me chamo felipe

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“Me chamo Felipe, prazer a todos” Imagine se olhar no espelho e não ver refletido o que você verdadeiramente é “Faz muitos anos que tenho vivido uma experiência claustrofóbica e nauseante como outros milhares de seres humanos do mundo todo, que batalham todos os dias para seguir com suas vidas. Eu, assim como eles, ‘sofro’ de uma condição que a ciência chama de transtorno de personalidade ou disforia de gênero. Basicamente, nós, ditos doentes, nascemos com um sexo biológico que não condiz com nosso sexo de identidade. Sim, quando você vive no meu mundo você passa a entender que a identidade é uma construção que vai além do biológico. Nós aprendemos a ser homens e a ser mulheres. Desempenhamos papéis sociais que nem sempre estão de acordo com o nosso ‘eu’.” O trecho acima é parte da carta aberta publicada no Facebook em maio de 2014. Aos 33 anos, a pessoa antes conhecida por amigos e parentes como Fabiana ou simplesmente “a Z” se apresentou como realmente se reconhece: um homem trans, chamado Felipe Lima Gonçalves. Belisa Cassel, amiga de Felipe desde 2008, quando ambos cursavam História, elogiou a postura do colega: “Achei que o Z teve muita coragem para expor isso no Facebook, que é o lugar onde as pessoas mais te julgam e rotulam. É legal que ele poste bastante informação sobre a transexualidade, leio tudo e aprendi muito com ele”. Felipe usa a rede social para disseminar informação sobre disforia de gênero, pois a falta dela tornou sua adolescência muito difícil. Buscava se espelhar nos adultos, mas não encontrava essa inspiração. “Na adolescência tu procura referências e vai te montando, e aí barra no momento em que percebe que as pessoas em torno de ti não são parecidas contigo. Eu achava que era lésbica, não fazia a mínima ideia.” Assim, só entendeu de fato o que se passava com ele aos vinte e poucos anos.

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Reportagem feita por alunas de Jornalismo Impresso II para o jornal LUPA - Leia Unisinos Porto Alegre, cujo tema é "diversidade". Por Débora Vaszelewski e Vanessa Vargas

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Page 1: Me chamo Felipe

“Me chamo Felipe, prazer a todos”

Imagine se olhar no espelho e não ver refletido o que você verdadeiramente é

“Faz muitos anos que tenho vivido uma experiência claustrofóbica e nauseante como outros milhares de seres humanos do mundo todo, que batalham todos os dias para seguir com suas vidas. Eu, assim como eles, ‘sofro’ de uma condição que a ciência chama de transtorno de personalidade ou disforia de gênero. Basicamente, nós, ditos doentes, nascemos com um sexo biológico que não condiz com nosso sexo de identidade. Sim, quando você vive no meu mundo você passa a entender que a identidade é uma construção que vai além do biológico. Nós aprendemos a ser homens e a ser mulheres. Desempenhamos papéis sociais que nem sempre estão de acordo com o nosso ‘eu’.”

O trecho acima é parte da carta aberta publicada no Facebook em maio de 2014. Aos 33 anos, a pessoa antes conhecida por amigos e parentes como Fabiana ou simplesmente “a Z” se apresentou como realmente se reconhece: um homem trans, chamado Felipe Lima Gonçalves.

Belisa Cassel, amiga de Felipe desde 2008, quando ambos cursavam História, elogiou a postura do colega: “Achei que o Z teve muita coragem para expor isso no Facebook, que é o lugar onde as pessoas mais te julgam e rotulam. É legal que ele poste bastante informação sobre a transexualidade, leio tudo e aprendi muito com ele”.

Felipe usa a rede social para disseminar informação sobre disforia de gênero, pois a falta dela tornou sua adolescência muito difícil. Buscava se espelhar nos adultos, mas não encontrava essa inspiração. “Na adolescência tu procura referências e vai te montando, e aí barra no momento em que percebe que as pessoas em torno de ti não são parecidas contigo. Eu achava que era lésbica, não fazia a mínima ideia.” Assim, só entendeu de fato o que se passava com ele aos vinte e poucos anos.

