maybury-lewis e a etnologia brasileira

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Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10713674002 Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal Sistema de Información Científica Roque de Barros Laraia Maybury-Lewis e a etnologia brasileira Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 23, núm. 67, junio, 2008, pp. 9-14, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais Brasil Como citar este artigo Fascículo completo Mais informações do artigo Site da revista Revista Brasileira de Ciências Sociais, ISSN (Versão impressa): 0102-6909 [email protected] Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais Brasil www.redalyc.org Projeto acadêmico não lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

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Page 1: Maybury-Lewis e a Etnologia Brasileira

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=10713674002

Red de Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal

Sistema de Información Científica

Roque de Barros Laraia

Maybury-Lewis e a etnologia brasileira

Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 23, núm. 67, junio, 2008, pp. 9-14,

Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais

Brasil

Como citar este artigo Fascículo completo Mais informações do artigo Site da revista

Revista Brasileira de Ciências Sociais,

ISSN (Versão impressa): 0102-6909

[email protected]

Associação Nacional de Pós-Graduação e

Pesquisa em Ciências Sociais

Brasil

www.redalyc.orgProjeto acadêmico não lucrativo, desenvolvido pela iniciativa Acesso Aberto

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MAYBURY-LEWIS E A ETNOLOGIA BRASILEIRA

Roque de Barros Laraia

Ao receber a notícia da morte de David May-bury-Lewis, pensei na importância que ele teve paraa minha formação como antrpólogo. E, surpre-endentemente, constatei que não consigo recordaro momento exato em que o conheci. Recordo-me, muito bem, da chegada de seus alunos noMuseu Nacional, em 1962 com Terence Turner eJoan Bamberger; seguidos nos ano seguinte porJean Carter e Dolores Newton, e posteriormentepor John Christopher Crocker e Cecil Cook, noâmbito do Convênio Harvard-Museu Nacional,organizado por ele e Roberto Cardoso de Olivei-ra. Eu e meus colegas do Museu Nacional admi-rávamos a sua postura elegante, a gentileza comque tratava as pessoas, o seu português perfeito.Afinal estávamos diante de um antropólogo britâ-nico, professor da renomada Universidade de Har-vard, que tivera a audácia de realizar um difícil tra-

balho de campo entre os aguerridos índios Xavan-te, juntamente com a sua mulher, Pia, e o seu filhopequeno, Biorn. Com o passar do tempo, nossaadmiração cresceu ainda mais, em virtude de suaousadia em criticar num artigo famoso o monstrosagrado da antropologia, Claude Lévi-Strauss.

Em 1963, tive a oportunidade de participarde seu trabalho de campo junto aos índios Xerente,em Tocantínia, ainda Estado de Goiás. Na verdade,meu trabalho consistia em pesquisar as representa-ções que os moradores da pequena cidade tinham arespeito dos Xerente. Diante da difícil situação exis-tente entre índios e brancos, não era possível a ummesmo pesquisador trabalhar simultaneamente comas duas partes em conflito. Redigi, então, um relató-rio, cujos dados deveriam ser incluídos no seu livrosobre os Xerente, o qual infelizmente nunca foi redi-gido. Antes de meu regresso, não pude recusar seupedido de acompanhar suas alunas, Dolores e Jean,até a aldeia Krikrati, no município de Montes Altos,

RBCS Vol. 23 n.o 67 junho/2008

Artigo recebido em maio/2008Aprovado em junho/2008

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REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 23 No. 6710

no Maranhão. Foi uma viagem acidentada, em umaRural Willis, por estradas praticamente inexistentes.

