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1 Escola de Teologia – 2018 Diretoria de Extensão e Pós -Graduação Módulo 1: Introdução à Teologia Ad usum privatum

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Escola de Teologia – 2018

Diretoria de Extensão e Pós -Graduação

Módulo 1:

Introdução à

Teologia Ad usum privatum

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INTRODUÇÃO À TEOLOGIA

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“Por sua natureza a fé se apela à inteligência, porque desvela ao homem a

verdade sobre o seu destino e o caminho para o alcançar. Mesmo sendo a

verdade revelada superior a todo o nosso falar, e sendo os nossos conceitos

imperfeitos frente à sua grandeza, em última análise insondável (cf. Ef 3,

19), ela convida porém a razão — dom de Deus feito para colher a verdade

— a entrar na sua luz, tornando-se assim capaz de compreender, em certa

medida, aquilo em que crê. A ciência teológica, que respondendo ao convite

da verdade, busca a inteligência da fé, auxilia o Povo de Deus, de acordo

com o mandamento do Apóstolo (cf. 1 Pd 3, 15), a dar razão da própria

esperança, àqueles que a pedem” (CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ,

Instrução sobre a vocação eclesial do Teólogo (IIa parte, n. 6), São Paulo

1990, 7).

1.1- O que é a Teologia?

A Teologia1 (etimologicamente: “discurso sobre Deus” ou “ciência de

Deus”) pode ser definida como o “intelecto” ou o “saber da fé”, segundo a

concepção agostiniana (e anselmiana), acolhida por Tomás de Aquino.

Antes da teologia existe o “mistério” e a “fé”.

Aprofundando: Na idade Média (século XIII) a Teologia era chamada de

“Sagrada Doutrina” ou “Ciência Divina” ou “Sacra Fidei (Sagrada Fé)” ou

“Intellectus Fidei”... Abelardo já usa o vocábulo Theologia no sentido

técnico de um estudo argumentado da doutrina cristã. Mas, São Tomás de

Aquino expressa algumas reservas quanto ao uso desta palavra, pois não

deseja confundir a Teologia decorrente da revelação cristã, com a parte da

filosofia, que Aristóteles chama de Teologia (cf. S. Theol. I q. 1 a. 1, r.2.

Atualmente chama-se de teologia natural ou Teodicéia a parte da filosofia

que trata da questão de Deus). Os medievais distinguiam entre res (=

realidade) e vox (= nome).

O “Mistério” se revelou ao homem (Revelação). A acolhida do Mistério

na vida do homem solicita a entrega, a confiança, o abandono. A fé é a

1 Para Platão (427-347 a.C) o termo teologia significava o estudo crítico da mitologia. “Teologia seria, pois,

uma mito-logia rigorosamente racional, uma hermenêutica filosófica dos mitos” (C. BOFF, Teoria do

Método Teológico, Petrópolis 1998, 549). Para Aristóteles (384-322 a.C) usa o termo teologia para designar

a reflexão sobre o « ser supremo » ou « Deus », cf. BOFF, Teoria do Método Teológico, 551.

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resposta positiva do homem ao Mistério que se revela. Resposta que

significa: acolhida do mistério e entrega de vida.

Dei Verbum n. 5: “A Deus que revela é devida a ‘obediência da fé’ (Rom.

16,26; cfr. Rom. 1,5; 2 Cor. 10, 5-6); pela fé, o homem entrega-se total e

livremente a Deus oferecendo ‘a Deus revelador o obséquio pleno da

inteligência e da vontade’ e prestando voluntário assentimento à Sua

revelação. Para prestar esta adesão da fé, são necessários a prévia e

concomitante ajuda da graça divina e os interiores auxílios do Espírito

Santo, o qual move e converte a Deus o coração, abre os olhos do

entendimento, e dá ‘a todos a suavidade em aceitar e crer a verdade’. Para

que a compreensão da revelação seja sempre mais profunda, o mesmo

Espírito Santo aperfeiçoa sem cessar a fé mediante os seus dons”

O Mistério, uma vez acolhido, solicita todas as faculdades do homem,

envolve o homem por inteiro. Isto inclui o intelecto.

O Mistério produz a fé. O Mistério e a fé produzem a verdadeira

teologia.

Revelação do mistério

Mistério – que é Jesus Cristo

Acolhido na fé

Capaz de gerar um saber que é singular: Teologia.

A Teologia nasce do esforço amoroso do homem que crê. Este homem

pensa o mistério, deseja compreende-lo, deseja dizê-lo... A teologia nasce

da fé e conduz ao amadurecimento da fé. Teologar significa refletir

sistematicamente com a razão iluminada pela fé (lumen fidei) sobre o

evento e conteúdo da Revelação.

O Mistério é o fundamento, a fonte de onde jorra a teologia, sua “res”

(objeto de reflexão).

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À luz de tudo o que foi dito, compreendemos por que a Igreja não pode

não ser teóloga. Os teólogos na Igreja encarnam este apaixonamento pelo

mistério. São Tomás de Aquino os compara aos olhos da Igreja2. O que gera

os teólogos é o amor pelo Mistério.

A Teologia não nasce da iniciativa do homem, não é um êxito da razão humana, mas isto não significa que não se possa fazer um discurso religioso. Podemos falar de um discurso teológico natural, fruto apenas do intelecto. Este tipo de discurso pode ser útil para o discurso teológico cristão. Por exemplo, se não existisse o conceito “Deus”, não poderíamos nem mesmo afirmar que “Deus fala ao homem”. Segundo Santo Tomás, o discurso sobre Deus é o vértice a atividade intelectual do homem, ápice de todo o conhecimento humano. O vértice da metafísica é a teologia natural, compreendida como especulação filosófica. A teologia natural busca refletir sobre Deus, definindo-o como máxima perfeição, ato puro, motor imóvel. O Concílio Vaticano I recorda que o homem pode através da luz da razão, por meio das coisas criadas, conhecer a Deus uno e verdadeiro, criador de todas as coisas e Senhor

Constituição Dei Filius, in: DH 30263: “Se alguém disser que o Deus uno e verdadeiro, criador e Senhor nosso, não pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, por meio das coisas criadas: seja anátema”.

Aprofundando: qual a diferença entre intelecto e razão? O intelecto é a faculdade pela qual um ser espiritual conhece o

universal, o imaterial, a própria essência das coisas. O intellectus pode significar também o simples e imediato olhar da inteligência (uma espécie de intuição ou intuitus: segundo Tomás, intuitus significa a capacidade de englobar por um ato único a totalidade do objeto) 4.

A palavra ratio possui dois significados ao mesmo tempo inseparáveis e diferentes. Ou se trata da faculdade de pensar, ou, então, se trata da própria realidade, aquilo pelo qual ela é aquilo que ela é5. 2 Cf. TOMÁS DE AQUINO, Super Primam Epistolam ad Corinthios Lectura, cap. 12, lect,

3, in: Super Epistolas S. Pauli Lectura, Taurini-Romae 1953, p. 375 (n.739). 3 Neste nosso trabalho, utilizaremos a sigla DH para nos referirmos ao Compêndio dos

Símbolos, definições e declarações de fé e moral (Organizado por H. Denzinger), São

Paulo 2006. 4 Cf. M.-J. NICOLAS, Vocabulário da Suma Teológica, in: TOMÁS DE AQUINO, Suma

Teológica (vol. I), São Paulo 2001, p. 86. 5 Cf. NICOLAS, Vocabulário da Suma Teológica, p. 96.

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No primeiro sentido, a razão se distingue do intelecto. A razão indica a função discursiva da inteligência humana, diferente da função intuitiva própria do intelecto. Pela razão o homem avança de uma verdade a outra por um enquadramento denominado raciocínio.

O conhecimento do homem é construído através de argumentos, de

conexões, de silogismos.... é um processo que precisa de tempo para se

realizar.

O homem teológico (homo theologicus) é aquele que raciocina no

âmbito da fé.

Pode-se dizer que a Teologia é graça, na medida em que não é o

homem que retira o véu do mistério, mas é o próprio Deus quem se revela

e convida o homem à fé. Deus revela o seu segredo, a sua intimidade...

Quando se diz que Teologia é graça, exclui-se a possibilidade de que ela seja

um dever ou um direito do homem. Já que o objeto da teologia não é

proporcional ao intelecto natural do homem.

Deus se revelou livremente, neste sentido, os teólogos dizem que a

revelação não era uma necessidade. A teologia é, então, um fruto de uma

decisão livre de Deus de revelar-se:

Dei Verbum n. 2: “Aprouve a Deus. na sua bondade e sabedoria, revelar-se

a Si mesmo e dar a conhecer o mistério da sua vontade (cf. Ef 1,9), segundo

o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai

no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina (cfr. Ef. 2,18;

2 Ped. 1,4). Em virtude desta revelação, Deus invisível (cfr. Col 1,15; 1 Tim

1,17), na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos (cfr. Ex 33, 11;

Jo 15,1415) e convive com eles (cfr. Bar 3,38), para os convidar e admitir à

comunhão com Ele. Esta ‘economia’ da revelação realiza-se por meio de

ações e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as

obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam

a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua

vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido. Porém, a

verdade profunda tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos

homens, manifesta-se-nos, por esta revelação, em Cristo, que é,

simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a revelação”.

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Na sua relação com o mistério revelado, a razão humana deve

conservar o sentido do mistério, no exercício da sua atividade, a razão deve

reconhece a transcendência do objeto da teologia e seus próprios limites,

deve contemplar com respeito e amor este objeto, pode-se falar de uma

razão orante , adorante ou contemplativa, como o ideal para a teologia. O

grande inimigo da razão, no teologar, é a presunção, “mater erroris”6. A

razão presunçosa se apresenta como medida da realidade e referência para

a verdade, ela já possui a verdade, não precisa busca-la humildemente.

Pela teologia, a razão não se torna Senhora ou patroa do mistério, não

toma posse do mistério, o mistério continua tal, transcendente, inefável,

mesmo que ele se deixe tocar pela razão humana, iluminada pela fé. O

mistério se revela, mas mantém sempre o seu rosto velado.

Santo Tomás, na Suma contra os Gentios (S. c. G. I, 8, 4), cita Santo

Hilário de Poitiers:

“Começa tu crendo nisto, prossegue, persiste. Mesmo sabendo que

não chegarei, contudo, alegrarme-ei por ter progredido. Quem

piedosamente busca a verdade infinita, mesmo que algumas vezes não a

alcance, progride sempre na sua busca. Mas, não queira penetrar naquele

mistério, nem mergulhar no arcano da geração eterna, presumindo

compreender a suprema inteligência: saibas, que há coisas

incompreensíveis” (II Sobre a Trindade 10; PL 10, 58C-59A)”

Cristo é ápice da revelação divina:

Dei Verbum n. 4: “Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos pelos profetas, falou-nos Deus nestes nossos dias, que são os últimos, através de Seu Filho (Hb 1, 1-2). Com efeito, enviou o Seu Filho, isto é, o Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para habitar entre os homens e manifestar-lhes a vida íntima de Deus (cfr. Jo 1, 1-18). Jesus Cristo, Verbo feito carne, enviado ‘como homem para os homens’ (3), ‘fala, portanto, as palavras de Deus’ (Jo 3,34) e consuma a obra de salvação que o Pai lhe mandou realizar (cfr. Jo. 5,36; 17,4). Por isso, Ele, vê-lo a Ele é ver o Pai (cfr. Jo 14,9), com toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com

6 Summa contra Gentiles, I, 5: “(praesumptio), quae est mater erroris”. Cf. também I.

BIFFI, Il mistero dell’esistenza cristiana: conformi all’immagine del Figlio, Milano 2002,

p. 21.

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palavras e obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa ressurreição, enfim, com o envio do Espírito de verdade, completa totalmente e confirma com o testemunho divino a revelação, a saber, que Deus está conosco para nos libertar das trevas do pecado e da morte e para nos ressuscitar para a vida eterna. Portanto, a economia cristã, como nova e definitiva aliança, jamais passará, e não se há de esperar nenhuma outra revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (cfr. 1 Tm 6,14; Tt 2,13).

Como Deus se revela? Através de palavras e gestos (“voces et res”), a

revelação não é sinônimo apenas de revelação não é sinônimo apenas de

transmissão de ideias e conceitos, mas ele acontece também através de

gestos simbólicos. Deus se revela na história, em acontecimentos

concretos, perceptíveis na história da salvação. Os Padres gregos afirmam

que Deus se revela mediante a “economia” da história salvífica.

Cristo é o objeto e o sujeito da revelação Divina. Ele é a Palavra que

Deus quis dirigir à humanidade, Palavra viva, eterna e divina.

Aprofundando: A Palavra de Deus. A Palavra (dabar), no AT, não é

apenas um som emitido pelo homem e que possui um significado, não

significa apenas um conceito abstrato, mas é uma expressão do “coração”,

isto é, do centro unitário da pessoa. “Dabar” significa ao mesmo tempo

“logos” (pensamento, palavra) e “pragma” (fato, ação). Tudo isso que

dissemos, vale tanto para o homem, quanto para Deus. A Palavra divina é

uma palavra viva e eficaz, exprime a ação criativa de Deus, por exemplo: "Pela

Palavra de Deus foram feitos o os céus " (Salmo 33,6; cf. também a primeira

narração da criação em Gn 1,1-2,4a). Ela é mediadora da ação e da revelação

de Deus. Alguns textos indicam que esta Palavra é um ser pessoal. No salmo

147,15, lemos que: "Manda sobre a terra a sua palavra, o seu mensageiro

corre veloz". A palavra de Deus não parece se identificar completamente com

Deus, mas “possui” o seu poder. Podemos afirmar que progressivamente a

Palavra de Deus vai sendo compreendida como mediadora da criação, no

sentido de que é por meio dela, que Deus confere o “ser” (existir) à criação e

a ordena.

