media + igual - boletim 2 out.2013
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Os boletins mensais do projecto MEDIA + Igual apresentam uma selecção de notícias dos media portugueses monitorizados pelo projecto e as respectivas as análises, consensualizadas no âmbito de reuniões periódicas entre os parceiros da ULAI - Unidade Local de Análise de Imprensa. O projecto MEDIA + Igual é promovido pelo IEBA Centro de Iniciativas Empresariais e Sociais e apoiado pela UE-FSE / Governo de Portugal / QREN / POPH-GIG.TRANSCRIPT
Boletim Informativo
Integra uma selecção de notícias
publicadas de 1 a 31 de Outubro de
2013, a partir da monitorização de
nove títulos de imprensa escrita por-
tuguesa:
- dois de âmbito regional:
As Beiras
Diário de Coimbra
- sete de âmbito nacional:
Correio da Manhã
Diário de Notícias
Público
Caras
Maria
Happy Woman
Men’s Health
Nesta edição:
1. Editorial
2/3. Desigualdades e estereótipos
4/5. Violência doméstica
6. Visibilidades positivas
7. Análise: primeiras mulheres
8. Em poucas palavras
9. Entrevista
10. Fomos notícia/ Agenda/ Ler +
Boletim Informativo Escrita Igualitária nos Media
Novembro de 2013 02
MEDIA +igual
Depois da apresentação oficial do projecto MEDIA + Igual, em Outubro, Novembro foi
mês de consolidar processos e continuar o trabalho de monitorização dos nove títulos de
imprensa seleccionados, com o objectivo de combater a discriminação de género nos
media. Das 157 notícias seleccionadas numa primeira fase, por indiciarem questões de
género ou assimetrias entre homens e mulheres (de forma directa ou indirecta), foram
escolhidos 25 artigos para serem debatidos na reunião mensal com os parceiros da ULAI, a
13 de Novembro. Esta selecção tenta retratar os melhores e piores exemplos da representa-
ção de género nos media monitorizados. Ou seja, exemplos pela positiva, em que artigos
desconstroem estereótipos e contribuem para uma maior igualdade social. Ou, pela negati-
va, notícias que reforçam assimetrias de género, dando-lhes legitimidade mediática e, por
isso, contribuindo para a sua consolidação na sociedade.
Do debate entre os parceiros, resultaram as análises consensuais apresentadas neste bole-
tim mensal. A selecção final de artigos em análise é de 21, divididos entre vários temas e
perspectivas, a que se juntam outros dois, nos quais o próprio projecto MEDIA + Igual foi
notícia.
Este boletim marca, também, o início de uma série de entrevistas sobre a discriminação de
género nos media, com vista a promover o debate sobre esta temática. Nesta edição, a
investigadora Carla Cerqueira, da Universidade do Minho, contribui com uma visão acadé-
mica da visibilidade das mulheres nos media.
02
Para marcar o Dia do Solteiro,
a edição da semana de 29 de
Setembro da revista Maria
contém um artigo dedicado às
mulheres solteiras e aos
papéis estereotipados de géne-
ro na sociedade. Numa tentati-
va falhada de empowerment
feminino, o texto dá visibilida-
de às assimetrias existentes
entre homens e mulheres, mas
acaba por cair em lugares-
comuns, generalizações e este-
reótipos de género.
O reforço de estereótipos surge logo
no título e subtítulo do artigo, que
reforçam usos discriminatórios da
linguagem (“quando elas ficam para
tias”/ “solteironas”) associados ao
tema, sendo constantes ao longo do
texto. E, por isso, acabam por fun-
cionar como um julgamento moral
perante a opção de estar solteira.
Num texto construído à luz de uma
visão heteronormativa da socieda-
de, há também uma generalização
sobre o género feminino. Pode ler-
se, no texto, por exemplo, “é pelo
facto de sonharem com o conto de
fadas que as mulheres sentem
maior pressão para constituir famí-
lia”. Da leitura do artigo, emerge
ainda a construção da “mãe soltei-
ra” como privilegiada na sociedade.
