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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO MAURICIO GALEB DIREITO E CAPITALISMO: O PROCESSO DE TENTATIVA DE RENDIÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS CURITIBA 2014

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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA

PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO

MAURICIO GALEB

DIREITO E CAPITALISMO: O PROCESSO DE TENTATIVA DE R ENDIÇÃO DOS

DIREITOS SOCIAIS

CURITIBA

2014

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CENTRO UNIVERSITÁRIO CURITIBA

PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO

MAURICIO GALEB

DIREITO E CAPITALISMO: O PROCESSO DE TENTATIVA DE R ENDIÇÃO DOS

DIREITOS SOCIAIS

Dissertação de Mestrado apresentada como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito ao Programa de Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba. Orientador: Prof. Dr Paulo Ricardo Opuszka.

CURITIBA

2014

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MAURICIO GALEB

Dissertação de Mestrado em Direito apresentada como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito pelo Centro Universitário Curitiba.

Banca Examinadora constituída pelos seguintes profe ssores:

Presidente: ________________________________ __________

DR. PAULO RICARDO OPUSZKA. (UNICURITIBA)

__________________________________________

DR. ALEXSANDRO EUGÊNIO PEREIRA. (UFPR)

__________________________________________

DR. MARCOS ALVES DA SILVA. (UNICURITIBA)

__________________________________________

DRA. VIVIANE COELHO DE SÉLLOS KNOERR (UNICURITIBA)

Curitiba, 14 de junho de 2014.

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“A escassez é que torna a história possível, graças à unidade negativa da multiplicidade concreta dos homens”. Sartre

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AGRADECIMENTOS

Ao verdadeiro Mestre, no sentido medieval da palavra, inspirador, veiculador de

ideias, de uma nova forma de se abordar o nosso objeto de pesquisa e quem, de

maneira ímpar, traduz o real significado da palavra “Historiador”: Ricardo Marcelo

Fonseca.

Ao incentivador maior desta empreitada cujo objeto se deslocou dialeticamente

de uma margem à outra, sem qualquer abalo, acreditando piamente que todas as

minhas limitações seriam suficientes para realizar um bom trabalho. Ao incorrigível

otimista: Paulo Ricardo Opuszka.

À liderança intelectual e espiritual inconteste desde os primórdios. Ao modelo

de magistério irretocável no trato com todos e na sapiência que não sonega. Ao

professor presente e amigo. Às virtudes que não fazem parte da minha biografia:

serenidade, equilíbrio, tolerância e a confiança de um futuro melhor: Marcos Alves

da Silva.

Desde mesmo antes de assumir o cargo de Coordenadora do Mestrado na

Unicuritiba, a professora Viviane Séllos foi a grande mentora e incentivadora deste

trabalho. Neste sentido, sem a contribuição e o estímulo da Viviane a experiência do

Mestrado não faria parte da minha vida.

Finalmente, ao incansável, inestimável e precioso zelo de meus pais Floriano e

Gleni Galeb cujos esforços indizíveis empreendidos por todo o tempo me

possibilitaram chegar até aqui.

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SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS .................................... .............................................................. v

RESUMO................................................................................................................... vii

ABSTRACT .......................................... .................................................................... viii

1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 9

2. DESCONSTRUÇÃO DO DIREITO PRIVADO: O CONTRATO, A RESPONSABILIDADE CIVIL E A PROPRIEDADE ............ ..................................... 13

2.1 Direito Privado: o cenário do século XIX .......... .............................................. 13

2.2 Direito Privado: as mudanças no tempo estrutural .. ..................................... 19

2.3 Brasil: releitura do direito privado .............. .................................................... 24

3. A RENDIÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS ................... ........................................ 29

3.1 História e a relação entre Economia e Estado ...... ......................................... 29

3.2 Estado e direitos sociais ......................... ........................................................ 36

4. A ORDEM ECONÔMICA E POLÍTICA COMO ÓBICES À DIGNIDAD E DA PESSOA HUMANA NO BRASIL ........................... ................................................... 43

4.1 Colônia e Império ou a inexistência de direitos ... .......................................... 43

4.2 República: gradualismo e incompletude de direitos . .................................... 47

4.3 Modelo econômico versus “Dignidade da Pessoa Humana ”........................ 54

4.4 Emancipação possível dos direitos ................. ............................................... 58

5. GLOBALIZAÇÃO E ATAQUE AO MUNDO DO TRABALHO: RESISTÊ NCIA OU SUBMISSÃO? ..................................... ............................................................... 62

5.1 Estado e relações de trabalho na Revolução Industri al e a precarização-retorno da “velha fórmula” ........................ ................................................................. 68

5.2 Crise da sociedade do trabalho: da tese sobre a des valorização do valor trabalho à terceirização da atividade fim ......... ......................................................... 73

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................. ........................................................ 76

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................ ................................................. 82

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RESUMO

O presente trabalho tem a finalidade de discutir o processo de tentativa de rendição dos direitos sociais sob a ótica do Direito Brasileiro, à luz de categorias históricas, observado transversalmente por reflexões teóricas que levam a elucidar o caminho do Capitalismo na Modernidade e o processo dialético de proteção X precarização de direitos fundamentais dos trabalhadores. A metodologia utilizada é a reflexão teórica crítica que parte da análise do real concreto para a tópica jurídico-positiva, presente na revisão bibliográfica, análise doutrinária, reflexão acerca dos fatos capturados do cotidiano e presentes no projeto de Lei que ilustra um dos impasses apresentados, no presente caso a terceirização. O principal objetivo do trabalho é analisar que tipo de relação existe entre a fase atual do sistema capitalista, radicalizada pela Globalização, e a ameaça concreta a uma estrutura historicamente construída de redes de proteção social. Assim sendo, mister problematizar a conexão entre o avassalador avanço da Globalização e um processo gradual de desconstrução dos Direitos Sociais, sobretudo os de natureza trabalhista, e o próprio conceito de cidadania. Palavras-chave: direitos sociais, globalização, processo histórico.

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ABSTRACT

This paper aims to discuss the process of trying to rendition of social rights from the perspective of Brazilian law, in the light of historical categories, observed transversely theoretical reflections that lead to elucidate the path of Capitalism and Modernity in the dialectical process of securing X precariousness of basic workers' rights. The methodology used is critical theoretical reflection that part of the analysis of the real concrete for the legal-positive topical, in this literature review, doctrinal analysis, reflection on the facts of daily life and captured in the present Law project that illustrates one of the dilemmas presented in this case outsourcing. The main objective is to analyze what kind of relationship exists between the current phase of the capitalist system, radicalized by Globalization, and the concrete structure to a historically constructed social safety nets threat. Thus, a fundamental question the connection between the overwhelming advance of globalization and a gradual process of deconstruction of social rights, especially labor, and the concept of citizenship. Keywords: social rights, globalization, historical process.

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1. INTRODUÇÃO

No mundo ocidental as transformações econômicas produziram

inevitavelmente profundas mudanças de caráter social. Este é o contexto histórico

da modernidade. Optou-se por um corte espacial e temporal que revolucionou por

completo as formas de produção e as relações de trabalho. Por evidente, que este

complexo processo de alterações substanciais forjou-se em uma dimensão

estrutural, ou seja, através de vários séculos, para utilizar a nomenclatura sugerida

pelo historiador da Escola dos Annales, Fernand Braudel.

Em consequência, o Capitalismo, como estrutura, ordem econômica ou mesmo

como “modo de produção”, ao revolucionar as formas de organização da produção,

transtornou igualmente as relações sociais, inclusive, e, sobretudo, aquelas

existentes no chamado “mundo do trabalho”. Aquele foi o momento da irrupção da

antítese muito bem representada pelas primeiras formações organizadas que

lutaram incansavelmente em torno da cidadania – ainda de perfil burguês, logo

limitado – e em direção ao reconhecimento e efetivação de direitos sociais, com

ênfase no locus do trabalho.

O objetivo deste trabalho é analisar que tipo de relação existe entre a fase atual

do sistema capitalista, em sua fase radicalizada, a Globalização – já em escala

mundial, sem respeitar fronteiras ou culturas – e a ameaça concreta a uma estrutura

historicamente construída de redes de proteção social. É necessário problematizar a

conexão entre o avassalador avanço da Globalização e um processo gradual de

desconstrução dos Direitos Sociais, sobretudo os de natureza trabalhista, e o próprio

conceito de Cidadania.

Recordemos a ideia de que este tênue “biombo” uma vez incorporado ao

imaginário coletivo dos trabalhadores e cidadãos em geral, positivados pelo Estado

burguês através da lei, tornaram-se, até aqui, um eficiente anteparo contra a

voracidade do sistema capitalista e a superexploração dos trabalhadores e a diluição

da ideia de cidadania.

Nos países do capitalismo central, no denominado “wellfare state”, isto

significou o embate minimamente equilibrado entre os poderosos interesses

econômicos corporativos, a chamada Ordem Econômica e a renhida resistência

daqueles grupos e movimentos que advogaram a causa dos Direitos Sociais em

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larga escala. A derrocada deste projeto de sociedade e a erosão deste modelo

estatal e econômico nos lança diante deste impasse.

Estaríamos, portanto, frente à iminência do caos ou da convulsão social? No

caso brasileiro, tal questionamento é imperioso e exige aguda reflexão na busca por

possíveis saídas, tendo em vista o caráter muito diverso e particular das relações

sociais e o papel do Estado na proteção de um complexo de direitos ao longo da

nossa História.

O fio condutor da presente análise é o processo histórico, e dialético, dos

avanços e retrocessos do acesso aos direitos sociais, representados por um Estado

Ampliado e retraído, circunstância em que os trabalhadores ganham e perdem

direitos fundamentais e como esse processo comporta-se no Capitalismo Ocidental,

em especial no Brasil.

A metodologia utilizada é a reflexão teórica crítica que parte da análise do real

concreto para a tópica jurídico-positiva, presente na revisão bibliográfica, análise

doutrinária, reflexão acerca dos fatos capturados do cotidiano e presentes no projeto

de Lei que ilustra um dos impasses apresentados, no presente caso a terceirização.

No capítulo primeiro, argumenta-se em favor da ideia segundo a qual o cenário

do século XIX no continente europeu emoldurou o modelo jurídico do “Estatalismo” –

expressão urdida pelo historiador e jurista Paolo Grossi – cujas raízes foram

lançadas desde a Revolução Francesa. Presentes a supervalorização do sujeito e

sua vontade, o individualismo exacerbado, a propriedade e a liberdade econômica.

O contrato, pedra angular do direito privado, responsabilidade civil e a propriedade

foram severamente marcados por esta ideologia liberal e burguesa. As mudanças

destes institutos de direito privado foram o resultado de relações sociais altamente

complexas que alteraram a essência dos próprios significados das palavras contrato

responsabilidade civil e propriedade. Estas mudanças conceituais chegaram

tardiamente ao Brasil.

No segundo capítulo, é colocada a intrincada relação existente entre a

dimensão econômica e o Estado se considerado o momento pós-transição do

Medievo para a chamada Modernidade. As “Revoluções”, argutamente estudadas

pelo historiador E. Hobsbawn, de um lado propiciaram a transformação do próprio

capitalismo (industrial) e o surgimento de sua antítese (proletariado), de outro, a

partir das chamadas “revoluções burguesas”, deram início a um longo e tortuoso

processo de afirmação de direitos – de variadas matizes – e persecução à cidadania

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integral. Novamente, este processo altamente conflitivo opõe, de forma severa, os

interesses imediatos da economia capitalista e a antítese representada por

trabalhadores urbanos e rurais, trabalhadores informais, desempregados,

consumidores, dentre outros.

No capítulo de número três, a dicotomia entre os limites do sistema capitalista e

a cidadania e os direitos sociais são trazidos para o cenário brasileiro. Uma leitura

acurada da História do Brasil aponta para o fato inconteste de que nas fases da

Colônia e do Império escravocrata não é possível se falar em “direitos” e “cidadania”,

nem do ponto de vista retorico. De outro lado, mesmo nas diversas fases da

República, o acesso aos direitos basilares e a uma cidadania mitigada passou por

processo lento, gradual e sempre incompleto. Cinquenta anos antes, as elites

nativas cortaram abruptamente um projeto econômico e social, desencadeado no

período 1961/964, que poderia ter sido um modelo capitalista “com face humana”. À

época um governo “popular, nacional e reformista” tinha como bandeira de políticas

públicas as chamadas “Reformas de Base”. O complexo de reformas que iniciava

com a Reforma Agrária, cinquenta anos depois, teria distribuído renda e garantida a

segurança alimentar; a Reforma Urbana, décadas após, teria assegurado o direito à

moradia – hoje previsto na C.F/88; a Reforma Tributária, fixaria uma tributação

progressiva, taxando a renda dos muito ricos e a herança; a Reforma Eleitoral,

incluiria na arena política o voto dos analfabetos; a Reforma Universitária, produziria

um maior número de vagas em conexão com ensino de qualidade; enfim, a Reforma

Bancária, desconcentraria o oligopólio do sistema financeiro. Teríamos, então, um

verdadeiro Estado de Bem-Estar-Social, erodindo as bases da nossa profunda

desigualdade?

Nem a abertura política de 1985, nem a C/F de 1988, e seu aparato jurídico

pró-cidadania e normas de proteção, inclusive, o patamar constitucional dos direitos

trabalhistas conseguiram efetivar, na prática, o princípio da dignidade da pessoa

humana. Como na época do Império e em um período que antecedeu o fim da

sociedade escravocrata, existem hoje sérias resistências por parte dos “donos da

Ordem Econômica” em face da implementação da Constituição Cidadã em sua

plenitude. Ou seja, ainda sobram direitos meramente formais em um plano muito

retórico para as chamadas classes subalternas.

Por fim, no quarto capítulo a Globalização mudou o perfil do Capitalismo do tipo

“Wellfare State”, diminuindo o papel do Estado, reduzindo, portanto, os gastos

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públicos com direitos sociais básicos, inclusive, os de natureza trabalhista.

Precarização do trabalho, flexibilização das leis trabalhistas, o livre ajuste entre as

partes contratantes (capital versus trabalho), tudo isto nos remete à formula original

do sistema capitalista desenhada no século XIX, com alguma variante.

Talvez o caso mais simbólico e emblemático quanto à deterioração dos direitos

sociais de natureza trabalhista seja o projeto de Lei que tramita na Câmara Federal,

de autoria do Deputado Federal Sandro Mabel, com amplo apoio parlamentar, que

trata de tornar a Terceirização do trabalho uma regra para todas as categorias

profissionais, quando atualmente ela ainda é uma exceção reconhecida pelo Poder

Judiciário de forma limitada. Terceirizar significa precarizar a relação laboral,

fragilizar os vínculos de emprego, tornar o hipossuficiente uma figura ainda mais

débil na relação contratual de trabalho. Por fim, terceirizar significa solapar os

direitos humanos e sociais trabalhistas, sendo uma prova inequívoca do processo de

rendição destes direitos. Terceirizar é aumentar o número de casos de acidentes e

doenças do Trabalho. Olvidar tal fato é conformar-se com a ordem vigente.

Contestar este avanço sobre as normas de proteção é optar pelo caminho do

enfrentamento e da resistência.

O caso brasileiro inspira muito mais atenção se confrontado com as

experiências dos países do capitalismo central. De início, é imperioso observar que

as consequências da Globalização e do Neoliberalismo não encontraram no Brasil

as resistências opostas pelo Estado de Bem-Estar Social, já que não desfrutamos

deste patamar civilizacional que foi abortado em 31 de março de 1964.

De outro lado, a cidadania integral e os direitos sociais tão presentes na Carta

Magna foram positivados um ano antes do Consenso de Washington (1989), e, de

outro lado, a primazia dos valores da Ordem Econômica, na prática, tornam não

efetivas as promessas de superação social das classes trabalhadoras.

Pretende-se refletir, transversalmente, se o processo de rendição dos direitos

sociais é uma tentativa, como aponta o título, ou se as garantias constitucionais

conquistadas numa determinada conjuntura do processo civilizacional podem deter a

voracidade do capital.

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2. DESCONSTRUÇÃO DO DIREITO PRIVADO: O CONTRATO, A

RESPONSABILIDADE CIVIL E A PROPRIEDADE

2.1 Direito Privado: o cenário do século XIX

O processo histórico demonstrou de forma cabal que aquilo que chamamos de

“monismo jurídico” teve suas raízes lançadas no complexo fenômeno em que se

fundiu a partir da Revolução Francesa. Movimento complexo porque adentrou e

transformou todas as dimensões daquela sociedade: política, social, econômica,

mas, sobretudo, jurídica. Portanto, é correta a assertiva segundo a qual a

modernidade do Direito – aquela que se cristalizou no século XIX – está

umbilicalmente ligada à revolução burguesa na França. Em outros termos, o Direito

europeu continental foi forjado a partir de um projeto, com valores e ideário

proveniente deste fenômeno histórico aqui referido.

O reflexo imediato desta modernidade jurídica pulsante é a exaltação do

sujeito, em sua faceta puramente individual. Paolo Grossi, historiador do Direito, fixa

as origens deste individualismo ainda no século XVIII. O jurista italiano o desnuda

como sendo “simples que se concretizam em simples faculdades, interesses tidos

como de importância vital que se concretizam em situações qualificadas (poderes e

direitos subjetivos)”1. A “civilização jurídica burguesa”, segundo Grossi, exige um

estado forte e um indivíduo proprietário em estreita conexão.

Outro historiador do Direito, Pietro Costa, da mesma escola “grossiana”, aduz

um elemento novo que vai cimentar a paisagem do século XIX e é herdeiro da

Revolução Francesa: a ideologia liberal (liberalismo burguês). Segundo Costa, a

preocupação liberal é “salvar o núcleo racional da mensagem revolucionária (os

direitos: a liberdade e a propriedade)”2.

Esta ideologia, hegemônica ao longo do século XIX, pressupõe três

fundamentos dos quais a sociedade burguesa e sua ordem jurídica não podem

1 GROSSI, Paolo. Para além do subjetivismo jurídico moderno. In: História do Direito em perspectiva: Do Antigo Regime à Modernidade. Organizadores: Ricardo Macelo Fonseca e Airton Cerqueira Leite Seelaender. Ano 2008. Curitiba: Juruá, 2011. 2 COSTA, Pietro. Estado de Direito e Direitos do Sujeito: o problema dessa relação na Europa Moderna. In: História do Direito em perspectiva: Do Antigo Regime à Modernidade. Organizadores: Ricardo Marcelo Fonseca e Airton Cerqueira Leite Seelaender. Ano 2008. Curitiba: Juruá, 2011.

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prescindir: propriedade, igualdade civil e liberdade econômica. É a conclusão a que

chega o historiador Albert Soboul3.

Juridicamente, o rico século XIX que consagrou “sujeitos de direito” e seus

respectivos direitos subjetivos – sendo estas noções correlatas – também insere,

nesta perspectiva, a questão da vontade que será central para o Direito privado.

Neste diapasão, o historiador Ricardo Marcelo Fonseca assevera que “o direito

subjetivo tem como eixo central a vontade humana; seja ele um poder ou uma

senhoria da vontade”4, concepção representada, sobretudo, pelos nomes de

Windscheid e Savigny. Ricardo Marcelo arremata seu pensamento afirmando que as

relações jurídicas privadas estão fundadas na ideia de um sujeito de direito, que é

livre, e, especialmente, detentor de certa autonomia – a da vontade. Esta última está

no âmago de todas as relações relativas ao contrato. O historiador do Direito citado

fala em “ficções” acerca do estabelecimento da sociedade política (Hobbes, Locke,

Rousseau) que se adaptaram às relações jurídicas interpessoais. O resultado desta

adequação está expresso na seguinte equação: indivíduos livres e iguais possuem

autonomia de suas vontades e estão aptos a contratar.

A imperiosa ressalva que Fonseca faz de forma contundente, ao analisar o

contrato de trabalho moderno – gestado na Revolução Industrial – é que este é

pautado, desde o princípio até o seu final – por uma gama variada de

subordinações, dentre elas, a econômica – que faz uma das partes contraentes

depender do salário como contrapartida do trabalho prestado – a técnica –

fundamentalmente esboçada na superioridade do conhecimento e da produção.

Todavia, sem margem de dúvida, é a “subordinação jurídica”, o elemento

diferenciador, e ponto fulcral que retira do pacto laboral justamente aquilo que

compõe a tradicional teoria do contrato: liberdade, igualdade, autonomia e

supremacia da vontade.