Revelação é comunicação, quando dizemos que Deus se revelou,

dizemos que Deus se auto-comunicou, ele não apenas oferece um conjunto

de verdades, mas ele se oferece ao homem, para que o homem o

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experimente, através da sua Palavra, dos seus gestos, para que o homem

entre em relação com Ele.

A teologia afirma que toda a Revelação é Cristológica, pois o dar-se a

conhecer de Deus, o seu autorevelar-se, realiza-se por meio do Verbo,

inclusive antes da encarnação. A Revelação entendida deste modo, seria

uma manifestação progressiva do dom de Cristo, da graça de Cristo.

Hb 1,1s: “Muitas vezes e de muitas formas, Deus falou no passado a nossos

pais por meio dos profetas. Nesta etapa final nos falou por meio do Filho, a

quem nomeou herdeiro de tudo, por quem criou o universo”

Podemos falar de dois caráteres da Teologia7:

- caráter catafático ou positivo: expressa tudo o que pode ser dito,

transmitido acerca de Deus.

-caráter apofático8 ou negativo: exprime tudo o que Deus não é, já que

ele supera tudo o que o homem pode compreender... Exemplo: Deus é

imortal = Deus não é mortal; Deus é infalível = Deus não falha, não tem

defeitos.... e assim por diante.

Quanto mais a teologia se aproxima de Deus, mais ela cresce na

consciência da diferença infinita que existe entre Deus e o criado (incluindo

o homem), isto a convida ao silenciar, mas ao mesmo tempo, quanto mais

ela se depara com Deus, mas ela necessita dizê-lo. Esta situação paradoxal,

é evidenciada por Tomás de Aquino no seu comentário ao De Trinitate de

Boécio (cf. Super De Trinitate pars 1 q. 2 a. 1 arg 6), quando afirma que “a

Deus se deve a honra, esta honra se presta conservando o Seu segredo, isto

é, o que foi revelado”; o pseudo-Dionísio, na mesma linha escreve:

“honramos com o segredo, aquilo que está acima de nós”; São Jerônimo:

“O Deus, com o silêncio te louvo”. Todas estas afirmações parecem ir contra

a possibilidade de um discurso teológico. Santo Tomás, combate este

7 No Oriente cristão prevalece uma teologia que poderia ser chamada apofática ou negativa, que

tenta preservar ao máximo a áurea do mistério. No Ocidente, prevalece uma teologia que poderia,

ser descrita, especialmente a partir da teologia escolástica, como uma teologia catafática ou

positiva. 8 Cf. Y. SPITERIS, Apofatismo, in: Lexicon – Dicionário Teológico Enciclopédico, São Paulo

2003, 41-42.

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pensamento, afirmando que o não refletir sobre Deus, o não teologar, seria

um sinal de descaso, de indiferença, com Deus. O Silêncio teológico deve

ser entendido como sendo a consciência que o teólogo deve possuir, de que

por mais que ele se esforce, tudo o que ele possa compreender e dizer a

respeito de Deus, é como uma gota de água, diante do oceano da verdade

divina. Nunca chegaremos a compreender inteiramente a Deus (só o

próprio Deus pode compreender-se inteiramente).

Para aprofundar: A diferença entre compreender e entender em

Santo Tomás de Aquino: Santo Tomás afirma que comprehendere

significaria quase um tomar posse de uma verdade (prendere = tomar

posse). Compreender uma verdade (ou um ser) significaria, então, ser capaz

de explicá-la em todos os seus aspectos. Neste caso, um homem pode

compreender Deus? Não. Mas, o homem pode entender Deus. Entender

provém do latim intus legere, intus ire, isto é, ler o que está dentro, ir ao

interior da realidade e conhecê-la.

Deus não se revela de um modo que o homem possa compreendê-lo

inteiramente: a distância entre Deus e o homem é infinita, mesmo o

homem no céu, o beato, não chegará jamais ao final da contemplação de

Deus; Deus será sempre, de um certo modo, uma novidade para ele, o

homem não se cansará de surpreender-se na contemplação divina, neste

sentido, podemos dizer que o céu será uma eterna surpresa. Eternamente

o homem se surpreenderá com Deus, contemplará o Senhor e encontrará

nele a sua bem-aventurança eterna.

Mas, apesar do que acabamos de dizer, devemos nos recordar que

Deus e o seu mistério não é “indizível”. Deus quis se revelar ao homem, com

uma linguagem compreensível ao homem, com gestos que pudessem ser

entendidos pelo homem...

Para aprofundar: Santo Tomás de Aquino fala de dois modos de

conhecimento de Deus.

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Existe um saber teológico que acontece “per modum cognitionis” (pelo

modo cognitivo) , que é obtido “per studium” (pelo estudo)9. Os princípios

deste modo de conhecimento de Deus, provém da Revelação (cf. S. Theol. I

, q. 1, a. 6, arg. 3 e ad. 3). Este tipo de saber, exige a graça da fé e um grande

esforço do homem, que através do estudo teológico, participa da luz da

auto-contemplação divina. Através da fé, o teólogo busca a face de Deus.

Por isso, pode-se dizer que a teologia precede, tende para a visão beatífica.

Pela teologia explica-se, com todos os limites humanos e científicos, a

verdade, que será contemplada perfeitamente na visão beatífica (cf. 3 Sent.

25, 2, 1, 3 c).

Existe também um segundo modo de saber teológico (cf. S. Theol. I, q.

1, a. 6, ad. 3) que acontece per modum inclinationis10 (por uma inclinação,

pela divinização ou pela santificação pessoal), através do qual o sujeito vai

crescendo na “sintonia de vida” com o objeto do saber teológico (Deus).

Esta teologia-sabedoria é um dom divino, dom do Espírito Santo,

caracteriza, segundo a doutrina de Paulo, o homem espiritual (santo). O

conhecimento não provém do simples “aprender” (fruto do estudar), mas

do experimentar. Este conhecimento deriva do amor e é mais intrínseco ao

homem e mais perfeito do que o conhecimento adquirido “per modum

studium”.

A encarnação de Cristo é o fundamento teológico do discurso

teológico, Deus se fez homem, assumiu uma natureza humana, falou a

língua dos homens, e através da sua humanidade, realiza-se a plenitude da

Revelação.

A Razão humana não deve buscar uma desculpa na infinita diferença

entre Deus e o homem, para não pensar o mistério, para não refletir sobre

o mistério revelado. Só uma razão preguiçosa ou arrogante, se fecha à

9 Cf. INOS BIFFI, Teologia in San Bernardo e in San Tommaso, in: Aa. Vv.,

Sapere e contemplare il mistero. Bernardo e Tommaso (Atti di

inaugurazione della Cattedra Benedetto XVI di teologia e spiritualità

cisterciense – Abbazia di Santa Croce in Gerusalemme – Angelicum – 8 a

10 novembre 2007), Milano 2008, pp. 22-27. 10 Cf. INOS BIFFI, Teologia in San Bernardo e in San Tommaso, pp. 27-29.

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“revelabilidade” de Deus. Revelando-se Deus, continua envolto na esfera

do mistério.

Pode-se dizer que contemplar = ver a Deus com os olhos de Cristo

(amor filial). No caso do homem, mesmo participando deste olhar, não

pode compreender a Deus, como Deus compreende a si mesmo, caso

contrário o homem seria Deus. Esta realidade não ocorrerá nem mesmo na

eternidade beata, quando o intelecto humano será glorificado pela graça.

O beato, como dissemos, viverá imerso em um estupor eterno, ele se

maravilhará eternamente com a grandeza, beleza, bondade... de Deus. “O

Espírito explora tudo, inclusive as profundidades de Deus (...) Ninguém

conhece o próprio de Deus senão o Espírito de Deus” (1 Cor 2,10-11).

Aprofundando: A fé, entendida como uma luz de conhecimento,

chegará à sua plenitude e ao mesmo tempo ao seu fim, na visão beatífica

(céu). A fé tende para a visão do mistério crido (cf. 1 Jo 3,2: “Amados, agora,

somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que haveremos de ser.

Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele,

porque haveremos de vê-lo como ele é”).

Se de um lado nós temos Deus que se revela, se comunica (comunica-

se, revelando-se, e, revela-se, comunicando-se, através da sua Palavra e de

sinais-gestos na história concreta), do outro, nós temos o homem como seu

interlocutor, como ouvinte, capaz de acolher esta revelação. Podemos

entender esta capacidade do homem em dois níveis:

- o homem é capaz (capacidade natural) de conhecer naturalmente

através da sua razão, a partir da criação (Revelação natural). Neste sentido,

pode-se dizer que o Homem é ouvinte de Deus (ordem natural), por meio

da natureza, das criaturas, da sua própria consciência;

- o homem é capacitado pela graça de Deus (capacidade sobrenatural)

a acolher e aderir à Revelação (Revelação sobrenatural), e a aderir pela fé,

à Revelação.

Não devemos confundir a revelação natural com a revelação

sobrenatural: o homem não tem o direito de receber a graça, não pode

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exigí-la, ela é sempre dom gratuito de Deus, manifestação da sua bondade

infinita.

Para aprofundar11: os escolásticos distinguiam 3 tipos de luzes que podem

iluminar a razão humana: 1- Lumen rationis (luz da razão): é a luz natural

que permite à razão humana o conhecimento natural da realidade; 2-

Lumen fidei (luz da fé): é a luz sobrenatural que permite à razão humana

adentrar no objeto da revelação; 3- Lumen gloriae (luz da glória): trata-se

da luz beatífica que permitirá à razão humana ver a face de Deus no céu.

Todos os homens são chamados por Deus à salvação. Deus chama o

homem à salvação através do seu Verbo, através da graça do seu Verbo

encarnado. Mesmo que o homem não conheça o nome de Cristo, se ele

busca sinceramente a Deus, não lhe faltará certos raios da luz de Cristo,

para que ele possa chegar à salvação. Só Cristo salva, mesmo sabendo que

Deus pode conduzir os homens à salvação por muitas estradas, a salvação

é sempre em Jesus Cristo, mesmo que o homem não o conheça

explicitamente (pode-se dar um conhecimento implícito de Deus, pela ação

da graça divina. Quem busca a verdade, recebe do Pai uma “luz crística”).

O Cristão não salva ninguém, só Cristo salva, mas ele (cristão) deve anunciar

Jesus Cristo, como único Salvador.

Instrução Dominus Iesus da Congregação para a Doutrina da Fé (2001) n.

14: “Deve, portanto, crer-se firmemente como verdade de fé católica que a

vontade salvífica universal de Deus Uno e Trino é oferecida e realizada de uma

vez para sempre no mistério da encarnação, morte e ressurreição do Filho de

Deus”.

11 Cf. R. FISICHELLA, Lumen Fidei (Gloriae, Rationis), in: Lexicon –

Dicionário Teológico Enciclopédico, São Paulo 2003, 450-451.

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1.2- Teologia Sistemática

Em 1 Pd 3,15 o cristão é exortado a oferecer as razões da sua fé e da

sua esperança ao mundo. Em outras palavras, o autor da carta afirma que

a fé cristã pode ser apresentada de forma racional.

1 Pd 3,15: “santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre

preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que

há em vós”.

Por esta razão, desde o II século, muitos teólogos (Aristides, Justino,

Taciano, Atenágoras) buscaram na filosofia um instrumento para

apresentar de modo racional a fé cristã. A primeira apresentação da fé

cristã que poderíamos chamar de sistemática, foi realizada por Santo Irineu

de Lyon († por volta do ano 200) na sua obra Adversus haereses (Contra as

heresias), composta por volta do ano 180. Nesta obra, Irineu compara o

conteúdo e a forma da fé católica com a gnose valentiniana. Ele foi definido

por muitos, como o fundador da teologia dogmática12.

Nos primeiros séculos não havia uma divisão da Teologia em diversas

disciplinas, como hoje. Uma certa estrutura sistemática da Teologia nasce na

idade média (Adágio: Distinguir, mas não dividir). Por volta da metade do

século XII acontece a separação do Direito Canônico (Decretum Gratiani,

Bologna, 1142?). Na idade média a missão do professor de teologia era

comentar a Sagrada Escritura, iluminado pelos Padres da Igreja (Tradição) e

pelas decisões conciliares (Magistério). Um exemplo deste trabalho pode ser

apreciado na obra de Pedro Lombardo: Liber sententiarum. O ideal do teólogo

era a construção de um Summa Theologica, o que fez Santo Tomás de Aquino.

Nos séculos XVI e XVII, o avanço da ciência histórica e da filologia, faz

com que se separem da teologia a História da Igreja e a Exegese. Por volta do

século XVII surge a expressão “teologia dogmática (e escolástica)” dividida

em dois âmbitos a dogmática positiva (descrição dos dogmas) e a dogmática

especulativa (explicação sistemática dos dogmas). No século XVII-XVIII surge

a Teologia Moral como disciplina central da Teologia prática (Tudo indica que

foi o teólogo luterano Georg Calixt, † 1656, que concebeu pela primeira vez a

teologia dogmática como uma disciplina autônoma e a distinguiu da Teologia

12 Cf. M. SCHULZ, Dogmatica, Lugano 2002, p. 23.

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15

Moral). No século XIX surge a teologia apologética, mais tarte conhecida

como Teologia fundamental (cujo objetivo é fundamentar a possibilidade de

uma revelação definitiva de Deus na história. O iluminismo criticava a

possibilidade mesma de uma revelação divina de Deus na história).

A dogmática possuía dois grandes métodos: histórico (dogmática

positiva) e filosófico ou especulativo (dogmática especulativa). Depois do

Concílio Vaticano II, em vista de um ensino mais didático da Teologia, solicita-

se que os professores de teologia não isolem a doutrina da história.