Dois anos depois, a convite de David, junta-mente com Lúcia e o nosso filho Renato, parti paraum estágio de um ano no Laboratory of SocialRelations, na Universidade de Harvard. Tive a opor-tunidade de conviver ali com importantes cientistassociais, lingüistas e psicólogos naquela importanteexperiência de criar uma área de interdisciplinari-dade em Harvard. A figura que mais me impressio-nou foi a de Talcott Parson, então considerado omais importante sociólogo norte-americano. O meustatus era o de pesquisador associado, mas me ins-crevi como aluno especial no curso de doutoradoem antropologia, tendo cursado quatro disciplinas,sendo duas ministradas por David. Foi, então, queconheci colegas como Patrick Menget, Pierre Maran-da, Renato Rosaldo, Michele Zimbalistic, SheltonDavis, e dois estudantes de Chicago que passaramum ano em Harvard, pois pretendiam estudar índiosbrasileiros, Ellen Becker e David Price. Nesse perío-do, freqüentei muito a casa de Pia e de David eserei sempre grato pelo carinho que me receberam,juntamente com a minha família, em Cambridge.

Nos anos posteriores, David veio muitas ve-zes ao Brasil, eu fui algumas vezes a Cambridge, eo que era de início um relacionamento profissionalfoi se transformando em uma forte amizade. Poristo, em 2001, quando me tornei presidente daAnpocs, convidei-o para proferir uma Conferên-cia no XXV Encontro Anual da Anpocs. Lembro-me de sua insistência em falar em inglês, alegandonão ter segurança para se pronunciar em português.A principio pensei que agia assim por causa de umcerto formalismo britânico, mas isso foi decorrên-cia da doença que mais tarde o vitimou. Afinal,David sentia orgulho do seu excelente português.

* * *

Mas, para os leitores jovens e que não traba-lham com etnologia, creio ser importante falar so-bre quem foi David Henry Peter Maybury-Lewis.Nascido em 5 de maio de 1929, em Hyderabad,no Paquistão, ele declarou: “Nasci em uma naçãoque não existia naquela época” (2001, p. 50). O seupai era engenheiro e trabalhava na Índia a serviçodo Império Britânico. Foi nessa região remota daÍndia que David viveu os sete primeiros anos devida, fato que lhe possibilitou ser socializado simul-

taneamente em duas línguas – inglês e urdu –, oque explica sua enorme facilidade para aprenderidiomas.1 Em seu livro Millennium: tribal Wisdom andthe modern world (1992), ele lembra os constantes des-locamentos que a família fazia pelo interior daqueleterritório colonial. Toda a carga era transportadaem 24 camelos, dirigidos por homens da etnia sind,que os urdus consideravam selvagens. SegundoDavid, esse foi seu primeiro encontro com a alteri-dade: “Eu me lembro ainda dos cantos que elescantavam quando saíam com os camelos e a casaficava vazia” (RBCS, 2001, n. 50). Nunca soube seDavid voltara ao Paquistão, mas com certeza oscamelos permaneceram em sua memória, poismuitos anos depois, quando escreveu sobre osXerente, fez uma menção a esse animal: “Pude ou-vir tossidas em várias casas e do lado mais distanteda aldeia vinha a voz, mais áspera do que nunca,agora se lamuriando como um camelo protestan-do” (Maybury-Lewis, 1990, p. 65).

Em 1936, Maybury-Lewis partiu para a Ingla-terra para iniciar seus estudos formais. Em nossasconversas, não comentava muito sobre o duro perío-do vivido em um país em guerra, salvo poucas men-ções ao rigoroso racionamento de alimentos, sobo qual viveu praticamente toda a sua adolescência.

