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A L C E C A M O R O S O L I 1 A MEDITAÇÃO SÔBRE O MUNDO INTERIOR 195ó ria AGI R &dilôr" RIO DE JANEIRO

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A L C E C A M O R O S O L I :\1 A

MEDITAÇÃO

SÔBRE O

MUNDO INTERIOR

195ó

L)vraria AGI R &dilôr" RIO DE JANEIRO

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Regnum Dei intra vos est

(Lc. XVII, 21)

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fNDICE

Págs. Explicação . . . . . · . · · · · · · · · · · · · · · . . · · · . . . · · · · · · · · . . . . . . . 9

Cap. 1.0 - Liberalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15

Cap. 2.o - Moralismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

Cap. 3.o - Filosofismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . . 25

Cap. 4.o - Politicismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • 31

Cap. 5.0 - Economismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

Cap. 6.0 - O Hóspede 43

Cap. 7.o- Equilibrio . . .. . .. .. . .. .. . .. .. .. .. .. .. . .. .. 49

Cap. 8.0- O Meio . . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

Cap. 9.0 - Silêncio - I . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

Cap. 10 - Silêncio - 11 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 Cap. 11 - Solidão . . .. .. .. .. .. .. . .. . .. .. .. . .. .. . .. .. . 73

Cap. 12 - Santidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . 79

Cap. 13 - Conseqüências . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . . . . • . • • . • 85

Cap. 14 - Ausência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • • • . . .• 91

Cap. 15 -Presença- I .. . . . . . . • . . . . . . . . • . . . . • . . . . • 97 Cap. 16 - Presença - 11 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

Cap. 17 - Sabedoria . • . . . . . • . • • • . . . • . • . . . . . . . . • • . . • • . 109

Cap. 18 - Saudade . . . . . . . . . . . . • . . . . . . . . . . . . . . .. . . • . . • 115

Cap. 19 - Futuro • . . . . . . . . . . . • . . . . . . • • • . . . . . • • . • • • • • • 121

Cap. 20 - Meditação . . • . . . . • • • . • . • . . . . . • . . . . . . . . . • • • • 127

Cap. 21 - A Oração implicita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • 133

Cap. 22 - A Oração explicita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . . . 139

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EXPLICAÇÃO

Os capítulos que se seguem foram publicados

na Tribuna da Imprensa, durante o segundo semes­

tre de 19 53 e dela reproduzidos por sua generosa autorização. Foram publicados sob o título de "Bi­

lhetes do Mundo Interior" que a seção continua a

ter, e em seguida aos do Velho e do Novo Mundo.

Costumamos dividir o mundo moderno em

Velho c Novo }.fundo; em mundo totalitário e

mundo democrático; países para lá e para cá da Cor­

tina de Ferro; mundo socialista e mundo capitalista; Oriente e Ocidente; ou mais amplamente ainda, em

mundo moderno e mundo eterno.

Tôdas essas dwisões são mais ou menos legí­

timas e a última se aproxima muito da que toma­

mos por base dêste ensaio, o mundo exterior e o mundo interior. Aqui, porém, prescindimos da pró­

pria noção de tempo e colocamos o homem perante os dois mundos que constituem a sua própria natu­

reza completa, pois o mundo interior não é uma opção, mas uma síntese. E o homem completo, isto é. o homem normal. é aquêle que vive interiormente a

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sua v1da exterior e não sepulta em si, egoisticamente, a sua vr"da interior.

É certo, entretanto, que uma das marcas do nosso tempo é a primazia da vida exterior sôbre a vida interior, quando não o �menta desta par­aquela. O ma;·or pengo que corremos, hoje em dia, -em face do curso que oai tomando o progresso da técnica, com a afJsorção do homem pela Má quina, e a hipertrofia das instituições políticas e econômi­cas, com a absorção do homem pelo Estad_o, pelo Partido ou pela Fábrica, -- o maior perigo é pre­cisamente essa anulação da personalidade pela ex­troversão sistemática do homem e de sua vida pro­Funda.

Um biologista materialista, JEAN RosTAND,

resumindo as conclusões do seu próximo livro, Ce

que je crois, rasga os seguintes horizontes para a ciência biológica de amanhã, que vai tentar fazer aquilo com que BERNARD SHA w sonhava ao dizer que "what can be clone with a wolf, can be clone with a man"! Isto é, se foi possível fazer de um animal feroz como o lôbo um animal manso como o cachorro, também será possível fazer de um ser imperfeito, como o homem de hoje, um ser perfeito, como o homem de amanhã. Esquecido, o sofista do século XX, de que foi o homem que fêz do lôbo um

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cachorro e não o próprio lôbo . E, portanto, só Deus, dizemos nós os que não julgamo:l que o ho­mem seja um deus, poderia mudar a natureza hu­mana, como só a Sua graça pode aperfeiçoá-la, aju­dando a própria oirtualidade dessa natureza. É possível que t..'rnham a ser um fato êsses novos hori­zontes que os· biologistas abrem às intervenções do homem sôbre a natureza, inclusive a própria natu­reza humana. JEAN RosTAND chega a crer que "apa­rentemente se poderá prolongar, no futuro, de modo sensível a duração da vida humana . .; outros mui­tos problemas serão resolvidos: determinar-se-á à vontade o sexo das crianças . . . talvez a ectogênese ou gravidez de bocal (como ALDOUS HUXLEY já previra, com humor, no seu This brave New World). Pelo cmprêgo dos hormônios ou de medi­camentos apropriados ou ainda por uma correção cirúrgica dos centros nervosos, modificar-se-ão a personalidade, o temperamento, o caráter. Suscitar­se-ão artificialmente aptidões e virtudes" (sic ) .

Ssse biologista materialista, que acredita se­rem as cirtudes conseqüências dos hormônios, como VIRCHOW, no século passado, fazia do bem e do mal secreções como o açúcar ou o vitríolo, não fecha, entretanto, os olhos aos perigos dessa ditadura da técnica biológica.

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"Será difícil'' diz êle, "impedir que a coleti­vidade não abuse do seu poder em relação àqueles que a constituem. Haverá sempre um equilíbrio di­fícil de alcançar entre a preocupação do ínterêsse co­letivo e o respeito da liberdade individual Não valeria a pena que a natureza fizesse de cada indi­víduo um ser único, para que a sociedade reduzisse a humanidade a não ser mais do que uma coleção de iguais."

Ou, como nós diríamos, não valeria a pena que Deus criasse o homem à sua imagc:m e semelhança, para que o homem se red.uzisse apenas à semelhança e imagem dos animais E que tivesse colocado no coração humano o amor da liberdade para que êle procurasse apenas novas formas de escrauídão.

A libertação do homem não es�á nas coisas. Está em si próprio. Não está na vida exterior. Está no seu mundo íntimo. Não está na técnica biológica ou física. Está na virtude. O progresso da humani­dade não depende da perfeição de suas máquinas, mas da perfeição daqueles que as souberem manejar. A técnica não é um bem ou um mal em si. É uma arma de dois gumes, que serve cegamente ao bem e ao mal, conforme a luz dos olhos de quem a ma­neJar.

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Mas tanto maior é o poder que essas técnicas, .rá agora de ordem hiológica, colocam nas mãos do próprio homem, quanto maior a ameaça às liber­dades, aos direitos, às uariedades da pessoa humana. E tanto maior a submissão do homem às fôrças por êle próprio desencadeadas na matéria do seu próprio corpo ott da natureza física, quanto mais precisa­mos desenoolver em nós as potên,cias do mundo interior.

Eis porque uma meditaçâo sôbre o mundo in­terior me parece, a esta altura da vida e dos acon­tecimentos, muúo mais urgente e necessária do que tôda meditação sôbre o mundo passado, moderno ou futuro

A. A. L.

Mosela, outubro, 1953.

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LIBERALISMO

O século passado converteu aAiberdade em li­beralismo e o nosso a confunde com licenciosidade.

Liberalismo e licenciosid:1de são duas corrup­telas da verdadeira liberdade. O liberalismo, como posição filosófica, com tôdas as ramificações conhe­cidas, -- liberalismo econômico, político, moral, religioso, etc., --- coloca a liberdade como valor su� premo, sem distinguir entre liberdade de opção e liberdade de superação. A l iberdade de opção, que nos permite escolher entre um caminho e outro sem estabelecer entre êles qualquer hierarquia de valores, é apenas um momento inicial no desenvolvimento dêsse poder, que vai gradativamente distinguindo a matéria viva da matéria inanimada, e os sêres supe­riores dos sêres inferiores. A hierarquia dos valores, no seio da própria natureza, já se faz pelo próprio acréscimo do poder de liberação. Mas a liberdade de opção no mesmo nível, sem distinguir valores senão pelo capricho das · nossas tendências. é um momento

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inferior da liberdade. Esta só se torna realmente o que é, quando passa ao estágio superior de sua evo­lução. Só como superação de valores negativos pelos valores positivos, isto é, só pela liberdade de su­peração, é que encontramos a verdadeira natureza dêsse conceito capital para o homem e para a so­ciedade. A liberdade de superação não se limita a escolher sem injunções da necessidade, mas também sem distinção de valores, como faz a liberdade de opção. A liberdade de superação distingue os valores e nos integra nos que devem constituir a nossa au­têntica finalidade, distinguindo. portanto, o supe­rior do inferior e não apenas um do outro, como indistintos e iguais. Eis porque a liberdade não é o vaior supremo, se a considerarmos -como escolha indistinta. Mas pode sê- lo se a considerarmos como escolha que nos integra na hierarquia intrínseca dos valores, colocando o Bem acima do mal, o Eterno acima do efêmero. Deus como a nossa finalidade su­prema. A liberdade se integra, pois, na verdade, quando considerada como elemento de superação dos valores menores c de nossa orientação para o verdadeiro e último Fim extraterreno, de tôdas as nossas ações.

Restaurar a 1iberdade em su� grande dignida­de intrínseca e separá-la das suas corruptelas. eis um

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dos grandes deveres de nosso tempo. Os negadores da liberdade, os totalitários de todos os matizes, combatem a liberdade como se ela se confundisse com o liberalismo ou a licenciosidade. Devemos, ao contrário, defendê-la como um dos bens supremos do nosso mundo interior e que por isso mesmo deve estender-se naturalmente à nossa vida exterior.

Pois o mundo interior não se opõe ao mundo exterior e sim ao mundo superficial, ao mundo frí­volo, ao mundo mundano, tão àsperamente conde­nado pelo próprio Cristo. Se o mundo interior não é apenas o pólo oposto ao mundo exterior, e sim a síntese do efêmero, do ativista, do parcial, com o eterno, o contemplativo, o integral, é que constitui também uma superação. A oida interior compreen­de também a vida exterior, mas transfigurada, trans­cendentalizada, colocada no plano dos valores su­premos, impregnada de eternidade. Cresce, pois, desmedidamente a nossa responsabilidade na apre­ciação dos acontecimentos ou das idéias, dos homens ou mesmo das paisagens, quando tudo consideramos do ponto de vista do nosso mundo interior, que é de fato um mundo superior. É um ponto de elevação que se destaca dos pontos de visão unilaterais e pu­ramente terrenos e temporais. O mundo interior é o da supratemporalidadc. É o dos valores, de todos

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os valores, mas impregnados de um sentido de pere­nidade, de substancialidade e, enfim, de sobrenatu­ralidade. O mundo interior é aquêle onde atua pri­mordialmente a Graça, que não destrói a natureza, mas, ao contrário, lhe dá o seu sentido completo. Enquanto vivemos de um modo puramente exte­rior, vivemos apenas no plano da natureza. Viven­do uma vida interior, o mais interior possível, trans­cendemos o plano da natureza sem o diminuir em nada, mas dêle tirando, pela ação da Graça, tudo o que realmente contém.

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CAP. 2.0

MORALISMO

Vimos o verdadeiro sentido da vida interior e da sua primazia sôbre a vida exterior, porque não se opõe a esta e sim à vida fútil, à vida fácil, à vida superficial. A vida exterior, a nossa vida de ação, deve basear-se na vida interior, segundo um velho lema da filosofia perene que nos ensina que a ope­ração segue o ente. Operatio sequitur esse. [\. ope­ração é uma conseqüência do ser. Antes de atuar é preciso existir. E essa atuação depende, por conse­guinte, da existência. A qualidade daquela, da qua­lidade desta. É precisamente a inversão dessa hierar­quia de valores que está na base da inconsistência do mundo moderno. Como lembrou ROMANO GUAR­

DINI, vivemos há quatro séculos, ao menos, sob o signo do primado do Ethos sôbre o Lagos, quando a hierarquia natural dos valores é precisamente a oposta. O Lagos, que é a nossa relação com o ser, deve preceder o Ethos, que é a nossa relação com o atuar e o dever ser. O atuar é uma operação do ser.

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Logo deve seguir-se a êle e não precedê-lo. Tôda a tendência dos séculos modernos tem sido no sentido contrário.

Primeiro a Moral , depois a Filosofia. depois a Política e finalmente a Economia embargaram o pas­so à Religião, o Ethos passou adiante do Logos, e com isso ficou perturbada completamente a hierar­quia natural dos valores.

Primeiro a Moral tomou a dianteira da Reli­gião. A Religião, a partir do Renascimento e da Reforma, se foi cada :vez mais convertendo em uma ética, em uma norma de costumes. A relação com Deus foi decaindo e dando lugar a uma preocupa­ção crescente com as relações exclusivas com o próxi­mo. ''Ama a teu próximo como a ti mesmo por amor de Deus" eis o preceito divino. O amor do próximo é precedido pelo amor de Deus e por êle se justifica. A transformação gradativa da religião em ética vai deixando cair. cada vez mais, o amor de Deus e exaltando o amor do próximo por si mesmo, sem referência a Deus. A moral vai, assim, quase que inconscientemente, se substituindo à religião. A aus­teridade dos costumes, o ascetismo, o puritanismo, vai absorvendo a atenção e a preocupação de um cristianismo reformado, e afastando-o da tradicional primazia do ofício divino, da palavra divina, do

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Opus Dei. A dissociação entre a Fé e as Obras, em vez de colaborar na defesa da Fé, veio concorrer pa­radoxalmente para a primazia das obras, para a preeminência da operação sôbre o ser, do Ethos sôbre o Logos.

Tive ocasião de mostrar como em certas igre­jas protestantes dos Estados Unidos essa inversão de valores era manifesta. A palavra do pastor torna­va-se mais importante que a renovação incruenta do sacrifício do Cristo. O púlpito vinha dominar o altar. Há poucos meses o National Geographic Magazine, tão espalhado entre nós e, portanto, de fácil verificação, fazendo uma das suas maravilhosas reportagens fotográficas, trazia um retrato da velha igreja de São João, em Alessandria; pela qual tantas vêzes passei em caminho de Mount Vernon. freqüen­tada por Washington.

:esse pequeno e venerável templo é perfeitamen­te simból ico dessa transmutação de valores. O púl· pito está sôbre o altar e o domina inteiramente. O altar como que desaparece. Passa a ser urna mesa sem importância. O que se passa lá em cima, no púlpito, é que conta. A palavra do pastor passa a ser muito mais importante que o sacrifício da Re­denção. O Opus hominis começa a predominar sôbre o Opus Dei. E já não é mais o Côro mletivo que

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canta, subordinado ao altar, e em tôrno dêle, como se vê nas grandes catedrais da Idade Média e muito particularmente nas igrejas de Espanha, onde o côro suntuoso ocupa o centro da Igreja, - como que co­meçando a fazer concorrência ao altar, se assim me posso exprimir, - já não é mais o Côro, é o púlpito isolado, do homem só, que fala, lendo e explicando a palavra divina, mas segundo a sua interpretação individual e humana.

O jansenismo, aliás, -com a sua insistência contínua na moralização dos costumes, tão necessá­ria como reação à "libertinagem" do século XVII, mas tão perigosa quando ultrapassa os limites do bom senso e afasta o pecador da fonte da regenera­ção por excesso de moralismo, -coloca-se na mes­ma linha dessa inversão de valores que vai pouco a pouco minando o prestígio da religião e confundin­do-a com a moral. E, à medida que nos aproxima­mos de nossos dias, mais se nos depara essa sub­reptícia substituição da religião pela moral, das nossas relações com Deus pelas nossas relações com o próximo. Da operação dominando o ser. A maior tentativa moderna dessa substituição é o Positivis­mo, que tenta secularizar totalmente a reli!!ião, criando a religião da humanidade e fazendo da ·Mo­ral a chave final da sua classificação das ciências, mas

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como uma conseqüência e não como uma causa. E com a supressão da Teologia. O eticismo tenta assim substituir-se à Fé. E a vida exterior, a vida ativa, a norma dos costumes passa a co�stituir o valor su­premo em nossas vidas.

A vida interior. por falta de alimento substan­cial, vai assim deperecendo até morrer e ser substi­tuída pelo ativismo desordenado que domina os nossos tempos.