Optatam Totius (Documento sobre a formação sacerdotal) n. 16: “A

teologia dogmática ordene-se de tal forma que os temas bíblicos se

proponham em primeiro lugar. Exponha-se aos alunos o contributo dos

Padres da Igreja oriental e ocidental para a Interpretação e transmissão fiel

de cada uma das verdades da Revelação, bem como a história posterior do

Dogma tendo em conta a sua relação com a história geral da Igreja. Depois,

para aclarar, quanto for possível, os mistérios da salvação de forma

perfeita, aprendam a penetra-los mais profundamente pela especulação,

tendo por guia Santo Tomás, e a ver o nexo existente entre eles. Aprendam

a vê-los presentes e operantes nas ações litúrgicas e em toda a vida da

Igreja. Saibam buscar, à luz da Revelação, a solução dos problemas

humanos, aplicar as verdades eternas à condição mutável das coisas

humanas e anuncia-las de modo conveniente aos homens seus

contemporâneos”.

A Teologia sistemática é o refletir sobre o mistério, buscando articular

os diversos aspectos e conteúdos, deste mistério segundo as suas conexões

lógicas.

Constituição Dei Filius, Concílio Vaticano I, DH 3016: “Decerto, a razão, iluminada pela fé, quando busca diligente, pia e sobriamente, consegue, com a ajuda de Deus, alguma compreensão dos mistérios, e esta frutuosíssima, quer pela analogia das coisas conhecidas naturalmente, quer pela conexão dos próprios mistérios entre si e com o fim último do homem; nunca, porém, se torna capaz de compreendê-los como compreende as verdades que constituem o seu objeto próprio. De fato, os mistérios divinos por sua própria natureza excedem de tal modo a inteligência criada, que, mesmo depois de transmitidos por revelação e

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acolhidos pela fé, permanecem ainda encobertos com o véu da mesma fé e como que envoltos em certa escuridão, enquanto durante esta vida mortal “somos peregrinos longe do Senhor, pois caminhamos guiados pela fé e não pela visão” [2Cor 5,6s]”.

A Teologia Sistemática nasce do esforço de identificar as razões de

Deus, a lógica contida no ato e no conteúdo da Revelação de Deus. A

Sistemática busca individuar o “Ordo” (Ordem) do Mistério revelado na

história. Examinando e refletido sobre cada momento, não pode perder de

vista o todo. O todo da revelação é Cristológico, pois tudo Deus se revelou

ao homem através do seu Logos.

Observações sobre a noção de Sistema.

Sistema= É um conjunto de elementos interdependentes de modo a

formar um todo organizado. Uma caracaterística comum de um sistema é

que normalmente existe um fluxo de informação-energia-matéria entre os

órgãos do sistema.

Sinergia é a boa integração do sistema.

A teologia sitemática é um sistema de tipo conceitual (e não físico).

O caminho de reflexão parte da Sagrada Escritura (alma da teologia),

percorre a história da teologia identificando os elementos da Sagrada

Tradição (Padres, Doutores da Igreja, fontes litúrgicas, etc.) e o

ensinamento do Magistério. Une-se, neste itinerário o método histórico ao

especulativo.

Toda a teologia é cristológica ou crística. Cristo é a Palavra (Logos) que

o Pai quis dirigir ao homem13.

Teologia = Reflexão sobre o Mistério revelado = Cristo

A partir do Mistério de Cristo é que podemos “subir” na direção da

Trindade (Cristo nos revela o Pai e o Espírito). A partir de Cristo podemos

compreender a antropologia teológica (cf. Gaudium et Spes n. 22), pois é

Ele quem revela ao homem a sua verdadeira identidade.

13 Cf. INOS BIFFI, Grazia, Ragione e Contemplazione. La teologia: le sue

forme, la sua storia, Milano 2000, pp. 22-23.

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A teologia sistemática organizou a reflexão teológica em tratados14,

eles nos ajudam a compreender os nexos lógicos o Mistério revelado. Os

tratados não são percursos paralelos, mas se entrelaçam. Os tratados estão

intimamente interligados.

Entre os tratados, podemos dizer que os dois primeiros são o Tratado

da Trindade (Revelada e compreendida à Luz de Cristo) e o tratado da

Cristologia (da qual podemos “ascender” na direção da Trindade). A partir

destes tratados podemos entender todos os demais: sacramentos (brotam

de Cristo), eclesiologia (a Igreja é fundada por Cristo e espelho da

comunhão trinitária no mundo), antropologia teológica (contida

implicitamente na Cristologia), etc...

1.3- As fontes da Teologia

A teologia fundamental apresenta os fundamentos da Teologia,

indicando as fontes da teologia e descrevendo o fato de que estas fontes,

14 Cf. M. SCHULZ, Dogmatica, Lugano 2002, pp. 32-33.

ÁREA CRÍSTICA

Trindade

Cristologia

Igreja,

Sacramentos

Antropologia

Teológica

[..]

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são testemunhas de uma única revelação, que atingiu o seu ápice em

Cristo15.

As fontes da teologia são a Sagrada Escritura, a Sagrada Tradição

(tradições antigas, orações, liturgia, arte, espiritualidade, escritos de santos

e doutores da Igreja) e o Magistério da Igreja.

Dei Verbum nn. 9-10: “. A Sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura relacionam-se e comunicam estreitamente entre si. Com efeito, ambas derivando da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos apóstolos, para que, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação; donde acontece que a Igreja não tira a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas só da Sagrada Escritura. . Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual afeto de piedade. 10. A Sagrada Escritura e a Sagrada Tradição constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja; aderindo a este, todo o povo santo persevera unido aos seus pastores na doutrina e na comunhão dos apóstolos, na fração do pão e nas orações (cf. At 8,42 gr.), de tal modo que na conservação, atuação e profissão da fé transmitida haja uma singular colaboração dos pastores e dos fiéis. Porém, o múnus de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas está a seu serviço, não ensinando senão o que foi transmitido, enquanto, por mandado divino e com assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, guarda santamente e expõe fielmente, haurindo deste único depósito da fé todas as coisas que propõe à fé como divinamente reveladas. É claro, portanto, que a Sagrada Tradição, a Sagrada Escritura e o Sagrado Magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo plano da Deus, de tal maneira se relacionam e se associam que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu modo sob a ação do mesmo Espírito Santo, colaboram eficazmente para a salvação das almas”.

15 Cf. SCHULZ, Dogmatica, p. 24.

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Lendo os textos do Concílio Vaticano II, podemos dizer que as fontes

da teologia são na verdade uma só: a Revelação (a Escritura recebida na

Tradição e interpretada pelo Magistério).

1.3.1- Sagrada Escritura

No projeto de revelação de Deus, ele quis inspirar alguns homens a

escrever o que nós chamamos de Bíblia. O Concílio Vaticano II afirma que o

autor principal (primário) da Escritura Sagrada é Deus. Mas, recorda que os

autores humanos também são verdadeiros autores das Escrituras.

DV 11: “As coisas reveladas por Deus, que se encontram escritas na Sagrada Escritura, foram inspiradas pelo Espírito Santo. Com efeito, a santa Mãe Igreja, por fé apostólica, considera como sagrados e canônicos os livros inteiros tanto do Antigo como do Novo Testamento com todas as sua partes, porque, de terem sido escritos por inspiração do Espírito Santo (cf. Jo 20,31; 2Tm 3,16; 2Pd 1,19-21; 3,15-16), têm Deus por autor e como tais foram confiados à própria Igreja. Todavia, para escrever os livros Sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na posse das suas faculdades e capacidades, para que, agindo ele neles e por meio deles, pusessem por escrito como verdadeiros autores, tudo aquilo e só aquilo que ele quisesse. E assim, como tudo quanto afirma os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser considerado como afirmado pelo Espírito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os Livros da Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus, causa da nossa salvação, quis que fosse consignada nas sagradas Letras. Por isso, ‘‘toda a Escritura divinamente inspirada é útil para ensinar, para argüir, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as obras boas’’ (2Tm 3,16-17 gr.)”.

Neste texto encontramos uma definição de inspiração importante:

“para escrever os livros Sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens na

posse das suas faculdades e capacidades, para que, agindo ele neles e por

meio deles, pusessem por escrito como verdadeiros autores, tudo aquilo e

só aquilo que ele quisesse”.

Outro conceito que vem à tona, é o de “inerrância” (sem erros): no que

concerne às verdades relevantes para a salvação, a Escritura Sagrada não

possui erros.

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1.3.2- Sagrada Tradição16

A Sagrada Escritura não afirma que ela seja a única fonte e a

testemunha exclusiva da Revelação. Uma afirmação desta natureza não

seria possível, pois sabemos que a Bíblia é fruto da inspiração divina, mas

também de uma história que viu a formação dos textos sagrados, ser

precedida por um processo de testemunho e de transmissão não escrita do

Evento Cristo.

Como se sabe, a exegese afirma que o primeiro livro do Novo

Testamento – na forma como conhecemos hoje – foi redigido por volta do

ano 5117 (ou 52) d. C. Isso significa que os apóstolos e a igreja primitiva

anunciavam e viviam a Palavra de Deus que lhes foi confiada, antes que

fosse colocada por escrito: “Traditio prior Sanctae Scripturae”.

A própria Escritura confirma esta precedência de uma transmissão

oral da Revelação de Cristo, quando recorda a missão de anúncio que Cristo

confiou a seus Apóstolos e discípulos (cf. Mt 28,18-20 e textos paralelos; Jo

17,18). Paulo nos oferece um texto contundente sobre a importância da

transmissão oral da Revelação, que precede a composição do texto escrito

do Novo Testamento: “A vós, de fato, transmiti [pare,dwka], antes de mais

nada, o que eu mesmo recebi [pare,labon]” (1 Cor 15,3). O apóstolo dos

gentios escrevendo ao seu discípulo Timóteo, fala do necessário

procedimento de transmissão oral da Revelação, próprio do período

apostólico e do período pós-apostólico: “O que aprendeste de mim na

presença de numerosas testemunhas, transmite-o [para,qou] a homens

fiéis, que, por sua vez, que por sua vez, serão capazes de ensiná-lo a outros

mais” (2 Tm 2,2). Em outro texto encontramos o termo tradição (parádosis):

“irmãos, ficai inabaláveis e guardai firmemente as tradições [parado,seij]

que vos ensinamos, de viva voz ou por carta” (2 Ts 2,15).

R. Fisichella escreve que:

16 Resumo de um artigo: J. P. de M. DANTAS, Em busca do significado teológico da “Sagrada

Tradição”, in: Atualidade Teológica (2012), 488-502. 17 S. CIPRIANI, Le lettere di Paolo, Assisi 1999, 53: “... verso la fine del 51 o agli inizi del

52”. Cf. também M. ORSATTI, Introduzione al Nuovo Testamento, Lugano 2005, 252 e R.

F. COLLINS, La prima lettera ai Tessalonicesi, in: R. E. BROWN- J. A. FITZMEYER- R. E.

MURPHY, Nuovo Grande Commentario Biblico, Brescia 2002, 1010.

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“Jesus de Nazaré (...) revelador e revelação (...), na Tradição, se torna de novo, sujeito e conteúdo. Ele está na origem histórica na Tradição, a sua pessoa é o conteúdo essencial que deve ser transmitido. O Espírito que na Revelação permitia a Cristo estar em sintonia com o projeto original do Pai, na transmissão da Revelação, se torna o princípio fundamental. Desenvolvimento da Tradição, compreensão do seu significado mais profundo e atualização da sua potencialidade, são obras do Espírito (...) Kyrios Christós tradit seipsum per apostolum in Spiritu santo” 18.

L. Scheffczyk recorda que o conteúdo desta Tradição, consiste na

transmissão da verdade recebida de Cristo, que possui uma dimensão

didática e inclui uma série de instruções sobre a fé e os costumes (cf. Ef.

5,21-33). Na carta aos Romanos, lemos que: “a fé vem da pregação, e a

pregação é o anúncio da palavra de Cristo” (Rm 10,17). O cristianismo

jamais se apresentou somente como uma religião do livro, mesmo

consciente do valor essencial da Sagrada Escritura19.

O princípio da Tradição foi reconhecido na sua essência no período dos

padres apostólicos e apologistas, num período em que, por causa da falta

de uma formação conclusiva do cânone, os testemunhos

neotestamentários ainda não podiam ser chamados de (a) “Escritura”. A

primeira carta de Clemente, Inácio de Antioquia e S. Justino referem-se ao

anúncio oral dos Apóstolos20. A Igreja primitiva não considera que o

testemunho apostólico se limite aos documentos escritos provenientes dos

apóstolos ou a eles atribuídos. A tradição oral existe antes da Escritura, e

esta última surge, de certo modo, para conservar a primeira.

Durante o segundo e o terceiro séculos, se observa uma crescente

evolução do conceito de tradição. O princípio da Tradição era válido para S.

Irineu (†202) 21 e a sua luta contra as tradições secretas22. Contra os

18 R. FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità. Saggio di teologia fondamentale,

Bologna 1989, 111. 19 L. SCHEFFCZYK, Fondamenti del dogma. Introduzione alla dogmatica, Città del

Vaticano 2010, 115. 20 SCHEFFCZYK, Fondamenti del dogma, 115-116. 21 Cf. H. HOLSTEIN, La tradition des âpotres chez St. Irénée, in: Recherches de Science

Religieuse 36 (1949), 229-270. 22 SCHEFFCZYK, Fondamenti del dogma, 116. Cf. também J. RATZINGER, Primato,

Episcopato e Successio Apostolica, in: K. RAHNER-J. RATZINGER, Episcopato e Primato,

Brescia 2007, 53-57.