Em paralelo, numa caixa de texto
dedicada às questões laborais, o
título escolhido (“No trabalho dis-
criminação é menor”) não reflecte o
conteúdo do artigo e acaba por con-
tribuir para a invisibilidade das
assimetrias na esfera laboral exis-
tentes na sociedade. De sublinhar,
no entanto, algum esforço para des-
construir certas desigualdades de
género, dando destaque à forma
como a sociedade discrimina a
mulher solteira, através de padrões
duplos (“se o solteiro quiser sair à
noite e regressar de madrugada,
ninguém critica, se a mulher o fizer
é mais objecto de crítica”).
Nestes dois exemplos da cobertura
noticiosa de um caso de violência
sexual sobre uma menor (em cima,
revista Maria, edição de 20-26 de
Outubro; em baixo, Correio da
Manhã, 18 de Outubro), por parte
do próprio pai, o destaque foi dado
à gravidez resultante dos abusos e à
opção de não abortar.
Os artigos materializam um julga-
mento moral da decisão da criança
em manter a gravidez, no qual são
destacadas várias referências sim-
bólico-religiosas. No artigo do Cor-
reio da Manhã, por exemplo, lê-se
“recusou abortar e disse que não ia
matar um ser humano”. Além disso,
há referências ao nome do bebé,
Salvador, e ao facto de o parto estar
previsto para “o dia de Natal” —
novamente numa referência religio-
sa, que poderia ser substituída por
“dia 25 de Dezembro”.
Há, portanto, uma exaltação da
continuidade da gravidez, associan-
do-a à simbologia religiosa, o que
resulta numa maior invisibilidade
do contexto de violência. Na pers-
pectiva dos direitos das crianças, é
condenável a pressão em torno da
menina como sujeito da decisão.
desigualdades e estereótipos
Esta entrevista, publicada no
Diário de Notícias a 21 de
Outubro, apresenta um con-
teúdo ambíguo no que concer-
ne a questões de género. De
forma antitética, o artigo con-
tribui para dar visibilidade à
discriminação sobre mulhe-
res, ao mesmo tempo que as
perguntas escolhidas refor-
çam estereótipos de género.
Em causa, uma entrevista à actriz
Débora Bloch. O título selecciona-
do, “Estou numa profissão em que
as mulheres têm força”, cria expec-
tativas de um conteúdo jornalístico
que desconstrua assimetrias de
género. Contudo, após a leitura na
íntegra da entrevista, são várias as
questões que reforçam estereótipos
e os transmitem como factos indis-
cutíveis. Trata-se, sobretudo, de
questões sobre a imagem da actriz,
sex-appeal e medo do envelheci-
mento — que contribuem para um
tratamento assimétrico de género
em relação à entrevistada. Além
disso, são pressupostos ideais de
beleza para o género feminino, rela-
cionados com a idade (“Aos 50 anos
continua a encarnar mulheres com
muito sex appeal. Qual o segredo
para se manter assim tão jovem?”).
São, aliás, várias as referências à
idade da actriz, ao longo da entre-
vista.
Além destas questões, há também
uma manutenção da ideia de com-
petitividade feminina. A respeito da
participação da actriz numa novela,
subsiste uma disparidade na forma
como são retratadas as relações
com colegas de trabalho. À pergun-
ta “Como foi contracenar com o
Alexandre [Borges, um dos acto-
res]?” contrapõe-se a questão “Deu-
se bem com as outras mulheres do
Cadinho [personagem interpretada
por Alexandre Borges]?”, cuja for-
mulação remete exactamente para
uma noção de competitividade
entre o género feminino.
03
desigualdades e estereótipos
A menção a “mãe solteira” neste
título do Correio da Manhã, edição
de 18 de Outubro, pressupõe um
uso discriminatório da linguagem.