Cursou a Universidade de Cambridge, ondese graduou em espanhol e russo. Fez também dis-ciplinas sobre a história da conquista da América.A tragédia dos índios americanos o deixou pro-fundamente impressionado, daí seu interesse pelaetnologia. Coincidentemente, quando procuravaencontrar meio para realizar uma pesquisa na Amé-rica do Sul, ocorreu em Cambridge uma reuniãode antropólogos especialistas em estudos america-nos. “Saí a abordar pesquisadores importantes, per-guntando-lhes se havia alguma maneira de um jo-vem inglês, com vocação para aprender línguas esem dinheiro, ir para a América fazer pesquisa an-tropológica” (Idem, p. 28). Todos lhe desejaram boasorte e nada mais, até que conheceu um antropólo-go alemão, radicado no Brasil, que lhe sugeriu queentrasse no país através da fronteira com a GuianaInglesa, sem nenhuma formalidade, e assim ter aces-so a muitos grupos indígenas da Amazônia. Trata-va-se de Herbert Baldus, então professor na Escolade Sociologia de Política de São Paulo e, posterior-mente, diretor do Museu Paulista e presidente daAssociação Brasileira de Antropologia (1961-1963).David entusiasmou-se com a idéia, mas felizmente

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encontrou um caminho mais fácil para trabalharno Brasil como professor de inglês, em São Paulo.

Foi uma surpresa enorme para Baldus quan-do, cerca de um ano depois, David apareceu emseu escritório: “Bom, eu sou aquele que conversoucom o senhor no Congresso dos Americanistas, láem Cambridge, e estou aqui com um contrato naCultura Inglesa para ensinar inglês e gostaria de es-tudar etnologia brasileira com o senhor. Foi assimque eu comecei, foi assim que vim para o Brasil”(Maybury-Lewis, 2001, p. 6).

Durante dois anos, David e Pia foram alunosde Baldus. Foi nesse período que surgiu a idéia derealizar a pesquisa entre os índios Xavante. Segun-do David (1990, p. 2), Baldus informou-lhe que aspesquisas realizadas, anteriormente, por Nimuen-dajú e missionários salesianos, entre os Jê, tinhamlevantado sérios problemas teóricos que somentepoderiam ser resolvidos com novas pesquisas. Es-colheu então os Xavante, que ainda não tinham sidodevidamente pesquisados. Considerando, porém,a dificuldade de contato com um grupo indígenaextremamente belicoso sem um bom conhecimen-to da língua, David resolveu iniciar a pesquisa comuma etapa preliminar junto aos Xerente, falantesdo mesmo idioma. O resultado dessa estadia foiapresentado como dissertação de mestrado na Es-cola de Sociologia e Política de São Paulo. Disser-tação essa que contínua inédita:

[. . .] porque eu a achei fraca. Ela era razoável e pormeio dela consegui o grau de mestre. Mas não era umacoisa que eu ia publicar a não ser depois de trabalhá-la.Depois eu perdi o fio. . . Fui para os Xavante, estavapublicando coisas sobre os Xavante [. . .] publiquei ar-tigos sobre os Xerente. . . Mas o livro sobre os Xerenteeu estou devendo ainda (Maybury-Lewis, 2001, p. 7).

Em 1958, juntamente com Pia e Biorn, aindaum bebê, iniciou sua pesquisa entre os Xavante. Foium trabalho árduo que exigiu muita persistênciapor parte do casal: David esforçando-se por en-tender uma sociedade tão complexa, constituída declãs, metades e classes de idades; Pia esforçando-separa dar conta dos aspectos logísticos da vivênciaali. Mal tinham chegado à aldeia, os Xavante iniciaramo seu período de perambulação. David foi comeles, apesar de todos os conselhos contrários porparte dos funcionários da agência indigenista. Umdeles lhe disse: “vai ser dureza”. Ele tinha razão, aexpressão lhe pareceu acertada e muito concisa:

[. . .] me sentia como um molusco numa rocha. Todo ouniverso parecia ser feito de dureza. O chão no qualdormíamos era duro. A comida que comíamos era dura etinha que ser cortada com os dentes fortes ou presa naboca e cortada com uma faca. A luminosidade era du-ra de dia e o frio era duro à noite. Era duro caminharnas trilhas, duro sob os pés no alto verão e duro abriruma picada (Maybury-Lewis,1990, pp. 180-181).2

O trabalho de campo entre os Xavante resul-tou, inicialmente, em sua tese de doutorado defen-dida na Universidade de Oxford, sob a orientaçãode Rodney Needham, um dos mais eminentes an-tropólogos britânicos, publicada pela editora Cla-rendon Press, em 1965, sob o título Akwe savantesociety. Trata-se, sem dúvida, de uma das melhoresmonografias sobre um grupo indígena brasileiro.David era um recém-doutor quando foi contrata-do por Harvard. Nessa instituição permaneceu atéo fim de sua vida. O cidadão britânico, nascido naÁsia, optou pelo Novo Mundo.