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gnósticos, Irineu formula o critério da regula fidei, cujo conteúdo coincide

com a totalidade da tradição apostólica23. Esta não inclui apenas o

Querigma, mas se expande até indicar também a interpretação eclesial da

Escritura24. Contra a heresia de Marcião, Irineu apresenta a Escritura e a

Tradição como dois momentos para a transmissão do Evangelho; a Tradição

(parádosis), que até então, indicava toda a transmissão da revelação, agora

significa somente a transmissão oral do ensinamento dos apóstolos.

O quarto e o quinto séculos, marcados pela doutrina dos padres da

Igreja e pela celebração dos primeiros concílios ecumênicos determinaram

substancialmente o conceito de transmissão da revelação divina. O termo

Tradição passará a incluir as explicitações e as interpretações dos Padres da

Igreja, concernentes à Sagrada Escritura e à Tradição apostólica. A. Franzini

recorda que na época, a importância dos Padres era tal, que se desenvolveu

o hábito de compilar listas de citações das obras dos Padres, que gozavam

de uma autoridade indiscutível, listas que eram lidas até no início de certas

sessões conciliares25.

Um monge chamado Vincent de Lerins (†antes de 450) apresentou a

Tradição como instância interpretativa da Sagrada Escritura, quando

declarou que esta última necessitava de uma atestação eclesial e católica26.

Na sua obra Commonitorium, ele ensina que a Sagrada Tradição tem uma

natureza divino-apostólica, seu conteúdo é universal, consensual e perene:

“quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est” 27. “Além da

apostolicidade, apareceu como propriedade essencial da verdadeira

tradição, a catolicidade [entendido como consenso sincrônico e

diacrônico]” 28.

23 Cf. Y. CONGAR, La tradizione e le tradizioni, I, Roma 1964, 45. 24 FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità, 112. 25 A. FRANZINI, Tradizione e Scrittura, Brescia 1978, 71. 26 Commonitorium II, 4, in: Corpus Christianorum, series latina 64, 149. 27 Commonitorium II, 5, 149. 28 H. J. POTTMEYER, Tradição, in: R. LATOURELLE- R. FISICHELLA (org.), Dicionário de

Teologia Fundamental, Petrópolis-Aparecida 1994, 1017.

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23

A Igreja se apresenta consciente do fato de ser portadora de uma

mensagem objetiva, mas que pode ser atualizada e interpretada na

dinâmica da história29.

Durante o período da Escolástica, apesar de uma forte adesão à idéia

de Tradição ligada aos Padres da Igreja, o conceito de Tradição, em quanto

tal, não é muito aprofundado30.

No período que antecede a “Reforma”, se observa uma tendência a

identificar uma série de definições e usos eclesiásticos de origem não

apostólica, como parte da Sagrada Tradição31. Lutero se rebela contra

aquelas tradições que não são autorizadas pela Escritura, com o escopo de

recolocar, segundo ele, novamente em luz o puro evangelho. Mas,

posteriormente, evoca o princípio da “sola Scriptura”, rejeitando a Sagrada

Tradição (Lutero chama a Tradição de um abusus, pois se tratava apenas de

“estatutos humanos”32).

“Ao fazer isto, permanece prisioneiro da controvérsia da Idade Média tardia: pois a igreja de seu tempo ameaça esquecer o primado da sagrada Escritura e subordinar a normatividade material do querigma apostólico à normatividade formal da tradição eclesiástica; a Escritura, em Lutero, torna-se como uma exata contraposição, a única norma material e formal (‘Sacra Scriptura sui ipsius interpres’- ‘A Sagrada Escritura é sua própria intérprete’)” 33.

29 FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità, 113. 30 Cf. FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità, 114. SCHEFFCZYK, Fondamenti

del dogma, 116: “Tommaso d’Aquino sa sicuramente che ‘gli apostoli hanno trasmesso

molte cose che non sono state scritte nel canone’ (In Sent. III d. 9 q. 1 a.2 sol 2 ad 3), ma

considera le tradizioni religiose prevalentemente ecclesiali come la venerazione delle

icone. Nel fondamento della fede, la Sacra Scrittura assume per antonomasia il ruolo di

fonte della fede, in modo che la sacra doctrina e la sacra scriptura sono messe quasi sullo

stesso piano. È conosciuta la questione concernente la Tradizione che p. Es. viene alla

luce nell’assegnare la materia della cresima alla traditio ecclesiae, come pure le molte

parole non scritte che hanno origine ex familiari Apostolorum traditione (S. Th. III q. 64

a. 2 ad 1). Nella questione ottiene una conferma soprattutto l’elemento di autorità della

Chiesa. Nell’orientamento biblico-ecclesiale della scolastica, la ‘Tradizione’ non è ancora

divenuta un tema ricorrente”. 31 Cf. POTTMEYER, Tradição, 1017. Cf. também Fisichella, La rivelazione: evvento e

credibilità, 115. 32 Cf. Confessio Augustana art. XV, 3. 33 POTTMEYER, Tradição, 1017.

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Com o Concílio de Trento, a Igreja se posiciona diante dos ataques dos

“reformadores”. O decreto sobre os Livros sagrados e a Tradição (Sessão IV,

8 de abril de 1546) afirma que:

“Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, primeiro promulgou por sua própria boca, e depois mandou que fosse pregado a toda criatura (cf. Mt 28,19-20; Mc 16, 15ss) por meio de seus Apóstolos, como fonte de toda a verdade salvífica e de toda a disciplina de costumes. E vendo o concílio perfeitamente que esta verdade e disciplina estão contidas nos livros escritos e na Tradições que, recebidas pelos Apóstolos da boca do próprio Cristo, ou transmitidas como que de mão em mão (cf. 2 Ts 2,14), pelos próprios Apóstolos, sob a inspiração dos Espírito Santo, chegaram até nós, segundo os exemplos dos Padres de comprovada ortodoxia, com igual sentimento de piedade e igual reverência recebe e venera todos os Livros, tanto os do Antigo como os do Novo Testamento (...) e também as próprias Tradições que pertencem à Fé e à Moral, quer tenham sido oralmente [recebidas] do próprio Cristo, quer tenham sido ditadas pelo Espírito Santo, e, por sucessão contínua, conservadas na Igreja Católica” 34.

Esta formulação confirma o fato de que a Revelação não se reduz à

Sagrada Escritura. O Concílio oferece uma uma concepção viva e dinâmica

da Revelação, sublinhando o seu aspecto pneumatológico35.

Trento supera a contraposição luterana entre Escritura e Tradição,

identificando a fonte da Revelação, não em apenas uma das duas, mas no

Evangelho36, isto é, no evento Cristo. Ele constitui a garantia da

continuidade da Revelação. Escritura e Tradição são entendidas como

mediações da única Revelação37.

O conceito dogmático de Tradição se concentrou sobre a transmissão

da fé e da ordem moral. A definição dogmática de Tradição, recorda, antes

de mais nada, a sua origem oral, quando diz que: “Jesus Cristo, Filho de

Deus, primeiro promulgou por sua própria boca, e depois mandou que fosse

pregado a toda criatura (...) por meio de seus Apóstolos, como fonte de

34 CONCÍLIO DE TRENTO, Decreto sobre o cânon (sess. IV – 8.4.1546), in: J. COLLANTES,

A Fé Católica. Documentos do Magistério da Igreja. Das origens aos nossos dias,

Anápolis-Rio de Janeiro 2003, 155-156 (DS 1501). 35 LORIZIO, Tradizione, 1453. 36 Cf. CONGAR, Tradizione e tradizioni, I, 209. 37 FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità, 118-119.

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toda a verdade salvífica e de toda a disciplina de costumes”. O conceito de

Tradição inclui as tradições38 que são de “origem apostólica”, que

reguardam “a fé e a moral”, e que “chegaram até nós” “transmitidas como

que de mão em mão”.

O texto define também a necessidade da mediação do serviço

magisterial na transmissão e na interpretação da inteira Tradição. Fisichella

nota que a expressão “Spiritu Sancto dictante” é a garantia do agir divino e

da inspiração ou interpretação da Tradição, e o “como que de mão em mão

até nós” é a garantia da veracidade da Tradição, pois esta se dá na sucessão

apostólica39.

Destacamos também o fato de que o decreto conciliar afirma a

normatividade da Tradição, pois esta também contém elementos essenciais

e normativos para fé e para os costumes.

Por fim, a Tradição deve ser aceita e venerada com a mesma “piedade”

e a mesma “reverência” com que aceitamos e veneramos a Sagrada

Escritura.

O Concílio Vaticano I retoma literalmente a definição de Revelação,

contida “nos livros escritos e nas Tradições não escritas” 40.

Na década que precedeu o Concílio Vaticano II, depois da proclamação

do dogma da Assunção (1 de novembro de 1950) e da discussão posterior,

reguardando a relação entre a Sagrada Escritura e a Tradição, surgiram três

teorias diferentes que trouxeram à tona o tema da Tradição41:

1- Teoria das duas fontes (H. Lennerz): interpretando o Concílio de

Trento, esta teoria afirma que a Escritura e a Tradição são duas fontes

distintas que transmitem (cada uma, uma parte) a Revelação.

Nenhuma delas contém toda a Revelação;

38 Cf. O uso do plural “tradições” não indica uma diferença em relação à Tradição, cf.

SCHEFFCZYK, Fondamenti del dogma, 117 (nota 14). 39 Cf. FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità,119. 40 DH 3006. Cf. também J. R. GEISELMANN, Tradição, in: H. FRIES (org.), Dicionário de

Teologia. Conceitos fundamentais da teologia atual (Vol. V), São Paulo 1971, 353. 41 Cf. FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità, 121-122.

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2- Teoria da suficiência da Escritura (J. R. Geiselmann): A Escritura

transmite a o material da Revelação, a Tradição tem um escopo a

explicação-interpretação do conteúdo da Escritura;

3- Teoria da suficiência relativa da Escritura (J. Beaumer): tentativa de

síntese. A Tradição contém de modo formal toda a verdade revelada

e a Escritura de modo substancial.

A “Tradição” segundo o Concílio Vaticano II

O Concílio Vaticano II em continuidade com o Concílio de Trento,

apresenta o Evangelho como única fonte de toda verdade salutar42. Declara

que a Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura brotam da mesma fonte divina

e formam uma unidade orgânica43. L. Scheffczyk nota a importância da

influência de J. H. Möhler (século XIX) nesta visão expressa pelo Concílio

Vaticano II44.

Segundo Pottmeyer a relação entre a Escritura e a Tradição é

apresentada num sentido mais propriamente modal: “na tradição

entendida como transmissão da palavra de Deus no ato de expor a

Escritura, ‘as próprias Letras Sagradas são mais profundamente

compreendidas e se tornam ininterruptamente operantes’ (DV 8)” 45.

Scheffczyk afirma que se pode definir a Tradição como sendo a

transmissão de toda a Revelação divina através do testemunho da Palavra

de Deus escrita e dos testemunhos não escritos que, desde o período

apostólico, foram transmitidos “como que de mão em mão” até os dias de

hoje. Sendo assim, ela não se limita ao “não escrito”, pois depois da fixação

por escrito da Palavra de Deus, ela inclui uma série de documentos escritos,

como é o caso da literatura dos Padres, de certos textos litúrgicos, das

profissões de fé e dos decretos conciliares46.

Os nos 7 e 8 da Dei Verbum oferecem uma harmoniosa visão e

descrição da Tradição: esta está intimamente ligada à Revelação,

42 Cf. Dei Verbum no 7. 43 Cf. Dei Verbum no 9. 44 Cf. SCHEFFCZYK, Fondamenti del dogma, 118-119. Cf. também J. H. MÖHLER,

Simbolica, Milano 1984, 295-296. 45 POTTMEYER, Tradição, 1018. 46 Cf. SCHEFFCZYK, Fondamenti del dogma, 122.

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pertecence à sua economia e participa das suas notas características.

Progredindo, em relação ao Concílio de Trento, o Vaticano II acrescenta

uma certa determinação relativa ao conteúdo da Tradição: esta é formada

pelas palavras, exemplos, comportamentos, decisões, de tudo o que

constituiu a relação vital entre Jesus e os apóstolos; de tudo o que os

apóstolos aprenderam sob o influxo do Espírito Santo; a Tradição

compreende o âmbito da doutrina, da vida (costumes), do culto (incluindo

os sacramentos) e do governo moral da comunidade cristã47.

A Constituição também menciona que mediante “a mesma Tradição,

conhece a Igreja o cânon inteiro dos livros sagrados” 48. Segundo alguns

teólogos, esta afirmação conciliar não precisa ser entendida como se

apresentasse um conteúdo específico da Tradição (o cânon da Bíblia): “a

seleção dos livros canônicos encontra, sim, uma explicação no exame de

sua canonicidade conteudística adquirida pela igreja na familiaridade com

estes livros” 49. Mas, outros defendem que esta formulação, poderia ser

interpretada como uma prova da insuficiência material da Escritura50. Como

se sabe, nos textos originais da Sagrada Escritura, não se encontra a relação

de todos os livros canônicos, ou seja, o elenco dos livros canônicos seria um

dado da Sagrada Tradição. Esta teria sido a responsável pelo

reconhecimento da inspiração e da canonicidade de cada livro que faz parte

da Sagrada Escritura e “chamou” de apócrifos muitos outros escritos que

almejavam ser reconhecidos como parte do cânon bíblico.

No final do no 9 da Dei Verbum, lemos que: “resulta assim que a Igreja

não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas

reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual

espírito de piedade e reverência”51. Este texto permite duas interpretações.