O estado civil da mulher represen-
tada não é relevante para a notícia
em si, mas, ao ser realçado no títu-
lo, evidencia um julgamento prévio
sobre as acções apresentadas. É
apresentada, portanto, uma relação
causal, não justificada, entre o facto
de a mãe ser solteira e o homicídio
do bebé. De realçar, ainda, que ao
longo da notícia há falta de contexto
sobre o crime, estando ainda ausen-
tes pormenores sobre a responsabi-
lidade do pai no crime ocorrido. A
cobertura noticiosa parece privile-
giar uma linguagem mais sensacio-
nalista e menos informativa dos
factos, uma opção visível na escolha
da imagem em destaque.
04
Em mais um mês de monitori-
zação de imprensa, verifica-
mos que o tema da violência
doméstica continua a ser o
tópico mais frequente, no que
concerne à representação de
questões de género. Numa
análise qualitativa, no entanto,
continua a notar-se uma gene-
ralizada falta de contexto
social da problemática.
Associados, muitas vezes, a um
excessivo sensacionalismo, estes
crimes continuam a ser representa-
dos nos media como actos isolado e
desintegrados de um historial de
abusos. Note-se que, em várias das
notícias seleccionadas, houve a
preocupação de contextualizar cri-
mes de violência doméstica com
recurso a outras fontes e dados
estatísticos. No entanto, esse uso
deu origem, em alguns dos exem-
plos analisados, a discursos erró-
neos, com reforço de estereótipos
associados a este tipo de crimes.
Na notícia à direita, por exemplo,
publicada no Correio da Manhã a 3
de Outubro, os ciúmes são apresen-
tados como motivo legitimado para
a violência (“Executa a mulher a
tiro por ciúmes”/ a vítima “muito
vistosa e ele já estar acabado”). A
notícia é acompanhada por um
mapa com a distribuição geográfica
das vítimas mortais de violência
doméstica, positivo por dar a
conhecer a transversalidade geográ-
fica da problemática. No entanto, o
tratamento sensacionalista dos
dados privilegia também a informa-
ção sobre o tipo de morte, o que
mais uma vez reforça a ideia do cri-
me como acto violento isolado
(remetendo à invisibilidade os con-
texto de violência doméstica conti-
nuada). Mais uma vez, assiste-se a
uma ausência de análise relativa-
mente a assimetrias de género, nes-
te tipo de discursos mediáticos.
Já no exemplo abaixo, “Mulher
morta pediu ajuda”, publicado no
Correio da Manhã, a 7 de Outubro,
o destaque dado à forma como a
APAV-Associação Portuguesa de
Apoio à Vítima falhou na ajuda à
vítima, poderá levar a que outras
vítimas de violência doméstica não
procurem ajuda. O artigo apresen-
ta, inclusive, alguma informação
confusa relativamente ao papel da
APAV que, na verdade, não estabe-
lece perfis psicológicos, nem conse-
gue avaliar o tipo de perigo existen-
te sem sequer ter contactado com o
agressor — ao contrário do que é
estabelecido no texto. Apesar deste
destaque negativo à APAV, é o pró-
prio discurso jornalístico que, na
segunda parte do artigo, integra
informação da associação para con-
textualizar o fenómeno da violência
doméstica. Resulta, portanto, num
artigo ambíguo com mensagens
contraditórias sobre a problemática
da violência doméstica e os proces-
sos de apoio às vítimas. Nessa
segunda parte do artigo, há que
destacar pela positiva a entrevista a
João Lázaro, da APAV; a informa-
ção sobre os tipos de apoio presta-
dos pela associação; e também a
caixa de texto que relembra as
outras vítimas mortais de violência
doméstica deste ano, destacando
ainda o efeito da crise económica na
redução dos pedidos de ajuda
(embora desconstruindo a ideia de
violência doméstica
05
Há que assinalar, também, artigos
sobre violência doméstica que
podem ser considerados bons
exemplos de um discurso jornalísti-
co contextualizado e que vão além
dos estereótipos. Na primeira ima-
gem, à esquerda, a notícia “Homem
bloqueia carro da ex-mulher, assas-
sina-a com dois tiros e suicida-se”,
da edição de 6 de Outubro do Diá-
rio de Notícias, apresenta uma
construção discursiva do crime que
permite integrá-lo num contexto
continuado de violência doméstica.
