estava acontecendo?

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Como se tivesse escutado minha pergunta silenciosa, Paige se virou e me encarou. Através dos seus óculos eu podia ver os olhos castanhos arregalados que pareciam derreter. Ela apertou os lábios em um sorrisinho e pendeu ligeiramente a cabeça para o lado.

Meu milk-shake de banana revirou no meu estômago no instante em que identifiquei a expressão.

Paige Greene… estava com pena de mim. Desviei o olhar. Essa era a garota que costumava organizar marchas de

protesto na minha cozinha no sábado de manhã quando o suco de laranja acabava. A garota que fez greve de fome por incríveis quarenta e cinco minutos até minha mãe e meu pai prometerem votar nas eleições da associação de vigias do bairro. Essa era uma garota que usava óculos havia anos, sem nem perceber que eles estavam arruinando a vida dela. Será que ela não tinha causas suficientes com que se preocupar para ter pena de mim?

O lugar ao lado de Liv estava vazio. Eu me sentei e, como o restante da classe, puxei o celular e encarei a tela. Nenhuma mensagem. Nenhum recado. Nenhuma pista. Meu celular não apenas estava frio, como estava em silêncio, o que era mais do que eu podia dizer sobre os das pessoas ao meu redor. Sons confusos saíam de diversos aparelhos, em diferentes volumes. Liv se afastou de mim, ficando tão próxima da carteira de Molly que estava praticamente caindo da sua.

— Ei. — Com a pontinha do tênis, encostei na tornozeleira de ouro dela. — O que aconte... houve?

Mordi meu lábio inferior. O que aconte-houve? Fala sério, Simon. Presta atenção.

Liv se endireitou imediatamente. — Ah, oi, garota. Nada de mais. — Seus olhos correram por meu rosto,

repousando em todos os cantos exceto nos meus óculos. — Maneiros os seus... acessórios — disse incerta.

Se Liv pensou que não vi o chute que deu em Molly por baixo da mesa, ela estava errada.

— Molly? — pressionei. — O que tão vendo? Molly levantou a cabeça em nossa direção. Ela estremeceu quando pousou

os olhos em mim, como se tivesse acabado de pegar um resfriado. — Quando foi que isso aconteceu? — soltou ela, tirando a trança rosa da

frente do rosto com um gesto irritado. — Molly! Nessa chutou a carteira de Molly, e então deu de ombros, fazendo uma

expressão envergonhada para mim. — É temporário — falei com firmeza. Pelo menos uma das minhas amigas

tinha a decência de falar comigo às claras. — Como o apa… o problema na minha boca.

E então me estiquei sobre a mesa de Liv e peguei o celular da mão de Molly. — Você não quer fazer isso. — Liv fez uma tentativa débil de pegar o

telefone de volta, mas me virei depressa, usando meu corpo como barreira. — Não é nada. Sério.

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— Bom dia, Marquette. — Uma pequena imagem de mim abriu em uma janela do YouTube. A enorme flor de flanela de Liv sacudia na base do vídeo. — E bem-vindos a mais uma edição do…

— Fffffffimon Falando — disse uma voz não identificada por cima da minha.

O milk-shake de banana deu uma cambalhota tripla na minha barriga e subiu até a garganta. Engoli em seco.

— Eu… — … fooou Kaaaaafeeey Fffffffffffimon. — … e — Effffftou…

— … aqui para dar… — ... confffffelhos para vofês. Segurei o telefone com força, os decalques de flocos de neve de strass

espetando minha pele como pequenas lâminas. — Tá legal, gente. Hora de desligar os celulares e começar a aula — disse

Sean. Mas eu não me movi. Eu queria. Queria jogar o celular de Molly no chão e

pisoteá-lo até o esquecimento. Incinerá-lo. Jogá-lo pela janela. Qualquer coisa que FIZESSE AQUELA LÍNGUA PRESA PARAR. Mas por algum motivo meu corpo se recusou a ouvir o cérebro. Continuei olhando fixamente para a imagem dilacerante da minha humilhação pública. Por que eu tinha que escolher hoje, entre todos os dias, para começar a enxergar direito?

— Kacey. Telefone desligado, por favor, ou ele é meu. — Sean caminhou até a mesa e estendeu a mão. Segundos depois senti o telefone deslizar das minhas mãos e então desaparecer dentro do bolso da calça cáqui de Sean.

— Ótimo. — Molly suspirou. — Valeu, Kacey. Eu ouvi uma língua presa ou era só meu cérebro me pregando uma peça?

Os óculos começaram a embaçar. Para. Eles não podem fazer isso com você. Sean caminhou até quadro-branco atrás da mesa e abriu a tampa de um

marcador vermelho. — Hoje vamos ver como o nosso sistema judiciário funciona, representando

um julgamento. Algumas fileiras à frente Quinn bocejava como se eu não tivesse acabado de

ser esquartejada na internet. Como um cara com o cabelo tão macio podia ser tão insensível? O couro de cobra ao redor dos meus quadris parecia um píton de verdade, espremendo a vida para fora de mim. Talvez Quinn não gostasse de mim afinal de contas. Talvez nunca tenha gostado.

Liv chutou de leve minha cadeira, tentando pedir desculpas. Mas fingi não sentir. Traidora.

— Debaixo das carteiras vocês vão encontrar uma transcrição do julgamento com a fala de cada um realçada em amarelo. — Sean arregaçou as mangas da camisa social xadrez. — Vamos encenar o primeiro dia do julgamento e nos dividir em pequenos grupos para discutir o caso amanhã.

Todos pegaram o material debaixo das carteiras. O meu dizia Testemunha nº 1. Em qualquer outro dia eu acharia que merecia um papel muito mais

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importante, como advogada de acusação ou juíza. Hoje, eu gostaria de ter recebido o papel de Garota invisível.

Sean indicou os lugares de cada um. Molly, a juíza, sentou-se na cadeira dele, Liv e Nessa se reuniram nos assentos do júri e eu me escondi atrás do restante da turma.

— Vamos começar pela declaração de abertura da acusação — disse Sean. — Sou eu — pronunciou-se Paige, acertando a postura. Ela se virou para o

júri: — Bom dia, senhoras e senhores do júri. — Com uma atuação totalmente exagerada ela encerrou com: — A acusação convoca a testemunha Kacey Simon.

— É vofê — sussurrou um garoto à minha esquerda.

Bati os pés até a frente da sala e me joguei na cadeira ao lado da mesa de Sean. Os óculos deslizaram pelo meu nariz, e os empurrei de volta com o indicador.

— Erga sua mão direita — disse Imran Bhatt, o escrivão, com ar de autoridade.

Ergui a mão direita. Ela tremia. — Eu, Kacey Simon, juro solenemente… Minha visão embaçou. Não. Não posso falar isso. Apertei os lábios sobre o

aparelho, mas minha boca não se fechava completamente. O metal pontiagudo se enterrou na parte de dentro dos lábios.

— Eu, Kacey Simon, juro solenemente… — repetiu Imran em voz alta. — Eu, K-Kafey Fimon, juro folenemente... — meio que sussurrei, meio que

engasguei. A sala ficou tão quieta que consegui ouvir o barulho do aquecedor debaixo

da janela. — Dizer a verdade, toda a verdade, nada mais que a verdade, que me ajude

o Senhor… Um barulhinho gorgolejante estranho escapou da minha garganta. Olhei

para Sean, suplicante, mas ele apenas balançou a cabeça. — Difer a verdade, toda a verdade, nada maif que a verdade, que me ajude

o Fen… Alguém bufou, segurando uma risada, no fundo da sala. — Ordem! — Molly bateu na mesa de Sean com o roteiro enrolado. —

Deixem a testemunha… falar! Olhei para ela agradecida até perceber que seus ombros estavam sacudindo.

Seus lábios tremiam, tentando não abrir um sorriso. No canto do júri, Liv e Nessa usavam o roteiro para esconder a boca.

Observei, descrente, enquanto Molly inclinava-se para trás na cadeira, saboreando minha humilhação. Seus olhos azuis brilhavam como quando eu dizia algo engraçadíssimo sobre um dos infelizes da Marquette. E agora era a vez dela… Eu era um dos…

Eu nem conseguia completar o raciocínio. O julgamento da aula de Sean podia ter acabado de começar, mas o que se

passava na minha cabeça já estava encerrado. E o veredito era culpado. Todo mundo. Inclusive minhas supostas amigas que nem fingiram raiva com o vídeo

no YouTube. Quantas vezes salvei Molly de ir para o colégio com roupa de

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montaria/ginástica olímpica/patinação no gelo? Ou tornei um dos designs de Liv tão popular que ele esgotava completamente? Ou ajudei Nessa a estudar para uma prova para que ela mantivesse a média dez?

— Ok, vamos continuar — disse Sean quando mais algumas risadas vieram do fundo da sala.

Os óculos perfuravam minha pele, ficando mais pesados a cada segundo. Eu os arranquei, mas não antes de ver Paige, de pé atrás da mesa da acusação. Ela me encarou por alguns segundos e então piscou como quem fosse chorar. Na mesma hora baixei os olhos para a mesa à minha frente. Bem no meio estava gravado VC RA.

Mas poderia muito bem ser VC JÁ ERA.

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Dez ESTÁ ESCRITO NO BANHEIRO

Terça-feira, 3h13 da tarde

A porta do banheiro feminino mal tinha fechado quando as lágrimas começaram a escorrer. Na verdade, era mais como soluços engasgados, intensificados pelo piso cinza e pelas cabines de metal vazias. Eu me arrastei até a segunda cabine, tranquei a porta e me enrosquei em cima do vaso.

De alguma forma eu tinha conseguido chegar até o último tempo de aula sem que ninguém me visse chorando. Durante o almoço, me escondi no estúdio, fazendo uma seleção dos melhores momentos de Simon Falando para a transmissão de quinta-feira, para que eu não precisasse aparecer ao vivo. Mas, quando o último tempo chegou e recebi um bilhete rosa da psicóloga da escola na frente da turma inteira, não consegui mais aguentar. Então fui embora. No meio da aula. O que provavelmente geraria outro bilhetinho rosa. Na melhor das hipóteses, eu seria expulsa.

O barulho do último sinal interrompeu meus soluços. Limpei os óculos na manga do casaco e puxei o último pedaço de papel higiênico do rolo. Quando assoei o nariz, o catarro atravessou o papel e melecou meus dedos.

— Fenfafional — murmurei, limpando as mãos na calça jeans. — … sair correndo assim, bem no meio da aula. — A porta do banheiro se

abriu e o barulho do corredor invadiu meu santuário. — Parece que ela ficou maluca ou sei lá o quê.

Molly. Prendendo a respiração, levantei os pés do chão e os pousei sobre o

vaso silenciosamente. Pela fresta da cabine vi uma mecha rosa e o pedaço de uma malha preta com gola V pararem diante da pia do meio.

— Ela acabou de sofrer um super trauma social — contrapôs a voz de Nessa, sem emoção. — Na verdade, foram, tipo, uns seis traumas.

Novas lágrimas arderam nos meus olhos. — Psicologicamente falando, faz sentido que ela tenha surtado — continuou

ela. Uma calça de tricô de cintura alta, um infeliz suvenir da sua última viagem a Londres, no semestre passado, passou diante do meu ponto de observação. O que aquela calça estava fazendo à luz do dia? Eu não tinha explicado que tricô era mais impiedoso do que eu seria se ela usasse aquilo em público? Ela estava descaradamente ignorando minhas dicas de moda? — Usando a linguagem de

diagnóstico, eu diria que ela está sofrendo de um caso crônico de T.E.H. — Hein? Molly riu. — Transtorno da Esquisita Horrorosa — disse Nessa séria. — Não existe

cura. E é contagioso. — Eca! Molly engasgou.

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Engoli um soluço e abracei os joelhos com força contra o peito, considerando o quão pequena eu tinha que ficar antes de desaparecer completamente. Eu não conseguia acreditar que Nessa estivesse falando de mim daquele jeito. Minhas mãos tremiam de raiva.

A tornozeleira de Liv tilintou quando ela se sentou na pia. — É, mas vocês não se sentem mal pela Kacey? É como se o Universo inteiro

estivesse desmoronando na cabeça dela. — Ela merece! — O salto da bota de motoqueira de Molly bateu no piso. —

Vocês se esqueceram de como ela tem sido má ultimamente? Ou melhor, como ela é sempre má?

A voz dela se ergueu. Mentirosa! Lutei contra a vontade de cobrir as orelhas, bloquear o cérebro

para aquelas palavras. Nunca fui nada além de honesta! — Nessa, você se lembra daquela vez em que ela disse que era ótimo que

você soubesse falar três idiomas, porque isso talvez ajudasse os caras a se esquecerem do fato de que você continua sem peitos?

— Eu tenho corpo andrógino — disse Nessa rigidamente. — Kacey disse que isso é chique.

— E aí ela mandou um e-mail para você com um cupom de desconto para um sutiã com enchimento — lembrou Molly.

Aquilo. Foi. Um. FAVOR. — E, Liv — disse Molly —, lembra quando você queria começar um blog

sobre moda? — Sim. — A voz de Liv estava calma. Eu me inclinei para a frente. — Ela

disse que ninguém jamais seria capaz de reproduzir o meu estilo, então eu deveria continuar criando acessórios. Foi um elogio.

— Não. Ela disse — prosseguiu Molly — que seus acessórios falam mais alto

que os erros de ortografia. — É verdade! E ela também não falou que dizer para as pessoas invadirem o

guarda-roupa dos avós não era um bom “conselho de moda”? — interrompeu Nessa.

— Isso é porque os avôs das outras pessoas não são tão descolados quanto o meu — resmungou Liv.

Mordi a língua. De todas as pessoas, minhas supostas amigas deveriam ter entendido. Eu sempre disse a verdade porque amo essas meninas! Uma amiga de verdade teria deixado Nessa vagar pelo colégio com o corpo de um menino de sexto ano? Não. E uma amiga de verdade teria deixado Liv escrever um blog sobre como ela usava as roupas do avô de propósito? Nunca!

— Entendem o que quero dizer? — As botas de Molly rangeram contra os

azulejos enquanto ela caminhava de um lado para o outro do banheiro. — Ela fala um monte de coisas cruéis e então diz que está sendo honesta para nosso próprio bem. E a gente tem que agradecer por isso?

Um suor frio quase grudou o bilhete rosa da psicóloga na palma da minha mão. Como Molly podia ser tão mal-agradecida quando teoricamente éramos melhores amigas? Chegamos até a comprar pulseiras da amizade no ano

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passado sem contar às outras meninas. A minha permanecia na minha mesinha de cabeceira. Será que Molly já tinha jogado a dela no lixo?

— Eu não — disse Nessa determinada. — Não mais. — Ainda acho que ela só está tentando ajudar — argumentou Liv. — Mas —

ela suspirou — aqui se faz, aqui se paga. — Isso mesmo — concordou Molly. E enfim parou de dar voltas no

banheiro. — E você quer mesmo andar com ela agora que é a hora da vingança? Eu nunca tinha visto Molly falar desse jeito, nunca. Sua voz estava tão

forte… tão segura. Será que ela estava realmente querendo assumir o comando? Querendo me substituir?

— Falando sério, meninas. Para mim acabou. E, a menos que vocês queiram seguir o caminho dela, é bom ter acabado para vocês também.

— Acabou? — repetiu Liv. A palavra pesou no ar. De repente, era como se Molly tivesse tirado todo o

meu ar. Eu não podia mais respirar. Acabou. — Você quer acabar no YouTube? — perguntou Molly.

— Não — respondeu Liv baixinho. — Mas e se ela… — Convenhamos, o que ela poderia fazer agora? — falou Nessa. — Pois é. Ninguém liga mais para o que ela pensa — observou Molly. —

Não depois de hoje. — É verdade. Liv desceu da pia, e sua tornozeleira soou como uma algema. — Vamos, meninas, a gente vai se atrasar para o ensaio. Molly caminhou até a porta e a abriu. Acabou. A pichação na porta da minha cabine saiu de foco quando uma nova

leva de lágrimas inundou meus olhos. Esperem! Eu queria gritar. Vocês entenderam tudo errado!

Meus lábios se entreabriram, mas nada saiu. E então a porta fechou e eu fiquei total e completamente sozinha.

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Onze A DOUTORA ESTÁ PRESENTE

Terça-feira, 3h42 da tarde

DE PERTO NINGUÉM É NORMAL. Debaixo do adesivo na porta da sala da psicóloga havia uma plaquinha de

latão arranhada: PHILLIPPA MEYERS, PSICÓLOGA. — Pode entrar! — Uma voz calma e meiga soou por trás da porta, embora

eu não tivesse batido. — A porta está aberta. Será que a psicóloga era vidente? Mordi o lábio e entrei. Em último caso,

talvez ela me dissesse quais as chances de Molly falar comigo de novo. A sala lembrava uma loja de incenso em Edgewater para onde Liv tinha me

arrastado no ano passado, quando ela queria amaldiçoar a irmã do meio por usar a sapatilha preferida dela sem permissão. Tapetes pendiam das paredes cor de violeta e uma fonte de pedra ficava na mesa de centro, entre o sofá e a cadeira da psicóloga. Pilhas empoeiradas de livros se aglomeravam pela sala, e, pendurados acima do sofá, havia dois pôsteres emoldurados que pareciam enormes manchas de tinta.

A psicóloga estava sentada em uma poltrona mostarda. Ela não ergueu os olhos imediatamente. Estava lendo o Chicago Tribune (ponto positivo: ela se

mantinha atualizada), descalça e na posição de lótus (ponto negativo: isso me lembrava de Liv). Três velas queimavam na mesa ao lado, soltando nuvens de lavanda no ambiente.

— Oi? — Fechei a porta atrás de mim e ajeitei os óculos. Lavanda deveria ser relaxante, não é? Então por que eu sentia como se fosse vomitar a qualquer instante? — Eu, er, refebi um... bilhete rofa? Meu nome é Kafey Fimon?

Limpei o nariz na manga do cardigã. — Kacey! Claro. A psicóloga deu um pulo e ficou de pé. Em vez de uma mulher de meia-

idade vestida de cima a baixo em roupas de hippie, ela era novinha. E baixa, mais ou menos da minha altura. Se eu a visse pelos corredores, provavelmente acharia que ela estava no nono ano. Quando sorriu, um pequeno piercing de diamante no nariz brilhou sob a luz suave das lanternas de papel no teto.

Sentei empoleirada na pontinha do sofá de couro marrom. Será que eu tinha que deitar e falar sobre minha mãe?

A psicóloga voltou para a poltrona sem dizer nada. Apenas esperou, como se eu tivesse mandado um bilhete para ela.

— Tem algum problema, doutora… M? — soltei. — Phil — corrigiu ela, apoiando o pé do lado do Buda em cima da mesa. —

Pode me chamar de Phil. Esperei que ela risse. Ela não riu. — Dra. Phil? — zombei. — Sério?

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— Só Phil. — Ela mexeu os dedos do pé. — Sempre odiei meu nome. Desde que era criança — falou, pegando uma caneca da mesa lateral. — Mas você estava dizendo?

— Nada. — Balancei a cabeça. — Tenho que ir. Tô atrasada para o enf… er, tenho que ir para o auditório.

Muito embora a ideia de ver as meninas e Quinn Wilder me deixasse com vontade de ir para um colégio interno na Suíça, o musical era tudo o que eu tinha agora.

— Dia difícil? — adivinhou Phil. — Que importa?

Dei de ombros. — Foi só um palpite. Ela piscou o olho. Eca. A ideia era me fazer gostar dela? Ela deu outro longo gole na caneca e ficou olhando para mim. Olhei de volta. Eu também sabia fazer desse jogo, querida. Afinal, alguém bateu à porta. — Pode entrar, Sean — gritou a dra. Phil. Sean? Minha cabeça girou na direção da porta.

— Desculpem o atraso. — Sean colocou a cabeça para dentro. A parede tremeu quando a porta bateu atrás dele. — Se importa se eu me sentar? — perguntou.

Como se a opinião da Testemunha nº 1 realmente importasse alguma coisa. Com relutância, me afastei para que ele pudesse se sentar. — Não devia ficar no auditório? — perguntei desconfiada. Ele se sentou ao meu lado. — Na verdade, cancelei o ensaio de hoje. Ele abriu a boca como se fosse falar algo mais, mas depois mudou de ideia. Olhei cautelosa para a Dra. Phil. — Kacey — começou ela —, chamamos você aqui porque Sean tem algumas

novidades que ele gostaria de contar, e achamos que poderia ser útil se vocês dois processassem essas informações aqui, na segurança da minha sala. — Ela apoiou o cotovelo sobre o joelho e o rosto na mão. — Sean? Quando quiser.

Apertei uma lantejoula na almofada no meu colo até ela dobrar ao meio.

Meus lábios ficavam mais secos a cada segundo. Eu seria capaz de matar por um protetor labial.

— Kacey. — Sean se virou para me encarar, apoiando as mãos unidas sobre o colo. A calça feiosa de veludo cotelê marrom quase sumia no sofá. — Depois do ensaio de ontem… e da aula desta manhã… achei que a gente deveria conversar.

— Hum, certo. — Não estou muito certo de que com suas… mudanças mais recentes… seria

a melhor escolha para o musical você ficar no papel de Sarah Brown. Sean deu uma tosse fingida no punho fechado. Olhei para Phil e então de volta para Sean. Ele não estava falando sério. Não

podia estar falando… sério. A qualquer instante ele iria retirar o que disse. Se

desculpar pela piada de mau gosto. E me dizer que aquilo era uma pegadinha

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de um programa de tevê novo da escola. Eu não me importava, desde que o papel de Sarah Brown ainda fosse meu.

A sala estava em silêncio. O ponteiro dos segundos no relógio sobre a porta zombava de mim a cada tique. Fei-a. Fei-a. Fei-a.

— Tá me difpenfando? — Minha voz era praticamente um sussurro. — Por caufa dof óculof e dof aparelhof?

Parecia que havia um peso no meu peito que me impedia de respirar. Será que ele não entendia? O musical era a única coisa que me restava! Se ele fizesse aquilo, estaria tirando de mim Quinn e aqueles arrepios que eu tinha toda vez que o via. Estaria tirando as piadas internas com as meninas, as horas batendo

papo nos bastidores, experimentando figurinos e fofocando. Estaria tirando minha chance de fazer as pazes com elas. De fazer as coisas um dia voltarem ao normal. Eu me senti queimar, depois fiquei fria feito gelo. Tremi.

— Sinto muito, Kacey. — Por favor. Sentir o aparelho nos meus lábios fez minhas mãos começarem a tremer. Eu

me odiava, odiava minha língua presa. Sean tinha razão: eu não merecia o papel principal. Não merecia Quinn ou minhas amigas. Em breve tiraria o programa de mim também. Não que eu algum dia fosse ao ar falando desse jeito.

— Escute, Kacey — Sean se inclinou para a frente cheio de consideração, esfregando a penugem no cavanhaque que ele vinha tentando cultivar durante todo o semestre —, você tem uma voz incrível. Todo mundo sabe disso.

Balancei a cabeça. A humilhação do dia cresceu dentro de mim, solidificando-se em raiva. Encarei uma mancha de tinta azul no bolso da camisa de Sean.

— Em quaisquer outras circunstâncias, adoraríamos que você fizesse parte do musical — continuou Sean. Ele tirou os óculos e os limpou na camisa, deixando manchas de suor no tecido. — Mas… acho que eu deveria usar Molly no papel principal.

— Molly? — explodi, jogando a almofada no chão. Agora ele tinha ido longe demais. Talvez eu não pudesse impedi-lo de me

tirar do espetáculo, mas dar meu papel para Molly? Nem. Pensar.

— Ela é a sua substituta — lembrou Sean. — Vofê não pode fazer ifo! Não é jufto! — Kacey, é claro que quero você no palco — insistiu Sean. — Você sabe

disso. Balancei a cabeça furiosamente, e as pontas do meu coque frouxo

chicotearam meu rosto. Cinco minutos antes eu sabia um monte de coisas. Que eu era a atriz principal. A única menina do sétimo ano que podia dizer que tinha beijado Quinn Wilder. Havia boatos de que uma menina do oitavo ano alegava o mesmo, mas jornalistas de verdade não lidam com boatos.

— Arranjei outro papel para você, se você topar — ofereceu Sean, meio incerto.

— Fe eu topar?

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Agora ele queria que eu assistisse enquanto Molly tomava conta da minha vida? Pulei do sofá, mas fiquei tonta de repente. As velas, a humilhação e o fato de que não comia nada sólido havia dias — talvez tudo estivesse me abalando.

— Cuidado. — Sean segurou meu braço, guiando-me de volta ao sofá. — Olha. Que tal o Dado Dançarino Número Três? — disse ele, animado, como se estivesse me oferecendo o papel principal de novo. — Tenho certeza de que os outros dois ficariam felizes de ter mais alguém para agitar a coreografia.

Eu não conseguia respirar. — DADO DANFARINO GIGANTE NÚMERO TRÊS? — gritei. — Vofê quer

que eu fique no fundo, pulando de um lado para o outro em uma fantafia

gigante de borracha? — Eu pediria transferência muito antes de isso acontecer. É sério. Suíça. Ou talvez algum país que não começasse com s. — Molly já fabe difo?

— Sabe — admitiu Sean. — Contei a ela hoje de manhã. De repente, tudo fazia sentido. O jeito como Molly teve coragem de

convencer as outras meninas a me abandonar. Como de repente tinha ficado tão forte. Ela sabia que estava prestes a receber o papel de protagonista. Ela sabia o tempo todo.

— Kacey. — A voz de Phil desceu uma oitava. — Você pode se sentar, por favor?

— E tenho efcolha? — lamentei. Eu nem tinha percebido que estava de pé. — Sempre — assentiu Phil. Enfurecida, me larguei no sofá e encarei meus olhos arregalados no reflexo

da careca do Buda de latão. — Já ouviu falar na expressão “Não existem papéis pequenos, apenas atores

pequenos”? — perguntou Sean depois de uma longa pausa. — Sabe quem disse isso?

— Um fubiftituto? — Constantin Stanislavski — corrigiu Sean. — Um excelente diretor. O que

ele quis dizer é que todos os papéis são importantes. Pense nisso enquanto decide se aceita ou não a minha oferta.

— Você acha que poderia fazer isso, Kacey? — Phil se inclinou na minha direção, atraindo meu olhar. Os olhos dela eram de um azul-esverdeado-escuro,

quase da cor dos meus quando eu não estava de lentes. — Por que não pensa a respeito por um tempo? Dê uma resposta a Sean daqui a alguns dias.

— Eu já penfei — engasguei, me colocando de pé. — E minha refpofta é NÃO.

Sem olhar para Sean ou Phil, caminhei até a porta e saí, enfurecida. Minha cabeça girava; meus olhos estavam secos. Eu não tinha mais lágrimas. Não tinha mais nada.

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Doze JUNTAS DE NOVO, POR ENQUANTO…

Terça-feira, 5h37 da tarde

Na estação de Fullerton passei meu bilhete pelo leitor e me arrastei pela roleta. A hora do rush tinha acabado de começar, então a plataforma gelada e as escadas estavam lotadas de passageiros com casacos escuros e pastas de couro reluzentes. Eu me movi com dificuldade no meio da multidão até a extremidade da plataforma e conferi a hora. Se eu não chegasse em casa a tempo de ficar com Ella para que mamãe pudesse sair para o estúdio, ela iria me matar. Talvez essa fosse a melhor solução.

Um farol forte e branco percorreu a plataforma enquanto o trem desacelerava até parar nos trilhos e refletiu no meu aparelho. Liv teria dito que o Universo estava me colocando sob os holofotes no meio da multidão, me marcando. Mostrando a todo mundo que grande perdedora eu havia me tornado.

O vento era brutal, soprando meus cabelos suados e deixando a pele do meu rosto dormente. Mesmo com a proteção dos óculos, meus olhos estavam cheios de água. Quando as portas se abriram, me atirei na frente de uma mulher de cara azeda e meia-calça cor de pele para pegar o assento mais próximo da saída.

Ela bufou, o que só chamou a atenção para o batom amarronzado metálico incrustado nos dentes da frente. Era daqueles que você encontra em promoção em um cesto de farmácia e que se chama tipo Café Gelado. Fazia os dentes dela parecerem três tons mais amarelados do que já eram. A antiga Kacey Simon teria sugerido um branqueamento dentário ou batom avermelhado. Mas a antiga Kacey estava desaparecendo.

— Segurem as portas! — gritou uma voz frenética da plataforma. Alguns segundos depois um cartaz verde molenga adentrou o vagão. O slogan VÁ DE GREENE: PAIGE GREENE PARA PRESIDENTE DO OITAVO ANO estava impresso em letras certinhas, com traços em purpurina dourada. O cartaz pendeu para a esquerda e então fez um arco à frente, golpeando Café Gelado. — Opa! Foi mal.

Eu me encolhi no assento. Não via Paige desde a encenação do julgamento e, se ela me lançasse mais um olhar de pena, eu ia me descontrolar em público.

— Kacey? — Paige baixou o cartaz gigante e olhou por cima da cartolina.

Seus óculos estavam embaçados por causa do calor do trem. — Oi! — Ah, oi. — Fingi ler os anúncios iluminados do outro lado do vagão. As

propagandas do programa novo de mamãe já estavam circulando, porque, ao contrário de mim, ela estava cada vez mais popular. A legenda embaixo da foto dizia: Canal 5: Um canal com reputação de ouro. Era perfeito. A não ser por… Limpei o óculos na bainha do casaco e olhei de novo. Alguém tinha desenhado um bigode com um pilot dourado. E…

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— É uma verruga? — Paige enfiou o cartaz da campanha entre a porta e o meu assento, segurando o poste de metal mais próximo enquanto o trem deixava a plataforma. Seus óculos escorregaram, pousando na ponta do nariz. Ela os empurrou de volta. — Porque isso se qualifica como vandalismo. Ou, em Illinois, ato danoso. A pena pode chegar a seis anos de prisão.

Além das ambições políticas, Paige também planejava cursar direito. Eu nem tinha energia para mandá-la ir embora. — Ei. Você se lembra de Benny Dorchester? — Paige subiu e desceu as

sobrancelhas desalinhadas. Assenti. A inclinação de Paige para o direito se manifestou no jardim de

infância, quando Benny D. vandalizou o armário dela com giz de cera e a srta. Elaine se recusou a fazer algo a respeito. Paige jurou ali mesmo que da próxima vez que Benny resolvesse “se expressar” nos pertences dela ela iria mover uma ação judicial para tirar aquele maldito giz de cera da mão gordinha dele.

— Ele ainda mora no final da rua, sabia? E acabou ficando bonitinho, sabia? — Fala fério — zombei. — Ele pintou o cabelo com um monte de papel

crepom vermelho e eftá com uma tatuagem na nuca. — Eu tenho um gosto inusitado. Pode me processar! — Ela riu, enfiou a mão

em uma bolsa de lona que carregava no braço e pegou um broche de plástico com o rosto dela e o slogan da campanha. — O que você acha?

Ela esticou o broche na minha direção. Examinei o sorriso político de Paige, quase tão torto quanto sua franja. O

broche me fez lembrar outro que ela fez no quinto ano, logo antes de eu me livrar dela. Do mesmo jeito que… Molly estava se livrando de mim agora. Engoli em seco.

— Legal — respondi, enfiando-o na minha bolsa. Naquele tempo, no quinto ano, eu usei o broche de Paige. Agora estávamos

no sétimo. As coisas eram diferentes. — Kacey? — Paige apoiou a sacola de pano entre os tênis e se debruçou na

minha direção. — Você… está acontecendo alguma coisa? Por que está voltando para casa tão tarde?

Minhas bochechas ficaram vermelhas e eu desviei os olhos. — Reunião do mufical.

— Ah! Achei que você tinha… saído do elenco — disse ela com cuidado. E quanto mais suave sua voz ficava, mais parecia que ela estava com pena de mim.

Mordi a língua. As notícias corriam rápidas — e erradas, quando não era eu quem as espalhava.

— Já me ofereferam outro papel. Temporariamente. Maf eu rejeitei. — Então Molly Knight vai ser a protagonista. — Temporariamente — repeti, mais alto dessa vez. — Sei. Silêncio. Para ser mais específica, um silêncio crítico. — Maf Molly vai fe ver comigo — falei de repente, desesperada para fazer

Paige parar de me olhar como se eu fosse um cachorrinho abandonado cheio de pulgas. — Liv também. Todaf elaf.

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E me forcei a calar a boca. Por que de repente eu me importava com o que Paige pensava?

— Como? — Os olhos dela, céticos, se estreitaram por trás das suas lentes. — Hum, confeguindo o papel de volta? Por que isso saiu como uma pergunta? — E depois…? — perguntou Paige. Olhei pela janela. As luzes da cidade dançavam em uma mancha dourada.

Eu não me lembrava da viagem de trem demorar tanto assim. Nem quando virei dois litros de refrigerante depois da aula e o trem ficou parado nos trilhos por vinte minutos.

— Como afim? — E depois… qual é a sua estratégia? — pressionou ela. — Tipo, você vai

processá-las? — Pelo quê? Difamafão de língua prefa? O trem finalmente diminuiu a velocidade, chegando à estação Armitage, e

me levantei. — O segredo de uma boa campanha é ter estratégia — tagarelou Paige

enquanto o trem parava e as portas se abriam. — Você precisa saber exatamente o que quer e quais passos são necessários para alcançar seu objetivo. E mais, você precisa ter gente de confiança ao seu lado. E não tem importância se você precisar cobrar um favor de alguém. Você em especial. A sua reputação sofreu um belo golpe, caso você ainda não tenha reparado. — No alto da escada ela parou para mudar o cartaz de posição. — Segure isto aqui — mandou, entregando uma bolsa de broches para mim.

Peguei a bolsa com um suspiro. — Então, o que é que você quer? — perguntou ela calmamente enquanto

saíamos da estação. — Já falei. Quero meu papel de volta. — Eu me encolhi por causa do frio. — Errado. — Paige balançou a cabeça, as pontas duplas esvoaçando ao

redor do rosto como aqueles esfregões de lava a jato. — Você precisa avaliar a situação como um todo. — Ela mudou o cartaz de mão e apressou o passo. — Quero dizer, você quer o papel de volta, mas provavelmente também quer sua reputação de volta. Ou seja, você quer sua vida de volta. Não é?

Franzi a testa. Falando desse jeito, parecia muito mais complicado do que simplesmente trocar minha armação de casco de tartaruga por lentes novas e reaprender a pronunciar a letra s.

Viramos a esquina até a rua Clark. — Não fique assim. Nem todo mundo consegue pensar como um político —

assegurou Paige. — É que já estou acostumada. Por exemplo: certo, eu quero ser reeleita no ano que vem. Mas pensando grande? Quero ser a primeira presidenta dos Estados Unidos. Vê a diferença?