Abstraindo o aspecto histórico “stricto sensu”, o Paulo Nalin, ao referir-se ao

tema “contrato”, faz uma abordagem bastante original, na medida em que o

relaciona com a modernidade e a pós-modernidade. A razão guardaria

metaforicamente relação com a modernidade e o caos teria vínculo com a pós-

modernidade, estes considerados momentos históricos distintos. Nalin afirma que O

3 SOBOUL, Albert. A Revolução Francesa . São Paulo. DIFEL, 1982. 4 FONSECA, Ricardo Marcelo. Modernidade e Contrato de Trabalho: Do Sujeito de Direito à Sujeição Jurídica. São Paulo: LTr, 2002. 5 Idem, p. 135.

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Code Civil (1804) é o ápice de uma formulação conceitual em torno do contrato que

vem desde os “canonistas (período romano)”, e passa pelos jusnaturalistas e

jusracionalistas (Grotius/Kant). A dimensão obrigacional abstrata estará presente a

partir do código de Napoleão.5

Na esteira do pensamento de Nalin, Kant é o formulador de que a vontade

individual seria a única razão de ser das obrigações jurídicas. O “pacto” se dá

através de duas vontades individuais. Kant potencializa a centralidade do aspecto

volitivo nas relações privadas. Estas não nascem do Estado, mas do próprio homem,

revestido de um direito subjetivo absoluto (liberdade e igualdade). Paulo Nalin

surpreende e faz uma acurada análise do Direito privado, especialmente contratual,

a partir de lições da teoria da História.

Afirma o citado jurista que o Direito das Obrigações se pretende atemporal – ou

seja, de aplicação universal e eterna. Há uma forte preponderância de seu caráter

abstrato. Por deter esta última qualidade, perde-se a noção do mundo concreto dos

fatos, e se vincula apenas a conceitos e categorias formais. Ou seja, perde-se a

“historicidade”, resultado das relações sociais concretas. Em contrapartida, se

incorpora a “ahistoricidade” das obrigações, desvinculadas, portanto, do processo

histórico concreto.

Aliás neste particular, outro prodigioso jurista Edson Fachin afirma que uma

releitura crítica do Direito Privado só é viável se colocada sob sua perspectiva

histórica, leia-se, sua historicidade. Esta abordagem arejada e renovadora

pressupõe expor o Direito Privado, sua teoria, seus institutos e conceitos em

conexão com a vida cotidiana, a realidade concreta, enfim, a imbricação destes com

a teia complexa das relações sociais. Tal procedimento constituiria a “rota de fuga”

do Direito Privado de suas características obsoletas forjadas no século XIX,, a saber:

o formalismo e o abstracionismo.

Jean Domat é um dos principais redatores do “code civil” que foi absolutamente

hegemônico nos séculos XIX e XX, sobretudo, quando pensamos na modalidade do

contrato. Em uma sociedade capitalista e burguesa, o contrato passa a ser o

instrumento que viabiliza a circulação da riqueza. Juridicamente, a vontade das

6 NALIN, Paulo. Do Contrato: Conceito Pós-Moderno. (Em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional) Curitiba: Juruá, 2006. 7 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil . 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 26.

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partes e o contrato cimentam aquilo que Kant filosoficamente já havia vislumbrado. A

vontade individual é a fonte única da justiça nesta sociedade burguesa.

Para Nalin, a conclusão a que se chega é óbvia: O Direito das Obrigações,

neste caso, contratual, completamente descolado da realidade fática e envolto em

uma espessa abstração acaba por se encerrar em suas categorias conceituais há

muito superadas.

Por fim, o século XIX é palco privilegiado da Revolução Industrial, com

consequências graves para o mundo jurídico do contrato. É Antônio Avelãs Nunes

que vai chamar atenção para o pensamento de Adam Smith.

O economista escocês – contemporâneo dos primeiros passos da Revolução

Industrial e um dos mentores da nova ordem burguesa – afirmava, de maneira muito

lúcida, que o novo contrato estabelecido entre capitalistas e trabalhadores era

altamente desvantajoso para os segundos. Por evidente o desequilíbrio entre as

partes contratantes era desconsiderado em face da plena “liberdade contratual” em

voga naquele período.6

A responsabilidade civil é outro instituto de Direito privado pleno de

historicidade, que, em um processo gradual, teve sua essência alterada. Assim,

dentro do século burguês por excelência (XIX) a sua conformação se adequou aos

cânones liberais. O próprio conceito de responsabilidade, em um sentido mais

amplo, ultrapassa os estritos limites do mundo jurídico, pois há um uso filosófico, um

“uso corrente”, religioso (protestante).

No campo do Direito privado, e em um sentido muito clássico, a

responsabilidade consiste na obrigação de reparar danos que eventualmente

infringimos a alguém em razão da ideia da culpa.

Na tradição filosófica, a ideia da responsabilidade é ainda mais vaga, no

sentido de uma ausência conceitual. No chamado “uso corrente” a amplitude do

termo se amplifica: “somos responsáveis por tudo e por todos”. De qualquer sorte, a

origem do termo “responsabilidade” está associada à ideia de obrigação.

Igualmente, o verbo “imputar” é elemento fundante da ideia de responsabilidade.

Imputar seria atribuir a alguém uma atitude socialmente reprovável, enquanto a

retribuição seria o corolário lógico do ato de reparar.

6 NUNES, Antônio Avelãs. Os sistemas econômicos: gênese e evolução do capitalismo. Coimbra: Serviços de acção social da U.C, 2009.

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Para Kant, sinteticamente, a responsabilidade é a imputação de uma ação de

um agente, tendo por base a qualificação moral desta. Segundo Kant, a liberdade

reside na essência da Lei e esta é um processo de conhecimento da própria

liberdade. Como observou Paul Ricoeur, Kelsen vai retirar o componente moral do

conceito de responsabilidade, tornando-o estritamente jurídico, neste sentido,

avalorativo, “puro”.7

Inolvidável que o século XIX é o locus privilegiado no que toca a formação da

teoria chamada “tradicional” da responsabilidade civil. Inúmeras razões dão

sustentação a esta assertiva. Como já informado anteriormente, os efeitos da

Revolução Industrial modificaram, para usar uma terminologia marxista, da

infraestrutura à superestrutura da sociedade. Dito de outra maneira, a sociedade

europeia que emerge desta transformação do modo de produção capitalista se

depara também com novas consequências jurídicas, fruto destas monumentais

mudanças.

Neste sentido, a complexidade social decorrente destas alterações estruturais

impactou a dimensão jurídica. No mundo da “liberdade contratual”, acima esboçado,

as relações jurídicas entre capitalistas (industriais, banqueiros, financistas,

comerciantes), e proletários (operários fabris, bancários, trabalhadores em geral), e

nas relações interpessoais mais prosaicas surge a necessidade premente de

estabelecer os fundamentos do conceito da responsabilidade civil.

Em outros termos, a sociedade do “Antigo Regime”, pré-industrial, menos

complexa, na qual as demandas sociais eram resolvidas pelo “velho Direito” do

continente havia ficado para trás. Um novo modelo jurídico se instituiu.

Roberto Altheim, ao tratar da teoria tradicional da responsabilidade civil, de

maneira adequada – considerando o contexto histórico – faz alusão às seguintes

expressões: “mundo da segurança” e “era da segurança”.8

Para Altheim, neste ambiente de “segurança”, os pressupostos tradicionais do

dever de indenizar estão dispostos da seguinte forma: dano; ato ilícito; nexo de

causalidade.

7 RICOUEUR, Paul. Conceito de responsabilidade: ensaio de análises semânticas. In: RICOUEUR, Paul. O Justo : a Justiça como regra moral e como instituição. SP: Martins Fontes, 2006. 8 ALTHEIM, Roberto. Direito de Danos: pressupostos contemporâneos do dever de indenizar. Curitiba: Juruá, 2008.

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Assim, resumidamente, o dano indenizável é aquele que agride um bem

tutelado juridicamente, sendo o resultado de um ato concreto. Este pode ser

material, moral, presente ou futuro. Já o ato ilícito importa na violação de um bem

jurídico protegido pela lei. O ato ilícito é o resultado de um ato omissivo ou

comissivo. A questão da vontade é central porque o autor deve ser imputável.

Finalmente, emerge a figura do nexo causal que exige uma relação de causalidade

entre os dois primeiros requisitos, ou seja, relação de causa e efeito entre

ação/omissão e o dano. Donde se conclui que o dever de indenizar somente existe

quando for demonstrado cabalmente o nexo causal. Assim foi arquitetada a teoria

tradicional da responsabilidade civil.

Finalmente, ao abordar o tema da propriedade, o jurista Luiz Edson Fachin

afirma ser este instituto do Direito Privado um de seus elementos que faz parte do

que ele denomina “tríplice vértice, a base fundante do privado”9. Neste mundo de

espessa abstração, o indivíduo, cada vez mais descolado e deslocado da realidade,

ou seja, da concretude da sociedade que habita é menos uma pessoa e suas

circunstâncias, e muito mais um titular patrimonial. Esta estreita visão ontológica

limita também a amplitude das relações jurídicas no campo do Direito Privado e, via

de consequência, sua própria teorização. Esta leitura mitigada do Direito Civil,

especialmente no que toca à “apropriação”, faz com que Fachin afirme que “nem

todas as pessoas são sujeitos de Direito”10. Parece basilar supor que em uma

sociedade capitalista, em que a propriedade individual é um fundamento econômico,

social, e, sobretudo, jurídico, os indivíduos despossuídos, não-proprietários, de fato,

não sejam elevados à categoria de sujeitos de Direito. Esta é a ótica clássica, sob o

crivo de uma perspectiva crítica.

Uma leitura que demande reflexão aprofundada sobre os institutos do Direito

Privado, mormente a propriedade permite a Fachin pensar uma “relação jurídica em

concreto”11. Esta importa um correspondente sujeito de Direito em concreto o que

abarca a universalidade das pessoas. Assim, na terminologia proprietária,

poderíamos inferir a existência de um “patrimônio mínimo indissociável do ser e do

9 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil . 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 26. 10 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil . 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 86/88. 11 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil . 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 92.

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seu coletivo” 12. Lembre-se, ainda, que Fachin também argumenta que a teoria

tradicional acerca do Direito Civil e da propriedade produz um conhecimento dentro

de um quadro de suposta neutralidade e objetividade. Esta visão eivada de

pressupostos positivistas desde há muito foi superada epistemologicamente.

Novamente, estamos diante de uma teoria que rompe com a realidade e está

divorciada das “condições concretas” das relações sociais nas quais foi produzida13.

Estes institutos e os conceitos do Direito privado devem ser enquadrados

historicamente, já que uma postura oposta a esta encará-los como verdadeiras

abstrações, divorciadas do mundo concreto. Afinal, a teoria contratual, os requisitos

da chamada responsabilidade civil e a noção original da propriedade foram

formulados a partir de uma sociedade burguesa, industrial, liberal, desconsiderando,

por completo as divisões sociais e as diversidades culturais.

2.2 Direito Privado: as mudanças no tempo estrutura l

Por evidente que os institutos de Direito privado, devidamente limitados para a

finalidade deste trabalho, não ficaram imobilizados nos fundamentos que o século

XIX lhes proporcionou. Em outros termos, como já se disse alhures, o direito

contratual, o conceito de responsabilidade civil e a concepção da propriedade

passaram por um lento processo de metamorfose até chegar aos dias atuais. A

importância do estudo da História do Direito é justamente problematizar e explicar

este conjunto de transformações jurídicas e, se possível, trazer a lume o resultado

social destas mudanças.

Neste sentido, ainda que de forma sintética, é preciso resgatar a importância

única da chamada Escola dos “Annales”, também conhecida como Escola Francesa,

que no século XX, realizou o que há de mais inovador, notável e significativo no

campo da historiografia. Grosso modo, pode-se dizer que os cânones dos “Annales”

tiveram por objetivo constituir um novo paradigma do conceito de História e,

consequentemente, superar, definitivamente, o Positivismo Histórico (“história

tradicional”) erigido em pleno século XIX.

12 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil . 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 96-99. 13 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil . 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 111.

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O historiador inglês Peter Burke, maior estudioso da Escola Francesa, afirma

que um dos integrantes da segunda fase (geração), Fernand Braudel, a partir de sua

tese de doutoramento (“O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe

II”) transformou por completo, e de maneira definitiva, as noções de espaço e tempo.

O que nos interessa discutir aqui é a mudança conceitual acerca do tempo histórico

que Braudel nos apontou.14 O representante da escola dos Annales nos alertou para

a importância do chamado tempo de “longa duração” – o processo histórico refletido

em uma perspectiva de séculos. Longa duração ou “tempo estrutural” significa

pensar as mudanças que ocorrem ainda que em um ritmo mais lento. Em outros

termos, todas as estruturas, inclusive, as jurídicas e institucionais, estão sujeitas a

este câmbio gradual. O historiador do Direito Ricardo Marcelo Fonseca acentua esta

questão proposta por Braudel, sintetizada em uma metáfora que equipara o tempo

histórico com o oceano.15

Assim, o nível mais superficial do tempo histórico (tempo

breve/factual/acontecimento) seria “as espumas das ondas do mar” – visíveis, mas

“rápidas e nervosas” – já a longa duração ou tempo estrutural corresponderiam “as

correntes marítimas” que são profundas e invisíveis, porém decisivas na elucidação

do processo histórico.

O direito privado e suas instituições não estão imunes a este processo lento,

mas inexorável de mudanças, como previu com argúcia o historiador Fernand

Braudel de uma maneira mais ampla.

Para aprofundar a compreensão deste processo histórico de alterações pelo

qual passou a dimensão jurídica é sumamente relevante resgatar outro conceito-

chave da Escola dos Annales, cuja origem remonta à sua terceira fase, a chamada

“terceira geração”. Em razão da profunda aproximação dos historiadores franceses

com a Antropologia, em um diálogo francamente interdisciplinar, em uma síntese

que poderíamos chamar de “antropologia histórica”. Assim, através de uma

abordagem antropológica reflexiva, os historiadores franceses cunharam o conceito

de “Construção Histórico/Cultural”. O que equivale dizer que é imperioso

“historicizar” as ideias, as instituições, os valores. Para os Annales, tal tarefa é

14 BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da Historiografia. Trad. Nilo Odália. São Paulo: Ed. Universidade Estadual Paulista, 1991. 15 FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à História do Direito . Ricardo Marcelo Fonseca. Curitiba: Juruá, 2009.

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possível porque todas estas dimensões da vida não são imutáveis, ou seja,

estáticas. Ao contrário, estão em uma perspectiva de constante mudança, ainda que

quase imperceptível. Logo são analisadas a partir das variáveis tempo/espaço.

Seguindo o roteiro fornecido pela escola francesa e fazendo uma aplicação

analógica, podemos afirmar que o Estado, a Lei e o Direito privado, logo o contrato,

a responsabilidade civil e a propriedade, são construções histórico-culturais.

Sinteticamente, estes não podem ser “naturalizados”, na medida em que nem

sempre existiram e nem sempre tiveram o mesmo significado. No presente e no

futuro se pode adquirir outra faceta, uma essência diversa daquela expressa no

passado ou no presente. Assinale-se aqui a monumental diferença com o

Positivismo, seja na sua modalidade histórica, ou jurídica, já que, neste caso, os

conceitos, os valores, as ideias, são ossificadas a partir de uma visão a-histórica e

atemporal.

A lenta, progressiva e parcial “desconstrução” da ideia de contrato, da

responsabilidade civil, bem como da propriedade, certamente tem origem na

mudança de paradigma do sistema econômico. Em outros termos, o capitalismo

liberal do século XIX foi superado historicamente pelo Estado de Bem-Estar Social,

em meados do século XX. As consequências no campo jurídico foram inevitáveis,

inclusive, no que concerne ao Direito privado.

Em outros termos, o velho pressuposto teórico, segundo o qual, todos os

indivíduos racionais são livres para contratar, fundados na autonomia da vontade

individual restou ultrapassada. Ou ainda, a ideia do livre ajuste entre as partes e a

não intervenção estatal na esfera privada contratual, mais conhecida como “Pacta

sunt servanda”, perdeu todo o sentido.

Por outro lado, não paira qualquer dúvida que este processo de mudanças no

âmbito do Direito Privado tem origem também no surgimento do Direito do Trabalho

e na criação do Direito do Consumidor, áreas onde surge a figura do hipossuficiente

nas relações contratuais. Aduza-se a tudo isto a chamada constitucionalização do

Direito Civil.

A grande mudança de paradigma pode ser traduzida na vaga expressão da

“pós-modernidade”. Neste ponto, urge retomar o texto de Paulo Nalin, para quem

este novo momento, do ponto de vista estritamente jurídico, teve um papel

iconoclasta no sentido de minar a convicção nos dogmas, nas certezas, na

uniformidade, sobretudo, na “objetividade” da ciência jurídica. Ainda, argumenta o

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jurista que o modelo contratual original estava fundado em dois polos: o credor e o

devedor, o mesmo vale para a relação processual as relações proprietárias. Este

modelo estaria superado pelas ações plúrimas, coletivas, com interesses difusos. A

modalidade paritária, bilateral e de adesão foi soterrada pelo tempo. Na realidade, o

que entra em crise é a própria ideia de “manifestação livre da vontade” (antigo

elemento nuclear do contrato), máxime, se considerarmos uma sociedade de

consumo, uma sociedade de massas, e de “fetichização” da mercadoria.16

Nas pegadas de Nalin, para que se possa entender o novo formato do contrato

é preciso detectar de que forma este se acopla aos sistemas constitucional e

infraconstitucional. Por óbvio, que as questões afetas ao mercado

(concorrência/concentração econômica) seguem presentes nesta nova

conformação.

Por fim, como o próprio jurista confirma, uma nova ordem contratual clama pela

“boa-fé negocial” (objetiva), sobretudo a partir do CDC. Lembre-se que a expressão

boa-fé não existe no plano constitucional, nada obstante esta se aplica a todo

sistema jurídico-contratual. De certa maneira, ela está relacionada ao princípio

constitucional da solidariedade. Em outros termos, a boa-fé objetiva não está

circunscrita apenas às relações consumeristas.

Por fim, para efeitos deste capítulo é necessário que façamos alusão à “boa-fé

objetiva” e sua relação com a ideia de “justiça contratual”, bem como fazer uma nova

abordagem da propriedade. Retomando as reflexões de Nalin, há emergência de

uma nova perspectiva do contrato que deve ser “socialmente justo”, solidário, plenos

de princípios contemporâneos (transparência, confiança, equidade) que culminam

com a boa-fé objetiva, resultando numa “justiça contratual”. Importante ressaltar a

correlação de forças dos contratantes, do ponto de vista econômico, a existência do

hipossuficiente, em que o magistrado deve mensurar ainda mais os componentes de

um “contrato social justo” Paulo Nalin afirma que a boa-fé é um dos elementos

constitutivos que formam o negocio, em ela inexistindo o próprio contrato será

inexistente (invalidade do negócio jurídico). Para Nalin, sem desprezar a lei (direito

positivo), deve-se aplicar princípios gerais do direito, constitucionais e

infraconstitucionais, sem respeito à hierarquia das fontes. Há um realinhamento do

16 NALIN, Paulo. Do Contrato: Conceito Pós-Moderno. (Em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional) Curitiba: Juruá, 2006.

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papel do julgador. O compromisso é com a justiça social na leitura constitucional dos

contratos. É a tal da “Justiça Comutativa”– que impeça cláusulas abusivas.17

Dentro da concepção do tempo histórico preconizado por Fernand Braudel,

também os pressupostos tradicionais da responsabilidade civil passaram por um

processo lento e gradual de mudanças. A superação destes fundamentos

tradicionais implicam na própria crise e exaurimento dos mesmos.

Roberto Althein, ao tratar dos pressupostos contemporâneos da

responsabilidade civil, volta a defender muito claramente que o modelo do direito

privado instaurado no século XIX estava divorciado por completo da realidade

concreta das pessoas e descolada das intrincadas relações sociais do mundo

contemporâneo18. A citação de Fachin é absolutamente proveitosa, pois põe em

cheque uma responsabilidade civil fundada em um excessivo individualismo, em

uma suposta neutralidade, é infenso aos princípios da justiça e eivado de um

abstracionismo descabido 19. Os autores citados afirmam que tanto uma

jurisprudência criativa, quanto uma doutrina crítica podem subverter os antigos

cânones desta matéria, implodindo a “era da segurança”, a partir da seguinte divisa:

“a revolta dos fatos contra as normas”.

Assim, os novos elementos a serem forjados na construção de uma nova

concepção da responsabilidade civil passam obrigatoriamente pelos princípios de

uma justiça distributiva e da solidariedade social.