Se há apenas complementariedade qualitativa (modal) entre os dois canais

de transmissão, é normal que a Sagrada Escritura não baste para gerar

certeza. Mas o texto, que reprende o Concílio de Trento, pode ser 47 Cf. FISICHELLA, La rivelazione: evento e credibilità, 126 e R. LATOURELLE, Teologia

della rivelazione, Assisi 1967, 336. 48 Dei Verbum no 8. 49 POTTMEYER, Tradição, 1018. 50 B. SESBOÜÉ (org.), História dos dogmas IV – A Palavra da Salvação (séculos XVIII-

XX), São Paulo 2006, 441. 51 Dei Verbum no 9.

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entendido também no sentido: 1- da insuficiência material da Escritura; 2-

da confirmação de uma fórmula reinvindicada até o fim dos trabalhos

conciliares por uma minoria de Padres: “A Tradição tem uma extensão

maior do que a Escritura”52. Esta certa ambiguidade de formulação permite

legitimar as duas interpretações teológicas, mesmo que a Dei Verbum

pareça indicar uma complemetariedade qualitativa (formal) entre a

Escritura e a Tradição.

A relação entre a Tradição e o Magistério da Igreja, é tratada no no 10

da Constituição. O Magistério exerce a sua missão “em nome de Jesus Cristo

Senhor”; este Magistério não está acima da Palavra de Deus, mas a seu

serviço; o Magistério ensina “apenas o que foi transmitido, enquanto, por

mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a

guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único

da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado”53.

A Dei Verbum afirma que a Tradição Apostólica é conservcada pela

Sucessão Apostólica, mas relembra também que todos os fiéis participam

da missão de viver e transmitir a Sagrada Tradição. Sendo a Sagrada

Tradição o “Evangelho vivo , anunciado pelos apóstolos na sua

integridade”54 e transmitido fielmente a seus sucessores (tendo em vista o

conservar-se no tempo da Sagrada Tradição), a Igreja afirma que a traditio

exige a sucessio55.

J. Ratzinger nos ajuda a compreender a relação intrínseca entre a

Sagrada Tradição e a Sucessão Apostólica:

“A palavra na perspectiva do Novo Testamento é uma palavra escutada e, enquanto tal, palavra pregada, não apenas uma palavra lida. Isso significa que, se a successio apostolica está na palavra, essa não se limita simplesmente a um livro, mas, sendo uma successio verbi deve ser uma successio praedicatium, esta, por sua vez, não pode acontecer sem uma ‘misão’, ou seja, sem uma continuidade pessoal a partir dos apóstolos.

52 SESBOÜÉ, História dos dogmas IV, 441. 53 Dei Verbum no10. 54 J. A. MÖHLER, L’unità nella Chiesa. Il principio del cattolicesimo nello spirito dei

Padri della Chiesa nei primi tre secoli, Roma 1969, 51. 55 Cf. P. GOYRET, Dalla Pasqua alla Parusia. La successione apostolica nel “tempus

Ecclesiae”, Roma 2007, 358.

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Exatamente por causa da Palavra, que na nova aliança, não é letra morta, mas viva vox, faz-se necessária uma viva successio (...) Sucessão Apostólica é, segundo a sua essência, a presença viva da Palavra na forma pessoal do testemunho. A ininterrupta continuidade das testemunhas- apóstolos e seus sucessores – no tempo, deriva da essência da palavra que é auctoritas e viva vox” 56.

O mesmo teólogo afirma de modo lapidário: “Tradição apostólica e

sucessão apostólica se definem reciprocamente. A sucessão é a forma da

tradição e a tradição é o conteúdo da sucessão” 57.

Não devemos esquecer que o Espírito Santo é o guardião tanto da

autenticidade da Sagrada Tradição quanto da sacramentalidade da

Sucessão Apostólica.

A contribuição recente de Bento XVI

Em 2006, o Papa Bento XVI, que foi professor de teologia fundamental

e de teologia dogmática, e que trabalhou, em qualidade de teólogo, na

elaboração da Constituição Dei Verbum, ofereceu a toda a Igreja duas ricas

catequeses sobre a Tradição Apostólica nos dias 26 de abril e 3 de maio.

Na sua primeira catequese, o Papa explica que a Sagrada Tradição garante a igreja de hoje, uma continuidade histórica com a fé da igreja primitiva:

“A Tradição é a comunhão dos fiéis à volta dos legítimos Pastores no decorrer da história, uma comunhão que o Espírito Santo alimenta garantindo a ligação entre a experiência da fé apostólica, vivida na originária comunidade dos discípulos, e a experiência atual de Cristo na sua Igreja. Por outras palavras, a Tradição é a continuidade orgânica da Igreja, Templo santo de Deus Pai, erigido sobre o fundamento dos Apóstolos e reunido pela pedra angular, Cristo, mediante a ação vivificante do Espírito: ‘Portanto, já não sois estrangeiros nem imigrantes, mas sois concidadãos dos santos e membros da casa de Deus, edificados sobre o alicerce dos Apóstolos e dos Profetas, tendo por pedra angular o próprio Cristo Jesus. É nele que toda a construção, bem ajustada, cresce para formar um templo santo, no Senhor. É nele que também vós sois integrados na construção,

56 RATZINGER, Primato, Episcopato e Successio Apostolica, 59-61. 57 RATZINGER, Primato, Episcopato e Successio Apostolica, 58.

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para formardes uma habitação de Deus, pelo Espírito’ (Ef 2,19-22). Graças à Tradição, garantida pelo ministério dos Apóstolos e dos seus sucessores, a água da vida que saiu do lado de Cristo e o seu sangue saudável alcançam as mulheres e os homens de todos os tempos. Assim, a Tradição é a presença permanente do Salvador que vem encontrar-se conosco, redimir-nos e santificar-nos no Espírito mediante o ministério da sua Igreja, para glória do Pai” 58.

Usando a imagem de um “rio vivo”, o Papa ensina como a tradição

deve ser para toda a Igreja uma fonte de vida que nos conduz ao “porto da

eternidade”:

“a Tradição não é transmissão de coisas ou palavras, uma coleção de coisas mortas. A Tradição é o rio vivo que nos liga às origens, o rio vivo no qual as origens estão sempre presentes. O grande rio que nos conduz ao porto da eternidade. E sendo assim, neste rio vivo realiza-se sempre de novo a palavra do Senhor, que no início ouvimos dos lábios do leitor: ‘E sabei que Eu estarei sempre convosco até o fim dos tempos’ (Mt 28, 20)” 59.

Na segunda catequese o Papa ensina que a Sagrada Tradição é um

elemento imprescindível para a fé e a teologia católicas, na medida em que

se constitui um elemento vital para a comunhão da Igreja no decorrer do

tempo:

“a Tradição é a história do Espírito que age na história da Igreja através da mediação dos Apóstolos e dos seus sucessores, em fiel continuidade com a experiência das origens. É quanto esclarece o Papa São Clemente Romano nos finais do século I: ‘Os Apóstolos, escreve ele, anunciaram-nos o Evangelho, enviados pelo Senhor Jesus Cristo, Jesus Cristo foi enviado por Deus. Cristo vem portanto de Deus, os Apóstolos de Cristo: ambos procedem ordinariamente da vontade de Deus... Os nossos Apóstolos chegaram ao conhecimento por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo que teriam surgido contendas acerca da função episcopal. Por isso, prevendo perfeitamente o futuro, estabeleceram os eleitos e deram-lhe, por conseguinte, a ordem, para que, quando morressem, outros homens provados assumissem o seu serviço’ (Ad Corinthios, 42.44: PG 1, 292.296).

58 BENTO XVI, A comunhão no tempo: a Tradição (Audiência Geral do 26 de abril de

2006), in: L’Osservatore Romano (Edição semanal em Português) n. 17 (1897), 29 de

abril de 2006, 12. 59 BENTO XVI, A comunhão no tempo, 12.

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Esta corrente do serviço continua até hoje, continuará até ao fim do mundo. De fato, o mandato conferido por Jesus aos Apóstolos foi por eles transmitido aos seus sucessores. Além da experiência do contato pessoal com Cristo, experiência única e irrepetível, os Apóstolos transmitiram aos Sucessores o envio solene ao mundo recebido do Mestre” 60.

Na sua exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini (2010), Bento

XVI, após ter recordado o ensinamento do Concílio Vaticano II sobre a

relação Tradição-Escritura, escreve, no no 18, que:

“através da obra do Espírito Santo e sob a guia do Magistério, a Igreja transmite a todas as gerações aquilo que foi revelado em Cristo. A Igreja vive na certeza de que o seu Senhor, tendo falado outrora, não cessa de comunicar hoje a sua Palavra na Tradição viva da Igreja e na Sagrada Escritura. De facto, a Palavra de Deus dá-se a nós na Sagrada Escritura, enquanto testemunho inspirado da revelação, que, juntamente com a Tradição viva da Igreja, constitui a regra suprema da fé”61.

A fé e a teologia católicas não podem prescindir do testemunho da

Sagrada Tradição, que é fruto da ação do Espírito do Ressuscitado, guardião

da integridade da Verdade na vida da Igreja (cf. Jo 16,13).

Aprofundando: A teologia protestante não aceita a Sagrada Tradição como

fonte da revelação. Ela defende que só a Sagrada Escritura é fonte da

Revelação (Sola Scriptura). A teologia sistemática protestante (clássica) se

propõe como uma teologia da Palavra de Deus, mas reconhece o valor

teológico dos primeiros concílios ecumênicos da cristandade, que serviram

para que a fé cristã fosse formulada. Ela também tem grande consideração

por alguns escritos confessionais da época da reforma protestante, por

exemplo a Confessio Augustana (1530), escrita por um discípulo de Lutero.

Como vemos, a teologia protestante não é priva de uma tradição.

60 BENTO XVI, A Tradição Apostólica (Audiência Geral do 03 de maio de 2006), in:

L’Osservatore Romano (Edição semanal em português) n. 18 (1898), 06 de maio de 2006,

12. 61 BENTO XVI, Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini, São Paulo 2010, 41.

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1.3.3- Magistério da Igreja

O Magistério não está acima da revelação (como temia Lutero), mas a

serviço da mesma (cf. DV n. 10).

O serviço que o Magistério presta é o de interpretar autenticamente o

depósito da fé. Somente o Magistério que exerce a sua missão em nome de

Cristo, foi confiada a missão de interpretar com autoridade a palavra de

Deus, escrita ou transmitida.

R. Latourelle afirma que:

“a) O Magistério ouve piedosamente a voz viva do Evangelho que

ressoa continuamente a seus ouvidos, pois o Magistério, enquanto tal,

também vive na fé, sendo o primeiro a prestar ouvidos à palavra de Deus.

Como a Virgem piedosamente recolhia as palavras dos lábios de Cristo,

assim também o Magistério está atento à palavra de Deus.

b) O Magistério guarda santamente a palavra de Deus. Esta expressão

tomada ao Vaticano I, é tradicional e encontra-se frequentemente nos

documentos do Magistério, com forma idêntica ou equivalente. Guardar

santamente o depósito da palavra de Deus significa nada perder, nada

subtrair, nada acrescentar. Assim como nada se pode acrescentar à

Escritura, assim também nada se pode tampouco acrescentar à Tradição. O

esforço para perscrutar as Escrituras não pretende enriquecer o tesouro

das Escrituras. Assim também a Tradição viva da Igreja, que se exprime sob

formas diversas através dos tempos, não pretende enriquecer o tesouro da

Tradição recebido dos apóstolos. O que se aperfeiçoa não é a revelação,

mas a compreensão que dela temos, as explicitações sucessivas com as

quais procuramos manifestar as suas inesgotáveis riquezas para iluminar as

sucessivas gerações; aperfeiçoam-se, finalmente, as formulações que

multiplicamos para traduzir em termos humanos todo esse esforço de

assimilação da palavra de Deus. Da função de custos ou guardião da

revelação segue-se a função de proteger a palavra de Deus contra os

desvios, deslizes e heresias.

c) O Magistério deve também expor fielmente a palavra de Deus, poi

a função da Igreja não é apensa de guardar e defender a palavra: deve

propô-la aos homens de todos os tempos. Isto significa declarar o seu

sentido autêntico, esclarecendo e explicando o que for obscuro. A

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exposição fiel da palavra é a meta total da missão de ensinar que a Igreja

recebeu e que exerce por seu Magistério ordinário e extraordinário.

d) Finalmente, diz o concílio, o Magistério haure dessa fonte viva da

palavra de Deus tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado. Nada

propõe que já não esteja contido no único depósito de fé. O

desenvolvimento dogmático, que é um esforço para propor e formular, de

modo fiel, mas preciso e mais rico, a palavra de Deus, realiza-se sempre no

interior do objeto da fé” 62.

Aprofundando: O senso sobrenatural da fé (sensus fidei).

Catecismo da Igreja Católica nn. 91-93: “ Todos os fiéis participam da

compreensão e da transmissão da verdade revelada. Receberam esta unção

do Espírito Santo, que os instrui e os conduz à verdade em sua totalidade.

‘O conjunto de fiéis ... não pode enganar-se no ato da fé. E manifesta esta

sua peculiar propriedade mediante o senso sobrenatural da fé de todo o

povo, quando, ‘desde os bispos até o último dos fiéis leigos’, apresenta um

consenso universal sobre questões de fé e costumes’.

‘Por este senso da fé, excitado e sustentado pelo Espírito da verdade, o

Povo de Deus, sob a direção do sagrado magistério, (...) adere

indefectivelmente à fé ‘uma vez para sempre transmitida aos santos’; e,

com reto juízo, penetra-a mais profundamente e mais plenamente e aplica

na vida’”.