Não respondi, mas segui acompanhando-a, com o tinido rítmico dos broches ao meu lado. Ao menos desta vez Paige estava certa. O problema era maior do que conseguir meu papel de novo. Foi o que Sean tinha dito no ensaio da semana passada: a vida imita a arte. E isso significava que, se eu era forte o suficiente para retomar meu papel no musical, eu certamente era forte o

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suficiente para reassumir o controle da minha vida. Eu podia ter minhas amigas de volta, meu paquera de volta e, o melhor de tudo, meu público de volta.

Quando chegamos a nosso quarteirão, Paige prendeu o fôlego. — Acabei de ter a ideia mais genial de todas — anunciou. Ela bateu na sua

cerca. O cercado entre as nossas casas ainda estava sem a terceira e a quarta estacas, da época do quinto ano, quando a gente as arrancou para não ter que lidar com aqueles portões irritantes quando precisasse se encontrar imediatamente. — Eu podia ser a sua estrategista política! Ajudar você a sair desse problema!

Abri a boca para recusar.

— Posso colocar você no topo da pirâmide da popularidade antes da noite de estreia! Seria a maior conquista da minha carreira política. — Seus olhos brilharam de empolgação.

— Paige — zombei. — Vofê me enfinar a ser popular? Vofê também vai me enfinar a ganhar a eleifão do quinto ano?

Ela recuou. Foi um golpe baixo. Eu soube assim que as palavras saíram da minha boca. — Não fique brava. Observei o rosto dela, mas o reflexo da luz da varanda nos óculos

impossibilitava decifrar sua expressão. — É por causa disso — disse ela devagar, olhando para as botas de neve

pretas e arranhadas. — É por causa dessas coisas que eu decidi… que não somos mais amigas.

Ela não falou de um jeito sarcástico, como Molly teria feito. Pelo contrário, sua voz ficou calma. E ela parecia tão pequena. O que, de alguma forma, fez eu me sentir ainda pior. Ainda assim…

— Vofê defidiu?

Ergui a sobrancelha esquerda. E daí que eu tinha magoado Paige? Ela não precisava modificar a história.

Na casa ao lado, a entrada se iluminou, e Ella saiu correndo, usando luvas de cozinha nas mãos. O papel-alumínio havia desaparecido, mas os antigos óculos de leitura de mamãe ainda estavam no seu rosto, dessa vez com um pedaço de fita-crepe grudado na ponte sobre o nariz.

— KAYYYYYCEEEEE — berrou ela. — Se você não entrar agora mamãe vai apertar seu aparelho com o abridooooooor de laaaaaaata!

— TÔ INDO! — gritei de volta. — Oooooi, Paige! — Ella acenou e depois bateu a porta de casa. — Pode ter certeza — disse Paige secamente. — Vou conseguir o seu papel

de volta. Eu a encarei. — O quê? Por quê? — Você teria que fazer algo por mim também. Quid pro quo. Quando você

estiver de volta ao topo, vai usar sua popularidade para me reeleger. É uma questão de negócios.

— Paige. Vofê não pode eftar falando fério. — Não que aquilo não pudesse ser feito. Era só que eu... e Paige? Será que eu queria mesmo reviver os anos de

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primário? Mas, por outro lado, se as coisas continuassem a piorar, talvez meus dias de primário começassem a parecer os melhores dias da minha vida. E ter o auge no primário era um milhão de vezes pior do que viver o auge no sétimo ano.

— Quid pro quo. — Paige deu de ombros, sem emoção. — E então cada uma vai para o seu lado. — Ela esticou a mão e me olhou nos olhos. — Nós nos vemos amanhã à noite aqui em casa para planejar nossos passos. Combinado?

— Certo — respondi, apertando, relutante, sua mão. — Combinado.

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Treze SALVANDO KACEY SIMON

Sexta-feira, 4h19 da tarde

Mesmo com os olhos fechados eu podia sentir Paige pairando a quinze centímetros da minha cadeira. Ela estava com um cheiro doce enjoativo: é o que acontece quando se experimenta doze perfumes diferentes ao mesmo tempo no shopping.

— Certo, certo. — Ela expirou. — Abra os olhos… AGORA! Abri. — Quero ver. Peguei o espelhinho quadrado que Paige havia tomado da vendedora da

Sephora no shopping Water Tower Place, onde dávamos início à primeira fase da Operação: Salvando Kacey Simon. A gente tinha ficado horas no quarto de Paige nos últimos dias arquitetando o plano infalível perfeito para recuperar minha popularidade. De acordo com Paige, hoje era o dia de colocar o plano em ação.

Pisquei para meu reflexo fora de foco. — Não configo ver. Gotinhas de saliva atingiram o vidro. — Você precisa disso aqui. Paige colocou meus óculos no meu rosto e a imagem ficou nítida. Olhei de novo, cheia de cautela. Minhas ondas avermelhadas estavam

maciíssimas, graças ao creme antifrizz que a vendedora havia recomendado antes de perceber que não iríamos comprar nada. Paige havia passado uma sombra escura cor de chocolate nos cantos externos das minhas pálpebras, o que intensificou o verde dos meus olhos de modo que os óculos não eram a primeira coisa que se via.

— E então? — Ela se aproximou. Seu cachecol de crochê preto emanava um cheiro de madressilva, baunilha e âmbar. Meu estômago revirou. — O que acha?

— Acho que vou pedir para você chegar um pouco pra trás — instruí, sem tirar os olhos do meu reflexo.

Minhas bochechas estavam rosadas por causa do frio, e eu tinha coberto os lábios com uma amostra grátis de gloss cintilante que eles estavam distribuindo

na entrada da loja. Se mamãe me visse assim, teria me matado. Em outras palavras, eu parecia

uma protagonista. Abri um sorriso, mas o reflexo do meu aparelho quase me cegou novamente.

Resmunguei e fechei os olhos. — Quer parar? Você parece uma modelo. — Paige subiu um pouco o tom de

voz, como ela sempre fazia quando se animava com alguma coisa. — Uma modelo de comercial de ótica, talvez.

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Bati nela com o espelhinho. — Meninas — disse a vendedora sonolenta, cujo espelhinho havíamos

roubado, enquanto parava perto da minha cadeira pela quinquagésima vez —, vocês pretendem comprar alguma coisa ou…

Paige pulou entre nós duas. — Ela está na dúvida. Mas, só para registrar, situações de venda sob pressão

não funcionam com a gente. Estou no ramo da política, e ela, no jornalismo. Nós não temos problema nenhum em ficar sob pressão.

A vendedora suspirou e voltou para a sessão de perfumes. Tive um ataque de riso, e encharquei tudo em um raio de quinze

centímetros. — Eca! Kacey! Rindo, Paige deu um pulo para trás, escapando por pouco de um banho de

saliva. Eu me ajeitei na cadeira preta de vinil e apertei o nó de tensão no meu

ombro esquerdo, tentando não pensar na última vez em que tinha vindo ao shopping. Eu estava com Liv, explorando a área de liquidação da Williams-Sonoma. No dia seguinte, ela me deu um pingente maravilhoso de prata batida feito com uma colher vintage. Eu só usava em ocasiões especiais.

— Certo. — Paige arregaçou as mangas do trench coat. — Hora da Fase 1. Meu estômago revirou por completo. Eu tinha esquecido totalmente da

Operação: SKS. Na mesma hora me senti humilhada e muito exposta. Foi a mesma sensação que tive depois de um pesadelo em que a cortina subia na noite de estreia. Quinn estava com o figurino. Eu estava só de calcinha. Uma calcinha de Ella da Vila Sésamo.

— Ferá que a gente não pode ir embora? Dei mais uma olhada no espelho e procurei um lenço. — Não. — Paige balançou a cabeça veementemente. Então puxou um papel

dobrado do bolso do casaco e o esticou na minha frente. — Revise.

Operação: Salvando Kacey Simon (SKS)

Fase 1

Local: Shopping Water Tower Place, avenida North Michigan. Hora: 16h Alvos: Molly Knight, Liv Parrillo e Nessa Beckett Fontes: Postagens no Facebook

Meta: Interceptar ex-melhores amigas durante expedição para escolha do figurino para a festa do elenco. Obter acordo verbal para a Fase 2 da líder temporária do grupo, Knight (codinome: Falsa Cor-de-rosa).

OBJETIVOS

·

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Objetivo A: Estar linda. Cabelo e maquiagem na Sephora com a estrategista de imagem política Greene (codinome: Presidente G).

· Objetivo B: Aparentar estar calma, descolada e casual durante o “encontro acidental” com a Falsa Cor-de-rosa. Tentar não arrancar a mecha rosa, passar uma rasteira nela ou qualquer outra coisa que chame a atenção da equipe de segurança do shopping.

· Objetivo C: Simular tranquilidade a respeito da mudança no elenco. Faça com que a Falsa Cor-de-rosa tenha uma sensação de superioridade irreal, usando todos os meios necessários (elogios, subornos etc.). Sorria. Tente não arrancar a mecha rosa, passar uma rasteira nela ou qualquer coisa que chame a atenção da equipe de segurança do shopping.

· Objetivo D: DAR O BOTE NA FALSA COR-DE-ROSA.

MATERIAIS

1.

Mapa do shopping (anexo) com possíveis locais a serem escolhidos pela Falsa Cor-de-rosa e amigas. De acordo com fontes confidenciais,*

FCR está em busca de algo “hard rock glam” para impressionar Z. Jarvis na festa do elenco. Possíveis localizações: Betsey Johnson, Bebe, Wet Seal, Forever 21. Lojas a evitar: Chico‟s, Eileen Fisher, Everything Alpaca.

2. Materiais para chantagem, caso necessário: fotos comprometedoras e não retocadas de FCR depois do incidente do cabelo, bilhete “autêntico” de FCR revelando predisposição genética para acne nas costas, vídeo da última competição de patinação de FCR, incluindo montagens em câmera lenta das cenas de queda.

3. Provas inquestionáveis e não embaraçosas de motivos para estar no shopping (lista de compras de roupas de inverno, permissão da escola para ir à Sephora comprar material de estúdio e/ou palco).

* Fontes confidenciais: Twitter da Falsa Cor-de-rosa, última atualização às 12h34 da tarde.

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— Paige, ferá que ifo vai funfionar? Estiquei os lábios com força sobre o aparelho. As chances não eram boas.

Eram duas contra três. E Paige não era exatamente a maior especialista em popularidade, então era mais como uma e meia contra três.

— Olhe para mim. — Paige segurou meus braços como se fosse me sacudir. — Vai funcionar desde que você acredite. Qual é o seu lema?

Dei uma olhada ao redor da loja. — Nunca defifta — balbuciei. — Isso mesmo. — Paige dobrou o plano e o colocou de volta no bolso. —

Agora vamos em frente. De acordo com o último tweet de Molly, suas amigas

vão estar aqui em… — ela checou o relógio — três minutos. — Ex-amigas — corrigi triste. — Não por muito teeeempo! Paige segurou minha mão e me arrastou para longe do mostrador de cílios

postiços e na direção do corredor. Meus tênis encharcados de neve guinchavam contra o piso reluzente de mármore.

Subimos três lances de escada rolante até a loja Betsey Johnson, o aperto no meu estômago atingindo a potência máxima. Quando chegamos ao segundo piso, já estava chegando no turbo.

A vitrine da Betsey Johnson continha uma fila de manequins exibindo cintos de tachinhas prateadas sobre vestidos de festa estampados e chamativos. Na entrada, duas vendedoras no estilo princesa punk perambulavam diante de um mostruário de stilettos exclusivos.

— Instruções: encontre pelo menos três itens que Molly morreria para ter — ordenou Paige, correndo os dedos por uma fileira de bolsas incrustadas com joias.

Peguei um vestido rosa-shocking com uma faixa preta de renda da arara mais próxima, e Paige carregou uma minissaia de tafetá roxa estampada com caveirinhas pretas. Perfeito. Molly era atraída por caveiras como um ímã era atraído… er… pela minha boca.

Uma vez acomodadas dentro do maior provador da loja, não havia mais nada a fazer além de esperar. E tentar não vomitar. E respirar pela boca para não sentir aquele fedor de patchuli-baunilha-avelã-sândalo-cedro-hortelã

invadindo meu espaço pessoal. — Vamos, experimente a roupa! — sussurrou Paige, dando uma voltinha

diante do espelho. Ela piscou para o próprio reflexo e então se jogou na poltrona de estampa de leopardo junto da parede. — Vai ajudar você a pensar em outra coisa.

Com aquele cabelo prático e sem graça, óculos e minissaia com caveirinhas, nada nela parecia combinar. Como se alguém tivesse colocado a cabeça da Skipper Cientista no corpo da Barbie Discoteca Punk.

— … perguntei se ele queria ir na festa do elenco comigo e quem sabe tocar algumas músicas. — Ouvi a voz de Molly e depois o barulho de passos e o chacoalhar de sacolas de compras.

— Você disse “ir na festa comigo”? — Nessa pareceu impressionada e condenadora ao mesmo tempo. — Que coragem.

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— E aí? O que ele respondeu? — As botas de couro falso e pró-direitos dos animais de Liv passaram por nós.

— O que você acha que ele disse? — Molly pareceu ofendida. O provador ao lado do nosso se abriu e depois fechou. — Quero dizer, ele disse que estava meio ocupado, mas é óbvio que só estava dando uma de difícil. — Pausa. — Eca. Que cheiro é esse?

Encarei Paige, a revolução na minha barriga atingindo níveis astronômicos. Ela ficou me olhando de volta, apontando o relógio digital no pulso. De repente, meu gloss cintilante parecia viscoso, e o rímel nos meus cílios

fazia as pálpebras pesarem. Balancei a cabeça em um não frenético, mas ela

apenas fez a contagem regressiva com os dedos, como Carlos fazia antes de entrarmos no ar.

Três, dois… — SÉRIO? — quase gritou Paige, com os lábios a poucos centímetros da

parede que separava nosso provador do das minhas ex-amigas. — Zander Jarvis convidou você para ser a vocalista da banda? O que você DISSE?

Tossi. — Eu, er, falei que ia ver. — Mentira. — A banda é boa e tal, por outro lado

tenho um monte de oferta… — NADA DE S! — plural, e que a banda ficaria como um plano B. — Mentira. — Com o papel de fora, eu realmente fiquei livre para uma oportunidade melhor....

Mentira.

— Total. Paige ergueu o polegar, seu corpo tremendo com risadas silenciosas. Mas, a

cada mentira que eu dizia, mais desanimada eu ficava. O que eu estava fazendo? Kacey Simon não mentia para subir na vida. Ela dizia a verdade nua e crua, mesmo quando ela era mais feia do que tafetá com estampa de caveiras.

Houve uma pausa tensa do outro lado da parede. — Hum, K-Kacey? — Molly quebrou o silêncio primeiro. — Molly? — Arregalei os olhos em falsa surpresa e a encontrei no corredor

do provador. — O que faz aqui? — Estamos só fazendo compras para a festa do elenco. — Molly enfiou as

mãos nos bolsos da jaqueta cor de prata envelhecido para depois retirá-las dos bolsos e cruzar os braços. — E Zander gosta muito desse… esse tipo de coisa. — As pálpebras cobertas de lápis de olho piscaram com incerteza. — Não é, meninas?

— É, Mols. Saindo do provador, Liv e Nessa responderam em uníssono. Suas vozes

soaram cansadas, como a voz de mamãe quando Ella perguntava mas por quê?

um milhão de vezes em cinco minutos. — O quê? — Molly subiu o zíper da sua jaqueta até o queixo. — Vocês não

acham… — Também estamos fazendo compras para a festa do elenco — Paige a

interrompeu, aparecendo do meu lado.

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— Ah! — Bastou uma olhada em Paige e o rosto de Molly se endureceu. — Então figurantes também foram convidados? — Ela ajeitou a mecha rosa. — Eu nunca ia adivinhar.

Emoldurados pelo cabelinho curto, os lábios de Nessa estavam apertados, como se ela não pudesse se decidir se queria sorrir ou fazer cara feia. Liv subiu as mangas do blazer do avô, os olhos correndo incertos entre os meus e os de Molly. Parecia que ela assistia a um tie-brake em Wimbledon.

— Então, er… — Molly abriu e fechou a jaqueta de novo. — Ouvi alguma coisa a respeito de você cantar na banda de Zander?

Abre o zíper. Fecha o zíper.

Abri a boca para responder. Mas minha mandíbula travou quando vi o pingente de colher ao redor do pescoço de Molly. Olhei para Liv e então para Nessa. Todas tinham um igual. Meu rosto ficou quente.

— Pois é. — Paige me interrompeu em voz alta, passando o braço em volta da minha cintura. Fiquei tensa. — Ele está praticamente implorando.

— Paige. — Forcei um revirar de olhos. Os cantos da minha boca estavam começando a pinicar de raiva, então apertei bem os lábios. Molly podia fingir tranquilidade por quanto tempo quisesse, mas suas bochechas coradas a denunciavam. — Ainda não defidi.

— Aceite — respondeu Molly apressada. — Assim quem sabe vocês não tocam na festa? Já que provavelmente você não vai ser convidada de outra forma.

Forcei um suspiro profundo e mantive a calma. Pense grande. Pense grande. Pense grande.

— Ah, eu vou eftar lá — assegurei. — Mas vofê não prefisa de mim para falar com a banda, não é? Zander não é o feu par?

— Óbvio. — Molly passou os dedos pelo cabelo. Quando o anel de caveira se enrolou nas pontas dos apliques, ela deixou a mão repousada no ombro. — Quero dizer, foi isso que ele disse para você?

— Hum… — Eu me virei e semicerrei os olhos na direção de Paige, fingindo pensar. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez. Balancei a cabeça. — Não — disse descontraída. — Ele fó implorou para eu entrar na banda.

Molly ficou pálida. — Tenho certeza de que ele só esqueceu. Liv passou os braços ao redor dos ombros de Molly. — Esqueceu? Molly soltou o anel dos cabelos, arrancando uns fios louros e dando uma

cotovelada nas costelas de Nessa. — Ai! — gemeu Nessa. Bem em tempo o alarme que Paige havia programado no meu celular

começou a tocar. — Ah — falei olhando para a tela enquanto erguia um indicador

interrompendo as reclamações de Nessa. — Quem é? — perguntou Molly desesperada. — Até consigo adivinhar. Zander. De novo — interrompeu Paige.

— Deve fer a défima ligafão hoje. — Suspirei e guardei o telefone no bolso. — Eu ligo outra hora.

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— Bem… tenho que trocar de roupa. Encontro você lá fora? Paige me lançou um olhar incisivo. — Claro. — Ajeitei o cabelo enquanto Paige fechava a porta do provador.

Então acenei para Molly, lutando contra a vontade de estrangulá-la com aquele colar fajuto de imitação feito com talher. — Boa forte com a roupa.

Dei meia-volta e andei confiante até a saída. — Espere! — gritou Molly, exatamente como previsto. Dava para sentir o

desespero na sua voz. — Então… er… Zander realmente tem ligado muito para você?

— E mandado menfagenf.

Eu me virei para ela. — Ah! — Ela franziu o rosto. — Você acha que… poderia dar, bem, algumas

dicasparafazerZanderiràfestacomigo? Ela soltou o final da pergunta em tempo recorde. Peguei você. Lentamente, encarei-a até ela ficar com o rosto vermelho de

novo. — Quero dizer, eu poderia fazer isso sozinha. Mas ele parece dar valor à sua

opinião, por algum motivo. — Acho que é verdade. Fe eu estivefe a fim. Ela relaxou o rosto. — AimeudeusOBRIGA… — Com alguma coifa em troca, é claro — interrompi. — O q-quê? Ela piscou e olhou para o chão. — Quero voltar para o mufical. E quero que o vídeo faia do YouTube. — Hum… Molly olhou em volta, como se esperasse que Liv ou Nessa tomassem a

decisão por ela. Típico. — Você enlouqueceu. — Nessa empinou o queixo, desafiante. — Tem noção

do que aconteceu com a sua reputação nos últimos dias? — A escola inteira viu o vídeo. — Liv parecia genuinamente confusa. — Não

podemos apagar a memória das pessoas. Ignorei as duas. Meu negócio era com Molly.

— E a gente vai voltar a fer como era — informei. As luzes dos provadores acentuavam o fato de que as mechas rosa de Molly

estavam perdendo a cor. Ela mordeu o lábio, com linhas finas de preocupação sulcando a testa.

— Tudo beeem… mas quero um encontro com ele antes da festa do elenco, só nós dois. E eu quero que ele vá na festa também.

— Feito. — Não me importei por minha voz ter engasgado um pouco. O plano estava funcionando. Estava funcionando mesmo. — Não tem problema. Eu configo ifo para vofê.

— Se você diz. — A voz dela tremeu de irritação. — Váemboraantesquesejatarde! Paige tossiu de dentro da cabine.

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Normalmente não aceito conselhos de outras pessoas. Seria uma coisa meio de pernas para o ar, como os Rolling Stones pedindo uma dica para o sr. Calça Skinny sobre acordes de guitarra. Mas nesse caso abri uma exceção e fugi da Betsey Johnson antes que Molly Knight mudasse de ideia.

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Catorze QUEM PEDE NÃO FAZ DRAMA

Segunda-feira, 12h02 da tarde

O sucesso da Fase 1 foi uma faca de dois gumes. Por um lado, Molly precisava de mim mais do que nunca. E eu tinha que dar o braço a torcer para Paige: usar o Sr. Calça Skinny para convencer Molly a voltar a ser minha amiga foi pura genialidade política.

Mas, por outro lado, eu tinha esquecido completamente como Paige ficava insuportável quando estava convencida de que estava certa.

— Você devia revisar a Fase 2 mais uma vez — ordenou Paige durante o almoço de segunda enquanto passávamos o tempo do lado do auditório.

— Todo o meu futuro depende difo, Paige. Eftá tudo fob controle. Dei um gole no energético de uva, que era o único líquido que mamãe tinha

encontrado na geladeira hoje de manhã, e pressionei a orelha contra a madeira empenada. Silêncio.

— A fua Informante Fecreta não falou que eles iam eftar aqui na hora do almofo?

As mitenes douradas que Liv havia tricotado para mim no ano passado estavam começando a fazer minhas mãos suarem. Embora eu tivesse decidido não usar nenhuma das peças da Liv linhas até que ela pedisse desculpas, aquelas mitenes davam um toque hard rock ao visual, como a meia-calça arrastão embaixo da calça skinny rasgada.

— Eles vão chegar — assegurou Paige. — Minha informante da aula de álgebra nunca erra. E ela disse que a banda ensaia no auditório todos os dias na hora do almoço.

Eu me recostei na porta e deslizei até o chão. — Tem certeza de que você tem tudo sob controle? — Paige se sentou ao

meu lado e abriu o bolso da frente da mochila, puxando cartões verdes que formavam um bolinho de uns oito centímetros de espessura. Eles me faziam pensar em Nessa. — Fiz esses cartões de memorização caso você precise. Talvez fosse legal dar uma última revisada.

Suspirei. A Operação: SKS era quase tão cansativa quanto os ensaios. Na verdade, era tão cansativa quanto os ensaios: falas para decorar, adereços dos quais me lembrar, uma diretora sabichona.

Operação: Salvando Kacey Simon (SKS)

Fase 2

Local: Auditório, Prédio Silverstein, Escola Marquette Hora: 12h

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Alvos: Zander Jarvis, Kevin Cho, Nelson Lund e The Beat Fontes: Página do Gravity no Facebook, Informante Secreta de Paige na aula de álgebra II Meta: Aceitar o convite de Zander Jarvis (codinome: Zander) para ser vocalista da banda sem demonstrar desespero. Fingir ser amiga dele por tempo suficiente para arrumar um encontro para Molly.

OBJETIVOS

·

Objetivo A: Elogiar muito o Gravity para amansá-los. Elogios possíveis:

· O cabelo pintado de azul radioativo é muito bacana e realmente destaca os olhos de Zander. E as calças justas? Emagrecem muito. De um jeito bem… masculino.

· Chamar a si mesmo de The Beat é totalmente não idiota. É tipo Madonna ou Sting. E eles são grandes ícones do rock.

· Kacey estava andando pelo prédio na hora do almoço quando ouviu algo que só podia ser chamado de inovação musical. O QUÊ? Era a banda do sr. Calça Skinny? E eles ainda não assinaram um supercontrato com uma gravadora? Fala. Sério.

· Objetivo B: Mandar tão bem na banda a ponto de fazer com que Zander fique devendo um favor a Kacey. Cobrar esse favor nas noites de sexta e sábado, na forma de um encontro com Molly (codinome: Falsa Cor-de-rosa).

Um prato de bateria ressoou do outro lado das portas do auditório, seguido de um rufar do bumbo e um riff de guitarra. — Fão elef! Fiquei de pé, com o coração disparado. — Que comece a Fase 2! Paige empurrou o bolo de cartões para minhas mãos. — Eu já falei, não quero. Mas enfiei os cartões no bolso traseiro da calça de qualquer forma, minhas

luvas empapadas de suor quando me dei conta da enormidade da missão. E se a Fase 2 fosse um fracasso total? Eu não tinha um plano B, não sabia de nenhum outro jeito de fazer Molly sair com Zander. Todo o meu futuro dependia de como os próximos dois minutos iriam se desenrolar.

— Kacey! Respire — ordenou Paige. — Você tem tudo sobre controle. Fechei os olhos e respirei fundo, inspirando e expirando até minha pulsação

voltar ao normal. Tudo bem. O Gravity não era nada de mais. Eles não eram

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ninguém se comparados ao dia em que minha mãe me levou naquele jantar sofisticado de arrecadação de fundos em Nova York e eu toquei sem querer (querendo) O CABELO DE MEREDITH VIEIRA durante o segundo intervalo comercial.

— A gente se encontra no Sugar Daddy depois do colégio para o relatório. — Paige abriu as portas do auditório e me empurrou para dentro. — AGORA VAI!

Tropecei pela entrada até os assentos mais próximos da porta. A maioria das luzes estava apagada, exceto por alguns holofotes em cima da banda. Zander estava passando a correia da guitarra pela cabeça, aninhando o instrumento de

madeira polida nas mãos como se fosse o próprio diamante Hope. — Então, por onde a gente começa? — perguntou o garoto dos

teclados. Temos Kevin Cho no baixo; Nelson Lund nos teclados, lembrei, enquanto Nelson se debruçava sobre os teclados e tentava alguns acordes. — Vamos continuar de onde paramos ontem, Z?

Nelson afastou os cachos louros da frente dos olhos. Sua camiseta cinza estava rasgada em três lugares. Provavelmente de propósito.

— É. Vamos. Zander manteve a cabeça baixa, tocando alguns acordes. — E então, você chegou a falar com aquela garota? — perguntou The Beat

de trás da bateria preta. Ele jogou as baquetas para o alto e as pegou no ar sem sequer olhar para cima. — Sobre a vaga de vocalista.

Agarrei os descansos de braço da poltrona. — Falei. Ela não quis — disse Zander. — E foi meio grossa. SINCERA! Ela foi sincera! Apertei ainda mais os descansos de braço, até ficar

com os dedos dormentes. — Ela não é aquela menina dramática do Canal M? — perguntou Kevin. Jornalista. Muito. Cotada. Não que eu ligasse para o que esses caras

pensavam, mas sinceramente. Informem-se um pouco melhor, gente. Zander comprimiu os lábios, deixando-os em uma linha bem fina. — Pois é. Nada a ver com a gente. Por quê? Porque a cor do meu cabelo é natural? Respirei fundo e me forcei a

soltar a poltrona. Pense grande. Pense grande. Pense grande.

— Você quem sabe, Z. — The Beat estalou os dedos e pegou as baquetas de novo. — Um. Dois. Três. Quatro.

O Gravity deu início a uma música instrumental lenta, e eu me ajeitei na cadeira, observando os garotos tocarem. O Sr. Calça Skinny tinha um ar estranho, meio sonhador. Seus olhos estavam fechados e ele não olhou para o palco nenhuma vez para checar se estava fazendo besteira. Era como se nem percebesse que tocava na frente de outras pessoas. Eu nunca tinha visto alguém ficar tão relaxado no palco antes. Nem a mamãe na mesa do jornal, nem Quinn durante nosso dueto e, definitivamente, nem eu. A ideia de ter um show só funcionava se você tivesse público.

Ele parecia tão tranquilo e em paz que de repente observá-lo pareceu errado, como se eu o tivesse flagrado de cuecas ou algo parecido. Eu me concentrei na

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plaquinha velha do descanso de braço, sentido os arranhões no metal até que a música acabasse, alguns minutos depois.

Era a minha deixa. Mordendo um ponto já machucado na minha bochecha esquerda, fiquei de pé e andei devagar pelo corredor acarpetado, me preparando para a maior atuação da minha vida. Estreei uma versão fechada do sorriso Simon. Minha personagem adorava bandas de meninos emo e não ligava nem um pouco se eles falassem dela pelas costas. E queria ser vocalista da banda mais do que queria ver aqueles óculos de dez toneladas fora do próprio rosto.

Eeeeee… valendo.

Eu me apoiei contra o primeiro assento da fileira da frente, joguei o cabelo para trás e disse:

— Eu topo. Zander me encarou, seus olhos brilhavam com alguma coisa. Susto?

Assombro? Irritação? — E então? — continuei. — Quando é o próximo enfaio? Zander apoiou a guitarra com cuidado contra um dos amplificadores e

desceu a escada. — O que você está fazendo aqui? — perguntou em voz baixa. O bolso esquerdo traseiro da minha calça pesava com os cartões de Paige e,

de repente, minha mente ficou mais vazia do que o dever de casa de Molly antes de ela pressionar Nessa a terminá-lo para ela. Por que eu não tinha revisado os cartões como Paige sugerira? O que eu devia dizer mesmo? Alguma coisa sobre o cabelo dele? Diga que cabelo azul é o máximo. Mesmo. DIGA! DIGA QUE VOCÊ AMA AQUELA FRANJA DE COME-COME.

Mas algo dentro de mim lutava contra a mentira. Será que valia a pena arriscar meus princípios jornalísticos, minha reputação, por causa de uma vaga chance de ele concordar em sair com Molly? Eu não podia. Não podia mentir. Então disse uma coisa em que acreditava de verdade.

— A banda ficaria muito melhor com alguém no vocal. — É, pois é. — Zander abriu o fecho gasto da pulseira de couro do pulso e

então o prendeu de novo, com os olhos fixos nos meus pés. — Achei que você não queria.

— Humm… — Chutei um pedacinho gasto do carpete com a ponta do tênis. — Mudei de ideia.

No palco, o restante da banda ficou quieto, obviamente escutando. — É, bem, talvez eu tenha mudado de ideia também. — Ele olhou para meu

rosto. Eu nunca tinha reparado nos olhos dele antes. Eram cinza-chumbo. Duros e impiedosos. Imediatamente desejei que ele continuasse olhando para meus sapatos. — Precisamos de alguém que seja músico. Não uma fofoqueira maldosa da televisão — disse ele sem se alterar. — Aqui não tem lugar para drama, Simon.

— O que vofê dife? — No espaço entre nós voou saliva da minha língua presa, atingindo a camisa esfarrapada do Jimi Hendrix. Eu me encolhi.

O garoto dos teclados tossiu, e The Beat escondeu um sorriso por trás dos pratos da bateria.

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— Você me ouviu. — Zander deu de ombros. — Sabe, para uma garota que tem a reputação de dizer a verdade sem dó, você realmente não sabe como encarar os fatos.

— Para um cara que não gosta de drama, vofê tá confeguindo muito bem criar um aqui — devolvi, colocando as mãos na cintura.

— Então, você é má assim com todo mundo ou só com quem você não conhece?

Sua voz era baixa e controlada, mas foi como se ele tivesse gritado. — Eu não fou má! — Minha voz falhou, e imediatamente me arrependi de

deixá-lo me atingir. — Eu digo a verdade. Não é a mefma coifa.

No entanto, pelo olhar cético no seu rosto, ele não acreditava em mim. Era hora de mudar de estratégia.

— Tudo bem. Vofê tem razão. Mas não tenho andado mais com meu grupo antigo. — Arranquei um fiapo da luva. Agora era eu quem não conseguia olhá-lo nos olhos. — Eu mudei. De verdade. Eu eftou… diferente… agora.

Minha voz sumiu. — Tanto faz. Ele se virou, voltando para o palco. — Zander! — gritei. O que mais ele queria de mim? Mas ele não me ouviu ou fingiu não ouvir. — Defculpe… A palavra saiu praticamente em um sussurro. Eu me joguei na cadeira mais

próxima e tirei os óculos, esfregando os olhos. Certo. Não pode ser. A verdadeira Kacey Simon não aceita não como resposta. A verdadeira Kacey Simon pressiona até conseguir exatamente o que quer. A verdadeira Kacey Simon…

… desapareceu quando comecei a usar óculos e aparelho. — Ei, você está bem? — retumbou pelo microfone a voz do sr. Calça Skinny. Enfiei meus óculos de volta no rosto e andei até a porta. — Ótima. Funguei, olhando para o carpete. — O teste é às quatro e meia na minha casa. Salte na Berwyn e suba a

Broadway até a Balmoral. Eu me virei para o palco. — Tefte? — Foi como um tapa na cara. — Vofê quer que eu faça um tefte?

Maf… O rosto de Zander se fechou. — Esquece. — EFPERA! TUDO BEM. Quatro e meia. — Qualquer drama e você está fora. Entendeu? Ele ergueu a guitarra. — Certo. Obrigada — balbuciei, voltando para o corredor. — Ah, e está vendo aqueles discos na minha pasta? Ele apontou para uma pasta esfarrapada jogada em uma cadeira da fileira

do meio, e vi um monte de discos coloridos aparecendo pela abertura.

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Levantei a aba da pasta e li os títulos. Purple Rain, Time Out of Mind, Déjà Vu. Nunca tinha ouvido falar em nenhum deles. E cheiravam igual à sra. Weitzman, minha vizinha de mil anos.

— Escute esses discos antes de ir. Especialmente Dylan. O cara é um gênio. Dever de casa? Mordi os lábios e enfiei os discos debaixo do braço. — Tá legal. — Às quatro e meia — repetiu ele enquanto eu caminhava pelo corredor. —

Não se atrase.

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Quinze QUEM É O SEU SUGAR DADDY?

Segunda-feira, 3h20 da tarde

„Entrar sozinha no Sugar Daddy naquela tarde foi surreal. Aquele era o ponto de encontro das minhas amigas desde o primeiro dia do sexto ano. Estávamos procurando um lugar para conversar depois da saída da escola e nos apaixonamos por todos os aspectos daquela pequena padaria: o piso de madeira que range, as carteiras vintage, as cadeiras coloridas e os sofás de couro azul-turquesa no fundo do salão.

Esta era a primeira vez em que eu passava pelas portas de vidro fumê sozinha — e a primeira vez que via os sofás ao fundo vazios.

