mediação e democracia cultural

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1 Mediação e democracia cultural Cayo Honorato 1 Muitas são as mediações, mesmo dentre as mediações culturais; o que tanto pode significar uma perda de especificidade do termo cujas consequências são um desgaste não negligenciável de sua capacidade crítica ou explicativa das dinâmicas culturais , quanto a formação de muitas "zonas de contato" que, a partir dessas mesmas dinâmicas, configuram mais propriamente o objeto ou lugar de atuação das mediações, onde certa "generalidade" teria sem dúvida uma importância específica. Embora este texto não se encarregue do problema (semântico e operativo) das "mediações das mediações", o termo aqui deve tanto melhor ser tomado "sob rasura", como palavra de nenhum modo transparente, cujas significações precisam ser descritas na trama das lutas sociais e culturais que as engendram; portanto, no cruzamento de muitos discursos, instituições, saberes, práticas, apropriações etc. Particularmente, propõe-se aqui uma revisão da atualidade do termo "mediação cultural", em comparação a pelos menos dois de seus "precursores": a ação cultural e a animação cultural. Isso se evidencia no enfrentamento do problema da democracia cultural, que se configura a partir das tranformações culturais associadas às recentes mudanças sócio-econômicas no Brasil, entre outros fatores. Nesse percurso, discutimos a vigência de certas diretivas tanto das políticas culturais quanto dos projetos educacionais, sublinhando, por fim, a necessidade de se conceber e efetuar uma educação propriamente mediativa, isto é, que se constitui através das "imbricações conflitivas" entre diferentes noções de cultura, ao mesmo tempo em que busca especificar, em vista de uma "cultura comum", as modalidades socialmente significativas dessas mesmas imbricações. * * * Segundo Teixeira Coelho (1997), o uso do termo mediador cultural "[...] generalizou-se ao longo da década de 1980, ao apresentar-se como versão contemporânea atualizada dos anteriores animador cultural e agente cultural". (grifo meu) Por sua vez, segundo o Dicionário Sesc (2003), que não traz um verbete para "mediação cultural", a ideia da ação cultural surge na Europa do pós-guerra, dentre os esforços de reconstrução social e educativa da região, vindo a 1 Mestre em Cultura e Processos Educacionais pela UFG, doutor em Filosofia e Educação pela USP. É pesquisador-colaborador do Grupo Fórum Permanente: Sistema Cultural entre o Público e o Privado, do Instituto de Estudos Avançados da USP.

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Por Cayo Honorato.

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Page 1: Mediação e democracia cultural

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Mediação e democracia cultural

Cayo Honorato1

Muitas são as mediações, mesmo dentre as mediações culturais; o que tanto pode significar uma

perda de especificidade do termo – cujas consequências são um desgaste não negligenciável de

sua capacidade crítica ou explicativa das dinâmicas culturais –, quanto a formação de muitas

"zonas de contato" que, a partir dessas mesmas dinâmicas, configuram mais propriamente o

objeto ou lugar de atuação das mediações, onde certa "generalidade" teria sem dúvida uma

importância específica. Embora este texto não se encarregue do problema (semântico e

operativo) das "mediações das mediações", o termo aqui deve tanto melhor ser tomado "sob

rasura", como palavra de nenhum modo transparente, cujas significações precisam ser descritas

na trama das lutas sociais e culturais que as engendram; portanto, no cruzamento de muitos

discursos, instituições, saberes, práticas, apropriações etc.

Particularmente, propõe-se aqui uma revisão da atualidade do termo "mediação cultural", em

comparação a pelos menos dois de seus "precursores": a ação cultural e a animação cultural.