Antes de concluirmos este ponto de nosso curso, é importante que

vejamos o que o Catecismo da Igreja Católica (nn. 888-891) fala sobre o

carisma da infalibilidade, com o qual Cristo dotou o Sumo Pontífice e o

Colégio Episcopal.

Os Bispos (e seus colaboradores presbíteros) tem como primeira

tarefa anunciar o Evangelho de Deus a todos os homens, segundo a ordem

do Senhor (Mt 28,18-20).

Para manter a Igreja na pureza da fé transmitida pelos apóstolos,

Cristo quis oferecer à sua Igreja uma participação em sua própria

62 R. LATOURELLE, Teologia da Revelação, São Paulo 1985, 397-398.

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infalibilidade, ele que é a Verdade. Pelo ‘sentido sobrenatural da fé’, o povo

de Deus se atém indefectivelmente à fé, sob a guia do Magistério vivo da

Igreja.

A Missão do Magistério está ligada ao caráter definitivo da Nova

Aliança, instaurado por Deus em Cristo com o seu povo. O ofício magisterial

deve estar ordenado para que o povo permaneça na verdade que liberta.

Para realizar este serviço, Cristo dotou os pastores da sua Igreja com o

carisma da infalibilidade em matéria de fé e de costumes (moral). O

exercício deste carisma pode assumir vária modalidades.

Sujeitos deste carisma: Sumo Pontífice e Colégio episcopal unido à sua

cabeça (Papa).

O Papa goza de infalibilidade quando, por força de seu cargo, na

qualidade de pastor e doutor supremo de todos os fiéis e encarregado de

confirmar seus irmãos na fé, proclama, por um ato definitivo, um ponto de

doutrina que concerne à fé ou aos costumes.

Do mesmo modo esta infalibilidade reside no corpo episcopal quando

exerce o seu magistério supremo em união com o Sucessor de Pedro,

sobretudo em um Concílio Ecumênico.

Quando por seu magistério supremo a Igreja propõe alguma coisa a

crer sendo revelada por Deus e como ensinamento de Cristo, é preciso

aderir na obediência da fé a tais definições.

1.4- As duas funções da Teologia

As duas grandes funções da Teologia: toda ciência possui dois tipos de

funções63. Por um lado ela deve constatar os dados que são objetos do seu

“saber”, por outro lado, ela deve ser capaz de explicitar o que estes dados

contém.

a- Constatar os dados (teologia das fontes): é a primeira etapa da

teologia. A teologia deve buscar “tomar posse” do seu objeto de estudo, ou

seja, deve tentar identificar a verdade contida na Revelação.

63 Cf. B.-D. DE LA SOUJEOLE, Introduction au Mystère de l’Église, Toulouse 2006, pp. 14-

17.

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Um exemplo: A definição dogmática da Assunção de Maria (Pio XII,

1950). A definição propriamente dita, afirma que: “ao final da sua vida

terrestre, a Imaculada Mãe de Deus, Maria sempre Virgem, foi levada ao

céu de corpo e alma para a Glória”.

Quem fala: o Papa, em virtude da sua autoridade de Pontífice supremo

da Igreja.

Qual o contexto? Trata-se de uma declaração dogmática solene, ou

seja, de uma decisão irreformável, através da qual, o Papa invoca a sua

autoridade de Vigário de Cristo, em matéria de fé, fazendo uso do seu

carisma de infalibilidade.

Qual a intenção? Oferecer à fé dos fiéis uma luz a mais sobre um ponto

importantíssimo de nossa fé.

O que se diz? Maria está atualmente presente de corpo e alma na

Glória do seu filho Ressuscitado.

O que não se diz? Quando isso aconteceu exatamente (antes ou depois

da sua morte? Ela foi preservada da morte?). Como isso aconteceu

exatamente (ela foi levada ao céu como Jesus subiu ao céu, na sua

ascensão?). Estes pontos, não entram na definição dogmática. Por esta

razão, continuam a ser objeto da discussão teológica atual.

Esta etapa do trabalho teológico é importantíssima, caso contrário a

segunda etapa da teologia poderá sofrer graves desvios.

Pode-se cometer graves erros, mas normalmente o erros podem ser

classificados em: erros por excesso (exemplo: acentuar excessivamente a

humanidade de Jesus) e erros por insuficiência (exemplo: negligenciar a

divindade de Jesus). Erros no âmbito da Cristologia (cf. exemplos dados),

vão conduzir a uma eclesiologia e a uma teologia dos sacramentos

defeituosas.

b- Explicitar e ordenar os dados (Teologia especulativa): nesta etapa, o

teólogo não pode se limitar a perguntar-se se a verdade em questão é

revelada ou não. Ou interrogar-se quanto ao contexto no qual a verdade é

afirmada. É necessário aprofundar a questão.

O teólogo se pergunta nesta etapa, diante de tudo o que Deus nos

disse no decorrer da história, o que significa cada verdade revelada em si

mesma? Qual a sua importância em si mesma (não se preocupa com o

contexto histórico, linguístico, cultural, sociológico, etc... isto faz parte da

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primeira etapa) e qual a sua importância no contexto global da revelação?

Com a sua inteligência iluminada pela fé, o teólogo busca as relações entre

as verdades reveladas, os seus pontos de contato, as suas conexões, o lugar

de cada uma das verdades no “grande mosaico da Revelação”. Ele busca a

“ordem” (hierárquica) das verdades. Qual (quais) é (são) a verdade primeira

(as verdades primeiras)? Ao redor da qual as outras se organizam (Exemplo:

esta verdade pode ser comparada ao sol, ao redor do qual giram os planetas

do sistema solar) as demais verdades.

O método teológico será o da análise racional (iluminada pela fé) e o

da demonstração.

Neste ponto de nosso curso precisamos apresentar a idéia de analogia, tão importante para a teologia64: 1- Para falar e ser compreendido pelos homens, Deus utiliza a linguagem humana e exemplos tirados do mundo visível; 2- Pode-se dizer também que o mundo criado participa do ser de Deus (o mundo recebe o seu ser de Deus). Por isso a beleza que o homem encontra no mundo pode ajuda-lo a compreender que Deus é a beleza incriada (muito superior àquela criada, que é um pálido reflexo da incriada); 3- fazendo uma analogia, podemos dizer que Deus é belo, o dizemos, a partir da experiência que fazemos com a beleza criada (limitada) e com o entendimento e os sentimentos que percebemos em nós, no âmbito desta experiência. Mas, o conceito de analogia na teologia, recorda que o que existe de semelhante entre o mundo criado e Deus é infinitamente menor do que a diferença abissal que os separam. A analogia é u recurso importantíssimo para a linguagem teológica. A analogia permite à teologia falar de Deus, mas sem o perigo de querer enquadrá-lo em conceitos e fórmulas hermeticamente fechados. A analogia está aberta à contínua transcendência divina, Deus sempre excede o que somos capazes de dizer (positivamente ) a seu respeito. No livro da Sabedoria (escrito em grego), lemos que: “através da grandeza e da beleza das criaturas, vê-se (qewrei/tai - teoreitai: vê-se teoricamentepor analogia (avnalo,gwj – analógos) o criador” (Sb 13,5).

A Síntese de Tomás de Aquino se apresenta como um excelente

exemplo de organização sistemática do conteúdo da reflexão teológica. A

organização da Suma Teológica é extremamente simples, pois Tomás parte

do objeto primeiro e principal da teologia: Deus (uno e trino). A partir de

64 Cf. NICOLAS, Vocabulário da Suma Teológica, pp. 73-74.

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Deus, ele considera todas as outras verdades reveladas, mas sempre nas

suas relações com o objeto principal da teologia. Estas relações, segundo

Tomás, são fundamentalmente duas: Deus é o princípio de todas as coisas

(criador de tudo – pela sua providência ele guia tudo) e Deus é o fim último

de todo o criado (elas foram criadas para retornar a ele).

Este duplo movimento das criaturas – elas provêm de Deus e

“caminham” para Deus – é chamado tradicionalmente de exitus e redditus.

O esquema de Tomás65:

• Deus (em si mesmo).

• Deus na sua relação com a sua criação

Na Suma Teológica, este esquema vai ditar a organização da síntese

teológica do Aquinate66:

I a pars: a- Deus e seu mistério (q. 2-43).

b- Deus, princípio das coisas criadas e da sua ordem (q. 44-

119).

IIa pars e III pars: Deus, fim último das criaturas

a- O fim último: a bem-aventurança (I-IIae q. 1-5)

b- O retorno para Deus: a ação humana (Princípios

gerais: Ia-IIae, q. 6-114; Princípios particulares:

IIa-IIae, q. 1-170)

c- O caminho concreto, a salvação (Cristo Redentor:

IIIa, q. 1-59; Sacramentos: IIIa, q. 60-90 e Suppl.

q. 1-68; Realização final do retorno e novíssimos:

Suppl. q. 69-99).

1.5- Dogma e dogmas

A palavra dogma provém do verbo grego dokéin = aparecer. Dokéin

poderia ser traduzido como sendo aquilo que aparece justo ou

65 Cf. SOUJEOLE, Introduction au Mystère de l’Église, pp. 18. 66 Cf. SOUJEOLE, Introduction au Mystère de l’Église, pp. 18-19.

Como princípio

Como fim último

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verdadeiro67. Na antiguidade, usava-se este termo para se falar de opiniões

e ensinamentos filosóficos.

Lucas usa o termo dogmata para indicar os decretos imperiais (Lc 2,1

e At 17,7). Em At 16,4, são chamadas dogmata, as deliberações do concílio

dos apóstolos.

Mais tarde, Santo Inácio de Antioquia (início do II século) usará o termo

dogmas como sinônimo de ensinamento de Cristo e dos apóstolos (cf. Carta

aos Magnésios 13,1). Eusébio de Cesaréia (III século) empregará termo

para designar também o ensinamento e as deliberações eclesiásticas.

Na Idade Média, a palavra dogma não possui uma função decisiva na

teologia, usa-se mais expressões como artigo de fé (articulus fidei) ou

verdade católica (veritas catholica)68.

Foi graças ao conflito com a teologia reformada, que pouco a pouco se

afirma no âmbito católico o entendimento atual que temos de dogma.

Segundo o Concílio Vaticano I, dogma é “tudo o que está contido na palavra de Deus escrita ou transmitida, e que pela Igreja, quer em declaração solene, quer pelo Magistério ordinário e universal, nos é proposto a ser crido como revelado por Deus” (DH 3011).

Em sentido amplo, dogma significa a fé universal da Igreja. Em um sentido estreito, dogma significa uma proposição de fé definida.

Vejamos um exemplo: contra o modo com o qual os reformadores entendiam a presença de Cristo na Eucaristia, o Concílio de Trento insistiu sobre a presença real de Cristo nos dons durante a celebração eucarística. Falou-se de uma transformação da substância do pão na substância do corpo de Cristo e da substância do vinho na substância do sangue de Cristo, utilizando-se o conceito de transubstanciação (mudança de substância). Este conceito era o mais apto para exprimir o que o Concílio queria ensinar (cf. DH 1642 e 1652). Entretanto, o Concílio não quis dogmatizar o conceito enquanto tal, mas a idéia contida no conceito. È possível então, substituí-lo por um outro, desde que o novo conceito seja capaz de exprimir o conteúdo de transubstanciação. Alguns teólogos propuseram o conceito de transignificação e outro o de transfinalização (cf. DH 4010-4013). Paulo VI, na encíclica Mysterium Fidei (1965), deixa claro que estes novos conceitos não são capazes de descrever o que é expresso pelo conceito de transubstanciação.

67 Cf. SCHULZ, Dogmatica, p. 36. 68 Cf. SCHULZ, Dogmatica, p. 36.

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1.6- Breve história da Teologia

Para aprofundar: A Teologia dos Padres da Igreja (“Intellige ut credas, crede ut intelligas”69).

Os Santos Padres não separam formalmente a reflexão sobre a fé da vivência da fé na Comunidade eclesial. Eles são verdadeiros “educadores da fé”70, e como tal desenvolvem uma reflexão teológica profundamente ligada à vida eclesial concreta, à liturgia, à espiritualidade, ao combate às heresias e à missão evangelizadora da Igreja no mundo.

Nota-se na reflexão patrística uma “intelecção amorosa do mistério”71, uma linguagem simbólica72 e um claro e profundo enraizamento bíblico.

A patrística também foi marcada pela inculturação da fé cristã no helenismo, em vista da expansão do Evangelho. Sem trair o dado bíblico, os Padres se apropriaram de categorias e esquemas filosóficos (estoicismo, neoplatonismo, etc.) que se apresentavam como possíveis instrumentos para a reflexão e o anúncio da verdade cristã.

O material patrístico hoje disponível provém de diversas fontes: cartas, sermões, tratados, comentários bíblicos, textos litúrgicos, textos catequéticos...

A partir do século III formam-se “escolas teológicas”: “As mais conhecidas foram as de Antioquia e de Alexandria, rivais entre

si. Enquanto a primeira tendia à exegese literal, na segunda predominava o sentido alegórico-espiritual”73.

Nos Padres, se encontra a seguinte distinção74: - Teologia: a reflexão sobre Deus ad intra; - Economia: a reflexão sobre o operar divino ad extra.

Para aprofundar: A Teologia medieval.

Séculos VIII-X: Dadas as invasões bárbaras no Ocidente e o advento do Islão no Oriente cristão, a Igreja e a sociedade Ocidental evoluem pouco. O trabalho teológico se limita à compilações e reproduções feitas em mosteiros

69 “Crer para entender e entender para crer”, este axioma ilumina a nossa compreensão global do

período patrístico. 70 H. C. J. MATOS, Estudar teologia. Iniciação e método, Petrópolis 2005, 42. 71 MATOS, Estudar teologia. Iniciação e método, 42. 72 A linguagem simbólica não significa uma linguagem metafórica, mas uma linguagem que se reconhece

inadequada (limitada) na sua missão de “pensar” e “dizer” o mistério. Eles usam a linguagem simbólica

para falar de verdades sublimes 73 J. B. LIBANIO- A. MURAD, Introdução à Teologia. Perfil, enfoques, tarefas, São Paulo 2014, 104. 74 Cf. Catecismo da Igreja Católica n. 236. Cf. também BOFF, Teoria do Método Teológico, 554.