As menções à perseguição constan-
te que a vítima sofria, assim como a
ausência de tentativas de desculpa-
bilização do agressor, são exemplos
positivos da desconstrução da pro-
blemática da violência doméstica,
afastando-a do crime pontual. O
artigo é acompanhado por uma
entrevista a Daniel Cotrim, da
APAV, que permite uma leitura
complementar à notícia.
Já o artigo “A violência doméstica
não vê contas bancárias” (Correio
da Manhã, 26 de Outubro) é rele-
vante na desconstrução do estereó-
tipo de que a violência doméstica é
algo que só acontece nas classes
mais desfavorecidas. Desta forma, a
notícia (integrada num artigo dedi-
cado à acusação de violência
doméstica contra o ex-ministro da
Cultura, Manuel Maria Carrilho,
por parte da esposa Bárbara Gui-
marães) contribui para atenuar a
discriminação sobre vítimas de vio-
lência doméstica. É positivo que, a
partir de um acontecimento com
alta projecção mediática, o jornal
tenha aproveitado para evidenciar
que a violência doméstica atravessa
classes sociais e níveis de ensino.
violência doméstica
pela positiva
que tal não é sinónimo de diminui-
ção dos pedidos de ajuda). Conti-
nua, no entanto, a tendência de des-
culpabilização do agressor (“o idoso
andava deprimido” ou “ciúme e
obsessão são dos motivos mais fre-
quentes para crimes passionais”).
Também no caso do artigo desta
página, à direita, a tentativa de con-
textualização da violência doméstica
resulta em informações erróneas.
“Ciúmes tiram a vida a 26.ª mulher
em 2013”, notícia secundária do
artigo “Mata mulher à frente da
neta”, do Correio da Manhã, de 19
de Outubro, começa logo com um
discurso assente em estereótipos
assimétricos: “Francisco Raposo
não conseguiu aguentar os ciúmes
que tinha da sua mulher”. Desta for-
ma, o texto jornalístico assume uma
suposta inevitabilidade do crime e
uma tentativa de vitimização do
agressor. Por outro lado, o artigo
recorre a dados descontextualizados
da UMAR-União de Mulheres Alter-
nativa e Resposta, para fazer a aná-
lise da problemática da violência
doméstica. O enfoque jornalístico
recai, por exemplo, nos ciúmes do
agressor ou no tipo de arma usada,
quando a própria UMAR evidencia
que a maioria dos homicídios ocorre
por contexto de violência doméstica.
Em conclusão, a construção deste
tipo de discurso está, assim, a con-
tribuir para a invisibilidade da vio-
lência doméstica como acto conti-
nuado.
Há temas que, pela sua cons-
tante invisibilidade mediática,
são importantes de assinalar
quando, finalmente, chegam
às páginas dos jornais e revis-
tas. É o caso dos três exemplos
que abordamos aqui, que con-
tribuem para a visibilidade de
questões de género habitual-
mente afastadas do debate
público.
O primeiro, publicado no Diário de
Notícias a 22 de Outubro, diz res-
peito ao impacto do VIH especifica-
mente nas mulheres. A análise ser-
ve à desconstrução de vários este-
reótipos associados à doença,
nomeadamente chamando a aten-
ção para as mães portadoras do
vírus, o maior risco de infecção a
partir da menopausa, ou que a for-
ma de transmissão mais frequente
entre as mulheres está nas relações
heterossexuais. Além disso, o artigo
contribui como alerta para a dupla
discriminação sentida pelas mulhe-
res infectadas, mas também para a
falta de representatividade do géne-
ro feminino nos ensaios clínicos de
medicamentos. Como aspecto
menos positivo, os gráficos que
acompanham o texto colocam o
ênfase na proveniência geográfica
das mulheres infectadas com o VIH.