Isso se evidencia no enfrentamento do problema da democracia cultural, que se configura a

partir das tranformações culturais associadas às recentes mudanças sócio-econômicas no Brasil,

entre outros fatores. Nesse percurso, discutimos a vigência de certas diretivas tanto das políticas

culturais quanto dos projetos educacionais, sublinhando, por fim, a necessidade de se conceber e

efetuar uma educação propriamente mediativa, isto é, que se constitui através das "imbricações

conflitivas" entre diferentes noções de cultura, ao mesmo tempo em que busca especificar, em

vista de uma "cultura comum", as modalidades socialmente significativas dessas mesmas

imbricações.

* * *

Segundo Teixeira Coelho (1997), o uso do termo mediador cultural "[...] generalizou-se ao

longo da década de 1980, ao apresentar-se como versão contemporânea atualizada dos

anteriores animador cultural e agente cultural". (grifo meu) Por sua vez, segundo o Dicionário

Sesc (2003), que não traz um verbete para "mediação cultural", a ideia da ação cultural surge na

Europa do pós-guerra, dentre os esforços de reconstrução social e educativa da região, vindo a

1 Mestre em Cultura e Processos Educacionais pela UFG, doutor em Filosofia e Educação pela

USP. É pesquisador-colaborador do Grupo Fórum Permanente: Sistema Cultural entre o Público

e o Privado, do Instituto de Estudos Avançados da USP.

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ser empregada no Brasil a partir dos anos 1970, por vezes, como sinônimo de animação cultural

ou sociocultural. A par desse brevíssimo retrospecto, podemos perguntar: fosse o caso, de que

modo a mediação "atualiza" a ação/animação cultural?

Embora não traga o verbete "mediação cultural", o Dicionário Sesc reserva uma especial

importância à expressão "ação cultural, animação cultural" (tal como aparece no verbete), não

só por considerá-la um "termo compreensivo", conforme o tratamento dado a seus vocábulos de

arte e cultura,2 mas porque sua finalidade primordial, qual seja, a de prover os técnicos e agentes

culturais do próprio Sesc de um "domínio acautelado" sobre aqueles vocábulos, de algum modo

decorre do próprio caráter socioeducativo da instituição, que "lida, permanentemente, com os

mais variados conteúdos e formas de ação cultural". (Cunha, 2003: VII).

No verbete em questão, além de discorrer sobre as origens modernas da ação cultural, o

Dicionário lhe traz: uma definição entre outras, suas funções atuais, suas características gerais,

além de seus valores e finalidades, indicando por fim alguma situação do tema no Brasil. Para

discuti-lo, poderíamos indagar sobre a vigência de uma contraposição da produção artístico-

cultural à cultura de massa, como aquilo a que a ação cultural deveria se dedicar; sobre os

critérios de verificação dos efeitos sociais da ação cultural, na medida em que tais efeitos são

muitas vezes pressupostos; sobre a pertinência de seus fundamentos ligados à tradição

humanista ou iluminista, eventualmente percebida como a afirmação de certa hegemonia

cultural; ou ainda, sobre os meios pelos quais a ação cultural viria a exercer uma

responsabilidade pública, por exemplo, encarregando-se (organicamente) de alguma pesquisa

histórica.

Portanto, já uma discussão desses aspectos (políticos, sociais, filosóficos e éticos) justificaria

uma reconsideração do termo "ação cultural", mesmo que não necessariamente no sentido de

atualizá-lo enquanto "mediação cultural". Na verdade, mesmo no Dicionário de Política Cultural

elaborado por Teixeira Coelho (op. cit.), comparando-se os dois verbetes (ação cultural e

mediação cultural), não resta claro de que modo o segundo atualiza o primeiro. São "termos

relacionados", que todavia não chegam a ser confrontados. Ambos recebem definições

abrangentes, irrestritas portanto àquilo que tem por objetivo "aproximar (física e

intelecutalmente) arte e público", mas é o verbete "ação cultural" que recebe aí um tratamento

mais alentado, levantando questões que, certamente, também não foram esgotadas, das

modulações do termo às suas relações com outros domínios da vida social.

