mediação e democracia cultural
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Por Cayo Honorato.TRANSCRIPT
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Mediação e democracia cultural
Cayo Honorato1
Muitas são as mediações, mesmo dentre as mediações culturais; o que tanto pode significar uma
perda de especificidade do termo – cujas consequências são um desgaste não negligenciável de
sua capacidade crítica ou explicativa das dinâmicas culturais –, quanto a formação de muitas
"zonas de contato" que, a partir dessas mesmas dinâmicas, configuram mais propriamente o
objeto ou lugar de atuação das mediações, onde certa "generalidade" teria sem dúvida uma
importância específica. Embora este texto não se encarregue do problema (semântico e
operativo) das "mediações das mediações", o termo aqui deve tanto melhor ser tomado "sob
rasura", como palavra de nenhum modo transparente, cujas significações precisam ser descritas
na trama das lutas sociais e culturais que as engendram; portanto, no cruzamento de muitos
discursos, instituições, saberes, práticas, apropriações etc.
Particularmente, propõe-se aqui uma revisão da atualidade do termo "mediação cultural", em
comparação a pelos menos dois de seus "precursores": a ação cultural e a animação cultural.
Isso se evidencia no enfrentamento do problema da democracia cultural, que se configura a
partir das tranformações culturais associadas às recentes mudanças sócio-econômicas no Brasil,
entre outros fatores. Nesse percurso, discutimos a vigência de certas diretivas tanto das políticas
culturais quanto dos projetos educacionais, sublinhando, por fim, a necessidade de se conceber e
efetuar uma educação propriamente mediativa, isto é, que se constitui através das "imbricações
conflitivas" entre diferentes noções de cultura, ao mesmo tempo em que busca especificar, em
vista de uma "cultura comum", as modalidades socialmente significativas dessas mesmas
imbricações.
* * *
Segundo Teixeira Coelho (1997), o uso do termo mediador cultural "[...] generalizou-se ao
longo da década de 1980, ao apresentar-se como versão contemporânea atualizada dos
anteriores animador cultural e agente cultural". (grifo meu) Por sua vez, segundo o Dicionário
Sesc (2003), que não traz um verbete para "mediação cultural", a ideia da ação cultural surge na
Europa do pós-guerra, dentre os esforços de reconstrução social e educativa da região, vindo a
1 Mestre em Cultura e Processos Educacionais pela UFG, doutor em Filosofia e Educação pela
USP. É pesquisador-colaborador do Grupo Fórum Permanente: Sistema Cultural entre o Público
e o Privado, do Instituto de Estudos Avançados da USP.
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ser empregada no Brasil a partir dos anos 1970, por vezes, como sinônimo de animação cultural
ou sociocultural. A par desse brevíssimo retrospecto, podemos perguntar: fosse o caso, de que
modo a mediação "atualiza" a ação/animação cultural?
Embora não traga o verbete "mediação cultural", o Dicionário Sesc reserva uma especial
importância à expressão "ação cultural, animação cultural" (tal como aparece no verbete), não
só por considerá-la um "termo compreensivo", conforme o tratamento dado a seus vocábulos de
arte e cultura,2 mas porque sua finalidade primordial, qual seja, a de prover os técnicos e agentes
culturais do próprio Sesc de um "domínio acautelado" sobre aqueles vocábulos, de algum modo
decorre do próprio caráter socioeducativo da instituição, que "lida, permanentemente, com os
mais variados conteúdos e formas de ação cultural". (Cunha, 2003: VII).
No verbete em questão, além de discorrer sobre as origens modernas da ação cultural, o
Dicionário lhe traz: uma definição entre outras, suas funções atuais, suas características gerais,
além de seus valores e finalidades, indicando por fim alguma situação do tema no Brasil. Para
discuti-lo, poderíamos indagar sobre a vigência de uma contraposição da produção artístico-
cultural à cultura de massa, como aquilo a que a ação cultural deveria se dedicar; sobre os
critérios de verificação dos efeitos sociais da ação cultural, na medida em que tais efeitos são
muitas vezes pressupostos; sobre a pertinência de seus fundamentos ligados à tradição
humanista ou iluminista, eventualmente percebida como a afirmação de certa hegemonia
cultural; ou ainda, sobre os meios pelos quais a ação cultural viria a exercer uma
responsabilidade pública, por exemplo, encarregando-se (organicamente) de alguma pesquisa
histórica.