A partir destes novos ingredientes, Althein, em completa oposição àquilo que

persistiu quase dois séculos, lança mão de inéditos pressupostos da

responsabilidade civil: antijuridicidade; dano injusto; nexo de imputação; nexo de

causalidade.20

Desta forma, sinteticamente poderíamos definir a “antijuridicidade” como um

ato praticado em franca contrariedade ao ordenamento como um todo (princípios,

leis, costumes). Esta não se confunde com a “ilicitude”, também não se refere ao ato

culposo ou doloso. Na realidade, é a lesão a interesse (s) protegido (s) pelo

ordenamento. Aqui, a primazia é o dano e sua extensão e não a conduta do ofensor.

17 NALIN, Paulo. Do Contrato: Conceito Pós-Moderno. (Em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional) Curitiba: Juruá, 2006. 18 ALTHEIM, Roberto. Direito de Danos: pressupostos contemporâneos do dever de indenizar. Curitiba: Juruá, 2008. 19 FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil . 3ª. Edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. 20 ALTHEIM, Roberto. Direito de Danos: pressupostos contemporâneos do dever de indenizar. Curitiba: Juruá, 2008.

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Já o “dano injusto” é o centro gravitacional de todos os outros pressupostos. O

dano injusto tem que ser indenizável, pois decorre de um fato antijurídico que viola

tanto a dignidade humana, quanto o patrimônio. Em suma, é a lesão de um bem

juridicamente protegido. Note-se que inexiste um rol prévio de danos injustos. Ao

contrário, estes são classificados caso a caso, a partir de uma análise concreta.

Assim, danos não injustos afastariam a incidência da responsabilidade civil.

O “nexo de imputação” é a forma de justificar a imposição do dano a outrem

(pessoa física ou jurídica). O nexo de imputação identifica quem deve indenizar e

aponta as respectivas razões. É o fundamento para que alguém deva indenizar. Ou

ainda, a causa da responsabilidade do agente que é imputado a indenizar. Neste

caso, o aspecto volitivo pode ser irrelevante. Pode estar vinculado a atos ilícitos

(responsabilidade subjetiva) ou lícitos, que impliquem riscos. Há uma miríade de

razões para indenizar: solidariedade social, o Estado por atos administrativos, a

Seguridade Social, e, sobretudo o CDC.

Finalmente, o “nexo de causalidade” que foi flexibilizado. Nesta perspectiva, o

nexo de causalidade apenas delimita o objeto da indenização. Por exemplo, em

casos fortuitos é o risco da atividade que gera a indenização. Althein afirma que, em

algumas hipóteses, o nexo de causalidade é absolutamente dispensável.

2.3 Brasil: releitura do direito privado

O Brasil-Império tentou, não sem grande frustração, adotar, ainda que de

maneira enviesada, o modelo do “civil law”, o que incluiu até um processo de

codificação nos moldes do direito europeu do continente. Ressalve-se, tendo em

vista a peculiar experiência de uma monarquia escravocrata e da ausência de

cidadãos efetivos, a falta de um Código Civil.

Por outro lado, quando da proclamação da república no Brasil, desde o início

ficou muito claro que a teoria positivista teria uma monumental influência sobre parte

significativa de nossa “intelligentsia”, nossas escolas de direito e nossos juristas.

Pode-se afirmar que ideologicamente a “República Oligárquica” era composta

por dois poderosos discursos ideológicos, a saber: o individualismo liberal e o

positivismo. A ideologia liberal está representada pelo princípio do “laissez-faire”. O

que equivale dizer que, em termos do Direito privado, o Estado não deve interferir

nas relações contratuais. De outro lado, a ideologia positivista foi a responsável por

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forjar uma mentalidade profundamente conservadora e elitista entre nossos

bacharéis e juristas.

Por estas razões, a cultura jurídica da República Velha, inclusive no campo

constitucional, foi impregnada por este liberalismo individualista que preconiza a

“autonomia das vontades individuais”, a “liberdade dos particulares”, enfim, a

liberdade dos contratos. Não sem razão, o historiador do Direito José Reinaldo de

Lima Lopes assevera que a “República Oligárquica” tratou a propriedade privada

como algo absolutamente intocável (premissa lockeana). A postura da magistratura

brasileira de então não é diferente e os “tribunais vão em vários momentos proibir

inclusive o exercício da polícia sanitária em nome da liberdade individual.” 21

O CCB de 1916 incorporou esta concepção e toda a tradição da codificação

oitocentista, leia-se, uma codificação patrimonial imobiliária, conforme denominou

Luiz Edson Fachin. Articulando de forma diversa, Paulo Nalin afirma que o tripé do

CCB de 1916 seria a liberdade contratual, a obrigatoriedade do contrato e a

relatividade dos efeitos do contrato. 22

A superação do paradigma clássico do Direito privado no Brasil ocorre, com

algum atraso e obedecendo ao ritmo do nosso processo histórico, em um tempo

histórico que Fernand Braudel chamaria de estrutural ou de longa duração.

Sem que se recorra a uma estrutura de tempo linear, podemos afirmar que a

Carta Ma gna de 1988 impôs ao Direito Civil novos princípios como o do

desenvolvimento humano e a dignidade da pessoa, esta pensada num horizonte

concreto, alheia a toda sorte de abstração. Em outros termos, este “novo Direito

Civil” se viu despojado de seu caráter puramente conceitual e patrimonialista,

heranças do século burguês individualista (século XIX). É o jurista Luiz Edson

Fachin que afirma que a centralidade no texto constitucional da “dignidade da

pessoa humana” reconfigurou todo o ordenamento jurídico brasileiro, inclusive o

Direito privado. Considerando a supremacia da CF/88, é a proteção da pessoa

humana e seu pleno desenvolvimento que devem nortear todo o arcabouço da

legislação infraconstitucional. Segundo Fachin, ocorreu uma “inversão do locus” de

21 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História. Lições introdutórias. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. 22 NALIN, Paulo. Do Contrato: Conceito Pós-Moderno. (Em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional) Curitiba: Juruá, 2006. xx FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil . 2ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 29.

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preocupações que se retiram da esfera patrimonial e passaram a se concentrar no

respeito à pessoa humana.23

Nalin não diverge neste ponto quando lembra que estão presentes no CCB de

2002 alguns ingredientes do Código Civil anterior. A diferença fundamental reside na

adequação dos mesmos aos parâmetros da ética, da sociabilidade, dos novos

valores, inclusive, constitucionais.

Por óbvio que o direito contratual foi reorientado a partir das novas diretivas

constitucionais. É o que o professor Nalin chama de “os princípios que informam a

Nova Ordem Contratual”. Assim, a boa-fé negocial constitui a centralidade destes

princípios. Sobretudo a partir do CDC, a boa-fé objetiva é o novo paradigma a

influenciar o direito contratual. Investiga-se o comportamento dos contratantes, a

partir de múltiplos deveres. A expressão boa-fé não existe no plano constitucional,

nada obstante esta se aplica a todo sistema jurídico-contratual. De certa maneira,

ela está relacionada ao princípio constitucional da solidariedade. 24

Em outros termos, a boa-fé objetiva não está circunscrita às relações

consumeristas. Uma leitura constitucional do direito civil se impõe a partir das

decisões judiciais e assim o “dogma da vontade” do C.C.B/1916 é ultrapassado pela

principiologia do C.D.C. (boa-fé objetiva).

Outra questão candente a ser compreendida é a “aplicação subjetiva da boa-fé

objetiva”. Uma contradição aparente une a aplicação da boa-fé objetiva com uma

interpretação subjetiva. Paulo Nalin refuta o conceito europeu de “standard jurídico”

para qualificar os contratantes. A doutrina brasileira incorporou tal conceito e define

os contratantes de maneira ideal e abstrata, tais como: “homem médio, bom pai de

família, profissional competente, homem reto, honesto, probo, leal”. Todas as

“virtudes” elencadas têm origem no direito europeu, seja o common law, quanto o

civil law onde as disparidades sociais quase inexistem.

No Brasil, em situação bastante diversa, o “campeão das desigualdades

sociais”, tais categorias abstratas não têm fundamento na realidade concreta e

podem comprometer a compreensão e a aplicação da boa-fé objetiva, máxime, se

23 FACHIN, Luiz Edson. Reflexões abreviadas sobre aspectos da racionalidade histórico-cultural do arquétipo inserido no Código Civil Brasileiro de 2002. In: História do Direito em perspectiva: Do Antigo Regime à Modernidade. Organizadores: Ricardo Marcelo Fonseca e Airton Cerqueira Leite Seelaender. Ano 2008. Curitiba: Juruá, 2011. 24 NALIN, Paulo. Do Contrato: Conceito Pós-Moderno. (Em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional) Curitiba: Juruá, 2006.

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considerarmos a nossa tradição positivista/elitista. Valores jurídicos e metajurídicos

devem orientar o interprete na persecução da boa-fé objetiva, como por exemplo, a

ética comportamental dos contratantes. Enfim, o conceito de boa-fé objetiva não é

estanque, restrito ou limitado, deve ser um sistema aberto e arejado à observação

da realidade concreta.

Registre-se, ainda, que a legislação estrangeira já havia apontado para o fato

que a boa-fé deve permear toda a relação contratual, na sua fase pré-contratual,

durante a execução do contrato, e após a cassação dos efeitos do contrato. O

CCB/2002 não inclui o período que antecede o contrato, tal fato, porém não ocorre

com o CDC, onde a boa-fé objetiva é plena. (artigos 51, 4º).

De maneira instigante, Nalin relaciona a boa-fé objetiva com a noção de “justiça

contratual”. Há uma nova perspectiva do contrato que deve ser “socialmente justo”,

solidário, plenos princípios contemporâneos – que incluam a transparência,

confiança, equidade – culminando com a boa-fé objetiva, resultando numa “justiça

contratual” 25.

Ou seja, a boa-fé substituiu a obsoleta “vontade dos contratantes”.

De qualquer forma, é importante ressaltar a correlação de forças dos

contratantes, do ponto de vista econômico e financeiro, a existência do

hipossuficiente nesta relação contratual em que o magistrado deve mensurar ainda

mais os componentes de um “contrato social justo”.

Não há dúvida de que a readequação ou reconstrução parcial do Direito Civil,

em especial do direito contratual, o conceito de responsabilidade civil e o instituto da

propriedade implicou, sim, no alargamento do conceito de “cidadania” e, de forma

mais radical e ousada, no incremento da própria ideia de justiça social. Dispensa-se

a ingenuidade teórica a defender que o quadro traçado pelos cânones originais

(século XIX), ditos tradicionais tenham desaparecidos ou desconstruídos por

completo. Todavia, cabe aos juristas e, sobretudo, aos magistrados, munidos de

uma mentalidade arejada, renovada e aberta, utilizando-se de um corpo doutrinário

crítico e de inovadoras decisões, reconstruir o modelo jurídico de nosso país,

especialmente no que toca ao direito obrigacional, a responsabilidade civil e o direito

de propriedade, com especial atenção a sua função social, e as inevitáveis

consequências que daí surgirão.

25 NALIN, Paulo. Do Contrato: Conceito Pós-Moderno. (Em busca de sua formulação na perspectiva civil-constitucional) Curitiba: Juruá, 2006.

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Este desafio, cotidianamente experimentado, coloca em campos opostos uma

genuína Dogmática crítica – fortemente enraizada no espaço acadêmico – e uma

jurisprudência crescentemente conservadora. Tome-se como exemplo o modelo

contratual mais contemporâneo, da era pós-industrial, qual seja o contrato de

Consumo. No Brasil, a despeito da doutrina consumerista estar em um patamar

assaz avançado, a jurisprudência, sobretudo, aquela que tem origem nos tribunais

superiores (Superior Tribunal de Justiça, em especial) e que influenciam as demais

instâncias, tem recuado ao modelo contratual tradicional.

Assim, em ações judiciais de relações de consumo, sobretudo, contra

instituições financeiras, as decisões, de modo geral, retomam a velha fórmula da

“autonomia das vontades contraentes”, “nexo causal”, “a não inversão do ônus da

prova”, a invisibilidade judicial da figura do “hipossuficiente”, o que, na prática, dá

legitimidade e legalidade ao desequilíbrio contratual.

O mesmo raciocínio vale para a questão da propriedade e a miragem da

“função social” – esta ignorada solenemente pelo judiciário pátrio. Caso emblemático

o que ocorreu em São José dos Campos/SP, em fevereiro de 2012, quando uma

instância judicial inferior determinou a reintegração de posse de um imóvel sobre o

qual vivia a denominada comunidade do “Pinheirinho”. Naquele triste e recorrente

episódio, mil e quinhentas famílias ocupavam um imóvel há mais de oito anos.

Todos os cidadãos sem cidadania foram despejados abrupta e violentamente com

base no artigo 928 do CPC que se sobrepôs ao direito fundamental de moradia (art.

6, da CF/88). A superposição do texto legal infraconstitucional e o descaso para com

a função social constitucionalmente prevista desvela a primazia da propriedade

individual sobre a dignidade humana e os direitos sociais, neste caso, a moradia.

A pretensão do próximo capítulo é perceber em que medida o direito do

trabalho, regulamentado entre o Direito Privado do Trabalho e a Intervenção do

Estado na tutela jurídica do trabalhador, foi um problema para Modernidade na

medida em que, quando se avança na construção de um colchão de proteção social,

o processo de desenvolvimento de acumulação do capital, obrigatoriamente

desacelera: a este processo denominou-se “processo de rendição dos direitos

sociais”.

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3. A RENDIÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

“As reformas sociais não se conseguem nunca pela debilidade dos fortes, mas sim

pelo fortalecimento dos débeis”. Karl Marx

3.1 História e a relação entre Economia e Estado

O surgimento do Estado Moderno não pode ser desvinculado do nascimento do

próprio sistema econômico capitalista.

Neste sentido, já no prefácio à Contribuição à crítica da Economia Política,

Marx havia consolidado sua fórmula clássica e, de maneira categórica, afirmado

que: “O Modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social,

política e intelectual”.

Ou seja, o Estado é a expressão, de forma reflexa, das relações de produção

travadas na infraestrutura da sociedade – que foram gradualmente hegemonizadas

pela burguesia – portanto encontra-se na superestrutura da sociedade, fazendo

parte de suas instâncias imateriais.

O contexto histórico em que tal processo se forjou na Europa Ocidental é

aquele que nos remete à segunda metade do século XV e XVI em diante, de

maneira bastante irregular. É neste momento que inúmeros eventos históricos

ocorrem concomitantemente, a saber: um lento, prolongado, mas inexorável “êxodo

rural”, com a “retomada” gradual do espaço urbano (“proletarização do

campesinato”); o nascimento da ciência moderna (invenção da imprensa,

heliocentrismo); as conquistas ultramarinas (as riquezas retiradas das Américas); a

reforma protestante; o clima personalista do renascimento.

Antônio Avelãs Nunes detecta ainda o surgimento de uma nova classe urbana,

comerciante, especuladora e financeira que inicia os primeiros passos do sistema

capitalista sob a forma mercantil (burguesia comercial).

O pensador português afirma que a colonização das “novas terras” tornou-se a

primeira grande empresa capitalista organizada com tentáculos para além dos

limites da Europa. Sobretudo a partir da exploração da mão-de-obra escrava.26

26 NUNES, Antônio Avelãs. Os sistemas econômicos: gênese e evolução do capitalismo. Coimbra: Serviços de acção social da U.C, 2009.

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Nesta fase da acumulação do capital, percebe-se o gradual declínio econômico

da nobreza, vez que a terra, enquanto valor econômico deixa de ser a força matriz

do sistema produtivo.

A indústria artesanal estava representada nas pequenas oficinas dentro do

espaço urbano. Ali, os meios de produção eram compartilhados com a família,

companheiros e aprendizes, em uma unidade produtiva. Eram pequenos produtores

autônomos que viviam de suas manufaturas, sem intermediários.

Rapidamente, o artesão perdeu o controle sobre o mercado e sobre o produto

que produz, já que os meios de produção e a matéria prima lhe serão fornecidos

pelo comerciante capitalista (de produtor autônomo a produtor assalariado).

As “manufaturas” representam a antessala da indústria capitalista, pois ali, já

se reuniam dezenas de operários organizados por um comando, sob o mesmo teto,

realizando tarefas distintas, o que levou a um aumento da produtividade (subdivisão

do processo produtivo).

É com muita argúcia que Avelãs Nunes aponta para um fato que não pode ser

desprezado: o estado teve papel importante como agente facilitador na acumulação

do capital, e na gênese do próprio sistema capitalista. O protecionismo, o monopólio,

a garantia de produtos e mercados, a conquista de novas colônias - o que inclui a

matéria prima - tudo isto em prol de uma indústria nascente, e da classe emergente,

a burguesia.

As claríssimas considerações históricas de Avelãs nos ajudam a entender a

premissa maior formulada anteriormente, segundo a qual, há uma conexão umbilical

entre o sistema econômico capitalista e o poder político moderno.

O contexto histórico da revolução industrial se dá a partir da segunda metade

do século XVIII (1780) e o fenômeno propriamente dito foi meticulosamente

observado e estudado por Marx e Engels. O historiador Francisco Iglésias observou

que ao que tudo indica teria sido Friedrich Engels o primeiro a utilizar a expressão

“Revolução Industrial”.27

Marx captou seu exato sentido, tratando-se de uma análise completa e

profunda.

O impacto da Revolução Industrial sobre as relações sociais, sobretudo, as

relações de produção foi assombroso.

27 IGLÉSIAS, Francisco. A Revolução Industrial . 7ª ed., São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.

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A divisão técnica do trabalho, ou de funções, se impôs e a partir daí um objeto

qualquer simples ou complexo pode implicar em dezenas ou centenas de tarefas. É

a racionalização do trabalho, efeito inevitável deste processo.

De maneira perspicaz, Antônio Avelãs lembra, assim como Marx e Engels já

haviam definido, que talvez o traço mais marcante desta fase do capitalismo tenha

sido o surgimento das fábricas, como unidade de produção, que resultou na

separação total e definitiva entre o produtor e os meios da produção. Esta revolução

aconteceu geograficamente nas cidades, em torno das fábricas, para onde afluíram

hordas de pobres, miseráveis, marginalizados, muitos expulsos das atividades

agrícolas. É este contingente imenso de pessoas, é essa massa incontável de

indivíduos deserdados que vai constituir uma nova classe social, no seio da

Revolução Industrial, o Proletariado.

Outro estudioso do mesmo fenômeno, Eric Hobsbawm, em sua obra intitulada

“A Era das Revoluções”, afirma que a Revolução Industrial, dada a sua magnitude,

não pode ser enquadrada em termos rígidos, com marcos de início de maneira

inflexível. Neste sentido, a Inglaterra foi o terreno fértil para o desenvolvimento

original do capitalismo industrial (economia feudal desarticulada, manufatura

disseminada, mão-de-obra abundante e “homens de negócio”).28

Ainda segundo o historiador inglês, nas primeiras décadas o que se percebe é

um capitalismo monopolista que se utiliza do aparelho de estado para conquistar

mercados para seus produtos industrializados.

Uma vez consolidado o modo de produção capitalista do tipo industrial, emerge

com toda a força a chamada “ordem burguesa”. Esta só foi possível se legitimar

ideológica e juridicamente através do Estado Liberal. Novamente, é Antônio Avelãs

Nunes que vai chamar atenção para o pensamento de Adam Smith.

O economista escocês – contemporâneo dos primeiros passos da Revolução

Industrial e um dos mentores da nova ordem burguesa – asseverava, de maneira

muito lúcida, que o novo contrato estabelecido entre capitalistas e trabalhadores era

altamente desvantajoso para os segundos, dado o desequilíbrio entre as partes. Não

é só, reconhece textualmente que o Estado, e, portanto, a lei, favorece amplamente

a classe patronal.

28 HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções (1789-1848) . Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. 4ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1982.

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Note-se que outro problema apresentado pelo autor escocês é a dinamicidade

do processo de divisão do trabalho como propulsor do crescimento dos Estados,

denominados Nações.

Para Paulo Ricardo Opuszka, a divisão do trabalho em Smith, é a grande

causa do aumento da capacidade produtiva do próprio trabalho. Tal divisão poderia

ser copiada por outros ramos da produção generalizando-se.

Assim destaca o referido autor:

A vantagem da divisão do trabalho poderia ser demonstrada em três circunstâncias: maior destreza do trabalhador, já que confia uma tarefa específica à capacidade de aprimorá-la e assim, a capacidade e a habilitação técnica aumentariam; economia do tempo, quanto mais rápida a produção, mais tempo se ganharia no produto final do trabalho com o aumento da produção; utilização da maquinaria, inventada por operários construtores de máquinas, ou ainda, filósofos inventores29.