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CAP. 3.0

FILOSOFISMO

Se a decadência da vida interior em nossos dias provém. antes de tudo, da substituição da vida reli­giosa pela vida moral. como atividade mais alta do nosso ser, o segundo passo no sentido dessa deca­dência foi a substituição da moral pela filosofia, como valor supremo. À substi tuição da religião pela moral. nos séculos XVI e XVII, seguiu-se a substi­tuição da moral pela filosofia, no século XVIII. E por uma filosofia entendida como atividade supre­ma da razão e da "razão pura", sem qualquer liga­ção com outros valores naturais ou revelados. moral. teodicéia ou revelação sobrenatural. Foi a ação do conjunto de idéias do século XVIII conhecido pela expressão "Aufklaerung" e que podemos traduzir para o vernáculo como Racionalismo. Pois essas Luzes, que a ideologia daquele tempo invocava como valor supremo, eram a Luz da razão natural.

t?.sse naturalismo racionalista é que trouxe para o pensamento moderno o conceito da supremacia da

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atividade filosófica sôbre as outras duas atividades • que tradicionalmente a ultrapassavam : a Religião e a Moral, nossos deveres para com Deus e nossos de­veres para com nós mesmos e para com o próximo.

Todo aquêle moralismo que a Reforma, no sé­culo XVI, e que o jansenisrno, no século XVII, ti­nham colocado no ápice de nossa atividade, passava agora a ser subordinado a um filosofismo, que se tornou a expressão mesma do homem e da sua posi­ção no universo. Foi então que começou o culto do livro. Como foi então que o filósofo ultrapassou o moralista, como êste sobrepujara o teólogo.

O culto do livro como livro, isto é, como ex­pressão máxima da razão humana, se traduziu, antes de tudo, pela publicação de Enciclopédias e Dicio­nários, onde o racionalismo tentou condensar a sú­mula de todos os conhecimentos. Era uma reno­vação das Summas, teológicas ou filosóficas da Es­colástica, mas num sentido completamente antiesco­lástico. E tinha como intenção substituir o Livro Divino, a Bíblia, por um livro humano, a Enciclo­pédia ou o Dicionário .. Nêle se supunha que todos os conhecimentos podiam caber e todos reduzidos a itens, a palavras, a conceitos, fàcilmente analisados pela razão humana.

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Sendo assim, tornava-se a filosofia a atividade suprema do homem. A religião e a moral passavam a ser meros capítulos da filosofia, como esta a ser uma atividade, que se abria apenas para dois cami­nhos : o agnosticismo ou o materialismo. Ou a con­cessão de que há domínios trancados ao exercício da razão, como o da religião e da moral, em que domi­nava apenas o sentimento e a imaginação. Ou a afirmação categórica de que a razão é apenas a ex­pressão suprema da matéria e os dois pólos esgotam a realidade: a realidade material fora de nós e a reali­dade racional em nós. Mundo exterior e mundo in­terior, no mesmo plano e aquêle conhecido por êste , mas por seu lado constituindo a sua base e a sua ongem.

Êsse filosofismo era uma diminuição da filo­sofia, sob aparência de a elevar. Pois a limitava ao mundo dos sentidos ou lhe impedia a entrada nos domínios que ultrapassam as possibilidades da razão natural. A filosofia passava a ser religião e moral. E dava entrada ao surto mais exultante do arbítrio e do cepticismo.

A vida interior, dominada inteiramente pela razão ou pelo sentimento, passava a oscilar entre a rigidez do racionalismo, que teve no tempo a sua expressão máxima em VOLTAIRE, e a placidez do

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sentimentalismo, cuja máxima express�o foi Rous­SEAU. A vida interior do filosofismo, como a vida interior do moralismo, representavam uma diminui­ção da vida interior compreendida dentro de uma hierarquia total de valores. Assim como a primazia da moral sôbre a religião trazia a primeira pedra ao novo edifício da natureza humana baseado na rela­ção de homem para homem e não do homem para Deus - a primazia da filosofia sôbre a moral e sôbre a religião fazia oscilar tôda a estrutura da vida in­terior, entregando-a aos caprichos da razão e do co­ração. Desaparecia, aos poucos, a medida intrínseca dessa vida interior, cujas raízés repousam, em últi­ma análise, não em nós, mas na natureza das coisas, e portanto, afinal, em Deus. Uma vida interior. sob o domínio do racionalismo voltaireano ou do sentimentalismo de RoUSSEAU, era uma vida inte­rior separada do mundo exterior, separada das raízes comuns dos valores, reduzida ao puro capricho in­dividual. Não foi à-tôa que o romantismo sucedeu ao racionalismo e ao sentimentalismo do século XVIII e que a vida interior se desmandou - por vêzes magnificamente expressa, mas nem por isso menos precária - na extralimitação de todos os va­lores, na extrapolação de todos os limites. E como a hipertrqfia é, em tudo. a precursora da atrofia. e

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vice-versa, a decadência da vida interior se segum normalmente à sua super-estimação pelo racionalis­mo e pelo sentimentalismo. O filosofismo não foi mais feliz que o moralismo na verdadeira configu­ração da vida interior do homem moderno.

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CAP. 4.0

POLITICISMO

Ao moralismo, que pretendia superar a religião pela moral; ao fílosofísmo, que pretendia superar a religião e a moral pela filosofia; vinha agora suceder o politícismo, que pretendia superar a religião, a moral e a filosofia, pela política, pela organização social, pelo Estado.

O século XIX ia ser o grande século teórico do Estado. As instituições políticas passaram a desem­penhar as funções que as instituições religiosas re­presentavam outrora. O Estado substituiu-se à Igreja. E a política vinha reivindicar a sua prima­zia sôbre a teologia, a ética ou a filosofia. Tôdas essas atividades passavam, ainda de modo tímido e indireto, a ser função das instituições sociais.

AUGUSTO COMTE já diz que o homem é uma abstração e o que existe realmente é a humanidade. Cria a sociologia , ou pelo menos dá-lhe um nome, para acentuar nitidamente que o coletivo deve pri­mar sôbre o individual e o homem é apenas produto

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da sociedade, como vai, ao longo do século, sustcn·· tar todo o movimento socialista, não só como ação revolucionária, mas ainda como filosofia da vida . O social passa a dominar o individual. O socialismo entesta com o individualismo. O realismo aniquila o sentimentalismo. O naturalismo sucede ao roman­tismo. E os grandes impérios modernos começam a luta pelo domínio do mundo.

Foi então que se formou o novo império ger­mânico, o segundo Reich, de que o terceiro, de Hitler, pretendia ser um simples herdeiro, como o quarto se está formando no seio dessa Europa Cen­tral, hoje de novo ameaçando germanizar a Europa, com o apoio dos Estados Unidos . Foi HEGEL, no limiar do século XIX, que operou essa transmutação de valores, que iria afetar de modo desastroso a vida interior do homem moderno. Foi HEGEL que ten­tou fundir todos os valores anteriores, numa espécie de incêndio universal, para tudo concentrar numa entidade nova - a idéin, que não era a reprodução das idéias platônicas, ou das idéias criadoras, de Deus, do tomismo, nem muito menos a expressão das ideologias, racionalistas ou sentimentalistas, do sé­culo XVIII. mas era uma nova expressão do pan­teísmo e a volta àquela obsessão do elemento único, que na aurora da filosofia grega tinha preocupado os

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filósofos desde T ALES DE MILETO: o ar. a água. a inteligência. etc.

A idéia era o novo "único" , para HEGEL.

como o Indivíduo, em contraposição, ia ser o novo "único" . de STIRNER. E assim. entre o anarquismo e o institucionalismo, ia oscilar todo o século XIX, mas com predomínio absoluto do segundo, contra o qual o primeiro tentou em vão, pelo terrorismo in­termitente, lançar as suas bombas, reais ou imagi­nárias .

Mas foi o poláicismo que dominou o século. Foi a formação dos impérios, o francês, o alemão, o russo. o inglês. Foi a luta externa dos imperialis­mos. Foi o surto das "internacionais" a primeira e a segunda. Foi a eclosão do comunismo moderno. Foi a fundação da sociologia, como ciência. Foi o aparecimento dos grandes sistemas sociológicos, posi­tivistas, socialistas ou evolucionistas, que, mesmo quando concluindo pelo primado do indivíduo em face do Estado, faziam-no subordinando o homem ao determinismo ou ao mecanicismo, que eram no­vas formas de esmagar o homem pela natureza fí­sica ou pelas instituições políticas. E HEGEL con­cluía a sua imensa síntese pela apologia do Estado Prussiano, como NIETZSCHE concluía a sua anti-sín­tese pdo desafio contra o Estado, "o mais inumano

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dos monstros frios" mas chegando a um novo culto do títanismo renascentista. pelo mito do super­homem, do Prometeu moderno.

Em tudo isso era evidente o sacrifício da vida interior. Tanto no hegelianismo, como no anarquis­mo ou no nietzscheanismo, o homem saiu diminuído e sua vida interior aniquilada. HEGEL a subordina­va ao Estado, e os anti-hegelianos ao Indivíduo, um indivíduo tão anti-humano como êsse Estado des­personalizado de HEGEL . O politicismo e o antipo­liticismo davam-se as mãos para aniquilar a verda­deira vida interior.

0 dinamismo de HEGEL, ou de NIETZSCHE, de AUGUSTO COMTE ou de SPENCER, dos politicistas ou dos antipoliticistas, esmagava a vida interior. Fazia do homem um simples joguête : ou do Estado, ou da Natureza, ou do Sistema, ou do Super-Ho­mem. E, com isso, a luz interior se apagava ao sôpro violento de qualquer dêsses vendavais.

Nenhum dêsses novos valores podia respeitar a delicadeza do silêncio e a doçura da solidão, a substân_cia do indizível, a fôrça da fragilidade. O que traziam, como remédio ao homem desamparado, era, de um lado, o seu enquadramento em instituições onipotentes corno o Estado, ou em limites intrans­poníveis corno a Sociedade: de outro. o neo-gigantís-

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MEDITAÇÃO SÔBRE O MUNDO INTERIOR 35

mo do super-homem nietzscheano ou o individualis­mo da industrialização spenceriana. Para qualquer lado que se voltasse o politicismo. por si ou por suas antíteses, asfixiava a vida interior e projetava o homem no dinamismo da mais inexorável exterio­rização.

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CAP. 5.0

ECONOMISMO

Veio enfim o século XX. "Enfin Malherbe

vint" E com êle o fruto de tôdas essas decomposi­ções anteriores.

O moralismo tinha usurpado a primazia da religião.

O filosofismo pretendeu substituir-se à religião e à moral.

O politicismo fêz da religião, da moral e da fiLosofia, meras conseqüências das instituições sociais e nelas do mais perfeito instrumento de unificar a sociedade: o Estado soberano e onipotente.

Êsse conjunto de idéias vinha produzir no sé­culo XX uma restrição ainda maior no quadro da hierarquia dos valores. Já agora não era a Política, que pretendia absorver a Religião e a Moral, era a Economia, que por sua vez absorvia a política. E a absorvia também. como o fizera o politicismo no século anterior, sob duas·modalidades iguais e con­trárias : o comunismo e o capitalismo.

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Ambos vinham do século XIX, como ambos vinham do reconhecimento da primazia dos valores políticos sôbre os valores filosóficos, morais ou reli­giosos. Ambos se apoiavam sôbre uma base comum: a Técnica. Ambos recomendavam um remédio co­mum para a solução dos males do mundo: a Pro­dutividade. Ambos faziam, a seu modo, a apologia da Máquina. Ambos subordinavam, ou explícita ou , implicitamente, os valores religiosos, morais e filosó-ficos, aos valores econômicos. Comunismo e capi­talismo empolgaram o século XX. A luta dos dois grandes titãs políticos do século, a Rússia e os Es­tados Unidos, é apresentada , por uns e por outros, ora de modo simplório, como na Rússia, ora de modo elaborado, como nos Estados Unidos, como a luta de dois sistemas econômicos antagônicos, o que se baseia no primado da iniciativa individual sôbre a coletiva (capitalismo) e o que se baseia no primado da coletividade sôbre o indivíduo ( comu­nismo) . Mas são tantos os traços comuns entre am­bos, inclusive o fanatismo anti-capitalista de uns e anti-comunista dos outros, como conseqüência na­tural do neo-inquisitorialismo, que podemos ver, nessa luta de irmãos siameses. as bases comuns que possui. Essas hases não s�.o suficientes, sem dúvida,

' para nos levar ao neutrahsmo dos braços cruzados.

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Mas tambê1n não nos devem iludir no reconheci­mento dos males comuns que afligem os dois cam­pos antagônicos. E êsse mal comum é aquêle que há 20 anos procurei analisar numa tese de concurso, Esbôço de introdução à economia moderna, em que sustentava que a primazia do economismo sôbre a sacralidade era o sentido dessa economia moderna, tanto capitalista como socialista, que não se apre­sentava a nós como uma opção, mas como um de­ver de superação, por aquilo que CHERTESTON cha­mou de "dístríbutísmo" e costumamos hoje chamar de humanismo econômico.

O economismo veio operar, no século XX, o mesmo desequilíbrio de valores, que o moralismo, o filosofismo e o politicismo exerceram nos séculos anteriores. O homem que tentava superar a Deus, como a sociedade que tentava superar o homem, eram agora envolvidos na mesma onda que tudo reduz ao primado da máquina e da sua utilização pela técnica. O tecnicalismo é tão anti-humanista como qualquer das formas anteriores de desumani­zação. E a nova escravidão dos tempos de hoje vem pôr em perigo de morte, mais uma vez, a liberdade. Essa liberdade, que o liberalismo tinha deformado no século XIX, que o libertinismo já havia corrom­pido no século XVII e que no século XX é absorvi-

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da pelo totalitarismo, sob tôdas as suas formas. O economismo é, pois, a expressão mais atual do totalitarismo. E o totalitarismo, a negação comple­ta da vida interior, como se vê naquele fenômeno que DAVID RoUSSET, por experiência própria e por meditação apropriada, chamou de "concentracionis­mo" O campo de concentração, como as torturas moderníssimas das injeções que fazem os condenados falar e convertem os inocentes,em culpados por con­fissões falsificadas, - representam o que há de mais requintado no processo de supressão da vida inte· rior. O indivíduo se torna um autômato. O ho­mem reduzido a coisa. O mundo interior é total­mente aniquilado. Os dir�itos, como os deveres, se anulam. A vida profunda se torna equivalente à vida animal. O homem se torna realmente um sim­ples instrumento de uma coletividade. que, por sua vez, desconhece qualquer espécie de estabilidade. O mundo interior, a vida interior não são sequer pensáveis nessa nova espécie de escravos de um auto­matic;mo impessoal e genérico.

Eis aí como atuam as autênticas alienações. Não as que MARX elaborou, mas as que a lógica dos erros preparou para o nosso tempo.

A restauração dos direitos do mundo interior é, portanto, uma das peças fundamentais da recupe-

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ração do tempo perdido em que nossa geração se vem empenhando, sob pena de desaparecer também no

turbilhão nivelador da nova escravidão pessoal e coletiva.

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CAP. 6.0

O HóSPEDE

A vida interior depende de três condições pre­liminares: _uma correta concepção de Deu.s. a har­monia psicológica e as circunstâncias do meio.

Uma reta concepção da divindade é a condic;;io fundamental de uma vida interior, rica c fecunda. Pois o que faz a fôrça da vida interior não é o iso­lamento. É o encontro de Deus em nós. Somos apenas a casa do Hóspede. O isolamento, como tal. poderá ser apenas mau-humor, desespêro ou misan­tropia. E nada de mais alongado dessas formas de negação da vida do que a vida interior. Esta. ao contrárioL é uma intensificação da vida. Para ter vida interior é preciso, antes e acima de tudo, ter vida , crer na vida e viver a vida do modo mais in­tenso possível.

Ora, só pode preencher essas três exigências ou mesmo qualquer delas quem crê em Deus e encontn a Deus não apenas à distância ou de modo. abstrato, mas dentro de si mesmo. O ateísmo pode provoc .. r

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uma intensificação da vida exterior, mas jamais um aumento de vida interior. Para quem não crê em Deus, só há vida no movimento, na agitação, no mundo das ações e dos fatos. O ateu encontra em si o vazio. Pois se vê, naturalmente, como uma conseqüência e um motor. Mas jamais como a habi­tação da própria vida. Crer em Deus é, portanto, a condi�ão. essencial da vida interior. E ter de Deus uma noção que permita essa intimidade com o mis­� êsse diálogo interior. que não anula a Deus ex:n nós, nem nqs aniquila em Deus, é a exigência imediata. E por isso é que duas concepções correntes da Divindade, o deísmo e o panteísmo, são também tão contrárias ao rr..undo interior como o ateísmo.

O deísmo coloca a Deus como uma categoria abstrata ou então a urna distância tal que o isola do mundo, tanto exterior como interior. Para o deís­mo Deus é uma "categoria do ideal", como dizia RENAN, ou o "arquiteto do universo", como dizia VoLTAIRE, ou um Allah inacessível e sem comuni­cação com o mundo, como quer o fatalismo muçul­mano. Essa concepção abstracionista de Deus, como uma pe�a na geometria do universo, aparta Deus de tal maneira do homem que não há meio de o en­contrarmos, quando nos fechamos em nós mesmos. O mesmo se dá com o fatalismo maometano, para

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quem a linha da Divindade é como que paralela à linha da Humanidade, sem que entre elas existam quaisquer coordenadas. Por mais puro que seja o monoteísmo, desde que separa Deus do homem, não permite que a vida divina se insira na vida humana de modo a alimentar o mistério e a abundância da vida interior.