Portanto, já uma discussão desses aspectos (políticos, sociais, filosóficos e éticos) justificaria
uma reconsideração do termo "ação cultural", mesmo que não necessariamente no sentido de
atualizá-lo enquanto "mediação cultural". Na verdade, mesmo no Dicionário de Política Cultural
elaborado por Teixeira Coelho (op. cit.), comparando-se os dois verbetes (ação cultural e
mediação cultural), não resta claro de que modo o segundo atualiza o primeiro. São "termos
relacionados", que todavia não chegam a ser confrontados. Ambos recebem definições
abrangentes, irrestritas portanto àquilo que tem por objetivo "aproximar (física e
intelecutalmente) arte e público", mas é o verbete "ação cultural" que recebe aí um tratamento
mais alentado, levantando questões que, certamente, também não foram esgotadas, das
modulações do termo às suas relações com outros domínios da vida social.
2 A expressão "termos compreensivos" se refere aos vocábulos ou "temas alargados", que mereceram no Dicionário,
segundo seu autor, uma "análise um pouco mais alentada, à feição de breves ensaios", já que poderiam incorrer em
"interpretações de teor também subjetivo", diferentemente dos vocábulos "de conhecimento técnico, de acepção
delimitada e objetiva", que foram redigidos "de modo sucinto, perifrásico". (Cunha: 2003, pp. VII-VIII) Esses termos
totalizam 54 temas, o que corresponde a pouco mais de 2% dos cerca de 2500 verbetes do Dicionário.
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Nesse verbete, encontra-se um breve histórico da ação cultural, que sugere atualizações
"internas" ao termo, ainda que para isso o autor considere um período bem mais abrangente que
o dos últimos 60 anos. Em todo caso, conforme a sucessão desses momentos, pode-se perceber
uma preocupação cada vez maior com os diferentes públicos, até mesmo com as diferentes
concepções de públicos, para além de uma preocupação voltada, de início, quase que
exclusivamente à produção das obras ou à oferta cultural, que considerava o público no singular,
enquanto uma entidade abstrata ou homogênea; um deslocamento (da oferta para os públicos)
bastante significativo segundo uma perspectiva atual. Em última instância, percebe-se um
interesse em favorecer condições nas quais os próprios indivíduos e comunidades, para além de
compreender as obras em suas especificidades, possam se expressar segundo suas próprias
demandas de criação, em todos os aspectos da vida social, criando quem sabe "um novo tipo de
vida derivado do enfrentamento aberto das tensões e conflitos surgidos na prática social
concreta". (Coelho, 2001: 42)
Neste ponto, mais do que recompor quaisquer utopias, pensamos que as "atualizações", seja da
ação cultural, seja da mediação cultural, devem surgir do enfrentamento de uma problemática
sociocultural atual, muito mais do que das premissas de um ou de outro recorte disciplinar.
Particularmente no Brasil, as recentes mudanças econômicas, que permitiram uma nova posição
social, se não uma nova "autoconfiança", a pelo menos 30 milhões de brasileiros – embora nada
disso se equipare à "herança imaterial" que, por se transferir de modo endogâmico, termina
sustentando muitos privilégios de classe (Souza, 2012: 19 ss.) –, associadas a uma relativa
generalização das novas tecnologias midiáticas, possibilitaram não só o acesso a determinados
bens de consumo, mas o surgimento e a circulação de uma infinidade de práticas e produções
culturais (eventualmente políticas e, nesses casos, não necessariamente partidárias), de uma
verdadeira hiperprodução distribuída, dos memes às manifestações, passando por hashtags,
saraus e escrachos, mas também, do funk ostentação, do sertanejo universitário, do tecnobrega
etc.; um fenômeno bastante heterogêneo, que tem sido percebido com otimismo por alguns e
descrédito por outros.