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ou bispados. A teologia limita-se à leitura e ao comentário da Sagrada Escritura, com o auxílio de textos patrísticos recolhidos e selecionados75. Séculos X-XII: Surgem novas cidades, corporações, ordens religiosas unificadas, movimentos das ordens mendicantes (franciscanos, dominicanos). Entre 1120 e 1160 “descobrem-se os escritos aristotélicos que fornecem uma teoria crítica do saber e da demonstração”76. Usa-se o método dialético que propõe o confronto entre as opiniões diferentes, entre a negação e a afirmação, como via para o esclarecimento da verdade. O método em questão desafia a teologia monástica77 (São Bernardo de Claraval, Hugo de São Vítor, etc.) que, de um certo modo, prolongava linhas importantes da teologia patrística. Uma obra importante que consolida o método dialético é o Livro das Sentenças de Pedro Lombardo. Santo Anselmo une a teologia monástica de matriz agostiniana, favorável à absoluta suficiência da fé, ao pensamento dialético, buscando passar da simples verdade crida à verdade sabida, pensada e expressa, uma fé em busca de inteligência (“fides quaerens intellectum”)78: “Não pretendo, Senhor, penetrar a tua profundidade, porque de forma alguma a minha razão é comparável a ela; mas, desejo entender de certo modo a tua verdade, que o meu coração crê e ama. Não busco, com efeito, entender para crer, mas crer para entender” (Proslogion, Proem.). Séculos XIII-XV- Escolástica. Com o nascimento das Universidades, pratica-se a teologia nas “escolas” vinculadas aos grandes centros urbanos. Ensina-se a Sacra Doctrina no horizonte de outras ciências e artes. Os professores e os teólogos exercitam uma análise metódica e crítica e o raciocínio dialético. Difundem-se as obras de Aristóteles. Estabelece-se pouco a pouco uma certa autonomia do profano em relação ao sagrado, da filosofia e de outras ciências em relação à teologia, distingui-se o “crer” do “compreender”. O nome mais importante da idade de ouro da Escolástica (séc. XIII) é o dominicano Tomás de Aquino, mas não se deve esquecer também a importância do franciscano Boaventura. Vejamos agora os seis elementos que compunham o modelo de ensino escolástico: 1- Lectio: explicação do mestre; 2- Commentarium: exegese das grandes obras do passado; 3- Quaestio: desenvolvimento dialético, submetendo determinada afirmação à elaboração crítica; 4- Disputatio: estudantes e mestres discorrem juntos sobre determinados temas e pensamentos ligados a um certo autor ou obra; 5- Quodlibet: extensão da

75 Cf. LIBANIO- MURAD, Introdução à Teologia. Perfil, enfoques, tarefas, 112. 76 LIBANIO- MURAD, Introdução à Teologia. Perfil, enfoques, tarefas, 112. 77 Para conhecer mais sobre a Teologia Monástica, cf. J. LECLERQ, O Amor às letras e o desejo de Deus,

São Paulo 2012 (especialmente o capítulo 9, pp. 229-278. 78 Cf. LIBANIO- MURAD, Introdução à Teologia. Perfil, enfoques, tarefas, 113.

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disputatio (discussão livre sobre assuntos afins); 6- Sententiae: preparam-se as sumas de teologia79.

Para aprofundar: A Teologia católica entre o século XVI e XIX.

O “giro cartesiano” da razão, o individualismo emergente e a reforma

protestante golpeia duramente a unidade da catolicidade na Europa.

A Teologia dos séculos XVI-XVII é marcada por um cunho apologético

(Francisco Suárez, Luiz Molina e R. Belarmino) e por um renovado fervor

espiritual (Santa Teresa d’Ávila, São João da Cruz e Santo Inácio de Loyola)80.

A partir do século XVIII o iluminismo (e a Revolução Francesa), o

idealismo alemão (Kant, Hegel), o marxismo-socialismo, a psicanálise, o

Darwinismo e o nascimento dos estados modernos se apresentaram como

novos desafios para a teologia católica.

Uma boa parte da teologia católica buscou responder (séculos XVIII-XIX)

aos novos desafios com a proposta de uma nova teologia escolástica (neo-

escolástica e neotomismo).

Obs 1: a importância da Escola de Tubinga (Alemanha). Nascida em

1817, tenta dialogar com o Romantismo e o Idealismo alemão. Faz um

movimento de volta às fontes (Sagrada Escritura, Padres da Igreja e grande

Escolástica), valoriza a dimensão histórica da Revelação e do cristianismo e

compreende a Igreja como um prolongamento da vida e da missão de Cristo.

Principais expoentes: J. S. Drey e J. A. Moehler.

Obs 2: A importância da Escola Romana. No Colégio Romano,

professores como C. Passaglia e C. Schrader e J. B. Franzelin aprofundam os

estudos dos Padres a partir das línguas antigas e da crítica textual, interagem

com as mais recentes descobertas arqueológicas e interagem com a escola

histórica alemã. Os principais membros desta escola vão ser os grandes

teólogos do Concílio Vaticano I.

A Teologia no século XX81.

79 Cf. . LIBANIO- MURAD, Introdução à Teologia. Perfil, enfoques, tarefas, 113-114. 80 Cf. LIBANIO- MURAD, Introdução à Teologia. Perfil, enfoques, tarefas,118-119. 81 Sobre a teologia do século XX cf. R. GIBELLINI, A teologia do século XX, São Paulo 2002; Id., Breve

história da teologia do século XX, Aparecida 2010; B. MONDIN, Os grandes teólogos do século XX (2

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Nota-se um verdadeiro despertar da teologia católica no início do século XX, especialmente no campo positivo, com os estudos de exegese, patrologia, história das religiões, história dos dogmas e história da Igreja. Na França, por exemplo, surgem novos e importantes dicionários, bem como, novas revistas. Encorajado pelo papa Leão XIII surge o neotomismo, que tenta dialogar com algumas questões da modernidade, sem trair a teologia tradicional da Igreja. Como representantes desta escola, podemos citar: J. Maréchal; J. Maritain; E. Gilson e M. D. Chenu. Na primeira década do século XX surge também o “movimento modernista”, que visava adaptar o catolicismo tradicional ao pensamento moderno, à custa de uma certa descontinuidade com a teologia e o ensinamento magisterial precedente. Influenciado pelo protestantismo liberal, também se vê sob o influxo do agnosticismo, do neokanbtianismo e do neohegelianismo, do panteísmo e do evolucioniosmo. Um representante importante desta tendência teológica foi A. Loisy (1857-1940), professor do Instituto Católico de Paris. Pio X condenará o modernismo em documentos importantes: Lamentali (DH 2001-2065) e Pascendi (DH 2071-2109), em 1907. Entre a primeira e a segunda guerra mundial, temos as importantes contribuições de: J. M. Lagrange no âmbito da exegese (suas contribuições abrirão o caminho para a encíclica Divino afflante Spiritus de Pio XII); J. Mersch e S. Tromp82 propõe uma bem fundada eclesiologia do corpo místico (tal contribuição será acolhida no magistério de Pio XII com a encíclica Mystici corporis, 1943); H. de Lubac83 e J. Daniélou iniciam a famosa coleção Sources Chrétiennes (Fontes cristãs: edição crítica de textos patrísticos no original e em francês) e encabeçam junto com Y. Congar84 e M. D. Chenu85 um movimento teológico que ficou conhecido como Nouvelle Théologie (Nova Teologia), que propunha uma volta às “fontes” (bíblicas, patrísticas, medievais), a aplicação do método histórico-crítico, a valorização do aspecto evolutivo dos dogmas, o diálogo católico com as

volumes), São Paulo 1987; R. V. GUCHT - H. VORGRIMER, Bilan de la Théologie du XXe siècle (4

volumes), Paris 1970. 82 Para conhecer melhor o pensamento teológico de S. Tromp cf. J. P. de M. DANTAS, In Persona

Christi Capitis. Il ministro ordinato come rappresentante di Cristo capo della Chiesa nella discussione

teologica da Pio XII ad oggi, Siena 2010, 133-160. 83 Para conhecer melhor o pensamento teológico de H. de Lubac cf. MONDIN, Os grandes teólogos do

século XX (vol. 1), 177-205. 84 Para conhecer melhor o pensamento teológico de Y. Congar cf. MONDIN, Os grandes teólogos do

século XX (vol. 1), 153-176. 85 Para conhecer melhor o pensamento teológico de H. de Lubac cf. MONDIN, Os grandes teólogos do

século XX (vol. 1), 123-151.

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principais correntes do pensamento moderno, a integração da teologia com a vida comum dos cristãos, etc. Diante de tamanha novidade, a primeira reação do magistério pontifício foi de desconfiança, através da encíclica Humani generis (1950), o papa Pio XII condenou algumas teses da Nouvelle théologie. O Concílio Vaticano II foi preparado por uma série de movimentos teológicos: movimento litúrgico, movimento ecumênico, movimento bíblico, movimento patrístico, nouvelle théologie, etc. A teologia posterior ao Concílio Vaticano II86 pode ser largamente apresentada a partir de duas tendências contrastantes:

a) Tendência a sublinhar a descontinuidade entre a doutrina do Concílio a Tradição precedente, a partir de uma particular interpretação de um suposto espírito do Vaticano II que seria o fundamento da radical novidade (teológica, litúrgica, pastoral, etc.) do ensinamento conciliar (H. Küng, E. Schillebeeckx87);

b) Tendência a sublinhar a continuidade com a Tradição precedente, a partir de um estudo atento dos textos oficiais do Concílio e das atas conciliares, sem que por isso, sejam esquecidas as novidades pontuais do Vaticano II. A teologia busca se enriquecer a partir das indicações do Concílio. Vaticano II (H. U. von Balthasar88, J. Ratzinger89, Y. Congar).

1.7- Linguagem teológica

Quanto à linguagem, nos recorda C. Boff, a tradição clássica distingue três espécies de linguagem:

a) Unívoca: “Exprime coisas segundo o mesmo sentido. É a linguagem que adere como que imediata e direta à realidade. Refere-se a conceitos adequados , proporcionados à realidade que representam, embora esta desborde sempre os conceitos, que são sempre aproximativos (menos talvez na matemática, etc.)”90. O autor prossegue e acrescenta que este tipo de linguagem não serve para nos referirmos a Deus, pois este se

86 Para um estudo aprofundado das correntes teológicas posteriores ao Concílio Vaticano II cf. A.

MARRANZINI (org.), Correnti teologiche post-conciliari, Roma 1974. 87 Para conhecer melhor o pensamento teológico de E. Schillebeeckx cf. MONDIN, Os grandes teólogos

do século XX (vol. 1), 237-268. 88 Para conhecer melhor o pensamento teológico de H. U. von Balthasar cf. MONDIN, Os grandes teólogos

do século XX (vol. 1), 207-235. 89 Para conhecer melhor o pensamento teológico de J. Ratzinger cf. T. ROWLAND, A Fé de Ratzinger. A

Teologia do Papa Bento XVI, São Paulo 2013; S. MADRIGAL (org.), El pensamento de Joseph Ratzinger.

Teólogo y Papa, Madrid 2009. 90 BOFF, Teoria do Método Teológico, 300.

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encontra em outro nível ontológico. Uma tentativa de aplicar a linguagem unívoca a Deus se encontra no discurso teológico de caráter antropomórfico;

b) Equívoca: Quando “se predica de realidades totalmente diferentes entre si segundo o mesmo sentido” (S. Theol. I q. 13 a. 5). Quando se atribui o mesmo nome a duas realidades essencialmente diferentes, como quando damos o nome de animais às constelações e aos seres vivos terrestres... A teologia reconhece os limites da linguagem humana para tratar de seu objeto específico, mas afirma que a linguagem humana não é puramente equívoca (exterior e arbitrária), pois Deus se revelou usando a linguagem humana. O agnosticismo é o erro dos equivocistas91;

c) Analógica: “Efetivamente, para falar de Deus se podem empregar termos de nossa linguagem humana, indicando por uma parte, o que no Mistério ‘bate’ com seu sentido e, por outra, o que não ‘bate’. É isso precisamente o que faz a linguagem analógica (...) A analogia é, com efeito, uma espécie de semelhança . Mas, não é mera semelhança, como a do filho com o pai. Essa é uma semelhança unívoca. A semelhança analógica é uma semelhança unida a uma dessemelhança, que é sempre maior. Trata-se, pois, de uma ‘dessemelhança semelhante’. Na analogia se vê mais o diferente que o semelhante, como, por exemplo, a vida na planta e no homem”92.

Uso teológico da analogia:

“ A analogia teológica compõe uma linguagem que arranca da experiência do mundo e, nela apoiada, aponta para o que está para além do mundo – o Mistério de Deus”93.

Francis Bacon († 1626) escreveu: “A natureza se revela à inteligência como um raio direto; Deus como um raio refratado através das criaturas; o homem se manifesta a si mesmo como um raio reflexo”94.

Exemplos ilustrados de analogia: Exemplo 1 – Ser.

91 Cf. BOFF, Teoria do Método Teológico, 307. 92 BOFF, Teoria do Método Teológico, 309. 93 BOFF, Teoria do Método Teológico, 314. 94 F. BACON, De dignitate et argumentis scientiarum, I. III, cap. 1, apud BOFF, Teoria do Método

Teológico, 314.