2 A expressão "termos compreensivos" se refere aos vocábulos ou "temas alargados", que mereceram no Dicionário,

segundo seu autor, uma "análise um pouco mais alentada, à feição de breves ensaios", já que poderiam incorrer em

"interpretações de teor também subjetivo", diferentemente dos vocábulos "de conhecimento técnico, de acepção

delimitada e objetiva", que foram redigidos "de modo sucinto, perifrásico". (Cunha: 2003, pp. VII-VIII) Esses termos

totalizam 54 temas, o que corresponde a pouco mais de 2% dos cerca de 2500 verbetes do Dicionário.

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Nesse verbete, encontra-se um breve histórico da ação cultural, que sugere atualizações

"internas" ao termo, ainda que para isso o autor considere um período bem mais abrangente que

o dos últimos 60 anos. Em todo caso, conforme a sucessão desses momentos, pode-se perceber

uma preocupação cada vez maior com os diferentes públicos, até mesmo com as diferentes

concepções de públicos, para além de uma preocupação voltada, de início, quase que

exclusivamente à produção das obras ou à oferta cultural, que considerava o público no singular,

enquanto uma entidade abstrata ou homogênea; um deslocamento (da oferta para os públicos)

bastante significativo segundo uma perspectiva atual. Em última instância, percebe-se um

interesse em favorecer condições nas quais os próprios indivíduos e comunidades, para além de

compreender as obras em suas especificidades, possam se expressar segundo suas próprias

demandas de criação, em todos os aspectos da vida social, criando quem sabe "um novo tipo de

vida derivado do enfrentamento aberto das tensões e conflitos surgidos na prática social

concreta". (Coelho, 2001: 42)

Neste ponto, mais do que recompor quaisquer utopias, pensamos que as "atualizações", seja da

ação cultural, seja da mediação cultural, devem surgir do enfrentamento de uma problemática

sociocultural atual, muito mais do que das premissas de um ou de outro recorte disciplinar.

Particularmente no Brasil, as recentes mudanças econômicas, que permitiram uma nova posição

social, se não uma nova "autoconfiança", a pelo menos 30 milhões de brasileiros – embora nada

disso se equipare à "herança imaterial" que, por se transferir de modo endogâmico, termina

sustentando muitos privilégios de classe (Souza, 2012: 19 ss.) –, associadas a uma relativa

generalização das novas tecnologias midiáticas, possibilitaram não só o acesso a determinados

bens de consumo, mas o surgimento e a circulação de uma infinidade de práticas e produções

culturais (eventualmente políticas e, nesses casos, não necessariamente partidárias), de uma

verdadeira hiperprodução distribuída, dos memes às manifestações, passando por hashtags,

saraus e escrachos, mas também, do funk ostentação, do sertanejo universitário, do tecnobrega

etc.; um fenômeno bastante heterogêneo, que tem sido percebido com otimismo por alguns e

descrédito por outros.

Segundo o poeta Sérgio Vaz, em postagem de 28/08/13 no Facebook, "a periferia de São Paulo

vive hoje a mesma efervescência cultural que a classe média viveu nos anos 60/70, considerada

[sic] o auge da criatividade e engajamento artístico". Junto a isso, poderíamos nos referir às

inúmeras respostas, nos jornais e na blogosfera, à famigerada edição n. 734, de 04/02/13, da

revista Carta Capital, que trouxe na capa o dossiê "O vazio da cultura (ou a imbecilização do

Brasil)"; respostas que denunciavam o "conjunto de matérias elitista" (Lindoso), a "consciência

melancólica da perda de poder [por parte da crítica]" (Laub), ou ainda (em contraponto), "um

sentido total auto-bastante" (Wisnik) atribuído a cada uma das cenas culturais, que se

fragmentam de modo abundante. Em uma das matérias do dossiê, Rosane Pavam (2013)

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sublinhava "[...] um possível vácuo de promessas culturais presentes [sic] apesar do crescimento

da economia e da exclusão de boa parte dos brasileiros de sua condição de miséria nos últimos

anos. [...] um vazio de relevância [...]"; o que ainda, meses depois, aparece modalizado nas

meias-verdades de um Jabor (2013): "Nunca tivemos tantos criadores, tanta produção cultural

enchendo nossos olhos e ouvidos com uma euforia medíocre, mas autêntica. [...] Talvez este

excesso de 'irrelevâncias' esteja produzindo um acervo de conceitos 'relevantes', ainda

despercebidos".