O mesmo se dá com a concepção oposta, com o panteÍsmo�- ·se dissolvemos Deu's no universo, o Criador nas êriaturás. se apenas vemos Deus em tôaa

parte, encarnado na criação, é como se o tivéssemos solitário e separado no céu geométrico ou fatalista. Os dois contrários se encontram. No panteísmo Deus se perde no universo e não podemos encontrá-lo em nós. No teísmo fatalista ou abstracionista, Deus se fecha em seu mundo, estranho a nós, como se Êle se tivesse desinteressado da sua própria obra, por cul�-� rnrstralções do homem.

Para que a nossa vida interior represente a viCia de Deus em nós e o encontro com Ele no fundo de nós mesmos, é preciso que se resguarde simultânea­mente a distinção entre Deus e o mundo, contra o panteísmo e a união de Deus com o mundo, pelas idéias criadoras, pelos sacramentos e pela graça cons­tantemente animando a natureza, contra o deísmo. Só assim podemos ter a Deus em nós. sem que seja

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uma ilusão ou uma palavra vã. Só assim podemos encontrar, dentro de nós, o próprio criadÔr da vida. E por isso mesmo é que não bastam as virtudes mo­rais para que tenhamos uma vida interior intensa.

É mister que as VIrtudes teologais. a Fé, a Es­perança e o Amor, transfiguradas pelos dons do Es­pírito Santo, venham permitir que encontremos, no fundo de nossas almas, a presenç_a divina. E essa presença é que fãi· a riqueza da vida interior. É porque há em nós mais do que nós mesmos, que o mundo interior tem um sentido tão grande. É por­que Deus pode habitar em nós e pela vida interior podemos mais de perto conviver com Êie, que ir a Deus não é sair de nós e sim, pelo contrário, entrar t:!m nós. A vida religiosa só se torna exterior como uma conseqüência e não como uma causa. Os dois m.qdos de manifestação exterior dessa vida, a oração e o apostolado, só se justificam, quando alicerçados na vida interior. Pela oração é 9ue nos unimos pro­fundamente a Deu�. E a oração coletiva, a oração em união com todos os fiéis, a oração do nosso eu em união com a Igreja , Corpo Místico de Cristo, só �em valor quando precedida e acompanhada, simul­tâneamente, pela oração interior, pela intimidade com Deus no fundo de nossas almas. De outra for­ma se opera apenas uma mecanização, uma ritua-

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lização da prece, que não possui valor espiritual nenhum. O mesmo ocorre com o apostoladq. Só há fôrça de irradiação e de contaminação no apósto­lado, como extensão do Reino de Deus, a que cada cristão está moralmente obrigado, quando essa irra­diação parte de um foco ardente que não pode deixar de expandir-se. E, portanto, de uma vida interior que extravasa naturalmente e por isso mesmo de modo mais fecundo para a extensão da vida sobre­natural em nós, que é Deus em nosso mundo in­terior.

Uma falsa concepção da Divindade é, por con­seguinte, um elemento de enfraquecimento, corrup­ção e aniquilamento de nossa vida interior. Uma verdadeira concepção de Deus, ao contrário, permite que, dentro de nós, encontremos a Fonte de tôda a vida, a própria ·Vida em sua cratera ardente e lu­rnmosa.

Não há, pois, vida interior autêntica sem uma

profunda vida religiosa. Deus em nós é a condição primeira e maior dessa reverência que devemos ter para com a nossa vida íntima, de modo a expurgá-la de todos os elementos de desagregação e mantê-la na limpidez e na limpeza com que nos preparamos sem­pre para receber um hóspede. E Deus é mais, muito mais do que um hóspede em nossa casa íntima. É o

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próprio dono da casa. E quanto mais nos tornar­mos hóspedes do nosso Hóspede, tanto mais veremos crescer e florescer o nosso mundo interior.

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CAP. 7.0

EQUILlBRIO

Vimos que a primeira condição da vida interior é uma correta concepção de Deus. Outra condição é a que podemos chamar a h_armonia psicológica ou a sã hierarquia de nossas faculdades. Há três mo­mentos capitais de nosso contato com o mundo, tanto exterior como interior: a sensibilidade, a inte­ligência, a vontade. Pelo primeiro, recebemos do mundo exterior as impressões que representam como que a matéria-prima para a atividade criadora das nossas faculdades. Pela inteligência elaboramos essas formas primárias e tôscas da nossa sensibilidade, e desenvolvemos em nós as formas superiores com que iluminamos, qinto a ação inicial da sensibilidade COfllO a operação final da vontade. Esta última, en­fim, dirige as nossas ações para a sua finalidade co_ll­veniente, sob a direção orientadora do intelecto.

TQ.dQ. Q � f.QJ.Iilíbrio psicológico depende do funcionamento normal dessas w � funda­mentais de nossa natureza.

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O sadio funcionamento de nossa sensibilidade esrá intimamente ligado às condições do nosso corpo.

"Não somos um piano tocado por um anjo" nos diz MARITAIN, advertindo do perigo de uma cisão cartesiana ou racionalista do corpo e do espí­rito. Segundo a mais velha tradição hilemórfica, somos um composto vivo, em que o corpo está tão intimamente ligado à alma que a separação entre os dois elementos, se não representa a extinção d<respí­rito, é, pelo menos, uma redução tão profu-nda- de rnrnamm.r;··qu"ê 6'1to�a da ressurreição da carne vem ajustar-se, como uma luva, a essa reduçao subs­tancial da natureza do espírito separado de seu ins­trumento natural, o corpo. Do funcionamento nor­mal dêsse último depende, pois, de modo direto, o normal funcionamento daquele. SANTO ToMAS

chega a dizer que a perfeição de um depende do outro. Quanto mais perfeito o corpo, mais perfeita, em tese, a alma. Contra a posição platônica de que a alma e o corpo estão ligados por ,wna união me­ramente acidental, SANTO ToMAs sempre defendeu, contra a maioria dos pensadores do seu tempo, a união substancial da alma e do corpo, um natural­mente inclinado ao outro. Uma sã psicologia de­pende!._ pois, de uma sã pi()Jpgg� A vida interior. portanto, não representa uma antítese à vida física.

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Representa, apenas, a colocação da sensibilidade fí­sica em seu lugar inicial mas essencial, para o equi­líbrio geral das funções.

O mesmo sucede com os dois outros elos da corrente psíquica que o homem representa. Aliás o próprio movimento dos sentidos internos, o senso comum, a imaginação, a memória, a estimativa, está diretamente ligado à pureza dos nossos sentidos ex­ternos, que são como que a janela aberta para que o mundo exterior penetre em nós e ponha em mo­vimento as potencialidades que ficarão estáticas sem essa excitação exterior.

Quando passamos dos sentidos, externos e in­ternos, ao intelecto, tomamos pé no que representa o centro vivo e irradiante da própria natureza huma­na. A atividade intelectual do homem é apreensão de formas e julgamento. Apreendemos a verdade pela inteligência e caminhamos de uma idéia a outra pela razão. A razão, nos ensina SANTO ToMÁS, é a im­perfeição da inteligência. Esta, à custa do caminho discursivo das abstrações racionais, pode chegar à intuição das coisas mais recônditas e sutis, aproxi­mando a racionalidade da natureza humana, da in­tuitividade da natureza angélica, nesse caminho da ignorância dos sêres sem vida ao conhecimento puro que só exis�e em Deus. Nessa ascensão é que a inte-

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ligência opera, no homem, a passagem da matéria morta ao mundo das formas imateriais, ao mundo angélico e daí ao mundo sobrenatural, à própria vida divina. O exercício normal da inteligência, no homem, é, portanto, a condição sine qua non para aquela correta intuição de Deus, sem a qual não existe a possibilidade de urna sadia vida interior. Assim designa SANTO TOMÁS duas grandes etapas da nossa vida psicológica : "É natural ao homem que pelo sensível chegue ao inteligível, já que o conheci­mento tem a sua fonte nos sentidos" (I. I, a. 9) E daí "da experiência sensível, interpretada pela in­teligência, o espírito se deixa conduzir à intelecção mais elevada das coisas divinas" (I O Ver. a. 6, ad 2) .

Finalmente, à posição passiva da nossa sensi­bilidade que recebe o universo, à posição ativa da nossa inteligência que conhece a universalidade das coisas, da pura potência ao Ato puro, corresponde a irradiação da sensibilidade e da inteligência por meio da vontade, que é a nossa tendência à realiza­ção dos nossos fins, à plena operação da nossa na­tureza. De modo que, assim como a inteligência é a fôrça que nos leva naturalmente à verdade, ao que é, - a vontade é a fôrça que, iluminada pela inte­ligência, nos leva naturalmente ao bem, ao que deve

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ser a nossa perfeita realização, à satisfação suprema dos nossos dese jos. Daí uma hierarquia de bens particulares que não satisfazem senão de modo pas­sageiro o nosso ser, até a apreensão suprema do Bem universal, do Bem total, do Bem em si, único, como nos diz SANTO AGOSTINHO, que pode satisfazer ple­namente e pacificar a nossa insaciável sêde de abso­luto. E o nosso coração não tem sossêgo enquanto o não alcança. Ou então o perde, muitas vêzes, na loucura das posses parciais e na angústia do Ínãca­bado.

Só quando essa tríplice condição do nosso equi­líbrio psicológico está preenchida, - a sensibilidade, a inteligência, a vontade, - só quando êsses três elementos indissociáveis da nossa natureza estão bem distribuídos, bem colocados e em perfeito funciona­mento, é que podemos possuir uma vida interior abundante e fecunda,

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,

CAP. 8."'

O MEIO

Examinamos as duas condições essenciais para a existência de uma vida interior sadia. Há uma terceira, entretanto, que completa as outras duas : as condições do meio.

O ser humano, mesmo em sua vida psicológica, não pode ser abstraído dos outros sêres humanos e das condições físicas que o circundam, por duas ra­zões : uma tirada da observação da própria natureza humana e a outra das condições de funcionamento da sua vida psicológica.

É dos sentidos que tiramos os materiais com que trabalha a inteligência e com que opera a von­tade, não só para conhecer o mundo exterior, mas ainda para de�cer às profundezas do mundo inte­rior e aí alcançar a Verdade ·última e suprema, que não é uma abstração, mas uma realidade, uma pes­soa, a mais perfeita das realidades e das pessoas, o

...- próprio Deus, nosso Senhor e nosso Pai. Ora, os sentidos buscam êsses elementos no meio em que vi-

....

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vemos, meio físico e meio humano. Êsse meio, por­tanto, é uma condição preliminar para o funciona­mento do nosso cu. É impossível abstrair do meio, ao considerar o homem. Como é impossível abstrair dos sentidos, isto é, do contato do homem com o meio, para considerar a vida intelectual e a volição, elementos capitais da nossa vida interior. O meio, portanto, as condições que cercam o nosso corpo e o nosso espírito, o alheio, o outro, o não-eu, são notas indispensáveis para o perfeito movimento interior do nosso eu.

Outra razão é a própria natureza social do ser humano. A observação nos revela que o homem vive sempre em contato com os outros homens e, quando perde êsse contato, algo de estranho se passa com êle : ou melhora muito ou piora muito. Piora, em regra. Melhora, por exceção. Mas, normalmen­te, perde. Já· que, naturalmente, o homem é neces­sário ao homem para que a vida humana se desen­volva normalmente. O contato com os outros ho­mens é, portanto, uma condição de humanidade sadia, de aperfeiçoamento natural de uma natureza . que recebemos não formJda e perfeita, mas apenas com uma soma de potencialidades que nos cabe atualizar. A sociedade é, portanto, o elemento na­tural ao homem. como a água é o elemento natural

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aos peixes e o ar aos pássaros. Os animais vivem em simbiose com os elementos inferiores, por possuírem uma natureza infinitamente mais simples que o ser humano. Ao passo que o homem, que é uma na­tureza racional, só pode viver bem em contato com outras naturezas racionais. E a sociedade é o ele­mento dessa convivência.

Por êsses motivos, pelo menos, não pode haver vida interior sem haver vida social, já que o meio mais à altura das exigências do homem todo é o meio social. Só da sociedade, pois, é que nasce a possibilidade de uma verdadeira vida interior.

Isto, porém, é apenas uma primeira etapa. Já vimos que a vida social é uma condição natural ao homem e ao seu aperfeiçoamento, mas também pode ser uma causa de sua diminuição. E o será sempre que, em vez de permanecer .um meio, se converta em um fim. A sociedade é o meio natural do homem. Mas, quando de meio se transforma em fim, em vez de servir ao aperfeiçoamento da natureza humana, tolhe o seu desenvolvimento e concorre até para a sua degradação. O homem que vive para a sociedade, isto é, que faz da vida social o seu fim último, é um homem diminuído. E é particularmente um homem incapaz de viver interiormente. A vida interior su­

põe duas coisas a êsse respeito : supõe a vida social.

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como preliminar, e supõe, depois, a retirada da vida social. A vida social se sobrepõe à vida interior ou impede a sua eclosão, quando não se dá êsse duplo movimento. Não havendo vida social preliminar, o homem permanece um ser bronco, incompleto, pré­humano se pode dizer. E não pode haver vida in­terior sem haver. previamente, uma vida humana normal e completa. A vida interior não é uma mu­tilação, é uma plenitude. E como plenitude supõe um ser humano que alcançou o melhor e se possível o maior desenvolvimento de tôdas as suas faculda­des. Não é um refúgio dos mutilados ou dos im­potentes. É uma eclosão total dos que receberam da vida exterior, da vida psicológica e da vida social , tudo o que estas lhe podiam dar. É um aperfeiçoa­mento, não é uma evasão ou uma mutilação. De modo que a vida social - onde, pelo conhecimento e pela educação, pelo hábito de viver, o homem chega à sua plena humanidade - é uma condição sine qua non para a vida interior. Mas . há urll momento em que o próprio dinamismo da vida s6cial se pode voltar contra a vida pessoal. E a vida interior não é, em si, vida social (nem anti-social, naturalmente) mas vida pessoal. Se a vida social se torna exage­rada, se transborda de suas margens naturais, se se transforma, de instrumento de nosso aperfeiçoamen-

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to, em tirania dos nossos hábitos, então a vida so­cial absorve o homem, socializa-o completamente, torna-o um escravo de seus encantos ou de sua fôrça e com isso tolhe tôda a vida interior. É o que cha­mamos o mundanismo, sob tôdas as suas formas. O mundanismo é o grande inimigo da vida interior, justamente porque subverte a hierarquia natural dos valores e converte o mundo exterior em medida do mundo interior. Quando a verdade é o oposto : o mundo exterior existe para o mundo interior. E o meio, físico ou social, só é urna condição fecunda para a nossa vida interior, quando se respeita a or­dem natural dos valores. Quando o meio permanece meio. A sociedade, então, estimula em vez de tolher a expansão livre da vida interior. E esta se realiza então através dos três grandes SSS : o silêncio, a so­lidão e a santidade.

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CAP. 9.0

SILÊNCIO - I

O primeiro dos três SSS, fundamentos do mun­do interior, é o Silêncio.

Há dois silêncios que se completam, mas que não exigem reciprocidade : o silêncio exterior e o si: . lêncio íntimo. O primeiro, como o nome indica, é a ausência de rumor físico. Vivemos, mormente em nossos dias e na vida das grandes cidades, cercados de baruiiio. Há mesmo, em cidades como o Rio, um desperdício de sons, que toca as raias da verdadeira psicose. Nas cídàdes mais movimentadas do mundo, como Nova York, os automóveis transitam como se

­

se as buzinas não existissem. Na capital do México, barulhenta como o Rio, encontrei uma campanha sistemática contra os abusos dos clacsons. E assim no Canaciá- como em França, em Portugal como na Itália.

Por tôda a parte se começa a reagir contra a tirania das buzinas. Só no Rio os motoristas con-

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tinuam alucinados pelo som . Mas, sem dúvida, o mal é muito mais grave e extenso. É um mal uni­versal dos nossos tempos, agravado ao extremo pelos progressos mais modernos. Os alto-falantes nas ruas, os rádios nas casas, o cinema falado, o rumor das usinas ; tudo vem somar-se à estridência das bu­zinas para tornar as cidades de hoje verdadeiros antros de ensurdecer. E o silêncio exterior, no entan­�. é. uma . . condi� prelim.i.nal'-pM-a e--eqailíhfio_ da vida.

O rumor contínuo das çidaQes. modernas, o ma"lllar .da.-fábricas .o.u. dos estaleiros durante oito horas por dia, quando não durante a nQÍt� Ç.Como uma fábrica de pregos bem �- de .mwlu. casa., . .que em tempo trab�lhou de sol a $ol e de sombu a som­bra e me fêz fazer a experiência in anima nobili de quanto o silêncio físico é indispensável à vida hu­mana) , a onda de som estridente, sem sentido ou harmonia , que invade continuamente o nosso ser, é uma destruição lenta, mas implacável, do nosso do­mínio sôbre nós mesmos.

Até a música em excesso é um _mal. como observou WILLIA M JAMES, em seus estudos psico­lógicos. Vejo hoje, com o rádio, muita gértte que, inutilmente, por simples prazer1 trabalha ou repou­sa em casa, aó som do mais contínuo estridular de

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samba&,. anúncios comerciais e· notícias articuladas

..eor locutores, t�nto niais perniciosos, para a vida interior, quanto mais aveludada e redonda a sua voz àesencarnada de oráculos . Tudo isso é uma ver­dadeira insurreição contra o espírito.. Nossa vida mental tôda ela se forma por sensações que recebe­mos do mundo ambiente.