Grande parte dos antropólogos estrangeiros querealizam suas pesquisas de doutorado entre os índiosno Brasil encerra sua ligação com o país a partir domomento da defesa de tese, mas não foi o que ocor-reu com Maybury-Lewis. Logo no início dos anosde 1960, ainda como um professor assistente emHarvard, ele organizou juntamente com RobertoCardoso de Oliveira, que conheceu em 1953 no Mu-seu do Índio, o Harvard-Central Brazil Research Pro-ject, no âmbito de um Convênio entre o Museu Na-cional e a Universidade de Harvard. Tratava-se, defato, da junção de dois projetos originais: o de Ro-berto Cardoso de Oliveira, “Projeto de áreas de fric-ção interétnica”, financiado pelo Centro Latino-ameri-cano de Pesquisas em Ciências Sociais, que incluíamas pesquisas de Roberto DaMatta (sobre Gaviões eApinayé), Roque de Barros Laraia (Surui e Akwawa-Asurini), Júlio Cezar Melatti (Krahô) e Marcos Ma-galhães Rubinger (Maxakali), todos ex-alunos deCardoso de Oliveira. Pelo lado norte-americano,após suas pesquisas entre os Xavante e Xerente,David interessou-se por um estudo comparativoentre os grupos Jê. Assim seu projeto incluía as pes-quisas de seus alunos Terence Turner e Joan Bamber-ger (Kayapó), Jean Carter e Dolores Newton (Kri-krati) e J. Christopher Crocker (Bororo).3 É umapena que as teses resultantes dessa interessante pes-quisa nunca terem sido publicadas, com exceção deDaMatta e Melatti. Em compensação, David editouo volume Dialectical societies (Harvard Studies in

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Cultural Anthropology, Cambridge/Londres, 1979),no qual cada um dos pesquisadores participantesapresentou um artigo sobre os grupos Jê estudados.

O primeiro lustro da década de 1960 foi umperíodo extremamente produtivo para Maybury-Lewis. Em 1960, publicou “The analysis of dualorganizations: a methodological critique”, tendoainda como vínculo acadêmico o Instituto de An-tropologia Social da Universidade de Oxford.Nesse artigo, o autor criticava o trabalho de Lévi-Strauss, “Les organizations dualistes existent-elles?”(1956), que imediatamente lhe respondeu com oartigo, publicado no mesmo número da revista,“On manipuled sociological models”. Em 1965, jána Universidade de Harvard, publicou “Prescrip-tive marriage systems”, no qual critica o posiciona-mento de Lévi-Strauss em Les structures elementairesde la parenté (1967 [1947]). Juntamente com as críticasformuladas a este mesmo livro por Rodney Need-ham, as publicações de David foram temas de mui-tos debates nos meios acadêmicos de então. Lévi-Strauss limitou-se a responder a Maybury-Lewis emuma simples nota de rodapé no prefácio da segun-da edição de seu famoso livro. Quarenta anos de-pois, comentando esse fato, David afirmou: “Euestava treinado para fazer críticas estruturalistas.Então eu comecei a fazer uma crítica muito exten-sa ao trabalho de Lévi-Strauss, mas felizmente euparei. Fiquei pensando, por que estou fazendo isso?É uma crítica tão detalhada que deixa de ser gene-rosa. E eu não quero fazer isso”. Mas ele reconhe-cia que as críticas foram importantes para uma li-nha de comparação no Brasil Central. Antes do seuprojeto, cada antropólogo estudava o seu grupo enão fazia as comparações necessárias para resolverimportantes problemas teóricos.