Sem dúvida, trata-se de uma problemática de grande monta. O fato é que vivemos em uma

sociedade cada vez mais complexa e plural, na qual situações de "carência local" (esse antigo

compromisso da ação cultural que a mediação por vezes insiste em manter) começam a conviver

com uma politização cultural dos setores periferizados, associada à emergência de processos

criativos específicos, cada vez mais abertos e interdependentes. Diante disso, segundo o

antropólogo Hermano Vianna (2013), as políticas culturais não devem "dar" nada para a

população; elas precisam "[...] trabalhar junto com o que já acontece em cada lugar [o que a

própria criação artística já tem feito], possibilitando uma melhor circulação de informações e

contribuindo para ampliações de horizontes de maneiras de fazer arte, que foram criadas muitas

vezes aos trancos e barrancos (ou dentro de barracos)".

Assim, naquele processo de "atualização", precisaríamos discutir as políticas culturais que a

ação/mediação cultural deve implementar, bem como o próprio conceito de cultura que lhes

seria implícito. Do mesmo modo, não poderíamos negligenciar a necessidade de um espaço

público-comum para essas mesmas discussões; de um espaço (como já sugeri) extradisciplinar,

até mesmo extra-institucional, em permanente construção. Também nos parece que aquelas

políticas deveriam sustentar elas próprias uma dimensão mediativa, no sentido de efetuar uma

cultura politicamente participativa.3 Por fim, nada disso seria possível sem uma concepção

praxiológica dos públicos (que exerce uma confiança prática na capacidade de se auto-

organizarem) enquanto sujeitos históricos e formações emergentes, para além de simples

empirias mensuráveis.

Mas voltemos às questões mais "ordinárias" deste texto. Em artigo recente, sobre os dispositivos

de mediação praticados pelo Centre Pompidou em Paris, Laurent Fleury (2008) nos pergunta,

como se fizesse uma advertência: "Não deveríamos ver aí [na sucessão dos termos ação cultural,

animação cultural e mediação cultural] os avatares da denominação de um mesmo ideal, qual

seja, o da democratização cultural, de modo que a substituição das palavras não cultiva senão a

3 Poderíamos mencionar pelo menos dois precedentes disso: a política de Cidadania Cultural da Secretaria Municipal

de Cultura de São Paulo, entre 1989 e 1992, sob a gestão de Marilena Chauí, durante o governo Luiza Erundina; e o

programa Cultura Viva do Ministério da Cultura, a partir de 2004, nessa época sob a gestão de Gilberto Gil, durante o

governo Lula. (cf. Faria & Souza: 1997; Turino: 2009)

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ilusão de mudança?" (tradução minha)4 Diante disso, mais do que atualizar um termo pelo

outro, teríamos de questionar a atualidade dessa "invariante". Embora não sustente nenhuma

contraposição entre a diretiva da "democratização" (segundo a lógica da difusão para muitos do

que é produzido por poucos) e o problema da "democracia cultural" (conforme o propósito de

uma articulação entre muitos do que também é produzido por muitos), o autor confere à

mediação institucional o poder de estruturar as práticas culturais, modelando a relação dos

indivíduos com a arte, através dos "regimes de familiaridade" que ela instaura entre os

indivíduos e a cultura. Assim, reivindicando expressões mais autônomas e diversas, ele

pergunta: "como uma cultura, proposta pela instituição, pode estar de acordo com as exigências

de indivíduos livres?"