Segundo o poeta Sérgio Vaz, em postagem de 28/08/13 no Facebook, "a periferia de São Paulo
vive hoje a mesma efervescência cultural que a classe média viveu nos anos 60/70, considerada
[sic] o auge da criatividade e engajamento artístico". Junto a isso, poderíamos nos referir às
inúmeras respostas, nos jornais e na blogosfera, à famigerada edição n. 734, de 04/02/13, da
revista Carta Capital, que trouxe na capa o dossiê "O vazio da cultura (ou a imbecilização do
Brasil)"; respostas que denunciavam o "conjunto de matérias elitista" (Lindoso), a "consciência
melancólica da perda de poder [por parte da crítica]" (Laub), ou ainda (em contraponto), "um
sentido total auto-bastante" (Wisnik) atribuído a cada uma das cenas culturais, que se
fragmentam de modo abundante. Em uma das matérias do dossiê, Rosane Pavam (2013)
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sublinhava "[...] um possível vácuo de promessas culturais presentes [sic] apesar do crescimento
da economia e da exclusão de boa parte dos brasileiros de sua condição de miséria nos últimos
anos. [...] um vazio de relevância [...]"; o que ainda, meses depois, aparece modalizado nas
meias-verdades de um Jabor (2013): "Nunca tivemos tantos criadores, tanta produção cultural
enchendo nossos olhos e ouvidos com uma euforia medíocre, mas autêntica. [...] Talvez este
excesso de 'irrelevâncias' esteja produzindo um acervo de conceitos 'relevantes', ainda
despercebidos".
Sem dúvida, trata-se de uma problemática de grande monta. O fato é que vivemos em uma
sociedade cada vez mais complexa e plural, na qual situações de "carência local" (esse antigo
compromisso da ação cultural que a mediação por vezes insiste em manter) começam a conviver
com uma politização cultural dos setores periferizados, associada à emergência de processos
criativos específicos, cada vez mais abertos e interdependentes. Diante disso, segundo o
antropólogo Hermano Vianna (2013), as políticas culturais não devem "dar" nada para a
população; elas precisam "[...] trabalhar junto com o que já acontece em cada lugar [o que a
própria criação artística já tem feito], possibilitando uma melhor circulação de informações e
contribuindo para ampliações de horizontes de maneiras de fazer arte, que foram criadas muitas
vezes aos trancos e barrancos (ou dentro de barracos)".
Assim, naquele processo de "atualização", precisaríamos discutir as políticas culturais que a
ação/mediação cultural deve implementar, bem como o próprio conceito de cultura que lhes
seria implícito. Do mesmo modo, não poderíamos negligenciar a necessidade de um espaço
público-comum para essas mesmas discussões; de um espaço (como já sugeri) extradisciplinar,
até mesmo extra-institucional, em permanente construção. Também nos parece que aquelas
políticas deveriam sustentar elas próprias uma dimensão mediativa, no sentido de efetuar uma
cultura politicamente participativa.3 Por fim, nada disso seria possível sem uma concepção
praxiológica dos públicos (que exerce uma confiança prática na capacidade de se auto-
organizarem) enquanto sujeitos históricos e formações emergentes, para além de simples
empirias mensuráveis.