Se vivemos com os ouvidos continuamente so­licitados por essa _polifonia enlouquecida, só pode­mos criar! den.tro de nós. a confusão. a desordem e o entorpecimento. A mais diab'ólica consequência do barulho é a passividade do espírito. Solicitado, a cada momento, pelo ruído, de fora, o nosso espírito se vai acomodando a não sentir, a não reagir, a não pensar. Ficamos em um estado de pré-hipnotísmo que pode ser o prelúdio da mais insidiosa debilidade mental. O silêncio exterior é uma condição essencial para a atividade da inteligência e da vontade. A pró­pria sensibilidade se anula por uma contínua soli­citação do som. E o homem se torna um autômato, quando o ouvido trabalhe demais.

O silêncio exterior é a primeira condição para a vida interior. Mas não é a última. Muito mais importante é o silêncio interior. Podemos obtê-lo e,tn pàrte, mesmo cercados pelo rumor do mundo, iJReera não por muito tempo. Ao menos à noite

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é preciso que o homem se cerque de uma auréola de silêncio para que se sinta realmente viver.

O silêncio interior se abebera em fontes humil­des ou transcendentes. Abebera-se na noite, a_ grande e cotidiana companheira da nossa renovação coti­diana. Abebera-se na solidão. Abebera-se na lei­tura, como na meditação e, acima de tudo, na graça. O silêncio interior é o que nos leva a deixar viver 9 espírito em nós. Ao contrário do fogo, o espírito se alimenta do vazio.

QuaRiii IRIAIMI8 a Rossa vida de sensações ou de sons, continttanteft�e abser o ides pele ftesse eOftt­tate exageraào com o mundo de fora, a vida do �ro -eomeça a decair. Fi�mos nesse estado de passividade que caracteriza os automatismos. • f)et­xamo-nos viver. Não vivemos. É preciso fazer o silêncio em nÓS', parcr qtreo o esptrtco tomece a viver. É como .w: a luz espiritual se ati:meur.tsse l!o vacuo.

À medida que nos retiramos ao centro de nós mesmos, à medida que cresce êsse silêncio profundo da alma, vão-se delineando as formas do pensamen­'to, tr passado ressmge � etrm � esqaettmento, a atenção se ap'tiTa-, cres-c� ':1 �eza dos jll�os, os sentidos interiores gant1am f\5rma a IIredida que se tornam mais discretos os sentidos exteriores, a luz

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da inteligência se torna mais viva, o calor do espírito se torna mais ardente e a vontade mais firme.

Começamos então a sentir melhor o nosso cu, o que fica tantas vêzes escondido em nós, por falta de silêncio, emergir da sombra e cantu então o cân­tico da alegria que o encontro com as grandes ver­dades nos leva a entoar. O silêncio então se torna Canto. O silêncio de5abrocha em palavras que só os anjos escutam, mas que os postos de silêncio das outras almas interiores e ardentes escutam com muito mais profundeza do que os postos de escuta das an­tenas loquazes das almas extrovertid ::s .

Pois, se a plenitude da pJlavra é o silêncio, como a da emoção, a plenitude do silêncio é a pala­vra humana que acaba entendendo o mistério do Verbo e dialogando com Deus, como o fazia o Cura d' Ars nas _madrug_adas da su;, humilde ta pela.

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CAP. 10

SILÊNCIO ·- I I

É no silêncio que ouvimos a voz das coisas, como ouvimos as vozes profundas do nosso pró­prio eu e como chegamos a ouvir a voz de Deus.

Ouvimos a voz das coisas e dos animais, ouvi­mos o sentido que têm as árvores e os rios, o mar e os passarinhos. O silêncio apura em nós a acuidade dos sentidos e da inteligência. Enquanto o rumor pode ser um estímulo à vontade e à ação, só o silên­cio abre os nossos poros sensíveis e a nossa razão e nos torna passíveis, portanto, de penetrar o segrêdo das coisas, pois as coisas guardam consigo o segrêdo de suas origens e a marca invisível que nelas deixa­mos em nossa passagem. Guardam consigo, na sua imobilidade ou na sua irracionalidade instintiva, muito da Fonte de que provêm. Deus fala pelas coi­sas quando nos cercamos de silêncio. Por qu(' razão os "coe/i erraram gloriam Dei" (Ps. 1 8 , 2) , senão porque as coisas guardam consigo, mais intatos do

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ALCEU AMOROSO LIMA

que nós homens, os sinais dos dedos divi nos ? Por

que se refugiam no silêncio dos desertos e das mon­tanhas. dos claustros ou de si próprios, aquêles que

querem ouvir a voz de Deus ? É porque o silêncio nos torna sensíveis ao segrêdo das coisas. Porque o silêncio nos permite ou vir a voz de Deus nas coisas.

o sinal do Criador nas suas criaturas. Sem o silêncio. passamos por elas distraídos, como se fôssem real­

!MMe-lttfta--nta tê ria -t,rttta .- immillltR1'8Cfft aznti do.

qtte ftaàa · tem a nos contar. Cotn -e-s-tlêrtei-6; ao con-· trária; rs &otM& &ltMif&flt"'a-fl.ltlr;· ffm'teçMil a -eo!ttM· nos histórias maravilhosas, que não estão apenas em

nossa imagi nação, que não lhes são apenas comu­

�as� aós--mesmos·mas·�-eMão conti das nelas.

trancadas em sua imo�de d" pedra, eln .... ua vet-.

satilidade de águas, em sua mudez de pássaros, pre­

cisamente porque são criaturas de Deus. Foi SÃO FRANCISCO DE Assrs, mais do que qualquer outro poeta do mundo, que soube falar às coisas e aos ani­

mais e melhor ouvir as suas vozes ! E como o alcan­

çou ? Fazendo o silêncio em si e vivendo no silêncio

interior. Foi quando deixou a cidade, o tumulto dos

prazeres e dos negócios, que começou a dialogar com todos os sêres. E com isso enriquecer para sempre,

não só a sua vida ou a daqueles que despiram as ves­tes do mundo, em todos os séculos para o seguirem ,

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MEDITAÇÃO SÔBRE O MUNDO INTERIOR 69

mas a todos os que amam o silêncio e nêle encontram a chave de tôdas as vozes.

Porque as coisas, se guardam o sinal do seu Criador, em seu silêncio, guardam também a marca das criaturas que por elas passaram. Os acontecimen­tos, humildes ou convencionais, históricos ou sem história, deixam nas coisJs o sinal da sua passagem

E é da contemplação silenciosa que êsscs sinais co­

meçam a vir à tona e a nos ensinar a lição do seu

passado. O silêncio em que contemplamos as coísaE

nos traz a voz de Deus c a voz dos homens, do tempc e da eternidade.

Como n os traz também o segrêdo das próprias almas, o mistério do Outro. Só em siWncio podemos

�8gar à i&Mf)f@IJR&áo.-li g,a..m.'i:dida sm ..q.ne fazemos

em nós a depuração pelo silêncio. que podemos ven ·:. cer um pouco das barreiras que nos separam uns dos outros. O Amor nasce do silêncio e só êle o leva de novo à plenitude. Quando K.A TERIN MANSFIELD morreu, o seu viúvo, o grande crítico MTLDDETOK MURRY, escre\reu uma página inesquecível em que fa ­zia, entre outras coisas, essa reflexão tão verdadeira, que a plenitude do amor conjugal é o silêncio lado a lado, e a sintonização sem palavras é a vivência muda, como a convivência dos anjos.

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70 ALCEU AMOROSO LIMA

O silêncio é que aproxima os homens que o ruído separa, como é também o caminho da nossa própria compreensão interior. É pelo silêncio que nos encontramos a nós mesmos. Quem não sabe si� lenciar não se encontra jamais. Há homens que vivem divorciados de si mesmos porque nunca fa� zem em si o silêncio. Não se conhecem porque não procuram ouvir a voz da sua consciência, do seu pas� sado, da sua experiência, do seu mundo interior. Ignoram-se porque falam todo tempo, mesmo quan­do se calam. Pois o silêncio não é apenas a ausência de palavras ou de ruído, não é apenas uma omissão, uma supressão, uma ausência, um valor negativo, mas, ao contrário, um valor essencialmente positivo. É no silêncio que se constrói a nossa vida interior. E o sílê,ncio que edífica o nosso mundo interior, de modo que a vida sem silêncio é uma vida mancada, como o silêncio sem vida é uma negação do silêncio, é um falso silêncio.

Quanto mais temos de viver num mundo mar� telado pelo Ruído, mais precisamos fazer o silêncio em nós. Não apenas aquêle que nos esvazia para recolhermos a mensagem dos pássaros, das flores, das estrêlas e das cascatas, de tudo o que só fala quando se cala a alma humana, mas ainda aquêle que nos enche, que nos renova, que nos eleva, o silêncio que

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nos leva à descoberta de nós mesmos, ao amor do próximo, ao diálogo com Deus.

Os poetas e os místicos, mais que todos, conhe­cem o valor do silêncio, porque só nêle podem en­contrar o que procuram. Mas não há privilegiados do silêncio. São todos os homens, é cada um de nós, é a própria vida humana, para ser bem vivida, que tem sêde de silêncio, porque só nêle encontra o ca­minho para a paz e para a sabedoria, para perdoar, para esquecer e, acima de tudo, para amar.

Quando procuramos. pois, o silêncio e a solidão e nêles encontramos o que nos nega o tumulto do

-

mundo. é que a nossa alma precisa de silêncio, como o nosso corpo precisa de alimento. E não há vida interior fecunda sem que, em tôrno de nós se possí­vel e sempre dentro de nós, o Silêncio fôr a raiz da Solidão e da Santidade.

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CAP. 1 1

SOLIDÃO

Há uma solidão ínumana e infecunda. Há

mesmo vanas. A solidão forcada da prisão só muito raramente inspira u_m S_fL_'[�9 . . P?!:.ICO ou, no extre­mo oposto, u�Qsc�-� _yy�_LDE. E só quando unida à santidade, dá ao mundo um JoÃo BATISTA ou um PAULO. Em regra, produz apenas amargor e revol� ta, quando não o servilismo.

A solidão da loucura fecha o homem num uni ­verso sem o próximo. O outro deixa de existir. Ou então existe como inimigo, como perseguidor. O ho­mem se fecha em seu próprio universo, voltado pan dentro de si mesmo, num círculo vicioso sem saíd;� . seja n a imobilidade da catatonia, seja na projeção dolorosa da esquizofrenia, sejã no mundo negro das depressões e das perseguições.

A solidão da misantropia ainda é mais triste. A loucura pode levar à euforia e à megalomania, mas o pessimismo leva à negação. O homem se fecha en­tão voluntàriamente. Foge do mundo e dos demais.

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Vê em tudo o lado mau das coisas. Projeta sôbre a vida a sombra que lhe cobre a alma. Rejeita o rumor das cidades, mas não se alegra com a paz dos cam­pos. O silêncio lhe pesa, como pesa a companhia. Em nada encontra o que louvar, a não ser em si mesmo. E mesmo assim se volta contra si próprio, pois quem se insula sistemàticamen te dos homens acaba inimigo da sua própria humanidade. Só a so­lidão do fariseu, a mais inumana das solidões, torna o homem satisfeito de si mesmo . . .

A solidão do desespêro é trágica, pois invade de surprêsa um coração desamparado e leva-o ao pecado sem remissão, a duvidar da própria Miseri­córdia Divina. É a solidão que leva ao suicídio. Apodera-se de uma alma, por vêzes, em plena feli­cidade, sobretudo quando as almas acreditam demais na felicidade trazida p'elas coisas terrenas. E abate-as como um raio abate um cedro, na tempestade. É

assim que o amor se transforma violentamente em crime. A vida, em um deserto sem sentido. É a solidão dos que não aprenderam a viver sós.

Há a solidão disfarçada das cidades, que arran­ca o homem de si mesmo para o entregar ao anoni­mato dos prazeres, dos rumores, da agitação, do "mundo quebrado" de que fala GABRIEL MARCEL.

É a solidão da vida medíocre do campo, que endu-

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MEDITAÇÃO SÔBRE O MUNDO INTERIOR 75

r.e.c:.e as almas. torna-as �cas e vegetativas, dimi­nuindo no homem a capacidade de se renovar, mi­neralizando, pouco a pouco, a sua humanidade.

_ . . São .tôdas elas formas infecundas e inumanas da :Wlirlão perspw inadequadas.à sua verdadeira na­

.tuteza. O homem não foi feito �a solidão, mas a solidão existe para que Q-homem se. encontre a si mesmo. E encontre em si Aquêle que explica o seu mistério. Quando o homem procura a solidão pela soli.dio....ou esta lhe é jmpai.ta como m. penali4ade ou coma.. uma moléstia, .passa da �n.t.ão lr ser uma diminuição e um absurdo, já que. o. homem é....w.u animal naturalmente sociável. E só na companhia dos outros homens encontra o seu verdadeiro cami­nho. Mas, quando abusa dessa companhia, quando só sabe yjyer em sociedade qnapda só encontra pra-

d' . . -zer P? 'OP'rersa PO Jlrett' mqpto, 92 28't?Ç?O; PQ

ruído, na atividade, quando não sabe gozar da com­panhia do silêncio e não sabe conversar consigo mes­mo, então é o caso de abrir os olhos ao perigo dêsse desperdício, dêsse esvaziamento, dessa defecção, pre­lúdio certo do aniquilamento ou da diminuição da personalidade.

�ó na solidão encontramos o nosso verdadeiro eu. Só na solidão descobrimos c verdadeiro sentido da vida. Só na solidão nos abeberamos na fonte da

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verdadeira renovação. A vida interior não existe sem o amor da solidão. A vida ativa não tem sen­uao se nao se renova na solidão. A vida apostólica se deturpa quando não procura na solidão as rique­zas que deve levar ao próximo. Todos os 2:randes �antos, como o Cristo, se refugiaram n.o deserto an­tes de pregarem a salva�o. "O solitudo, sola beati­

tudo" O solitário encontra na solidão alguma coisa que está para além da solidão, pois esta, para ser fe­cunda e humana, tem de ser um meio e não uma __

finalidade. O verdadeiro solítário encontra na soli­dão a beatitude. Encontra a felicidade que não passa, porque não é dêste mundo. Encontra o sen­tido da vida, que só se explica quando não o pro­curamos apenas nos valores da vida efêmera.

Podemos viver solitários em plena multidão, como podemos VIver perdidos em plena solidão. Podemos levar ao mundo a nossa solidão fecunda, como podemos trazer, para a solidão, todos os pe ­cados do mundo. Pois não basta viver só. É pre­ciso saber viver a sua solidão. Não basta ter cons­ciência de que cada alma é um mundo fechado, im­penetrável aos outros mundos fechados, o das almas que nos são mais próximas. É preciso não se deixar vencer pelo desespêro dessa solidão das almas. ·É pre­ciso vencer êsse isolamento, tr�mspor os mu ros que

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fecham as almas uma das outras, para que a con� vivência das solidões individuais possa levantar en­tão, de modo surpreendente. _ o nível de uma comu­nidade doméstica . profissional e sobretudo religiosa. É quando sabemos amar a Yida solitária que a vida social começa a se tornar fecunda. É quando sabe­mos fazer da solidão uma participação ativa nos sofrimentos e nas alegrias alheias que o nosso deserto se povoa e se explica então que aquêles homens que foram a primeira vez para o deserto, sem serem fi­lhos do deserto como os nômades, vivam até hoje para edificação e �levação das almas de gerações e gerações sucessivas. É que a sua solidão não era uma fuga, mas uma ablução da alma para receber a visita de Deus. E essa solidão nós todos a podemos ter, CQ_mo podemos levar conosco o silêncio para o ru­mor do mundo. Essa solidão assim vivida não é nunca uma ausência. É uma presença. É um en­contro do homem consigo mesmo, como condição para o encontro do homem com Deus. Os grandes solitários são os verdadeiros mestres da sociabilida­de, pois o amor do próximo se nutre dos frutos do deserto. _E sg _9 silênçio é a voz de Deus. a solidão é a Sua presen_ç_a .

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C.I\P. 1 2

SANTIDADE

Os santos não falam da santidade. Vivem-na. Isso nos põe mais à vontade para falar dela. Há, realmente, certos têrmos que infundem mais do que respeito, veneração. Mais do que veneração, uma espécie de intimidação que pode tocar às raias do terror. A santidade é, certamente, um dêsses têrmos e um dêsses temas.

SÃO FRANCISCO DE ASSIS chegava a proibir a comemoração das virtudes heróicas dos santos. "Pra­tiquem-na", dizia êle a seus companheiros. E come­çava por si, demonstrando assim a própria essên.dª­da santidade que é ser um ato, uma vida em atos e nao em palavras. E atos que ponham as potências humanas na uiiíâo maior -possível com o 1\ to em si. c.om o Ato puro que é Deus.