Para Jean-Marie Lafortune (2008), em artigo sobre os poderes em jogo na ação/animação

cultural, particularmente no Québec, a mediação cultural está intimamente ligada à perspectiva

da democratização. Comprometida com a transmissão de uma cultura legítima a um público

cada vez mais amplo e indiferenciado, a mediação pode ser vista como "[...] expressão de uma

metamorfose da ação pública, que busca uma nova maneira de governar a cidade e de fabricar a

coesão social sem ameaçar a ordem e os modelos culturais dominantes". De modo

complementar, o autor propõe o conceito de médiaction cultural (em vez de médiation cultural,

como normalmente se escreve em francês), desta vez, em correspondência à perspectiva da

democracia cultural, cuja contribuição "[...] não tomaria unicamente a via consensual, mas

implicaria o conflito". Comprometida com uma renovação da cultura por meio da valorização

das culturas emergentes, minoritárias ou alternativas, a médiaction tem como objetivo "[...]

estimular a participação [...] de modo a alterar as regras do jogo social".

Mas a própria ideia da democratização cultural pode se mostrar ambivalente. Segundo Newton

Cunha (2010: 66-75), ela pode (1) tanto se referir a um processo que tem por objetivo "tornar

acessíveis a toda a população as obras simbólicas exemplares da humanidade [...]" – o que (1a)

pode ser defendido, na medida em que procura compartilhar aquilo que de mais elevado o

espírito humano pôde criar, inclusive para que isso, que deveria ser uma herança comum, não

fique restrito a uma só classe, (1b) mas também questionado, na medida em que se afirma como

um projeto hegemônico –, (2) quanto pode significar que "as características e os valores da

cultura popular são as que predominam ou devem prevalecer social e politicamente numa

determinada sociedade" – o que pode defender (2a) uma cultura proveniente das classes

populares, mas também (2b) uma cultura de massa, exigindo-nos portanto distinguir aquilo que

tem significação política daquilo que redunda num pluralismo essencialmente acrítico e

4 Daqui em diante, todas as citações de textos que, nas referências, constam em língua estrangeira, têm tradução

minha, à exceção do texto Culture is ordinary, de Raymond Williams, para o qual usei a tradução (aparentemente não

publicada, mas disponível em PDF) de Maria Elisa Cevasco.

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imediatista. Contudo, o autor enfatiza a contraposição de uma "cultura autêntica" aos valores

conformistas da indústria cultural, como aquilo a que a ação cultural deve se dedicar, buscando

com isso estabelecer "oportunidades diferenciadas" por meio de principalmente dois processos:

alfabetização e difusão culturais.

A posição de Cunha, neste ponto, parece-nos semelhante à de F. R. Leavis, um influente crítico

literário da primeira metade do século XX, para quem, segundo a leitura de Raymond Williams

(2011: 279-289), a cultura consiste nas escolhas de uma minoria literária, empenhada em resistir

às forças que, em decorrência do "progresso da civilização", ameaçam destruir "as partes mais

sutis e perecíveis da tradição". Embora tal projeto, ainda segundo Williams, enfatize, entre

outros ganhos, propostas educacionais bastante úteis, é preciso confrontá-las com perdas não

negligenciáveis: "o conceito de uma minoria culta [...] tende, em sua afirmação, a uma

arrogância e ceticismo que são prejudiciais"; do mesmo modo, "o conceito de um passado

totalmente orgânico e satisfatório, a ser comparado com um presente desintegrado e

insatisfatório, tende, em seu desdém da história, a ser uma rejeição da experiência social

verdadeira". Assim, que "experiência social verdadeira" deveríamos considerar atualmente? Ou

ainda, o que mesmo para Williams nos parece incontornável: Quid tam dignum cultu? (O que é

digno de se ser cultivado, de se tornar cultura?)