Uma vez que esta questão está
ausente do texto, acaba por ser irre-
levante apontar estas diferenças,
que podem até contribuir para
novas discriminações.
No segundo exemplo, “Nascem 50
bebés por ano com sexo indefini-
do”, da edição de 31 de Outubro do
Diário de Notícias, há uma visibili-
dade positiva dada aos estados
intersexos, assim como a descons-
trução de estereótipos relacionados
com o binarismo de géneros. A par-
tir de um acontecimento internacio-
nal, a jornalista procurou ouvir fon-
tes diversas sobre o tema. No
entanto, a notícia carece de depoi-
mentos de representantes de asso-
ciações intersexo, que possam refe-
renciar a temática na primeira pes-
soa. Em paralelo, a imagem escolhi-
da para ilustrar o artigo (um bebé
cuja cara é uma peça de puzzle por
completar) parece dar a ideia de
que o intersexo é um defeito, algo
que falta, contribuindo para uma
leitura menos positiva da notícia.
Por fim, o artigo “156 mudam de
sexo em três anos”, do Correio da
Manhã de 21 de Outubro, aproveita
a cobertura de um reality show
para dar visibilidade aos procedi-
mentos clínicos de mudança de
sexo, através de uma linguagem
acessível. A explicação pormenori-
zada é positiva, sobretudo porque
indica os procedimentos cirúrgicos
tanto na mudança do corpo mascu-
lino para o feminino, como vice-
versa.
Há, porém, um enfoque exagerado
e sensacionalista na questão das
mudanças cirúrgicas na parte geni-
tal, reduzindo a transexualidade a
este aspecto, que não é essencial.
Ainda em termos negativos, é
necessário destacar a associação da
transexualidade a uma questão de
patologia, patente no discurso,
assim como a exploração de ima-
gem do corpo da Filipa Gonçalves.
visibilidades positivas
06
Ao longo da monitorização fei-
ta no âmbito do MEDIA +
Igual, têm sido detectados
vários exemplos de notícias
que reduzem detentoras de
cargos e distinções públicas ao
seu género. Construções de
linguagem como “mulher lide-
ra…”, “primeira mulher…” ,
“mulher assume cargo” são
comuns na imprensa nacional.
Perante este uso da linguagem, é
possível argumentar que esta visibi-
lidade de género permite pôr em
evidência as assimetrias sociais
existentes. É certo, mas tal visibili-
dade deve ser acompanhada de um
contexto e da desconstrução dessas
assimetrias. Caso contrário, resulta-
rá na menorização destas mulheres.
É disso exemplo o artigo “Mulher
lidera Banco de Israel”, da edição
de 21 de Outubro do Diário de Notí-
cias. Com este uso da linguagem, o
destaque é dado ao género da eco-
nomista (irrelevante para o cargo),
muito embora ela tenha assumido
interinamente a função nos últimos
meses. Sem outro contexto, o título
apresentado é discriminatório.
Ainda no Diário de Notícias, o arti-
go “Desemprego na mira da primei-
ra mulher à frente da Fed”, de 10 de
Outubro, levanta questões seme-
lhantes. O título menciona que
Janet Yellen será a primeira mulher
a liderar o Banco Federal dos Esta-
do Unidos. Assistimos, mais uma
vez, a uma visão centrada no géne-
ro, reforçando assimetrias. Seria
importante que, em vez da menori-
zação de Yellen ao seu género, o
destaque fosse dado a questões
políticas e financeiras — tal como
seria expectável se o sujeito da notí-
cia fosse um homem. No entanto, o
artigo explora vários elementos da
esfera privada de Yellen, como os
filhos e a necessidade da contrata-
ção de uma ama, que reforçam as
associações estereotipadas do géne-
ro feminino às questões domésticas.
Como elemento positivo, o texto
contextualiza que a administração
dos bancos federais mantém-se um
“mundo de homens”.