Pois se a santidade, muito mais do que o silên­cio e a solidão, é a condição fundamental da vida mtenor , e que vem de Deus e volta a Ele, sendo, ao mesmo tempo, urna causa, uma condição e um fim ,

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a que podemos fugir ou ser indiferentes ou de que nos podemos aproximar em todos os graus, dos mais elementares aos mais sublimes. Por isso é a santi­dade, ao mesmo tempo, tão humana e tão sôbre­humana. Por isso a Igreja a pede a todos os fiéis, por p1ais que sintamos a nossa mediocridade, e no entanto eleva tão poucos à glóri a dos altares, que os_ Santos representam .. DJ.,a..Í..s. do � os. Heróis QU os Gênios, os tarots soli tários que guiam a humani­dade. Iluminam de tão alto, que nos habituamos a considerá-los como sêres de outra espécie, que vivem no passado, de que só temos notícia quando já se encontram em regiões inatingíveis, no espaço e no tempo, c assim nos desculpamos fàcilmente de não os imitar. Como imitar Elias. raptado w..se.u,.carro de fogo a regiões misteriosas, que os exegetas colo­cam entre o tempo e a eternidade? Como imitar SÃO

PAllL.Q.. .levado ao terceiro céu e ouvindo palavras que a voz humana não pode reproduzir ? Camci imi­tar, no �xtremo oposto, :um SÃo .SIMÃO EsTILITA ou um SÃo BENEDITO I .AzARa g,w:._se_<:s;mfun.dem de. tal maneira com a imobilid.a.de....das _çoisas_o.u. a...petri­ficação da miséria, que os pássaros faziam ninho nos cabelos dos discípulos de SÃ.O PATRfcro?

E para não ir tão longe, um dia, ali no .Pili.­cio.....Sio Joaquim.. D... SEBASTI.!o.LEME recebeu a · vi-

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MEDITAÇ'ÃO SÔBRE O MUNDO INTERIOR 81

sita de_DoM ÜRIO�E . a ue voltava do Chile e da ... Argentina, depois de ter espalhado por lá a obra da Divina P_!Qvidên_cia, onde milhões de des�rdados têm encon_gad9, no . �un�o. a _lÍnic� J.-Ier�!I:ÇJ que não se dissipa : o Amor e o Pão. Qual não foi o assombro do nosso Cardeal quando o humílimo religioso saca do bôlso da batina uma disciplina, '!.)odha_�se _antes de falar e COI!leça a flagelar-set dizendo : ' 'Bminê_ncia, eu não sou mais do que um pobre pecador ! " Lou­cura, d1ráo tàcilmente os bem pensantes. E realmen­te a santida�l.e, quando vence a tal ponto o respeito humano, toca as fímbrias daquela "loucura_ _da Cruz",. de que falava SÃO PAULO e é a plenitude da

-�abedoria. Mas justamente por não ser unívoca a santi­

dade, é que tem levado aos altares. as extravagâncias çle SÃo fELIPE NÉR,I e a vida igual çlaquele Irmão jesuíta, de Majorca, que tm apenas portetro do seu convento e viveu por meio século a sa11tídade coti­diana e humilde da renúncia perfeita , dêsses santos sem nome cujo altar devia existir em tôdas as igrejas e que aliás comemoramos no dia da Comunhão dos Santos, a 1 .0 de novembro. Não é santidade a velei­dade de ser santo. E sim a vontade expressa e sobre.:­tudo impressa. Um PQ!Jlem d� letrqs, _ sem ser teó­logo. GEORGES DUHAl'viEL, o demonstrou muito

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bem no tipo de Salavin, o homem que quis ser santo -· . ... --

sem o ser. E alcans�u apenas a caricatura da santi-dade. Porque ela é, acima de tudo, �-1Jla eleicão. uma vocação. E a vontade, que adere à Graca divina, não é a veleidade que pode apenas seguir a tentação da - .. . .... vaidade, como os falsos profetas. --- -)\.�sant}dªdé-�:-·p��s� üiiia

. . causa, uma condição

-� Upl fim da vida interior. E UfD.ª Ç<ll!$ª--Q9rque vem -de··neus e rel're.senta uma�.leç�o a que todos são chamados - pois não há pnvtlegiados, que se isen­tem dessa mobilização para a guerra santa, senão fu­gindo a essa vocaçao umvers�l - mas a que fugimos a cada momento, pela nossa mediocrida_de e pela nossa fraqueza. E�§a graç_� sautificante é a causa da_ nossa vida interior. �ua ongem, po1s, transcende infinitamente ao nosso simples desejo. É um cha­ma_çio-

a· que devemos atender, e a que geralmente não

atendemos ou atendemos mal. E __ por isso é tão frá­gil. geralmente, a nossa vida interior. E tão tumul­tuosa. Tão reduzida apenas àquelas trevas biológi­cas e psicológicas que FREUD examinou com ��a pinça, como os cirurgiões exploram as larvas de um tumor . . A vida interior que vem de Deus é clara e silllples como um dia de céu azul e sol de fo_:Gl_._ Ou nítida e pur9 como essas noites estreladas, segundo os temperamentos solares ou noturnos·. Pois a vida

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MEDITAÇÃO SÔBRE O MUNDO INTERIOR 83

interior, como a santidade, é tão irredutível como a personalidade a um tipo único e

.in�'ariável. É o pró�

prio domínio da liberdade e da variedade. A santidade é também uma condição da vida

interior, como o silêncio e a solidão. É a fôrça da renúncia, da mortificação, da hUJnildade, do espírito <k sacrifício que, se não é a essência da santidade, é <!.....S...Ua liçã_p. Não é a renúncia à felicidade. É muito mais do que isso. É a ale2:ria do sofrimento. É a rjg_ueza do despojamento. É a vitória dos malogJ,:Q$. É a presença da Ausência. O fogo do batismo pela - · '

água. A vida da morte. "Ero mors tua, o mors" ( 1 Cor. 1 5 , 5 5 ) . ó morte, eu serei a tua morte, disse o Santo por excelência, Cristo Senhor nosso. Êsse o paradoxo supremo da santidade. a conquista da pleai,tllde pela renúncia, da vitória morrendo e não matando, da_ riqueza dando e não _guardando, da. \cid. ,m liiOL te.

E é por isso que a santidade é um fim. Todos devemos procurá�la, humildemente, por maís que te� nhamos consciência da nossa indignidade, da nossa insuficiência, da -nossa pobreza espiritual. Todos devemos procurá� la na vida de cada dia, pois _é mais difícil fazer a vontade de Deus nas coisas pequen<}� que nqs grandes feitos. E o que Deus quer, dos homens, é apenas a santidade. Apenas . A vida

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interior é, pois , uma preparação para a santidade, como esta é uma condição daquela. Assim como a santidade, por sua vez, é uma preparação para a beatitude, para a visão de Deus na eternidade.

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CAP. 1 3

CONSEQüÊNCIAS

Examinamos a natureza e as condições da vida interior. Vejamos agora alg_umas das su_as conse� qüências.

Uma vida interior bem vivida aguça a sensi� bilidade, ala� ajnteligência e fortalece a vontade.

Aguça a sensibilidade porque poupa os senti­dos. A vida exterior ·é feita na base da hipertrofia e do exercíci'o contínuo dos sentidos. A vida voltada para fora exige dêles uma atividade incessante, tra­zendo para o espírito a todo momento as impressões colhidas lá fora. Ora, o exercício exagerado de um órgão ou de uma faculdade produz o mesmo efeito que a sua inatividade : a atrofia. Os sentidos se em­botam com a paralisia e com o excesso. A vida em exterioridade, abusando dos sentidos, provoca a sua petrificação. A vida interior, ao contrário, poupan­do os sentidos, conserva e aumenta a sua agudeza. O envelhecimento prematuro é sempre a conseqüên� cia de um desperdício. A mocidade. uma contenção.

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A vida interior é� pois! J.l!l}a_çpng_kiQ __ de rejuvene�ci:­mento e de preservação e intensificação da nossa sen­sibilidade. E. portanto, serve a tôdas as vidas, in­clusive à vida extrovertida. Quanto mais agudos os nossos sentidos, na percepção dos elementos que for­mam a base da nossa vida do espírito, mais ganha o nosso mundo oculto.

Uma vida interior bem vivida alar2:a a inteli­gência.

Alarga-a, não só porque as imagens com que t�al?alha �hegam com mais abundância e mais reais,_ mas ainda porque se intensifica a faculdad� dg pe­netração do intelecto agente. A inteligência é uma luz. Quanto mais intenso fôr o foco, mais provável a possibilidade de penetração no âmago da realidade. Ora, é na vida profunda do nosso espírito que se forma a luz da inteligência. Sempre que vivemos voltados para fora, prejudicamos a formação e a re­novação dêsse foco de luz. A inteligência aumenta na proporção direta da interiorização. E na inversa da dispersão. A formação da atividade intelectual. como um dínamo stti-generi.s, exige a concentração da energia mentaL Quanto maior fôr a preservação da interioridade, mais provável a elaboração dessa energia. E com ela é que podemos melhor conhecer, tanto o mundo do não eu como o do próprio eu e,

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acima de tudo, o mundo próprio do Criador do eu e do não eu, o mundo de Deus, a vida sobrenatural. Só a vida interior intensa permite dar calor, lumi­nosidade, penetração à inteligência. Esta se embota, quando nos perdemos na vida exageradamente ativa. Cresce, ao contrário, quando entramos em nós mes­mos. Quantas verdades nos são reveladas pelo pró­prio sono ! Basta que fechemos o circuito com as coisas externas, para que o laboratório secreto dos nossos sentidos internos comece a trabalhar : um nome esquecido volta à tona, a solução de um pro­blema matemático se encontra, um êrro se descobre, só porque deixamos em paz as nossas raízes bioló­gicas. Ora, se isso ocorre com a base física do nosso espírito, que o sono preserva tôdas as noites ( quan­do preserva . . . ) do esquartejamento pela extrover­são, quanto mais à medida que passamos ao psíquico e ao espiritual. É então que se processa o verdadeiro encontro com nós mesmos. E que a inteligência des­cobre o clima necessário para se preparar à grande aventura cotidiana de descortinar o desconhêcido.

E, com tudo isso, é a vontade também que se fortalece. Tudo está ligado nessa unidade transcen­dental que constitui a nossa �ersonalidade. Nada se processa em qualquer dos nossos órgãos que não en­contre repercussão nos outros. Nada, tão pouco.

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ocorre com qualqu�?r clo:z nossas faculdades, que não reaja sôbre J S dema is e delas receba também qualquer impulso. Tudo está intimamente ligado em nosso mundo pessoal . A agudeza dos sentidos exteriores enriquece a inteligência através da movimentação dos nossos sentidos internos. E a fôrça da inteligência é que dirige a vontade e comr:nica- lhe vigor e tenaci­dade. A operação acompanha o ser, não o precede. Mas por sua vez volta a agir sôbre o ser, numa con­tínua circulaç5.o de energi:ts, físicas, psíquicas � pneu­máticas. A sensibilidade alimenta a inteligência, a inteligência alimenta a vontade e a vontade alimenta, de volta, a sensibilid2de e a inteligência. Ora, êsse circuito vit<1l é diretamente derivado da riqueza, do equilíbrio, da fôrça, da profundidade da vida inte­rior, sem a qual n-zm os sentidos se conservam sensí­veis, nem o intelecto preserva a inteligência, nem a vontade sabe discernir o bem. Sem vida interior, os sentidos destíbrn apen2.> sensualidade, a inteligência se converte em esperteza superficia l e a vontade em veleidade. Dá-se uma corrupção geral da nossa vida do espírito e, com isso, da nossa vida de ação. Pois a vontade, orientando tôda a nossa vida, exterior e interior, para a sua finalidade própria, vai receber as conseqüências finais da deturpação da vida sensível

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MEDITAÇÃO SÔBRE O MUNDO INTERIOR 89

e da vida intelectual que a precedem e perde comple­tamente o vigor e o senso da orientação.

A ausência de vida interior, portanto, é a causa mais freqüente do desequilíbrio total de nossa vida, em qualquer dos seus momentos, original, central ou final. A preservação, ao contrário, de uma vida in­terior profunda e pura atua sôbre tôdas as nossas faculdade�. sôbre todo o nosso ser. Quanto mais lucidamente entramos nas raízes profundas do nosso ser, mais conseguiremos espantar de lá os morcegos que FREUD encontrou, e que só se refugiam nas gru­tas desertas ou nas casas abandonadas.

A verdadeira psicanálise é uma vida interior au­têntica, pois os demônios e os ídolos só se instalam nos lugares de onde Deus deserta. Ora, Deus não deserta de lugar algum, a não ser que nós de lá O expulsemos. E o homem, para o seu mal e também para a sua grandeza, possui, em si, até mesmo êsse estranho poder !

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CAP. 1 4

AUSÊNCIA

Entre as propriedades acidentais do ser que a vida interior permite sentir, conhecer e querer com mais ou menos intensidade está, sem dúvida, a opo� sição presença�ausência.

Comecemos por esta última. A ausência é uma privação. Ê, portanto: uma propriedade negativa. Mas, como tôda privação, implica a existência do contrário. O mal só existe porque o bem existe. O feio só existe porque o belo existe, confundido ou não com o bem. O êrro só existe porque a verdade existe. Assim também com a ausência. Não é uma inexistência. Ê uma negação : a negação da presen� ça. Não é, portanto, n�m um valor em si nem uma fantasia. É uma falta que supõe uma realidade. Há, pois, em tôda ausência um reflexo do ser. Uma sombra. Um sinal. E a percepção dêsse reflexo, dessa sombra. dêsse sinal. é que exige de nós uma agudeza de espírito que o grau de vida mtcrior au� menta . diminui ou mesmo suprime.

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O homem privado de mundo interior é o ho­mem insensível à ausência. Vive satisfeito com o que vê ; sente apenas com os sentidos externos. Vive per­dido nas coisas. Vive, como as pedras ou as plantas, perfeitamente integrado no mundo exterior. Porque o próprio animal já sente, por vêzes, a falta do dono. É o sinal de uma vida que se aperfeiçoa. E o homem é o animal que sen te falta. Quanto mais vive inte­riormente o homem, mais sente a ausência das coisas e dos sêres. A aus�ncia deixa de se confundir com a inexistência, como ocorre com os sêres inanimados, para pertencer àquela categoria intermediária a que fizemos alusão : o sinal de uma existência oculta ou remota.

A ausência, que é qualquer coisa de puramente passivo para os sêres insensíveis - como a ausência de sol para uma planta, que pode provocar a morte - passa a ter nos sêres sensíveis, c particularmente no homem, uma existência rela tivamente positiva. É uma privação, sem dúvidél, mas uma privação que supõe uma existência e, portanto, leva consigo algu ­ma coisa ou mesmo muito do ser que representa.

A medida que nos aproximamos do homem, vai a ausência perdendo a sua passividade. No ho­mem adquire um sentido positivo e até criador. E adquire-o, como dissemos. na razão direta de sua

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vida interior. A insensibilidade à ausência é sempre o ·sinal do homem absorto pela vida exterior, pelo trabalho, pelo prazer, pelas paixões, pelo sofrimen­to, pelas anomalias de sua natureza, por tudo o que arranque o homem de si mesmo. E, ao contrário,

• quanto mais o homem entra em si mesmo e cultiva as riquezas secretas do seu eu, mais sensível se torna ao que lhe falta, ao que já teve, ao que tem ao longe, ao que deseja. A ausência vai aumentando então o grau de sua positividade. Até, por vêzes, ultrapas­sar o limite e absorver o próprio homem, aniquilan­do-lhe a própria vida interior. E provocando uma inversão de valores por excesso, que pode levar ao desespêro, - como nos homens sem vida interior, insensíveis, frios, secos, indiferentes, absorvidos pelo mundanismo ou por qualquer forma de e��teriorida­de, provoca uma supressão de valores por deficiên­cia, que os leva a merecer o qualificativo dos salmos : "nati qHasi non nati"

Há três séculos, um grande moralista fêz da ausência, numa sentença, a mais perfeita análise que já vi. Disse LA RocHEFOUCAULD que -- "a au­sência é como o vento, que apaga as velas e a tiça os incêndios' ' .

A fôrça ativa da ausência e o seu duplo efeito nas paixões humanas, frágeis ou fortes. estão aí

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admiràvelmente resumidos. A ausência aparece en­tão, nesse nível, como uma realidade, uma forma secreta de real idade que poderíamos chamar simbó­

lica, pois se manifesta como um sinal, como aviso de uma realidade remota, passada ou futura. Por vê­zes, como a realidade que nos recobre por tôda a parte, quando saímos do campo limitado dos nossos sentidos e da nossa razão : a realidade do mistério.

O mistério é a mais generalizada das ausências. É a que se contém no fundo de cada coisa, quando queremos chegar às suas raízes mais remotas. E por isso é que a sensibilidade mais apurada, a inteligên­cia mais aguda, a vontade mais firme, não se satis­fazem com as aparências. Sentem, compreendem, conduzem para lá das superfícies, para lá do imedia­to. E tocam então êsse mundo secreto das ausências, que nos permite vislumbrar o verdadeiro mundo in­terior das coisas, do não eu, que corresponde, fora de nós, ao nosso próprio mundo interior. E chega­mos então à maior das ausências do mundo, à Au­sência em si, a ausência de Deus ! É pela ausência que chegamos à presença de Deus, como é pela au­sência que chegamos à presença de tôdas as coisas, abaixo de Deus, e de modo particular às criaturas. E de modo particularíssimo às criaturas que nos são mais caras. Tocamos então a ausência, como se fôsse

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MEDITAÇÃO SÕBRE O. MUNDO INTERIOR 95

realmente qualquer coisa de positivo. de real. de imediato. Carregamos conosco essa ausência. Dialo­gamos com ela. Vivemos c.om ela. E jamais nos sentimos sós. Deus, o grande Ausente, está sempre conosco. E os ausentes queridos, especialmente quando vistos através do grande Ausente, tornam-se para nós os mais vivos dos companheiros. E é por isso que aquela religiosa do Carmelo de Santa Te­resa, a filha de Capistrano de Abreu, pôde escrever um admirável poema de sua presença a todos os movimentos da cidade, da madrugada à noite, tudo através da ausência, tudo através da presença da au­sência. Ai dos insensíveis ao calor das coisas ausen­tes ! Ai daqueles para quem a ausência é o sinal de morte ! Quando a ausência, ao contrário, se a sabe­mos entender. é o grande sinal de vida, o caminho pelo qual os poetas nos levam ao coração das coisas e os corações anulam o pêso intolerável das distân­cias ou transpõem os muros intransponíveis das barreiras que nos isolam uns dos outros. Pode ser. a té mesmo e a cada momento, o sinal mais vivo da existência de Deus.