Em 1966, David organizou em Harvard umseminário para discutir os resultados das pesquisasrealizadas no Brasil Central. Participaram do en-contro todos os seus alunos. Roberto Cardoso deOliveira, Roberto DaMatta, Júlio Cezar Melatti eeu também fomos convidados.4 Após esse Semi-nário, Cardoso de Oliveira teve a idéia de criar oPrograma de Pós-Graduação em AntropologiaSocial no Museu Nacional, em plena ditadura mili-tar, o que só foi possível graças ao apoio da Fun-dação Ford. É sabido que David desempenhou umgrande papel na obtenção do apoio dessa agêncianorte-americana de fomento. Foi ele também oprimeiro professor visitante do PPGAS.

No final da década de 1960, em função dacriação do PPGAS, e como parte do Convênioentre Harvard e o Museu Nacional, propuseram àFundação Ford um projeto de pesquisa no Nordestee no Brasil Central: “Estudo comparativo do desen-volvimento regional: Nordeste-Brasil Central”. Es-tabeleceu-se, então, uma divisão de trabalho. Cou-be a Cardoso de Oliveira coordenar as pesquisasno Brasil Central, tendo como eixo a recém-cons-truída rodovia Belém-Brasília. David coordenou aparte referente ao Nordeste, onde residiu por al-gum tempo. A partir daí, desenvolveu uma forterelação com os meios acadêmicos pernambucanos.

Após ter residido em São Paulo, Rio de Janeiroe Recife, aceitou o convite para ir a Brasília, ser pro-fessor-visitante do Programa de Pós-Graduação emAntropologia Social da UnB, criado em 1972.

Dificilmente recusava um convite para vir aoBrasil, país que ele aprendeu a amar. Em suas horasde lazer gostava de cantar canções brasileiras, inclu-sive as marchas de carnaval. Como professor emHarvard, orientou vários antropólogos brasileiros– Roberto DaMatta, Klaas Woortmann, Mariza Pei-rano e Roberto Kant de Oliveira. Apesar de nãoter orientado Aracy Lopes da Silva, que tambémestudou os Xavante, eles se tornaram grandes ami-gos, e passavam grande tempo conversando sobre“seus” índios.

Tendo vivido no Brasil durante os anos daditadura militar, quando um discurso desenvolvi-mentista ameaçava os direitos indígenas, Davidparticipou de várias manifestações realizadas noexterior em favor das populações indígenas brasi-leiras. Em 1972, juntamente com Pia, sua compa-nheira de pesquisas e de toda a vida, fundou a Cul-tural Survival, uma organização não-governamental,sediada em Cambridge, com a finalidade de “de-fender os direitos, as vozes e as visões dos povosindígenas de todo o mundo”. Essa instituição fi-nanciou diversos projetos no Brasil, inclusive umseminário organizado por Silvio Coelho dos San-tos em Florianópolis, em 1980, que reuniu antro-pólogos e advogados empenhados na defesa dosdireitos indígenas brasileiros.

No final dos anos de 1980, David aceitou odesafio de participar, em uma posição de desta-que, da produção de uma série para a televisão quetratava da diversidade cultural. Para a realizaçãodesse projeto, empreendeu, juntamente com umaequipe de TV, uma viagem de volta ao mundo,