Por outro lado, o título escolhido
pelo Correio da Manhã, a 10 de
Outubro, “Nova chefe do dólar”,
acaba por evitar a redução de Yellen
ao seu género. Apesar de sucinta, e
sem acrescentar ideias políticas
concretas, a linguagem usada acaba
por ser mais inclusiva. A referência
ao facto de ser a primeira mulher a
liderar o ‘Fed’ surge apenas no sub-
título. Como aspecto negativo, lê-se
no artigo que “Yellen poderá tornar
-se a mulher mais poderosa do
mundo”, uma frase que reproduz
diferenças de género ao nível das
elites mundiais. Ou seja, como se
Yellen continuasse, mesmo assim,
aquém dos homens mais poderosos
do mundo.
Tais usos da linguagem nos media
não são exclusivos dos temas politi-
co-económicos, atravessando todo o
espectro noticioso. Ainda no Diário
de Notícias (6 de Outubro), a notí-
cia sobre o Prémio Leya de literatu-
ra volta a destacar o género, através
do título “Emigrante desempregada
é a 1.ª mulher a ganhar o Prémio
Leya”. Mais uma vez, há uma pres-
suposição de que o género da ven-
cedora é o mais importante da notí-
cia, quando, de facto, é irrelevante
para a atribuição do prémio. Nota
também para a menção reiterada a
“personagens femininas fortes”, um
discurso que reforça o estereótipo
de que, por norma, essas persona-
gens são tradicionalmente fracas.
análise: “primeiras mulheres”?
07
A linguagem usada no título deste artigo acaba por
evidenciar uma atitude discriminatória perante o
casamento homossexual. O tom manifestamente
caricato do título (reforçado pelo uso de reticências
e ponto de exclamação) apresenta este casamento
como algo de bizarro e fora do comum.
O título está, portanto, a reforçar assimetrias entre
o casamento heterossexual e homossexual, num
discurso bipolarizado entre ‘normalidade’ e
‘anormalidade’.
O artigo acaba por não desconstruir as assimetrias
de género relacionadas com o corpo (exploração
do corpo da mulher/ percepção assimétrica dos
géneros em termos de sexualidade), apesar destas
questões estarem relacionadas com o tema princi-
pal da notícia. Pelo contrário, há um reforço destas
desigualdades, ao afirmar-se, por exemplo, “esta é
mais uma prova de que o corpo de Gisele Bünd-
chen vale ouro”. Além disso, a caracterização do
corpo da modelo como “invejável”, “apesar de ser
mãe”, induz ainda a imposição de um ideal estéti-
co ao género feminino.
O título deste notícia induz assimetrias de género
que não constam do texto — relacionado com pen-
sões de sobrevivência. Há, portanto, uma generali-
zação absoluta ao género feminino de quem benefi-
cia deste tipo de pensões, que acaba por não ser
justificada. Ao longo do artigo, não encontramos
menção à proporção de mulheres entre as 27 mil
pessoas beneficiárias, pelo que o termo generaliza-
do “viúvas” é usado por uma suposta fragilidade
das mulheres, que ficariam assim desamparadas
devido aos cortes das pensões.
A fotografia escolhida para ilustrar este artigo é
marcadamente sexista. Duas mulheres ladeiam o
carro descrito na notícia, como elemento objectifi-
cado e decorativo em paralelo com o veículo,
ambos apresentados como objectos de desejo
masculino. Este é um estereótipo recorrente no
sector automóvel, que se torna reforçado (e, con-
sequentemente, legitimado) quando apresentado
no discurso jornalístico. Uma linguagem neutra
(ao nível de texto e imagem) deveria afastar-se
destas construções estereotipadas e apresentar
unicamente o carro em questão, sem repercutir
assimetrias de género.