Aqueles sofás tinham história. Foi ali que descobrimos que Nessa havia entrado para um acampamento super exclusivo de aulas de francês em Avignon, no verão passado. Onde organizamos uma festa surpresa pós-colégio para Liv, com cupcakes veganos e tudo. E onde Molly experimentou chocolate quente com expresso triplo e descobriu que Molly + cafeína = má ideia.

— Você está atrasada. Paige já estava sentada a uma mesa para dois no meio da padaria. Um

cupcake de cenoura com cobertura de cream cheese pela metade estava largado ao lado de um porta-guardanapos cromado.

Larguei minha bolsa debaixo da mesa e coloquei os discos do sr. Calça Skinny entre os guardanapos e o prato de Paige.

— Vofê tá olhando para a nova… — fiz uma pausa, tentando achar outra palavra sem “s” para vocalista — … cantora do Gravity.

— Então a gente pode tirar esse item da lista — respondeu Paige sem erguer os olhos da Marquette Gazette. — Você quer ouvir primeiro as más notícias ou prefere as piores?

Embaixo da mesa seu pé balançava na velocidade da luz, fazendo com que a xícara e o pires vermelhos diante dela tremessem como se um mini terremoto tivesse acabado de atingir o Lincoln Park.

— Hein? — Vou direto ao ponto. — Paige enfim levantou o olhar. Suas sobrancelhas

estavam unidas, parecendo uma centopeia gigante. — A coisa não está boa. — Ela dobrou o jornal em dois e o deslizou pela mesa na minha direção. — A parte

boa é que você está na primeira página. Li a manchete. ATRIZ SUBSTITUTA SERÁ A ESTRELA DA PRODUÇÃO GAROTOS E

GAROTAS. E embaixo, em letras menores:

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ESTRELA EM ASCENSÃO: “DESTINO E DIFICULDADES ODONTOLÓGICAS ME LEVARAM AO ESTRELATO.”

As letras dançaram no meu campo de visão. Mas a foto de Molly de pé,

sozinha no palco, mirando os holofotes, me encarou em preto e branco. Aquela era a minha primeira página! Como ela apareceu na parte superior da página antes de mim? Arranquei os óculos e os zuni para o outro lado da mesa.

— Pense grande — censurou Paige, furando o cupcake com um garfo. — Nosso novo lema é minimizar os danos.

— Não acha que já é um pouco tarde? — Eu me senti dividida entre encontrar e destruir todos os exemplares da Gazette na grande Chicago e ler o artigo até decorar todas as palavras.

Paige balançou a cabeça. — Isto é apenas a boneca da edição de amanhã. Se a gente conseguir colocar

a nossa própria história até o prazo de hoje à noite, nos safamos. Só precisamos pensar. — Ela ergueu uma caneta que estava ao lado da xícara e começou a fazer notas nas margens do jornal. — Talvez a gente possa fazer uma notinha sobre você estar na banda agora ou algo assim. O que acha?

— Peraí. Como vofê confeguiu uma boneca? Eu nunca havia conseguido ver as manchetes do dia seguinte com tanta

antecedência. Seus olhos me fuzilaram por trás da armação preta. Havia um resquício de

cobertura de cream cheese na lente esquerda. — Você tem ideia de como parece cheia de si ou as outras pessoas são

medrosas demais para lhe contar isso? — Dá lifeeenfa! Vofê tem ideia de com quem tá falando? Apontei para meu próprio rosto para dar ênfase. A parte do Kacey Simon,

antiga e prestes a ser reintegrada ao seu posto de guru dos conselhos, estrela do palco e alvo do afeto de Quinn Wilder ficou implícita. Certo, eu tive um acidente de percurso. Um BREVE desvio. Mas assim que conseguisse a vaga de vocalista e me livrasse da língua presa (e de Paige) tudo voltaria ao normal.

— Com quem estou falando? — Paige tirou os óculos e os colocou de volta no lugar. E então repetiu o gesto. — Estou falando com uma menina cujos indíces de aprovação caíram quarenta pontos percentuais desde segunda-feira. — Ela pegou o copo de água e bebeu metade do conteúdo de um só gole. — Uma menina que parece não entender que a escola inteira, exceto euzinha aqui, está, digamos, curtindo seu novo visual. Isso se chama vingança, Kacey.

— A escola inteira? — Apertei o copo de água gelada para reduzir a temperatura do meu corpo, que subia loucamente. — Não pode ser.

Nos velhos tempos, Molly teria simplesmente se calado e mudado de assunto. Mas Paige não parava.

— Quem liga para o fato de você estar em uma banda se você foi uma idiota completa e agora ninguém se importa mais com você? Alô? John Mayer?

E naquele exato momento o sino sobre a porta da frente balançou e alguém entrou carregando uma pilha inclinada de rascunhos da Gazette. Molly.

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Quando me viu, ela parou. Um segundo depois Liv e Nessa também pararam. Nós quatro sempre parecemos tão coreografadas?

— Ah! — A voz de Molly era mais doce do que cobertura de doce de leite. — Você viu. Foi ideia do Sean. Sabe. Para atrair publicidade. — Ela baixou a pilha sobre a nossa mesa.

— Posso dar uma olhada? — Paige fez um movimento súbito na direção dos jornais. Sua xícara balançou e caiu, encharcando a microssaia cinza-ardósia de Molly com o líquido escuro. — Opa. Foi mal.

Mordi o lábio enquanto a mancha se espalhava. Molly respirou fundo. Ela puxou um monte de guardanapos da mesa e

começou a esfregar a virilha. — Phoebe, não é? — Paige, na verdade. — Tanto faz. — Molly jogou os guardanapos empapados na minha frente e

torceu sua camiseta “vintage” ESTOU COM A BANDA. — Só para avisar, a única razão para Kacey andar com você agora é que ela não quer ficar sozinha. — Molly jogou o cabelo para trás. — Então imagino que você seja melhor que nada.

A cadeira rangeu ao me afastar da mesa para me recostar. — Só para avisar — falou Paige antes que eu pudesse dizer qualquer coisa

—, a única razão pela qual Kacey andava com você é que precisava de alguém para segurar a bolsa com uma das mãos e massagear o ego dela com a outra! Entendeu, Millie?

Ei!,eu queria gritar. Isso não é justo! Mas parte de mim se questionava se na verdade era.

— É Molly. Ela cruzou os braços, com uma nova tonalidade de carmim cobrindo todo o

seu rosto. Liv ficou boquiaberta e cutucou Nessa com o cotovelo. — Escutem, meninas. — Paige cruzou os dedos sobre a mesa. — Vocês vão

ter que achar uma mesa só para vocês. Kacey estava me contando sobre seus planos com Zander mais tarde.

Ela dispensou Molly e as meninas com um aceno. — Espere aí. Zander?

Molly olhou para mim de novo. Dessa vez havia uma ligeira esperança no seu olhar. E algo mais. Inveja?

— É. Casualmente tirei um pedaço do cupcake de Paige e enfiei na boca. Os

farelos adocicados imediatamente se alojaram no aparelho. Mas valeu a pena. — Então… tchauzinho. Paige deu uma piscadela. Sem uma palavra, as meninas deram meia-volta e saíram pisando duro. Balancei a cabeça para Paige e bati palmas em câmera lenta. — Vofê. É. A. Melhor. E tão má! Minha esperança era de que aquilo soasse em parte como uma desculpa. Eu

queria perguntar se ela estava falando sério quando disse que eu usava Molly

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apenas para massagear meu ego. Mas meus lábios não conseguiam formar a frase.

O sino em cima da porta soou de novo, e vi minhas amigas me deixando para trás. Lá fora Liv passou o braço ao redor dos ombros de Molly e a apertou enquanto as mitenes roxas de Nessa gesticulavam freneticamente na neve, como se ela estivesse regendo uma orquestra. Quando, na verdade, tudo o que estava fazendo era… fofocar a meu respeito. Virei o corpo para o outro lado.

— Não entendo. — Paige dobrou uma pilha de Gazettes encharcadas e as largou no chão. Então apoiou o queixo nas mãos, estudando meu rosto. — Todo esse trabalho só para você voltar a andar com elas?

Dava para ver pelas pequenas rugas ao redor dos seus olhos que ela não estava sendo má. Estava realmente confusa.

Não é que eu quisesse estar com elas neste momento. Mas elas agiam como se não sentissem nem um pouco a minha falta. Como se tudo estivesse muito bem sem mim — melhor, até —, embora meu mundo sem elas estivesse caindo aos pedaços.

— Não é tão ruim. Peguei o porta-guardanapos e arranquei as pontas do papel. Conferi a janela

de novo. Elas haviam ido embora, e a neve que caía estava engrossando. Paige ficou quieta, mas o que ela não dizia pesava sobre mim. A pilha de

guardanapos rasgados na minha frente estava se tornando uma montanha parecida com a neve do lado de fora.

— Tenho que ir — falei finalmente. — Enfaio em vinte minutos. Paige abriu um sorrisinho. — Vou vazar a história de que você está na banda para o jornal de amanhã.

Minimizar os danos, certo? — Certo. — Sorri de volta, então me levantei e ajeitei meu casaco bege

extragrande. — Eftou parecendo hard rock, não eftou? — Hard rock. Claro. — Paige revirou os olhos. — Onde você comprou esse

casaco, na Anthropologie? — Mas eftou usando com meia-calfa arraftão! — reclamei. Em sinal de

protesto, roubei o resto do cupcake para comer no caminho. — Mando uma mensagem depois.

— Boa sorte. — Então Paige disse alguma coisa para si mesma que soou muito como: “Você vai precisar.”

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Dezesseis VOCÊ PODE TIRAR UMA MENINA DE LINCOLN PARK,

MAS… Segunda-feira, 4h28 da tarde

Cheguei à casa do Sr. Calça Skinny faltando menos de três minutos para meu compromisso inegociável.

Pelo menos achei que era a casa dele. Conferindo o número anotado na palma da minha mão, inclinei a cabeça para trás e encarei o armazém de dois andares com as palavras JACOB HARVEY & SONS pintadas em maiúsculas brancas no portão de garagem elétrico azul. Uma fileira de janelas compridas e retangulares ia do alto da porta até o teto de placas de estanho.

Até onde eu podia ver, esta não era a entrada da frente. Então dei a volta no armazém, onde encontrei uma porta azul de tamanho normal. Ela se abriu antes que eu tivesse a chance de bater.

— Oi. Você achou! — Zander se agachou na entrada, impedindo um gigantesco cachorro cinzento de orelhas pontudas de sair. — As pessoas normalmente acham que anotaram o endereço errado. Costumava ser um armazém de móveis ou alguma coisa assim. — Ele tirou a mecha azul do rosto.

— E vofê mora aqui? — perguntei, tentando mandar vibrações tranquilas e autoconfiantes na direção do cachorro.

Nessa era voluntária no abrigo de animais nas tardes de domingo, e uma vez me disse que cachorros conseguem sentir o medo das pessoas. Será que também conseguem detectar desespero social?

— Aham. — Zander deu uma palmada no corpo do cachorro e se esticou. — Ah, esse é o Hendrix.

Hendrix mostrou os dentes e me encarou com um olho marrom e o outro azul-claro, vesgo. Legal. Até o cachorro vesgo me odiava. Talvez Paige tivesse razão.

— Vamos. Vou mostrar o lugar para você. Zander me conduziu por um cômodo quadrado e amplo com um pé-direito

que devia ter mais de doze metros de altura. Duas escadas em espiral e uma escada de mão de madeira pintada de verde levavam até os quartos no mezanino, nos dois lados do armazém. Já que não havia paredes dividindo o cômodo, o piso de concreto era pintado em seções: cinza-prateado na sala de estar, violeta-acinzentado na cozinha e gelo embaixo da mesa de jantar de cobre escovado. Só de estar ali eu já me sentia descolada.

— Nós nos mudamos há três meses e ainda não tivemos tempo de desempacotar tudo.

Zander chutou uma caixa de papelão identificada como Tralhas no 14 para fora do caminho. Ele parou para mexer no aparelho de som na mesa junto à porta e um som heavy metal berrou de todos os cantos da casa. Hendrix ganiu e se enfiou embaixo da mesa de jantar.

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Examinei as fotos penduradas nas paredes de tijolos: preto e branco, coloridas, paisagens, panorâmicas. Tudo, desde retratos formais da família até uma foto espontânea de Zander tocando guitarra. Eu ri diante de uma fotografia pequena de uma menina da idade de Ella, com uma camiseta do Grateful Dead e um sorriso banguela enquanto fazia um sinal da paz.

— FUA IRMÃ? — gritei por sobre a música. Zander fez que sim e abaixou o som. — Roz. É uma figurinha. — Ele perambulou até a cozinha. — Quer beber

alguma coisa? — Água, obrigada. — Joguei minha bolsa no sofá de couro da sala de estar,

minha voz reverberando nos canos expostos que serpenteavam em um emaranhado pelo teto. — Quantaf fotografiaf têm aqui?

Pelas minhas contas, cada parede deveria ter pelo menos umas cem. — Eu sei. Minha mãe é fotógrafa. A maior parte do que ela faz é para

propagandas e coisas assim. — Ele abriu a geladeira de aço inox com um puxão e tirou duas garrafas de água. — A paixão dela é pessoas, então ela tira muitas fotos da nossa família. — Ele empurrou a porta da geladeira com o calcanhar. — Aqui.

Agarrei a garrafa enquanto ela voava na minha direção. — Obrigada. Ele assentiu. — A gente ensaia aqui atrás — informou, me conduzindo até o cantinho do

café da manhã pintado de laranja. Uma bateria, dois violões e um teclado estavam preparados atrás de alguns pedestais de microfone.

— E sua mãe e seu pai não ligam? — Não. Eles estão no trabalho. Além do mais, somos o único loft do bairro.

A gente pode enlouquecer aqui que ninguém liga. Zander se sentou em um banco de metal atrás de um dos microfones e

ajustou a altura do pedestal. — Legal. Peguei uma baqueta e dei uma batidinha na minha coxa. — Então. Falando sério. Por que mudou de ideia em relação à banda? Seus olhos encontraram os meus e ele me encarou. Ele tinha um jeito

irritante de fazer aquilo, exatamente como Paige. Antes que eu pudesse dizer que encarar as pessoas era falta de educação, os

outros garotos chegaram pela porta lateral, com as mochilas penduradas nos ombros. Eles deixaram as coisas perto do sofá e foram direto para a geladeira. Larguei a baqueta.

— Estou dizendo, cara — argumentou The Beat. Ele segurava uma filmadora digital, que colocou bem perto do rosto de Kevin. — É como se antes de ouvir a versão acústica você nunca tivesse experimentado música antes. Não concorda?

Abri minha garrafa e dei um gole. — É isso aí — concordou o tecladista de cachos louros. Nelson. Ele tirou a

jaqueta cargo verde-musgo e a jogou sobre o banquinho em frente ao sofá. — Essa música, cara, mudou a minha vida.

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Kevin balançou a cabeça, discordando. — Fala sério. Eles são uns vendidos, cara. Mesmo com uma barra de ferro furando o lábio, ele não tinha a língua presa.

Inacreditável. — Você acha que todo mundo é vendido, Cho. Zander riu, descendo do banco. — É. — Kevin deu de ombros, e então parou para olhar diretamente para a

lente da filmadora de The Beat. — Porque eles são. Todos vocês são. — Cara — The Beat colocou a filmadora no balcão da cozinha —, como vou

conseguir preparar um material decente para o site se você continuar falando

mal dos nossos fãs? — Polêmica, cara — argumentou Kevin. — Polêmica vende. — Tanto faz. The Beat abriu a geladeira e voltou com uma garrafa plástica de suco de

laranja. Ele tirou a tampa e bebeu direto do gargalo. — Cara! — gritou Zander. — Minha mãe bebe isso. — Foi maaaaaal. — The Beat arrotou. — Ifo é nojento — balbuciei sem erguer os olhos da minha garrafa. Espere aí. Isso se enquadrava como drama? Calei a boca. Os garotos me encararam surpresos. Acho que nunca ninguém levou tanto

tempo para me notar em toda a minha vida. Talvez eu realmente estivesse ficando invisível. Cocei a nuca, sem saber para onde olhar.

— Ah, oi. — Nelson pegou uma caixa de granola do armário e enfiou a mão dentro dela.

— Olá, meninof. A garrafa de água amassou devido à força de meus dedos. — Sotaque maneiro — Nelson disse com a boca cheia de cereal. — De onde

você é? Uma frutinha seca voou da sua boca e ficou grudada na bochecha de Kevin. — Lincoln Park — falei, sem me afetar. Kevin limpou a bochecha e ergueu a mão em uma espécie de aceno. — E aí. Os meninos se juntaram no cantinho do café e assumiram seus lugares atrás

dos instrumentos. Fiquei contra a parede, sem saber para onde ir. Sem saber como me comportar.

— Você já cantou como vocalista antes? — perguntou The Beat. O chuveiro conta? — Eu, er, era a protagonifta no mufical. Meus óculos começaram a deslizar. Coloquei-os no lugar. — Ah, é. O musical. — Kevin nem tentou esconder o desdém. Ele gesticulou

para Zander, que estava entretido com o pedestal do microfone. — O musical do colégio.

— Isso mesmo — respondi na defensiva. — Bem mainstream. — E ao se debruçar sobre seu baixo juro que o ouvi

resmungar: — Vendidos.

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Eu me virei para o Sr. Calça Ski… Zander, a fim de ver se ele havia ouvido. Como assim aquilo não se enquadrava em drama? Ou apenas maldade?

— Ela é boa — disse Zander depressa, afinando sua guitarra. — Tem a maior amplitude.

Ele tocou a mesma corda várias vezes, rodando as tarraxas prateadas na extremidade do instrumento até parecer satisfeito.

Engoli em seco, com as bochechas queimando. A calça rasgada e a meia arrastão não estavam me ajudando em nada, e ainda faziam minhas coxas suadas coçarem loucamente.

— A gente está trabalhando em um material novo para o álbum. — Zander

tocou alguns acordes. — Acabei de começar esta música. Não terminei ainda. Você sabe ler partitura, né?

O quê? Pisquei atordoada enquanto Zander enfiava algumas páginas de música nas minhas mãos.

— Escrevi em compasso ternário, mas a gente está diminuindo o ritmo para quatro por quatro.

— Ah, legal. Até meus cílios começavam a suar. — Certo, pode começar quando quiser. — Ele apontou com a cabeça para o

microfone ao lado dele. — Você fica aqui. Eu me posicionei atrás do microfone, de repente me sentindo meio tonta.

Era uma pena que eu fosse fazer Zander passar vergonha na frente dos amigos. Ele não merecia aquilo, mesmo com aquele cabelo azul e jeans de menina. Senti uma dor aguda no estômago. Eu nunca deveria ter roubado o cupcake de Paige.

The Beat fez a contagem. — Um, dois, três, quatro. Enquanto a banda tocava os acordes pesados da introdução, eu olhava para

a música nas minhas mãos. Era o mesmo que tentar ler japonês. É claro que a gente devia aprender a ler as partituras de Garotos e Garotas. Mas baixar a trilha sonora no iTunes era muito mais fácil.

O mundo não para de girar O sol sobe e desce Me disseram que ia melhorar Mas eu só vejo tudo… piorar

Até que gostei da letra. Tinha personalidade, sem ser piegas ou melodramática. — Quando quiser, Mainstream — falou The Beat no microfone. Sem drama. Sem drama. Sem drama. Limpei a garganta, em vez de esmurrar o

baterista com o pedestal do microfone. — “O mundo não para de girar, o sol sobe e desce.” Pasma, me virei do microfone para Zander. — Eu não disse? — falou ele sem olhar para mim. — Você não fica com

língua presa quando canta.

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Calafrios úmidos percorreram minha espinha. Mesmo sem a língua presa, aquilo era uma droga. Eu estava de pé, no meio de um bando de garotos que eu não conhecia, olhando para uma música que eu não entendia. Cada nota trazia uma nova possibilidade de eu fazer um papelão.

Mas ninguém riu ou fez comentários sarcásticos ao microfone. A banda continuava tocando. Será possível que eu…

… não era uma porcaria? Eu me aproximei do microfone, sentindo as vibrações da música se

espalharem das mãos para o restante do meu corpo. — “Me disseram que ia melhorar.” — Minha voz estava ficando mais alta,

mais confiante. — “Mas eu só vejo TUUU…” Sem qualquer aviso minha voz desafinou feito a de um menino do sexto

ano. Horrorizada, dei um tapa na boca. A dor se espalhou por minhas gengivas. — Espera um pouco — comandou Zander, balançando a cabeça. — Vamos

tentar de novo. A banda parou de tocar, e Kevin suspirou exasperado. — Foi mal. Encarei o chão e contive a vontade de arrancar os óculos. Tornar tudo no

meu mundo fora de foco de novo. — Não tem problema — Zander me acalmou. — Tenta cantar um

pouquinho mais do diafragma. — Tudo bem — balbuciei, com as bochechas queimando. Por que eu achei

que poderia fazer isso? Meu lugar era no palco ou em um telejornal. Não aqui. Eu era uma impostora. Uma poseur.

The Beat contou de novo. — Vamos lá — falou Zander por cima dos acordes iniciais. — Você vai

conseguir. Dei um passo até o microfone. — “O mundo não para de girar, o sol sobe e desce.” — Fechei os olhos e

visualizei um palco escuro com cortinas de veludo. Noite de estreia. Acústico Kacey Simon, diante de uma plateia boquiaberta. — “Me disseram que ia melhorar…”

— VAMOS LÁ, MAINSTREAM! — gritou Nelson.

Agora era a hora. Minha última chance. Sem volta. — “Mas eu só vejo TUUUUUDO PIORAAAAAAAAAAR! — gritei. Minha

voz ecoou pela casa, clara e forte. — Éééééé! — comemorou Zander. — MANDA! VER! Agarrei o microfone, uma energia nova pulsava por todo o meu corpo no

ritmo da música. Era como meu sexto sentido, só que amplificado. Enquanto cantava, tudo exceto a letra da música começou a se desfazer. Os comentários sarcásticos de Molly, a taxa de aprovação em queda vertiginosa, minha substituição no musical: por alguns minutos nada tinha importância. Só a música.

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Dezessete TRÊS É BOM, SEIS É DEMAIS

Terça-feira, 12h06 da tarde

Viajei na onda do hard rock até o almoço no dia seguinte. — E quando o enfaio acabou, a gente tentou algumaf múficaf do Dylan que

eu tinha pegado com Zander — contei a Paige. — Fem língua prefa também. Dá para acreditar?

Abri minha vitamina de açaí e dei uma conferida na Praça Central do meu novo local de almoço: um banco de ferro infestado de heras, entre o Silverstein e o Hemingway.

A Praça estava começando a encher, mas o velho banco de pedra que eu costumava dividir com as meninas estava vazio. Na minha diagonal, Quinn, Jake e Aaron jogavam futebol americano com uma bolinha de papel perto do jardim morto do Dia da Terra feito pelos alunos do sexto ano.

— Parece legal. — Paige se inclinou e, com a cabeça entre as pernas, procurou alguma coisa na mochila. — Espere só até você ver isso. — A voz dela estava abafada.

— Humm — falei meio distraída, momentaneamente hipnotizada pelo jeito como a luz do sol parecia atravessar o telhado da estufa e formar um halo perfeito sobre a cabeça de Quinn.

Ele se apoiou na parede de tijolos e fez um gol, rindo de algo que Jake havia acabado de dizer. Seus dentes eram tão brancos que tive que fechar os olhos por um instante. Fantasiei que Quinn não havia achado graça no vídeo no YouTube na semana anterior. Imaginei que, em vez disso, ele teria dado uma bronca na turma toda e que nós havíamos saído da escola furiosos e então ido até o Sugar Daddy para nosso primeiro encontro oficial.

Paige estalou os dedos na frente do meu rosto. — Precisei barganhar um pouco com os editores, mas… Ela ergueu um jornal dobrado e o sacudiu animada. — Peraí. — Precisei de alguns segundos encarando os olhos gigantes e

estatelados de Paige para avivar minha memória, mas nossa conversa no Sugar Daddy foi enfim voltando à minha cabeça. — Primeira página? — Eu me joguei na direção da Gazette, mas Paige ergueu o jornal fora do meu alcance. — Não acredito que vofê demorou todo efe tempo para me contar!

— Não acredito que você se esqueceu de perguntar! — riu Paige, sacudindo o jornal a centímetros dos meus óculos.

Bem, eu não tinha tanta certeza de que você conseguiria mesmo. Consegui engolir as palavras.

Paige limpou a garganta. — “A diva do canal da Marquette é a nova estrela do Gravity.” — Jura? — Deixei minha vitamina debaixo do banco e puxei o jornal antes

que ela pudesse me impedir.

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— Olha o trecho sobre como você superou as adversidades! — berrou Paige. — É a minha frase preferida.

— Ei! A nova estrela do Gravity! Ergui os olhos do jornal e vi Zander se esgueirando pelo pátio. Ele estava de

calça cargo marrom, um casaco de capuz laranja e uma camiseta com o desenho de um pintinho e de um ímã de ferradura.

Acenei e então voltei a ler a matéria. — E aí? Quando Zander ergueu a mão, a pulseira de couro apareceu por baixo da

manga.

— Oi, eu sou a Paige. Ela bateu na mão dele. — Eu sei. Vou votar em você. — Ele sorriu. — Zander. Mas Paige já tinha voltado para a matéria. — Deixa que eu leio. Ninguém entende você com essa língua presa. — Ela

tomou o jornal da minha mão e o apoiou contra a coxa. — “Embora a humilhação pública tenha atormentado a jornalista desde que ela perdeu a pose para os óculos e o aparelho na semana passada, Kacey não se escondeu debaixo de uma pedra para esperar pela morte, como esta repórter faria. Em vez disso, está trabalhando para superar as adversidades, dando uma pausa no palco e no programa de tevê para conquistar uma indústria completamente nova: o rock‟n‟roll.”

— Maneiro! Zander deu um soquinho no meu ombro, fazendo meus óculos saltarem do

nariz. — Continua! — gritei. — “Simon confirmou à Gazette: „Estou me juntando à mais nova potência

musical da Marquette, a banda Gravity. Estou muito empolgada com essa nova fase no sétimo ano.‟” — Paige fez uma pausa e respirou fundo. — Não. Esperem. Esta é a melhor parte. “E fiquei muito feliz em chamar minha amiga Molly Knight para assumir meu papel em Garotos e Garotas. Até mesmo atores substitutos merecem uma chance.”

— Belo TOQUE, Paige! — resfoleguei. — “Aqui na Gazette, suspeitamos que a Srta. Simon esteja apenas

preparando uma VOLTA POR CIMA. E esta repórter AQUI…” — Paige fechou os olhos e recitou o resto de cabeça: — Quer assentos. Na primeira. Fila.

— Ahhhhhhh! — Ignorei a gotinha de saliva que pulou da minha boca e joguei os braços ao redor do corpo magricela de Paige. — Não acredito!

— Mandou bem — aprovou Zander com um aceno. — Peraí. — Eu me afastei de Paige. — Como vofê fez com que publicafem

ifo? Eu ainda não tava na banda. Paige dobrou o jornal cuidadosamente e o guardou na pasta. — Então, Zander — perguntou ela animada —, ela foi bem mesmo ontem à

noite, não foi? — Foi. — Zander deu um gole no seu chá orgânico de limão. — Ótima. O

pessoal também gostou muito.

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Ele ergueu a mão para cobrir o rosto do sol e sorriu para mim. — Obrigada. — Voltei ao assunto. — Paige, conta logo. Dei um puxão no suéter preto dela. — Ah, tudo bem! — Ela mexeu no cabelo um pouco sem jeito. — Talvez eu

tenha… jurado que dobraria o orçamento do jornal se fosse reeleita. — Paige! — engasguei, impressionada. — Vofê não pode fazer ifo! Alo-ou,

corrupfão? — E se você não for reeleita? — Zander fez uma careta, parecendo realmente

preocupado. — Quero dizer, provavelmente você vai ser. Você foi muito bem no debate do Canal M mês passado. Mas…

— Ah, eu vou ser reeleita. — Paige me lançou um olhar cheio de significado e então piscou. — Quid pro quo, baby.

Desatei a rir e me estiquei para pegar a vitamina embaixo do banco. Em vez disso, acabei puxando minha bolsa.

— Ah! Eu queria dar ifo para vofê. Tirei um álbum que havia enfiado na bolsa e joguei para Zander como se

fosse um frisbee. — Elton John. Rock and Roll Madonna. — Ele pegou e inspecionou a capa. —

É um clássico! Onde você arrumou isso? — Lá em cafa. Era… bem, era do meu pai. Mordi a bochecha por dentro. Paige apertou os lábios. — Irado. Obrigado. Vou ouvir hoje à noite. — Zander guardou o disco com

cuidado debaixo do casaco. — O que me faz lembrar: hoje o ensaio vai ser um pouco mais tarde. Vou levar você a um lugar depois da aula.

— Onde? — Você vai gostar — prometeu ele evasivo. — É uma surpresa. — Ah. Conta para mim! — implorou Paige. — Adoro surpresas. Desde que

elas não aconteçam amanhã. Vamos trabalhar no discurso da campanha. — Ela me olhou buscando uma confirmação. — Não é?

Concordei. — Tá legal. Ela se recostou no banco. Zander cobriu a boca com as mãos e se abaixou

para dizer algo no ouvido dela. — Oooi, Kaif… ah, Kacey. Olhei para o alto, surpresa, e vi Jake Fields de pé junto a mim, segurando

uma garrafa de Gatorade. Aaron e Quinn estavam logo atrás dele. — Como vai? Ele mordeu o lábio, olhando para o chão. Seus ombros curvados tremiam

levemente. Aquilo me lembrou da postura de Molly durante o julgamento de mentirinha.

— Oi — respondi, curta e grossa. Ao meu lado, Paige ficou tensa. — A gente estava indo para o auditório. — Aaron balançou a cabeça,

lançando um olhar rápido para Quinn. — Sean convocou uma reunião rápida. Você vem?

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— Eu saí do elenco, dã. Olhei para Quinn, que cuidadosamente evitava meu olhar. Uma sensação

desconfortável apertou o fundo do meu estômago. Disse a mim mesma que era a vitamina de açaí.

— Ah, tinha esquecido! — Aaron deu um tapa na testa. — Pessoal. — Zander ficou de pé, os olhos gelados feito aço. — Estamos

ocupados, então… — Ei, calma, cara. — Jake ergueu as mãos em um gesto de rendição. — Só

estamos tentando ajudar. — Vem, gente — falei com firmeza para Zander e Paige. — Vamos embora

daqui. E fiquei de pé. Mas Jake bloqueou meu caminho. — Espera. Achei que você poderia precisar disso. — Ele estendeu a garrafa

de Gatorade na minha direção. — Parece que você está perdendo muito líquido… cuspindo desse jeito! Ihhhhhhhh!

Jake socou Aaron e Quinn nos ombros. Quinn enfim olhou para cima e deu um sorriso, que se transformou em uma risada lenta e gostosa. Seus olhos azul-claros pareceram se iluminar, e seu rosto se transformou. Como…

… como se eu não fosse nada além de uma piada para ele. De pé em um canto da Praça Central lotada, nunca me senti tão sozinha.

Zander e Paige se levantaram. — Vem, Kacey — disse Paige baixinho. Ela pegou meu braço e apertou. —

Vamos embora. — É. — Zander revirou os olhos. — Esses caras não valem a pena. Olhei para os rostos determinados de Zander e Paige e, de uma hora para

outra, algo dentro de mim deu um estalo. Eu não estava sozinha. Eu tinha

Zander e Paige, e eles estavam do meu lado. Minha vergonha se dissolveu em raiva enquanto os meninos se cutucavam e riam. Quinn era tão covarde. Ele sequer era capaz de olhar na minha cara enquanto falava mal de mim.

— Ei, Quinn — falei, por incrível que pareça, com a voz bem segura —, dá para contar ao Débi e ao Loide aí que a piadinha da língua prefa é da femana pafada? Eftava no YouTube, fe é que ainda não viram.

— Quem se importa com isso, Simon? — riu Jake meio constrangido. — Ah! Já que o papo é YouTube, eu queria contar uma coifa. — Aumentei o

tom de voz, chamando a atenção de um grupo de meninas curiosas que estava a alguns passos de distância. — Eu tava no eftúdio do Canal M outro dia e encontrei um material ótimo e fem corte de vofês no auditório, fe preparando para o enfaio. Fazendo a maquiagem e tal.

— Cara. Aaron, nervoso, olhou para Quinn. — Caaaara — concordei maliciosa. Eu podia sentir o sorriso de Zander e

Paige. — Não acham que ia fer ótimo todo mundo ver ifo? Afinal, quem ia adivinhar que Jake tem uma cueca de unicórnio?

— São cavalos! — resmungou Jake, vermelho.

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— Ou que Aaron colocou uma camada extra de blush na cara quando achou que não tinha ninguém por perto?

Abri um enorme sorriso, com aparelho e tudo. As meninas perto de nós desataram a rir. — A iluminação do palco me deixa pálido. Mal dava para ouvir a voz de Aaron. Quando meus olhos encontraram os de Quinn, senti algo estranho. Não era

poder. Era mais como… pena. Pena de que Quinn fosse tão fraco a ponto de não ser nem capaz de defender seus amiguinhos. Pena de que ele ainda não pudesse me encarar nos olhos… que só ficasse lá, de ombros caídos e cabeça baixa. E, de

repente, eu não tive mais vontade de humilhá-lo na frente dos amigos. Priiiiiiiiiiiiiiiiim! O sinal ecoou pela Praça. Parecendo aliviados, os meninos passaram por nós

e correram para a entrada do Silverstein. — Uau! — Zander ficou boquiaberto. — Sério… uau! — KACEY! — Paige jogou os braços ao meu redor e me apertou firme. —

Belo jeito de se defender. Retribuí o abraço, ignorando o nozinho de culpa que se formara no meu

estômago. Aqueles caras mereciam a humilhação. Mereciam o aviso de que eu ainda estava ali, debaixo dos óculos e do aparelho. Pronta para lutar.

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Dezoito CLUBE DA CULTURA Terça-feira, 3h35 da tarde

Depois da aula, só quando Zander já tinha me arrastado até o bairro de Andersonville foi que comecei a atazaná-lo para contar sobre o nosso passeio surpresa.

— Por favoooor. Só uma pista — insisti, arrastando as ankle boots recortadas cor de açafrão pela calçada.

Morei em Chicago a vida toda, e nunca explorei nenhum dos bairros da zona norte da cidade. Eles transmitiam uma sensação diferente, mais urbana do que Lincoln Park. Grades em vez de cercas. Lofts em vez de casas. Grunge em vez de pop.

Resumindo, Zander em vez de Kacey. — Estamos quase chegando — prometeu Zander enquanto cruzávamos a

Foster. As cãibras da caminhada se transformaram em pontadas de fome quando

passamos diante de cafeterias que só vendiam para viagem e padarias suecas que cheiravam a manteiga derretida e canela. Observei sonhadoramente as vitrines com biscoitos caseiros, bolos e panquecas cobertas de geleia de amora.