Em entrevista recente, Néstor García Canclini (2013) afirma que a ideia da democratização

cultural, enquanto "distribuição igualitária dos bens culturais", está em crise por pelo menos

duas razões: (1) o crescimento da mercantilização dos bens culturais, com o quê aliás muitas

instituições e políticas têm contribuído, e que terminaria por diluir o caráter "autêntico" da

cultura a ser preservada; (2) e a constatação de que os públicos são muito diversos, dos setores

populares aos minoritários, tendo cada qual a "sua" cultura, o que faz da oferta para todos de um

mesmo pacote algo desprovido de sentido. Tal crise sugere, de um lado, que tanto a alta cultura

quanto a cultura popular tendem a se massificar; de outro, que as "autencidades" residuais – de

um lado, as defendidas por uma classe dominante, do outro, pelos chamados folcloristas –

tendem a se fragmentar, ou mesmo a se tornar ilusórias, no que diz respeito a sua significação

social. Mas isso não significa que nada mais restaria às coletividades senão celebrar sentidos

irrecuperavelmente empobrecidos. A propósito, são justamente as mediações entre essas noções

(alta cultura, cultura popular e cultura de massa) o que talvez de modo mais interessante deva

ser considerado, na medida em que, nesse processo – como aquilo que justamente o torna

significativo – tais instâncias se volvem nelas mesmas heterogêneas.

Para essa questão, são pertinentes as contribuições de Jesús Martin-Barbero (2009: 310-323),

para quem o popular, em face de uma massificação estrutural em nossa sociedade, deve ser

pensado não em termos de uma "exterioridade resguardada", em oposição ao massivo, mas em

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termos de uma "imbricação conflitiva" no massivo. Desse modo, tanto a imagem do popular

como um "pólo íntegro e resistente" quanto a do massivo como um "mero produto da

manipulação" se tornam inatuais. Afinal, é também no massivo, isto é, no modo como as classes

populares urbanas decodificam os produtos simbólicos oferecidos pelas mídias, que se poderá

consultar diferentes desvios, adaptações, subversões, isto é, modos de ver, falar e fazer, nos

quais se manifesta a força do popular, ainda que deformada, em face de "novas condições de

existência e luta". O residual que resiste, neste caso, é da ordem do que Martin-Barbero chama

de matrizes culturais: "o substrato de constituição dos sujeitos sociais para além dos contornos

objetivos delimitados pelo racionalismo instrumental e das frentes de luta consagradas pelo

marxismo"; um substrato cujos veios se encontram "no imaginário barroco, no dramatismo

religioso, na narrativa oral, no melodrama, na comédia, no palavreado".

A propósito, é o que também vai nos fazendo pensar a recente sociologia de Jessé Souza no

Brasil, para quem os indivíduos são produzidos "diferencialmente" por uma "cultura de classe"

específica. Defendendo que as diferenças entre os "batalhadores-empreendedores" (que podem

ser microempresários) e os "batalhadores-funcionários" (que podem ser funcionários

irregulares) não são do mesmo tipo que as encontradas (em termos já tradicionais) entre a

pequena-burguesia e os trabalhadores assalariados, Souza (op. cit.: 199-255) afirma haver entre

aqueles, mais do que uma oposição entre classes (por exemplo, entre uma "nova classe média" e

seus empregados), aspectos de uma mesma "identidade de classe", que não se resumem a

parâmetros empiricistas de poder aquisitivo, mas que trazem uma mesma "marca de origem", a

identidade de uma "nova classe trabalhadora", que ele denomina de "batalhadores brasileiros".

Dentre esses aspectos, quanto ao que nos interessa aqui, está "um estranhamento e indiferença

em relação às insígnias de poder e prestígio materializadas na arte e na cultura legítimas",

associados ao "uso no mais das vezes do tom satírico, da paródia e da linguagem chula como

forma de dessacralização do poder que os constrange".