em poucas palavras
08
Diário As Beiras, 07/10/2013 Diário de Notícias, 11/10/2013
Correio da Manhã, 07/10/2013 Maria, 20-26/10/2013
09
entrevista
Carla Cerqueira é investigado-ra em estudos de género e média. A especialista, que integra o Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (CECS) na Universidade do Minho, partilha aqui a sua perspectiva sobre representa-ções de género nos media. E afirma: uma linguagem mais inclusiva só é possível através da educação. Qual a relevância da abordagem académica na área das represen-tações de género nos media? É fundamental incluirmos uma abor-dagem deste tipo na investigação aca-démica na área da comunicação, mas não só. A inclusão de ‘lentes de género’ na investigação afigura-se central para melhorar a qualidade o trabalho reali-zado e esta deve estar presente em ter-mos de uma participação mais equili-brada de investigadores/as, mas tam-bém da incorporação da dimensão de género nos objectivos da pesquisa. No que concerne especificamente ao cam-po da comunicação, este olhar é crucial porque sustenta uma investigação orientada para a crítica e a transforma-ção social, a qual reconhece que os media e os vários públicos podem desempenhar um papel relevante nes-sa transformação. Qual o objectivo do projecto “Género em Foco”, desenvolvido actualmente pelo CECS? O projecto “O género em foco: repre-sentações sociais nas revistas portu-guesas de informação generalista” começou em 2011 e tem um cariz inter-disciplinar. Financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, tem como objectivo central preencher uma lacuna na investigação científica relati-vamente à análise crítica das represen-tações de género nos conteúdos mediá-ticos veiculados no contexto português. O projecto apresenta dois eixos de aná-lise. Por um lado, centra-se nos con-teúdos e produtores/as das revistas de informação generalista (Sábado e Visão). Neste eixo, estamos a analisar de que forma é que homens e mulheres são representados, atendendo também ao sexo dos seus produtores, de forma a detectar eventuais diferenças nas práticas discursivas. Por outro, foca-se nos/as receptores/as dos media e tem
procurado compreender o modo como os produtos mediáticos são apropria-dos pelo público jovem. Realizámos grupos de discussão com mais de 100 jovens e estamos neste momento a analisar os dados. O que podemos esperar da Confe-rência Internacional “Gender in focus: (new) trends in media”? A conferência internacional “Gender in focus: (new) trends in media”, que terá lugar a 20 e 21 de Junho de 2014, na Universidade do Minho, pretende fun-cionar como um espaço de reflexão sobre as questões de género nos media. Trata-se de uma conferência com um enfoque bastante aberto e interdisciplinar, que pretende congre-gar académicos/as, organizações da sociedade civil e profissionais dos vários campos mediáticos. Na sua tese de doutoramento desenvolveu uma análise da cobertura jornalística do Dia Internacional das Mulheres. Quais as principais conclusões? O objectivo central foi perceber como é que evoluiu a cobertura jornalística do Dia Internacional das Mulheres na imprensa portuguesa (1975-2007), em dois jornais diários generalistas nacio-nais – Jornal de Notícias e Diário de Notícias. Nos primeiros anos de come-moração do Dia Internacional das Mulheres, os jornais em análise repre-sentam a efeméride como uma reivin-dicação, sobretudo pelo carácter de associação aos ideais transmitidos pela revolução do 25 de Abril. Mais recente-mente a violência doméstica impõe-se como questão marcante na cobertura. O leque de assuntos mergulhou em vários campos, mas não revelou um tratamento e enquadramento diversifi-cados. Em linhas gerais, é possível visionar uma concepção do poder feminino enquanto idoneidade para penetrar na esfera pública. O tópico mais pertinente é a igualdade, definida como a capacidade para inverter os papéis tradicionais de género. As mulheres são construídas com caracte-rísticas tradicionalmente associadas ao ‘masculino’, isto é, como casos excep-cionais. Podemos referir a existência de uma visão dicotómica das próprias mulheres – ou são alvo da fatalidade a que estão sujeitas, ou são seres ‘especiais’, que conseguem triunfar num mundo dominado pelos homens.