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visitando dez povos que ainda guardavam seuscostumes tradicionais. Esteve entre os Gabra nonorte do Quênia, um povo nômade que tem noscamelos a sua principal riqueza. Na África Ociden-tal, visitou os Dogon, em Mali, povo que possuium elaborado sistema de rituais funerários. Aindana África Ocidental, esteve entre os Woddabe, naNigéria – nessa sociedade um homem pode reali-zar simultaneamente dois tipos de casamento: umcom a mulher que lhe foi destinada pelas regrastradicionais do parentesco e outro com a mulherescolhida pelo “coração”. Na América, os Navajoforam os escolhidos entre todos os índios dos Es-tados Unidos. Maybury-Lewis destaca a luta de doisséculos desse povo para continuar mantendo suacultura ao mesmo tempo em que participa doscostumes da sociedade majoritária. Os Huichol doMéxico enfrentam os mesmos dilemas dos Nava-jo: conciliar a sua resistência cultural com o adianta-do grau de integração na sociedade mexicana – umavez por ano eles empreendem uma grande pere-grinação à terra de seus antepassados, Wirikula,quando os xamãs os orientam na utilização do peyo-te, o alucinógeno dos deuses. Visitaram também osMakuna da Colômbia, que acreditam que os ani-mais vivem em comunidades iguais às humanas. E,como não poderia deixar de ser, David incluiu osXavante em seu roteiro, apresentando-os como umpovo que, por meio de seus rituais de iniciação,superam as dificuldades decorrentes da puberdadeno mundo ocidental. Em toda a Ásia, ele optoupor dois povos: Os Nyimba, do Nepal, um dosraros povos da Terra onde é possível encontrar umsistema matrimonial poligâmico; na Indonésia, osWeyewa, que têm um original sistema de reciproci-dade, em que os presentes de maior valor retribu-ídos em uma ocasião de festividade cabem aosconvidados oferecerem. Com efeito, uma retribui-ção maior por parte de quem convidou significa ofinal definitivo das relações sociais entre eles. AOceania foi representada pelos Aborígines, quecostumam negar que a matéria é o primeiro nívelda realidade.

Essa série televisiva resultou no livro Millen-nium: tribal Wisdom and the modern world (1992). Comesse projeto, David rompeu os muros da acade-mia e passou a ter uma ampla projeção entre ogrande público. “Mais do que qualquer outro an-tropólogo, desde Margaret Mead, David trouxe asabedoria e o valor de outras maneiras de viver

para dentro dos lares de centenas de milhares depessoas”, disse seu colega de Harvard, J. LorandMatory.

Não seria possível resumir a vida e a obra deMaybury-Lewis no espaço de um artigo, mas creioser relevante esta breve exposição no sentido deque as novas gerações conheçam a trajetória tãopeculiar deste brilhante antropólogo. Quanto a mim,sou grato por ter tido a oportunidade de aprendercom ele e ser seu amigo. Quando o meu trabalhona região dos Xerente terminou, visitei David naaldeia e pude constatar o respeito que esse povotinha por Wakuke, o nome que seu “tio” lhe dera.Para ilustrar, vale lembrar que por conta disso, alémde sua fluência na língua nativa, ele foi capaz deintervir, em certa ocasião, em um conflito entre doishomens que trocavam golpes de borduna. À me-dida que falava, os golpes foram cessando, até quefinalmente os dois contendores desistiram da luta,indo cada um para o seu lado, e coube a Pia fazercurativos na cabeça de um deles.

David foi um excelente pesquisador de cam-po, além de demonstrar um completo domínio dateoria antropológica, principalmente no que se re-fere ao parentesco e à organização social. Todosnós reconhecemos seu papel importante em bene-fício da antropologia brasileira, além do seu gran-de amor pelo Brasil. Em 1998, recebeu do gover-no brasileiro a Gran Cruz da Ordem Nacional doMérito Científico, nossa mais alta condecoraçãoacadêmica.

David Maybury-Lewis faleceu, em Cambrid-ge, em 2 de dezembro de 2007.