Ainda segundo Martin-Barbero (op. cit.), trata-se da "revanche contra uma ordem do mundo que

os exclui e os humilha [sic] e contra a qual as pessoas do povo se confrontam, desorganizando o

tecido simbólico que articula essa ordem"; uma revanche que se manifesta – referindo-se neste

momento à presença do popular em alguns programas cômicos da televisão peruana – enquanto

"des-articulação, confusão, falar depressa, falar mal", isto é, enquanto "transformação da

carência em argúcia, e da situação na oportunidade aproveitada para impor-se ou para parodiar a

retórica daqueles que, de fato, falam bem". Assim, para que se possa perceber "o povo que dá

forma à massa", mais do que proceder à crítica do meios enquanto instrumentos da dominação

social, é preciso investigar e tomar parte em tais mediações, enquanto imbricações conflitivas.

Desse modo, não só evitaríamos pensar o popular como algo puramente exterior ao massivo,

mas também a cultura como algo puramente exterior à sociedade.

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Não é demais, neste ponto, retomarmos a insistência de Williams (1989) numa visão conjugada

da cultura, designando tanto um modo de vida, a "cultura popular", quanto as artes e o

aprendizado, a "alta cultura"; noutros termos, "tanto os mais ordinários significados comuns

quanto os mais refinados significados individuais", ou ainda, "os processos especiais de

descoberta e esforço criativo". Assim, afirmar que "a cultura é de todos" – o que para Williams

é primordial – não somente significa que a cultura não se resume à "alta cultura", muito menos a

"um sinal externo [...] de um tipo especial de pessoa", mas que "o desejo de conhecer o melhor,

fazer o que é bom, é parte principal da natureza positiva do ser humano". Do mesmo modo, o

autor argumenta que o barateamento da sensibilidade ou a vulgaridade das massas (que de resto

não existiriam como tais) não se aplicam plenamente às pessoas comuns, muito menos

decorrem, historicamente, da educação popular nem de uma imprensa de baixo custo (como se

chegou a pensar), mas sim do caos social da industrialização, com o que viria a contribuir, diga-

se de passagem, a partir dos anos 1890, o modelo de financiamento da imprensa corporativa

com base na venda de anúncios publicitários.

Ainda segundo Williams (idem), essa "cultura comum" viria da consciência e significação de

toda a "vida real" que se tornaria disponível a partir do acesso, de todas as pessoas, a todos os

canais de expressão e comunicação. Nesse sentido, ele propõe que "não deveríamos buscar

propagar uma cultura pronta para a massa ignara". Em primeiro lugar, porque a iniciativa de

propagá-la teria de aceitar e até mesmo de evidenciar a possibilidade de modificação ou de

rejeição dessa cultura nesse processo. Em segundo, porque a formulação "massa", isto é, esse

modo de ver as pessoas comuns como tal, não deve nos fazer confundir o acesso restrito à

educação com ignorância ou insensibilidade. Quanto ao que nos interessa, Williams não só

questiona a democratização cultural enquanto uma diretiva, como delineia, a seu modo, o

problema da democracia cultural: "Ao mesmo tempo, se entendemos o processo de

desenvolvimento cultural, sabemos que este é feito de ofertas contínuas para uma aceitação

comum; e que portanto, não devemos tentar determinar de antemão o que deve ser oferecido,

mas desobstruir os canais e permitir todos os tipos de oferta, tendo o cuidado de abrir bem o

espaço para o que for difícil, dar tempo suficiente para o que for original, de modo que o que se

tenha seja desenvolvimento real, e não apenas a confirmação ampliada de antigas regras."

Embora tenha rompido com a posição essencialmente "democratizante" de Leavis, Williams

admite que, para muitos, o acesso restrito à educação é um fato. Do seu ponto de vista, tal

situação deve ser revertida, não podendo a "cultura comum" ser confiada à espontaneidade das

classes populares. Por certo, hoje em dia, a "democratização escolar" (muito menos a

escolarização da sociedade – Illich, 1973) não seria simplesmente uma solução, se, conforme

Jessé Souza (op. cit.: 62-63), o aumento de diplomados não tem resultado em uma valorização

desses diplomas no mundo do trabalho (muito menos no da cultura), relegando muitos jovens

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escolarizados a uma condição de precariedade que "transforma o presente em algo contra o qual

não se pode lutar". Em todo caso, Williams (op. cit.) propõe uma "educação para todos", o que

se trata, antes de mais nada, "do processo de dotar todos os membros da sociedade com a

totalidade de seus significados comuns e com as habilidades que lhes possibilitarão retificar

esses significados, à luz de suas próprias experiências pessoais e comuns". Mas como, ao

mesmo tempo, retificar e ser dotado de significados comuns?