No âmbito do “MEDIA + Igual”, deparamo-nos com um reforço sistemático de estereótipos de género na linguagem jornalística. Como tem sido a evolução desta tendência? A linguagem jornalística assume, actualmente, uma nova ‘roupagem’, através de um tom aparentemente mais igualitário e emancipatório, mas muitos dos discursos permanecem pra-ticamente inalterados, em termos de substância. Há uma aproximação do discurso considerado politicamente correcto, até porque os mecanismos de regulação do jornalismo são cada vez mais tido em consideração. Esta mudança é extremamente ilusória no sentido em que as exclusões e secunda-rizações continuam a ser bem patentes. Como se poderá promover uma linguagem mais inclusiva nos media nacionais? Tenho insistido na necessidade de arti-culação dos diversos actores envolvi-dos nestas questões: a academia, as organizações da sociedade civil que trabalham com estas questões e os/as profissionais do campo mediático. Por outro lado, é preciso trabalhar na des-construção das desigualdades de géne-ro que são estruturais na sociedade e daí que a educação assuma um papel essencial. É necessário o desenvolvi-mento de um sentido crítico aprimora-do, isto é, para uma educação que per-mita o questionamento dos conteúdos difundidos pelos media. Paralelamen-te, é preciso consciencializar as/os jor-nalistas que a linguagem não é algo estático e que depende de nós torná-la mais inclusiva. Sublinho a importância de incluir esta educação mediática jun-to dos/as estudantes de comunicação.
04
na internet Siga-nos no Facebook, em: www.facebook.com/mediamaisigual Conheça outras iniciativas do IEBA: www.ieba.org.pt/
créditos
Edição: IEBA—Centro de Iniciativas Empresariais e Sociais, Outubro 2013 Revisão: ULAI—Unidade Local de Análise de Imprensa - APPACDM Coimbra, APAV, GRAAL, NÃO TE PRIVES, SOS RACISMO, UMAR Contactos: IEBA Parque Industrial Manuel Lourenço Ferreira, Lote 12—Apartado 38, 3450-232 Mortágua, [email protected] | [email protected]
10
fomos notícia Na sequência da apresentação do
projecto, a 2 de Outubro, o MEDIA
+ Igual ganhou visibilidade nos
media, através de duas notícias. As
coberturas foram asseguradas pelas
publicações regionais “As Beiras” e
“Diário de Coimbra” , que são dois
dos órgãos de comunicação social
monitorizados no âmbito do projec-
to.
Em ambos os artigos, foram realça-
dos os objectivos e metodologia do
projectos, assim como o trabalho
em rede com os vários parceiros.
Foram igualmente abordados
exemplos de temas ligados a assi-
metrias de género, que são objecto
de análise do projecto, embora não
tivessem sido apresentados exem-
plos concretos dos artigos analisa-
dos na reunião mensal de Outubro.
O objectivos do projecto MEDIA +
Igual passam pela promoção de
um maior debate público em torno
das representações de género nos
media. Contribuir para uma visibi-
lidade generalizada dos media
como elementos fundamentais na
manutenção ou desconstrução de
estereótipos de género é essencial
para a diminuição das assimetrias
sociais de género.
A visibilidade do próprio projecto
nos media é, por isso, extrema-
mente relevante. Daí a nota de
destaque, neste boletim, sobre os
ecos do Media + Igual na
imprensa generalista.
agenda
Reunião MEDIA + Igual
11 de Dezembro
Casa de Chá, Jardim da Sereia
Coimbra
10h:00m
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Relatório do Observatório das Mulheres Assassinadas/
UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta
Por ocasião do Dia Internacional pela Eliminação de Todas as For-
mas de Violência sobre as Mulheres, a 25 de Novembro, a UMAR
apresentou o relatório dos dados sobre femicídio e tentativas de
femicídio ocorridas em Portugal, entre Janeiro e Novembro de 2013.
Este é o mais recente documento público de um trabalho desenvol-
vido desde 2002 e apresentado anualmente a partir de 2004.
A publicação pode ser consultada, na íntegra, no website da UMAR,
em www.umarfeminismos.org