Era com os meninos que se sentia confortável. Interesses em comum, como ouvir Pink Floyd e jogar videogame, o aproximaram de Leonardo Coutinho. Eles cresceram juntos, se apaixonaram e viveram o amor de infância. Léo com seu blusão colorido e Felipe com seu Adidas falsificado, cheio de bolinhas e remendado. Entre altos e baixos, estão juntos há mais de vinte anos, lutando contra os preconceitos.

Se o Felipe tem o corpo feminino e o Leonardo masculino, eles são um casal heterossexual, correto? Errado. Mas era isso que eles aparentavam fora de seu apartamento – que tem a cara dos dois, com direito a cartoons desenhados por eles nas paredes. Era um constrangimento sempre que o Léo ia apresentar “sua esposa” para familiares e amigos. “Em casa, eu era o Felipe sempre, e na rua tinha que ser a Fabiana. Cara, aquilo, meu Deus, era um soco no estômago, porque não faz sentido”, explica Felipe.

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Léo também teve o momento de se compreender: na verdade, é casado com um homem trans e, portanto, é homossexual. Embora ainda seja complicado para as pessoas entenderem, eles não se reconhecem como um casal hétero, mas sim como um casal gay.

Quanto a sexualidade e gênero, nossa sociedade é o que o jornalista, doutorando da Unisinos e pesquisador de mídia e sexualidade Felipe Kolinski descreve como “sociedade cis/heteronormativa”. Isto é, normas sociais associam o comportamento heterossexual e cisgênero – pessoas que se identificam com o gênero atribuído a elas no nascimento – como os únicos aceitáveis.

Kolinski observa que a mídia dá pouca visibilidade aos transexuais e de forma pejorativa em programas de humor ou em noticiários policiais, em virtude da violência e crimes de ódio que sofrem. “Claro que não se pode atribuir toda a violência à mídia, mas com uma produção de conteúdos mais abrangentes e com mais responsabilidade, a população em geral teria mais acesso às questões de gênero e de sexualidade, o que contribuiria para a diminuição do preconceito e da violência”, conclui.

Por causa do preconceito, Felipe tentou se adequar ao papel de mulher. Mas ir contra si mesmo interferiu na sua saúde. Surgiram crises depressivas e bipolaridade. Desenvolveu síndrome do pânico e está até hoje em tratamento. Em virtude dos problemas emocionais, recusou propostas de emprego e de dar aulas de desenho e se refugiou em casa. Por se sentir mentindo para as pessoas e para si mesmo, decidiu assumir o gênero com o qual se identifica: o masculino.

Léo lembra que essa decisão foi tomada há aproximadamente três anos. Juntos eles buscaram no Programa de Transtorno de Identidade de Gênero (Protig) do Hospital de Clínicas, de Porto Alegre, a readequação de sexo de Felipe. Mas esse é um processo lento, e Felipe ainda não foi chamado para a primeira fase do procedimento, que é o acompanhamento psicológico.

Continuar com aspectos femininos é, para ele, uma tortura. O período da menstruação é sinônimo de dor, sofrimento, febre e dias de cama. Como se fosse uma doença, uma deformidade. Por isso buscou o acompanhamento psicológico fora do Sistema Único de Saúde (SUS) e já pretende iniciar o tratamento hormonal, que lhe dará mais características masculinas.

A readequação de sexo é a forma de reduzir o abismo entre o físico e o psicológico. Vai trazer mais confiança para fazer, em sociedade, o que já realizou nas redes sociais. No trecho final de sua carta aberta publicada no Facebook, Felipe se apresenta como se reconhece:

“Tudo o que sei sobre mim até agora é que sou um desenhista. Gosto de quadrinhos e vivo casado com outro nerd como eu. Minha família é desestruturada e sei que não sou amado por grande parte deles, mas tenho os primos mais legais que alguém poderia ter. Sou bipolar, fumante e adoro uma conversa alterada. Tenho um gato que se chama Drako, uma melhor amiga que eu sei que vai mudar o mundo um dia, cunhadas gatinhas pelas quais sou simplesmente louco e um irmão. Tudo o que me restou. O suficiente pela grandiosidade do seu caráter e coração.

Escolhi esse nome depois de pensar sobre muitas coisas, sobre a minha vida, as nossas num geral. Estou começando a lutar da maneira como acredito que seja a mais certa, sem me esconder, sem medo.

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Me chamo Felipe, prazer a todos”