— Certo. Feche os olhos — ordenou Zander. — Não — resmunguei. Minha respiração formou uma fumacinha entre nós dois. — Você que sabe. Reduzimos o passo diante de uma vitrine de uma loja pequena e cinzenta

com um nome escrito em vermelho sobre a porta. — Eftafão Vinil? — perguntei sem acreditar. — Isso. — Zander parou do meu lado e apertou o dedão contra a maçaneta

de metal. — Pense neste lugar como a primeira parada na sua grande turnê pela cultura do rock — anunciou. — Se você vai fazer parte da banda, não pode só cantar rock‟n‟roll. Você tem que viver o rock‟n‟roll.

Revirei os olhos. Ele estava falando sério? — Meu nome é Zander e eu sou seu guia. Mas pode me chamar de… Mestre

do Rock. Eu podia pensar em vários nomes que eu poderia usar para chamá-lo.

— E eu fou descolada o baftante para entrar aí? — brinquei. — Não fou muito, e eftou citando, “mainftream”?

Zander se virou, fingindo refletir profundamente. — Bem-lembrado. Espere aí. — Ele tirou a pulseira de couro e a colocou ao

redor do meu pulso. A pulseira deslizou até quase meu cotovelo. — Pronto. Tão descolada que mal reconheço você.

— Ótimo.

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Ele se voltou para a porta, empurrando-a duas vezes com o ombro para conseguir abrir.

Entramos em um ambiente mofado, com luzes fluorescentes e paredes brancas encardidas. E discos. Discos por toda parte. Empilhados em várias colunas nas mesas de carvalho cheias de quinquilharias. Enfiados embaixo da poltrona velha de couro em um canto. Amontoados junto dos fones de ouvido acolchoados que pendiam de ganchos na parede por toda a loja. Sustentando a máquina registradora em cima da caixa de som ao lado da porta. Prendi a respiração para não ocupar espaço. E não gastar oxigênio.

— Z? — falou um garoto de algum lugar à nossa direita. — É você?

— Oi, Elton. Zander pegou um disco empoeirado do Pink Floyd de uma pilha perto da

porta e soprou. Uma fina camada de poeira voou pelo ar. Espirrei. — Vofê vem muito aqui? Peguei o álbum mais próximo. O rosto abatido de uma mulher estava

impresso em vários tons de azul. — Venho. Isso aqui é tipo… a meca do rock‟n‟roll. — Um sorriso tranquilo

se abriu no rosto de Zander. O mesmo olhar distante de quando ele estava tocando. Ele olhou para o álbum na minha mão. — Joni Mitchell. Blue — observou. — É de 1971. Não tão bom quanto Clouds, mas com certeza é consistente. Ah. E esses aqui. — Ele explorou uma pilha de discos de Led Zeppelin apoiados sobre o aquecedor debaixo da janela. — Acho que não entendi o que era rock‟n‟roll antes de Physical Graffiti, sabe?

— Na verdade, não. Eu me perguntei se já o tinha visto falar tanto de uma vez só. — As coisas novas ficam lá no fundo. Ele desapareceu em um labirinto de pilhas de discos, e corri para alcançá-lo

antes que me perdesse dele. — Como você encontrou este lugar? — perguntei, mantendo as mãos ao

lado do corpo e me esgueirando em torno de um amplificador largado no chão. Havia uma caneca de café em cima, com algo branco e peludo boiando

dentro. Contive uma ânsia de vômito. — Tem um café aqui do lado, e eles organizam umas noites de improvisação

— falou ele por cima do ombro. — Tocamos lá quando… — Ele parou no meio do caminho e virou-se para mim. — Espere aí. Como eu descobri… o quê? — perguntou devagar, apertando os olhos. — Não ouvi o que você disse.

— ESTE LUGAR — gritei, envolvendo as mãos ao redor da boca feito um megafone. — ESTE LUGAR.

Zander abriu um sorriso enorme. — Este lugar — repeti uma terceira vez, sentindo a empolgação correr do

meu dedinho do pé até a ponta da orelha. — A língua prefa! — Relaxe a língua.— A língua… presa!

— Eu avisei! — exclamou ele. — Comemoração brega em câmera lenta? Dei uma olhada ao redor para ver se alguém estava vendo. Já que estávamos

cercados por pilhas de álbuns mais altas que nós, não havia problema.

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— Sim, por favor. — Em sincronia, estendemos as mãos devagarinho em um arco até elas se encontrarem. Prendi um risinho enquanto batíamos as palmas no ar e as mantínhamos ali. A mão dele era macia e quentinha, como a pulseira de couro no meu pulso.

— Maneiro. Ele riu. Nossas mãos baixaram e senti uma onda de emoção. Aquilo estava

realmente acontecendo! Minha língua presa estava melhorando! E logo os meus óculos sumiriam. As coisas finalmente estavam entrando nos eixos. O Universo estava sorrindo para mim, reintegrando-me ao meu lugar de direito. No topo. Com Molly como meu braço dir…

Molly. Mentalmente, dei um tapa na testa. Hora de começar a Fase 3. — Vamos lá. — Zander segurou minha mão e me levou pelo labirinto de

discos. — Você precisa ouvir este álbum. Ah. E este. Ele fez a curva e parou do nada. Quase tropecei nele. — O quarto à esquerda — murmurou para si mesmo, ajoelhando-se em

frente a uma das pilhas. Seus lábios se moviam devagar enquanto ele contava em silêncio de baixo para cima. Ele olhou para mim: — Uma mãozinha, por favor?

Segurei a pilha, e ele puxou com cuidado um disco de capa verde lá da base. — Aaaahhh… peguei. — O que é ifo? Ah, não. A língua presa estava de volta. Enruguei a testa, desapontada. — Não se cobre tanto. — Ele me cutucou. — Vai levar um tempo.

Provavelmente vai ficar indo e vindo durante um tempo. — Afo que fim. Seu rosto ficou sério de repente, e ele ficou de pé. — Você AFA? — disse ele. — Ora, eu tenho FFFERTEFFFA que VOFFFÊ vai

falar FEM LÍNGUA PREFFFFFFA FFFFFFUPER-rápido. — Para com ifo, Fander. Corei, cutucando ele de volta. — OHHH, KAYYFEE — gritou ele. Espere aí, ele estava começando a cantar? — “Ei, dama do rock, Não feja tão tímida afim, É o que fala efe cara do rock! Enlouquefa e diga fim. Kayfe é a dama do rock!”

Ele estava empapando os discos com uma chuva de saliva e tive que sair da frente para não ficar ensopada.

— FANDER! — Dei uma bronca de mentirinha, caindo na gargalhada. — Cufpir em público é FIMPLEFMENTE inafeitável. Além do maif? É importante se importar com o que of outrof acham.

Ele baixou a cabeça fingindo vergonha. — Defculpa.

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— Que ifo não fe repita. Enxuguei as lágrimas com as costas da mão. — Enfim. — Ele acenou para o álbum verde à minha frente. — Esses caras

são hard-core. Minha banda preferida de todos os tempos. Acoustic Rebellion. Já

ouviu falar deles? Balancei a cabeça. — Eles estão no iTunes? — Vou fingir que não ouvi isso. — Ele enfiou o álbum nas minhas mãos. —

Na verdade, eles vão tocar aqui na sexta-feira. No Pritzker Pavilion. — E você vai?

Dei uma olhada no nome das músicas no verso. — Com certeza. Comprei meu ingresso há meses. — Ele parou. — Você vai

gostar da faixa cinco. Mas é o tipo da coisa que você não vai ter a experiência completa a menos que assista ao vivo, sabe?

— Ah! — Meus olhos se desviaram do disco e encontraram os dele. Eu estava vivendo aquilo que eles chamam de “momento de iluminação”. Observe e aprenda. — Aimeudeus! — Bati com a palma da mão na testa. — Vofê falou ACOUFTIC Rebellion?

Ele fez que sim. — Eu sabia que já tinha ouvido o nome em algum lugar. É a banda preferida

de Molly Knight! Impressionante, não é? — Sério? — Embaixo da franja azul, a testa dele se enrugou. — Porque ela

não parece muito ser do tipo que ouve… — ele parou, como se estivesse tentando lembrar a resposta em uma prova — … coisas… profundas.

— Ah, mas é, totalmente — rebati. — Molly adora… coisas… profundas. Especialmente Acouftic Rebellion.

— É mesmo? Ele estreitou os olhos. Assenti com tanta veemência que os óculos escorregaram até a ponta do

meu nariz. — Ela pode não parecer muito profunda e alternativa, mas no fundo ela…

é… super.

Respirei fundo. Esse era o momento. A hora de vender o peixe. — É meio triste, sabe, porque as pessoas que não têm a mente aberta às

vezes pensam que ela é meio avoada ou louca por meninos ou sei lá. Fingi pesquisar a pilha de discos diante de mim, mas fiquei observando-o

com o canto dos olhos. — É. Gente assim é uma droga. — Ele balançou a cabeça devagar. — Mas é verdade. Quero dizer, ela tem todos os discos deles e… — Eles só lançaram um. — Ela tem o disco deles, e ela segue a banda no Twitt… A expressão no rosto de Zander endureceu. — … na Rolling Stone o tempo todo. — Uau!

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A ausência de rugas na sua testa indicava que ele estava comprando aquilo. Então armei o bote.

— Aliás, pensando nisso, vocês dois têm muito em comum — comentei, pensativa. — Talvez vocês devessem sair.

— Em comum? — repetiu ele, passando batido pela minha indireta. — Tipo o quê?

— Tipoooo… — Inclinei a cabeça, botando o cérebro para trabalhar. — Os dois têm cabelo colorido. Os dois curtem rock‟n‟roll, são totalmente afifi… — E tentei de novo: — Afifi…

— Aficionados? — disse ele com um sorriso.

Mas não era um sorriso maldoso. Assenti. — É. Ela sabe todas as curiosidades sobre rock. — Ela já foi ao Salão da Fama do Rock and Roll? Em Cleveland? Zander estava se animando. — JÁ! — Dei um tapa no braço dele. Eu não ficava tão empolgada assim

desde que fui com as meninas ao Sugar Daddy depois do período de provas no semestre passado. — Salão da Fama do Rock and Roll! — O Shopping

Principal! — Em Cleveland! Minneapolis! — Cara. Eu sempre quis ir lá. — Cara. Você devia falar com Molly — aconselhei. — É um dos assuntos

preferidos dela. Zander ficou quieto por um segundo. — Acho que ela não liga para o que as pessoas pensam sobre as roupas dela.

Isso até que é legal. — Não é? Vamos! Chame Molly para sair com você! Você é minha última esperança! — Tá, tudo bem. Talvez eu a chame para ir ao show comigo — disse,

corando de repente, como se eu tivesse acabado de flagrá-lo escrevendo no seu diário sobre amor… ou com uma cueca de unicórnios. — Então… melhor a gente ir para o ensaio.

Resisti à tentação de jogar os braços ao redor dele. Quem diria que Zander Jarvis seria meu bilhete premiado de volta ao topo? Eu mal podia acreditar que aquilo estava mesmo funcionando, mas, se as coisas corressem como planejadas, eu estaria de volta ao ar na próxima semana. Nada de reprises. Só o meu jornalismo contundente, como foi feito para ser visto. Por mim, sem língua presa.

— É. O ensaio — falei. Completamente calma, como se este fosse apenas mais um dia. Segui Zander pela calçada. Cada passo que eu dava me levava mais para

perto da antiga Kacey Simon.

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Dezenove A HORA DA VERDADE Quarta-feira, 3h44 da tarde

Decidi não revelar logo de cara para Molly que Zander estava planejando chamá-la para sair. Deixei a expectativa enlouquecê-la, só um pouquinho. Pela primeira vez em uma semana eu realmente estava me divertindo ao vê-la pelos corredores e na chamada. Havia algo na expressão dela. Por trás das camadas de desdém e de orgulho havia algo familiar nos seus olhos: uma pontinha de carência.

Além do mais, eu tinha coisas mais importantes a fazer do que mandar mensagens para Molly. Minha mãe havia ligado na hora do almoço para dizer que tinha recebido uma ligação do consultório do Dr. Marco.

— O que ele dif… disse? — perguntei, com meu estômago revirando à simples menção do nome dele.

— Apenas que ele queria ver você de novo. Marquei uma consulta para hoje à tarde. — Pausa. — Você tem usado o colírio, não é, Kacey Elisabeth?

— Mãããe! — reclamei. Mas a sensação de inquietação havia aumentado, como se houvesse uma

manada de elefantes fazendo uma dancinha no meu estômago. E se o Dr. Marco tivesse errado o diagnóstico da minha infecção? E se fosse alguma doença horrível que desfigurava a córnea e me deixaria permanentemente cega? E se meus olhos estivessem estragados para sempre e eu tivesse que usar óculos para o resto da vida?

Quando cheguei ao consultório do Dr. Marco, depois do colégio, tive que aumentar o volume do meu iPod para afastar os “E se” do meu cérebro. Estranhamente, a fusão poderosa de punk e classic rock da faixa do Acoustic Rebellion que eu tinha gravado, “Sound Mutiny”, me ajudou a relaxar. Sentei na cadeira de exames e limpei um floco de neve da minha jegging escura.

O dr. Marco apareceu na entrada com seu jaleco falso e murmurou algo que não consegui entender.

Tirei os fones dos ouvidos e deixei-os cair no colo enquanto o guitarrista do Acoustic Rebellion dava início a um solo muito louco. Era a parte preferida de Zander. Pausei e fiz uma nota mental para avisar a Molly que ela devia decorá-lo. Pelo menos eles teriam alguma coisa sobre a qual conversar.

— Desculpe, o que você disse? O dr. Marco riu e fechou a porta atrás de si. — Eu disse que primeiro você quase fica cega e agora está tentando ficar

surda também? — Hilário — respondi, enfiando o iPod na bolsa. — Embora, tecnicamente,

eu só tenha ficado cega porque você me deu lentes horrorosas. Abri um sorriso para que ele soubesse que eu estava brincando. Mais ou

menos.

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— Você colocou aparelho desde a última vez que veio aqui! Elásticos legais. Rosa-shocking?

Ele se sentou ao meu lado. Meu sorriso se transformou em uma carranca. — Minha filha odeia usar aparelho também. — O dr. Marco tirou meus

óculos e os apoiou sobre os joelhos. Sua colônia praiana hoje estava extraforte, cheirando a areia, óleo de coco e uma leve nota de peixe morto. Mas contanto que ele me dissesse que eu poderia voltar a usar lentes um dia, ele poderia ter o cheiro que quisesse. — Você tem usado o colírio dessa vez?

Assenti.

— Duas vezes por dia. Ou quatro. Tanto faz. — Bom. — Ele tirou a lanterninha do bolso e ergueu a cadeira. — A luz vai

ser forte, mas preciso que você mantenha os olhos abertos para mim. Abri bem os olhos, encarando as rugas na testa do dr. Marco. Dentro das

botas de camurça cinza, estiquei os pés. E então os flexionei. Estiquei. Flexionei. Eu me preparei para o temido tsc.

Mas em vez disso veio um som raro. — Huuuumm. O Dr. Marco passou a lanterninha do olho esquerdo para o direito. — Juro que usei o colírio. — Batuquei com as pontas dos dedos nas pernas

em um tempo quaternário. Enfim, o Dr. Marco desligou a lanterna e se afastou. Ele apertou um botão

na lateral da cadeira, retornando-a à posição normal. — E então… como estão as coisas? Estica. Flexiona. Estica. Flexiona. Ele me encarou pelo que pareceu um intervalo comercial inteiro e então

abriu um sorriso. — Está tudo ótimo! Meu corpo relaxou no mesmo instante, como se eu tivesse acabado de entrar

em uma banheira mineral no spa The Drake. — É mesmo? — É — confirmou ele. — Você vai poder voltar para as lentes no sábado.

— No sábado! U-hu! — gritei, sentando sobre as mãos para não abraçar meu oftalmologista.

Ele abriu meus óculos e os devolveu para mim. Quando os coloquei no rosto, tudo parecia mais claro e nítido. Sorri. Hoje era o primeiro dia do resto do sétimo ano. Eu tinha certeza. Hoje à noite eu ajudaria Paige a escrever o melhor discurso de campanha da história. Amanhã eu apareceria na escola com a língua presa quase sumindo. Na sexta Zander iria fingir estar interessado em Molly durante o show. E no sábado, eu estaria de volta ao palco. Uma reviravolta completa, meu bem. Consegui reunir todos os elementos básicos de um filme feito para tevê.

— Diga a sua mãe que mandei lembranças. O Dr. Marco sorriu com gentileza e então saiu.

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Meu rosto estava começando a doer, e então percebi que tinha um sorriso estampado na cara. Eu mal podia esperar para mandar uma mensagem para Paige e Zander. Ou talvez eu pudesse surpreender Paige quando aparecesse para trabalhar no discurso e mandar uma foto para Zander mais tarde. Tantas opções! Tão pouco tempo!

— TRÊS DIAS, MEU BEM! — comemorei, pulando da cadeira enquanto a porta se fechava com um clique.

Três dias. Setenta e duas horas. E então, finalmente, eu poderia voltar a ser eu mesma.

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Vinte NÃO FOI O QUE VOCÊ DISSE,

FOI O JEITO COMO VOCÊ DISSE Quarta-feira, 7h15 da noite

— Vocês querem a verdade, Marquette? — desafiou Paige. — Bem, com certeza não será Imran Bhatt que vai dá-la a vocês.

Ela caminhava de um lado para o outro diante da minha escrivaninha cor-de-rosa transparente, pisando em embalagens de comida, rolos de fita-crepe verde e um monte de pôsteres por terminar incentivando os eleitores com um Vá de Greene. Na parede atrás dela a tevê exibia um telejornal no mudo.

— Diga “meu oponente” — interrompi do canto da cama. — Fenão as pessoas vão ficar com o nome de Imran na cabeça. — Abri meu biscoito da sorte e dei uma olhada na tirinha de papel dentro dele.

SUA SORTE ESTÁ PRESTES A MUDAR. Coloquei o papelzinho com cuidado na mesa de cabeceira, ao lado do porta-

retratos com uma foto minha e da minha irmãzinha no dia em que ela nasceu. — Certo. — Paige pegou uma canetinha verde da escrivaninha e fez uma

anotação na palma da mão. — Meu oponente acha que vocês não aguentam a verdade.

— Uuuuuuuuuuu pro oponente. Ella pulou na cama, sacudindo um pôster pintado a dedo que declarava sua

lealdade à Geração P. As molas do colchão reclamaram por causa do peso.

— Ok. Continue. Peguei um vidro de esmalte Violeta Vivaz do lado do despertador, arregacei

a calça do pijama bege e comecei a pintar as unhas dos pés. — Mas com Paige Greene você tem uma candidata que não faz rodeios, com

uma carreira política que fala por si só. Suas narinas se dilataram de tanta paixão pela política. Acho que consegui

até ver uns pelos do nariz dela. — Uuuuhu! — comemorou Ella, pulando ainda mais. Os óculos de leitura

colados com fita-crepe caíram na cama. — Então escolha a candidata para presidente do corpo estudantil que SABE

que vocês aguentam a verdade. Vá de Greene. — Aaaaaaaaê! Ella riu enquanto dava um golpe de caratê no ar, seus cachos suados

cobrindo o rosto. Os ombros de Paige relaxaram e ela deu uma batidinha com a pilha intocada

de cartões contra a coxa. — E aí? O que você achou? — A verdade? — Observei as sobrancelhas de Paige se arquearem

levemente sobre a armação de plástico, na expectativa. O discurso estava… bom. Bom o suficiente, acho. E Paige vinha se dedicando a ele havia uma hora,

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enquanto eu fazia algumas edições muito necessárias ao vídeo de campanha para o vadegreene.com. Então, qual o problema de dizer o que ela queria ouvir? — Perfeito. Eu não teria feito melhor.

O ponteiro dos segundos no meu relógio soou alto, como se estivesse anunciando minha prisão perpétua por falha de conduta jornalística.

— Perfeito? — repetiu Paige incrédula. Seus lábios se apertaram em uma linha fina enquanto ela vasculhava os cartões de anotações em um gesto de acusação. — Nenhuma observação. Nenhuma crítica. Nada.

— Nada — ofeguei, sentindo o coração disparar. — Está ótimo. Olhei sobre o ombro dela, fingindo examinar os diagramas de estratégia da

campanha e os slogans coloridos presos na parede entre minha escrivaninha e a cabine de fotos no canto do quarto.

— Hum. — Paige perambulou até a porta e apertou o interruptor próximo às prateleiras presas à parede. Uma luz branca me iluminou. — Então… nada no discurso incomoda você? Sabe, como uma jornalista de tevê eu imaginava que você teria pelo menos alguns comentários a respeito do…

— QUANDO VOCÊ FICA EMPOLGADA, SUAS NARINAS SE ABREM QUE NEM AS DA PIGGY! — explodi. — Desculpe, mas NÃO é natural. Pronto.

Meu dedo do meio tremeu involuntariamente, borrando o esmalte. Droga. Estragou tudo.

— EU SABIA! — gritou ela de volta. Ella correu para perto de mim, enterrando a cabeça no meu colo. — E quando você fala a parte do “Vocês não aguentam a verdade”, parece

aquele velho maluco do filme, o que me assusta muito mais que as narinas da Piggy.

Eu me joguei na cama e encarei o teto. Pronto. Eu já podia respirar de novo. Ella ficou boquiaberta. Paige estava em silêncio. Fiquei olhando para os

adesivos do sistema solar que brilham no escuro. — Fala alguma coifa — ordenei a Júpiter. — Você não entende, não é? O piso do sótão rangeu, e Paige sentou na beirada da cama. Ela prendeu o

cabelo atrás da orelha, revelando brincos roxos nos quais eu nunca havia reparado.

— Não entendo o quê? Ela se jogou para trás, a cabeça afundando na pilha de travesseiros na

cabeceira da cama. — Você não entende o problema de sempre dizer tudo o que você pensa. Tirei os óculos e massageei as têmporas. — Paige. Jornalistas de verdade…

— … não conseguem furos jornalísticos se forem cruéis com todas as fontes — disse Paige devagar. — Você precisa descobrir um jeito de ser honesta com as pessoas sem fazê-las odiarem você por isso.

— Antes as pessoas não ligavam para o fato de eu ser honesta — observei. — Elas ligavam, sim. Só que antes tinham medo de você. Paige virou-se de lado e olhou para mim. A estática dos travesseiros fazia

seu cabelo flutuar ao redor do rosto. Procurei nos olhos dela por um sinal de

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que estivesse brincando. Mas seu rosto tinha uma expressão séria. Senti uma pontada dentro de mim. Culpa? Remorso? Comida chinesa?

— O seu comentário da Piggy — continuou. — Doeu. — Sinto muito. Dei de ombros. Era a verdade. — Não, não sente. Mas deveria. Foi muito cruel. Principalmente quando

você poderia ter dito algo como: “Paige, seu entusiasmo é muito legal, mas talvez você devesse baixar um pouco a bola.”

Suspirei e cocei o nariz. — Paige. Seu… entusiasmo é muito legal, mas talvez você devesse baixar um

pouco a bola. As palavras soaram estranhas na minha boca. Fora de lugar, como se eu

tivesse mordido um monte de tofu quando na verdade havia pedido filé-mignon.

— Tá. Vamos tentar de outro jeito — disse ela, se sentando. — Isso vai doer, mas é para o seu próprio bem. — Ela fechou os olhos e engoliu. — Eu… tenho algo para dizer para você. Desde a minha campanha para presidente no quinto ano você tem sido tão cruel que cheguei até a evitar ser vista com você.

— O quê? — Levei um susto e puxei minha almofada rosa. — Isso é mentira. Eu é que parei de andar com você!

Ela pulou da cama e correu para a escrivaninha, agarrando a beirada da bancada.

— Não. Eu estava com vergonha de ser vista com você. — A voz dela suavizou enquanto os nós dos dedos ficavam brancos de tanto apertar a madeira. — Cheguei até a contar para alguém que a sua mãe me pagava para andar com você até o colégio, porque as pessoas tinham medo demais para serem suas amigas.

Ella se virou para mim, com os olhos arregalados como dois pires. Eu podia sentir o rosto ficando vermelho e queria cobrir as orelhas de Ella com as mãos. Mas era tarde demais.

— Tudo bem. Já entendi. Ser mais gentil. Tanto faz. A gente pode seguir em frente? — respondi rapidamente.

Eu odiava quando Ella olhava para mim daquele jeito.

— Ainda não. — Paige colocou as mãos nos quadris. — Porque eu poderia ter dito tudo isso assim: “Kacey, fiquei muito magoada no quinto ano quando você não me apoiou depois que eu perdi as eleições. Aquilo me fez sentir como se não fôssemos amigas de verdade. Vou sentir muito a sua falta, mas simplesmente… não posso andar com alguém que se importa mais com popularidade do que com amizades.”

Senti minha garganta se apertando. Por trás dos óculos, os olhos de Paige se curvaram para baixo.

— Paige… Parei e engoli. De repente, fui invadida por uma necessidade de voltar no tempo e provar

que Paige estava errada. De mostrar que todos os meus conselhos, todas as vezes em que disse a verdade, tinha sido para ajudar os outros, não para

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magoá-los. A única diferença entre mim e os outros era que eu dizia o que pensava na cara das pessoas. E se eu aparecesse na escola, como Molly fez uma vez, usando botas cobertas de pelúcia rosa, eu iria preferir ouvir de uma amiga e não descobrir mais tarde que todo mundo estava falando sobre o cadáver de Muppet que eu carregava nos pés.

Porque a verdade é que, se alguém tivesse me chamado em um canto quando eu era mais nova e tivesse dito “Olhe, Kacey, só para você saber, um dia seu pai vai fazer as malas e vai embora”, então talvez eu não tivesse sido pega de surpresa e me sentido tão idiota e destruída quando ele partiu. A verdade pode doer, mas sempre é melhor saber. Sempre.

— Paige… — comecei de novo. E minha voz saiu como um sussurro. Lá embaixo, uma porta bateu. — Meninas? Minha cabeça se voltou para a escada. — Mãe? — Minha voz saiu sem fôlego e rouca, como se eu tivesse corrido da

Praça Central até o estúdio e voltado. Ouvi o baque de coisas sendo colocadas no chão do corredor de entrada e

então passos leves se aproximando. Dezessete. Dezoito. Dezenove. Mamãe colocou a cabeça para dentro do sótão e sorriu; seus olhos estavam

com uma maquiagem pesada. Eu sempre estranhava quando ela não tinha tempo de tirar a maquiagem do set antes de voltar para casa. Levava um tempo para encontrá-la por baixo de tantas camadas.

— Como estão as coisas na sala de operações? — perguntou ela. — Tudo bem. Olhei para Paige e tentei sorrir. Meu rosto parecia duro, como se eu tivesse

chorado por horas. — Olá, sumida. — Mamãe abraçou Paige de lado. E então se inclinou em

direção ao pé da cama e beijou Ella na testa. Finalmente era a minha vez. Ela cheirava a perfume e café ruim. — Preparando-se para uma boa luta, não é?

Ela se sentou na beirada da cama e correu os dedos pelo meu cabelo, que havia minguado de roqueira estilosa para pintinho molhado.

— Quer um broche da campanha, Sterling?

Como Paige cresceu na casa do lado, ela sempre teve permissão para chamar a minha mãe pelo primeiro nome. Ela pegou um broche da pilha na escrivaninha e jogou na direção dela.

— Achei que você não fosse oferecer. — Mamãe pegou o arremesso curto de Paige e colocou o broche na blusa cor de creme sem ligar para os buracos que fazia na seda. — Como ficou? — Ela coçou minha cabeça devagar, do jeito que fazia quando eu era pequena e não conseguia dormir.

— Ótimo. Quem sabe você não poderia usar na tevê? — sugeriu Paige. — Isso não seria muito neutro, não é? — perguntou mamãe, sorrindo. — E a

minha reputação de jornalista imparcial? — Ah! — Paige deu de ombros. — É verdade. Mamãe engoliu um bocejo.

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— Certo, meu bem — disse, puxando Ella para o seu colo. — Está na hora. — E tirou um pedacinho de plástico verde do cabelo dela. — Já passou da hora, na verdade.

— Mas eu quero — Ella bocejou no meio da frase — assistir ao programa. E esfregou os olhos. — Amanhã — prometeu mamãe. Ela ergueu minha irmã com um gemido e

carregou-a para fora do sótão. — Boa noite, meninas — disse, descendo a escada. — Não fiquem acordadas até tarde.

— Boa noite — respondemos em uníssono. — Acabei de ter uma sensação esquisita — disse Paige, antes que eu pudesse

pensar em algo para falar. — Tipo um déjà vu ou algo assim. — Seus olhos caíram sobre a pilha de discos na minha escrivaninha e ela pulou e começou a examiná-los. — Você se lembra de quando eu passava a noite aqui quando seus pais saíam? E seu pai trazia petiscos de festa em um guardanapo e…

Ela parou e mordeu o lábio. — Paige. — Tirei os óculos e esfreguei os olhos. — Tudo bem. Por que as pessoas não entendiam que a única coisa pior do que não ter um

pai era a sensação de que eu nem sequer podia mencioná-lo? Eu adorava as noites em que Paige dormia aqui, e papai esquentava canapés em um prato de papel e a gente comia no sofá da sala. E mamãe tirava os sapatos e eles ficavam juntos, tomando taças de vinho.

— Onde você arrumou esses discos? Paige mudou de assunto depressa, e eu não a impedi. — Em uma loja de discos em Andersonville. — Bocejei. — Ah, coloca o da

Joni Mitchell. O toca-discos está no chão, perto da cabine de fotos. — Então o encontro de Zander e Molly está certo? Paige ajoelhou no chão perto da cabine, levantou a agulha do velho RCA do

papai, o que eu tinha acabado de resgatar, e tirou o LP da capa gasta. Ele arranhou por alguns segundos antes de sons calmos e baixos da primeira faixa tomarem conta do quarto.

— Ele vai convidá-la amanhã — acenei com a cabeça. O que me fez lembrar de algo. Peguei o celular na mesinha de cabeceira e

digitei uma mensagem para Molly.

AMANHÃ DE MANHÃ, UM GURU DO ROCK LOCAL FAZ UM SOM COM A NOVA VOCALISTA. ME ENCONTRE NO CORREDOR DOS ARMÁRIOS P/ + DETALHES. 7:15 — TENHO QUE ESTAR NO ESTÚDIO ÀS 7:30.

— Legal — comemorou Paige. — Ah, e falei que o Carlos quer que eu volte para o programa amanhã de

manhã? — Bocejei como se não fosse nada de mais. — Ele mandou uma mensagem e disse que a audiência está baixa e que ele tinha ouvido dizer que minha língua presa já tinha melhorado, então…

— Está vendo? Eu disse que ia dar tudo certo — disse Paige sabiamente. — E você vai ser mais gentil, certo? Como falei para você?

— Deixe o telejornalismo com os especialistas, Paige.

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Meus olhos pesaram. Eu só tinha ficado longe do programa por uma semana, mas parecia que havia anos desde que eu me sentara atrás daquela mesa.

— Kacey? — Paige? — Está realmente funcionando. O plano. — Está. Com os olhos ainda fechados, abri um enorme sorriso metálico.

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Vinte e um JUNTAS DE NOVO, E É TÃO BOM

Quinta-feira, 7h17 da manhã

Bem cedinho pela manhã encontrei Molly sentada encostada no seu armário e com cara de quem havia acampado do lado de fora do Hemingway durante a noite toda. Seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo desgrenhado e o delineador preto com glitter estava borrado, como se ela tivesse dormido com ele acidentalmente. Isso me fez lembrar a vez em que ela apagou às dez da noite quando dormiu lá em casa, e Nessa, Liv e eu maquiamos metade do seu rosto antes de ela acordar e enlouquecer. As fotos da cabine naquela noite foram impagáveis. E estavam pregadas no espelho do meu armário até a semana passada.

Eu não tinha muita certeza do motivo, mas diminuí o passo à medida que me aproximava dela. Eu não estava nervosa, tinha ensaiado tudo no caminho para o colégio. A forma como minha voz iria soar casual e sem a língua presa enquanto eu dava algumas dicas confusas a respeito de Zander. E meu visual “de volta ao topo” transmitia poder e controle: minha calça skinny mais apertada, as botas de montaria que Nessa havia me ajudado a escolher nas férias de inverno e o suéter de caxemira cor de creme com gola alta e botões assimétricos. Meu rabo de cavalo alto e apertado dizia que eu não estava para brincadeira.

— Kacey! Oi! Certo, conte tudo. Molly ficou de pé e limpou algumas camadas de maquiagem do rosto. A

faixa cor-de-rosa no cabelo estava desbotando, e seu louro natural começava a aparecer. Ela arregalou os olhos, clamando por ajuda.

— Oi. — Abri um sorrisinho. Pela primeira vez desde tudo o que acontecera entre a gente eu não quis estrangulá-la com aquela coleira cheia de tachinhas de metal. Algo na forma desamparada com que ela olhava para mim, esperava por mim, precisava de mim, me fez querer jogar os braços ao redor dela e apertá-la. Eu queria dizer que logo tudo ficaria bem. E então socá-la por tudo o que ela me fez passar. — Hum…

— Não! — disse ela, um tanto alto demais. — Espere. — As lâmpadas fluorescentes do corredor fizeram seu olhar parecer meio louco. — É ruim? — Ela se jogou na minha direção como se fosse me agarrar, mas então deu um

passo para trás. — Se for ruim, prefiro não saber. — Bem… — Eu sabia. — Ela recuou até os armários e encostou a cabeça contra a porta

de metal pintada. — Ele tinha que ser o único garoto do colégio que não me ama.

Deixei aquela passar. — Mols — disse calmamente, soltando minha bolsa no chão. — O quê?

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— Não é ruim. Eu me sentei no chão xadrez e dei uma batinha no azulejo ao meu lado. — Certo. — Ela deslizou pelo meu armário e se jogou no chão. Então virou a

cabeça e apoiou a bochecha contra o armário. — E aí? — Sorriu. — Comece do começo antes que EU. TENHA. UM. TROÇO! O que está ESPERANDO?

— Então, você sabe que estou na banda agora, não é? — Sei. Ela fungou, como se não sentisse nem uma pontinha de inveja. — Então, ontem, Zan… o Sr. Calça Skinny e eu estávamos dando uma volta

e fomos a uma loja de discos e…

— Nome? — Estação Vinil. Você conhece e adora a loja. Sua parte favorita é a parede

de Melhores Artistas Revelação, lá no fundo. — Certo. Seu olhar recaiu no meu pulso, onde uma pontinha da pulseira de Zander

aparecia por baixo do suéter. Puxei a manga até cobrir minha mão. — Enfim, enquanto a gente estava lá, ele… disse que estava pensando em

chamar você para sair. Certo, tomei algumas liberdades artísticas com a verdade. Paige tinha me

dito para ser mais gentil, não tinha? — Ele falou isso do nada?