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CAP. 1 5

fRESENÇA - I

Se a ausência é uma privação, a presença é mais do que uma existência : é uma coexistência. Mais do que uma coexistência, é uma corwioência. Se a au­sência é um sinal negativo, a presença é uma reali­dade duplamente positiva. Se a ausência, portanto, possui, apesar disso, uma riqueza própria, para quem viva uma vida interior profunda, quanto mais a presença, que não só suprime a ausência mas du­plica a existência !

Pois a presença não é apenas um sinal de exis­tência. Isso é o privilégio da ausência, já que as aproximações do ser são : a inexistência, a potência, a ausência, o caos e o ser definido e existente em ato. A inexistência é o não-ser, é êsse néan t que os exis­tencialistas querem confundir com o ser, agregar ao ser, constituindo êsse être-avec-néant, que nega o princípio de contradição e chega a um panteísmo mais absoluto que o de SPINOZA. Êste ainda afir-

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mava que "omnis determinaria negatio est" Ao passo que SARTRE diria : ' 'omnis determinatio ne­gatio non esr ' '

A potência é o ser imperfeito em vias de atua li ­zação. A ausência é o ser não presente, mas atuando. de longe. por um sinal que é a �rópria ausência consciente, pois a ausência inconsciente se confunde. em nós, com a inexistência .

O caos é o ser vago e indefinido, que os antigos opunham ao cosmos. E só quando chegamos ao ser

determinado, é que a categoria da Presença pode surgir, como uma plenitude do ser, o ser em face de outro ser. Pois a presença é uma relação e não ape­nas uma noção. É uma relação de contiguidade. É uma existência dupla e próxima e por isso mesmo agindo e reagindo reciprocamente uma sôbre a outra.

Se o homem é um animal naturalmente "polí­tico" como dizia ARISTÓTELES: isto é, sociável, a presença representa para êlc uma necessidade natural do seu ser. E se o homem é um ser elevado à ordem sobrenatural. quando dele não temos uma concepção mutilada, a presença sobrenatural é para êle tão ne­cessária quanto as presenças naturais. E por isso a primeira necessidade de nossa vida sobrenatural é a presença de Deus, como a primeira necessidade de nossa vida natural é a presença do Próximo .

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A Ausência é apenas um derivativo da presen­ça. É uma aproximação. É um caminho. É um sinal. Só conhecemos a Deus através da Sua ausên­cia, pelas coisas criadas, isto é, por aquilo que não é Deus, mas indica a Sua existência. Daí dizermos que Deus está presen te em tudo. Está presente, sem pa­radoxo, por Sua ausência. Está presente, não por­que tudo seja Deus. como dizem os panteístas, mas porque tudo é uma ausência de Deus, isto é, um sinal de Sua existência, embora não de Sua presença real. Essa, a presença real, a Fé no-b dá como um dom, como um presente divino, que torna Deus presente misticamente no mundo pela Eucaristia, como o tor­nou presente pelo Verbo incarnado.

São presenças sobrenaturais que alimentam a nossa condição de ser elevado a uma ordem que transcende substancialmente a ordem da natureza de todos os outros sêres. Só o homem foi elevado à

ordem sobrenatural, e por isso mesmo só êle, com tôda a sua iniqüidade, pode gozar dêsse privilégio único de uma Presença Real de Deus em si, que ul­trapassa tôdas as possibilidades naturais do seu ser e só existe pela pura gratuidade de um dom divino.

Essa é, pois, a maior das presenças de que po­rl�mos gozar na terra. 1\hs a exigência da presença é uma sêde de todo ser, desde os seus mais elemen-

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tares aspectos. A existência chama a existência e atua sôbre a existência. A ação de presença é um fenô­meno químico, a catálise, que existe, pois, no pró­prio mundo dos sêres inanimados. À medida que subimos na escala dos sêres, vamos encontrando um valor novo que aumenta na medida da cspirituali­dade : a presença. Simples coexistência no mundo vegetal, passa a gregarismo no mundo animal e a sociabilidade no mundo humano. E nesse mundo do homem, a ação e o valor da presença crescem, então, na proporção direta da vida interior. Passa então a ser mais do que uma coexistência. uma pre­sença puramente passiva, para ser, ou pelo menos poder ser uma presença irradiante, e por conseguinte extremamente ativa. A medida dessa passagem da presença, da passividade catalítica, à atividade con­vivente, é a vida interior. Para o homem privado dela, a presença é indiferente. Ou simplesmente ma­terial e acidental. Permanece no plano da presença puramente biológica ou social , que pode ser menos do que a própria ausência. A ausência, para quem vive profundamente, é alguma coisa de muito maior do que a presença para quem vive superficialmente Em si, a presença é mais do que a ausência. Mas em

nós, pode ser menos. Quando carregamos conosco uma ausência querida. estamos muito mais ausentes

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MEDITAÇÃO SÔBRE O MUNDO INTERIOR 101

dos presentes em tôrno de nós, do que presentes ao ausente São, por exemplo, as abstrações e as dis­trações do amor. A mãe que tem o filho na - guerra, ou mesmo no estrangeiro ou longe de si, está muito mais presente ao seu ausente querido do que aos pre­sentes em tôrno dela. É a realidade que comunica a êsses valores o grau de vida interior.

Para quem vive realmente, a presença é a ple­nitude do ser . A presença tem sempre qualquer coisa de divino. Ê um aumento de intensidade do ser. É uma aproximação do Ser em si. É uma ante-sala da Visão beatífica. Por isso nada supre a presença. E ela comunica, ao concreto, uma superioridade intrín­seca sôbre o abstrato.

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CAP. 1 6

PRESENÇA - l i

Dizíamos que a presença comunica ao concreto uma superioridade intrínseca sôbre o abstrato. É porque a presença é uma propriedade do ser deter ­minado e singular. E a abstração é precisamente o esfôrço do espírito para passar do singular ao geral . A abstração, pois, é um método que abole as pre­senças para nos levar ao conhecimento das essências, dos universais. E com isso nos transporta natural­mente, do terreno das presenças singulares e da co­existência ou da convivência, para o plano das ver­dades ausentes, isto é, das verdades que transcendem o plano das existências singulares e sensíveis para nos entregar às categorias do universal, físico, matemá­tico ou metafísico. É a abstração que nos leva a subir do simples plano existencial das singularidades a êsses planos superiores, onde tocamos as raízes, as matrizes, as essências dos sêres. É uma ascensão, é um enriquecimento, é um caminho que nos leva a verdades cada vez mais amplas e profundas. mas que

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se faz à custa de um tremendo ascetismo : a privação da presença.

Tem os de sacrificar o presente, isto é, o con­creto, o singular, coexistente ou convivente, o próxi­mo, o tangível, o conversável, o visível, para subir­mos ao conhecimento das essências transcendentais. É um ascetismo, sim, mas um ascetismo compensado, quando essa separação das presenças é provisória e se faz para chegar a uma Presença suprema ou para voltar à convivência incomparável com as presenças humanas e mesmo menos que humanas. A filosofia é a base da vida ou não é filosofia. A abstração é uma volta à presença ou não é verdadeira abstração.

Tôda filosofia, tôda ciência, tôda ação, tôda idéia, que nos arranca às presenças para nos levar à abstra­ção pela abstração, à ciência materialista, à ação de­sumanizante, à idéia puramente ideológica, é uma diminuição do nosso ser. E diminuição porque nos arranca ao mundo da presença para nos levar a um mundo sem vida, em que as coisas e os homens vivem apenas como elos passivos de um determinismo cego. Um mundo em que a presença individual perde todo sentido.

Quando, ao contrário, o mundo verdadeiro é povoado de presença. É o mundo em que cada coisa . já não digo cada pessoa , cada coisa tem um valor de

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MEDITAÇÃO SÔBRE O MUNDO INTERIOR 105

presença efetiva , que nenhuma abstração, nenhuma lei, nenhuma idéia pode substituir.

É o inefável que a presença comunica às coisas e às pessoas e que nada substituí . A idéia de uma maçã é coisa comple tamente distinta de urna maçã. Não que o conceito não nos dê urna noção exa ta da coisa. Dá-nos. Chegamos à essência do oh jeto e não apenas ao seu "fenômeno" , como pretendem os idea­listas. Mas urna coisa é conhecer a essência de uma maçã, ou tra _coisa é ter presen te a sua existência. Foi isso o que perturbou os existencialistas ao ponto de confundirem todos os valores no valor existencial. Mas todo extremo é igualmente falso. O conceito de maçã não nos satisfaz inteiramente, porque, como dizia SANTO ToMAs -- "a realidade transborda do conceito" E essa realidade não é outra coisa senão a presença da maçã. Esta maçã , em minha mão, em meu olfato ou em minha bôca, dando-me a plenitu­de do conceito e da realidade, é que representa total­mente a maçã. Êsse é o mistério da presença, que enriquece a nossa vida interior, corno é por ela enri­quecido e nos transporta dessa maçã, que trouxe à humanidade tantas dores de cabeça, ao mais sublime dos presentes que eb permitiu a essa mesma humani­dade receber : o dom da Presença real !

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Nada supre a presença. Uma das cenas mais patéticas do teatro de IBSEN é aquela de Brant, quando o pastor obriga a espôsa a desfazer-se dos brinquedos que pertenceram ao filhinho morto. Os oh jetos vivem uma vida a seu jeito, mas uma vida a que nós ligamos um valor por vêzes infinito. Ou um valor de ausência , como sinal de uma existência querida longe de nós, ou para sempre desaparecida , e representada por aquêle objeto que tanto guarda da sua presença, - ou a própria presença do oh jeto em s i , que tem uma ação catalítica e psicológica miste­riosa sôbre o nosso ser. Por isso carregamos conosco tantos objetos que os outros não podem com­preender

Se isso acontece com as coisas, quanto mais com as pessoas. Basta, às vêzes, a presença física sôbre o nosso sono. Acordamos, quando alguém se aproxima de nós. Nem sempre pelo ruído. Pela simples ação da presença de um corpo humano, de uma vida perto de nós. E na medida em que sabe­mos sentir, conhecer, agir, viver o nosso mundo in­terior, aumenta essa ação da presença. O homem exteriorizado sente fracamente, ou não sente o valor da presença. Ao passo que a vida interior profun­da torna a presença do ente querido uma transfigu­ração, uma iluminação, uma renovação das próprias

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fontes da vida. Os poetas e os gênios musicais nos contam ou nos fazem sentir a ação do amor sôbre a presença. Os místicos ainda mais. Lembremo-nos do primeiro ato de Tristão e /solda. quando o filtro co­munica o amor e aquêles dois que, mesmo presentes, não se haviam visto, começam a ter pelo olhar

(o tema musical em tôrno do qual gira tôda aquela genial orquestração) a revelação da presença do ou­tro. Lembremo-nos de SÃo JoÃo DA CRUZ a nos contar a ascensão da alma à presença crescente de Deus.

Tudo é a revelação concreta de que a Presen­ça é uma plenitude a que nada se compara. A abstração pode privar-nos momentâneamente da presença, mas é para no-la restituir, se é verdadeira abstração, em sua plenitude, do íntimo dos sêres onde há sempre urna presença , à própria presença de Deus, que é o sentido infinito da nossa própria vida .

O final da No na Sinfonia é um Hino à Ale­gria e é, por isso mesmo, um Hino à Presença. Pois a esperança do encontro, na terra como no céu , é a alegria suprema que renova continuamente os nos-­sos corações.

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CAP. 1 7

.[\ v id J i nterior é a s<:bcdoria a quatro dimen­sõ.::s : a C\'OC.:\ç�o ou p:.ssado ; a antecipação ou futu­ro ; a profundidade ou meditação e a elevação ou prece.

É, antes de tudo, um equilíbrio entre essas quatro dimensões. Não um equilíbrio qualquer. É um eq uilíbrio d� forças c não de fraquezas. Con­fundimos. muitas v�zes. equilíbrio com timidez, moderação com mediocridade, temperança com mor­nura, medida com acadcmismo, prudência com pu­silanimidade. Essas virtudes de equi líbrio, modera­ção, temperança, medida, prudência, à luz da vida interior, têm tôdas um só nome : sabedoria. E essa sabedoria se manifesta como um equilíbrio entre essas quatro dimensões, cJda uma das quais com fôrça própria suficiente para arrastar a nossa von­tade e por ela fixar o sentido de nossa vida. Se

viver interiormente não é viver em surdina ou em câmara lenta . n ão é tão pouco viver descompensada-

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l lO ALCEU AMOROSO LIMA

mente em qualquer das quatro direções a que nos arrasta o mundo exterior, o mundo superior ou o próprio mundo interior. Quando qualquer dessas direções atrai, com exclusividade, o nosso espírito. com isso arrastando também o nosso corpo, uma coisa perdemos pela certa : o equilíbrio. Não se trata de manter o equilíbrio à custa da intensidade de qualquer dêsses apelos. Trata-se, ao contrário, de desenvolver ao máximo todos e cada um dêles sepa­radamente. A vida interior é uma vida em intensi­dade. Sendo uma vida intensa e não extensa e muito menos cutânea, exige por natureza que tôdas as direções a que é chamada mantenham uma atração considerável sôbre o nosso eu. Há, portanto, duas atitudes negativas e uma positiva no sentido de de­senvolver o nosso mundo interior.

A primeira atitude negativa é impedir o en­fraquecimento de qualquer daquelas quatro iman­tações, se assim nos podemos exprimir. Se assim devemos proceder, preliminarmente, é qqe existe essa tendência natural a conservar o equilíbrio à custa das fôrças de atração. Se assim procedemos, então, é que nos deixamos levar por aquelas confusões a que aci­ma ai udimos.

É falsa a virtude alcançada à custa de qualquer espécie de mutilação. Não é suprimindo a tentação,

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MEDITAÇÃO SÔBRE O MUNDO INTERIOR 111

mas vencendo-a que realizamos o nosso destino. E nosso destino é não pecar . Não é suprimir o pecado, coisa que escapa ao nosso poder, pois é da alçada divina. De nossa alçada é evitar o pecado. Assim também, só conseguimos manter o clima de nosso mundo interior se começarmos por não mutilar nenhum dos quatro apelos que, constantemente, re­cebemos, do passado, do futuro, do fundo da alma e do alto, para nos dirigirmos a essas direções. A so­lução fácil é, naturalmente, diminuir a a tração para facilitar o equilíbrio e até suprimi-los para alcançar a ataraxia. Mas o equilíbrio só é sabedoria se não fôr ataraxia, se não fôr uma parada ou uma redução de ritmo. Êsse é, portanto, o primeiro esfôrço ne­gativo.

O segundo é impedir que um dos apelos seja atendido com exclusividade. em prejuízo dos demais. É também um meio fácil de obter o equilíbrio in­terno. Ou diminuir a tensão das quatro fôrças ex­teriores ou conservar apenJs uma debs, com exclusão das demais. Ainda aí, se assim o fizermos, haverá desequilíbrio. No primeiro caso será por atenuação da intensidade dos apelos. No segundo será pela mu­tilação ou supressão de um apêlo, em benefício dos outros. É uma segunda tentação a vencer. Nem enfraquecimento de todos, nem supressão de alguns

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em benefic1o dos demclÍ!i. Sao dois cuidados prelimi­nares. em sentido negativo. para podermos passar então a uma ação positiva .

Pois o equilíbrio, essência do mundo interior. não é uma inação. ou uma supressão, ou uma re­dução. É, ao contrário. a conservação de uma in­tensidade máxima em cada um dos quatro sentidos a que somos solicitados continuamente, se queremos manter não só intata a nossa integridade, mas desen­volver ao máximo as nossas virtualidades.

Dá-se então a intervenção positiva de nossa vontade na elaboração do nosso mundo interior. Os dois passos negativos são preliminares. Prepa ­

ram apenas o terreno. Limpam as ervas más. Aplai­nam. Purificam. Impedem a vitória das soluções fáceis. Mas a vida interior só começa com a posição positiva e construtiva. Construímos a nossa vida interior. como Santa Teresa construía os seus cas­telos espirituais, na direção de Deus.