Mais do que isso, o liberalismo burguês, a partir de ideias também de David

Ricardo e Stuart Mill, constitui um conjunto de valores que forjou o século XIX, quais

sejam: liberdade de empresa, liberdade de concorrência, liberdade individual, a não

intervenção estatal nos negócios, iniciativa privada e o lucro como valor supremo.

Em suma, tivemos um período de longa hegemonia da ideologia do liberalismo

burguês, aqui entendido como o reino das liberdades econômicas, públicas,

políticas, da igualdade jurídica e da liberdade contratual, tudo sob um prisma

estritamente subjetivo, abstrato e individual.

A questão é que o capitalismo demonstrou-se, desde muito cedo, ser um

sistema econômico altamente volátil, e, por consequência, fortemente suscetível às

crises cíclicas e estruturais.

É nesta perspectiva que Vital Moreira revela que a incapacidade do sistema

para responder por si as perturbações do aparelho econômico provocadas por crises

cada vez mais agudas, obrigou o Estado a procurar disciplinar e economia no seu

conjunto.

Vital Moreira passa a tratar da expressão “intervenção econômica do Estado”.

Desde há muito tempo que o espaço da economia não é independente da atuação

estatal. Há na realidade uma interdependência entre as esferas mencionadas. A

29 OPUSZKA, Paulo Ricardo. Categorias fundantes da Economia de Mercado e elementos de uma análise crítica. In ASSAFIM, João Marcelo de Lima e SILVA, Nelson Finotti (orgs.). Direitos Humanos Fundamentais e Desenvolvimento Social . Rio de Janeiro: Letras Jurídicas, 2014, p.246.

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vetusta separação estado-sociedade pertence ao já definhado Estado liberal. De

outro lado, é da essência do sistema capitalista, ver o Estado como algo intruso

quando este opera na ordem econômica. Entretanto, há uma mediação correta que

afirma que “o estado e a ordem jurídica são pressupostos inerentes à economia”. 30

O Estado Gendarme foi sepultado no século XIX, período no qual se assinala o

ponto zero da intervenção econômica. O autor sustenta a ideia de que o sistema

capitalista e o estado sempre mantiveram algum tipo de relação, nos mais variados

períodos históricos. Portanto, a suposta fronteira que separaria as duas esferas

(público/privada) jamais existiu, desautorizando os cânones liberais. Tanto no

Estado liberal, quanto no Estado social, o político e o econômico são dimensões

inseparáveis. O Estado liberal é a expressão da supremacia da infraestrutura

(economia), já o estado social, é a supremacia da política (superestrutura).

E qual seria o contexto histórico deste período de transição?

Vital Moreira afirma que é a guerra de 1914 que melhor representa o marco de

passagem para uma nova forma econômica. A primeira guerra mundial quebra a

tradição do liberalismo econômico, evidenciando a necessidade do controle integral

e coativo da vida econômica, constituindo uma experiência concreta de total

disciplina pública da economia.

No entendimento de Vital Moreira, a separação de princípio entre o estado e a

economia deu lugar à interpretação recíproca, num processo de politização do

econômico ou de economização do político, em uma relação dialética. Do Estado de

guarda noturno, abstencionista e negativo, passa-se ao estado afirmativo ou

positivo. Enfim noutra perspectiva que inclui ambos os aspectos da questão, ao

capitalismo de concorrência liberal e privado, substitui-se o capitalismo monopolista

de estado.

Emerson Gabardo completa a descrição deste modelo de estado que deu lugar

ao estado “providência” com suas marcantes características, senão vejamos:

redistribuição de renda; fixação de preços e controle do mercado.31

O ordenamento jurídico deste período (pós 2ª guerra) teve que adequar-se ao

que seria a “ordem pública econômica”. É o que o referido jurista chama de

30 MOREIRA, Vital. A ordem jurídica do Capitalismo . 3ª. Edição. Coimbra: Centelha. 1978. 31 GABARDO, Emerson. Interesse público e subsidiariedade . Belo Horizonte: Fórum, 2009.

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“Constituição Econômica”. A Constituição Mexicana (1.917) e a de Weimar (1.919)

são predecessoras deste paradigma.

O “Estado Social” seria uma espécie de terceira via, nem liberal, nem “estado

forte” – que conjuga a intervenção a partir normas democráticas que não violem os

valores da cidadania, nem suprima direitos individuais.

De outro lado, esta metamorfose estatal define a supremacia do interesse

coletivo sobre o individual. É a troca da “mão invisível” do mercado, como um dado

natural, pelo controle estatal na correção das falhas do modelo liberal.

Na esteira deste raciocínio, o Antônio Avelãs Nunes, em tom crítico, ao citar o

prêmio Nobel de Economia de 1969, o economista Jan Tinbergen, afirma o equívoco

deste em considerar uma tentativa de “convergência dos sistemas”. Para o

economista holandês, o Estado Social seria um “sistema híbrido”, intermediário entre

o capitalismo e o socialismo.

Na visão de Tinbergen, o modelo que ressurgiu no pós-2ª. Guerra Mundial – de

forte intervenção e controle estatal – seria uma forma de “capitalismo social” ou

“economia social de mercado”.

É no quadro dos anos 70 que o discurso liberal – que hibernou ao longo de três

décadas – encontrou solo fértil para se reapresentar como projeto de oposição ao

“Wellfare State”. Dos dois lados do atlântico, governos ultraconservadores (do ponto

de vista político) e neoliberais (do ponto de vista econômico) – M.Thatcher e

R.Reagan – foram os arautos da nova/velha ordem, imbuídos do ideário do século

XIX. O consenso de Washington (1989) é o ápice deste retorno aos cânones

liberais. A “indisciplina fiscal” é a grande vilã do estado gastador, perdulário e

ineficiente. Em outros termos, a ideologia neoliberal advogou o desmonte do estado

de bem-estar social, já que, este seria um empecilho ao crescimento e

desenvolvimento econômicos. O capitalismo, como sistema econômico, é composto

por períodos históricos e segue uma sucessão de “crises”. A globalização, dentro da

História do Capitalismo, é, ao mesmo tempo, um período e uma crise. Como

período, o sistema capitalista é global, pois funciona em todas as partes e tudo

influencia. Como crise é uma crise persistente com efeitos duradouros, aquilo que se

pode chamar de “crise estrutural”.32

32 NUNES, Antônio Avelãs. Do capitalismo ao Socialismo . Florianópolis: Fundação Boiteux. 2007.

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A globalização gera a tirania do dinheiro e da informação (controle dos

“espíritos”). A crise financeira gera outras crises: econômica, social, moral, política.

Todos estes problemas foram agravados pela diminuição do Estado. Esta

perversidade sistêmica gera ainda a corrupção e a morte da política, já que esta

passa a ter como protagonista os interesses das grandes corporações que

passaram a ser parceiras do Estado, conforme percuciente avaliação do pensador e

geógrafo brasileiro Milton Santos.33

Já para o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, a Globalização é

um fenômeno multifacetado, pois afeta mais visivelmente a Economia, mas atinge a

Política, as relações sociais e o próprio Direito. O fenômeno da Globalização

aprofundou-se a partir do chamado “consenso neoliberal” que afirma o fim dos

paradigmas tradicionais (Revolução ou Reforma), a morte das Ideologias

(fascismo/comunismo), a hegemonia absoluta da Democracia Liberal e da Economia

de Mercado (regulação estatal mínima), programas de ajustamento estrutural,

protagonismo das agências financeiras de “rating” e das grandes corporações.34

Por outro lado, o declínio do Estado-nação – que significa uma crise de

soberania – como consequência mais visível do avanço da globalização e do

neoliberalismo implicaram efeitos nefastos na esfera política e na dimensão jurídica,

como bem assinalou o Abili Castro de Lima. A assumir, ainda que parcialmente, o

espaço deixado pelo Estado, há o protagonismo das grandes corporações

multinacionais. Segundo Abili, a transnacionalização da economia seria o motor para

esta inversão de papéis, numa reconfiguração das fronteiras políticas e econômicas.

Os efeitos sociais deste movimento em escala global serão negativamente

incalculáveis, atingindo a todos os países. 35

Todavia, a sua incidência será mais contundente sobre as nações mais pobres,

em desenvolvimento, àquelas que têm que se posicionar segundo a nova/velha

divisão social do trabalho.

Por fim, o José Manuel Pureza, reforça a ideia apresentada pelo professor

brasileiro naquilo que chamou de “redirecionamento do Estado”, o que admite uma

33 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 5ª. Edição. Rio de Janeiro: Record, 2001. 34 SANTOS, Boaventura de Souza. Efeitos da Globalização e Neoliberalismo na garantia dos Direitos Humanos. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). A Globalização e as Ciências Sociais . 2. ed. São Paulo: Cortez, 2002. 35 CASTRO DE LIMA, Abíli Lázaro. Globalização Econômica Política e Direito (Análise das mazelas causadas no plano político-jurídico). Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002.

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evidente fragilização do ente estatal, sobretudo na garantia do chamado “contrato

social” quanto à preservação de políticas de inclusão. Ainda, segundo Manuel

Pureza, a globalização assim conduzida atribui toda a prioridade à

complementaridade entre autonomia dos mercados e “Estados facilitadores”,

orientada para a liberalização, a privatização, a desregulamentação da economia, a

retratação dos gastos com bens públicos e dos encargos com o bem-estar social, a

plena mobilidade dos capitais e a sujeição do mercado de trabalho em simultâneo

com um estrito controlo internacional e uma total flexibilidade nacional. 36

3.2 Estado e direitos sociais

É indene de dúvida de que, ao lado da Revolução Industrial, a Revolução

Francesa marca de maneira indelével a modernidade política e jurídica, bem como

as relações em um novo espaço social. Na realidade, a Revolução Francesa é a

consolidação do poder e da ideologia burgueses por toda a Europa Ocidental.

A Revolução Francesa (1.789) distingue-se das demais revoluções por duas

características que lhe são essenciais: a) a sua universalidade, pois seus valores

transcendem as fronteiras europeias; b) a importância dos movimentos populares,

seja na cidade (sans culottes), seja no meio rural (camponeses), fato que a tornará

inigualável, pois tais segmentos foram a vanguarda num processo de demanda e

alargamento de direitos.

A despeito destas características, a Revolução Francesa acentuou o aspecto

da conquista do poder político por uma classe que já era detentora do poder

econômico. A Revolução Francesa se constitui na destruição do “Antigo Regime”,

sobretudo dos elos e dos privilégios medievais da nobreza e do clero. O chamado 3º

Estado (burguesia e classes populares, no campo/cidade) é a vanguarda do

processo revolucionário, evidentemente que o setor dirigente deste movimento foi a

culta burguesia francesa.

Some-se a tudo isso, o ideário iluminista que solidificou os princípios

ideológicos da Revolução: as potencialidades da razão contra o obscurantismo do

absolutismo e sua defesa inconteste do direito natural (vida, liberdade, propriedade).

36 PUREZA, José Manuel. Por um internacionalismo pós-westefaliano. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). A Globalização e as Ciências Sociais . 2. ed. São Paulo: Cortez, 2002.

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Por outro lado, o processo francês é revolucionário porque do confronto direto entre

as classes, emergiu um grupo social vencedor e o outro derrotado.

No plano econômico, todos os privilégios feudais e corporativos foram abolidos.

No plano jurídico, foi proclamada a igualdade civil e jurídica. Nada obstante a

retórica da igualdade cidadã há que se esclarecer que a nova ordem burguesa, ao

mesmo tempo em que assegurava serem os homens “livres e iguais”, assegurava

também o direito de propriedade como “inviolável e sagrado” (Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão).

A mesma ordem burguesa, no plano político, adotou o sufrágio censitário que

dividiu os homens em duas categorias, a saber: cidadãos ativos e passivos. Com

base na renda econômica, os últimos estavam excluídos do direito de votar e de ser

eleito. Já os cidadãos ativos, em função do critério da renda, eram cidadãos

completos, com todos os direitos.

No plano das relações sociais de produção (trabalho), a nova ordem burguesa

foi igualmente conservadora e excludente, pois a assembleia constituinte formulou a

Lei de Chapelier (1.791), (Le Chapelier, advogado constituinte), que vedava o direito

de associação/sindicalização (organização) dos trabalhadores e proibia o direito de

greve.

Os limites e as contradições do projeto burguês revolucionário são flagrantes,

máxime, se confrontados o discurso (pró-direitos) e a prática (excludente de

direitos). Concretamente, o que prevaleceu foi o individualismo, marca do liberalismo

burguês e as teses do contratualismo que formarão a ideologia hegemônica no

século XIX.

Poderíamos sintetizar que, além do direito inalienável e sagrado da

propriedade, estariam asseguradas a Igualdade Jurídica (Civil) e a liberdade

contratual, como pressuposto teórico, segundo o qual todos os indivíduos (racionais)

são livres para estabelecer contratos, para firmar contratos, fundados na autonomia

da vontade individual. Tudo sob um prisma profundamente individualista.

Como o próprio historiador inglês Eric Hobsbawm observou o movimento

revolucionário francês nada tinha de democrático ou igualitário. Como bem destacou

Hobsbawm, o burguês revolucionário do período é um devoto do constitucionalismo,

a favor de um Estado secular e de garantias para a livre empresa e os proprietários.

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Por outro lado, o fenômeno da industrialização acirrou sobremaneira a luta de

classes, como assinalou Marx no Manifesto Comunista: “a História de toda a

sociedade até os nossos dias é a História da luta de classes”.37

Um fenômeno histórico antigo atingiu seu paroxismo já que a indústria

aumentou sensivelmente a distância entre ricos e pobres. Aliás, a ascensão

burguesa foi fulminante.

A crítica marxista ao conceito de “igualdade jurídica”, sobretudo se considerada

a relação entre “burgueses e proletários”, não tardou a emergir, conforme bem

observou Luciano Gruppi que à revolução jurídica (igualdade formal) deveria

desencadear-se uma revolução econômica e social a caminho de uma igualdade

material, fato que os limites da revolução burguesa não possibilitaram. 38

Na ótica de Marx a Igualdade Jurídica teria a função de ocultar as

desigualdades sociais. O caráter generalizante e abstracionista (generalidade e

abstração) da LEI oculta que, na realidade concreta, os indivíduos são radicalmente

desiguais e convivem em um meio social fortemente hierarquizado (econômica e

politicamente).

A partir de uma leitura materialista da sociedade, Marx já havia asseverado de

forma peremptória que “o modo de produção da vida material condiciona o processo

de vida social, política e intelectual.” Ou seja, o Estado e a Lei seriam expressões

(reflexos) das relações de produção travadas na infraestrutura das sociedades.39

Esta perspectiva da filosofia materialista permite a Marx também questionar qual o

significado da categoria “trabalhadores não proprietários” na sociedade burguesa.

Qual o papel a ser desempenhado pelo Estado e pelo Direito Privado nas relações

sociais de produção.

De qualquer sorte, há um legado das duas revoluções sob comento

(industrial/econômica e francesa/política/jurídica) a ser defendido, qual seja: ideias

morais que sustentaram serem os indivíduos os responsáveis pela riqueza coletiva

das nações por intermédio de um Estado democrático e social, isto, já no século XX.

37 HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções (1789-1848) . Trad. Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. 4ª. edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1982. 38 GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel (As concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci). Trad. Darcio Canali, 5ª. ed. Porto Alegre: L & PM Editores, 1986. 39 MARX, Karl. História . Org. Florestan Fernandes. Trad. Florestan Fernandes, 2ª. Ed. São Paulo: Àtica, 1984.

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Os direitos sociais nasceram no contexto histórico do período entre guerras, e

não havia antecedentes nem no jusnaturalismo, nem no positivismo jurídico.

Decorrem do novo Estado social, e passam a ser a coluna cervical das modernas

constituições do século XX. O Direito ao trabalho e ao salário justo seriam dois bons

exemplos deste modelo. Aparentemente o direito ao trabalho é incompatível com o

caráter volátil e transitório da economia capitalista.

O pleno emprego seria uma utopia. O direito ao trabalho exigiria uma

intervenção do Estado sobre o mercado de trabalho, subsidiando-o, estimulando-o

fiscalmente, para efetivação de tal direito. É, na realidade, uma diretiva

constitucional. Já o direito ao salário justo, trata de início, de estabelecer seu

significado.

Ou o salário justo tem esta qualidade porque responde a todos os requisitos de

um bom padrão de vida, ou é justo porque ele é uma contribuição adequada ao

trabalho realizado. Nas duas situações, há graves dificuldades quanto a sua

definição. Os limites da economia capitalista acabam por frustrar a implementação

desses dois direitos. Aqui temos outra “diretiva constitucional”. Em outros termos, há

“um débil alcance normativo dos direitos sociais”. O sistema econômico tem sido o

limite implacável destes direitos.

Por outro lado, contemporaneamente os direitos fundamentais da propriedade

e da liberdade de empresa já não se restringem a esfera individual, mas estariam

subordinadas ao bem comum. É a partir daí, que se pode falar em “função social”

destes institutos previstos na constituição, ou seja, o interesse geral e o bem comum

prevaleceriam sobre a dimensão individual na ordem econômica.

O sujeito econômico seriam a grande corporação e o sistema financeiro, na

realidade portentosas instituições, com fundamentos econômicos fixados na

constituição, daí a propalada “responsabilidade social”. Todos estes ingredientes

colocados diante dos seus trabalhadores, consumidores e a própria sociedade.

Todavia, argumentos de ordem mais pragmática – “a intocabilidade do direito

econômico” – acabam por soterrar muitos dos direitos sociais. Vital Moreira

questiona qual é o real significado da expressão “estado social”, previsto em tantas

constituições europeias. Para Vital Moreira a adversidade conceitual já é uma

amostra das limitações deste modelo no que toca à efetividade dos direitos sociais.40

40 MOREIRA, Vital. A ordem jurídica do Capitalismo . 3ª. Edição. Coimbra: Centelha. 1978

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40

A estes óbices de ordem econômico/jurídico, acresça-se a brutal investida da

globalização na desconstrução de inúmeros direitos sociais, sobretudo, os direitos

trabalhistas.

Nesta seara, Abili Castro com muita propriedade fala de “dissipação dos

direitos sociais” através da flexibilização e desregulamentação dos direitos

trabalhistas. É bom que se afirme que tais conceitos se transformaram em

verdadeiras palavras de ordem ao longo da década de noventa, adentrando este

século.

Resta claro que na sua origem os direitos sociais surgiram a partir de uma

concepção cidadã nos textos constitucionais dos assim chamados Estados de Bem-

Estar Social. Portanto, tais direitos, o que inclui o direito ao trabalho, estão

umbilicalmente ligados à própria ideia de cidadania e “padrões dignos de existência

na persecução de um equilíbrio social”, nas sábias palavras do professor brasileiro.

Abili Castro não tem qualquer dúvida quanto a ameaça que o processo de

globalização representa no campo jurídico ao emascular os direitos sociais, abrindo

as portas para um deletério retrocesso em termos histórico e civilizatório. Neste

sentido, o Estado não teria mais a missão primordial de minorar as abissais

diferenças sociais inscritas na comunidade. Antes ao contrário, o papel do Estado

seria garantir a liberdade da ordem econômica, inclusive, a partir dos textos

constitucionais. O resultado disso é a “dissipação dos direitos sociais”, em um

momento em que a economia se sobrepõe à política e ao próprio direito, incluindo-se

aqueles de índole trabalhista. 41

Por óbvio que a relações de trabalho contemporâneas devem ser pensadas no

marco do modo de produção capitalista e, mais precisamente, em sua fase atual

(neoliberalismo e globalização).

A globalização modificou profundamente a relação entre capital e trabalho.

Para o sociólogo Boaventura de Souza Santos as consequências sociais

decorrentes da globalização são conhecidas e independem em que continente ou

país em que são produzidas. Mesmo no país que pode ser considerado o carro-

chefe deste sistema dominante, os E.U.A., passa por um processo de degradação

social nunca antes visto, já que 1% das famílias americanas detinha 40% da riqueza

41 CASTRO DE LIMA, Abíli Lázaro. Globalização Econômica Política e Direito (Análise das mazelas causadas no plano político-jurídico). Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002.

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41

do país e as 20% mais ricas detinham 80% desta mesma riqueza (dados do FED,

para o final da década de 80).

No plano das relações de trabalho, a visão de Boaventura Santos não é menos

realista quanto aos efeitos nefastos da globalização:

No domínio da globalização social, o consenso neoliberal é o de que o crescimento e a estabilidade econômicos assentam na redução dos custos salariais, para o que é necessário liberalizar o mercado de trabalho, reduzindo os direitos laborais, proibindo a indexação dos salários aos ganhos de produtividade e os ajustamentos em relação ao custo de vida e eliminando a prazo a legislação sobre salário mínimo. O objetivo é impedir “o impacto inflacionário dos aumentos salariais”.