Ela fez uma trança com a mecha cor-de-rosa desbotada, depois desfez e começou de novo.

— Hum-hum — respondi com os lábios fechados. — AiiiiiiimeuDEEEEEEEUSKacey! Você é o máximo! Ela quase me derrubou com um abraço gigante, imprensando a bochecha

contra a minha. — Ai! — Ri, cuspindo da boca um chumaço de cabelo com gosto de gel de

abacaxi. — Desgruda, sua doida! Mas ela continuava me apertando, esmagando os óculos contra minhas

bochechas. — Comece do início. Tipo, palavra por palavra. — Ela ficou de joelhos,

parecendo petrificada e emocionada ao mesmo tempo. — Ipsis litteris. — Não há muito a dizer — falei, segurando um sorriso. Eu nunca tinha visto

Molly tão empolgada por causa de um menino antes. Embora eu nunca tenha admitido em voz alta, o assunto meninos era o único sobre a qual ela entendia um pouco mais do que eu. O que fazia sentido se você pensasse a respeito, já que Molly tinha um meio-irmão na faculdade e um pai em casa. Para ser justa, eu não tinha aquele tipo de material de estudo. — Exceto que ele disse que achava você legal e… — Enfiei a mão no bolso da calça e peguei um gloss cintilante de pêssego que vinha usando para selar os lábios. — Aqui.

Ela riu e pegou o gloss, passando uma camada bem grossa. — E aí? — Aí eu disse que você era legal... quero dizer…

— Ah. Hum, oi.

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Molly estava tão ocupada me segurando e interrogando que nenhuma de nós percebeu que Zander estava andando na nossa direção, com um caderno nas mãos. Na parte de trás havia um adesivo que dizia Gente má é um saco.

Ficamos de pé. — Queria desejar boa sorte no programa de hoje. Ele olhou para a pulseira e sorriu. — Ah, obrigada. Cutuquei Molly na costela. Ela jogou o cabelo para trás. — Oi, Zander Jarvis de Seattle.

Sua voz era tão rouca quanto a da bisavó de Nessa, uma fumante de longa data com enfisema crônico.

Zander abriu um meio sorriso e então ergueu uma sobrancelha de leve para mim. Fiquei olhando para ele, mandando vibrações psíquicas para que a chamasse para sair.

— Er, oi… Molly… — Knight — ronronou ela. — De Chicago. — E aí, qual é? — perguntei depressa. Pergunte! Pergunte agora! — Na verdade, eu, er, queria falar com Molly — disse ele. — Eu, bem, ouvi

dizer que você é super fã do Acoustic… — É claro! — Molly se virou para Zander. — Eles são tão primais, tão… —

Sua voz falhou, como se ela estivesse distraída pelo rosto de Zander. — Eu diria que a banda é algo mais como… fora dos padrões — sugeri. Depois de ouvir o disco deles por doze horas seguidas eu tinha praticamente

todas as notas gravadas no cérebro. Os olhos de Zander se iluminaram, mudando de cinza para prata. — Não é? — perguntou Molly um pouco alto demais. Zander e eu nos viramos para ela. Ela piscou os olhos, e senti uma pontada

no estômago. Culpa? Raiva? Não. Era mais algo como… desconforto, ou sei lá. Ela e Zander não tinham nada em comum. Tudo o que eles podiam conversar era sobre como era um saco ter que esperar vinte minutos antes de lavar o cabelo depois de passar a tinta.

— Bom, tenho que ir para a chamada. — Zander passou os polegares pelas alças da mochila. — Mas queria saber se você topa assistir à banda no Pritzker amanhã depois da aula.

— No Pritzker? — Molly se apoiou na fileira de armários, pressionando a palma da mão contra o metal frio. — Fato.

— Hum… — Zander olhou para mim em busca de ajuda. — O quê?

— Ela topa — traduzi. — Beleza. — Ele olhou para o chão e coçou a perna esquerda com o tênis

direito. — Então... tchau. Lutei contra a vontade de comemorar dando um soco no ar. O plano estava

funcionando! As coisas começavam a voltar ao normal com Molly, minha língua presa havia desaparecido e em DOIS DIAS meus óculos também sumiriam. Meus óculos. Minha mão voou até o rosto para ter certeza de que eles

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ainda estavam lá. Ultimamente eu nem percebia — porque tinha coisas mais importantes com que me preocupar, não porque estivesse ficando habituada a eles.

— E então? — Eu me virei para Molly e ergui uma sobrancelha enquanto Zander se afastava. — Aqui é a Simon falando: você acabou de marcar um encontro!

Molly balançou a cabeça para trás e para a frente em um movimento curto e ritmado.

— Eu… não sei. Ela cruzou os braços. O armário ficou marcado com o suor da sua mão.

— Você não sabe… Como conversar com Zander sem a minha ajuda? Como liderar o grupo como eu

fazia? Como arranjar um hobby e se dedicar a ele? Balancei a cabeça para afastar os pensamentos cruéis.

— É que ele é… diferente dos outros caras. — Ela olhou para baixo e tudo o que eu podia ver eram seus cílios, cobertos com um rímel cor de ameixa. De repente ela parecia uma menina assustada que tinha se esquecido de pentear o cabelo e que por acaso mexeu na gaveta de maquiagem da mãe. — Eu não sei. Talvez não seja uma boa ideia.

Meu estômago revirou. Ela estava querendo um conselho meu, precisava da minha orientação. Exatamente como nos velhos tempos.

— Você só precisa de umas dicas até amanhã, só isso. Dicas. Conselhos. Meus. A empolgação súbita que senti não tinha nada a ver

com o chocolate quente que tomei no café da manhã. Alguém precisava de mim de novo. Eu era necessária.

— Você tem que me ajudar — implorou ela. — Pode ir lá pra casa depois da aula?

— Tenho ensaio da banda. — Dei de ombros, virando na direção do armário para esconder um sorriso. — Você não iria querer que eu desse um bolo no seu paquera, não é?

Eu podia sentir seus olhos em mim enquanto girava os números no cadeado e abria a porta. Na verdade, eu podia sentir vários olhos sobre mim. Estava chegando a hora da chamada, e os corredores estavam cada vez mais cheios e barulhentos.

— Então depoooois! Achei meu livro de francês debaixo dos tênis de ginástica, junto com a

chapinha para emergências. — Na verdade, eu tinha que, hum… — fechei a porta — encontrar Paige

depois do ensaio, para ajudar com a campanha dela.

— Por favor. — Molly se enfiou entre mim e o armário, colocando as mãos nos meus ombros. — Paige Greene?

Olhei ao redor, em busca de Paige. Para falar a verdade, eu bem que gostaria de gastar umas horinhas brincando com roupas e maquiagem, em vez de ensaiar um debate com Paige sobre assuntos como ter opções de almoço vegetarianas e sobre ser inconstitucional forçar as pessoas a jogar queimada.

— Mas eu prometi a ela.

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— Kacey. Sério? Eu preciso — os olhos de Molly se fixaram na minha orelha esquerda — disso.

Não pude evitar um sorriso. — É, você precisa — disse rispidamente, tirando-a da minha frente com um

empurrãozinho de brincadeira. — E sabe do que mais você precisa? Parar de usar esse delineador preto. Parece que você está querendo virar uma Kardashian.

Quando começamos a caminhar pelo corredor juntas, Molly passou o braço pelo meu. Em meio ao caos da manhã, um caminho se abriu diante de nós à medida que íamos até a sala de Sean. Fechei os olhos com força e abri de novo,

quase com medo de que isso fosse um sonho. Mas era a minha vida voltando ao normal.

— Ah, quase esqueci — disse Mols. — As meninas vão dormir lá em casa depois do show amanhã. Certo?

— Certo. Preciso ir para o estúdio. Primeiro programa de volta. — Um tremelique nervoso percorreu meu corpo. Será que era a volta ao programa que estava me deixando nervosa? Ou era a ideia de voltar a andar com as meninas?

— Boa sorte, Kacey. — A doçura nos olhos de safira de Molly provavam que ela estava sendo sincera.

— Obrigada. Talvez fosse meu sexto sentido, me alertando de que as coisas estavam

voltando aos seus devidos lugares. De que, em breve, nós quatro estaríamos juntas de novo.

Sem qualquer aviso, uma dúvida cobriu meus pensamentos. Afastei a preocupação da mente. Afinal, meu sexto sentido nunca havia se enganado antes.

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Vinte e dois É COMO ANDAR DE BICICLETA

Quinta-feira, 7h43 da manhã

— Precisei pegar uma carta antiga dos nossos arquivos — disse Carlos enquanto eu ocupava a cadeira de âncora a menos de um minuto para ir ao ar. Evitando meus olhos, ele me passou uma folha de papel azul-bebê.

— Não recebemos nenhuma carta esta semana? Um dos câmeras bufou por trás do seu tripé. Meu pulso acelerou. — O quê? Qual o problema? — Nada — respondeu Carlos depressa. — Recebemos cartas. É só que… não

dá para usá-las. — Só esculhambação — explicou o câmera Número Dois. — Esculhambando o canal. — Carlos ainda se recusava a fazer contato

visual. — Gente idiota. — Que tipo de retardado não tem nada melhor para fazer do que escrever

cartas para esculhambar o canal? Minha risada foi um pouco alta demais, e Carlos recuou de mansinho. O

restante do estúdio estava em silêncio, mas não do jeito habitual. Até os câmeras de Um a Quatro pareciam nervosos, como se estivessem prontos para cortar a filmagem se eu começasse a falar com a língua presa de repente.

— Certo, gente. Temos um programa a fazer. Essa é a sua, Simon, disse a mim mesma. Afastei a cadeira da mesa e girei

uma vez. Mas, em vez de dar volume aos cabelos, fiquei apenas tonta. Por baixo da mesa apertei a pulseira no meu pulso esquerdo. E aquilo me confortou quase como se Zander estivesse ali, torcendo por mim.

— Trinta segundos para entrar no ar — declarou Carlos como se estivesse anunciando a própria morte. Dependendo de como fosse o programa, talvez ele estivesse anunciando a minha morte. — Você não vai dar uma olhada na carta? — perguntou, parecendo mais uma ordem do que uma dúvida.

Balancei a cabeça com vontade. — Precisamos de energia nova aqui — insisti. — Hoje vou improvisar. — E

virei o papel para não me sentir tentada a ler. — Ótimo — respondeu Carlos desanimado, recostando-se na cadeira de

diretor. — Alguém sabe onde está Abra? — Laringite — respondeu o câmera Número Três. — Kacey vai ter que

trabalhar dobrado hoje — falou, como se eu não estivesse ali sentada bem diante do seu nariz.

— Que beleza. Carlos bateu a cabeça na parede em ritmo lento e agonizante. — CAR-LOS. — De repente enrijeci, sentindo-me mais na defensiva do que

nervosa. Eu não podia forçá-lo a olhar para mim, mas ele não podia me impedir

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de olhar feio para ele. De jeito nenhum eu ia ficar envergonhada por causa de um esquentadinho que usava calça jeans passada a ferro e camisa engomada abotoada até o pescoço. — Quem foi que ganhou prêmios M Marquette em todas as categorias possíveis este ano, exceto a de Jornalista Iniciante?

— Você — bufou Carlos, cruzando as pernas. — Porque… — continuei. — … você não é uma iniciante. — Exatamente. — Alguém acendeu as luzes, e ergui a cabeça ligeiramente,

deixando que elas aquecessem meu rosto e me energizassem. — Então acho que você deveria confiar um pouquinho em mim.

Carlos abriu a boca para discordar. Mas eu ainda não havia terminado. — E talvez, em vez de ser tão negativo, você podia fazer o seu trabalho e

dirigir o programa. A menos que esteja mais interessado em achar uma nova atividade extraclasse. Quem sabe um historiador do Clube de Matemática? — Apertei o rabo de cavalo e ajeitei os óculos. — Ouvi dizer que eles se fantasiam de seus matemáticos favoritos para o Dia das Bruxas.

— E ela está de volta! O câmera Número Dois arregalou os olhos. — Sei disso. — Abri um sorriso. — Agora, gente, hora de começar o SHOW! Carlos se endireitou na cadeira e ajeitou o headset. — Certo — fungou. — VAMOS LÁ! Em cinco, quatro… Tremendo com a expectativa, dei uma olhada no roteiro e encarei

profundamente a lente da câmera diante de mim. Mas algo se moveu perto das portas no fundo do estúdio, chamando minha atenção.

— Três, dois… Paige. Ela havia entrado escondido e estava de pé junto às portas. E fez um

sinal de positivo com o polegar, abrindo um sorriso enorme. Um. Carlos assinalou com o indicador erguido, e abri meu sorriso Simon,

com aparelho e tudo. — Bom dia, Marquette. E bem-vindos a esta edição de Simon Falando. — Juro

que ouvi uma trilha sonora orquestral em algum lugar ao fundo. O tipo que tocaria nos filmes quando a heroína (eu) supera obstáculos trágicos e inimagináveis para dar uma lição em todo mundo enquanto sua parceira nerd

fiel (Paige) comemora da arquibancada. — Eu sou Kacey Sssssimon, e nós do Canal M gostaríamos de nos desculpar pela interrupção do nosso programa semana passada. Vocês têm a minha palavra de que isso não se repetirá.

Dei uma olhada no roteiro. As palavras estavam claras e nítidas, mesmo com o papel tremendo nas minhas mãos.

— A carta de hoje é de Saco de Pancada na Educação Física. Saco de Pancada escreve: “Querida Kacey, desde que comecei a estudar aqui tenho passado por momentos muito difíceis. Os outros alunos não são legais, principalmente se você for novo ou diferente…”

Minha voz falhou na palavra diferente, e as palavras se embaralharam diante de mim, como se eu estivesse sem óculos. Freneticamente, procurei o ponto em que tinha interrompido a leitura.

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— Hum… “principalmente se você for novo ou diferente. E estou vivendo um pesadelo na educação física. Sempre sou o último a ser escolhido para o time e na semana passada alguém roubou meus tênis e meu short, então eu tive que fazer um quilômetro e meio de cross-country de meias e com a bermuda de praia do Bob Esponja do meu irmão. Chegaram até a postar uma foto no Facebook.”

Engoli uma risada. Não é engraçado. Lembre-se do YouTube. Lembre-se do YouTube.

— “Quero mudar de escola de novo, mas minha mãe não deixa. O que posso fazer para me adaptar?”

No instante em que parei de ler, todo o estúdio pareceu mergulhar no silêncio. Paige me encarou com expectativa lá no fundo, provavelmente esperando que eu desse um abraço virtual no pobre coitado e dissesse que ia dar tudo certo. Que ele seria o cara mais popular da escola antes do final do semestre. Mas eu não podia fazer aquilo, podia? Mentir para o menino só para fazê-lo se sentir melhor?

Agarrei o roteiro com tanta força que pude ouvir o barulho do papel amassando. Não. Eu era uma jornalista. E das boas. E não podia sacrificar meus

princípios porque Paige achava que era o que eu devia fazer. Meus olhos se voltaram para a câmera. — Querido Saco de Pancada — comecei devagar. — Em primeiro lugar, não

se sinta mal por causa do episódio com a bermuda. Minha irmãzinha fica uma graça com o pijama do Bob Esponja. — Fiz uma pausa e balancei a cabeça lentamente para a câmera. — É claro que ela tem seis anos. E você está no sexto ano.

Carlos levou a mão à boca. — Entendeu a dife… Eu estava no meio de um revirar de olhos diante da câmera quando minha

atenção se voltou para Paige balançando a cabeça tão violentamente que parecia que ia dar uma volta completa. Eu praticamente podia ouvir suas palavras na noite anterior: Desde a minha campanha para presidente no quinto ano você tem sido tão cruel que cheguei até a evitar ser vista com você.

A mesma sensação da noite anterior tomou conta do meu estômago e o

apertou como se fosse feito de massinha de modelar. Mas também poderia ser por causa da bisteca chinesa.

— Hum… — Dei uma olhada no relógio de contagem, os dígitos vermelhos mudando a cada segundo do programa no ar. Eu podia dar uma chance ao método de Paige, não podia? Se desse errado, era só voltar a agir como antes?

Pelo amor de Deus. Mais uma escorregada na escalada social e eu estava fora.

Mas, até aí, Paige tinha acertado na mosca em tudo que seguia sua estratégia…

Você tem sido tão cruel que cheguei até a evitar ser vista com você. Mordi o lábio. E encarei os fatos. — Querido Saco de Pancada — disse, na minha voz de telejornalista mais

séria. — Você tem alguma ideia de com quem está falando?

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Eu podia ouvir Carlos esfregando as mãos, empolgado. — Você está falando com a garota que passou quase duas semanas na

Marquette com óculos gigantes de casco de tartaruga e um sotaque que rivalizava com o do Patolino. E você acha que o seu caso é ruim?

Os câmeras de Um a Quatro começaram a rir. Quando apertei os olhos na direção deles, as risadas viraram tosses.

— Dê graças aos céus, Saco de Pancada. Pelo menos você só chegou no Facebook. Até onde sei, meu vídeo no YouTube já foi traduzido para catorze línguas diferentes.

A risada de Paige soou mais alta que a tosse dos câmeras.

— Eu disparo detectores de metal com a boca, ainda não posso mastigar alimentos sólidos e peso dois quilos a mais com esses óculos — continuei. — Então, Saco de Pancada… — Pausei para saborear a familiar sensação de vitória. — Então — repeti, em uma voz mais suave —, eu sei pelo que você está passando. E o melhor conselho que posso dar a você é: aguente firme. Pode ser horrível por um tempo, mas um dia você vai encontrar amigos que gostem de você pelo que você é. Nesse meio-tempo, junte-se à equipe do livro do ano para ficar amigo do pessoal e conseguir apagar a sua foto. Ah, e jogue fora a bermuda do Bob Esponja. Eu sou Kacey Simon. Até a próxima, Marquette. — E olhei para a câmera dois até as luzes diminuírem.

— Eeeee corta! — gritou Carlos. Ele pulou da cadeira e caminhou bruscamente pelo estúdio até a minha mesa. — Kacey Simon, isso foi genial.

— O que foi que eu disse? Peguei minha bolsa. — Bom trabalho. Os câmeras Número Três e Número Quatro estenderam a mão para um high

five enquanto eu passava por eles.

— Valeu, gente. Até semana que vem. Eu me senti como se pudesse flutuar até a sala. No fundo do estúdio, Paige esperava por mim. — Eu sabia que você ia conseguir! — Ela me envolveu em um abraço

apertado. Abracei-a e cambaleamos juntas pelas portas.

— Sabe o que eu estava pensando? Talvez você pudesse ver com seu produtor se a gente pode transmitir o próximo debate presidencial. Você poderia até ser a mediadora!

— Estou dentro, presid… — Hum, oi… Quinn Wilder estava de pé do lado de fora do estúdio, com as mãos enfiadas

nos bolsos, meio sem jeito. Eu e Paige paramos. Por todo o meu corpo correu uma onda de animação, misturada à confusão,

além de uma sensação de ter comido doce no Dia das Bruxas quase ao ponto de vomitar. Eu não sabia o que fazer ou dizer, então fiquei ali, só olhando para ele, na esperança de que eu estivesse lhe dando um olhar de reprimenda. E de que minhas lentes pudessem ampliá-lo.

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Ele usava uma calça jeans perfeitamente desbotada, tênis e uma camiseta rasgada do Hard Rock Café de Chicago por baixo de um moletom cor de abóbora de capuz. Era o meu moletom preferido, o que ele estava usando quando pediu o mesmo cupcake que eu no Sugar Daddy.

— Oi. Inspirei. Não porque quisesse sentir o cheiro de chiclete de hortelã ou que

esperasse que o aroma do caramelo ainda estivesse entranhado no moletom dele, mas porque precisava respirar. Eu não tinha escolha.

E, coincidentemente, ele cheirava mesmo a chiclete de hortelã. Com toques de caramelo.

— O que… você está fazendo aqui? De repente meu visual poderoso parecia inadequado. A gola alta do suéter

pinicava meu pescoço e as botas apertavam os dedinhos do pé. — Eu, er… Quinn olhou para mim, e então para Paige. — Preciso ir para a sala — disse Paige apressadamente, soltando o meu

braço. Ela olhou para mim por um segundo, na dúvida se eu precisava que ela

ficasse. Pisquei duas vezes: não. — Então. — A voz de Quinn saiu áspera, como se ele estivesse em uma

propaganda de uma linha de perfumes masculinos. Era quase o suficiente para me fazer perdoá-lo. — Eu acho que ela, er… provavelmente está com raiva de mim.

— Hein? Ergui a cabeça e nossos olhos se encontraram. Ou melhor, meus olhos se

voltaram para o ponto em que os dele deveriam estar, mas como ele estava ajeitando o cabelo, tudo o que eu podia ver era sua franja macia cor de areia.

— Quero dizer, eu só queria… — Agora Quinn olhava para os próprios pés. — Desculpe não ter dito nada aquele dia. Os caras estavam sendo muito babacas.

— É. Eles estavam. Você estava. Tentei soar chateada, mas o cabelo de Quinn estava bagunçado

de um jeito tão encantador... Que xampu ele usava para conseguir esse

caimento? — E, er… não foi legal. Então… desculpe. Quinn tossiu, então ajeitou o cabelo. No ligeiro instante em que seus olhos

estavam visíveis, eles queimaram com um remorso irresistível. — Tudo bem. — Eu podia sentir as bochechas ficando coradas. — Então,

er… a gente devia ir para a chamada. Mas por alguma razão meus pés não se moviam. — É. — Quinn se aproximou. — E, ah, mais uma coisa. Eu, bem, eu acho os

seus óculos muito maneiros. Eles deixam os seus olhos bonitos. — A luz do corredor iluminou seu rosto bem-desenhado. Era como se ele fosse uma estátua de um menino perfeito, no meio do Louvre ou algo assim. Tudo o que eu conseguia fazer era encarar feito uma turista com uma pochete idiota.

Diga algo inteligente…

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— Bom, não se acostume muito com eles. — Tentei jogar o cabelo para o lado. Meu rabo de cavalo me chicoteou no rosto. — Ai. Eles vão embora em dois dias.

— Que pena. Quinn sorriu, virando a cabeça ligeiramente para a direita. E então ele se

aproximou. Ficou tão próximo que eu podia sentir sua respiração no meu nariz. Fiquei petrificada. Ele ia me beijar? No meio do SILVERSTEIN? Mas eu

ainda não havia tido tempo de pesquisar no Google como beijar de aparelho! Minha garganta ficou completamente seca e o suor empapou minhas axilas.

Priiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim! O sinal da hora da chamada interrompeu nosso

movimento cinematográfico, me deixando com a cabeça ligeiramente inclinada e uma fina gotinha de baba ameaçando pingar do lábio. Em um segundo nós dois nos afastamos.

— Bom… vejo você mais tarde? — perguntou Quinn, debaixo do capuz. Balbuciei alguma coisa a respeito de ir para a chamada e dei meia-volta, me

sentindo tonta, suada e completamente louca, como se tudo aquilo tivesse sido um sonho. Só que não era. Era minha vida. E Quinn Wilder parecia estar de volta nela. Parecia gostar de mim. De mim. Com óculos, aparelho e tudo mais.

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Vinte e três DE NOVO, DO INÍCIO Quinta-feira, 4h30 da tarde

Naquela tarde Hendrix veio me receber na porta da casa de Zander com uma rápida amostra dos caninos, mas sem os latidos. Encarei como um sinal de progresso.

— Desculpe o atraso. — Bati a ponta da bota contra o degrau de cimento na calçada, tirando da minhas solas as pedras de neve suja congelada. Lá dentro, Zander, Nelson e Kevin se ajeitavam no cantinho do café da manhã. The Beat filmava tudo. No centro da mesa, uma enorme vela com essência de cedro dava à casa um cheirinho de menino. — Fiquei até mais tarde para ver a fita do programa.

Tirei o casaco e o joguei sobre o braço do sofá de couro. Arregacei as mangas do suéter, e não pude afastar a sensação de que Zander me observava. Na verdade, me encarava. Passei as costas da mão sobre os lábios. Será que dava para perceber que Quinn havia ficado a centímetros de me beijar?

— Ah, é? — Em vez de brigar comigo pelo atraso, Zander perambulou pela sala de estar. — E aí?

— E aí… — Apertei os olhos na direção dele. Hoje eles apresentavam um tom de cinza-claro, e suas pupilas pareciam salpicadas de pontinhos dourados. Ele estava rindo de mim? — E aí que eu acho que foi muito bom — completei, meio preguiçosa.

— É, foi sim. — Ele finalmente abriu um sorriso. — Os garotos na minha sala acharam que você foi muito corajosa de zombar de si mesma. E foi legal o jeito como deu uma aliviada para o garoto e ofereceu um conselho de verdade, pra variar.

— De verdade? — perguntei na defensiva. Pra variar? Captando um debate que merecia ser filmado, The Beat virou a filmadora

em nossa direção. — Você entendeu. Conselhos legais. Coisas que podem ser colocadas em

prática. — Antes que eu pudesse argumentar que todos os meus conselhos podem ser colocados em prática, Zander olhou para meu pulso. —

Gostou da pulseira, é? — Ah. É. Foi mal. Rodei a pulseira para abri-la, envergonhada. Não é como se eu estivesse

usando aquilo de propósito. Eu só colocava de manhã para me lembrar de devolver quando chegasse à escola. Mas então eu esquecia e repetia tudo de novo no dia seguinte.

— Pode ficar — disse ele. — Ficou maneira em você. — Eu devolvo no final do ensaio. Esfreguei o couro entre o polegar e o indicador.

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— Tanto faz. — Ele deu de ombros e sentou no braço do sofá. — E aí, você ouviu o disco do Fleetwood Mac que eu deixei no seu armário ontem?

— Ouvi. Quero fazer um cover de “Go Your Own Way”. — Empurrei Zander para o canto e sentei a seu lado. — Acústica.

— Vai ficar superlegal. — Apoiando os braços nas coxas, ele reclinou a cabeça e olhou para mim. — A gente podia trabalhar em umas harmonias.

Zander ficou com a expressão vaga que o invadia toda vez que ele tocava ou falava de música. Quando fechou os olhos, eu quase pude ver as notas girando em torno da sua cabeça.

— Ei! — gritou Nelson de trás do teclado, as mãos voando sobre as teclas. —

Estamos esperando o quê? — Já vamos. Dei um salto. Zander, Hendrix e eu cruzamos o cantinho do café, e assumi minha posição

atrás do microfone enquanto The Beat montava a filmadora em um tripé. — Aja naturalmente — orientou. — Quero umas cenas de bastidores para o

site. Assenti. Eu estava habituada a câmeras. Hendrix circulou à minha frente

algumas vezes e então se deitou no chão, apoiando a cabeça nas patas dianteiras.

— Alguém tem uma partitura sobrando? Baixei um pouquinho o microfone e tirei o elástico do cabelo, dando uma

boa sacudida nele. Nenhuma resposta. Olhei para cima. — Oi. Gente. Partitura. — Meus planos pós-ensaio com Molly eram os

primeiros em séculos, e me atrasar não era uma opção. — Preciso da partitura. — Não, hoje não — disse The Beat misteriosamente enquanto assumia sua

posição na bateria. — Você foi bem semana passada, mas precisamos de uma vocalista que

cante com a alma. Nelson fechou os olhos. — Hoje nós vamos improvisar — concluiu The Beat. — Topa? — Improvisar? — Minha voz começava a transmitir pânico. Sem letra? Sem

partitura? O que viria depois? Sem instrumentos? — Vocês querem que eu invente uma letra. Na hora.

Meus olhos piscaram na direção da filmadora. — Você não achou que entrar para a banda ia ser moleza, achou? — brincou

Kevin. — A gente precisa ter certeza de que você manda bem. Agarrei o pedestal do microfone, torcendo meus punhos para um lado e

para o outro. Eu ia matar Zander. Era assim que ele me agradecia por arrumar um encontro com a segunda mais… digo, a mais popular menina da escola?

— O negócio é o seguinte — explicou Zander. — The Beat vai começar, e então todo mundo vai entrando na hora que quiser. Fora isso, não tem regra. Alguma pergunta?

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Hendrix levantou a cabeça e riu para mim, com a língua pendurada no canto esquerdo da boca. Ele estava saboreando aquele momento mais do que todo mundo.

Concordei de leve com a cabeça, encarando o cachorro. Meus óculos começavam a embaçar por causa da fina camada de puro medo. Eu já tinha improvisado hoje e havia me saído muito bem. Por que abusar da sorte agora que as coisas estavam voltando ao normal?

Pulei o aquecimento respiratório e só me imaginei estrangulando Zander com as cordas da guitarra dele.

— Vamos lá.

Zander acenou para The Beat. Não! Esperem! Eu desisto! Apertei o microfone com força para me equilibrar,

mas minhas mãos ficavam escorregando para o pedestal. Tentei secá-las na calça jeans e segurar de novo. Não funcionou.

Quando todo mundo estava terminando os ajustes nos instrumentos, Zander me lançou um sorriso secreto. Retribuí com um olhar mortal.

— E UM! DOIS! UM! DOIS! TRÊS! QUATRO! — gritou The Beat. Ele começou com um ritmo marcado e fácil, acentuando uma ou outra batida. — É isso aí! Ênfase no segundo e no quarto compasso. Vamos ficar assim um pouco.

Ignorei-o, vasculhando meu cérebro por palavras. Quaisquer palavras que fizessem sentido. Mas minha mente estava vazia.

Logo os dedos de Nelson voavam sobre o teclado e Kevin e Zander mandavam ver também. Ninguém parecia preocupado com o fato de que AQUILO NÃO ERA UMA MÚSICA.

— Começa! — disse Nelson, como se aquele fosse um convite corriqueiro e opcional.

Qualquer. Palavra. Qualquer. Uma. — Eu não sei o que cantar! — resmunguei. — Não dá para inventar

qualquer coisa! — Dá, sim! — Zander bateu no chão com o pé descalço. — O que vier à

cabeça. Tente não pensar muito! — Ninguém liga se for ruim — completou Kevin, ajudando muito. Minha respiração ficou presa na garganta. Primeiro passo. Abra a boca.

— Fale a primeira coisa que vier à cabeça! The Beat retomou a batida. Certo. Se eles queriam improvisação, era isso que iam ter. Respirei fundo. — “A… gravidade… me pressiona” — comecei. — Lá vai ela! — comemorou Zander. — “Conheci um cara… com tinta azul no cabelo, Ele usa uma calça skinny, não dá pra negar, Igual a de uma modelo…” — Ela pegou você, cara! Nelson soltou uma gargalhada. Hendrix empinou o focinho e uivou junto. — Foi você quem pediu.

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Sorri para o microfone enquanto The Beat desacelerava o ritmo, e os outros o seguiam. Dei uma olhadinha de canto de olho para Zander, só para ter certeza de que ele sabia que eu estava brincando. Para falar a verdade, eu nem ligava mais para a calça skinny. Era uma espécie de marca registrada dele, sua versão do sorriso Simon.

De repente, ele se aproximou do microfone. — “É, ela usa óculos, mas não ficou nada mal, Porque ela mudou muito e descobriu como é legal, E ela manda ver, deixa a galera no chinelo, É a nossa Buddy Holly, a nossa Elvis Costello.” Eu ri e me inclinei na direção dele para um high five. Quanto mais a gente

tocava, mais as vibrações da música eliminavam a tensão do meu corpo, me transportando para um lugar inteiramente novo, onde era possível ser eu mesma.

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Vinte e quatro MATERIAL DE COLA

Quinta-feira, 9h03 da noite

Depois de engolir o jantar rapidamente em casa, peguei o trem até a casa de Molly para ajudá-la a escolher a roupa do encontro e para testar o conhecimento dela a respeito de Zander Jarvis. Para uma menina obcecada, ela ia de mal a pior. Prometi não ir embora até que ela tivesse algo inteligente para dizer a respeito do Acoustic Rebellion ou que estivesse tão bonita que não fizesse diferença. O que viesse primeiro.

— Rodada relâmpago! — Eu me estiquei de bruços na cama king size de Molly e descansei os cartões na colcha prateada de tricô. — Pronta?

Não tive nenhuma resposta além do barulho dos saltos da bota dela no piso de madeira do closet. Apoiei o queixo nas mãos e dei uma olhada ao redor, balançando a cabeça ao ritmo da última faixa do Acoustic Rebellion.

De um modo geral, o quarto de Molly estava exatamente igual à última vez em que eu estivera lá: o filó marfim ainda cobria a cama gigante de mogno e, do banco sob a janela do outro lado do quarto, ainda era possível ver um pedacinho do Wrigley Field, se você apertasse o nariz no vidro e olhasse bem para a esquerda. Os pisca-piscas ainda brilhavam no teto, entre o dossel da cama e o bandô da cortina. Mas os detalhes estavam diferentes. A foto de nós quatro que ficava presa no espelho da penteadeira ao lado da cama havia desaparecido. O capacete de equitação que ficava em uma das colunas da cama foi substituído por um boá de plumas pretas. E atrás da porta do banheiro havia um adesivo rosa-shocking no qual se lia REVOLUÇÃO ROCK. Aquilo era uma banda sobre a qual Zander ainda não tinha comentado?

Os novos detalhes no espaço familiar faziam eu me sentir uma intrusa. Pensei na época em que voltei do acampamento de verão, morrendo de saudade de casa e do meu quarto, e descobri que mamãe havia colocado a cama de Ella no lugar da minha e trocado os abajures. Quando insisti para que ela colocasse as coisas de volta no lugar, ela me acusou de ser dramática demais. Mas ela não entendia. Detalhes são importantes.

— Mols! — gritei de novo. — Rodada relâmpago! — Pode começar. Sua voz soou abafada de dentro do closet.

Puxei um cartão do meio da pilha. — Na terceira faixa do disco, o que contribui para a batida blues da música? Aumentei o volume do dock station do iPod de Molly e pulei para a terceira

faixa do vinil que eu havia digitalizado. Imediatamente, um som triste e misterioso tomou conta do quarto.

— Botas de caubói ainda estão na moda? Um pompom do dia (“dia”, no singular mesmo) de Molly como animadora

de torcida voou do closet e foi parar diante da cama.

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— Você está prestando atenção em alguma coisa? — resmunguei, deitando de costas e encarando o teto.

Os pisca-piscas brilharam monotonamente por trás do filó, fazendo parecer que eu olhava estrelas em uma noite de neblina.

— Total — respondeu ela. — Hum… o acorde maior. Eu me sentei quando Molly saiu do closet usando minissaia jeans, uma

camiseta do Acoustic Rebellion apertada demais, uma meia-calça rasgada e botas de caubói.