Mas voltemos às questões mais "ordinárias" deste texto. Em artigo recente, sobre os dispositivos
de mediação praticados pelo Centre Pompidou em Paris, Laurent Fleury (2008) nos pergunta,
como se fizesse uma advertência: "Não deveríamos ver aí [na sucessão dos termos ação cultural,
animação cultural e mediação cultural] os avatares da denominação de um mesmo ideal, qual
seja, o da democratização cultural, de modo que a substituição das palavras não cultiva senão a
3 Poderíamos mencionar pelo menos dois precedentes disso: a política de Cidadania Cultural da Secretaria Municipal
de Cultura de São Paulo, entre 1989 e 1992, sob a gestão de Marilena Chauí, durante o governo Luiza Erundina; e o
programa Cultura Viva do Ministério da Cultura, a partir de 2004, nessa época sob a gestão de Gilberto Gil, durante o
governo Lula. (cf. Faria & Souza: 1997; Turino: 2009)
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ilusão de mudança?" (tradução minha)4 Diante disso, mais do que atualizar um termo pelo
outro, teríamos de questionar a atualidade dessa "invariante". Embora não sustente nenhuma
contraposição entre a diretiva da "democratização" (segundo a lógica da difusão para muitos do
que é produzido por poucos) e o problema da "democracia cultural" (conforme o propósito de
uma articulação entre muitos do que também é produzido por muitos), o autor confere à
mediação institucional o poder de estruturar as práticas culturais, modelando a relação dos
indivíduos com a arte, através dos "regimes de familiaridade" que ela instaura entre os
indivíduos e a cultura. Assim, reivindicando expressões mais autônomas e diversas, ele
pergunta: "como uma cultura, proposta pela instituição, pode estar de acordo com as exigências
de indivíduos livres?"
Para Jean-Marie Lafortune (2008), em artigo sobre os poderes em jogo na ação/animação
cultural, particularmente no Québec, a mediação cultural está intimamente ligada à perspectiva
da democratização. Comprometida com a transmissão de uma cultura legítima a um público
cada vez mais amplo e indiferenciado, a mediação pode ser vista como "[...] expressão de uma
metamorfose da ação pública, que busca uma nova maneira de governar a cidade e de fabricar a
coesão social sem ameaçar a ordem e os modelos culturais dominantes". De modo
complementar, o autor propõe o conceito de médiaction cultural (em vez de médiation cultural,
como normalmente se escreve em francês), desta vez, em correspondência à perspectiva da
democracia cultural, cuja contribuição "[...] não tomaria unicamente a via consensual, mas
implicaria o conflito". Comprometida com uma renovação da cultura por meio da valorização
das culturas emergentes, minoritárias ou alternativas, a médiaction tem como objetivo "[...]
estimular a participação [...] de modo a alterar as regras do jogo social".
Mas a própria ideia da democratização cultural pode se mostrar ambivalente. Segundo Newton
Cunha (2010: 66-75), ela pode (1) tanto se referir a um processo que tem por objetivo "tornar
acessíveis a toda a população as obras simbólicas exemplares da humanidade [...]" – o que (1a)
pode ser defendido, na medida em que procura compartilhar aquilo que de mais elevado o
espírito humano pôde criar, inclusive para que isso, que deveria ser uma herança comum, não
fique restrito a uma só classe, (1b) mas também questionado, na medida em que se afirma como
um projeto hegemônico –, (2) quanto pode significar que "as características e os valores da
cultura popular são as que predominam ou devem prevalecer social e politicamente numa
determinada sociedade" – o que pode defender (2a) uma cultura proveniente das classes
populares, mas também (2b) uma cultura de massa, exigindo-nos portanto distinguir aquilo que
tem significação política daquilo que redunda num pluralismo essencialmente acrítico e
4 Daqui em diante, todas as citações de textos que, nas referências, constam em língua estrangeira, têm tradução
minha, à exceção do texto Culture is ordinary, de Raymond Williams, para o qual usei a tradução (aparentemente não
publicada, mas disponível em PDF) de Maria Elisa Cevasco.
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imediatista. Contudo, o autor enfatiza a contraposição de uma "cultura autêntica" aos valores
conformistas da indústria cultural, como aquilo a que a ação cultural deve se dedicar, buscando
com isso estabelecer "oportunidades diferenciadas" por meio de principalmente dois processos:
alfabetização e difusão culturais.