Na linguagem da tecnocracia econômica dominante é o chamado “custo país”,

na visão fundamentalista do discurso globalizante trata-se de um sério entrave ao

crescimento econômico.

Por óbvio que o enfraquecimento do fator “trabalho” tem relação direta com a

desarticulação do Estado, seu esvaziamento, a anemia funcional a que foi

submetido a partir dos anos oitenta. É o consenso do “Estado fraco”. Ainda segundo

Boaventura sugere-se que o “Estado é o oposto da sociedade civil e potencialmente

seu inimigo. Daí que o Estado fraco seja também tendencialmente o Estado mínimo.

O consenso do Estado fraco visa repor a ideia do estado liberal original”. 42

No quadro da globalização e suas consequências, o sociólogo português não

deixa de assinalar o papel do Direito:

Muito diferente deste processo é o que, na mesma área da justiça e do direito, tem vindo a ser protagonizado pelos países centrais, através de suas agências de cooperação e assistência internacional, e pelo Banco Mundial, FMI e Banco Interamericano para o Desenvolvimento, no sentido de promover nos países semiperiféricos e periféricos profundas reformas jurídicas e judiciais que tornem possível a criação de uma institucionalidade jurídica e judicial eficiente e adaptada ao novo modelo de desenvolvimento, assente na prioridade do mercado e das relações mercantis entre cidadãos e agentes econômicos.43

O ocaso do Estado de Bem-Estar social, a Globalização, o Capitalismo

essencialmente financeiro e a batalha desigual entre a “Ordem Econômica e os

42 SANTOS, Boaventura de Souza. Efeitos da Globalização e Neoliberalismo na garantia dos Direitos Humanos. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). A Globalização e as Ciências Sociais . 2. ed. São Paulo: Cortez, 2002. 43 SANTOS, Boaventura de Souza. Efeitos da Globalização e Neoliberalismo na garantia dos Direitos Humanos. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.). A Globalização e as Ciências Sociais . 2. ed. São Paulo: Cortez, 2002.

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Direitos Sociais”, no plano constitucional colocam a questão da rendição e um

processo de erosão das normas de proteção dos desiguais na ordem do dia do

debate sobre as sociedades contemporâneas.

No capítulo seguinte, opta-se por fazer uma leitura crítica destas candentes

questões à luz da História do Brasil, considerando nossas especificidades e

particularidades se comparadas com a experiência vivenciada nos países do

Capitalismo central ainda no sentido de apresentar o processo de rendição dos

direitos sociais (ou ainda, a tentativa do mesmo) na luta por um Direito do Trabalho

da sociedade brasileira.

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4. A ORDEM ECONÔMICA E POLÍTICA COMO ÓBICES À DIGNI DADE DA

PESSOA HUMANA NO BRASIL

4.1 Colônia e Império ou a inexistência de direitos

O processo histórico brasileiro, ao cabo de suas diferentes fases, produziu um

conceito de cidadania deveras limitado, quando não inexistente. As raízes profundas

da História brasileira que, por óbvio, têm as mais diversas nuances, explicam o

acentuado grau de dificuldades que resultaram em uma noção de cidadania muito

diferente daquela construída pelos países que passaram pelas chamadas

“revoluções burguesas”, notadamente a França. Mas não é só isso, mesmo alguns

dos nossos vizinhos latino-americanos, por razões históricas variadas, conseguiram

avançar mais do que nós no campo da construção de direitos elementares.

É evidente que a realidade brasileira, do passado e do presente, tem,

obrigatoriamente, que ser pensada no quadro do modo de produção capitalista.

Como é de conhecimento geral o capitalismo, como sistema econômico, é composto

por períodos históricos muito diferentes e segue uma sucessão de “crises”.

Como bem observou o professor Vital Moreira, o capitalismo domina a História

econômica, social, política e ideológica dos últimos dois séculos, mas suas origens

remotas encontram-se já no final do século XV. Mais do que isso, o pensador

português assinala que o capitalismo, como sistema social, não é apenas um fato

econômico: é também um fato jurídico e um fato político.44

Quando o Brasil se tornou uma colônia da metrópole portuguesa, o capitalismo

em sua fase muito inicial, denominada por Marx como “acumulação primitiva do

capital”, foi o resultado da ação cada vez mais protagonista de uma nova classe

urbana, comerciante, especuladora e financeira que inicia os primeiros passos do

sistema capitalista sob a forma mercantil.

É o que Antônio Avelãs Nunes chamou de a “mundialização do comércio”. Em

outros termos, banqueiros e comerciantes foram os grandes beneficiários desta

espoliação dos recursos naturais retirados das Américas, sendo ouro e prata em

particular. A colonização das “novas terras” tornou-se a primeira grande empresa

44 MOREIRA, Vital. A ordem jurídica do Capitalismo . 3ª. Edição. Coimbra: Centelha, 1978.

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capitalista organizada com tentáculos para além dos limites da Europa. A inserção

do Brasil dentro deste sistema mercantil é exclusivamente de fornecedor de matéria-

prima e assim o será desde o século XVI até as duas primeiras décadas do século

XIX.45

Por evidente que este gigantesco mecanismo de “acumulação primitiva de

capital”, esta empresa mercantil uniu economicamente a Europa ocidental às

Américas.

Tal empreendimento teve como um dos seus tripés a utilização da mão-de-obra

compulsória explorada intensamente nos imensos latifúndios que se estabeleceram

desde o princípio. Inicialmente sob a forma de “servidão” – largamente utilizada nos

países hispânicos – e, no caso do Brasil, exclusivamente sob a forma de escravidão,

primeiro em relação aos chamados “povos originários”, e depois, com as

comunidades negras trazidas da África.

Do ponto de vista jurídico, o historiador do Direito José Reinaldo de Lima Lopes

detalhou o funcionamento do “sistema judicial” no Brasil colonial, principalmente nos

casos que envolvessem matéria criminal. Nesta seara, Lima Lopes afirma que os

alvos preferenciais desta “justiça” que deveria punir com exemplaridade eram os

“brancos pobres, ou os libertos, os pequenos artesãos e os trabalhadores braçais”.

Os negros escravos eram, em regra, resgatados por interesses de seus proprietários

e castigados privadamente. José Reinaldo afirma que a escravidão (de índios e

negros), os privilégios sociais decorrentes da origem estamental, o caráter colonial e

espoliativo da exploração da terra e das populações pobres “impôs ao direito

brasileiro, do ponto de vista da proteção de grandes setores da população, pouca

efetividade”. 46

Sobre o Brasil-Colônia, o historiador do Direito Antônio Carlos Wolkmer, faz

uma análise muito semelhante a que foi até aqui traçada. Do ponto de vista político,

há um descompasso completo entre as demandas da massa miserável e as

autoridades que a metrópole, senhores de escravos e proprietários de terras, em

suma, o “casamento” entre a coroa e as elites locais. Do ponto de vista jurídico,

Wolkmer considera aquilo que virou uma tradição na História do Direito brasileiro:

45 NUNES, Antonio Avelãs. Os sistemas Econômicos: gênese e evolução do capitalismo. Coimbra: Serviços de acção social da U.C., 2009. 46 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2002.

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um espaço abissal entre os interesses das elites governantes e esmagadora maioria

da população. Ainda, segundo o referido historiador, “... no Brasil-Colônia, a

administração da justiça atuou sempre como instrumento de dominação colonial”, o

que tem como corolário lógico a impossibilidade completa de se instituir qualquer

noção mínima de cidadania durante o longo período colonial.47

A segunda fase da História do Brasil, considerada a divisão clássica da

historiografia, é representada pelo Império, cuja duração foi de 1822 a 1889. O

contexto histórico do processo de independência reflete um período posterior às

Revoluções Americana e Francesa, um período influenciado pela ascensão da

burguesia, no qual vicejavam ideias liberais, fruto do pensamento Iluminista.

A independência constitui um movimento cujo conteúdo é extremamente

conservador, que se dá sem rupturas com o regime colonial anterior. Em outros

termos, no inusitado processo brasileiro de independência, “guerras”, rebeliões, ou

revoluções, como as que ocorreram em quase todos os países que hoje compõem a

América Latina, simplesmente inexistiram. Ao contrário de rupturas políticas,

institucionais e sociais, o que ocorreu foi a manutenção das velhas fórmulas desde

os tempos coloniais: a persistência da Monarquia e do Imperador, ou seja, a falta de

um modelo republicano; e, sobretudo a manutenção da escravidão e do latifúndio.

Mais do que isso, na visão da historiografia mais arejada, é consenso de que a

independência foi um movimento que se deu a partir das elites nativas, portanto foi

forjada em processo bastante elitista. Disso decorreu uma falta de participação

popular, tendo em vista a ausência de temas de interesse do povo, tais como:

abolição da escravatura; democratização da terra; sufrágio universal, melhoria das

condições de vida, dentre outros.

Aos dois fatos acima conjugados some-se a adoção de uma ideologia liberal,

de cunho individualista, mas que é praticada essencialmente no campo econômico,

em seus principais fundamentos: propriedade privada, livre empresa e livre

comércio.

Juridicamente, a construção de um “estado nacional soberano” requer a

elaboração de um ordenamento jurídico pátrio. O primeiro passo neste sentido

demandou a feitura de uma Constituição. O histórico deste documento jurídico já

denuncia seu vício essencial de origem, posto que a primeira Constituição brasileira,

47 WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil . Rio de Janeiro: Forense, 2002.

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não é o resultado da expressão da “vontade popular” – como queriam os iluministas

franceses. Ao contrário, os fatos se sucederam da seguinte maneira: uma

Constituinte foi convocada em 1822, dissolvida em 1823, sendo a carta

constitucional do Império outorgada no ano de 1824.

Ressalte-se a posição de professor Wolkmer que denuncia a escancarada

contradição entre a consciência liberal no texto constitucional e a existência do

sistema escravocrata adicionado da exclusão dos brasileiros livres e pobres. Seria a

“contradição entre o formalismo retórico do texto constitucional e a realidade social

agrária”.48

Do ponto de vista do reconhecimento de direitos elementares e o conceito de

cidadão, é relevante pinçar no texto constitucional alguns pontos que são cruciais

para responder aos dois desafios propostos. A Constituição do Império traz as

seguintes questões que restringem severamente tanto direitos, quanto à cidadania,

senão vejamos: a) voto censitário – traz para a arena política um critério econômico

para alguém votar e ser votado, incluídos no jogo eleitoral apenas os indivíduos com

renda superior; b) religião oficial (a união entre o Estado e a Igreja) – a ausência de

um estado laico implica negar a liberdade de culto, o acesso às funções públicas, e

os direitos políticos para todos aqueles que não professassem a fé católica; c) a

propriedade, o que inclui o latifúndio e os escravos.

A questão da propriedade, em face de sua relevância histórica e sérias

consequências ainda no presente, merece destaque. É importante ressaltar o fato de

que o Brasil foi o último país das Américas a por fim ao trabalho escravo. Tal fato só

foi possível tendo em vista a tenaz resistência das elites rurais brasileiras,

proprietárias de escravos. Aqui, Volkmer afirma que tanto o texto constitucional,

quanto o Código Criminal ocultaram deliberadamente a questão da escravidão. Para

Antônio Volkmer, a visão jurídica do Império assim se apresentava: “O formalismo

oficial ocultava uma postura autoritária e etnocêntrica do legislador da primeira

metade do século XIX, com relação a certos segmentos marginalizados e excluídos

da cidadania.”

Assim como a escravidão, o regime de propriedade da terra não sofreu

alterações na transição entre a Colônia e o Império. Ou seja, a grande propriedade

rural (latifúndio), nascida com as capitanias hereditárias, manteve-se intacta sendo

48 WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil . Rio de Janeiro: Forense, 2002.

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adquirida pelos grandes proprietários de terra através de doação ou posse. Mesmo

após a Lei de Terras de 1850 – que supostamente modernizaria compra de terras

devolutas em leilões públicos – a concentração fundiária só se aprofundou até os

dias de hoje. Aliás, o historiador José Reinaldo havia alertado para a questão central

que se constituiu a propriedade para a História do Brasil, e isto em dois sentidos: a

questão da mão-de-obra (escrava ou imigrante); a centralidade do instituto da

propriedade para o próprio Direito privado, no qual ela passou a ter uma dimensão

ilimitada, ou um “exercício quase que despótico do poder político dos

proprietários.”49

De outro lado, a legislação infraconstitucional também não propiciou direitos,

nem cidadania. Há uma relação direta entre o processo de codificação executado no

Brasil-Império e a ideia de cidadania, só que de maneira inversa ao processo

ocorrido na França do século XVIII e seus pares. Assim, por oposição cerrada dos

latifundiários, (proprietários de escravos), não tivemos um Código Civil – ainda que

com um viés elitista. É muito simbólico que o Brasil Imperial tenha iniciado o seu

processo de codificação a partir do Código Criminal (1830), seguido do Código de

Processo Criminal (1832).

Diante do ordenamento jurídico do Império, conclui-se não ser possível aventar

um país composto de cidadãos, com direitos mínimos. Ao contrário, uma leitura

crítica, mas precisa da fase imperial nos remete a uma cidadania muito restrita, onde

liberdade, propriedade e segurança não são direitos, mas privilégios.

4.2 República: gradualismo e incompletude de direit os

A terceira fase da História do Brasil é a republicana e se inicia em 1889 com a

queda do Império. A república instituída não decorreu de um processo

revolucionário, como na França, por exemplo. Foi, antes sim, o resultado de um

golpe de estado, articulado pelo exército com alguns setores civis. Assim como o

processo de Independência, a proclamação da república sofreu de uma ausência

popular, o que demonstra, desde o princípio, o caráter altamente elitista deste

regime. O historiador José Murilo de Carvalho relata que o povo ou as “massas”

49 LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2002.

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assistiram atônitas à proclamação da república, que em vez de “ter sido protagonista

dos acontecimentos, assistira a tudo bestializado, sem compreender o que se

passava, julgando ver talvez uma parada militar.”50 A frase é lapidar no sentido de

demonstrar a falta de uma participação cidadã em um evento tão espetacular. Não

por acaso, a esta primeira fase é chamada de a República Oligárquica (1889/1930),

vindo a se constituir em modelo politicamente conduzido pelas elites locais, tendo o

protagonismo dos oligarcas paulistas e mineiros.

Para entender este período da república é fundamental desvendar as

ideologias que habitavam as mentes das nossas elites. Assim, duas poderosas

vertentes ideológicas estão presentes neste momento, a saber: a) Liberalismo

individualista, a partir do princípio do “laissez-faire” - ou seja, o estado não tem

função reguladora, logo, não deve interferir nas atividades produtivas, nas relações

sociais, nas relações de propriedade. Cite-se como exemplo o fato de que a

educação fundamental deixa de ser obrigação do Estado; b) Positivismo - a

república recepcionou fortemente o Positivismo, inclusive na divisa da bandeira

(“ORDEM e PROGRESSO”). A influência do Positivismo vai gerar uma mentalidade

conservadora e autoritária entre nossos intelectuais (juristas), nas faculdades de

Direito e nos políticos. Segundo o ideário positivista “As mudanças sociais se dão

através da evolução gradual da sociedade e suas instituições, e não através da

revolução”. No plano jurídico, a primeira Constituição republicana (1.891), imbuída

de um espírito inovador, adotou alguns institutos modernizantes no que toca a

ampliar o conceito de cidadania. O texto constitucional impõe a liberdade de culto,

decretando o fim da religião de estado, ou seja, separando Igreja do Estado (Laico).

De outro lado, há uma modernização no campo dos direitos políticos com a

adoção do voto universal e o fim do voto censitário. Neste ponto, é importante

ressaltar que o voto universal, apesar de ser um avanço em relação ao modelo

anterior, excluía da arena política as mulheres e os analfabetos, tornando o exercício

do direito do voto à uma parcela ínfima da população.

Ninguém melhor retratou a incidência da limitação de direitos sobre a ideia de

cidadão do que José Murilo de Carvalho, quando traça um paralelo com a

Constituição francesa de 1791:

50 CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1985.

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(...) aliás incluída na própria Constituição brasileira, entre cidadãos ativos e cidadãos inativos, ou simples cidadãos. Os primeiros possuem, além dos direitos civis, os direitos políticos. Os últimos só possuem os direitos civis da cidadania. Só os primeiros são cidadãos plenos, possuidores do ius civitatis do direito romano. 51

É consenso entre os historiadores do direito que a Constituição de 1891 foi

fortemente influenciada pelo modelo norte-americano. Dai o peso da ideologia do

liberalismo individualista. No campo do direito privado, isto significa a absoluta

observância da “autonomia das vontades individuais” e o respeito incondicional à

“liberdade dos particulares”. Em outros termos, o interesse individual tende a se

sobrepor ao interesse coletivo ou público. O ordenamento jurídico privilegia direitos

individuais, dentro de uma perspectiva da “liberdade contratual”. Por outro lado, o

texto constitucional não assegurou os mais basilares direitos sociais, o que significa

que na República Oligárquica há uma massa de pobres e miseráveis, analfabetos,

desassistidos pelo Estado.

Conclui-se que, a despeito da pregação e do discurso liberal, na primeira

experiência republicana há uma prática conservadora e autoritária. Aliás, é de triste

memória o lema mais representativo desta fase da História republicana: “A questão

social é uma questão de polícia”. Exemplos não faltam que ilustrem este quadro

dramático de negação de cidadania e direitos básicos: Canudos, Contestado, a

perseguição às lideranças operárias do início do século, dentre outros.

O fim da República Oligárquica (1930), em grande medida, foi o resultado da

grande crise do liberalismo em escala mundial. Internamente, significou o começo da

chamada “Era Vargas” que vai durar, alternando democracia e ditadura, quinze

anos.

Por outro lado, anote-se, desde já, que a idealizada “Revolução de 1930” é um

movimento de oligarquias regionais descontentes com o protagonismo da elite

paulista. Em outros termos, são elites dissidentes, capitaneadas pela oligarquia

gaúcha que organizam o “movimento revolucionário”. Não se trata, portanto, de uma

“Revolução Popular”, antes sim, um rearranjo na composição de forças entre as

elites brasileiras. Aliás, o historiador Ítalo Tronca afirma: “a dominação oculta”, faz

51 CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1985.

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uma análise muito precisa acerca do conteúdo político do movimento que levou

Vargas ao poder. Tronca afirma peremptoriamente que “A convergência desses

objetivos – exclusão, repressão, manipulação e controle dos trabalhadores – confere

conteúdo real àquilo que a História oficial (a memória dos vencedores) chama de

Revolução de 1930”. 52

Embora não seja uma revolução no sentido clássico do termo (a troca de

classes sociais no poder), 1930 marca uma profunda alteração na concepção do

Estado brasileiro. Os mandatários de 1930 propugnam por um Estado forte e

intervencionista. Na prática, qual é o significado disso? O Estado deve ser o

mediador (árbitro) dos conflitos entre as classes sociais; o Estado deve ser o

regulador de setores estratégicos da economia; o Estado deve ser o interventor no

campo do Direito, em especial, na produção legislativa.

Em síntese, há uma inversão do papel do Estado, que se transforma de uma

postura passiva – tipicamente liberal – para uma postura ativa, do tipo

intervencionista. Esta metamorfose estatal significou, dentre outras coisas, na

superação, ainda que parcial, do “princípio da primazia das liberdades particulares”.

Neste sentido, as relações sociais passam a ser mediadas pelo Estado, ou seja, a

“esfera pública invade a esfera privada”.

Há reflexo evidente deste novo papel do Estado na concepção do próprio

Direito. A intervenção estatal no campo jurídico produziu uma flexibilização da

primazia absoluta do Direito Privado, uma relativização da “autonomia das

vontades”. Pode-se falar em fim da liberdade contratual, sobretudo nas relações de

trabalho. Em suma, é o fim do predomínio absoluto do interesse privado sobre

interesses coletivos, que tenham um caráter social. Exemplos: Lei de Usura (1933)

que trata da limitação de juros; Legislação de Inquilinato, restritiva dos despejos

imotivados e aumento dos aluguéis; a criação do Ministério do Trabalho (1930).

No plano constitucional, o texto da Carta Magna de 1934, fruto de uma

assembleia constituinte, assegurou direitos políticos (voto secreto e o voto feminino),

instituiu a Justiça do Trabalho (ainda na esfera administrativa). Criou, pela primeira

vez, alguns direitos sociais, como o direito à Educação (Ensino básico passa a ser

obrigação do Estado), inclusive de índole trabalhista (salário mínimo, jornada de 8

horas, assistência médica, legislação sobre acidente de trabalho).