— O que acha? Ela pulou por cima das roupas que jaziam no chão entre nós e deu uma

voltinha. — Errado. É o acorde menor. — E acho que essa roupa está quase igual à sua

fantasia de vaqueira atrevida do Dia das Bruxas do ano passado. — Bem… você realmente quer a minha opinião?

— Claro. Molly corou. Eu me estiquei até a mesinha de cabeceira dela e baixei o volume da

música. Acho que Zander tinha razão: você realmente não liga para o que as pessoas pensam das suas roupas.

E eu amo esse riff de guitarra. — Ei. — Molly estalou os dedos, interrompendo minha viagem no solo de

guitarra. — Sério. O que acha? — Eu… — interrompi a frase, as palavras de sabedoria de Paige rondando

meu cérebro. — Acho que talvez… por que você não tenta sem a camiseta da banda ou sem a meia-calça? — Fiz soar como se fosse uma pergunta. Respirei fundo e prendi o fôlego.

Molly franziu a testa. E então encarou o reflexo no espelho de corpo inteiro atrás da porta.

— Espere aí. Essa não é minha fantasia de vaqueira atrevida? — É! — Soltei o ar. — NÃO USE ISSO! — E por que você não falou nada?! — Eu sei. Desculpe. Minhas bochechas de repente ficaram vermelhas. Talvez Paige não soubesse

tudo o que há para saber a respeito de se falar a verdade. Talvez algumas pessoas gostassem das outras do jeito que elas costumavam ser antigamente.

— Qual é mesmo o nome do cachorro dele? Molly correu até a penteadeira e começou a tirar o delineador preto com

glitter com um cotonete. — Hendrix. Sabe, Jimi... — Deslizei da cama e vasculhei a pilha de roupas

no chão. Um top justo cor de bronze e uma camiseta de manga comprida marrom-chocolate me chamaram a atenção. — Aqui. Coloque o top por cima da camiseta com uma calça jeans e a bota, sem a meia-calça. E a gente ainda precisa pensar em como resolver essa mecha rosa. Parece que você passou canetinha no cabelo.

Pelo reflexo no espelho da penteadeira vi o olhar de alívio no rosto de

Molly. — Aimeudeus. Você tem razão.

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— Eu sei. Não se preocupe. A gente dá um jeito. Quanto mais tempo eu passava no quarto de Molly, mais ele me parecia

familiar. Eu pertencia a este lugar. Não importava o que havia acontecido entre nós, agora era coisa do passado. Em breve esqueceríamos essas duas semanas, e as meninas se lembrariam de como precisavam de mim.

Nossos olhares se encontraram no espelho e abrimos um leve sorriso. Nossos reflexos pareciam estranhos, o meu atrás do dela, como se fôssemos as fotos do antes e do depois em uma edição nerd do programa Extreme Makeover.

Na mesinha de cabeceira meu celular apitou.

PAIGE: COMO ESTÁ INDO C/ MOLLY? KACEY: ATÉ AGORA, TD BEM. MAS ELA FOI PÉSSIMA NO TESTE DE

CONHECIMENTOS. PAIGE: OU: ELA PRECISA MELHORAR NO TESTE DE

CONHECIMENTOS. KACEY: PÉÉÉÉÉÉÉSSIMA E PAIGE: VAMOS TRABALHAR NA CAMPANHA AMANHÃ? KACEY: NÃO DÁ. VOU DORMIR NA CASA DE MOLLY. SÁB DE MANHÃ?

— Quem é? — perguntou Molly, virando-se para mim. — Zander — soltei. Não sei por que falei aquilo. — Ele está doido para

encontrar você amanhã. — Legal. — Molly ficou vermelha. — Diga para ele que eu também. Mas não

manda um smile nem nada assim. — Ela tirou do meu braço as peças que eu tinha separado e entrou no closet de novo. — Vou experimentar isso.

Fechei o telefone e o joguei na cama, pegando os cartões em seguida. — A próxima categoria é assuntos para antes do show — anunciei. — Diga

duas das três maiores inspirações musicais de Zander. Em menos de dez segundos. Preparaaaaar, VAI!

— Espere! — gritou Molly. — Deu branco! — Oito! — falei. — Sete! Seis! Aaaaaaaaaaimeudeus, esse é o maior silêncio

constrangedor da história dos encontros de todos os tempos! Quatro! Três! Dois! O seu segundo encontro depende dessa…

— QUEM SÃO OS JONAS BROTHERS? Molly tropeçou em um par de patins de gelo e caiu no meio do quarto,

suada e vestida só pela metade. — Errado! — gritei. Marley! Hendrix! Dylan! — Tanto faz. — Ela riu, se jogando na cama e tirando o filó do rosto. — Ele

já tem muita sorte de sair comigo mesmo.

— É. Aposto que ele sempre quis sair com uma vaqueira atrevida. Certo. Eu poderia ter dito algo… aprovado pelo padrão de qualidade Paige.

Mas Molly merecia. — Fala sério, quatro-olhos — respondeu ela, ficando de lado na cama e

olhando para mim. Mas não era como se estivesse olhando para meus óculos ou zombando de mim. Era mais como… se ela pudesse enxergar a antiga Kacey. — Quinn Wilder está sentindo sua falta nos ensaios.

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— É mesmo? — Eu me sentei. — Ele disse isso? Quando? Será que ele contara sobre nosso quase beijo no corredor? — Por favor. Ele não precisa. Quem entende os meninos melhor do que

qualquer um que você conheça? — perguntou ela confiante. — Vocêvocêvocê. Agora, desembucha. Eu me inclinei para a frente. — A gente foi para o Sugar Daddy ontem, depois do ensaio, e Quinn estava

tentando escolher o pedido, e qual era aquele cupcake que vocês costumavam pedir?

— Caramelo com cobertura de chocolate amargo e minimarshmallows.

— Isso aí. — Molly soprou alguns fios louros para longe dos olhos. — Pois então, ele pediu um de chocolate simples com cobertura de manteiga de amendoim.

Fiquei esperando. — Entendeu? Seus olhos brilharam de orgulho. — Não, me explica — respondi secamente. Ela suspirou. — É claro que ele não podia pedir o de caramelo, porque seria

emocionalmente doloroso demais, entendeu? — Boa tentativa — bufei. Meu telefone apitou de novo.

MAMÃE: AMANHÃ TEM AULA. PEGUE UM TÁXI, JÁ ESTÁ ESCURO.

— Preciso ir. — Dei um salto. — É minha mãe. Molly arregalou os olhos de preocupação. — Mas a gente ainda nem treinou as minhas respostas espertas nem a risada

para o encontro! — Ela agarrou os cartões espalhados pela cama, mas eu os roubei dela.

— Vai dar tudo certo — prometi. — Ele vai adorar você. Ele é um garoto, não é?

Eu em parte acreditava no que dizia. Zander era um garoto, apesar da calça

de menina e do fato de que ele era… diferente de todos os outros que eu já tinha conhecido. Parte de mim achava que Zander não ia cair nas técnicas de sedução de Molly como os outros meninos. Ou quem sabe, lá no fundo, todos os garotos sejam iguais.

Molly mordeu o lábio e sorriu. — É. Acho que você tem razão. — Ela balançou a cabeça para a frente e para

trás como se estivesse afastando uma dúvida. — E aí, você vem dormir aqui em casa amanhã, não vem? — perguntou enquanto eu juntava minhas coisas.

— Venho — respondi mordendo o lábio para me impedir de sorrir demais. — Legal. — Molly suspirou. — Liv e Nessa estão ficando um pouco

irritantes. — Ah, é? Eu provavelmente não devia parecer tão feliz com essa notícia.

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— Hoje de manhã, por exemplo, Liv me mandou cinco mensagens perguntando qual gravata do avô dela ficava melhor como alça para a nova linha de bolsas.

A amarela de listras.

— E, tipo assim, eu não sou a mãe dela. Ela deveria aprender a escolher sozinha.

— Acho que você precisa de uma folga — falei compadecida. — Bom… hum, boa sorte amanhã.

Girei a maçaneta. Mas antes de sair Molly me abraçou e me apertou com força.

— Estou muito feliz que a gente tenha voltado a se falar — disse ela com o rosto mergulhado no meu cabelo.

— Eu também — respondi. E, de todas as coisas sinceras que eu tinha falado naquele dia, aquela foi a

mais honesta de todas.

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Vinte e cinco COMO SEMPRE FOI Sexta-feira, 8h01 da noite

Na noite seguinte abracei meu saco de dormir e apertei a campainha sobre a placa cafona de cerâmica que Molly havia pintado no segundo ano que dizia LAR, DOCE LAR. Assim que a campainha soou, desejei que meu olho direito parasse de tremer. Meus nervos não tinham nada a ver com o encontro de Molly e Zander naquela tarde, muito embora a gente tivesse decidido no ano passado que eu seria a primeira do grupo a sair com um menino. Tinha a ver com a sensação de que tudo era possível. E não de um jeito bom. Talvez Molly estivesse mais calma — afinal, ela me devia um encontro com Zander e uma

tarde de conselhos de moda. Mas Nessa e Liv eram outra história. E se elas não quisessem fazer as pazes?

— Pode deixar! Do outro lado da porta os sapatos de Molly faziam barulho no piso de

madeira. Definitivamente não eram botas de caubói. — Oi, Kacey! — exclamou ela depois de abrir a porta. — Liv e Nessa

acabaram de chegar. Chegaram quase antes de mim, porque acabei ficando com Z a tarde toda.

As botas wedge da Nessa. Calça legging. Uma camisa masculina larga, provavelmente da coleção de Liv.

E delineador. Preto. Cintilante.

Para. Volta. Repete. Eu não sabia o que mais me incomodava: a indiferença clara de Molly aos

meus conselhos de moda ou a forma como fazia parecer que Zander era seu mais novo melhor amigo, quando era eu que passava as tardes com ele depois do colégio.

— Gostou dos adereços? — Molly deu uma voltinha para exibir as botas e então abriu a porta de tela para que eu pudesse entrar. — Decisão de última hora. Zander estava na sala de estar com a minha mãe e, de repente, aquela outra roupa não estava legal, então…

Larguei a mochila e o saco de dormir no meio do hall de entrada e passei por cima. Eu queria perguntar um milhão de coisas a ela, como, por exemplo, se ela havia pedido conselhos a Nessa via mensagem. Ou se Zander tinha visto o quarto dela. Ou o que ela achava que havia de errado com a roupa que eu

escolhi. — Então Zander veio buscar você? — É. — Molly tombou a cabeça para um lado. — Era um encontro.

Ela deu meia-volta e seguimos pelo corredor estreito até o quarto dela. Na porta fechada havia um pôster assinado do Acoustic Rebellion, e o CD berrava

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no alto-falante. Era a sexta música, a primeira que Zander havia aprendido a tocar. Eu tinha que dar crédito a ela: a garota não perdia tempo.

Por alguma razão senti uma onda de raiva. Minhas mãos se fecharam, mas eu as abri imediatamente. E daí que ela e Zander tinham ido ao camarim?

O quarto de Molly cheirava a biscoito de chocolate, o que de alguma forma me deixou enjoada. Liv e Nessa estavam sentadas na beira da cama, olhando para a tela do laptop. Pareciam diferentes. Como se houvesse passado um ano e não uma semana, e eu não tivesse a menor ideia de como estava a vida delas. Será que elas estavam a fim de algum garoto novo? Será que Liv ainda gostava de incensos? E Nessa ainda adorava tudo que tivesse a ver com a França?

Hesitei na porta do quarto. — Oi, meninas. Na teoria, minha ideia era usar um tom tranquilo e casual. Na prática, saiu

mais como ansioso e um tanto enjoado, com um quê de hostilidade. Tirei o casaco e o pendurei no gancho da porta do closet.

Liv e Nessa olharam para cima, mas o filó sobre a cama encobria o rosto delas. De repente senti minha pele úmida de suor.

Enfim, Liv abriu um sorriso. — Oi! Ela puxou o filó. O lenço verde indiano sobre o cabelo preto combinava com

seus olhos, e ela havia feito chapinha e repartido o cabelo ao meio. Parecia uma aluna do nono ano, no mínimo.

Nessa ficou de pé. Seu cabelo curtinho estava penteado para trás, fazendo seus olhos escuros e as proeminentes maçãs do rosto saltarem ainda mais.

— Bom trabalho com o lance do Zander. Não achei que você fosse conseguir.

Isso era para ser um elogio?

Liv ficou vermelha. — Foi impressionante, Kacey. — Ah, obrigada — respondi sem jeito, ainda de pé junto à porta. Silêncio. — Molly estava nos mostrando o álbum de fotos do encontro no Facebook

— comentou Liv. Ela pegou o laptop como quem queria me mostrar alguma coisa, mas não tinha coragem de dar o primeiro passo.

— Já? Forcei uma risada e tirei o cachecol que Liv havia feito para mim no meu

aniversário de onze anos, mas minha garganta não pareceu menos apertada. Eu me odiei por ter usado uma das peças de Liv para vir à casa de Molly. Será que eu parecia desesperada?

— Foi o que eu disse. — Nessa se envolveu na coberta prateada de Molly. — Loucura, não é?

— Merece uma liminar por insanidade mental. Sentei na beirada do banco da janela, pegando um biscoito mesmo sem estar

com fome. Liv se sentou a meu lado e abriu o laptop. — A quarta é a minha favorita. — Molly conferia as pontas do cabelo no

reflexo da janela em vez de olhar para a tela, o que significava que ela já havia

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decorado a sequência de fotos. — A gente ficou tão perto do palco que acho que o vocalista cuspiu em mim.

— Nojento. Nessa se juntou a nós na janela. Nós quatro nos encaixamos perfeitamente

entre as almofadas do banco. Vi aquilo como um sinal. Dei uma mordida cautelosa no biscoito.

Liv me passou o laptop, e dei uma olhada nas primeiras fotos. Eu tinha que admitir: a quarta foto estava muito maneira. Zander e Molly estavam de costas para o palco, então dava para ver a banda ao fundo, tocando no que parecia um enorme satélite em órbita. Zander tinha batido a foto com a mão esquerda e

abraçava Molly pelo ombro com o outro braço. Os olhos de Molly estavam tão arregalados e seu sorriso era tão grande que ela parecia possuída.

E muito, muito feliz. O pedacinho de biscoito se revirou no meu estômago. — Ele é tão… — Molly adotou um ar distante, como se estivesse posando

para uma daquelas fotos horríveis de noivos que eles publicam no jornal de domingo, em que casais abraçados olham pensativos para o futuro. E então suspirou. — Sabe?

— Sobre o que vocês falaram no caminho até lá? Nessa encostou os joelhos no peito. — Tudo — disse Mols. — Mas basicamente sobre as coisas que a gente tem

em comum. Tipo, como nós dois amamos Johnny Hendrix e viajar o mundo e sei lá.

Jimi. Jimi Hendrix. Lancei um olhar cético na direção dela. Eu sabia que o lugar mais longe que Molly Knight já tinha ido era o Arizona, para visitar os avós, e definitivamente aquilo não se configurava como “viajar o mundo e sei lá”.

— E ele me falou sobre como ele não liga para o que as pessoas pensam. — Ela parou, provavelmente para dar ênfase. — E disse que gostava disso em mim. Que eu fico na minha.

Ela me lançou um olhar. — Fica mesmo. Você fica super na sua — assegurei. — Fala sério. — Nessa balançou a cabeça. — Todo mundo liga para o que as

pessoas pensam. Faz parte da natureza humana. — Ele não liga — falei. — É meio esquisito. Agora que eu pensava nisso, era realmente uma das coisas que eu mais

gostava nele. — Eu acho legal não ligar — argumentou Liv, girando um anel turquesa no

dedo. Eu havia comprado aquele anel para ela quando ela tirou as amídalas no verão passado.

— Você acharia isso. Nessa revirou os olhos. Eu me recostei na janela, o ar gelado passando através do vidro e do meu

mini vestido de lã. — É que… quando Zander está tocando, ele mergulha no próprio mundo, e

nada mais importa.

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— É tão incrível. — Molly se abanou com a mão. — Eu sinto a mesma coisa no Shopping Principal.

— E aí, você vai sair com ele de novo? — perguntou Liv. — Claro. Quero dizer, ele disse que vai assistir ao musical amanhã. Ela olhou para mim com um ar de dúvida. — Tenho certeza de que ele vai estar lá — assegurei. E então levantei meu

biscoito. — Um brinde à… — À nossa amizade! — Liv terminou a frase por mim. — À nerd chique! — riu Molly. — A nada de língua prefa — declarei.

— A encontros românticos com o aluno novo. Nessa ergueu seu biscoito. — E a mais uma coisa — completou Molly rapidamente e corou enquanto

trocava olhares com Nessa e Liv. Elas olharam para os biscoitos e sorriram. — O quê? — perguntei, sentindo um formigamento percorrer minha perna. — Bom, eu estava pensando e decidi que preciso de tempo para me

concentrar no meu relacionamento. O que significa que eu provavelmente não deveria ficar no papel principal no musical — disse Molly devagar.

Inspirei um monte de farelo de biscoito e me curvei para a frente, tossindo. Liv bateu nas minhas costas.

— Mas só vai ter uma apresentação, Molly — lembrou Nessa. — Uma boa namorada se concentra no seu relacionamento. Molly soou como se estivesse lendo em voz alta uma revista para donas de

casa. — Em que ano estamos? 1950? — revidou Nessa. — Você vai sair do musical? — gaguejei. Era uma piada? Olhei ao redor do quarto, procurando pela luzinha da

câmera. Ela estava zombando de mim e me filmando para algum tipo de pegadinha de internet?

— Já falei com Sean e contei que você não tem mais a língua presa. — Molly abriu um sorriso. — Ele disse que por ele tudo bem. Eu posso ser uma das dançarinas. E, além do mais, você é perfeita para o papel.

— Mas… Minha língua não acompanhava a velocidade do meu cérebro. Será que ela

estava saindo por culpa? Ou Sean a demitira? De jeito nenhum Molly Knight abriria mão dos holofotes por causa de um garoto. Eu me amaldiçoei por confiar de novo nela tão depressa. Era exatamente o que Paige dissera. Você não pode querer uma coisa sem dar nada em troca. Quid pro…

— É claro que eu vou precisar que você faça uma coisa por mim. … Quo. Engoli em seco. — O quê? — Bom, eu não posso aceitar que o meu namorado… — Namorado? — interrompi.

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— … que o meu namorado fique andando por aí com outra menina todo dia depois da aula.

— E? — perguntei, sem entender aonde ela queria chegar. — E… acho que você deveria sair da banda. — Molly piscou, inocente, como

se tivesse acabado de pedir para emprestar um suéter do qual eu não gosto muito.

Liv e Nessa olharam para mim em expectativa. — E aí? — Molly olhou para mim. — A banda ou o musical? Você escolhe. O ar no quarto de Molly pareceu mais quente do que nunca. Deixar o

Gravity por causa de uma apresentação de uma única noite? Por Quinn Wilder?

Por um beijo técnico e pela adoração da escola inteira? Pela minha reviravolta? Para reconquistar meu espaço na Marquette. No comando das minhas

meninas, onde era meu lugar de direito. A escolha deveria ter sido fácil. Então por que eu não tinha ideia do que

dizer?

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Vinte e seis ISSO É QUE É FRIO Sábado, 7h27 da manhã

Acordei na manhã seguinte com uma mensagem de Zander pedindo que eu o encontrasse na pista de skate do Millennium Park. Eu me vesti no escuro e saí do quarto antes que as meninas acordassem.

A pista estava deserta. O gelo estendia-se diante de mim, branco e liso feito vidro. Do outro lado ficava o monumento chamado The Bean, um feijão gigante espelhado que refletia o horizonte da Michigan Avenue. E mais adiante, ao leste, o Pritzker, o pavilhão onde Molly e Zander tiveram o primeiro encontro deles. O primeiro encontro deles. Afastei a imagem da cabeça, o vento soprava nas

minhas orelhas. Se não fosse por aquele encontro ridículo, eu não teria que tomar essa decisão.

— Oi! Zander havia se sentado em uma das mesas do outro lado da pista, de frente

para os arranha-céus da avenida. O violão estava dentro do estojo e apoiado contra o tampo redondo da mesa, e uma garrafa térmica estava aparecendo dentro da mochila aos seus pés. Ele acenou para mim.

— Está zero grau — informei a ele, correndo pela pista e me sentando a seu lado. A manga do meu casaco de pied-de-poule encostou no pulso dele e de repente me senti nervosa. — O que está fazendo aqui?

Esfreguei os olhos enquanto o sol ia subindo no céu, projetando raios dourados sobre o gelo.

— Às vezes venho aqui de manhã cedo para pensar. — Ele deu de ombros. — É calmo, sabe?

Sua respiração saiu em uma nuvem espiralada diante de nós. Assenti. Quando mamãe e papai começavam a brigar muito, eu costumava

fugir para o aquário das focas no zoológico do Lincoln Park. O observatório debaixo da água era escuro, e o silêncio era quase completo. Era o único lugar em que eu podia pensar.

O frio da manhã invadia meu casaco, e cheguei mais perto de Zander. — Aqui. Ele se abaixou e tirou a garrafa térmica da mochila. Abri a tampa, e um

vapor adocicado subiu. Dei um longo gole no chocolate quente, e ele desceu

queimando pela minha garganta. — Tá legal. Falando sério — soltei. — O que está fazendo aqui? — Certo. — Ele riu e olhou para baixo. A calça dele estava com um enorme

buraco no joelho esquerdo, mas ele parecia não se incomodar. — Às vezes venho aqui testar músicas novas. Eu meio que… finjo que estou tocando no Pritzker. — O rubor do frio nas suas bochechas se intensificou. — É idiotice. De qualquer forma, o pessoal da faxina deve estar fazendo a limpeza, então tenho que me contentar com a pista.

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— Não é idiotice — falei com sinceridade. — Às vezes eu faço transmissões ao vivo no chuveiro.

— É mesmo? Mas ele não riu. Apenas deu um sorrisinho confiante, como se estivesse

pegando o meu segredo e guardando com cuidado. Olhei para outro lado. — Então, er… você tem uma música nova? Envolvi a garrafa térmica com as mãos e apertei. — Um pedaço — assentiu ele. — Posso ouvir?

Ele olhou para os prédios do outro lado da Michigan Avenue, como se nem tivesse me escutado. Acompanhei seu olhar e tentei encontrar o apartamento em que Paige e eu juramos morar quando fôssemos adultas. Mas nenhum dos prédios me pareceu familiar.

— Sabe aquele vídeo que The Beat filmou no ensaio outro dia? — falou finalmente.

— Com a minha improvisação ridícula? — ri com desdém. Ele abriu um sorriso. — Ele colocou na nossa página… — ON-LINE? Dei um tapa no braço dele. — … e acabamos recebendo uma ligação de um caça-talentos — concluiu

Zander, com um sorriso orgulhoso. — Ele está organizando um festival de bandas naquele café ao lado da Estação Vinil. Vai ter um monte de bandas iniciantes.

— O quê? Meu grito ecoou sobre o tapete de gelo. — O nome é Chicago Rock. E ele quer que a gente toque. — Um show de verdade? — Um show de verdade. — Ele ergueu o estojo da guitarra coberto de

adesivos e abriu as travas. Um festival? O que significava que… eu e o Gravity estaríamos em um

palco, sob os holofotes e diante de uma plateia de verdade, ao vivo?

— Isso é fantástico! Levantei a mão coberta por uma luva, e ele bateu a palma na minha. — Eu sei! A gente precisa organizar um setlist pra ontem. O show é na sexta

que vem. O frio do banco atravessou o tecido fino da minha calça jeans, me

congelando por fora enquanto eu assimilava as palavras de Zander. Sexta que vem. Mas talvez eu nem estivesse mais na banda na sexta que vem, não se eu a

deixasse, como Molly queria. Zander puxou o violão e começou a dedilhar. — Não acho que essa música já esteja pronta… mas lá vai. Os acordes iniciais eram lentos, e havia até mesmo uma leve hesitação entre

um e outro. Era o tipo de música que faz sua respiração ficar mais fácil. Faz

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você esquecer, mesmo que apenas por um instante, que tinha de tomar uma decisão que mudaria a sua vida.

Quando Zander finalmente começou a cantar, sua voz era mais suave do que o habitual.

E é tão fácil perceber o que você achou que ia ser mas você nem imaginava o que ela podia esconder E então ela provou o inverso a cada fôlego, em cada verso, como se assim dissesse que enfim você poderia saber

quem ela poderia ser, quem ela gostaria de ser, quando o mundo a deixasse viver.

Até o final do último acorde eu não havia reparado que estava prendendo a

respiração. Com os olhos arregalados, fiquei olhando para a frente, observando os táxis

costurando o trânsito da rua reluzente lá embaixo. Mas eu não podia ouvi-los, nem as buzinas, nem o barulho dos trens sobre os trilhos. A única coisa que eu podia ouvir era a gente, Zander e eu, respirando juntos.

— Isso, er, é tudo o que tenho até agora — disse ele, quebrando o silêncio. — É só um rascunho, então provavelmente vou acabando mudando o…

— Está ótima — falei de repente, ainda olhando para a frente. — É? — Ele soou animado. — Você gostou? Não acha que eu deveria

mudar…

— Não. Balancei a cabeça. E era verdade. Eu, Kacey Simon, não tinha sequer um

conselho a dar. Zero. A música tinha que ser sobre mim. A cada fôlego, e em cada verso? Não era Molly quem se esgoelava com o Gravity todo dia depois da aula.

— Bom, ele é todo seu. Zander levantou o violão e o colocou no meu colo com cuidado. — O quê? — Segurei o instrumento para que não escorregasse e caísse no

chão como se ele fosse um bebê. — Do que você está falando? — Ele é seu — repetiu ele. — Comprei outro ontem. Então pode ficar com

este. Você pode aprender a tocar se quiser. — Ah. Uau! — falei, embasbacada. Segurei o braço do violão com força,

sentindo a tensão das cordas sob os dedos. O presente não era nada de mais, certo? Zander só estava sendo legal. Não significava… nada. — Obrigada.

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Eu ainda não conseguia olhar para ele. Algo dentro de mim me dizia para não fazê-lo.

— Hum, Kacey? — Zander se inclinou na minha direção, e eu me encolhi. Mesmo no frio, ele cheirava a couro quentinho e a cera de violão. — Está tudo... bem?

Ele tocou no meu braço, me forçando a olhar para ele. Quando me virei, nossos rostos estavam a apenas alguns centímetros de

distância. Ele estava tão próximo que eu podia sentir o calor do seu corpo. Uma voz na minha cabeça me dizia para correr. Mas eu estava completamente entregue, sem forças. Examinei o rosto dele, e seus olhos, ternos e gentis,

encontraram os meus. Foi como se alguém tivesse unido nossas almas com cabos de aço. E não importa o quanto eu tentasse, eu não conseguia me separar dele. Eu não queria.

Porque eu, Kacey Simon, tinha uma queda enorme por um GAROTO QUE USAVA CALÇA SKINNY.

Tomar consciência daquilo me fez queimar por dentro como se a temperatura estivesse abaixo de zero. Meu estômago revirou e, de repente, senti como se estivesse caindo, como em um sonho. Agarrei a beirada da mesa e me segurei com força. Não. Eu não quero. Eu não podia gostar de Zander. Não agora. Não quando as coisas estavam voltando ao normal. Não quando eu tinha uma chance de ser a protagonista de novo, no palco e no sétimo ano. Não quando eu estava voltando a ser Kacey Simon.

Acabei percebendo de que Molly estava certa: eu tinha que escolher. Zander e a música ou meu eu antigo. Meu eu verdadeiro.

— Kacey? — Zander sacudiu meu braço, me trazendo de volta à realidade. Seus olhos estavam arregalados, estudando meu rosto. — Sério. Está tudo bem? Você não parece estar legal.

Ver o semblante de preocupação no rosto dele me fez querer explodir em lágrimas.

— Eu… Eu não posso continuar na banda. As palavras saíram da minha boca antes que eu pudesse registrá-las no

cérebro. A julgar pela expressão de choque no rosto dele, eu imaginava que deveria

chorar, rir ou fazer alguma coisa. Mas eu estava anestesiada. Não ouvia nada além de um silêncio pesado e horrível.

— Espere aí. O quê? — Zander apertou os olhos, confuso. — Isso não tem graça.

— Eu não estou brincando. Passei a mão por baixo dos óculos e esfreguei os olhos. Minha voz estava

fria e sem emoção. Eu nem sequer soava como eu mesma. — Mas… por quê? — Ele estava próximo o suficiente para que eu pudesse

sentir sua respiração acelerando. — Se você não quer o violão… — Não é isso. É só… — Parecia que alguém estava arrancando minhas

tripas até não sobrar nada. — Sean disse que posso assumir o lugar de Molly no musical, e eu vou ficar muito ocupada e…

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— No musical? — A voz dele falhou de leve e seu lábio inferior tremeu. — Mas o musical é hoje à noite e acabou! Você pode fazer os dois!

— Zander! — falei com rispidez. Cerrei os punhos sobre a coxa. — Eu disse que não posso, tá bom? Então me deixa!

Ficamos em silêncio por um tempo. — Ah! — Por fim, ele arrastou a cadeira para trás. O som das pernas da

cadeira arrastando no concreto causou um arrepio na minha coluna. — Saquei. — Seus olhos ficaram gélidos. — Agora que você perdeu a língua presa e que voltou a andar com suas amiguinhas nós não somos bons o suficiente para você.

— O quê? Não! — exclamei, impotente. A apatia havia desaparecido, e a emoção tomou conta de mim, ameaçando

transbordar. Estava a ponto de vomitar. — Fala sério, Kacey. — Ele parecia completamente enojado. — Você podia

ao menos admitir. Admitir o quê? Eu queria gritar. Gritar que, toda vez que ele abria a boca para

cantar, eu ficava nas nuvens? Gritar que eu nunca tinha rido tanto na minha vida como quando estava com ele? Gritar que eu era estúpida o suficiente para só me dar conta disso depois de a minha melhor amiga ter saído com ele?

QUE EU MEIO QUE GOSTAVA DAQUELE CABELO AZUL, TÁ? — Ou você é uma mentirosa, além de interesseira? Ele ficou de pé e começou a andar de um lado para o outro na pista de skate.

O vento soprou seu casaco, fazendo-o esvoaçar para trás. — Zander! — choraminguei, agarrando o pulso esquerdo com a mão direita. A pulseira de couro havia endurecido no frio. Lágrimas mornas escorriam

pelo meu rosto gelado. Eu me perguntei há quanto tempo eu estava chorando. — Quer saber? — Ele passou a mão pelos cabelos, como se só de ficar perto

de mim desse dor de cabeça. — Eu não me importo mesmo. Tenho que ir embora.

Zander se inclinou na minha direção e tomou o violão do meu colo, enfiando-o no estojo. Seus olhos estavam abatidos e levemente vermelhos. Decepcionados. Tudo por minha causa. Eu queria impedi-lo, explicar que eu não podia continuar na banda porque isso significaria trair um dos meus

melhores amigos. Só que não era exatamente isso que eu estava fazendo neste instante?

— Desculpe — sussurrei. — Eu preciso. Ele não respondeu. O único som na pista era o barulho do vento e dois

cliques, enquanto eu abria a pulseira para entregar para ele. — Aqui. Fiquei de pé e arremessei, recusando-me a me torturar com um último olhar. Em silêncio, ele enfiou a pulseira no bolso, pegou a mochila e foi para a rua,

me deixando sozinha. No fundo, cheguei a achar que ele entenderia, que ficaria ao meu lado para

me ajudar neste momento. Que ele seria a única pessoa que não me abandonaria. Amaldiçoei a mim mesma por ser tão idiota. É claro que ele iria

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embora. Era como eu tinha dito a Paige. As pessoas vão embora. Elas seguem em frente. E Zander não era uma exceção.

Peguei meu celular para mandar uma mensagem a Molly com minha decisão final.

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Vinte e sete NOITE DE ESTREIA (E DE ENCERRAMENTO)

Sábado, 6h40 da noite

Apliquei uma última camada de rímel e coloquei os óculos. Assim que pisquei os olhos, pequenas bolinhas pretas se depositaram nas lentes. Resmunguei e comecei de novo.

De calça jeans e um blazer boyfriend, mamãe se sentou de pernas cruzadas na cama desfeita, me vendo passar a maquiagem para a apresentação. Provavelmente para ter certeza de que eu não iria exagerar.

— Ella e eu estamos preparando uma coisa especial para sua grande noite. — Ela buscou meu olhar no reflexo do espelho. — Está pronta?

— Acho que sim. — Abri um pouquinho a boca enquanto aplicava o rímel. — Não é nada de mais.

— Kacey? — A voz de mamãe tinha aquela entonação de tem alguma coisa sobre a qual a gente precise conversar? — Está tudo bem?

— Tá. Tudo bem. Engoli em seco, tentando expulsar a lembrança da manhã com Zander. — Tá. Tudo bem — repetiu ela sem acreditar. Esse é o problema com as mães. E com os jornalistas. Eles não deixam passar

nada. E quando você tem uma mãe que também é jornalista… é melhor esquecer.

— Só estou um pouco nervosa — menti. Eu me curvei um pouco para aliviar as dores no estômago, mas elas só

aumentaram. Desejei estar de moletom, em vez de calça lápis preta e camiseta justa prateada.

— Já entendi. É uma noite importante — reconheceu mamãe. — Principalmente porque você não planejava interpretar.

É. É isso. Concordei com convicção. — Mas você estava animada para fazer o papel, não estava? — É. Parecia que haviam passado séculos desde que eu e as meninas nos

amontoamos diante das portas do auditório para ver a lista com a seleção do elenco.

— Então, o que quer que esteja fazendo você ficar com um pé atrás… — Ela

veio por trás de mim e me deu um abraço. — Faça o melhor que puder para não deixar isso atrapalhar você. Hoje é a sua noite, meu amor. Eu odiaria que você perdesse esse momento.

Fechei os olhos e me apoiei nela, querendo contar tudo para que ela pudesse me ajudar a consertar as coisas.

— Mamãã… O barulho estridente do alarme de fumaça da cozinha disparou por cima da

voz de Ella.

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— Ai, meu Deus do céu! — Mamãe se virou e desceu as escadas correndo. — Esteja lá embaixo em cinco minutos, srta. Simon!

Chequei meu reflexo no espelho uma última vez. Mamãe tinha me ajudado com o delineador cor de chocolate, já que minhas duas tentativas pareciam ter sido feitas por Ella com a mão esquerda. Mesmo de óculos, o delineador fazia meus olhos verdes sobressaírem. O blush cor de pêssego acentuava minhas maçãs do rosto e o batom vermelho-sangue definitivamente desviava a atenção do aparelho. Mamãe tinha me deixado usar seu modelador de cachos, então meus cabelos caíam em ondas ao redor do rosto.