Notas

Maybury-Lewis falava fluentemente, além do inglês,francês, espanhol, português, alemão, dinamarquês,russo e akwê (Xavante e Xerente).Todas as dificuldades da pesquisa, entre os Xerente e osXavante, estão narradas em seu livro O selvagem e oinocente, 1965, traduzida para o português em 1990.DaMatta e Melatti participaram mais integralmente doprojeto, pois estudavam grupos Jê. A minha participa-ção foi periférica tendo em vista que estudava gruposTupi, do Brasil Central.Roberto Cardoso de Oliveira participou como co-dire-tor do Convênio. Na ocasião, eu me encontrava emHarvard na qualidade de pesquisador associado.

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BIBLIOGRAFIA

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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS 185

RBCS Vol. 23 n.o 67 junho/2008

MAYBURY-LEWIS E AETNOLOGIA BRASILEIRA

Roque de Barros Laraia

Palavras-chave: Etnologia brasileira;Índios Xavante; Índios Xerente; HarvardUniversity; Maybury-Lewis.

Em 2 de dezembro de 2007, faleceu emCambridge (Massachussets) o antropólo-go David Maybury-Lewis. Neste artigo,o autor narra como foi que um cidadãobritânico, nascido onde hoje é o Paquistão,escolheu o Brasil como campo de estudoantropológico, tomando como objeto deestudo a sociedade Xavante. Como pro-fessor da Universidade de Harvard, des-de 1961, continuou mantendo um fortevínculo com a etnologia brasileira, tendosido inclusive orientador de importantesantropólogos brasileiros. Dotado de umaforte simpatia pessoal, tornou-se amigode vários colegas. Seus estudos sobre osXerente e Xavante constituem uma fortecontribuição para a nossa etnologia. Teveum importante papel na fundação do pro-grama de Pós-graduação em Antropolo-gia do Museu Nacional. Em 2001, foium dos conferencistas do Encontro Anualda Anpocs.

MAYBURY-LEWIS AND THEBRAZILIAN ETHNOLOGY

Roque de Barros Laraia

Keywords: Brazilian ethnology; XavanteIndians; Xerente Indians; Harvard Uni-versity; Maybury-Lewis

On December 2, 2007 the anthropologistDavid Maybury-Lewis died in Cambridge(Massachusetts). In this article, the Au-thor tells how a British citizen, born inPakistan, chose Brazil as a field for an-thropological studies, taking the Shavan-te Society as his research object. As a pro-fessor at Harvard University since 1961,he continued his strong link with theBrazilian ethnology, having been super-visor of important Brazilian anthropo-logists. Endowed with a strong personalfriendly style, he became a friend of severalcolleagues. His research with the Sheren-te and Shavante is a great contribution toour ethnology. He played an importantrole in founding the Graduate Programin Anthropology at the Museu Nacional.In 2001 he was one of the speakers at theAnnual Meeting of Anpocs.

MAYBURY-LEWIS ETL’ETHNOLOGIE BRÉSILIENNE

Roque de Barros Laraia

Mots-clés: Ethnologie brésilienne; In-diens Xavante; Indiens Xerente; Uni-versité de Harvard; Maybury-Lewis.

Le 2 décembre 2007, l’anthropologueDavid Maybury-Lewis est décédé à Cam-bridge (Massachussets). Dans cet article,l’auteur raconte pourquoi un citoyen bri-tannique, né où, actuellement, est le Pa-kistan, a élu le Brésil comme domained’étude anthropologique, choisissantcomme sujet l’étude la société Xavante.Professeur à l’Université de Harvard de-puis 1961, Maybury-Lewis maintint unlien étroit avec l’ethnologie brésilienne,ayant même été directeur de thèse d’im-portants anthropologues brésiliens. Dotéd’une forte sympathie personnelle, ildevint l’ami de plusieurs de ses collègues.Ses études sur les Xerente et les Xavanteconstituent une forte contribution à no-tre ethnologie. Il joua un rôle importantdans la fondation du programme de 3ème

cycle en Anthropologie du Musée Natio-nal. Il fut, en 2001, l’un des conférenciersde la Rencontre Annuelle de l’Anpocs.