52 TRONCA, Ítalo. Revolução de 1930: a dominação oculta. 5ª ed. Editora Brasiliense, 1986.

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Lamentavelmente, a deterioração do quadro político, no mundo e no Brasil fez

da Constituição de 1934, algo efêmero. O golpe de Estado realizado em

novembro/1937, protagonizado por Vargas e setores militares marca o início da

ditadura do Estado Novo. Este período que só terminará em 1945 é fortemente

marcado por uma centralização político/administrativa e jurídica, com tons

acentuados de autoritarismo.

A cidadania é novamente aviltada e, literalmente, engolida pelo todo-poderoso

Estado. O congresso é fechado, os partidos extintos, decreta-se o fim do período

das autonomias estaduais. Os estados perdem poder (político/jurídico).

Praticamente, toda a legislação relevante passa a ser de competência da União. Em

outros termos, o processo legislativo sai do âmbito do parlamento e passa para o

poder Executivo (Decretos; decretos-leis). O fim da função congressual significa o

próprio fim do sistema representativo.

Ideologicamente, há uma mudança profunda, pois se substitui o liberalismo

pelo corporativismo – que tem origem no termo “corporação de ofício” que vêm da

Idade Média. A Itália de Mussolini e Portugal de Salazar são os paradigmas a serem

copiados. A nação como um “todo homogêneo” está ancorada nas categorias

profissionais. Do ponto de vista ideológico, a ideia é fulminar com a concepção

marxista de luta de classes.

Por paradoxal que possa parecer, a Constituição de 1937, extremamente

autoritária e outorgada, manteve os direitos sociais do texto constitucional anterior.

Aliás, ampliou os direitos dos trabalhadores urbanos.

A estratégia da ditadura varguista parece apontar no seguinte sentido: em

nome da “Paz Social”, as relações entre capital/trabalho não podem mais ser

tratadas como se fossem particulares. Ao contrário, as relações laborais devem ser

reguladas, coordenadas e fiscalizadas pelo Estado. O símbolo maior da intervenção

estatal no âmbito das relações de trabalho é a CLT (01o./05/43); Compilação de toda

a legislação (decretos e regulamentos) desde 1930, englobando os Direitos Sociais,

Legislação Sindical e a Organização Judiciária.

O que aconteceu a partir de 1930 foi uma profunda mudança do modelo de

Estado e do modelo jurídico, especialmente no que toca à legislação trabalhista, que

sobreviveu à queda de Vargas (1945). O que é relevante frisar é que parte

substancial dos direitos sociais, em especial, aqueles de natureza trabalhista, foram

incorporados ao conceito de cidadania, sob um regime ditatorial que, de maneira

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profundamente autoritária e paternal, “concedeu direitos” aos trabalhadores urbanos.

Em um processo diametralmente oposto, nos países capitalistas centrais, tais

conquistas se deram em democracias do tipo “Wellfare State”, com a participação

ativa e livre dos movimentos sociais.

O período que se seguiu à ditadura do Estado Novo, ficou conhecida como

“República Democrático/Populista”, e se estendeu de 1945 a 1964. A Constituição

de 1946 foi promulgada por uma Assembleia Constituinte e, em seu artigo 145,

quando trata da “Ordem Econômica” repetiu a fórmula varguista de conciliar a

liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho e a promoção da justiça social.

Como observou Arnaldo Süssekind a liberdade sindical, o direito de greve e a

participação dos trabalhadores no lucro das empresas estão amplamente

assegurados.53

Ao longo da década de 50, frise-se que a luta social pela ampliação da

cidadania consistia em aprovar o chamado “Estatuto do Trabalhador Rural”,

estendendo aos trabalhadores do campo os mesmos direitos trabalhistas das

categorias profissionais urbanas. Os partidos dentro do Congresso Nacional que

representavam as classes proprietárias barraram todas as iniciativas neste sentido.

Aspásia de Alcântara Camargo, em seu texto “A Questão Agrária: crises de poder e

reformas de base (1930/1964)”, observou com argúcia que nem o segundo governo

Vargas, nem o governo Kubitschek conseguiram dobrar a resistência do chamado

“bloco ruralista”. É apenas no governo João Goulart que o “Estatuto do Trabalhador

Rural”, em março/63, foi aprovado, estendendo os direitos trabalhistas para a zona

rural e incluía medidas para uma tímida Reforma Agrária.54

Caio Navarro de Toledo assinala que a quebra da institucionalidade

democrática em 31/03/64 resulta do fato de que as classes proprietárias não

toleraram sequer um modelo econômico e social assentado em um “capitalismo

humano e patriótico”. Navarro lembra que o governo Goulart estava assentado em

um conjunto de “reformas de base”, que incluía, dentre outras coisas, uma cidadania

mais completa para os trabalhadores rurais, a facilidade do acesso à terra, o voto do

analfabeto, a reforma urbana. Enfim, o que o bloco civil-militar, ao violar a

53 SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho . Rio de Janeiro: Renovar, 1999. 54 CAMARGO, Aspásia de Alcântara. A Questão Agrária: crises de poder e reformas de base (1930/1964), In, O Brasil Republicano: Sociedade e Política, História Geral da Civilização Brasileira. 3º. Volume. São Paulo: DIFEL, 3ª. Ed.

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Constituição de 1946, e promover um golpe de estado contra o governo Goulart, foi

rejeitar, pela força, um governo nacional-reformista.55

O regime civil-militar que se instaurou durou de 1964 a 1985, e, neste longo

período, violou sistematicamente tanto os direitos civis, como os direitos humanos

de forma geral. Mas também, por razões de uma política econômica de

concentração de renda, atacou direitos dos trabalhadores, como por exemplo: o fim

da estabilidade de emprego decenal, a proibição do direito de greve (1968), o

achatamento salarial tanto do setor público quanto do setor privado. Os atos

institucionais, sobretudo o Ato n. 5, removeram qualquer possibilidade de se invocar

a luz dos textos constitucionais outorgados qualquer aparência de cidadania.

Como anotado por Thomas Skidmore a tortura foi executada com frequência e

eficiência e começou dias depois da deflagração do golpe militar, “muito antes do

aparecimento de qualquer oposição armada.” Afirma ainda o brasilianista norte-

americano que há uma ligação direta entre a brutalidade dos castigos da escravidão

e a tortura que “é rotina nos interrogatórios de presos não pertencentes à elite”. A

tortura física atravessou todas as fases da República, recrudescendo, é claro,

durante a ditadura militar que a ampliou para atingir a todos os seus oponentes.

O tortuoso fim do regime militar e a redemocratização abriram espaço para a

“Nova República”, que já nasceu sob o signo da “conciliação” como já é cultural na

história brasileira. É o próprio Skidmore quem observa que a palavra de ordem do

“novo regime” é a conciliação o que inclui incontáveis figuras políticas do “velho

regime”.

Prossegue Thomas Skidmore que para a remoção do entulho jurídico

autoritário (Constituição de 1969) se fizesse uma assembleia constituinte exclusiva e

autônoma, separada do velho Congresso Nacional. Tal tese, no entanto, foi

derrotada pelas forças da reação agora conciliadas com os novos donos do poder

da “Nova República”.56

55 TOLEDO, Caio de Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. 6ª ed., Editora Brasiliense, 1985. 56 SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Trad. Mário Salviano Silva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

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4.3 Modelo econômico versus “Dignidade da Pessoa Hu mana”

Historicamente, é generalizada a ideia de um período conjuntural de três

décadas surgido logo após o fim da Segunda Guerra Mundial que foi denominado do

modelo do Estado-Providência. Neste estágio se propiciou direitos individuais e

coletivos de forma estável. O direito neste período adquiriu um caráter promocional,

especialmente, aqueles de natureza trabalhista e previdenciária, de nítido interesse

social.

A globalização emergente desde o início da década de oitenta do século XX,

mas de forma mais acentuada a partir do chamado Consenso de Washington

(1989), produziu o renascimento de alguns ingredientes muito presentes no século

XIX. Mais do que isso, se trata de desmontar o Estado de Bem-Estar Social.

Em outros termos, pode-se dizer que certos aspectos supostamente sepultados

historicamente, reapareceram no quadro da chamada globalização, conhecida

também como a era dos “consensos” e do “discurso único”. Neste sentido, a onda

neoliberal de alcance global tem uma agenda obrigatória assentada nos seguintes

pontos: a fragilização do papel do Estado-Nação e, em certa medida, a sua retirada

de cena para determinados fins, sobretudo, aqueles destinados a assegurar direitos

sociais. De outro vértice, o ocaso do Wellfare State teve como consequência a

liberalização do sistema econômico e financeiro, a privatização desenfreada, a

desregulamentação da economia, a retratação dos gastos com bens públicos e dos

encargos com o bem-estar social, o ajuste fiscal, a plena mobilidade dos capitais e a

sujeição do mercado de trabalho em simultâneo com um estrito controle

internacional.

No terreno do Direito do Trabalho, verificou-se significativamente a

precarização dos vínculos contratuais e segmentação e dualização dos mercados de

trabalho. Ainda, se no âmbito do velho Estado-Providência houve uma ascensão da

classe operária capitaneada por uma sólida estrutura sindical, em tempos de

globalização extremada o que se percebe é o exatamente o oposto. Em outros

termos, o movimento sindical está em uma encruzilhada e diante de incontáveis

problemas e, em consequência disso, vê minguar o rol de seus filiados. Abili Castro

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com muita propriedade fala de “dissipação dos direitos sociais” através da

flexibilização e desregulamentação dos direitos trabalhistas. 57

É bom que se afirme que tais conceitos se transformaram em verdadeiras

palavras de ordem da “nova” agenda.

Resta claro que na sua origem os direitos sociais surgiram a partir de uma

concepção cidadã nos textos constitucionais dos assim chamados Estados de Bem-

Estar social. Portanto, tais direitos, o que inclui o direito ao trabalho, estão

umbilicalmente ligados à própria ideia de cidadania e “padrões dignos de existência

na persecução de um equilíbrio social”, nas sábias palavras do professor brasileiro.

Abili Castro não tem qualquer dúvida quanto à ameaça que o processo de

globalização representa no, campo jurídico, ao emascular os direitos sociais, abrindo

as portas para um deletério retrocesso em termos histórico e patamar civilizatório.

Neste sentido, o Estado não teria mais a missão primordial de minorar as abissais

diferenças sociais inscritas na comunidade. Antes ao contrário, o papel do Estado

seria garantir a liberdade da ordem econômica, inclusive, a partir dos textos

constitucionais. O resultado disso é a “dissipação dos direitos sociais”, em um

momento em que a economia se sobrepõe à política e ao próprio direito, incluindo-

se aqueles de índole trabalhista.

Da análise perfunctória da CF/88 percebe-se desde logo que um dos princípios

fundamentais da República Federativa do Brasil é a persecução, a manutenção e a

ampliação da dignidade da pessoa humana (artigo 1º., III). Considerando o longo

histórico brasileiro de violação de direitos das mais variadas naturezas e de negação

de uma efetiva cidadania para a maioria esmagadora de sua população, tem-se pela

frente uma tarefa hercúlea e permanente. Aliás, após vinte e um anos de ditadura

militar, este é o primeiro texto constitucional pátrio a consagrar um título específico

aos Princípios fundamentais. Tais princípios norteiam direitos e garantias

fundamentais que constituem o núcleo essencial da CF/88.

Ingo Sarlet, afirma que o Estado Constitucional de Direito deve impedir que as

pessoas sejam reduzidas à condição de mero objeto no ambiente

57 CASTRO DE LIMA, Abíli Lázaro. Globalização Econômica Política e Direito (Análise das mazelas causadas no plano político-jurídico). Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002.

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social/econômico/político e cultural, ou seja, deve se opor a não efetivação de um rol

mínimo de direitos sociais, pois isto seria contrário à própria ideia de democracia.58

Haveria uma interdependência de todos os direitos fundamentais, como por

exemplo: a “ecocidadania”, que seria a conexão entre saúde, habitação, trabalho,

meio ambiente, função ambiental da propriedade, etc.. O jurista gaúcho afirma que

“nos países periféricos, há uma crise de efetividade dos direitos fundamentais”.

Podemos concluir então que há uma crise quanto ao respeito ao princípio da

dignidade humana.

No texto da CF/88, os direitos sociais estão incluídos no mesmo título II, dos

direitos e garantias fundamentais (direitos civis e políticos). De outro lado, Os direitos

trabalhistas (art. 7º) integram os direitos sociais e têm um sentindo amplo e

heterogêneo. Wolfgang Sarlet reconhece a imensa dificuldade para tornar efetivos

os direitos sociais e uma eficiente máquina judiciária. Porém, vislumbrando

problemas estruturais no processo legislativo tradicional, sugere um

aperfeiçoamento das ações afirmativas, qualitativa e quantitativamente com a

finalidade de diminuir o “fosso” social entre as pessoas e as classes sociais. Propõe

também uma superação, ainda que parcial, da democracia representativa – esta em

parte obsoleta, portanto, ineficiente – por um modelo que privilegie a efetiva

participação popular direta, através da realização de plebiscitos e referendos, ideia

também defendida pelo jurista Fábio Konder Comparato.

Ainda na esteira do pensamento de Sarlet, a pessoa é o fundamento e o fim da

sociedade e do Estado e a dignidade da pessoa humana é base de todos os direitos

fundamentais.59 O princípio da dignidade humana tem uma função hermenêutica, ou

seja, nas decisões judiciais deve haver uma interpretação que coloque este princípio

fundamental no vértice da pirâmide. Colocada sob esta ótica da função

hermenêutica da dignidade da pessoa humana, o direito de todos à moradia seria

superior ao direito de propriedade que não cumpra sua função social.

Paradoxalmente, em país de capitalismo periférico e atrasado como o Brasil, a

Constituição de 1988 – chamada de cidadã pela amplitude de direitos, sobretudo

58 SARLET, Ingo Wolfgang. Los derechos sociales en el constitucionalismo contemporâneo: algunos problemas y desafios. In: Los derechos sociales como instrumento de emancipac ión . Editores: LINERA, Miguel Ángel Presno Linera e Ingo Wolfgang Sarlet. España: Thomson Aranzadi, 2010. 59 SARLET, Ingo Wolfgang. Los derechos sociales en el constitucionalismo contemporâneo: algunos problemas y desafios. In: Los derechos sociales como instrumento de emancipac ión . Editores: LINERA, Miguel Ángel Presno Linera e Ingo Wolfgang Sarlet. España: Thomson Aranzadi, 2010.

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sociais, nela contidos – foi promulgada em pleno movimento de globalização que

sugere exatamente o oposto: o expurgo dos direitos sociais, vistos como “fardo” na

perspectiva das contas públicas, e seu viés estritamente financeiro.

Talvez por essa razão, a hegemonia neoliberal global, os constituintes da

Assembleia Congressual optaram por repetir a velha fórmula do texto constitucional

de 1946, isto é claro, sem qualquer conexão histórica: conciliar o inconciliável, ou

seja, garantir a livre iniciativa e livre empresa e defender a valorização do trabalho

humano (artigo 1º., IV).

A pergunta que se impõe é: em um país onde predominam condições de

trabalho degradantes, baixíssimos salários, estatísticas colossais de acidentes e

doenças do trabalho, trabalho precarizado via terceirização, trabalho informal (sem

registro em carteira profissional), trabalho infantil e escravo, é realmente possível

falar-se em “valorização” da mão-de-obra, ou ainda, dignidade da pessoa humana

do trabalhador?

De outro lado, a livre iniciativa, urbana e rural, especialmente aquela

representada pelas grandes corporações (agronegócio, os bancos, as empreiteiras,

as empresas multinacionais, os grandes grupos midiáticos) têm, dentro e fora

(lobbies) do Congresso Nacional, bancadas que subvertem o significado da

“representação parlamentar”. A razão desta distorção é essencialmente econômica

posto que as poderosas associações patronais tem o poder eleger uma folgada

maioria de representantes para fazer valer os seus interesses.

Concretamente, esta é a razão para que direitos sociais amplos, embora

previstos na Carta Magna, não sejam regulamentados, logo, não passem de mera

formalidade. Exemplos não faltam, a saber: propriedade e sua função social, art. 5º.,

inc. XXIII e XXIX; no artigo 7º, proibição da despedida arbitrária, I; participação nos

lucros ou resultados, XI; aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, XXI;

adicional de remuneração para as atividades penosas, XXIII; a criação do Conselho

de Comunicação Social, art. 224.

Resta claro que a não regulamentação de determinados direitos sociais –

inclusive aquele que trata da radiodifusão, pois implica no direito à informação plena

que todo cidadão deveria dispor (artigos 220 e 221 e incisos) – implica em violar

gravemente a dignidade da pessoa humana. Lembremos a prodigiosa lição de Ingo

Sarlet para quem a violação de qualquer um dos direitos fundamentais –

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irrenunciáveis e inalienáveis – implica na violação da própria dignidade da pessoa

humana.60

À guisa de metáfora, e com o risco das simplificações, no Brasil e seu

ordenamento jurídico, mais especificamente no plano constitucional, é como se

presenciássemos, no cotidiano, uma “batalha” entre a “Ordem Econômica e

Financeira” versus “Direitos Sociais”.

Este embate de natureza jurídica, mas de fundo político e econômico, terá

como resultado inexorável uma relação absolutamente assimétrica entre os dois

polos. A depender, ao longo de um processo gradual de lutas concretas dentro de

uma gama ampla dos movimentos sociais, tentar reverter o polo hegemônico na

correlação de forças dentro da sociedade brasileira.

4.4 Emancipação possível dos direitos

O século XIX é o “século burguês” por excelência, é o que informam

observadores atentos deste período. Neste momento histórico reinou a hegemonia

da ideologia do liberalismo burguês, aqui entendido como a defesa intransigente da

igualdade jurídica e civil, sob o lema “Todos são iguais perante a lei”. Óbvio avanço

se considerarmos a sociedade do “Antigo Regime”, fundada em privilégios ou

tratamento diferenciado, por nascença (origem), posição social (corporação).

Aliás, já no mesmo o século XIX, Marx alertava para os estreitos limites da

igualdade jurídica. Por evidente, esta concepção abstrata, formal, de cunho

superficial era insuficiente para dar vazão à heterogeneidade das complexas

sociedades contemporâneas. Ou seja, a igualdade formal não era um garantidor de

direitos para os setores mais vulneráveis da sociedade, como minorias étnicas,

sexuais, culturais, religiosas, sociais, dentre outras.

No pós-2ª. Guerra mundial, verificado o morticínio planejado, começa-se a

esboçar um conceito mais profundo e amplo, o da igualdade material ou substancial

que defende uma ideia síntese: tratar de maneira uniforme as partes desiguais é

perpetuar a desigualdade. Este é o lema que impulsionou o “Estado social de

direito”. Neste sentido, o princípio da igualdade deveria fazer a promoção, na prática,

60 SARLET, Ingo Wolfgang. Los derechos sociales en el constitucionalismo contemporâneo: algunos problemas y desafios. In: Los derechos sociales como instrumento de emancipac ión . editores: LINERA, Miguel Ángel Presno Linera e Ingo Wolfgang Sarlet. España: Thomson Aranzadi, 2010.

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da recuperação de direitos aos grupos historicamente marginalizados e excluídos

que devem ser percebidos na sua, concretude, na sua especificidade (gênero, idade,

etnia, classe social).

É a superação de uma dicotomia histórica, ainda não resolvida em nosso país

para a maioria da população, qual seja: a igualdade formal registrada nos textos

legislativos, inexistente ou parcialmente existente no mundo real, versus a igualdade

material. A não superação desta antiga dicotomia significaria, em termos práticos,

relegar dois terços da população brasileira à condição de cidadãos de segunda

categoria, a negar os direitos fundamentais inscritos no texto constitucional, ou a

tornar ficcional a ideia essencial da “dignidade da pessoa humana”.

Por outro lado, a experiência histórica brasileira tem demonstrado que durante

séculos, direitos se constituíram em privilégios, revelando o predomínio quase

absoluto do caráter formal da igualdade jurídica. Logo, a questão que se impõe é

como ultrapassar dialeticamente a igualdade do século XIX, para adentrarmos em

outro patamar, uma superação qualitativa que é a da igualdade material.

Pela análise da História do Brasil e o estudo da História do Direito brasileiro,

emerge uma nova dicotomia. Em outros termos, a discussão que gira em torno da

ampliação de direitos (civis, sociais, humanos), a observância estrita da justiça social

a partir do ordenamento jurídico e o pensamento radical em torno da dignidade da

pessoa humana passa obrigatoriamente pela oposição entre os intransigentes

defensores da ordem economia e política e aqueles que analisam a realidade social

do país através da lente da contradição.