A posição de Cunha, neste ponto, parece-nos semelhante à de F. R. Leavis, um influente crítico
literário da primeira metade do século XX, para quem, segundo a leitura de Raymond Williams
(2011: 279-289), a cultura consiste nas escolhas de uma minoria literária, empenhada em resistir
às forças que, em decorrência do "progresso da civilização", ameaçam destruir "as partes mais
sutis e perecíveis da tradição". Embora tal projeto, ainda segundo Williams, enfatize, entre
outros ganhos, propostas educacionais bastante úteis, é preciso confrontá-las com perdas não
negligenciáveis: "o conceito de uma minoria culta [...] tende, em sua afirmação, a uma
arrogância e ceticismo que são prejudiciais"; do mesmo modo, "o conceito de um passado
totalmente orgânico e satisfatório, a ser comparado com um presente desintegrado e
insatisfatório, tende, em seu desdém da história, a ser uma rejeição da experiência social
verdadeira". Assim, que "experiência social verdadeira" deveríamos considerar atualmente? Ou
ainda, o que mesmo para Williams nos parece incontornável: Quid tam dignum cultu? (O que é
digno de se ser cultivado, de se tornar cultura?)
Em entrevista recente, Néstor García Canclini (2013) afirma que a ideia da democratização
cultural, enquanto "distribuição igualitária dos bens culturais", está em crise por pelo menos
duas razões: (1) o crescimento da mercantilização dos bens culturais, com o quê aliás muitas
instituições e políticas têm contribuído, e que terminaria por diluir o caráter "autêntico" da
cultura a ser preservada; (2) e a constatação de que os públicos são muito diversos, dos setores
populares aos minoritários, tendo cada qual a "sua" cultura, o que faz da oferta para todos de um
mesmo pacote algo desprovido de sentido. Tal crise sugere, de um lado, que tanto a alta cultura
quanto a cultura popular tendem a se massificar; de outro, que as "autencidades" residuais – de
um lado, as defendidas por uma classe dominante, do outro, pelos chamados folcloristas –
tendem a se fragmentar, ou mesmo a se tornar ilusórias, no que diz respeito a sua significação
social. Mas isso não significa que nada mais restaria às coletividades senão celebrar sentidos
irrecuperavelmente empobrecidos. A propósito, são justamente as mediações entre essas noções
(alta cultura, cultura popular e cultura de massa) o que talvez de modo mais interessante deva
ser considerado, na medida em que, nesse processo – como aquilo que justamente o torna
significativo – tais instâncias se volvem nelas mesmas heterogêneas.
Para essa questão, são pertinentes as contribuições de Jesús Martin-Barbero (2009: 310-323),
para quem o popular, em face de uma massificação estrutural em nossa sociedade, deve ser
pensado não em termos de uma "exterioridade resguardada", em oposição ao massivo, mas em
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termos de uma "imbricação conflitiva" no massivo. Desse modo, tanto a imagem do popular
como um "pólo íntegro e resistente" quanto a do massivo como um "mero produto da
manipulação" se tornam inatuais. Afinal, é também no massivo, isto é, no modo como as classes
populares urbanas decodificam os produtos simbólicos oferecidos pelas mídias, que se poderá
consultar diferentes desvios, adaptações, subversões, isto é, modos de ver, falar e fazer, nos
quais se manifesta a força do popular, ainda que deformada, em face de "novas condições de
existência e luta". O residual que resiste, neste caso, é da ordem do que Martin-Barbero chama
de matrizes culturais: "o substrato de constituição dos sujeitos sociais para além dos contornos
objetivos delimitados pelo racionalismo instrumental e das frentes de luta consagradas pelo
marxismo"; um substrato cujos veios se encontram "no imaginário barroco, no dramatismo
religioso, na narrativa oral, no melodrama, na comédia, no palavreado".
A propósito, é o que também vai nos fazendo pensar a recente sociologia de Jessé Souza no
Brasil, para quem os indivíduos são produzidos "diferencialmente" por uma "cultura de classe"
específica. Defendendo que as diferenças entre os "batalhadores-empreendedores" (que podem
ser microempresários) e os "batalhadores-funcionários" (que podem ser funcionários
irregulares) não são do mesmo tipo que as encontradas (em termos já tradicionais) entre a
pequena-burguesia e os trabalhadores assalariados, Souza (op. cit.: 199-255) afirma haver entre
aqueles, mais do que uma oposição entre classes (por exemplo, entre uma "nova classe média" e
seus empregados), aspectos de uma mesma "identidade de classe", que não se resumem a
parâmetros empiricistas de poder aquisitivo, mas que trazem uma mesma "marca de origem", a
identidade de uma "nova classe trabalhadora", que ele denomina de "batalhadores brasileiros".