Alguém teria dito que eu era uma farsa completa. Uma impostora. Uma

mentirosa, interesseira, um monstro que abandonava bandas de rock. Agarrei o casaco e a bolsa e peguei meu celular. Quatro novas mensagens.

PAIGE: VOCÊ PERDEU A REUNIÃO DE CAMPANHA HJ D MANHÃ!!! ONDE VC ESTAVA? P.S. DISTRIBUIR PANFLETOS NO INTERVALO DO MUSICAL É CAFONA? MOLLY: QUEBRE A PERNA. MAL POSSO ESPERAR P/ T VER. LIV: LEMBRE-SE, RESPIRE FUNDO. PAZ, DEUSA DOS PALCOS. MOLLY: P.S. VC FALOU C/ Z SOBRE O ENCONTRO? PRECISO D INFO

ANTES DA FESTA. NESSA: PERGUNTE A SI MESMA: QUAL É A MINHA MOTIVAÇÃO?

(DICA: NÃO É BEIJAR Q. ISSO É SÓ UM BÔNUS.) VC VAI ARRASAR.

Nada de Zander. Não que eu esperasse alguma coisa. Eu já tinha

recomeçado umas cinquenta vezes a mensagem para ele, mas nenhuma parecia adequada. De qualquer forma, não tinha importância. Não havia nada que eu pudesse dizer a ele que o fizesse entender, a menos que eu contasse toda a verdade. E isso era cem por cento impossível.

— Estamos prontas! — gritou mamãe. — Estou descendo! Lá embaixo Ella estava de pé na porta da cozinha, com a luz apagada,

segurando um bolo com velas que soltavam estrelinhas. As luzes piscando e tremendo refletiam nos óculos de leitura dela.

— SURPREEEEEEEEESA! — exclamou ela. — Feliz noite de estreia — disse mamãe, sentada à mesa. — Obrigada! Peguei o bolo e o coloquei na frente dela. A cobertura cor-de-rosa dizia PARABÉNS, KAC. — Acabou a massa de confeitar. Ella limpou uma manchinha de cobertura do nariz. — Tenho certeza de que está uma delícia. Beijei mamãe no rosto. — E eu! Eu! — Ella chamou atenção para sua bochecha, e eu a beijei

também. — Certo, vamos cortar — disse mamãe. — Não queremos nos atrasar para o

seu grande momento.

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As velas queimaram até o fim e mamãe acendeu as luzes, revelando uma caixa com um laço cor-de-rosa diante do meu lugar na mesa. Um bilhete dizia: PARA A MINHA ESTRELA BRILHANTE, DENTRO E FORA DOS PALCOS. COM AMOR, MAMÃE.

— Mãe! — gritei, soltando o laço e tirando os maços de papel crepom rosa

de dentro da caixa. Ali, muito mais valiosas que o maior diamante do mundo, havia um par de lentes transparentes e um colírio. — Lentes?

Eu tinha me esquecido completamente.

— Você já cumpriu sua sentença. — Mamãe sorriu. — Peguei as lentes com o Dr. Marco hoje para que você pudesse usá-las no musical hoje.

Empurrei a cadeira para trás e a abracei. — Obrigadaobrigadaobrigadaobrigada! Respirei. Sem língua presa. Sem óculos. Eu estava totalmente preparada

para o palco. — Não tem de quê. — Ela riu, também me abraçando apertado. — Que bom

que você gostou. E, aliás, se não usar o colírio, você vai usar óculos para o resto da vida.

— Vou usar. Prometo. — Eu me sentei de novo. — Adorei. Com um ar solene Ella retirou os óculos de leitura, dobrou as hastes e os

colocou do lado do prato com um suspiro. — Vá colocá-las — disse mamãe. — Precisamos sair logo se quisermos

chegar na hora. — Tá legal! Tirei os óculos e saí correndo até o banheiro do hall. — Kacey… — reclamou mamãe. — Tudo bem! De volta à mesa. Coloquei os óculos pela última vez. E então fui para o

banheiro. Definitivamente as lentes eram um sinal. Meus dias de óculos — meus dias

de Zander — tinham acabado. E não havia lugar melhor para estrear do que no palco, diante do colégio inteiro. Sob os holofotes, meu devido lugar.

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Vinte e oito A VERDADEIRA FACE DE KACEY SIMON,

QUEIRA SE APRESENTA, POR FAVOR? Sábado, 7h29 da noite

— Ooooi, Simon! Quando entrei pelas portas do auditório a primeira pessoa que vi foi Quinn

Wilder, no palco, com as mãos ao redor da boca como se fosse um megafone. Ele já vestira o figurino: terno risca de giz preto perfeito e uma gravata vermelha que sobressaía sob a luz do palco. O cabelo cor de areia foi penteado para trás, deixando-o pura perfeição. Atrás de Quinn o palco estava lotado com a equipe técnica, figurantes e mais algumas pessoas que não reconheci.

Engoli em seco. — Oi, Wilder — respondi. Com minha nova visão cristalina, mesmo de tão longe era possível notar

como seus lábios eram beijáveis. Então por que eu só conseguia prestar atenção no som de uma guitarra sendo afinada que saía do fosso da orquestra?

— Gostei do... — ele parou, como se não soubesse bem o que dizer — ...rosto.

Andei devagar pela coxia, deixando o cabelo cair no meu casaco verde da maneira mais sensual que consegui.

— Obrigada. Corri para o palco, doida para sentir o cheirinho da essência de chiclete de

Quinn. — E aí? Sem óculos, agora? — perguntou Quinn. E neste exato momento alguém colocou um filme dourado sobre uma das

luzes do palco, mergulhando Quinn em um halo de luz celestial, como se ele fosse uma espécie de deus entre os alunos mortais.

— Pois é. De volta à velha Kacey. Ergui os olhos para encontrar os dele, com confiança. Ele me encarou de

volta, e permanecemos assim por pelo menos dois compassos. Quatro, se o tempo fosse dois por quatro. É isso? Zander saberia. Sacudi a cabeça, afastando a imagem de Zander. Eu tinha feito minha escolha.

— Ficou legal. — Direto ao ponto. Exatamente como um garoto deveria ser, sem espaço para confusão. Nada de letras de música doces e ambíguas que podiam levar uma menina à loucura. — Bom, eu estava pensando… — Quinn fechou um pouco os olhos. — Já que eu estava ensaiando com Molly, talvez eu e você devíamos dar uma lida nas falas antes do show.

Devêssemos, corrigi em silêncio. Respirei fundo, pelo nariz. — Encontro você nos bastidores depois que eu vestir o figurino, ok? — Fechado. Ele sorriu, fazendo todo o meu corpo tremer em expectativa.

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Saí pela direita do palco sem falar mais nada, bem controlada, me esgueirando pela equipe de montagem barulhenta, muito embora por dentro eu estivesse uma pilha de nervos. Eu não precisava olhar para trás para saber que Quinn ainda olhava para mim.

Liv havia arrumado as araras de roupa diante do camarim das meninas: uma para os papéis principais, uma para as figurantes e uma para as dançarinas. Achei o cabide com meu nome e puxei minha minissaia marrom e o casaco.

— VOCÊ. ESTÁ. INCRÍVEL. Levei um susto ao ouvir a voz de Molly.

— É sério. Você parece uma estrela do rock. Uma estrela do rock. Senti uma pontada no estômago. Mas meu estresse se

transformou em gargalhadas assim que vi a fantasia de Molly. Ela usava uma roupa gigante de dado dançarino: um cubo branco enorme feito de espuma que cobria o corpo todo, exceto as pernas. Havia furinhos para os olhos nas bolas pretas da face dianteira do dado.

— Hooooomem nos bastidores! — gritou Nessa para as meninas no camarim, balançando uma pilha de programas na prancheta. — Todas vestidas?

Ela estava de diretora chique da Broadway, usando preto da cabeça aos pés. E óculos de gatinha com strass. — Siiiim — responderam todas. Encarei minha amiga boquiaberta. Ela baixou os lábios para o microfone sem fio do headset. — Liberado. — Certo, meninas, prestem atenção. — A voz de Sean retumbou nos

bastidores. Em vez da calça jeans padrão ele usava calça cáqui e camisa de botão com as mangas arregaçadas. — Temos vinte minutos até as cortinas se abrirem, e a casa já está cheia. Então preciso que todas vistam seus figurinos e estejam prontas para arrasar em menos de dez minutos! Entendido?

Houve um curto momento de silêncio, e então todo mundo voltou ao que estava fazendo.

— Kacey? Kacey Simon está aqui? Sean me procurou entre a multidão até me ver. Ele arregalou um pouco os

olhos, como se não tivesse me reconhecido. — Aqui. Pisquei, tirando os tênis e pegando os oxfords matronais que faziam parte

do figurino. Sorri para mim mesma quando vi o desenho na ponta do sapato: pequenos corações de purpurina prateada, exatamente igual aos que Liv tinha desenhado para mim no meu All Star havia duas semanas. Corações que só eu veria no palco. Passei o dedo sobre o alto-relevo.

— E aí? — Sean sorriu. — Molly disse que a sua… bem… o seu problema de fala já foi resolvido.

Tradução: Diga alguma coisa com s para que eu tenha certeza de que as pessoas não vão rir até me derrubarem da minha cadeira de diretor.

Ele podia muito bem ter perguntado sem rodeios. Como não foi isso que ele fez, decidi me divertir um pouco.

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— É. Completamente curado. Cem por cento melhor agora. Eu me aproximei de Molly e fiz um sinal de positivo com a mão. — Legal. Ótimo. Fico feliz por isso. Ele perambulou sem jeito pelas araras de roupas, tentando pensar em algo

mais para dizer. Eu o deixei se contorcer por um tempo. E então: — Bem, tenho que trocar de roupa… Colocar a fanta… — parei bem na hora

— … o figurino. Molly riu dentro da fantasia, finalmente entendendo a brincadeira. — Certo. Claro. Tudo bem. — Ele coçou a nuca. — Bem… vejo você no

palco? Boa sorte. — Claro. Fico muito... grata pelo apoio. Sean olhou para mim por um instante, confuso, e então se mandou para o

camarim dos meninos. — Certo, vejo você daqui a pouco? — Dei um sorriso para Molly. — Fato. — Antes que eu pudesse desviar da fantasia ela agarrou meu braço

esquerdo e o segurou com força. — Ah. Você sabe se… Zander já está aí? Meu estômago revirou. Dessa vez era definitivamente culpa. — Não. Ainda não. Ela fechou a cara. — Mas eu guardei um lugar para ele na primeira fila! — Ele vai chegar — assegurei. — Eu o vi hoje de manhã e ele disse que

gostou muito de sair com você ontem — menti. — É mesmo? Seu rosto se iluminou novamente. Assenti. — Conto tudo na festa, tá legal? Preciso me trocar. Saí correndo antes que ela tivesse uma oportunidade de notar minha queda

por Zander ou a mentira. Troquei de roupa depressa atrás de um biombo e saí à procura de Quinn.

Nem me importei em me checar pelo espelho. Percebi, pelos sussurros e olhares arregalados de admiração e medo dos outros alunos, que eu estava… de volta ao normal.

— Oi. Um braço forte me agarrou e me virou, tirando meu fôlego. — Oi. Foi um milagre que eu tenha conseguido responder. De chapéu e prendedor

de gravata prateado adicionados ao figurino, Quinn estava mais bonito do que nunca. Ajeitei meu casaco bordô, apenas para ter o que fazer. Mas minhas mãos tremiam, e não era nervoso por causa da apresentação.

— TRÊS MINUTOS PARA A CORTINA, GENTE! — gritou Nessa. — Então, você quer repassar umas falas rapidinho? O modelo de revista diante de mim ainda não tinha soltado meu braço. O

que era irrelevante, já que eu estava com o corpo todo dormente mesmo. Assenti. — Vem aqui.

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Eu deixei que ele me arrastasse até o fundo dos bastidores, passando pelos manequins e os biombos até o final, onde não havia nada exceto um esfregão apoiado em um canto e um daqueles baldes amarelos grandes com um desenho de um boneco de palito escorregando no piso molhado.

Quinn chutou o balde para o canto e ele saiu rolando. — Estou feliz por você ter voltado ao normal, sabia? — murmurou ele,

apoiando-me gentilmente contra a parede. — É. — O rastro de amônia que o balde deixou no ar estava me deixando

tonta. Minha respiração acelerou. — Então, que cena você gostaria de ensaiar? Nós só temos um…

E aí ele me beijou. Foi um beijo de cinema. Em câmera lenta e tudo. Em um instante eu estava

falando e no seguinte MEUS LÁBIOS e os LÁBIOS DELE estavam atravessando o espaço entre nós, desesperados para se encontrar. A boca de Quinn conseguia ser mais macia que seu cabelo, e senti seus cílios dignos de comercial de maquiagem na minha pele. Ele segurou meu rosto com as mãos, fazendo cada nervo do meu corpo explodir como fogos de artifício.

— Ei, alguém viu… — Aimeudeus! O que você está fazendo aqui? — engasguei. Zander me encarou pelo que pareceram horas. Meu corpo ficou quente e

arrepiado, mas não de um jeito bom. — Ah, eu estava procurando Molly. Ele ergueu um buquê de rosas amarelas e ficou completamente vermelho.

Olhou feio para Quinn, depois para mim. Sua boca estava aberta, mas ele não disse nada.

— O que foi? Cruzei os braços, com a sensação de que Zander tinha acabado de me ver de

biquíni: completamente exposta e humilhada. — Quero dizer… — Zander balançou a cabeça devagar. — É sério? Esse

cara? Ele apontou Quinn com o polegar. — E aí, cara? — acenou Quinn. — E o que você tem a ver com isso? — devolvi. — Você está com Molly!

— Eu não tenho nada a ver com isso. — Que bom. — Que bom. — CORTINAS, PESSOAL! — Ouvi a voz de Nessa a distância. — Preciso de

Kacey Simon pronta para entrar em cena! Kacey! Simon! Quinn sorriu e apertou o meu braço. — É você.

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Vinte e nove EU VOU QUERER O MESMO QUE ELA

Sábado, 9h30 da noite

Quando as cortinas baixaram ao final da apresentação, eu tinha quase esquecido que Zander havia estragado meu primeiro beijo de verdade. O elenco foi ovacionado, e a exaustão me deixou louca por um cupcake acompanhado de um namorado novo em folha.

Sean havia alugado o Sugar Daddy para aquela noite, e a decoração estava maravilhosa. A iluminação foi reduzida, as mesas e o piso estavam cobertos de confete prateado, e balões de gás dourados flutuavam sobre todas as cadeiras. Todos do elenco e da equipe de produção da peça estavam amontoados ao redor das mesas, revivendo momentos específicos do musical diante de travessas de cupcakes com bastante cobertura.

As meninas e eu havíamos escolhido a mesa quadrada no centro da padaria, já que era o lugar perfeito para ver e ser visto. Só havia um “problema”: como Liv, Nessa, Jake Fields e Aaron Peterman haviam ocupado quatro das cinco cadeiras, Quinn e eu tivemos que dividir uma.

Nessa cortou seu cupcake red velvet com garfo e faca. — Aliás, isso aqui é para vocês assinarem. — Ela baixou os talheres e passou

um programa do musical para mim e para Quinn. — Vai ser realizado um leilão no final da noite.

Peguei uma caneta e assinei com um floreio. — E Mols? Ela vem? — E vai trazer aquele namorado exageradamente dramático e

curioso a tiracolo? — Ela mandou uma mensagem dizendo que vai chegar aqui em um minuto

— respondeu Liv com a boca cheia de chocolate vegano. Engoli em seco. Quem sabe no caminho até o Sugar Daddy Molly e Zander

começassem um briga a respeito de quem tem a tinta de cabelo mais feia e terminassem. E então Zander iria para casa antes de ter uma chance de destruir a festa do elenco.

— Você mandou bem demais — disse Quinn. Seus lábios estavam a apenas alguns centímetros da minha orelha. — É sério. Você estava perfeita.

— Você também — flertei de volta, forçando-me a encará-lo. Por baixo da mesa ele entrelaçou os dedos nos meus, apertando-os. Sua mão

estava um pouco suada, mas eu disse a mim mesma que não tinha importância. As pessoas estavam vendo, e a sensação foi maravilhosa.

— Finalmente! — exclamou Nessa, olhando por sobre meu ombro. Virei a cabeça. Molly estava atrás de mim, de calça jeans e com um casaco de

capuz amarelo fluorescente que era da cor de chiclete de banana. O casaco do Acoustic Rebellion de Zander. Ele apareceu por trás dela. E não parecia feliz em me ver.

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— Foi maaaal. É que Z e eu… nos distraímos. — Molly se afastou antes que eu assimilasse suas palavras.

Distraíram?

— Oi, gente. Bom show — disse Zander. Quando seus olhos encontraram os meus, meu estômago pareceu afundar mais rápido do que o último cair de cortinas da noite. — Você também, Kacey. Não que seja uma surpresa o fato de você ser uma boa atriz. Quero dizer, atuar é a sua especialidade, não é?

Nessa franziu a testa. Liv deu uma risada nervosa, como se ele estivesse brincando. Só eu sabia que ele não estava.

Segurei a mão de Quinn e a coloquei sobre a mesa. Minha mão tremia. — Que bom que gostou, Sr. Calça Skinny — provoquei. — Mas nem tudo o

que você viu no palco é atuação. — E entrelacei os dedos nos de Quinn, apertando-os. — Claro que você já sabia disso, já que estava espionando a gente, não é?

— Estou sentindo um clima — observou Nessa. — Talvez se você respirasse fundo... — Liv sorriu e tentou ajudar. — Estou bem — respondi, apertando a mão de Quinn com mais força ainda. E então peguei um garfo e o finquei no cupcake, colocando um pedaço

grande demais na boca. Molly voltou com uma cadeira extra, seus olhos correndo agitados de Quinn

para mim e de volta para Quinn. Ele passou o braço ao redor do meu ombro. Meu estômago embrulhou, e o

cupcake ficou preso na garganta. — Não olhem agora — sussurrou Molly. — Phoebe está vindo para cá. Engoli em seco. — Quem? Olhei ao redor, desesperada para me concentrar em alguém que não fosse

Zander. — Kacey! — chamou Paige, se esgueirando entre a multidão. Ela usava um dos broches da campanha. Um, não, dois: um na camisa e um

na alça da mochila. E, em vez do costumeiro uniforme preto, estava toda de verde. Parecia um leprechaun magro e comprido.

— Não olhem! — riu Molly. — Parabéns, gente — disse Paige quando chegou à mesa. — Principalmente

você, Kacey. — Obrigada. — Sorri. — E você viu a parte em que… Molly me chutou por debaixo da mesa. — Obrigada — repeti, me debruçando sobre Quinn. Paige pareceu não notar.

— Bom, eu estava pensando que a gente podia passar essa noite na sua casa, para trabalhar no debate?

Molly me lançou um olhar gélido. Nessa mordeu as bochechas e revirou os olhos.

— Na verdade, eu ia passar a noite na casa de Nessa com as meninas. Quem sabe no fim de semana que vem?

As sobrancelhas escuras de Paige sumiram atrás dos óculos.

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— É que no fim de semana que vem vou para a casa dos meus avós, então queria começar antes. Lembra?

— É verdade. — Suspirei, irritada. Será que ela não podia esperar até que minha grande noite tivesse acabado? — Mas…

— IMPRENSA! IMPRENSA chegando! Abra Laing abriu caminho entre as pessoas na direção de nossa mesa. Ela

estava empunhando um microfone da Marquette e sacudindo o programa do musical como se fosse um crachá de imprensa.

— KACEY! Podemos fazer um spot para o MINUTO? Ela se aproximou da minha cadeira, tirando Paige do caminho. — Ei! — reclamou Paige. — A gente estava no meio de um assunto. — Paige! Já falei. Outra. Hora. Assim que as palavras saíram da minha boca eu sabia que poderia ter dito

aquilo de outra forma. Minha voz soou ríspida, até mesmo para mim. A mesa ficou em silêncio, e Paige me encarou. E então seu rosto pareceu

relaxar e a coisa mais esquisita aconteceu. Ela riu. — Claro, Kacey. Outra hora. Como se isso fosse acontecer. Você conseguiu o

que queria, não é? — Ela fechou o rosto novamente. — Então o restante de nós não importa de verdade.

— É isso aí — concordou Zander, alto o suficiente para que todo mundo ouvisse.

— Ah, dá um tempo — retruquei. Com Quinn imprensado contra mim de um lado e Paige e Abra me apertando do outro, eu mal conseguia respirar. — Relaxa e me dá um pouco de espaço para eu aproveitar a noite, tá legal?

Um silêncio desconfortável correu a mesa, todos se ajeitaram nos seus lugares, evitando levantar os olhos.

— Sabe, achei que você tinha mudado. — O rosto de Paige foi tomado por uma expressão de repulsa. — Mas acho que eu estava errada.

Ela deu meia-volta e saiu. — Paige! — Zander empurrou Abra para o lado. — Espere! — Zander! — Molly parecia horrorizada. — Oi? — Nem tente segurá-lo — soltei.

Zander seguiu Paige até a rua, onde ela ficou andando de um lado para o outro, gesticulando furiosamente. Ele balançava a cabeça, obviamente concordando com tudo o que ela dizia a meu respeito.

Eu me voltei para a mesa, sentindo uma súbita punhalada de traição na barriga.

— Estou pronta, Abra. Funguei e dei uma ajeitada no cabelo. — Ce-Certo — gaguejou Abra, com os olhos vidrados. — Er, fique de pé, na

frente da mesa. Abra acenou para o câmera. Uma luz forte inundou o espaço ao meu redor assim que me levantei e a

luzinha vermelha do botão REC começou a piscar.

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— Eu sou Abra Laing, E VOCÊ ESTÁ ASSISTINDO A MINUTO! MARQUETTE! — gritou Abra para a câmera. — Estou AQUI com KACEY SIMON, ESTRELA DE GAROTOS E GAROTAS! KACEY! ESTA NOITE! VOCÊ

DEU UMA INCRÍVEL VOLTA POR CIMA! COMO SE SENTE? É VERDADE QUE VOCÊ E QUINN VÃO LEVAR O ROMANCE PARA FORA DOS PALCOS TAMBÉM?

Olhei para as portas da padaria atrás de Abra. Agora Zander estava abraçando Paige, que havia enterrado o rosto na jaqueta dele. Ela estava… chorando? Um nó fechou minha garganta, e segurei as lágrimas. Eu não conseguia decidir se queria pedir desculpas ou ir lá fora e brigar com Paige por

fazer eu me sentir mal na minha grande noite. — KACEY? — repetiu Abra. Seus olhos indo nervosamente da câmera para

mim. — COMO VOCÊ SE SENTE? Como eu me sentia? Era uma pergunta estranhamente complicada. O Sugar

Daddy estava lotado com meus amigos, meus colegas do musical, meus professores, cada um deles ali para me homenagear. Eu deveria me sentir viva. Mas só me sentia vazia.

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Trinta NA CRUEL LUZ DA ALVORADA

Domingo, 7h14 da manhã

Quando abri os olhos na manhã seguinte a luz cinzenta começava a atravessar as janelas. Meu quarto ainda estava escuro, mas eu podia ver bem o suficiente para distinguir o cartaz colorido que Ella tinha pintado para mim: AQUI É SIMON FALANDO: KACEY É DEMAIS!

A silhueta de Ella inspirando e expirando entrou em foco; ela caiu no sono na minha cama depois que cheguei em casa na noite passada. Sua boca estava ligeiramente aberta, e havia uma mancha de chocolate no lábio superior. Ela parecia mais tranquila do que o cabelo de Molly depois de uma sessão de relaxamento. Eu, por outro lado, não estava nada calma. Minha cabeça latejava, e meu estômago parecia ter mais nós do que os suéteres tricotados à mão de Liv.

Com um suspiro, saí da cama o mais silenciosamente que pude e calcei velhos chinelos vermelhos. Lá embaixo mamãe havia deixado um bilhete perto da cafeteira.

recebi uma ligação para fazer uma substituição em um programa matinal. volto às 9. os ingredientes pra panqueca estão na despensa e na geladeira. não deixe ella comer a massa crua dessa vez. o celular está ligado se precisar falar comigo.

estou tão orgulhosa de você, meu docinho!!!!!!

te amo, mamãe

p.s.: nada de bolo no café da manhã! (pq eu comi tudo) p.p.s.: já falei como estou orgulhosa?

Amassei o bilhete, reprimindo a vontade de começar a soluçar na pia. Se

mamãe soubesse o que tive que fazer para conseguir o papel de volta ou se visse a expressão nos olhos de Paige e Zander ontem à noite, ela não teria deixado aquele bilhete.

Coloquei a chaleira no fogo para fazer um chocolate quente e me sentei à mesa da cozinha, para checar meu celular: 15 NOVAS MENSAGENS.

MOLLY: VC FOI D+. EU Ñ ESTAVA LINDA COM O CASACO DE Z? DORMI COM O CASACO ESSA NOITE. NESSA: VAMOS NO SUGAR DADDY? É OFICIAL: ESTOU VICIADA. UM

PROBLEMA.

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LIV: NESSA QUER IR AO SUGAR DADDY. MAS ESTOU TENTANDO LARGAR O VÍCIO. TEAVANA ÀS 4?

QUINN: QUER SAIR? MOLLY: O CASACO ERA FOFO O SUFICIENTE PARA EU USAR NO

SHOW DA BANDA DO Z NO FDS Q VEM? PRECISO DE AJUDA COM O GUARDA-ROUPA!

Senti uma pontada de dor de cabeça só de pensar no show da banda.

Apaguei a última mensagem dela e li as restantes. Eram mensagens e mais mensagens, mas nenhuma de Zander ou de Paige. Abri meu laptop, entrei no

site de Paige e cliquei no último post do blog da campanha.

UMA PEDRA NO CAMINHO DA CAMPANHA POSTADO POR PRESPAIGE | SÁBADO ÀS 22H47

Ontem à noite a campanha sofreu um duro golpe quando uma das minhas supostas colaboradoras (vamos chamá-la de Sarah Brown) abandonou a causa em prol dos quinze minutos de fama no palco da Escola Marquette. Mas, como qualquer político competente, descobri a verdade a respeito dessa suposta amiga.

Sua candidata gostaria de saber: o que aconteceu com as amizades baseadas em honestidade e confiança, em vez de popularidade?

A campanha tem de continuar. Então, na segunda-feira estarei no estúdio de tevê da Marquette para rever o DVD com meu último discurso de campanha e filmar uma propaganda que vai estrear na semana das eleições.

Ah, e não se esqueçam, para contribuir com a campanha clique no link AjudeGreene à esquerda da sua página. Você pode colaborar com um futuro melhor para a Marquette, mesmo que algumas pessoas não façam o mesmo.

Paz, amor e democracia, Presidente Paige

Reli o post uma, duas, três vezes, e a enxaqueca piorava a cada segundo. Eu

havia optado pela minha retomada e esquecido Paige, ainda que os planos dela tivessem sido os responsáveis pelo meu retorno ao palco e pelo reencontro com as minhas amigas. Eu nem tinha agradecido a ela. Eu apenas a deixara de lado, exatamente como Molly fez no instante em que tive que usar óculos e aparelho.

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Trinta e um VERDE-HONESTIDADE

Segunda-feira, 7h11 da manhã

— Tchau, mãe! — gritei enquanto descia as escadas na segunda de manhã. Eu pretendia interceptar Paige antes de ela entrar no estúdio, então não

havia tempo para um café da manhã em família. Mal tive tempo para arranjar meu visual de apoio à campanha “Vá de Greene”. Optei por uma minissaia de tafetá verde-oliva com uma blusa de caxemira preta de gola V, meia-calça estampada e ankle boots de camurça preta.

Peguei meu casaco de pied-de-poule e o cachecol preto e corri pela porta, cheia de determinação. Eu podia consertar tudo. Eu tinha que fazer isso.

Na casa ao lado, Paige estava saindo com um monte de balões verdes, duas mochilas cheias de pôsteres enrolados e o cartaz gigante de espuma da campanha.

— PAIGE! — gritei, observando-a cambalear perigosamente pelos degraus de casa. — ESPERE! VOU AJUDAR VOCÊ COM SUAS COISAAAAS!

Paige me olhou por sobre um jarro de plástico gigante cheio de pirulitos verdes.

Desci os degraus correndo, passei pelo portão da frente e a interceptei diante da cerca.

— Oi — falei sem fôlego. — Oi — respondeu ela friamente, sem parar de andar. — Precisa de ajuda? — ofereci. — Não de você. Se ela achava que podia me dispensar fácil assim, estava enganada. — Tem certeza? Porque se você precisar de ajuda com o vídeo da pro… — Sério, Kacey — interrompeu Paige. — Já falei que não preciso de ajuda. —

E como se estivessem esperando uma deixa, o jarro de plástico, o cartaz de espuma e um punhado de broches da segunda mochila caíram no chão. — Ótimo.

A palavra ficou presa na sua garganta. Eu me abaixei e peguei um monte de pirulitos, sentindo a pontada do seu

sarcasmo. — Paige. — Joguei os pirulitos no jarro vazio e eles caíram fazendo barulho.

Engoli em seco. — Desculpe. Mas quero ajudar na campanha agora. Tudo bem? Por favor.

Fui de um lado para o outro como uma criminosa, catando cada pedacinho da parafernália de campanha que eu conseguia segurar.

Ela ajoelhou e me olhou direto nos olhos. Seu gorro preto de crochê estava torto e, de repente, eu queria ajeitá-lo.

— Não — disse ela simplesmente. Um alfinete aberto de um dos broches de campanha espetou meu polegar.

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— Mas… eu disse que sentia muito. Minha voz falhou. Quando as pessoas pedem desculpa com sinceridade,

você tem que aceitar! Será que não tinham explicado isso para Paige? — Só quero pessoas fiéis e comprometidas trabalhando na minha campanha.

E não gente que é tão cheia de si que não dá nem para confiar que cumpra sua parte em um acordo.

Ela fechou a tampa do jarro de plástico e ficou de pé. Fiz força para levantar, perdendo a paciência. O que eu teria que fazer para

ela me perdoar? Transmitir um comício na tevê? Arrumar um espaço para ela no canal da mamãe? Ir ao colégio pintada de verde da cabeça aos pés durante o

mês todo? — Eu disse que sentia muito. Eu… — Eu, eu, eu. — Paige catou o restante do material e voltou a caminhar. Eu

me esforcei para acompanhá-la. — Existe alguma outra palavra no seu vocabulário? Você é tão obcecada consigo mesma que acha que todo mundo tem que ser que nem você! Fazer o que você faz, dizer o que você diz, usar o que você usa! Mas vou contar uma coisa! — gritou ela por cima do ombro. — Nem todo mundo quer ser a porcaria da Kacey Simon!

— PAIGE! Fiquei parada no meio da calçada, minhas mãos pendendo sem jeito ao lado

do corpo enquanto Paige descia a rua parecendo um furacão, deixando para trás um ou outro pirulito como se fosse a Maria de João e Maria.

Meu estômago revirou violentamente e lágrimas escorreram dos meus olhos. Eu queria voltar e dizer que estava doente e que não podia ir à aula, mas, em vez disso, me forcei a ir até a estação de trem.

Quando cheguei à plataforma Armitage, Paige já não estava lá. As únicas pessoas eram alguns alunos e um carteiro conduzindo sua bicicleta até a extremidade da plataforma. Alinhei os pés com a faixa amarela de segurança e encostei o queixo no peito, desejando que ninguém visse meus olhos vermelhos e inchados.

— Olááá! — Dei um salto ao ouvir a voz de Molly perto de mim. Ela passou o braço ao meu redor. — Estamos chamando você há um quarteirão!

— Aaaai, meu Deus, é Kacey Simon! — brincou Liv, abanando o rosto com a pontinha do cachecol como quem está prestes a desmaiar. — A Kacey Simon. Pode me dar um autógrafo?

Ela enfiou um dever de casa de francês pela metade na minha cara. — Oi, gente — não consegui falar mais nada. — O que houve? — perguntou Nessa sem rodeios, ajustando a presilha do

cabelo. — Você parece péssima. — Estou bem. Só estou cansada — menti, piscando rapidamente. — Você não sabia? — Liv apertou o rabo de cavalo lateral alisado com

chapinha. — Ser uma celebridade é tããããão cansativo. Abri um meio sorriso. — Talvez isso faça você se sentir melhor. — Liv enfiou a mão no bolso da

capa de chuva vintage e puxou uns óculos de gatinha. Eram exatamente iguais aos que Nessa havia usado na noite de sábado, exceto que estes tinham

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pedrinhas de esmeraldas nos cantos. — Vão à venda hoje. Todo mundo vai querer um par.

Ela colocou os óculos. Eu sabia de uma pessoa que iria querer: Paige. Eles ficariam perfeitos para o

discurso de campanha. — São lindos — falei com tristeza. — Aposto que o programa tem um milhão de cartas depois de sábado à

noite — disse Molly enquanto prendia o cabelo em um coque desarrumado no alto da cabeça. — Os otários provavelmente estão fazendo fila para falar com você.

— Que otários? Liv passou o dever de casa de francês para Nessa, que revirou os olhos e

começou imediatamente a conjugar verbos com uma caneta roxa. — Você sabe. As outras… pessoas. — Vamos ver! — Antes que eu pudesse interrompê-la, as mãos de Liv

mergulharam na minha bolsa e pegaram meu telefone. Ela o ergueu sobre a cabeça em sinal de vitória, como se fosse o Cálice Sagrado, e então entrou no meu e-mail do Simon Falando. — Ceeeerto. Vamos ver. Primeiro, temos Joe

Chutado. — Sem graça — decidiu Molly. — “Querida Kacey, escrevo porque estou desesperado.” — Dã. — Molly já parecia entediada. — Pule para a parte boa. — Hum… ele está saindo com essa menina há algumas semanas, gosta

muito dela, acha que é a garota da sua vida… mas nos últimos tempos ela tem andado com o melhor amigo dele…

— Genial — aprovou Molly. — Draaaamaaaaaaa. — … não tem certeza, mas acha que talvez ela tenha mais a ver com o

melhor amigo do que com ele… O que ele deve fazer? Liv me encarou em expectativa. E as meninas também. Mordi o lábio. Ler essas cartas costumava me dar uma descarga de

adrenalina, mas agora eu me sentia mais cansada do que se tivesse que fazer uma transmissão de uma hora, ao vivo, sem intervalos. Pisquei para minhas amigas. Molly ajeitou o cabelo, esperando. Liv chegou mais perto. Nessa parou

de conjugar verbos. — Hum… Querido Joe Chutado — comecei, sabendo que elas queriam que

eu avisasse ao menino que já era tarde demais: ele tinha perdido a garota para sempre.

Mas, enquanto elas olhavam para mim, cheias de expectativa, minha mente ficou completamente vazia. Parecia que o cara realmente gostava dela, e ele a havia perdido para o melhor amigo. Qual era a graça disso?