É o cientista político Michel Löwy que chama atenção para o fato de que a

preocupação da teoria positivista comtiana é a manutenção da ordem pública, a

partir de uma inflexível resignação dos trabalhadores, afinal, como no mundo

natural, também no mundo dos homens devem prevalecer relações harmônicas.

Löwy estende este pensamento até Dürkhein, pai da sociologia moderna, para quem

a desigualdade social não pode ser interrompida ou transformada, em uma alusão

muito clara de respeito irrestrito à ordem (burguesa/capitalista).61

Quando da proclamação da república no Brasil, já ficou muito claro que a teoria

positivista teve uma monumental influência sobre parte significativa de nossa

61 LÖWY, Michael. As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchha usen . (Marxismo e Positivismo na Sociologia do Conhecimento). Trad. Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy. 8ª. Edição. São Paulo: Cortez, 2003.

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“intelligentsia”, nossas escolas de direito, nossos juristas. Definitivamente, este não

é um fenômeno novo na História brasileira que desde sempre pareceu estar diante

desta encruzilhada: democracia como ordem ou democracia como conflito. Para

ficarmos apenas no período republicano e, nos limitarmos a um evento histórico

crucial cujas consequências duraram vinte anos. Basta que voltemos ao dia 31 de

março de 1964: a queda do governo do então presidente João Goulart.

Como afirmado anteriormente, Caio Navarro de Toledo propõe a seguinte

reflexão acerca deste tema naquele grave período:

Este período da história política brasileira é significativo ainda pois nele se intensificam e se condensam alguns dos impasses e dos conflitos da democracia burguesa. Se entendemos que as contradições sociais são processos constitutivos da formação social capitalista e de seus regimes políticos, então o período de 1961/1964 deve ser visto como um momento privilegiado da vida política brasileira posto que nele ocorreu uma polarização política e ideológica com dimensões inéditas e com características singulares. Para os que veem nos conflitos e nos antagonismos o sinal da desagregação social, os ‘tempos de Goulart’ só podem ser encarados como trágicos ‘tempos de caos e da anarquia.62

A luta pelos direitos humanos, pela justiça social, enfim, pela conquista da

dignidade humana passa obrigatoriamente pela primeira percepção (contradição)

colocada por Navarro em seu texto, a saber: a democracia deve ser pensada na

perspectiva do conflito.

Somente esta concepção de democracia fará, como já fez em outras

oportunidades históricas, avançar o conceito de cidadania, ampliar os direitos

fundamentais para setores historicamente excluídos, retirar da letra fria do texto

constitucional o ideário contido no princípio da dignidade da pessoa humana. Aqui, o

ordenamento jurídico cumpriria uma função nobre e moderna, a de assegurar

direitos e garantias.

O contrário disso, ou a escolha pela segunda percepção (ordem) tornaria todo

o sistema jurídico como um “guardião” da “paz social”, em um Estado-Gendarme, no

modelo do liberalismo original. Tal entendimento, deslocado e descolado da

conjuntura histórica, tornaria o Direito um instrumento conservador utilizado pelas

elites para manutenção do “status quo”.

62 TOLEDO, Caio de Navarro de. O governo Goulart e o golpe de 64. 6ª ed., Editora Brasiliense, 1985.

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Através da mobilização dos mais variados movimentos sociais e da

organização coletiva das pessoas a pressionarem os poderes constituídos (poder

legislativo, judiciário, executivo, o Ministério Público) com a finalidade de cumprir a

sua missão histórica no alargamento dos direitos e da cidadania completa, desde há

muito prometida.

A advertência feita por Fábio Konder Comparato é a síntese deste

pensamento:

Ora, justamente, o diagnóstico da crise atual aponta para uma espécie de entropia ou desordem universal, causada por carência governativa, tanto no interior das nações quanto na esfera internacional. O movimento neoliberal capitalista, ao propagar no mundo todo a desregulamentação das instituições financeiras, deixando que elas se transformassem em autênticos cassinos, provocou em 2008 uma recessão mundial, comparável, segundo a grande maioria dos observadores, à grande depressão de 1929. Os perdedores, como sempre, são fracos, os pobres, os humildes.63

Chegamos, no inicio do século XXI, ao apogeu do capitalismo, no preciso

sentido etimológico do termo, isto é, à fase histórica em que ele se coloca na

posição de maior distanciamento da Terra e da Vida. É este, portanto, o momento

crítico, segundo a velha tradição hipocrática, em que se pode precisar a diagnose da

moléstia e traçar-lhe a prognose evolutiva.

A alternativa que se descortina agora diante de nossos olhos é bem vincada:

ou a humanidade se deixa conduzir à dilaceração definitiva, na direta linha do

apogeu capitalista, ou tomará afinal o rumo da justiça e da dignidade, segundo o

luminoso caminho traçado pela sabedoria clássica. “Não há terceira via.”

A segunda via foi uma experiência histórica, para certos países do capitalismo

central, cujo projeto social e econômico, de forma bastante consciente, parece ter

sido descartado pelas suas respectivas elites. A consequência mais imediata e

perceptível desta medida foi a concentração de renda e riqueza e o aumento da

desigualdade nestas nações. A reflexão que se impõe para as sociedades do

capitalismo periférico é se incorporaremos este modelo social/econômico e

enfrentaremos os inafastáveis resultados desta opção.

63 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos . 8ª. Edição, São Paulo: Saraiva, 2013, p. 234.

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5. GLOBALIZAÇÃO E ATAQUE AO MUNDO DO TRABALHO: RESI STÊNCIA

OU SUBMISSÃO?

O fenômeno da mundialização da economia, ou a chamada globalização, do

ponto de vista acadêmico de acento social, tem diversas vertentes ou perspectivas.

Segundo PAGLIARINI (2010) destacam-se as perspectivas religiosa, cultural,

política, jurídica e econômica64.

Diz o autor:

Todos os campos e áreas do saber internacionalizaram-se, supranacionalizaram-se e globalizaram-se, ficando os que mal compreendem a palavra globalização avisados que ela não é sinônimo de Consenso de Washington mas, significa simplesmente superação de barreiras, fator este que, sem dúvida, é includente do povo na participação da construção de uma sociedade mundial de governo, cultura e informação, respeitadas as diversidades – evidentemente…65

A perspectiva religiosa da globalização evidencia-se na diminuição dos marcos

religiosos baseados nos dogmas de fé e de doutrina e na crescente mistificação

acompanhada de grande carga exotérica, afastada de conteúdo em que a auto-

ajuda e o pan-sincretismo, ou mesmo a espiritualização, ganham formas e

desprendem-se de conteúdos precisos que apontem tradições.

Segundo Renato Ortiz, em artigo intitulado “Anotações sobre religião e

globalização”, a relação entre religião e globalização pode ser explicada pela

influência da primeira no mercado global. Para este autor

O mercado global contém duas qualidades frequentemente associadas à herança religiosa: transcendência e omnipresença. Sua globalidade transcende os indivíduos, as classes sociais e as nações, envolvendo a todos no seio de uma mesma integralidade. Seu domínio não conhece fronteiras, abarca o planeta por inteiro; homens, povos, natureza, a ele são submetidos. A universalidade do mercado, ou seja, sua extensão confere-lhe a dimensão de totalidade (e muitas vezes de totalitarismo). A transcendência é, contudo, sempre abstrata, algo latente; para se realizar ela deve manifestar-se no mundo, afirmar sua omnipresença. A transcendência do mercado perpetua-se através do consumo, este é o ato que a situa, a singulariza, inserindo o indivíduo no seu ser. Metaforicamente eu diria que o consumo torna coetânea a presença na transcendência. Entretanto, tais virtudes nada têm de “verdadeiras”, falta-lhes um fundamento ontológico, sagrado, por isso o mercado se apresenta como uma “falsa religião”, e sua adoração, uma “idolatria”. Religião e mercado

64 PAGLIARINI, Alexandre. Sobre povo, Estado, Mundo e Democracia . Anina, OPET, 2012, p. 339. 65 PAGLIARINI, Alexandre. Idem 59.

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surgem assim como entidades morais mundiais, concorrentes e conflitantes. Cada um com seus deuses, suas exigências, sua ética66.

Já na perspectiva cultural, representada por expressões como o

multiculturalismo tal como presente na obra de Charles Taylor, Boaventura de Souza

Santos, Jessé Souza, entre outros, ou ainda, a teoria da complexidade, tendo entre

seus principais representantes o filósofo Edgar Morin.

WOLKMER (2010) assinala aspectos positivos da Globalização Cultural,

especialmente no que tange ao processo de construção de redes de solidariedade

em busca da emancipação social, política e cultural, na elaboração do que

denominou pluralismo jurídico.

Assinala o autor:

O reconhecimento do pluralismo na perspectiva da alteridade e da emancipação revela o locus de coexistência para uma compreensão crescente de elementos multiculturais criativos, diferenciados e participativos. Em uma sociedade composta por comunidades e culturas diversas, o pluralismo fundado numa democracia expressa o reconhecimento dos valores coletivos materializados na dimensão cultural de cada grupo e de cada comunidade. Tal intento de conceber a pluralidade de culturas na sociedade, de estimular a participação de grupos culturais minoritários e de comunidades étnicas se aproxima da temática do “multiculturalismo”67.

Segundo a perspectiva política da Globalização, as fronteiras políticas deram

espaço aos arranjos políticos administrativos das Uniões Políticas como a União

Europeia e os Mercados Comuns como o Mercosul, do ponto de vista prático, na

medida em que o Estado Nação vai sendo substituído pelas (des)figuras acima

referidas.

A partir de uma análise dos aspectos teóricos, a velha Teoria do Estado, que

funda os principais conceitos da Política como Território, Nação, Governo,

Nacionalidade e mesmo a categoria Estado, vai sendo substituída pelo conceito de

políticas públicas onde a gestão dos interesses é movida por uma prática de

compartilhamento de interesses, em especial mercado/população sob o argumento

da falência do Estado.

66 Uma versão abreviada deste texto foi apresentada no encontro “Os desafios da globalização”, em julho de 2000, organizado pela World Association for Christian Communication e pelo Centro de Estudios Avanzados da Universidade de Córdoba, Argentina. 67 WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil . Rio de Janeiro: Forense, 2002.

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Nesta mesma onda, a cidadania e a participação popular dão lugar ao exercício

de direitos dos usuários/clientes e a responsabilidade social.

Assim sendo, o que se entende por perspectiva jurídica, evidentemente,

decorrente da perspectiva política porque a sustenta do ponto de vista normativo, as

novas legislações apresentam elementos de modelos políticos e arranjos das novas

organizações e instâncias de decisão política.

Por fim na perspectiva econômica representa uma das inovações

organizacionais das últimas décadas do séc. XX e primeiras no séc. XXI, assentada

na organização em Rede, decorrente de uma nova divisão do trabalho.

Segundo LIMA (Fabris, 2002) a globalização econômica gera uma exclusão

estrutural, para além dos limites dos direitos garantidos pelas estruturas estatais.

Vejamos:

Quando analisamos a globalização econômica, vimos que ela produziu uma nova divisão internacional do trabalho, caracterizada pelo processo de produção sendo realizado em vários países. Este novo processo, que engendra o desemprego, a diminuição progressiva de salários e das condições de trabalho e a perda das garantias sociais, segundo a leitura de Milton Santos gerou um tipo de peculiar pobreza, por ele denominada “pobreza estrutural” orquestrada pelas empresas transnacionais e instituições internacionais, globalizando-se por podo mundo e propagando a exclusão social68.

Feitas as introdutórias considerações, cabe ao presente capítulo discutir em

que medida o aprofundamento do processo de globalização transtornou o mundo do

trabalho, especificamente no que toca ao estreitamento das garantias trabalhistas

em face das normas que regem a relação laboral.

Em que medida, a consequência mais visível desta intrincada relação

economia versus “mundo do trabalho” – que é a degradação física dos trabalhadores

(doenças e acidentes de trabalho) – está vinculada aos efeitos decorrentes de uma

terceirização desenfreada.

Por óbvio que o termo oriundo das relações de trabalho contemporâneas em

epígrafe deve ser pensado no marco do modo de produção capitalista e, mais

precisamente, em sua fase atual.

Para o geógrafo brasileiro Milton Santos, relacionando o Mundo e a

Globalização, estes assim se apresentam: “o mundo como nos fazem vê-lo”, (a

68 LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito: as mazelas causadas no plano político jurídico. Porto Alegre: Fabris, 2002, p.291-292.

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globalização como fábula); ”o mundo tal como ele é”, (a globalização como

perversidade).

Ainda, segundo o mesmo autor, a Globalização se constitui como o ápice do

processo de internacionalização do sistema capitalista e como fase histórica que

combina o “estado das técnicas e o estado da política”.

Um exemplo de globalização como “fábulas” é a “ALDEIA GLOBAL”, ou, a

informação instantânea planetária, que é produzida a partir de interesses privados

dos grupos hegemônicos, onde se combinam empresas transnacionais e Estados.

Outro exemplo é a ideia de um “mercado global” cujo comércio está concentrado nas

mãos de poucos países e empresas, excluídos os países periféricos e as empresas

menores.

Por outro lado, a Globalização “perversa” está nas tiranias do dinheiro e da

informação que constituem a base do sistema ideológico a legitimar a globalização.

A competitividade, o consumo extremo e a produção viraram os novos

“Totalitarismos”.

A solidariedade e a noção de bem público diminuem na mesma proporção do

papel do estado em seu viés político e social. O papel da empresa privada, no que

tange à regulamentação das vidas das pessoas, aumentou. Não é só! O professor

Milton Santos chega a mencionar a existência de uma “fábrica de perversidades”

decorrente, é claro, da acirrada competitividade, entre empresas, pessoas e

estados. Neste quadro caótico, a fome passa a ser um dado generalizado e

permanente, há a falência da saúde pública, alta taxa de desemprego, sistema de

educação deficiente, enfim, o aumento da pobreza em geral. Aliás, o geógrafo

brasileiro aponta para o surgimento de uma Pobreza estrutural, nela, a

globalização aprofundou o desemprego, diminuiu os salários, e reduziu a proteção

social do estado. A pobreza é generalizada, permanente e global. Governos

nacionais e “intelectuais” do sistema legitimam a pobreza. Nesta fase, os pobres não

são mais incluídos, nem marginalizados, mas excluídos. As soluções propostas

partem dos organismos multilaterais (Banco Mundial/FMI) – e aumentam a pobreza

estrutural.

Todos estes problemas foram agravados pela diminuição do Estado. Esta

perversidade sistêmica gera ainda a corrupção e a morte da política, já que esta

passa a ter como protagonista os interesses das grandes corporações.

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Por fim, depreende-se da citada obra do geógrafo brasileiro uma singular

leitura do processo histórico que se estende do século XVIII, no contexto da

revolução industrial, da racionalização econômico/produtiva e, sobretudo, da

organização do trabalho. A este processo altamente renovador, acrescente-se uma

nova concepção sobre o homem erigida a partir de novas ideias filosóficas com força

política. O exemplo mais eloquente disto é representado pelo Pensamento

Iluminista, presente nas Revoluções Políticas (Americana/Francesa). O resultado

desta combinação entre as transformações econômicas e políticas foram ideias

morais que sustentaram serem os indivíduos os responsáveis pela riqueza coletiva

das nações por intermédio de um Estado democrático e social, isto, já no século XX.

Para o autor a globalização, portanto, é um modelo de ruptura histórica nesse

processo social e moral, sobretudo a partir dos anos 80, do século anterior. A

globalização não se realiza para toda a humanidade, ela mata a noção de

solidariedade. Ao contrário, ela gera o narcisismo individualista.

Na mesma perspectiva, o sociólogo português Boaventura de Souza Santos

percebe na Globalização um fenômeno multifacetado, pois afeta mais visivelmente a

Economia, mas atinge a Política, as relações sociais, o Direito.

O fenômeno da Globalização aprofundou-se a partir do chamado “consenso

neoliberal” que afirma o fim dos paradigmas tradicionais (Revolução ou Reforma), a

morte das Ideologias (fascismo/comunismo), a hegemonia absoluta da Democracia

Liberal e da Economia de Mercado (regulação estatal mínima), programas de

ajustamento estrutural, protagonismo das agências financeiras de “rating” e das

grandes corporações.

A globalização modificaria profundamente a relação entre capital e trabalho:

Por sua vez, os conflitos entre capital e trabalho que, por deficiente institucionalização, contribuíram para a emergência do fascismo e do nazismo, acabaram sendo plenamente institucionalizados nos países centrais depois da Segunda Guerra Mundial. Hoje, num período pós-ordista, tais conflitos estão a ser relativamente desinstitucionalizados sem que isso cause qualquer instabilidade porque, entretanto, a classe operária fragmentou-se e estão hoje a emergir novos compromissos de classe menos institucionalizados e a ter lugar em contextos menos corporativistas.

Para o sociólogo português as consequências sociais decorrentes da

globalização são conhecidas e independem em que continente ou país são

produzidas.

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Mesmo no país que pode ser considerado o carro-chefe deste sistema

dominante, os E.U.A., passa por um processo de degradação social nunca antes

visto, já que 1% das famílias americanas detinha 40% da riqueza do país e as 20%

mais ricas detinham 80% desta mesma riqueza (dados do FED, para o final da

década de 80).

No plano das relações de trabalho, a visão de Boaventura Santos não é menos

realista quanto aos efeitos nefastos da globalização:

No domínio da globalização social, o consenso neoliberal é o de que o crescimento e a estabilidade econômicos assentam na redução dos custos salariais, para o que é necessário liberalizar o mercado de trabalho, reduzindo os direitos laborais, proibindo a indexação dos salários aos ganhos de produtividade e os ajustamentos em relação ao custo de vida e eliminando a prazo a legislação sobre salário mínimo. O objetivo é impedir “o impacto inflacionário dos aumentos salariais”.

Na linguagem da tecnocracia econômica dominante é o chamado “custo país”,

na visão fundamentalista do discurso globalizante trata-se de um sério entrave ao

crescimento econômico.

Não raras vezes nos defrontamos com a ideia segundo a qual a legislação

trabalhista e as normas do Direito do Trabalho são o sempre indesejável “custo

Brasil”.

Por evidente que o enfraquecimento do fator “trabalho” tem relação direta com

a desarticulação do Estado, seu esvaziamento, a anemia funcional a que foi

submetido a partir dos anos oitenta. É o consenso do “Estado fraco”. Ainda segundo

o prof. Boaventura:

No quadro da globalização e suas consequências, o sociólogo português não

deixa de assinalar o papel do Direito:

Muito diferente deste processo é o que, na mesma área da justiça e do direito, tem vindo a ser protagonizado pelos países centrais, através de suas agências de cooperação e assistência internacional, e pelo Banco Mundial, FMI e Banco Interamericano para o Desenvolvimento, no sentido de promover nos países semiperiféricos e periféricos profundas reformas jurídicas e judiciais que tornem possível a criação de uma institucionalidade jurídica e judicial eficiente e adaptada ao novo modelo de desenvolvimento, assente na prioridade do mercado e das relações mercantis entre cidadãos e agentes econômicos”.

No caso específico do Brasil, a lição acima deixada pelo prof. Boaventura nos

ajuda a desvelar o que está dissolvido na tão propalada “reforma trabalhista” que os

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extratos dominantes, com o auxílio inestimável da grande mídia, chamam de

“urgente”. Não paira dúvida que, mesmo antes da sobredita reforma legal, existem

os espaços que possibilitam a flexibilização de alguns direitos dos trabalhadores,

bem como, a própria precarização das relações laborais. O sistema de terceirização

da mão-de-obra é o mais nítido exemplo desta empreitada.

5.1 Estado e relações de trabalho na Revolução Indu strial e a

precarização-retorno da “velha fórmula”

O contexto histórico da revolução industrial se dá a partir da segunda metade

do século XVIII (1780) e o fenômeno propriamente dito foi meticulosamente

observado e estudado por Marx e Engels. O historiador Francisco Iglésias, em seu

livro chamado “A Revolução Industrial” assim observa:

Por último, breve palavra sobre o uso da expressão Revolução Industrial. Quem a teria criado? ... Ao que parece foi Friedrich Engels (1820-95) que pela primeira vez, entre autores significativos, usou a expressão, em 1845, em Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra; ... Marx tratou explicitamente da Revolução Industrial, captando-lhe o exato sentido; a sua obra representa a mais completa análise do fenômeno, pois o autor conhecia toda a literatura econômica, vivia na Inglaterra, que fora a pioneira e era a mais avançada nação no gênero, e o estudioso penetrara como ninguém na gênese e na essência da indústria, principal expressão do capitalismo, do qual é o mais profundo analista.