Dentre esses aspectos, quanto ao que nos interessa aqui, está "um estranhamento e indiferença
em relação às insígnias de poder e prestígio materializadas na arte e na cultura legítimas",
associados ao "uso no mais das vezes do tom satírico, da paródia e da linguagem chula como
forma de dessacralização do poder que os constrange".
Ainda segundo Martin-Barbero (op. cit.), trata-se da "revanche contra uma ordem do mundo que
os exclui e os humilha [sic] e contra a qual as pessoas do povo se confrontam, desorganizando o
tecido simbólico que articula essa ordem"; uma revanche que se manifesta – referindo-se neste
momento à presença do popular em alguns programas cômicos da televisão peruana – enquanto
"des-articulação, confusão, falar depressa, falar mal", isto é, enquanto "transformação da
carência em argúcia, e da situação na oportunidade aproveitada para impor-se ou para parodiar a
retórica daqueles que, de fato, falam bem". Assim, para que se possa perceber "o povo que dá
forma à massa", mais do que proceder à crítica do meios enquanto instrumentos da dominação
social, é preciso investigar e tomar parte em tais mediações, enquanto imbricações conflitivas.
Desse modo, não só evitaríamos pensar o popular como algo puramente exterior ao massivo,
mas também a cultura como algo puramente exterior à sociedade.
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Não é demais, neste ponto, retomarmos a insistência de Williams (1989) numa visão conjugada
da cultura, designando tanto um modo de vida, a "cultura popular", quanto as artes e o
aprendizado, a "alta cultura"; noutros termos, "tanto os mais ordinários significados comuns
quanto os mais refinados significados individuais", ou ainda, "os processos especiais de
descoberta e esforço criativo". Assim, afirmar que "a cultura é de todos" – o que para Williams
é primordial – não somente significa que a cultura não se resume à "alta cultura", muito menos a
"um sinal externo [...] de um tipo especial de pessoa", mas que "o desejo de conhecer o melhor,
fazer o que é bom, é parte principal da natureza positiva do ser humano". Do mesmo modo, o
autor argumenta que o barateamento da sensibilidade ou a vulgaridade das massas (que de resto
não existiriam como tais) não se aplicam plenamente às pessoas comuns, muito menos
decorrem, historicamente, da educação popular nem de uma imprensa de baixo custo (como se
chegou a pensar), mas sim do caos social da industrialização, com o que viria a contribuir, diga-
se de passagem, a partir dos anos 1890, o modelo de financiamento da imprensa corporativa
com base na venda de anúncios publicitários.
Ainda segundo Williams (idem), essa "cultura comum" viria da consciência e significação de
toda a "vida real" que se tornaria disponível a partir do acesso, de todas as pessoas, a todos os
canais de expressão e comunicação. Nesse sentido, ele propõe que "não deveríamos buscar
propagar uma cultura pronta para a massa ignara". Em primeiro lugar, porque a iniciativa de
propagá-la teria de aceitar e até mesmo de evidenciar a possibilidade de modificação ou de
rejeição dessa cultura nesse processo. Em segundo, porque a formulação "massa", isto é, esse
modo de ver as pessoas comuns como tal, não deve nos fazer confundir o acesso restrito à
educação com ignorância ou insensibilidade. Quanto ao que nos interessa, Williams não só
questiona a democratização cultural enquanto uma diretiva, como delineia, a seu modo, o
problema da democracia cultural: "Ao mesmo tempo, se entendemos o processo de
desenvolvimento cultural, sabemos que este é feito de ofertas contínuas para uma aceitação
comum; e que portanto, não devemos tentar determinar de antemão o que deve ser oferecido,
mas desobstruir os canais e permitir todos os tipos de oferta, tendo o cuidado de abrir bem o
espaço para o que for difícil, dar tempo suficiente para o que for original, de modo que o que se
tenha seja desenvolvimento real, e não apenas a confirmação ampliada de antigas regras."