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Exemplo 2 - Paternidade

O IV Concílio de Latrão (1215) declarou: “Entre o Criador e a criatura não se pode colocar uma semelhança maior do que a dessemelhança” (DH 806). As três vias da linguagem analógica:

1- Via da afirmação: Inclui todas as proposições que predicam algo de Deus de modo afirmativo. Atribuem-se a Deus perfeições puras, abstraídas transcendentalmente das criaturas: sabedoria, bondade, beleza, simplicidade, permanência, poder, etc. De si mesmas, essas ideias não possuem limites conceituais. Em seu conteúdo formal são abertas ao infinito. Por isso podem ser predicadas formalmente de Deus. Essa é a linguagem própria sobre Deus”95; Esta via consta de enunciados com conteúdo negativo: Deus é in-corpóreo; não gerado, in-finito, ab-soluto. Para

2- Via da remoção (negativa): “Esta via consta de enunciados com conteúdo negativo: Deus é in-corpóreo; não gerado, in-finito, ab-soluto”. Para Tomás de Aquino, essa via é a via real do conhecimento de Deus: “Deve-se usar, principalmente, na consideração da

95 BOFF, Teoria do Método Teológico, 340.

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substância divina a via da negação [via remotionis]” (S. contra os Gentios I cap. 14). Santo Agostinho afirma: “Deus se sabe melhor dessabendo; Se compreendes a Deus não é ele! Ser chegaste ao fim, não é Deus”96. No seu comentário ao tratado da Trindade de Boécio, Tomás ensina: “Quanto mais negações se conhecem de Deus tanto menos confuso se faz o conhecimento em nós” (In Boetium... q. 6, a. 3).

3- Via da eminência: “Esta forma de predicação é constituída de afirmações relativas aos Mistérios, enquanto levadas ao grau supremo. Exemplo: Deus é boníssimo, Deus é a sabedoria por excelência, Cristo é o Senhor dos senhores, etc. (...) A via da eminência, em si mesma, não diz nada de circunscrito em Deus. Ela é apenas abertura de uma qualidade ao infinito. Nesse sentido, ela é o corretivo de toda a afirmação, elevando esta ao nível da transcendência. Tal elevação não acontece pela via do aumento, mas pela via do salto ao infinito, o qual define justamente a via da eminência”97. São Bernardo afirmava: “Por mais alto que o pensamento avance, Deus está para além” (De Consideratione V, 7, 16).

1.8- O Teólogo e o Magistério

Em 24 de maio de 1990, a Congregação para a Doutrina da Fé publicou

uma instrução sobre a vocação eclesial do teólogo. A clareza e o

embasamento teológico de tal documento contrastou as críticas que o

mesmo recebeu por parte de teólogos da Alemanha e da América Latina.

Na apresentação da referida instrução, o então prefeito da

Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, recordou que depois

do Concílio Vaticano II, a importância do teólogo e da teologia para toda a

comunidade de crentes passou a ser visível de uma maneira nova para

todos os crentes98.

A teologia gerada pelos movimentos litúrgico, bíblico ecumênico e

mariano, contribuiu decididamente para a fecundidade do Concílio

96 C. Boff (p. 342) cita Y. CONGAR, Langage des spirituels et langage des théologiens, in: AA. VV., La

mystique rhénane. Colloque de Strasbourg (16-19/05/61), Paris 1963, 17-23. 97 BOFF, Teoria do Método Teológico, 344. 98 Cf. J. RATZINGER, Natureza e missão da teologia, Petrópolis 1993, 87.

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Vaticano II. Durante o referido Concílio, os próprios bispos se deixaram

guiar de boa vontade em suas decisões pelo parecer de insignes teólogos.

Infelizmente, depois do Concílio, notou-se que alguns teólogos passaram a sentir-se mais e mais como os verdadeiros mestres da Igreja, os mestres inclusive dos bispos. Sob o influxo de alguns importantes meios de comunicação, a opinião pública passou a exaltar o ensinamento de alguns teólogos, apresentando-os como sinônimo de progresso, enquanto o magistério da Santa Sé passou a ser considerado como expressão do fracassado autoritarismo centralizador romano99.

O documento se propõe a refletir sobre o verdadeiro papel eclesial do teólogo.

O documento está dividido em 4 partes. Na primeira se fala do sujeito comunitário da fé, ou seja, a Igreja. A verdade é um dom de Deus para o seu povo! Na segunda parte, trata-se da vocação do teólogo. Na terceira parte, o documento apresenta o Magistério da Igreja. Na última parte da Instrução, se reflete sobre a relação entre o teólogo e o magistério.

Apresentaremos brevemente a segunda e a quarta parte da Instrução:

2. A Vocação do Teólogo. O Teólogo é portador de um chamado, sua vocação consiste em

adquirir, em comunhão com o Magistério, uma compreensão sempre mais profunda da Palavra de Deus contida na Escritura inspirada e na Tradição viva da Igreja (n. 6). O cardeal Ratzinger em sua apresentação, já mencionada, recorda ainda que a teologia possui a sua origem em duas raízes: o dinamismo da fé (que busca a verdade e a compreensão) e o dinamismo do amor (que busca conhecer melhor a quem ama)100.

O documento afirma que “o empenho teológico exige um esforço espiritual de retidão e de santificação” (n. 9).

Na busca de sua missão específica (compreender o sentido da Revelação), o teólogo precisa adquirir ferramentas filosóficas sólidas que lhe forneçam um sólido e harmônico conhecimento do homem, do mundo e de Deus, do mesmo modo as ciências históricas são igualmente necessárias, dada natureza histórica da própria Revelação. Deve-se ainda, ensina a Instrução, recorrer às ciências humanas para melhor compreender a verdade revelada sobre o homem e sobre as normas morais de seu agir.

Mas, “é importante sublinhar que a utilização pela teologia de elementos e instrumentos conceituais oriundos da filosofia ou de outras disciplinas, exige um discernimento cujo princípio normativo último é a

99 Cf. RATZINGER, Natureza e missão da teologia, 88. 100 Cf. RATZINGER, Natureza e missão da teologia, 90.

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doutrina revelada. É ela que deve fornecer os critérios para o discernimento destes elementos e instrumentos conceituais, e não vice-versa” (n. 10).

No n. 11, lemos que o teólogo exercita a sua missão no interior da fé da Igreja . “Por conseguinte a teologia, enquanto ’serviço muito desinteressado à comunidade dos fiéis, comporta essencialmente um debate objetivo, um diálogo fraterno, uma abertura e uma disponibilidade para modificar as próprias opiniões’” (n. 11).

O cardeal Ratzinger, em sua apresentação, observa que para o teólogo, além do rigor metódico, duas coisas são necessárias: a filosofia, ciências históricas e humanas, mas também a participação ativa na vida da Igreja (fé, oração, meditação, vida cristã autêntica, etc.)101.

“Na teologia (...) [a] liberdade de investigação inscreve-se no interior de um saber racional cujo objeto é dado pela Revelação, transmitida e interpretada na Igreja sob a autoridade do Magistério, e acolhida pela fé. Descurar estes dados que têm valor de princípio, seria equivalente a deixar de fazer teologia” (n. 12).

Vejamos agora a quarta parte da Instrução:

4. Magistério e Teologia Esta quarta parte se divide em dois pontos: a) as relações de

colaboração; b) o problema da dissensão.

a) As relações de colaboração (nn. 21-31)

“O Magistério vivo da Igreja e a teologia, mesmo tendo dons e funções diferentes, têm em última análise o mesmo fim: conservar o Povo de Deus na verdade que liberta fazendo dele, assim, a ‘luz das nações’. Este serviço à comunidade eclesial põe em relação recíproca o teólogo com o Magistério. Este último ensina autenticamente a doutrina dos Apóstolos, e beneficiando-se do trabalho teológico, refuta as objeções e as deformações da fé, propondo além disso, com autoridade recebida de Jesus Cristo, novos aprofundamentos, explicitações e aplicações da doutrina revelada. A teologia por sua vez adquire, reflexivamente, uma compreensão sempre mais profunda da Palavra de Deus, contida na Sagrada Escritura e transmitida fielmente pela Tradição viva da Igreja sob a guia do Magistério, procura esclarecer o ensinamento da Revelação diante das instâncias da razão, e enfim lhes confere uma forma orgânica e sistemática” (n. 21).

O n. 22 acrescenta:

101 Cf. RATZINGER, Natureza e missão da teologia, 91.

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“A colaboração entre o teólogo e o Magistério se realiza de maneira especial quando o teólogo recebe a missão canónica ou o mandato de ensinar. Essa se torna então, em certo sentido, uma participação da obra do Magistério, ao qual um vínculo jurídico a une. As normas de deontologia que derivam por si mesmas e com evidência do serviço à Palavra de Deus são corroboradas pelo compromisso contraído pelo teólogo aceitando o seu trabalho e emitindo a Profissão de fé e o Juramento de fidelidade.

Desde aquele momento ele é investido oficialmente do dever de apresentar e ilustrar, com toda a exatidão e na sua integridade, a doutrina da fé” (n. 22).

No n. 25, encontra-se um ensinamento muito importante para os teólogos: “Ainda quando a colaboração se desenvolve nas mais propícias condições, não é impossível que nasçam entre o teólogo e o Magistério certas tensões. O significado que a elas é dado e o espírito com que são encaradas não são indiferentes: se as tensões não nascem de um sentimento de hostilidade e de oposição, podem representar um fator de dinamismo e um estímulo que impele o Magistério e os teólogos a cumprir as suas respectivas funções praticando o diálogo. 26. No diálogo deve dominar uma dupla regra: quando está em questão a comunhão de fé vale o princípio da ‘unitas veritatis’; quando persistem eventuais divergências que não põem em risco esta comunhão, salvaguardar-se-á a ‘unitas caritatis’. 27. Ainda que a doutrina da fé não esteja em questão, o teólogo não apresentará as suas opiniões ou as suas hipóteses como se se tratasse de conclusões indiscutíveis. Esta discrição é exigida pelo respeito à verdade, assim como pelo respeito pelo Povo de Deus (cf. Rm 14, 1-15; 1 Cor 8, 10. 23-33). Pelos mesmos motivos ele renunciará a uma expressão pública e intempestiva delas” (n. 25).

O teólogo não deve se sentir dono ou juiz da verdade, mas um humilde servo da mesma.

b) O problema da dissensão (nn. 32-41).

“O fenômeno da dissensão pode ter diversas formas, e as suas causas remotas ou próximas são múltiplas. Entre os fatores que podem influir remota ou indiretamente, deve-se recordar a ideologia do liberalismo filosófico102, do qual está impregnada também a mentalidade da nossa

102 “Daqui provém a tendência a considerar que um juízo tem valor tanto maior quanto mais provenha do indivíduo que se apoia sobre as suas próprias forças. Assim se opõe a liberdade de pensamento à autoridade da tradição, considerada causa de escravidão” n. 32.

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época (...) O peso de uma opinião pública 103artificiosamente orientada e dos seus conformismos, exerce também a sua influência (...) Enfim, também a pluralidade das culturas e das línguas, que em si mesma é uma riqueza, indiretamente pode conduzir a mal-entendidos, motivo de sucessivos desacordos” (n. 32). “A dissensão pode revestir-se de diversos aspectos. Na sua forma mais radical, ela tem em mira a transformação da Igreja de acordo com um modelo de contestação inspirado naquilo que se faz na sociedade política” (n. 33). “A justificação da dissensão se apoia, em geral, sobre diversos argumentos, dos quais dois têm caráter mais fundamental. O primeiro é de ordem hermenêutica: os documentos do Magistério não seriam nada mais que o reflexo de uma teologia opinável. O segundo invoca o pluralismo teológico, levado às vezes até um relativismo que coloca em questão a integridade da fé: as intervenções magisteriais teriam a sua origem em uma teologia entre muitas outras, enquanto nenhuma teologia particular pode ter a pretensão de impôr-se universalmente” (n. 33).

Como conclusão desta breve apresentação da Instrução relativa à

missão eclesial do Teólogo, propomos o seguinte trecho:

“Mesmo sendo a teologia e o Magistério de natureza diversa, e ainda tendo missões diversas, que não podem ser confundidas, trata-se contudo de duas funções vitais na Igreja, que devem compenetrar-se e enriquecer -se reciprocamente para o serviço do Povo de Deus” (n. 40).

103 “Com frequência os modelos sociais difundidos pelos ‘mass-media’ tendem a assumir um valor normativo; se difunde, em particular, a convicção de que a Igreja não deveria se pronunciar, a não ser sobre problemas considerados importantes pela opinião pública, e no sentido que convenha a esta”, n. 32.

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ID., A Tradição Apostólica (Audiência Geral do 03 de maio de 2006), in: L’Osservatore Romano (Edição semanal em português) n. 18 (1898), 06 de

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rappresentante di Cristo capo della Chiesa nella discussione teologica da Pio XII ad oggi, Siena 2010.

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Sumário 1.1- O que é a Teologia? ....................................................................................................... 3

1.2- Teologia Sistemática.................................................................................................... 14

1.3- As fontes da Teologia .................................................................................................. 17

1.3.1- Sagrada Escritura....................................................................................................... 19

1.3.2- Sagrada Tradição ....................................................................................................... 20

1.3.3- Magistério da Igreja .................................................................................................. 32

1.4- As duas funções da Teologia ....................................................................................... 34

1.5- Dogma e dogmas ......................................................................................................... 37

1.6- Breve história da Teologia ........................................................................................... 39

1.7- Linguagem teológica ................................................................................................... 43

1.8- O Teólogo e o Magistério ............................................................................................ 46

Bibliografia .................................................................................................................................. 51