— Ahhh… Querido Joe Chutado — interrompeu Molly, sem paciência. — Em primeiro lugar, Simon Falando para ser anônimo. Então, muito obrigado por nos dar uma dica sobre a sua identidade, seu idiota.

— Joe, tem um livro maravilhoso que acho que você deveria ler. — Nessa soou convencida. — Parece que foi escrito especialmente para você. Não

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consigo me lembrar do título… — Ela pressionou o indicador contra os lábios, fingindo pensar. — Ah, é isso. Lembrei.

— ELA SIMPLESMENTE NÃO ESTÁ A FIM DE VOCÊ!!! — gritaram Molly, Liv e Nessa em uníssono.

Enquanto as meninas morriam de rir e trocavam high fives, olhei em silêncio para os trilhos, rezando para que o trem chegasse e me tirasse daquela plataforma. As gargalhadas me irritaram. Como era possível que eu nunca tivesse prestado atenção em como éramos… o jeito como eu era? Éramos cruéis, ignorávamos os sentimentos dos outros por uma risada ou por um quadro em um programa ridículo de telejornal estudantil. Não era de admirar que Paige e

Zander não quisessem mais nada comigo. Eu mesma não queria mais nada comigo.

Naquele momento, o trem fez a curva, seus faróis brancos tão inclementes e duros quanto eu tinha sido com meus colegas. Na luz forte, eu me vi como realmente era. Não uma jornalista honesta e implacável, mas uma menina cruel que falava tudo o que pensava. E que por isso tinha magoado todo mundo com quem um dia havia se importado.

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Trinta e dois MEDIDAS DESESPERADAS

Segunda-feira, 7h42 da manhã

— Preciso ir ao ar. — Invadi o estúdio a toda velocidade, quase nocauteando dois câmeras encostados na porta. — Desculpem. No ar. Agora.

Corri para o cenário e joguei minha bolsa embaixo da mesa de âncora com força demais. E com uma pontinha de desespero.

Carlos estava na cadeira de diretor, folheando o Chicago Tribune. Uma luzinha piscou do Bluetooth na sua orelha.

— Não, ele não fez isso. NÃO, ELE NÃO FEZ ISSO! — CARLOS! SIM, ELE FEZ! — gritei, me jogando na cadeira de rodinhas. —

Agora me coloca no ar. Por favor! — Espere um instante. — Ele revirou os olhos na minha direção, com um ar

irritado. — A Dona Coisa acaba de invadir o prédio. Ligo daqui a pouco. — Ele arrancou o Bluetooth. — Eu estava no meio de um furo de reportagem — reclamou ele. — E, preste atenção, você pode até ter arrasado no sábado. Maravilhoso o penteado da festa, aliás.

— Obrigada. Um tanto incomodada, passei os dedos pelos fios embaraçados. Eu tinha me

apressado tanto para encontrar Paige que tinha me esquecido de pentear o cabelo.

— Mas você não manda aqui. E você está péssima hoje. Seus olhos estão super vermelhos.

— Eu sei, eu sei — protestei, pulando da cadeira e correndo ao redor da mesa. — Mas isso é muito importante.

Eu me interrompi logo antes de dizer que era uma questão de vida ou morte; uma reviravolta no meu futuro na Marquette, no meu futuro como jornalista. Minha última chance de me redimir. Muito embora se tratasse exatamente daquilo.

Agarrei a prancheta dele e dei uma folheada. A reportagem de Abra sobre o musical… o cardápio do dia… a apresentação da nova professora de artes…

— Olhe, por mais que você queira, você não está agendada para hoje — disse Carlos.

O relógio vermelho digital no fundo do estúdio dizia que eu tinha

exatamente 72 segundos para convencê-lo. — Ca-Cachorro-quente de pe-peru, salada de repolho e molho de massa.

Maçã. — À esquerda da mesa do âncora, um aluno do sexto ano tremia diante de uma tela verde. — Com iogurte de framboesa, e-e uma seleção de bis-biscoitos sortidos para sobremesa. — Ele agarrou o roteiro com as mãos. — Ca-cachorro-quente de peru. Cachorro-quente de peru. Cachorro-quente de peru.

— Eu faço o cardápio do dia — implorei. — Faço no final do quadro. O menino olhou para mim, agradecido.

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Carlos conferiu as unhas, me deixando ansiosa de propósito. Cinquenta segundos. — Olhe só para ele — argumentei, e minha voz estava mais tensa que as

cordas da guitarra de Zander. — Se ele ficar da mesma cor que o fundo verde, vai desaparecer na tela.

— É ver-verdade — disse o menino do cardápio. Ele então pressionou dois dedos contra a boca como se fosse vomitar. — Alarme falso.

— Você sabe que eu odeio mudar o programa — lembrou Carlos, dobrando as mangas da camisa de botão até que estivessem perfeitamente simétricas. — A menos… que você tenha algo realmente bombástico.

— Eu tenho — respondi. — Poderia esperar até o programa, mas achei melhor dar uma passadinha na redação da Gazette antes da chamada.

— Espere! — Carlos se inclinou para a frente na cadeira, seus olhos brilhando de curiosidade. — Então, você tem um furo de reportagem?

Assenti. — Plantão de notícias. Juro. — Então fala. — Vou falar — respondi modestamente, sentando-me na minha cadeira. —

Em quinze segundos, quando você me colocar no ar. Carlos pensou pelo que pareceu uma eternidade. — Tem um roteiro? — perguntou com um suspiro. — Não preciso. Só tenho que pegar uma coisinha, e estou pronta. — Eu me

abaixei e peguei a bolsa. — No ar em três, dois… O tempo pareceu parar enquanto eu olhava diretamente para a lente da

câmera. Tudo ao meu redor ficou claro e nítido. Exceto por meu estômago, que parecia ter sido revirado tantas vezes quanto uma escultura de balão.

— Bom dia, Marquette. E bem-vindos a mais uma edição de Simon Falando. Eu sou Kacey Simon, e esta será a minha última transmissão.

Carlos engasgou nos bastidores, mas assim que as palavras saíram eu me senti cem por cento segura de que eram as palavras certas. Não importava o que Carlos e as outras pessoas pensassem. Eu me perguntei se era assim que Zander se sentia quando estava no palco.

— A todos na Marquette peço alguns minutos do seu tempo. — Enquanto eu falava, cada músculo do meu corpo relaxava, até mesmo os da minha testa. Era como se toda a ansiedade, a frustração e a confusão da última semana estivessem evaporando e me deixando mais leve que o chantili de baixa caloria do Sugar Daddy. — Esta semana apresentamos a quadragésima edição de Simon Falando. O que significa que tenho transmitido minhas opiniões a

respeito de tudo, desde problemas de relacionamento até desastres de moda, durante todo o último ano.

Dei uma olhada no teleprompter, que de repente piscava com as palavras NÃO FAÇA ISSO!

Ignorando a vontade de revirar os olhos para Carlos, me voltei para a câmera.

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— E uma grande amiga minha me falou que durante este último ano, em vez de ajudar as pessoas com este quadro, na verdade eu estava ferindo seus sentimentos. — Engoli em seco, imaginando se Paige e Zander estavam vendo aquilo. — É possível ser sincero demais. E eu ultrapassei o limite entre ser sincera e ser cruel há muito tempo. Talvez… Talvez eu nunca tenha sequer me dado conta de que havia um limite.

Minha voz ficou mais forte. — Então eu só queria dizer: desculpe, Marquette. Todos vocês que

escreveram para o programa, me desculpem. Eu fiz vocês se sentirem como se não fosse legal serem vocês mesmos. E aqui é a Simon falando: isso

definitivamente não é legal. — As palavras saíam da minha boca com facilidade, como se sempre tivessem esperado por esse momento. — Antes de encerrar, eu gostaria de agradecer a Paige Greene por ser uma grande inspiração para a transmissão de hoje. Paige deveria ser um modelo para todos nós. Ela sempre foi fiel a quem era, mesmo quando não era fácil. E esta é a principal característica de uma líder de verdade. — Abri meu sorriso Simon. — Portanto, vá de Greene. E vote em Paige Greene para presidente do corpo estudantil do oitavo ano. Ah, e o cardápio de hoje é cachorro-quente de peru. Então sugiro uma passada nas máquinas de comida nos intervalos das aulas.

Meus dedos envolveram a armação de plástico no meu colo. — Para terminar, se estou pedindo a todos que sejam vocês mesmos, isso

significa que tenho que fazer o mesmo. — Abri os óculos e os coloquei. Com as lentes de contato, os óculos fizeram o estúdio ficar embaçado. — Espero voltar à tevê algum dia. Mas até lá… — Olhei diretamente para a câmera, fingindo que Zander e Paige estavam ali. — Eu fou Kafey Fimon. Enferrando.

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Trinta e três ESSE É O PROBLEMA DA TELEVISÃO AO VIVO

Segunda-feira, 7h47 da manhã

Oito segundos tarde demais para que eu pudesse retirar o que tinha acabado de dizer, o terror tomou conta de mim.

— Huuuum… — gaguejou o câmera Número Um, posicionando a câmera entre a mesa e seu corpo. — Bom programa?

— Obrigada. Tirei os óculos e olhei para os números vermelhos em contagem regressiva

no relógio. Para quê, eu não sabia bem. Para o final da minha vida na Marquette? Ou da minha carreira? Ou da minha amizade com Molly e as meninas?

Tateei por baixo da mesa buscando minha bolsa-carteiro, com a testa molhada de suor. O que eu tinha feito? Seria aquele o fim de Kacey Simon, talento televisivo? Será que minha súbita onda de consciência tinha estragado tudo? Eu teria que passar anos trabalhando para recuperar minha carreira? Provavelmente teria que começar lá de baixo, com a playlist do refeitório.

Percorri o caminho até o Silverstein, aturdida, até que esbarrei sem querer em Paige.

— Oi. — A luz do corredor refletiu nas lentes dos óculos dela, tornando impossível ver seus olhos. — Eu… vi o programa.

— Ah, oi. Dei meia-volta, com o coração batendo forte no peito. Um milhão de

perguntas passaram pela minha cabeça como floquinhos em um daqueles globos de neve. Será que ela havia notado minhas roupas em homenagem à campanha? Meu pedido de desculpas no ar teria sido o bastante? Ou ela iria me dar o fora do mesmo jeito que eu fiz no quinto ano? Talvez eu merecesse.

— Foi muito corajoso. De verdade. — Você achou? Permiti que minha voz transparecesse um tantinho de esperança. — Achei. — Paige arrastou os mocassins pretos arranhados. Depois de

alguns segundos, abriu um sorriso enorme. — Eu não ACREDITO que você fez isso! Você é MALUCA!

Ela me puxou para um abraço.

— Aaaai, Paige! — Lágrimas de felicidade encheram meus olhos enquanto eu a abraçava. — Também não consigo acreditar.

E foi então que me dei conta. Sem banda, sem programa, sem musical… o que estudantes normais fazem durantes as manhãs e as tardes?

— Acho que agora vou ter muito tempo livre. Funguei e ajeitei a bolsa no ombro. — Isso depende — disse Paige, passando o braço pelo meu e me puxando

pelo corredor em direção à sala.

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— De quê? — Depende de você aceitar ser gerente da minha campanha ou não. Pense

nisso. — Ela gesticulou animada com as mãos, como se estivesse regendo uma orquestra a toda velocidade. — Preciso de alguém que não tenha medo de me dizer a verdade, mesmo quando eu não quiser ouvir. Alguém que vá direto ao ponto comigo. — Ela me cutucou com o cotovelo. — E você precisa de um passatempo.

— Obrigada por me lembrar disso — resmunguei. Kacey Simon: consultora de campanha de estrelas da política. Na verdade, até que soava bem. — Então… gerente de campanha. Isso inclui, por exemplo, ser a sua porta-voz ou algo

assim? Porque acho que podíamos pedir para Abra fazer um perfil seu. — Isso! — comemorou Paige. — Exatamente! Então você topa? — E você precisava perguntar? — cutuquei-a de volta. — Maravilha. Maravilha — gritou ela, me abraçando de novo. Então ela se

afastou e ajeitou os óculos no nariz. — O mais importante primeiro — disse ela enquanto nos apressávamos pelo Silverstein. — Minha propaganda. Você acha que tem alguma chance de a sua mãe exibi-la no intervalo do programa dela? Porque esse tipo de exposição seria impagável.

— Paige. Estamos falando de uma eleição de colégio — lembrei a ela. Viramos no corredor e seguimos até o Hemingway. — Vamos nos concentrar no Canal M por enquanto, e depois a gente pensa nos outros mercados.

— Boa — decidiu ela bruscamente. — Começar de baixo para conquistar o topo.

Quando nos aproximamos da sala de Sean foi como se meu estômago tivesse acabado de entrar em um elevador em alta velocidade. Molly, Zander, Nessa e Liv estava fazendo hora diante da porta, conversando. Provavelmente sobre mim.

Os olhos de Paige se fixaram no grupo. — Você vai ficar bem? — murmurou ela baixinho. — Acho que sim — assenti. Mas o nó nas minhas entranhas dizia que não. — Kacey? — Molly arregalou os olhos ao me ver. — Hum… diga que eu não

acabei de ver você desistir do programa. Mas em vez de falar de forma cruel ela só parecia confusa.

— Hum, pois é. — Examinei o rosto de Zander procurando alguma pista. Ele me olhou de volta, sem piscar. Seus olhos tinham um tom cinza meio apático. — Você viu.

— Certo, pergunta número um. — Nessa plantou as mãos no largo cinto marrom que apertava sua cintura. — Por quê? E pergunta número dois: você realmente pediu desculpas a todos os alunos do colégio ao vivo? Você estava fazendo um favor a eles!

Paige suspirou. — Eu só… — Mirei os olhos de Zander. Ele piscou e desviou o olhar. — Eu

só precisava dar um tempo no programa, é só isso. — Reencontrar-se com a sua alma — assentiu Liv, como se me entendesse.

— Ou então, quem sabe você não podia fazer isso ao vivo? Você poderia ter um quadro em que faz resenhas de spas aqui da região!

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— Amei — decidiu Molly. E por um instante os olhos dela encontraram os de Zander, mas ele só deu de ombros. — A gente poderia ser a sua equipe de pesquisa!

Enquanto as meninas trocavam ideias sobre o Hora do spa com Kacey Simon,

eu me virei para Zander. — Oi — falei gentilmente para a mecha azul. Eu tinha esquecido como era

vívida. — Oi. — Breve aceno. — Bom programa. Foi muito legal o que você fez. — Eu nem cheguei a pensar no que estava fazendo até depois de terminar a

transmissão. Aí eu fiquei, sei lá, apavorada, que é algo que eu nunca senti antes

e… — Parei, percebendo que estava divagando. — Enfim… — Eu senti meu rosto corar. — Talvez eu pudesse dar uma passada na sua casa mais tarde para conversar? Além do mais, ainda estou com o disco do Dylan…

Minha voz sumiu quando percebi a expressão gélida no olhar dele. — Eu… acho que é melhor não. — Os lábios de Zander se apertaram em

uma linha fina. Era como se ele estivesse se fechando, se recusando a me deixar entrar. — Pode deixar o disco com Molly que eu pego se a gente sair de novo. Se ela for ao festival na sexta-feira.

— Ah — gemi, e meu coração foi parar no pé. Espere. Se? — Zander… Ele ergueu a mão, me interrompendo. — Assim, o programa foi legal e tudo mais. De verdade. Mas eu ainda não

descobri quem é a Kacey Simon de verdade. — Esta aqui sou eu de verdade. — Mantive a voz baixa, mas lá no fundo eu

estava gritando. Como ele poderia não reconhecer a verdadeira Kacey bem na frente dele? Depois de ela ter aberto a alma na televisão? E de falar com a língua presa de propósito? — Zander, eu…

Mas ele já tinha virado as costas. Ele deu um abraço rápido em Molly para se despedir, e então desceu o corredor na direção de outra sala. Dei um passo para trás em choque enquanto Molly, Nessa e Liv voavam para dentro da nossa sala.

Senti a mão de Paige no meu braço.

— Você está bem? Olhei para o teto e pisquei algumas vezes. — Estou. — Não, não está — disse Paige cheia de si. — Você está caidinha por ele. Abri a boca para protestar, mas ela me interrompeu. — Não se preocupe. Sei decifrar meus eleitores. Você gosta dele. E… — ela

fez uma pausa — … acho que ele gosta de você também. Minha cabeça virou na direção dela. — É sério? Mentira! Eu podia sentir o suor brotando no meu pescoço e sequei a pele com a mão. — Verdade — assentiu ela. Eu queria acreditar que Paige estava dizendo a verdade. Eu queria, mais do

que tudo. Mas pelo modo como Zander tinha me tratado, como seria possível?

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Uma jornalista de verdade tem que ser objetiva e nunca ignorar os fatos. Mas e se eu não quisesse ser objetiva no que dizia respeito a Zander? Talvez eu quisesse ser apenas uma garota. Uma garota que tinha uma queda enorme por um menino por quem não podia se apaixonar. Uma garota que simplesmente não podia fazer nada nesse caso, já que isso destruiria a amizade reconquistada da sua melhor amiga.

Uma garota que estava totalmente, cem por cento, gostando de alguém. Objetivamente falando.

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Trinta e quatro EU (NÃO) ESTOU COM A BANDA

Sexta-feira, 8h47 da noite

— O Z não é um zilhão de vezes mais talentoso do que esses caras? — berrou Molly, lançando um olhar de desdém para as palmas e os gritos que irromperam pelo café, momentaneamente transformado em palco, vizinho à Estação Vinil.

As mesas redondas e pretas entre o bar e o palco estavam tomadas. Eu e as meninas estávamos espremidas em torno da mesa mais próxima do palco, esperando pelo show do Gravity, a última atração do festival de talentos do Chicago Rock.

Concordei, me sentindo como se tivesse engolido uma bola de papel-machê molhado. Lembrei a mim mesma que precisava estar ali. Teria sido estranho se eu pulasse fora. Molly iria fazer perguntas que eu não gostaria de ter que responder.

— Quinn vem? — perguntou Liv. — Ah, eu não o convidei — respondi com desdém. Eu vinha evitando Quinn durante toda a semana, o que era bem fácil agora

que os ensaios haviam terminado. Paige apertou meu joelho por baixo da mesa, em um gesto solidário. Ela

havia concordado em vir ao show para me dar apoio moral, mas jurou que, se Molly a chamasse de Phoebe uma vezinha sequer, ela iria embora no mesmo segundo.

— Isso deve ser muito esquisito para você. Nessa limpou os óculos de gatinha na blusa e os colocou de novo. Deu um

longo gole no cappuccino descafeinado e me lançou um olhar intenso, como se estivesse lendo todos os meus pensamentos.

Dei de ombros e limpei as mãos úmidas na calça jeans. — Pois é — concordou Liv, gentil. Os aplausos cessaram, e a banda fez

sinais de paz para o público enquanto deixava o palco. — Quero dizer, vir a um show depois que você decidiu sair da banda...

— Hum, não foi bem isso que… — reagiu Paige, sentada ao meu lado. — Dã, ela não veio por causa do Z — interrompeu Molly. — Ela veio

para me apoiar. Porque ela é uma melhor amiga incrível — disse, apertando

minha mão por cima da mesa. Paige tossiu algo que não consegui entender, sem levantar os olhos da

xícara. A culpa nauseante que vinha revirando meu estômago durante toda a

semana era tanta que mal percebi o metal protuberante do anel de caveira de Molly perfurando a minha pele. Como eu podia ficar ali sentada e fingir apoiá-la quando tudo em que conseguia pensar era em Zander e em como poderia provar a ele que eu tinha mudado? Nunca me senti tão falsa em toda a minha

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vida. Talvez ele tivesse direito de se sentir confuso a respeito da verdadeira Kacey Simon. Talvez nem eu soubesse quem ela era, afinal.

— E esse foi o Musikal Mutiny, com a primeira faixa do álbum de estreia deles.

O apresentador magricelo que estava atrás do microfone vestia camisa de flanela e calça jeans preta bem justa, o que me fez pensar em Zander. Mas até aí, ultimamente, tudo me fazia pensar nele.

— Um aviso: no final do festival as bandas estarão no salão de entrada, dando autógrafos e vendendo CDs.

— Meu namorado é uma celebridade! — se empolgou Molly.

— E agora a última banda da noite, Gravity. Vamos fazer barulho, gente! Molly berrou enquanto Zander e os meninos apareciam sob os holofotes. Observei enquanto eles tomavam seus lugares. Embora nossa mesa estivesse

apenas a alguns passos do palco, eu me sentia a quilômetros de distância da banda, como se nem sequer tivesse participado dela um dia.

Zander se sentou em um banco no centro do palco, segurando o violão que tinha tentado me dar no Millennium Park. Ele usava uma jaqueta de couro marrom que eu nunca havia visto antes. Procurei pela pulseira de couro, mas devia estar escondida sob a manga.

— E AÍ, Chicago? — Ele sorriu e ajustou a altura do microfone. — Nós somos o Gravity e estamos adorando estar aqui com… — Ele olhou para nossa mesa e para o rosto radiante e orgulhoso de Molly. E aí desviou o olhar para mim. Zander ficou imóvel por um instante, e então balançou a cabeça com violência, como se estivesse tentando se livrar de qualquer lembrança que tivesse de mim. — Er… estar aqui com vocês.

Meus dedos se enroscaram em volta da minha xícara de café. Apertei-a com tanta força que achei que a cerâmica ia quebrar.

— Vamos começar com uma coisa diferente. Um cover acústico de um dos meus clássicos preferidos. Espero que vocês gostem.

Cover acústico? No instante em que as luzes se apagaram, cheguei um pouco para a frente na cadeira. Eu soube na hora que música ele ia tocar, e ele não podia cantar aquela sem mim. O Gravity nunca tinha feito um cover antes, e nunca tinha considerado a opção até eu pegar o disco do Fleetwood Mac de

Zander emprestado. Eu disse a ele que queria cantar aquela… Senti os olhos arderem assim que os acordes iniciais de “Go Your Own

Way” tomaram conta da cafeteria. Os dedos de Zander deslizavam experientes pelo braço do violão, extraindo belas notas do instrumento. Até mesmo os outros integrantes da banda pareciam fascinados, atentos a cada nota.

Ele se aproximou do microfone e abriu a boca. — Loving you…

Ao cantar, Zander baixou o rosto, encostando o queixo no peito. Mordi o lábio com tanta força que podia jurar ter sentido o gosto de sangue.

Molly não podia me ver chorar. — Isn’t the right thing to do.

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De repente, a voz de Zander falhou. Seus dedos escorregaram da posição no braço do violão e um dó maior isolado fez a plateia estremecer. Lá atrás, alguém ofegou, sem acreditar.

— Aimeudeus — sussurrou Molly por trás da caneca de café. — O que ele

está fazendo? Balancei a cabeça, incapaz de afastar o olhar do palco. Zander voltou os

olhos para o chão, humilhado. Toda vez que ele tentava retomar a música, ela parecia desafinada. Errada. Meu coração parou por um tempo inacreditável.

— If I could… Dessa vez sua voz soou ainda pior do que a de um garoto do sexto ano, e ele

estava completamente desafinado. Seu rosto estava ficando vermelho, desde a gola do casaco até as bochechas. Atrás dele, os meninos da banda estavam paralisados. Petrificados.

— Como ele pôde fazer isso? Eu estou me sentindo humilhada total. — Molly ergueu um cardápio e cobriu o rosto. — Kacey, faça alguma coisa.

— Eu? — engasguei. Eu queria fazer alguma coisa: queria provar a Zander de uma vez por todas

que eu era sua amiga de verdade. Que eu me importava com ele. Mas o que eu podia fazer? Eu nem era da banda.

Zander tossiu alguma coisa no microfone. — Kay. Ce — ordenou Molly entre os dentes. — Sobe lá. — Cai fora do palco, cara! — alguém vaiou. Eu me virei, irritada, mas, no escuro, não conseguia ver ninguém. E então,

de repente, eu estava de pé. Eu me vi subindo no palco e caminhando até o microfone. Vi Zander ficar

de pé, vi a mecha azul cair no rosto quando ele assentiu. Por um momento, éramos só Zander e eu, sozinhos em um palco silencioso. Mas de repente tudo voltou em um turbilhão: a multidão inquieta, o cheiro amargo de café queimado. O calor agressivo dos holofotes.

Baixei o microfone, e nós dois nos aproximamos. Ficamos tão perto que nossos lábios quase se tocaram. Mas eu não senti a mesma tensão frívola de quando me aproximava assim de Quinn. Em vez disso, me senti poderosa.

— You can go your own way — cantei com força. Minha voz ecoou nos alto-

falantes, tomando conta da cafeteria. Alguém assoviou, e ouvi algumas palmas vindas da plateia. Zander retomou o ritmo no violão, acompanhando hesitante a batida com a

cabeça. Olhei-o nos olhos e assenti. Você consegue. Um sorriso hesitante surgiu nos

lábios dele. Atrás de nós, a banda entrou com um rock‟n‟roll violento, e o público vibrou

quando cantamos juntos. The Beat espancava a bateria, eu podia sentir meus pés começando a acompanhar a batida. Todo o meu corpo estava mergulhando na música.

E me deixei inundar pela luz, deixei a plateia desaparecer, enquanto Zander e eu botávamos a casa abaixo. Juntos.

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Trinta e cinco BIS

Sexta-feira, 9h16 da noite

O restante do set seguiu em uma sequência perfeita e nebulosa. A gente entrou em sintonia como nunca antes, e a banda tocou mais três músicas e ainda dois bis. Nós tocamos como se estivéssemos sozinhos na casa de Zander, sozinhos e sem qualquer timidez. De pé, ao lado dele, segurando o microfone enquanto cantava, parecia que eu nunca havia saído da banda.

E então o set acabou e as luzes da casa se acenderam, iluminando a plateia, me arrancando do meu sonho e me jogando de volta à vida real. À vida na qual Zander namorava minha melhor amiga e não me queria mais na banda.

— Você, ah… — Sem olhar para mim, Zander mexeu nas tarraxas prateadas da guitarra enquanto o restante da banda guardava os instrumentos atrás de nós. O cabelo azul caiu sobre os olhos dele, tornando impossível decifrar sua expressão. — Eu realmente…

— É — falei com calma, observando o público terminar o último café e seguir para a saída. — Sem problema.

Eu queria perguntar o que aquilo significava, se aquilo mudava alguma coisa entre a gente. Se ele tinha me perdoado. Mas as palavras ficaram presas na minha boca, se recusando a sair.

— Z. — De pé, na primeira fila, Molly estava com os braços cruzados sobre a camiseta rasgada do Gravity. Ela olhava para Zander do mesmo jeito que havia me olhado quando abri a boca no ensaio e falei com a língua presa pela primeira vez. Pena, com uma dose generosa de nojo. — O. Que. Foi. Aquilo?

Zander levantou a cabeça de repente e sua testa se enrugou em uma expressão de confusão e mágoa.

— Como assim? — disse ele com rispidez. — Você estava aqui. Você viu. — Dã. — Molly deu um passo para trás, como se Zander tivesse uma doença

grave e altamente contagiosa. — Fui eu quem falou para Kacey salvar você. Então, de nada.

Ela inclinou a cabeça para o lado, esperando pela gratidão dele. — Hum, obrigado? — Zander olhou em minha direção. Seus olhos

brilharam como se estivesse prendendo uma gargalhada. Molly enrubesceu.

— Bom, vamos pegar autógrafos das outras bandas — falou ela, como se Zander não estivesse bem ali. — Você encontra a gente lá fora em dez minutos?

— Tá. Tudo bem. — Tentei dar uma piscadela para ele, mas a expressão de ânimo no seu rosto havia se dissipado, e ele encarava o palco e fazia um círculo de poeira com a biqueira do tênis.

— Valeu. Molly jogou o cabelo para trás e se requebrou de volta para a mesa. Ela

puxou a jaqueta de couro da cadeira e a vestiu, subindo o zíper apenas o

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suficiente para cobrir o logo da banda na camiseta. As outras meninas pegaram suas bolsas e casacos.

— Ela, er… — tossi. Seguindo as meninas, Paige se virou e fez um sinal de positivo com o

polegar. Tentei mandar uma mensagem telepática para ela, pedindo para ela não me deixar sozinha com Zander. Mas, antes de conseguir, ela vestiu o casaco e foi para o salão.

— Não fique chateado com ela. Ela não estava falando sério. — É claro que estava. Sua risada saiu ríspida e sem humor. Ele se deixou cair no banco de

madeira. — Bom, ela podia pelo menos ter dito de outro jeito. — A irritação

transpareceu na minha voz. — Não havia motivo para ser tão cruel. — Tanto faz. — Zander deu de ombros. — Ela tem razão. Eu estraguei tudo. — Cara. Tudo bem. — The Beat chegou por trás de nós e bateu no ombro de

Zander. — Deu tudo certo, graças à Mainstream. — Ele me cutucou brincando. — Estamos indo assinar uns guardanapos. Encontre a gente lá ou quando quiser.

— Legal. Mal pude ouvir sua voz com o barulho dos meninos caminhando pelo palco.

Quando ficamos sozinhos, examinei o rosto dele: as linhas de preocupação ao redor dos olhos, os lábios rígidos e apertados, o jeito como sua pele estava pálida. Eu nunca o tinha visto tão deprimido. Era como se ele estivesse deixando as palavras de Molly destruirem sua autoconfiança.

Segurei as lágrimas. Talvez ele gostasse dela mais do que eu imaginava. Talvez eu tenha sido muito ingênua em pensar que, na verdade, ele não sentia nada por ela. Para pensar que quem ele queria mesmo era eu.

— Zander. — Minha voz falhou. — Ninguém liga se… — Eu ligo! — A voz dele era tão forte que dei um passo para trás, assustada,

e quase tropecei em um amplificador. — Você não entende? Esse era para ser o nosso momento, sacou? A nossa grande estreia. — Ele se levantou de repente e passou a mão pelo cabelo. — E eu não fui capaz de segurar a onda sem vo… — Zander interrompeu a frase. — Tanto faz. Já acabou mesmo.

— Não acabou, não! — Senti um calor na nuca. — Você foi fantástico depois que a gente entrou no ritmo, como sempre! Será que você é tão devagar a ponto de não entender isso ou está apenas curtindo sentir pena de si mesmo?

Surpreso, Zander abriu a boca como quem ia argumentar. Mas eu ainda não tinha terminado.

— Tá, então você mandou um pouco mal. Mas não é só por isso que você está chateado.

Dei um passo corajoso na direção dele, minha voz cada vez mais alta. — Não é? Zander parecia mais confuso do que irritado. — O que está perturbando você — balancei a cabeça — é que, pela primeira

vez, você realmente se importava com o que as pessoas pensavam de você. E

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daí? Todo mundo liga para o que as pessoas acham, pelo menos um pouco. Só demonstra que você é humano.

Zander tirou a correia da guitarra e colocou o instrumento no estojo. Seu rosto estava relaxado, mas eu ainda não era capaz de decifrar sua expressão.

— Dá para falar alguma coisa, por favor? — Soltei, sentindo-me completamente extenuada.

— Você tem… razão. — Ele procurou meu olhar e manteve os olhos nos meus. Estávamos a centímetros de distância um do outro. Minha temperatura corporal foi de tropical a negativa e de volta a tropical. — Quero dizer, tá, eu estava ligando para o que as outras pessoas iam pensar. Mas eu estava mais

preocupado — ele desviou o olhar — com o que você ia pensar. — Com o que eu ia pensar? — Minha voz saiu rouca. Ele deu de ombros. — Acho que eu não queria que você me visse estragando tudo, que você

achasse que a banda estava acabando depois que você saiu. Mesmo que… — A voz dele tremeu, e ele enfiou as mãos nos bolsos. — É diferente, é só isso.

— Ah! Mordi o lábio inferior. Minha cabeça estava a mil com todas as coisas que eu queria dizer a ele. Eu

estava desesperada para explicar por que eu tinha deixado a banda, mas contar seria o mesmo que trair Molly. Colocar a culpa nela, quando na verdade ela não tinha me forçado a nada. Eu havia tomado a decisão sozinha. E agora precisava encarar as consequências.

Pela primeira vez naquela noite Zander abriu um sorriso. — Todo esse monólogo, e tudo o que eu tenho como resposta é um “ah”? —

Ele deu uma batidinha no meu ombro. — Vamos lá, Simon. Dê o seu melhor. — Eu… — Meus olhos encontraram os dele, e pequenas ondas de

eletricidade percorreram todo o meu corpo, como um milhão de sextos sentidos ao mesmo tempo. Meus instintos jornalísticos estavam sofrendo uma sobrecarga, e eu sabia do que precisava. Precisava dizer a verdade, precisava ser completamente honesta. E eu podia fazer isso sem culpar Molly nem torná-la uma vilã. — Sinto muito por tudo, Zander. Fui muito estúpida por ter saído da banda, mas achei que não tinha escolha. — Minha voz falhou. — E eu devia

ter sido sincera com você e ter contado tudo, como a banda foi a melhor coisa que já me aconteceu na vida, mesmo que eu não tenha percebido isso de cara. Mas eu estava com medo. E agora você me odeia e…

— Peraí! Você acha que eu odeio você? — Zander segurou meus braços como se estivesse prestes a me sacudir. Mas em vez disso ele apenas me manteve parada. — Eu nunca odiei você. Fiquei com raiva quando achei que você estivesse só usando a banda. — Ele me apertou com mais força ainda. — Eu nunca odiaria você. Eu senti… A banda sentiu muito a sua falta, sei lá.

— Eu também. — Uma onda de alívio atravessou meu corpo e, de repente, eu dei um abraço apertado nele. E ele me apertou também. — Desculpe — balbuciei no couro macio da jaqueta dele. O zíper estava furando minha bochecha, mas não me importei. — Eu estraguei tudo.

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— Só demonstra que você é humana — disse ele com o rosto no meu cabelo antes de se afastar um pouco e olhar para mim. — Uma menina me falou isso uma vez.

— Ela parece o máximo. Eu ri e funguei ao mesmo tempo. Nossos narizes estavam quase se tocando.

De repente achei que fosse vomitar. Do melhor jeito possível. — É. Ela é. — Ele tossiu e me soltou. Nós dois demos alguns passos para

trás. — Então — ele coçou a nuca, olhando para mim através da mecha azul —, já que você está com as tardes livres agora, talvez você queira… quero dizer, a banda não é a mesma sem você e…

— Sim. Claro. Óbvio. — Nem deixei que ele completasse o raciocínio. — Manda ver. Ele ergueu o punho fechado. — Manda ver. Dei uma batidinha de leve, fechando o acordo. Zander e eu éramos colegas

de banda de novo. E, lá no fundo, eu sabia que estávamos nos tornando mais do que amigos. Eu não sabia dizer exatamente como, mas simplesmente sabia.

Porque até mesmo ex-jornalistas têm um sexto sentido.

Fim.

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