Embora tenha rompido com a posição essencialmente "democratizante" de Leavis, Williams
admite que, para muitos, o acesso restrito à educação é um fato. Do seu ponto de vista, tal
situação deve ser revertida, não podendo a "cultura comum" ser confiada à espontaneidade das
classes populares. Por certo, hoje em dia, a "democratização escolar" (muito menos a
escolarização da sociedade – Illich, 1973) não seria simplesmente uma solução, se, conforme
Jessé Souza (op. cit.: 62-63), o aumento de diplomados não tem resultado em uma valorização
desses diplomas no mundo do trabalho (muito menos no da cultura), relegando muitos jovens
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escolarizados a uma condição de precariedade que "transforma o presente em algo contra o qual
não se pode lutar". Em todo caso, Williams (op. cit.) propõe uma "educação para todos", o que
se trata, antes de mais nada, "do processo de dotar todos os membros da sociedade com a
totalidade de seus significados comuns e com as habilidades que lhes possibilitarão retificar
esses significados, à luz de suas próprias experiências pessoais e comuns". Mas como, ao
mesmo tempo, retificar e ser dotado de significados comuns?
Retomando o problema (em parte) semântico com que começamos este texto, segundo Cunha
(2010: 63-66), "[...] se os termos ação e animação podem ser tomados genericamente como
sinônimos, isto é, na qualidade de 'estratégias pedagógicas de mediação ou de intervenção', é
possível, entretanto, distinguir características singulares para cada uma delas". (grifo meu)
Assim, a ação cultural pode ser vista como "o planejamento, a organização e a realização de
atividades ou de programas culturais [...]", enquanto que a animação cultural deveria indicar
"um trabalho processual, de prazo mais dilatado, no qual estão incluídas a nucleação, a
mobilização e a orientação de um grupo determinado [...]". Noutros termos, enquanto a
primeira tende a assumir um caráter mais decididamente diretivo, a segunda parece implicar
métodos não-diretivos ou semidiretivos, quem sabe, propriamente mediativos. Em todo caso,
ambas têm como precursores os movimentos de educação popular, que surgiram fora do sistema
formal de ensino, além de se identificarem com os princípios e os objetivos políticos da
educação permanente; embora a ação cultural, historicamente, desempenhe funções não
necessariamente educacionais, como as de mecenato e conservação, entre outras.
Em suma, podemos notar que as interseções entre mediação e educação (termos nem sempre
coincidentes) podem variar de estratégias interventivas (que empreitam a diretiva da
democratização cultural) a táticas descritivas (que se põem à espreita daquilo que faz avançar
uma democracia cultural), por assim dizer. Entretanto, diante da problemática sociocultural que
buscamos esboçar anteriormente, parece-nos que o caráter interventivo das mediações
educacionais, tal como se configura nos chamados educativos de muitas instituições culturais
(interessados primordialmente nas causas da democratização), deve ser problematizado (e não
somente complementado) pelo caráter mais descritivo (em sentido documentário, etnográfico
etc.) das mediações propriamente culturais (interessadas primordialmente nos efeitos da
democracia), em vista de processos educacionais efetivamente mediativos, isto é, que se
constituem através daquelas "imbricações conflitivas", ou ainda, através daquilo que Stuart Hall
(2003: 57 ss.) denominou de "proliferação subalterna das diferenças"; processos nos quais não
só os públicos são aprendizes, mas também os educadores, os curadores, os artistas, as
instituições etc., objetivamente. Em todo caso, a "educação para todos" desejada por Williams
só pode ser concebida como um processo contraditório e conflitivo, mais precisamente, como
uma "educação por todos", que ao mesmo tempo nega e afirma o que seja comum, isso que em
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todo caso não existe a priori, mas sim através daquelas mediações, cujas modalidades de
"imbricação" devem ser especificadas nesse mesmo processo.
Cayo Honorato, dezembro de 2013
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