E a primeira tarefa nessa construção íntima é precisamente ter uma noção dinâmica e não passiva do equilíbrio. f�qu il íbrio só é sabedoria quando é atividade. Qua ndo BERGSON comparou a mística oriental e a mística cristã e concluiu. - êle que vi­nha do puro evolucionismo naturalista ou quando

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muito de um hebraísmo hereditário e subconscíentP. ou racial - pela superioridade dessa última, encon­trou nela como elemento capital o que foi para todos uma surprêsa : a ação. E. no entanto, tinha razão o filósofo. A mística, que é um grau supremo de vida interior, baseia-se também na sabedoria e. portanto, no equilíbrio íntimo. Equilíbrio entr� faculdades e, acima de tudo, equilíbrio entre dimen­sões e fôrças. Pois o que distingue essas dimensões é serem gravitacionais. É possuírem fôrça própria e atraírem, cada qual para seu lado, de fora para den­tro. A sabedoria não é, portanto, diminuir ou su ­primir essas atrações. É compensá-las, sem qualquer atenuação. É interpenetrá-las, sem prejuízo da in­tegridade de cada uma. É realizar, não um encontro, uma encruzilhada, urna soma passiva ou uma coexis­tência, mas uma verdadeira resultante, uma convi­vência de que deriva a mais perfeita das vivências. A sabedoria é, por conseguinte, um equilíbrio instá­vel e dinâmico, que exige uma contínua vigilância. Pois vive em estado de risco. É uma fôrça de equi­líbrio e um equilíbrio de fôrças. E a vida interior é o único meio humano de alcançar a sabedoria, con­fundindo-se com ela.

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CAP. 1 8

SAUD1\DE

A sabedoria é, portanto, um equilíbrio criador, a quatro dimensões : para trás, para frente, para baixo e para cima. Examinemos cada uma dessas fôrças de atração que atuam sôbre a nossa vida in­terior. e representam para ela elementos essenciais de sua fecundação. Pois já vimos que a vida in terior não é uma cisão com o mundo exterior, mas um aproveitamento de tôdas as energias s3dias que dêle recebemos para as transformarmos, pela sabedoria. em personalidade.

A primeira dessas fôrças é a do passado. Para cada um de nós o passado não é o que passou ; é o que não passou. É o que ficou em nós do que passou. O que foi por nós vivido, ou passa de todo, ou fica esquecido ou continua a viver.

Se passa de todo, é que morreu. Há um pas­sado morto. Tão mÓrto, por vêzes. que nem mes­mo a sua evocação consegue despertá-lo de sua

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imobilidade de pedra. É como se jamais houvesse existido. Êsse é realmente o passado que passou.

Há, em seguida, o que esquecemos. É o que permanece em nós no subconsciente. Dêle temos, por vêzes, uma suspeita vaga, como que um rumor lon­gínquo de vagas que ainda se movem, não sabemos em que praia deserta e selvagem do nosso mundo interior, já esquecido, j á retomado pelas novas pre­senças que destroem todo sinal de passagens ante­riores, como essas picadas das montanhas por onde ninguém passa e que, em poucos anos, são comple­tamente recobertas pela vegetação selvagem, como se por ali jamais tivesse passado alma viva . Mas seu desaparecimento pode ser apenas aparente. Fica, às vêzes, por baixo da erva rasteira, o caminho trilha­do e, se algum dia limparmos o mato, a trilha res,. surgirá como outrora. Assim se dá com as coisas esquecidas. Ficam na sombra latentes. E um dia, por uma circunstância fortuita ou por um esfôrço de evocação, tudo volta à tona, como se tivesse ocor­rido ontem. E as emoções renascem, como se nas­cessem de novo . . Evapora-se o tempo, como se não tivessem passado anos, por vêzes, de esquecimento, e êsse passado esquecido volta a fazer parte ativa do nosso presente mais vivo.

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E há o passado-presente, há o passado que, longe de ficar esquecido em nós e reviver a um toque qualquer das circunstâncias acidentais, vive conosco a cada momento, como o mais vivo dos presentes. Dêle se não distingue, às vêzes, senão por ser mais vivo. O presente é que nos parece por vêzes baÇt> e longínquo, como o passado. Enquanto êste nos -dá de tal modo a ilusão de viver conosco, hic et nunc,

que nos surpreendemos, por vêzes, falando em voz alta aos mortos ou aos ausentes, como se estivessem aqui conosco. Êsse passado vivo é que constitui uma das quatro grandes dimensões da nossa vida inte­rior. Por êle é que se processa a continuidade de nosso ser. Nada do que foi nosso, um dia, deixa de o ser, quando teve razões de viver e não cai na vala co:n'\um do passado morto. Se teve razões profundas de ser, jamais se perde e continua a atuar sôbre nós. para o bem ou para o mal. Porque o passado em si, mesmo o passado vivo. mesmo essa fôrça que nos afasta do presente, é em si mesmo indiferente ao nosso progresso ou à nossa decadência íntima. Pode ser fecundo, pode ser indiferente e pode ser nocivo. Nocivo se a êle nos prender a evocação do mal.

"Nossas obras nos acompanham", diz o Apo­calipse. "Opera enim illorum sequun tur illos" ( Apoc. XLV, 1 3 ) . As boas e as más. Essas últi-

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mas podem prender-nos como se fôssem pa1xoes presentes. A saudade não é apenas um sentimento de doçura, um dos mais fecundos da nossa vida inte­rior. Pode também ser uma paixão entorpecente. Aí daqueles que não conhecem e curtem a poesia pro­funda da saudade. Ai daqueles, também, no extre­mo oposto, que se deixam vencer por ela. A saudade é um estím u lo para a vida interior bem vivida. É o meio de têrmos sempre vivos, em nós, as pessoas e os sentimentos, as lições e as coisas que um dia constituíram as fontes da nossa vida. O homem sem saudade é o homem sem vida interior. É o homem que vive para si, escraYo do presente. É o homem que desperdiça as riquezas da vida. É o solitário, no m1u sentido do têrmo. O separado, o secionado, o desmemoriado mesmo que tenha memória , m;r� a memória nêle é um simples reflexo condicionado. Ai do h-:Jmem sem saudade !

Como a i daquele que se deixa devorar pela sau­dJ.dc. A s:mdade não é apenas uma melancolia sem conseqüência. É uma paixão tremendamente ativa, que pode abrir à nossa vida interior novos rumos, com a colaboração dessa presença misteriosa do pas­sado e de tudo o que nêle nos enriqueceu espiritual­

mente. -- como pode levar-nos à mais triste das mor­tes , à morte em vida. Quando nos deixamos devorar

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MEDITAÇÃO SÔBRE O MUNDO INTERIOR 119

pela saudade, corrompe-se tôda a nossa vida interior. Ficamos envenenados, amargos e até síderados pelo desespêro. O presente perde todo sentido. E a pró­pria vida se torna absurda.

A evocação é, portanto, uma fôrça viva quan­do torna o passado presente e trazendo a êsse pre­sente novas razões de ser. Quando, ao contrário, o passadÓ se converte em uma saudade selvagem que enlaça o presente e o asfixia como um matagal, en­tão essa evocação se volta contra nós e destrói tôda vida interior. É o que acontece quando essa dimen­são se torna tão absorvente. que destrói as demais . Viver só no passado, como viver só de saudades, é um dos meios de aniquilar a nossa vida interior. Ao passo que viver com o passado, como ter se_mpre conosco a inspiradora companhia da saudade. é re­novar constantemente o calor dessa vida.

Não há, portanto, vida interior fecunda sem a cottvivêncía do que passou, sem a continuidade no tempo, sem a presença contínua do que, em qual­quer momento, foi para nós a alegria da vida.

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CAP. 1 9

FUTURO

Se a primeira dimensão da nossa vida interior é o passado, a segunda é o futuro. Para que o pas­sado seja em nós uma fôrça viva, é mister não nos tolha os movimentos para o futuro. Pois a direção normal de nossa vida é para a frente. Não me canso de citar aquelas palavras de Cristo : "Nemo mittens

manum· suam ad aratrum el resprcicns retro ap tus est

regno Dei" (Luc. IX, 62) . Aquêle que puser a mão no arado e olhar para trás, não está preparado para o reino de Deus.

O futuro é o norte da nossa vida interior. E esta não é nem uma água parada, nem uma onda revôlta. É uma corrente. Í:! um movimento que se dirige para alguma coisa que fica à nossa frente. É alguma coisa que cresce. O mundo interior, como o mundo�as sementes, é o próprio domínio da finali­dade. Como cresce uma semente? Não no sentido de onde vem, mas no sentido para onde vai, isto é, no da realização de sua própria natureza. A sémente de

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trigo cresce no sentido da espiga . Esta é o seu futuro. Êste é o seu destino. Para êle tendem tôdas as suas potencialidades. Assim ocorre com a vida puramen­te animal. No germe mais informe, sem a menor intervenção exterior, já está preformada a sua con­dição. E, quando se dá qualquer intervenção gené­tica , não é para mudar de espécie. É para aperfeiçoar a espécie. Êsse aperfeiçoamento pode dar-se mesmo depois de nascido. Como pode ocorrer uma degra­dação, uma parada, uma volta. E sempre que isto se dá, é sinal de que o animal não realizou plena­mente a sua forma. Ou não se formou. Ou foi de­formado. Na realização de sua forma está a sua finalidade.

Com mais razão do que sucede na escala da vida animal, ocorre outrotanto com o ser humano. De todos os sêres vivos, o homem é o que começa mais informe e pode chegar à maior plenitude de sua forma. A escala a ser percorrida pelo homem, no caminho de sua finalidade, é a maior de todo o reino animal. É o que parte de mais baixo, pois o recém­nascido não pode sobreviver, fisicamente, se não re­ceber qualquer amparo exterior. E é o que chega mais alto, pois o destino do homem é mover-se no sentido de uma imortalidade. que só a êle toca entre todos os sêres criados, exatamente porque ultrapassa.

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por natureza, o mundo animal na mesma proporção em que êste ultrapassa o mundo vegetal e êste o mundo mineral.

Mas aqui não é dessa dimensão ( a elevação) que me quero ocupar e sim da que leva o homem ao seu futuro, no tempo. O futuro é uma dimensão temporal, como o passado. É na linha do tempo que ambas atuam sôbre a nossa vida interior. E o fu­turo atua em nós sob a forma de vocação. O fu­turo é um chamado à frente, como o passado é um eco do que ficou para trás. É um chamado à res­ponsabilidade. Como a responsabilidade é a cons­ciência do dever. Tudo isso são apelos do futuro em nós. É porque ouvimos, em nós, alguma coisa que nos chama à frente e nos obriga a olhar para dentro de nós mesmos e considerar o sentido da nossa mar­cha, que sentimos tão vivamente, se temos vida in­terior, o problema da vocação. É na medida da intensidade dessa vida que tomamos consciência do nosso destino e da própria existência de um destino, de um sentido para a nossa vida. É no mundo in-

. terior que essa consciência se desenvolve e sentimos mais vivamente o dever de olhar para a frente, e o problema da vocação. O homem sem vida interior deixa-se viver, isto é, deixa-se levar para a vida. O futuro não o preocupa pqrque não o ocupa. É

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o fatalismo ou o determinismo que o arrasta, como uma fôlha morta deslizando com o rio. Há uma sadia despreocupação com o futuro, como veremos ao nos ocuparmos com a terceira dimensão do nosso mundo interior. Mas não é a que provém de uma recusa ao destino, da surdez ao apêlo da vocação. Devemos, sempre, ao contr�rio, estar atentos ao fu­turo. Porque todos temos uma missão a realizar no tempo. Todos temos de descobrir a adequação de nossas faculdades com a nossa finalidade. É o pro­blema, central em nossa vida, da vocação, do cha­mado do destino, da terceira dimensão do nosso mundo íntimo.

Há três modos de atender a êsse chamado, como há só um de não atender : o de fechar os olhos ao futuro e deixar-se absorver, completamente, ou pelo presente ou pelo passado. É uma das mutilações da nossa vida interior a que já nos referimos anterior­mente.

O primeiro dos modos de atender ao chamado é o da displicência. É atender mal. É a indiferença para com o futuro. É a meia tinta, é a água morna, é a preguiça ou o mêdo de corresponder ao chamado. Quantas vêzes fechamos os olhos à evidência de um dever, pelo mêdo das responsabilidades, pelo temor de não estar à altura. pelo respeito humano. Há mo-

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tivos, muitas vêzes, justos nessas recusas. E há o problema das hesitações, da dúvida , que é um dos males mais cruciantes de nossa vida interior. O pri­meiro modo, pois. é a indiferença, sintoma de uma fraca vida interior. O segundo é a absorção. Assim como o passado pode apoderar-se, ilegitimamente, de nós, assim pode o futuro. O desespêro da saudade, que pode levar ao suicídio, é como a garra da am­bição que pode levar ao crime. O ambicioso é jus­tamente o homem que se deixa oprimir pelo futuro. Transforma essa segunda fôrça em fôrça única e só pensa em vencer, em ser rico, poderoso, forte. O amor da gloríola vence nêle tôda a vida da glória , quarta e suprema fôrça de nossa vida interior. É a negação desta pela escravização ao orgulho e à ido­latria do poder ou da posse.

Quanto à maneira justa e fecunda de atender ao apêlo do futuro, é procurar ser fiel à sua vocação. E a virtude que atua para isso é, acima de tudo, a coragem, a fortaleza moral. É a virtude da ação. É a virtude da obediência ao dever. É o heroísmo que vence todos os obstáculos que nos vêm do mêdo e, sobretudo, do amor. Pois assim como a perfeição do ascetismo é renunciar aos prazeres lícitos, a per­feição da fortaleza é vencer a doçura dos afetos mais queridos e mais santos, sem cair na rudeza do cora-

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ção nem no jansenismo. Eis um dos momentos em que o equilíbrio da vida interior mais e melhor ilu ­mina os nossos passos, no dever d e fidelidade ao fu­turo sem traição ao passado.

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CAP. 20

MEDITAÇÃO

A terceira dimensão da nossa vida interior é a direção em profunQ.idade. É a densidade dos nossos sentimentos, dos nossos pensamentos, dos nossos atos.

Há, em primeiro lugar, uma densidade, por assim dizer física, que obtemos sobretudo pelo apêlo ao tempo. Não devemos jamais viver precipitada­mente. A impaciência é a inimiga nata da densida­de. Precisamos parar, antes de pensar ou depois de sofrer. Essa detenção do tempo é uma condição tão essencial à densidade de nossa vida interior, como uma barragem é indispensável à retenção e ao apro­fundamento das águas de um rio. Tudo, em nós, tem a tendência a passar depressa. Se não contraria­mos essa inclinação, passamos a viver em superfície e renunciamos à vida interior. Se a queremos ter, é preciso começar por obter essa densidade física , pois os sentimentos se tornam mais sentidos se os conte-

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mos ; os pensamentos mais pensados se os retemos pela atenção ; as ações mais ativas se as acumulamos. Refrear os movimentos desencontrados e precipita­dos do nosso afã de viver é o primeiro meio de tornar mais espessas tôdas as manifestações de nossa vida, servindo assim à terceira dimensão do nosso mundo interior.

A essa densidade física, questão de demora e retenção do movimento, vem somar-se uma densi­dade mais profunda : a intelectual. Não basta �iver maís lentamente, para que se viva em profundidade. A lentidão pode ser até um sinal de pobreza interior, de ausência de reação profunda, ou mesmo de pre­guiça mental. A sonolência tira o sono e só o sono é reparador. Assim também uma densidade física que não seja acompanhada de uma densidade psí­quica, é inútil ou contraproducente. Se devemos re­duzir a velocidade natural dos nossos atos e entre­atos, não é para descansar e sim para viver mais, para viver em profundidade. E para isso há urna elaboração intelectual de cada momento de nossa vida, com a qual enriquecemos a sensação do me­mento, a idéia, a decisão, com tudo aquilo que as outras três dimensões nos fornecem. Eis porque o nome próprio dessa terceira dimensão interior é -

Meditação.

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Meditar é aprofundar, pela análise e pela sín­tese, pela observação e pela comparação, pela apli­cação da inteligência e também pela descida ao sub­consciente, pelo isolamento e pelo silêncio, pela marcha ou pela imobilidade. Meditar é entrar em si. É deixar que o trabalho misterioso da natureza e da graça, em nós, se faça por si, como que inde­pendente de nossa vontade e de nossa· atenção. Eis porque a meditação exige certas condições exteriores, de silêncio e imobilidade (por vêzes de uma mobili­dade regular, como andar de lá para cá, no mesmo local e de preferência na penumbra, ou deixar que a paisagem passe por nossa imobilidade, como num veículo em velocidade) , e certas condições interiores de paz e de despreocupação.

A preocupação é a inimiga da meditação e a obsessão é a preocupação doentia, transformada em idéia fixa. Tudo isso pode ser vencido pela medi­tação, em estado transcendental, como a que os iogues procuram realizar, mas normalmente pertur­ba e impede a meditação como norma comum de vida. Pois o defeito do ioguismo é transformar a meditação num estado extraordinário ou num mala­barismo, que pode chegar a grandes alturas, mas não corresponde ao homem normal. A meditação, que a vida interior supõe - como centro de tôdas

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as suas dimensões, pois dela deriva diretamente aquê­le equilíbrio, a que nos referimos preliminarmente -· essa meditação é a que cada um de nós, simplesmente, cotidianamente, normalmente, pode e deve aplicar a todos os seus atos e pensamentos, até durante a agi­tação ou o trabalho, como centro de gravidade de sua vida interior. Como essa vida interior, já o vimos, é o centro de gravidade de tôda a vida exte­riorizada.