Retomando o problema (em parte) semântico com que começamos este texto, segundo Cunha

(2010: 63-66), "[...] se os termos ação e animação podem ser tomados genericamente como

sinônimos, isto é, na qualidade de 'estratégias pedagógicas de mediação ou de intervenção', é

possível, entretanto, distinguir características singulares para cada uma delas". (grifo meu)

Assim, a ação cultural pode ser vista como "o planejamento, a organização e a realização de

atividades ou de programas culturais [...]", enquanto que a animação cultural deveria indicar

"um trabalho processual, de prazo mais dilatado, no qual estão incluídas a nucleação, a

mobilização e a orientação de um grupo determinado [...]". Noutros termos, enquanto a

primeira tende a assumir um caráter mais decididamente diretivo, a segunda parece implicar

métodos não-diretivos ou semidiretivos, quem sabe, propriamente mediativos. Em todo caso,

ambas têm como precursores os movimentos de educação popular, que surgiram fora do sistema

formal de ensino, além de se identificarem com os princípios e os objetivos políticos da

educação permanente; embora a ação cultural, historicamente, desempenhe funções não

necessariamente educacionais, como as de mecenato e conservação, entre outras.

Em suma, podemos notar que as interseções entre mediação e educação (termos nem sempre

coincidentes) podem variar de estratégias interventivas (que empreitam a diretiva da

democratização cultural) a táticas descritivas (que se põem à espreita daquilo que faz avançar

uma democracia cultural), por assim dizer. Entretanto, diante da problemática sociocultural que

buscamos esboçar anteriormente, parece-nos que o caráter interventivo das mediações

educacionais, tal como se configura nos chamados educativos de muitas instituições culturais

(interessados primordialmente nas causas da democratização), deve ser problematizado (e não

somente complementado) pelo caráter mais descritivo (em sentido documentário, etnográfico

etc.) das mediações propriamente culturais (interessadas primordialmente nos efeitos da

democracia), em vista de processos educacionais efetivamente mediativos, isto é, que se

constituem através daquelas "imbricações conflitivas", ou ainda, através daquilo que Stuart Hall

(2003: 57 ss.) denominou de "proliferação subalterna das diferenças"; processos nos quais não

só os públicos são aprendizes, mas também os educadores, os curadores, os artistas, as

instituições etc., objetivamente. Em todo caso, a "educação para todos" desejada por Williams

só pode ser concebida como um processo contraditório e conflitivo, mais precisamente, como

uma "educação por todos", que ao mesmo tempo nega e afirma o que seja comum, isso que em

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todo caso não existe a priori, mas sim através daquelas mediações, cujas modalidades de

"imbricação" devem ser especificadas nesse mesmo processo.

Cayo Honorato, dezembro de 2013

Referências

CANCLINI, Néstor G. “La cultura global fue una ficción”. [Entrevista a Marina Oybin

publicada na Revista de Cultura do jornal Clarín em 23/08/13.] Disponível em:

<http://migre.me/gSGNm>, acesso em 06/12/13.

COELHO, Teixeira. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: Iluminuras, 1997.

___. O que é ação cultural. [1988] São Paulo: Brasiliense, 2001.

CUNHA, Newton. Dicionário Sesc: a linguagem da cultura. São Paulo: Perspectiva; Sesc São

Paulo, 2003.

___. Cultura e ação cultural: uma contribuição a sua história e conceitos. São Paulo: SESC SP,

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