'- Há ainda uma terceira medida de densidade que a completa : a densidade· moral. Não basta parar. Não basta meditar. É preciso avaliar. A densidade moral é a aplicação de medidas de valor a cada ex­pressão íntima de nossa vida. Os filósofos chamam de sindérese a essa sensibilidade aos valores morais. E SANTO ToMAs a compara à sutileza e ao ardor de uma chama. É a centelha, diz êle, que escapa à intuição dos anjos e com ela ilumina a inteligência e a faz ver e sentir os valores supremos, de ordem moral e metafísica, que a razão simples, não ilumi­nada, não percebe. Essa densidade moral é essa sin­dérese, que dá à vida interior uma energia especial e aprecia cada movimento de nossa vida à luz de uma responsabilidade total (com o passado e com o fu­turo) e, sobretudo, no sentido da quarta direção, que os completa.

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Devemos, pois, procurar sempre viver em pro­fundidade. Reduzir a nossa pressa, para que cada coisa adquira e revele o seu pêso próprio. Meditar intensamente, a cada passo de maior responsabili­dade, de modo a que cada coisa aproveite da riqueza de tôdas as outras coisas, cada ato e cada pensamen­to, da experiência e do calor de todos os outros pensamentos e atos. E finalmente pesar tudo isso, na balança dos valores morais, cujas cifras são por vêzes um mistério e uma contradição para a pru­dência da carne e para as medidas do mundo, de modo a viver em profundidade n:ão só física e inte­lectual, mas espiritual.

Só essa vida em profundidade, física, intelec­tual e moral. pode dar-nos o clima interior indis­pensável para sofrer sem desesperar e também para suportar a boa fortuna sem se corromper, pois é tão difícil ser infeliz como ser feliz, sorrir corno chorar.

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CAP. 2 1

A ORAÇÃO IMPLtCIT A

A quarta dimensão de nosso mundo interior, finalmente, é a que nos eleva a Deus. É a oração. Mais do que uma dimensão em si própria, é a sín­tese das outras três e a sua transcendência. a fixação do seu destino final. Sendo o nosso caminho para Deus, é a oração a medida de todo o nosso mundo interior. E por isso mesmo podemos nela distinguir o momento implícito e o momento explícito.

A oração implícita é o espírito com que vive­mos, em todos os sentidos, tanto em nossa vida interior, em qualquer de suas dimensões, como em nossa vida operativa. Tudo o que sentimos, tudo o que pensamos, tudo o que fazemos, deve ser sentido, pensado e feito em espírito de oração. Tudo o que é sentido, pensado ou feito com perfeição é uma prece, é um meio implícito de união com Deus. E só nos unimos a De.us pela oração. Como esta se en-

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contra implícita em tudo o que realiza a sua fínali� dade. Todo trabalho bem feito é uma oração. Todo pensamento profundo é uma oração. Tôda sensi­bilidade aguda e bem ordenada é uma oração. Po� demos assim viver a nossa vida interior em sua ple� nitude --- que é o contato mais íntimo com Deus, desde que vejamos a Deus em tudo o que é bem sen� tido, bem pensado e bem feito. Podemos assim chegar a uma convivência perene com Deus e viver interiormente no meio do mais penoso dos trabalhos, da mais ruidosa das agitações, da mais perplexa das contradições. E ter sempre o coração em paz e a alegria na alma, qualquer que seja o pêso da vida e a própria aridez do nosso deserto interior. Pois não é necessário sentir para rezar. Basta viver, viver sempre em união, consciente ou inconscie.nte, explí­cita ou implícita com o Pai. Essa fixação interior é

que vence todos os tumultos e tôdas as areias do nosso mar ou do nosso Saara interior.

Há uma forma ainda mais perfeita da oração implícita, que é : o sofrimento. Se, normalmente, podemos viver em oração, isto é, na plenitude de nossa vida interior, desde que vivamos os nossos meios em perfeita adequação com os nossos fins, -podemos, pelo sofrimento, que é uma anomalia per­turbadora, viver ainda mais profundamente em

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união com Deus. O sofrimento é uma anomalia, é uma perturbação no funcionamento de nossa vida física ou moral. Tanto o sofrimento físico como o sofrimento moral constituem a mais perigosa das tentações : a tentação do desespêro. O sofrimento é uma interrupção entre os meios_ e os fins. É uma descontinuidade. É uma desconformidade. E por isso mesmo é um convite a perdermos a noção do sentido da vida. E. com isso, a nos desligarmos de Deus, como de tudo o que constitui a ordem do universo, por conseguinte, a nossa própria ordena­ção, orgânica ou psíquica. O sofrimento é uma alienação de nós mesmos. É o outro que nos con­quista, que nos torna estranhos a nós mesmos. Que nos separa do nosso próprio eu. Daí a facilidade com que a dor nos leva à loucura e a essa antecâmara da loucura, que é o desespêro.

Eis porque a vitória sôbre o sofrimento é o caminho mais perfeito da oração implícita. Se con­seguimos vencer a tentação do desespêro, se conse­guimos vencer a tenfação do acaso, se conseguimos superar a perda do sentido da vida e conseguimos encon trar um sen tido para o sofrimento, teremos então alcançado um plano superior de oração. a ora­ção da vitória, da conquista, da superação. E o próprio sofrimento, então, se converte em oração e

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torna-se um meio de subir, de aperfeiçoar -se, de se parecer mais com o próprio Cristo, não só imagem de Deus, mas o próprio Deus na terra e cuja vida só adquiriu sentido completo pela Paixão e Morte, isto é, pelo sofrimento. Transfigurar o ·sofrimento, encontrar nessa anomalia, nessa diminuição da nossa natureza física ou moral, um sentido de elevação, de transfiguração, é urna forma ainda mais perfeita de rezar, do que a oração implícita da felicidade terre­na, do trabalho cotidiano, da monotonia da vida, vivida em união com a vida obscura de Nazaré, onde Deus se preparava, no silêncio e na oração, para o sofrimento e para a glória. Pois é a Ressurreição que dá sentido à Cruz, é o repouso que dá sentido ao trabalho, é a Paz que dá sebtido às agonias da vida. Quando vivemos assim os nossos sofrimentos, é que alcançamos já uma vida de oração mais perfeita e nos aproximamos da fonte de tôda alegria, que dá sentido à própria privação da alegria, da saúde, do confôrto, da justi�a na terra, de companhia dos que nos são mais queridos. Tudo isso é fácil de dizer. Mas é terrível de viver. Merece, pois, um perdão muito grande todo aquêle que não consegue chegar a êsse plano de oração, pois só as virtudes heróicas çonseguem alcançar a essa perfeição, que SÃo FRAN-

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CISCO DE AsSIS traduziu, tão belamente, na parábola da Perfeita Alegria. Já é muito viver a oração im­plícita em nossa vida normal e cotidiana.

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CAP. 22

A ORAÇÃO EXPLtCITA

A oração implícita é a base da oração explí­cita. É preciso viver, em espírito de oração, o máxi­mo das operações de nossa vida, para podermos fazer da oração consciente não só a cúpula, mas o funda­mento e a estrutura de tôda a nossa vida, interior e exterior.

Quando a oração explícita e consciente não assenta nessa base preliminar e fundamental da oração implícita e subconsciente, caímos em pleno formalismo. Rezar não é pronunciar certas fórmu­las. Essas fórmulas são necessárias, são mesmo essenciais, mas como a Regra é essencial à perfeição de uma vida monástica. A regra pela regra não vale nada. Como a fórmula pela fórmula não tem sen­tido algum. A Regra só se torna fecunda e funda­men�al, para a vida de perfeição monástica, quando vivida segundo o seu espírito, como um meio e não como um fim em si.

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Assim se dá com a vida de oração, com essa quarta dimensão· do nosso mundo interior, que for­nece a chave do segrêdo de nossa vida total.

Se excluímos a oração explícita, caimos no falso misticismo, no subjetivismo autocêntrico, que faz da oração uma ginástica mental ou uma espécie de ado­ração de si mesmo, num panteísmo que representa o cúmulo do orgulho, a negação de Deus e a falsa deificação do homem. A oração explícita é a con­clusão, natural e sobrenatural, da oração implícita. Viver em Deus os nossos atos cotidianos e, mais do que êles, os nossos sofrimentos, físicos e morais, é a preparação para a nossa união explícita com Deus, tanto em nossa vida individual como em nossa vida coletiva.

Pois são êsses os dois momentos básicos ou an­tes as duás expansões substanciais da nossa vida de oração explícita : a oração individual e a oração coletiva.

A oração individual é a entrega expressa e ex­plícita de tôda a nossa vida a Deus, como quem restitui a seu dono aquilo de que é depositário. Não somos donos de nossas vidas. Somos apenas guar­diães. Temos de dar contas continuadas, cotidianas, minuciosas, ao seu verdadeiro dono. Temos de con­tar a Deus o que estamos fazendo dêsse imenso te ..

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souro que Êle confiou a cada um de nós, como ima­gem que somos do próprio Criador. A responsabi­lidade de cada criatura humana não é apenas a do valor de uma alma, de sua alma, de um pequenino fragmento da Criação. A responsabilidade de cada alma é de tôdas as almas, de tôda a criação. Cada alma que se perde, é o mundo todo das almas que se sacrifica. Daí a comunhão dos méritos, como a comunhão dos pecados. .Merecemos por todos e pe­camos por todos. A responsabilidade de cada um é total.

A oração individual, portanto, não é apenas um colóquio seueto da alma com Deus. É isso e mais alguma coisa. É a confidência, é a intimidade, é a confiança, é o repouso, o pedido, a gratidão. É a colocação de nossa maior intimidade nas mãos do nosso Amigo, a revelação explícita daquilo que Êle já conhece, mas que deseja ouvir de novo de nosso próprio coração, no silêncio augusto da prostração pessoal do homem no seio do seu Criador. E é ainda mais do que isso, porque é a entrega de tôda a espécie humana representada, em cada caso, por uma alma individual, nas mãos de Quem a criou e a escolheu para a incarnação do seu próprio Filho.

De modo que a oração secreta está intimamen­te ligada à oração pública, a oração individual se

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completa naturalmente na oração geral, na prece co­letiva, em união com os outros fiéis, com os verda­deiros irmãos em carne e em espírito. E é por isso que a oração individual explícita, fruto da prepara­ção preliminar da oração implícíta, normal ou ex­cepcional, se realiza plenamente na Missa. na forma mais perfeita de oração, que é a participação dos orantes, uns nos outros e de todos, em comunidade, no próprio Cristo, na renovação incruenta do Seu sacrifício único e cruento.

A Missa é, pois, a plenitude da vida interior. Nela as exterioridades são meras aparências. Os si­nais visíveis, na côr, na mesa, na fumaça. nos gestos, nas palavras rituais, no canto, no Pão e no Vinho, são apenas símbolos da realidade invisível -­na qual se transformam pelo mistério da Transubs­tanciação -. da verdadeira realidade do Sacrifício do Verbo, que tem, ao mesmo tempo, um sentido total­mente individual, para cada participante, e. um sen­tido universal, de renovação do mistério singular da Incarnação, que vale pela espécie humana, tôda ela.

A oração coletiva, por conseguinte. especial­mente no Côro e na Missa, é a plenitude da vida interior de cada fiel, de cada comungante, de cada participante. Ali a vida exterior se confunde com a vida interior. Desaparece tôda separação. Dentro e

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fora se interpenetram nessa transfiguração em que vida interior e vida exterior se tornam uma só vida, a Vida do homem oferecida a Deus pelo Cristo, o corpo e o sangue de Cristo recebidos pela humani­dade na pessoa de cada homem, de cada fiel que leva ao altar a oblação de sua vida interior, como de sua vida exterior, para receber a Vida, pela comunhão, e levá-la ao mundo, ao próximo e a si mesmo, nessa rotação perene de Deus ao homem e do homem a Deus, que só cessará na plenitude dos tempos e será substituída então pela Visão na Glória ou pela per­pétua privação do Amor.

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H e �llm�ço, n A u t .)r faln-noA do!\ erhstA4 c·ulus que :-:.e nnlf'JIÚE'rn. em no�srrs cHaa, l rtnllzação do IIIUnfio hatf'rior. �iln flp� te• l•r<sent.ltclus I·• •" llberallern� � n lloenalotl· dade, duas ••orruplela• d:t verdadeira llber• • lacltt, .,ne ti•·' , .. s••r cf,·f<>ndlfla corno um do!l lu·ns suprrmn:o- •lo no��o mundo Interior i pelo moralismo. ,.,p,. �,. f"Xt�rlm� 1111 primada das ohr:tl'l, r1:L ph·� min.�nf'iR da opero� .!lo 11ôhrf' o ,,,., d<• Eth�s ,.-,hre o Logoe 1 l'<lo IIIOIOfllmo, diminui�.. da fllnsofh <oh a aporêncla fie a ··1..-nr ; '"·I · • polltlolarno, que n•flx in a ,·Ido. iutt-rior, Prll1�1Adntntlo o hnmem em in�t 11 ui�

�· iíe� unlput ... utf'� C•)mo n 1·:!'-tndo \lll (•m 11� m i tes intran!"\JH nrn·lf; rom1l n Socit<>d:ulc : f!' pttl•• econ:lmlsmo, q uP rf'dmo: o homem a um autômato, a. 11111:\ ("f,j�a. a simples iul"lru. uu• n t u d·· l l lllil i'lll··1 h ifl ad�' .

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a \'tlntadr ; " do llli'Ín ou ri:•� contli\'•;, ... qtw �,·r·n·am " noM-o <'OI'(IO r n HO!i\!'ifJ E"Splrito. u a l hPio. I"J outro. o n h�(· l i . r•(tl a� intli�pf'nltá· v .. �is a•• nui'in fH·r(d l n rnovimf'ut•l i n t rr lor.

(continua na 2.• orelha)

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(continuaçlo da 1.• orelha) Estahelecidao a••im a8 exieências pal'ft a

expansão livre da vida de intimidade da pea· •oa, .H.Cf:l' A MOJIO�O LUfA fala doa f,_ darnentoe do n1undo interior : o. Sljfnclg_. a �olidão e R Snntidnd<•. Sàu 08 qllill'o .pl­tulo� rf'ntr:li� da uhra, e o!=! mais bêlos: · Por i:;�o. nãu Ih€' anteciparE>mo� o cnnttddo. a fim llt- que: o leit.frr (:Xfl�rimf"ntr·, Pm plf'nitude, o �PU sabor.

Após referir-me às con•eq!lências da vida jnt PJ'ior bt>m \'h·idA. -- ela aguçft ;t eensi .. bili�ade, alarga o inteli�ênda e fortalece a l'ont.nde -· ') autor romn qw� BE' deixa trans· portar pel" in•piração de al�:umas constao· tes de 1un prt:priot meditação. esrrevendo, en­tão, sôhre a opn!:-i«;ão pr-nça•aUIIncla, pro­priednde acidr·ntnl <In ser '''"' a vida Interior permite sentir. cnnherer r querer, tr�• ca­pltulos que. flOr •i s<\, hn•tarlam para colo­cá-lo ao nh·o•l dos mniores r:Jósof<os de nosso tem(IO. F: n tom dr •·ivênrin e profundidade é mantido att< final da "'""· mesmo quan­do, num '"':õifõrçcr por retom ar n exposlçio qu1111e racional, ,\ f,('El' .4 MOROSO LIMA tenta expor, mas na verdade transmi te ao leitor e fA7. que ôste viv,� com o �tutor a Sllbedoria tia ' iola interior n quatro dimen· sllea : a evoeaçi\o ou passado, � aqtf!eflll!á< . ção .U futuro, a profu�de ou "'f.Jt�. �llo, a elevaçllo ou prece.. 1� . : · " · , �

Mas darlnmo• uma fala& ld�io: ··""- obra'' se não :�rrP�r�ntás�r"'ns que é �tvro para todo J!Pn�r'l dr Jpitort>�. qnR1q ue1· qu(• seja o grsm ctr r.nnhrcimf'nt.o :iP rarla um. pois a rnlt.ura ('! n. f'xprrit'nrra que lhe servem de ali�erce "tiln f!p tlll modo assimiladas. que o pra1.�r intelertual de sun leitura é supPntrln pelo Nlft�ôlo (' •• t"dlfirac:ão que pro­pnr,•innam a� rPfiPxõrs intimA.�. as compfra .. (ÔPA, OS E'!X('ffi�l{OS ,rln YicJa. C'<•tidiRRR., � en .. trete,:em suRs p�J;!:mns. • -��-

A verrlacle é <1ue .-tas Mel!ltaçõee e6bre o mundo interior d•svrnilam-no•. •rm que. o Rutor rJp rprto o pro('ura�,h� oU · o de�ejas.1 '' mi•térin dn ôxi to. de '""' própria vi�� ria fr<•undiil�rlr d� "'"' at ua�ilo. Quem fllluf# he, rnm tal minúrin e de modo tão nmple,; '"m••• o "·''"'" ;•"""'· ••• » suas condiçõPs. suaf' conseqüência�. s' ' . men�õc-s, 8P.J;tUrRmf-ntf' já o realiz9.11 , ... lllravés do Silêncio. tln Solidão e i1 · ' humilde, ten:t?. e �on•tante da Sant di ,-:'" a�sl� t:rr� pndirio ff'\'A r ao� outroa n frti�� sua mt un:(latlt• Mm a �:,hf'rlori..._,