Por outro lado, o fenômeno da industrialização acirrou sobremaneira a luta de

classes, como assinalou Marx no Manifesto Comunista: “a História de toda a

sociedade até os nossos dias é a História da luta de classes”. Um fenômeno

histórico antigo atingiu seu paroxismo já que a indústria aumentou sensivelmente a

distância entre ricos e pobres. Aliás, a ascensão burguesa é fulminante.

É consenso entre os historiadores que o século XIX é o “século burguês” por

excelência. É o período da hegemonia da ideologia do liberalismo burguês, aqui

entendido como:

a) Liberalismo econômico, não só àquele consagrado ao direito de propriedade,

mas a liberdade do comércio, do empreendimento, da atividade empresarial, do

lucro; da não intervenção estatal nos negócios;

b) Liberdades públicas e políticas, oriundas do Direito Natural de caráter

subjetivo, as liberdades individuais em geral

(Expressão/Pensamento/Culto/Reunião/Associação);

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c) Igualdade Jurídica e Civil, sob o lema “Todos são iguais perante à Lei”;

d) liberdade contratual, como pressuposto teórico, segundo o qual todos os

indivíduos (racionais ) são livres para estabelecer contratos, para firmar contratos,

fundados na autonomia da vontade individual (Reprodução, no âmbito jurídico das

relações privadas, dos discursos do Jusnaturalismo Individual e das teses

Contratualistas ).

Ou seja, é o terreno soberano para a livre fixação de preços e de estipulação

de cláusulas contratuais nas atividades econômicas (Comércio/Sistema

Financeiro/Indústria). Mais do que isso é o livre ajuste dos salários na relação capital

e trabalho, sem qualquer tipo de ingerência estatal, ou ainda, a ausência de

legislação reguladora na “esfera privada” (patrão x empregado), mais comumente

chamado de “Pacta sunt servanda”.

Ressalve-se, ainda, que os contratos independem da condição

econômica/social dos indivíduos-contratantes. Assim, contratos desproporcionais

entre as partes são válidos, não importando a desigualdade material entre as

mesmas, já que a figura do hipossuficiente inexiste do ponto de vista legal. Ao

contrário, há suposição de que há igualdade (jurídica) entre as partes.

Ricardo Marcelo Fonseca realça o elemento da sujeição ou da subordinação no

âmbito do contrato de trabalho, quebrando por completo o paradigma clássico dos

sujeitos de direito, livres, dotados de autonomia intelectual e vontade própria para

agir no mundo dos contratos. Fala-se em dirigismo contratual, ou autonomia da

vontade limitada em que as partes contratantes, sujeitos de direito ora contratam e

propiciam a contraprestação do trabalho contratado e o outro polo presta serviços de

forma subordinada, mediante remuneração equivalente.

Ainda, Fonseca chama este episódio de “acontecimento histórico”. Em se

tratando da História do Brasil a razão é bastante simples: tanto na Colônia, quanto

no império, é o trabalho servil e escravo que prevaleceram. Mesmo no séc. XIX, os

trabalhadores livres não estavam enquadrados no paradigma contratual clássico

europeu. Sintetiza Fonseca que é apenas no séc. XX, em pleno processo de

urbanização, industrialização, sobretudo, novos atores sociais e relações sociais

mais complexas é que se superam as chamadas “relações de dominação direta” por

“vínculos contratuais jurídicos formais”.

Enquanto nova fórmula, a partir da abordagem do presente capítulo, a

globalização emergente de meados da década de oitenta do século XX, de maneira

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mais acentuada, produziu o renascimento de alguns ingredientes muito presentes no

século XIX.

Em outros termos, considerando o enfoque da relação entre capital e trabalho,

pode-se dizer que certos aspectos supostamente sepultados historicamente,

reapareceram no quadro da chamada globalização, da era dos “consensos” e do

“discurso único”, tais como: a fragilização do papel do Estado e, em certa medida, a

sua retirada de cena para determinados fins; a flexibilização das normas que regem

as relações de trabalho, e isto inclui, sobretudo, o sistema de terceirização da

produção; em face disso, a suposição de que as partes (patrões e empregados)

estão em igualdade de condições para “negociar direitos” – a volta da autonomia das

vontades; enfim, a propalada precarização que significa tornar insegura as

condições de trabalho as quais o obreiro está submetido.

Historicamente, é generalizada a ideia de um período conjuntural de décadas

surgido logo após o fim da segunda Guerra Mundial que foi denominado pelo prof.

Antônio Casimiro Ferreira, em um capítulo chamado Para uma concepção decente e

democrática do trabalho e dos seus direitos (re) pensar o Direito das Relações

Laborais, inserido na obra “A Globalização e as Ciências Sociais” (organizada por

Boaventura de Souza Santos) de “capitalismo Organizado”, vejamos:

(...) que se foi mais longe na tentativa de regulação dos riscos associados às questões operária e social tendo-se estabelecido “ padrões de segurança” e de previsibilidade” ontológica e jurídica aos níveis individual e coletivo nunca antes alcançados na história do trabalho. A politização de algumas dimensões da “questão social” contribuiu para que no período do “capitalismo organizado” se fortalecessem concomitantemente os princípios do Estado, do mercado e da comunidade (Santos, 2000: 138). Combinação em muitos sentidos inédita, se atendermos ao modo como estes princípios de regulação co-existiram no período do “capitalismo liberal” ou se articulam na atual fase do “capitalismo desorganizado”. Com efeito, a regulação política, o caráter público e a racionalidade jurídica do direito do trabalho acentuam o seu caráter “ promocional” e o seu entendimento como direito de discriminação positiva, assente no princípio do favor laboratoris e no estabelecimento de padrões de emprego, de relações laborais e de condições de trabalho. Enquanto modelo jurídico-social de referência, ao tentar “impor” reciprocidade nas relações de trabalho, regulando a discricionariedade, a contingência e o risco considerados “normais” e co-extensivos ao “espaço da produção”, criou expectativas de justiça, equidade e democraticidade.

Na contramão do modelo acima descrito, temos o ocaso do Estado-previdência

naquilo que o professor português José Manuel Pureza, em um artigo intitulado

“Para um Internacionalismo Pós-Westfaliano”, inserido na obra “A Globalização e as

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Ciências Sociais” (organizada por Boaventura de Souza Santos), chamou de

redirecionamento do Estado:

A condução da globalização dos mercados segundo uma lógica neoliberal determinou uma evidente fragilização – ainda que obviamente diferenciada, em função da posição ocupada por cada Estado concreto na hierarquia do sistema mundial – dos Estados na sua função de garantia do contrato social e das inerentes políticas de inclusão. A globalização assim conduzida atribui toda a prioridade à complementaridade entre autonomia dos mercados e “Estados facilitadores” (Falk, 1999;1), orientada para a liberalização, a privatização, a desregulamentação da economia, a retratação dos gastos com bens públicos e dos encargos com o bem-estar social, a plena mobilidade dos capitais e a sujeição do mercado de trabalho em simultâneo com um estrito controlo internacional e uma total flexibilidade nacional ... Não se trata, pois,’ de um puro e simples esvaziamento do Estado enquanto estrutura regulatória.

Dentro do “capitalismo organizado”, as relações de trabalho são pautadas

pelos requisitos legais estatuídos no artigo 3º. da CLT, na medida em que:

Na subordinação jurídica e no espaço da grande empresa como meio privilegiado onde se presta o trabalho subordinado; na unicidade do empregador prestando o trabalhador serviço a um único empregador; e na estabilidade temporal e remuneratória sendo o trabalho assalariado prestado a tempo inteiro, ou completo, obedecendo a uma duração temporal limitada, normalizada, etc.

No que podemos denominar, segundo o prof. Antônio Casimiro Ferreira, de

“capitalismo desorganizado”, a situação acima descrita muda radicalmente e num

sentido claramente negativo se considerados os interesses da classe trabalhadora:

Ao contribuírem (normas laborais) para a precarização dos vínculos contratuais e para a segmentação e dualização dos mercados de trabalho este tipo de normas laborais aprofundam os desequilíbrios estruturais associados às relações de trabalho, provocam maior insegurança ontológica e jurídica e põem em causa o modo como o trabalho se constitui em vínculo de integração social. Para além dos exemplos associados à precariedade e atipicidade legais geradoras de insegurança sócio-jurídica é igualmente de referir o “uso perverso” das normas laborais, como sucede nas situações de falsos despedimentos coletivos, de constrangimentos nos processos de reformas antecipadas e rescisões de contratos por mútuo acordo, de falências fraudulentas, de salários em atraso, de eficácia real das sentenças judiciais, de violação da privacidade no local de trabalho, de discriminação em razão do sexo, raça, etnia ou deficiência, de violação das normas respeitantes à duração do trabalho, etc.

É da lavra do mesmo autor a análise jurídica que bem demonstra este ponto de

inflexão das normas trabalhistas decorrentes da mudança do cenário econômico:

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Em suma, a especificidade do direito do trabalho, que sempre reconheceu na sua estrutura nomológica a proteção à parte mais desprotegida, cauciona agora padrões de emprego flexíveis e desregulados. A desregulamentação e flexibilização, como resposta à juridificação das relações laborais, traduz-se na redução dos padrões de proteção legal dos trabalhadores, tendendo os seus defensores, apoiados em políticas econômicas neoclássicas e liberais, a criticar as normas de proteção do emprego, os direitos de consulta, participação e negociação dos trabalhadores e seus representantes, e a intervenção da administração, dos tribunais de trabalho e das organizações internacionais como a OIT.

Por fim, se no âmbito do Estado-Providência houve um ascensão da classe

operária capitaneada por uma sólida estrutura sindical, em tempos de globalização

extremada o que se percebe é o exatamente o oposto. O movimento sindical está

em uma encruzilhada e diante de incontáveis problemas, como bem enunciou o prof.

Elísio Estanque, na obra Reinventar a Emancipação Social: Para novos tempos,

mais especificamente no capítulo 8 (“A reinvenção do sindicalismo e os novos

desafios emancipatórios: do despotismo local à mobilização global”):

Como é sabido, a mitologia comunista caiu por terra e o sindicalismo “de classe” vê-se hoje mergulhado em inúmeros problemas e fragilidades. Não só o capitalismo conseguiu “canibalizar” as lutas da classe trabalhadora, mas até as estruturas dirigentes dos principais sindicatos se tornaram em larga medida instrumentos da ação reguladora do Estado. Com isso, contribuíram também os sindicatos para “canibalizar” as velhas propostas de ação emancipatória. No meio de todo esse processo, as conquistas dos trabalhadores e do movimento sindical tradicional cederam, na prática, às pressões da lógica cooptativa, entrando sem o perceber na dinâmica do sistema, ou seja, deixando-se absorver pela lógica de regulação (Santos, 2000: 335).

Por óbvio que a debilidade da ação sindical nos dias de hoje é mais um

sintoma da reconstrução da “velha fórmula”, insculpida no século XIX, aquele do

liberalismo “original”. Para o bom observador da paisagem na qual se configura cada

vez mais uma emasculação de certos direitos do trabalhador esta questão não pode

ser olvidada.

A Terceirização da atividade fim é o símbolo maior deste quadro de diminuição

de garantias e de direitos de natureza social já que chancelado pelo próprio sistema

legal. Tome-se como exemplo o caso das grandes montadoras de automóveis,

corporações multinacionais, que, protegidas pelo texto da lei, e, portanto, pelo

próprio Estado, terceirizam a linha de produção de peças automotivas inteiras. Em

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ritmo acelerado e alucinado, a fim de cumprir um rol de metas intermináveis e

inatingíveis, milhares ou milhões de trabalhadores têm sua higidez física

comprometida parcial ou totalmente, de maneira temporária ou definitiva, a depender

da gravidade da lesão e/ou do acidente de trabalho de que são vítimas.

Esses trabalhadores, mutatis mutandis, ressalvadas as diferenças do tempo

histórico, podem ser equiparados aos operários do século XIX, já que suas duras

condições de existência no locus do trabalho não estão ao abrigo nem da lei, nem

do Estado. Mais do que isso, o beneficiário direto do seu esforço e da consequente

degradação física está sob o biombo do sistema de terceirização.

5.2 Crise da sociedade do trabalho: da tese sobre a desvalorização do

valor trabalho à terceirização da atividade fim

Uma das principais ilustrações do impasse apresentado, denominado ataque

aos direitos sociais, se faz demonstrar no projeto de Lei 4.330/2004, do Deputado

Sandro Mabel, reconhecido pelos representantes juízes da Anamatra, Ivan José

Tessaro e André Simionato Doenha Antônio como “mais um novo ataque aos

direitos trabalhistas a partir da alegada finalidade de desenvolver a legislação que

dispõe sobre as relações de trabalho”69.

O projeto deverá ser votado nos próximos meses na Câmara dos Deputados,

com o objetivo de regulamentar a terceirização no Brasil. Convém lembrar que, até a

presente data, o trabalhador presta seus serviços diretamente em benefício da

empresa que o contratou e através dela se insere em determinado meio ambiente de

trabalho. Se em algum momento tiver direitos lesados, pode cobrar do empregador o

que lhe é devido.

A terceirização foi e é um instituto desenvolvido originalmente dentre as

ciências da administração qualificando-se pela possibilidade de uma empresa ou

Ente Público delegar para outra empresa a execução de parte das suas atividades.

Desse modo, a prestadora de serviços terceirizados disponibiliza mão de obra

para a tomadora e, o que ocorre, é que os empregados terceirizados, a despeito do

69 TESSARO, Ivan José. Críticas ao Projeto de Lei da Terceirização (PL 4.330/2004). HiperNotícias, Cuiabá - MT, setembro 2013. Disponível em: <http://www.hipernoticias.com.br/TNX/conteudo.php?sid=174&cid=28982>

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local onde trabalham, não são empregados da empresa ou servidores do Ente

Público em que atuam.

A principal finalidade da opção pela contratação de uma empresa terceirizada é

a de maximização de resultados bem como redução de custos, o que na prática

implica desde cortes de despesas com direitos trabalhistas até mesmo como

mecanismo de diminuição de garantias e de direitos para boa parte dos empregados

terceirizados, os quais recebem salários mais baixos e tem menos benefícios

quando comparados com trabalhadores da mesma função que não sejam

terceirizados.

Convém lembrar que a empresa terceirizada é responsável direta pela quitação

de todas as verbas trabalhistas, ficando a tomadora na posição de devedora

subsidiária, ou seja, só arca com os direitos laborais, normalmente verbas salariais,

depois de esgotadas as tentativas de cobrança contra a primeira, dificultando assim,

para o trabalhador, o recebimento daquilo que lhe é devido.

Tessaro ainda destaca que:

A terceirização comprovadamente também diminui a disponibilidade de postos de empregos e paralelamente aumenta a rotatividade de mão de obra, pontos que são absolutamente prejudiciais não só à classe trabalhadora, mas também à toda a sociedade, pois quanto mais vezes o trabalhador for demitido, para, poucos meses depois, ser novamente contratado, maior será o tempo em que ficará recebendo seguro-desemprego, benefício concedido a partir de aportes feitos por toda a sociedade ao FAT (fundo de amparo ao trabalhador).

O que pode ser considerado mais grave é que a mudança constitui ainda fator

concreto de risco à saúde e à integridade física dos trabalhadores terceirizados,

porquanto a redução de custos com a intermediação desse tipo de mão de obra tem

sacrificado investimentos não só na remuneração e em outros benefícios acessórios,

como também nas condições de segurança e saúde dessas pessoas.

Para o autor supracitado os dados a respeito são alarmantes: 4 em cada 5

mortes por acidente de trabalho no Brasil ocorrem com empregados de empresas

terceirizadas e em cada 10 acidentes de trabalho, 8 ocorrem em empresas que

utilizam mão de obra terceirizada.

Assim, uma legião de dependentes da previdência social vem se formando em

face dos elevados índices de acidentes, recaindo a conta com o pagamento dos

benefícios, em última análise, sobre a sociedade pagadora de impostos.

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A despeito da realidade exposta, o projeto de Lei 4.330/2004, com a intenção

de aparentemente preencher uma lacuna da Lei, já que nosso ordenamento jurídico

não dispõe de uma regulamentação - especialmente, quanto à responsabilidade

trabalhista do tomador e à especificação das atividades em que a terceirização seria

lícita – simplesmente ignora toda a experiência acumulada pela Justiça do Trabalho,

que só a admite em situações excepcionais: quando se trata de serviço

especializado e no desenvolvimento de atividades acessórias da empresa.

Em sentido diverso ao consolidado perante a maioria dos que lidam

diretamente com as questões trabalhistas, a ideia que norteia o referido projeto é

estender de forma indiscriminada a terceirização de serviços a quaisquer atividades,

inclusive, para aquelas essenciais ou principais das empresas (atividades fim).

Ou seja, desta forma, a contratante/tomadora entregando a outrem o

cumprimento direto da atividade que justifica a existência dela, poderia terceirizar a

si mesma às custas do sacrifício de direitos trabalhistas.

É dizer, por exemplo, que um frigorífico poderá terceirizar setores como abate e

desossa. Uma agropecuária poderá terceirizar o preparo do solo, o plantio, a

colheita ou o manejo do gado. Uma construtora poderá terceirizar a construção da

fundação de um prédio ou o levantamento de paredes.

Enxerga-se um futuro com empresas sem empregados, realizando seus

objetivos exclusivamente através de trabalhadores terceirizados, não assumindo

sequer a responsabilidade direta pelo cumprimento das obrigações trabalhistas.

E se no contexto atual em que não há uma regulamentação da questão e em

que prevalece o entendimento restritivo a respeito das hipóteses de terceirização de

serviços perante a Justiça do Trabalho do Brasil, ainda assim, esta já se encontra

repleta de processos movidos por trabalhadores contra empresas terceirizadas que,

muitas vezes, simplesmente encerraram suas atividades sem quitar qualquer parcela

rescisória.

Muito pior será se efetivamente houver uma Lei ampliando a possibilidade de

terceirização para todas e quaisquer atividades das empresas possam ser

terceirizadas.

Assim, na contramão da realidade protetiva, escopo maior da Constituição

Federal de 1988, o Projeto de Lei 4.330/2004 permite expandir o que necessita ser

restringido, representando séria ameaça aos direitos e garantias fundamentais do

cidadão trabalhador, com reflexos danosos para toda a sociedade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o lançamento triunfal, em nível internacional, do livro intitulado “O

Capitalismo no Século XXI”, do economista francês Thomas Piketty, a discussão a

discussão em torno da desigualdade entre as pessoas e a origem das razões que a

motivam passou a ser o centro do debate intelectual no mundo. Uma leitura do

Capitalismo, desde o século XVIII, em suas várias fases, demonstra o oposto

daquilo que todos aparentemente supunham: estávamos caminhando para uma

redução das desigualdades sociais em nível global, graças à “Economia de

Mercado”. Esta visão pretensamente evolutiva da História deste sistema econômico,

além de otimista e superdimensionada, parece se demonstrar bastante equivocada.

Como bem observou Piketty, nos países ricos a desigualdade social aumentou

sensivelmente a partir dos anos 70/80 do século passado, fato que coincide com o

fim do Estado-Providência, a desregulamentação do sistema financeiro, o ajuste

fiscal, o corte de gastos públicos com a Saúde, a Educação e a Previdência, a

precarização do trabalho. O processo de Globalização e o receituário do “Consenso

de Washington” desaguaram na crise estrutural do Capitalismo do ano de 2008, com

consequências sócias gravíssimas para os pobres.

De forma magistral, Piketty, ao colocar no centro da discussão o tema do

aumento da pobreza de muitos e a opulência ascendente de poucos, redescobriu a

importância da História, esta tida como morta por Francis Fukuyama nos anos 90 do

século XX. Neste sentido, cumpre recordar a lapidar frase de Marx, na obra

intitulada “A Ideologia Alemã”: “Conhecemos apenas uma única ciência, a ciência da

História. ”.

A atualidade do tema do avanço das desigualdades entre as classes sociais a

partir de uma leitura do Modo de Produção Capitalista conecta-se, de alguma

maneira, com muitas questões levantadas neste trabalho. Assim, tem-se que

considerar que a luta intransigente e sem quartel em torno de direitos sociais latu

sensu, da cidadania integral e da efetividade da dignidade da pessoa humana estão

permanentemente ameaçados pelo viés do atual sistema Capitalista na retirada

gradual de normas de proteção.

Em outros termos, a corrosão dos direitos sociais, sobretudo aqueles oriundos

do Mundo do Trabalho, é o resultado do atraque dos interesses das grandes

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corporações econômicas nacionais e multinacionais. Sob qualquer aspecto, a

rendição destes direitos significa o incremento das desigualdades. Situação ainda

pior se considerado o cenário brasileiro.

Tarso Fernando Genro, na obra “o futuro por armar” afirma que, na era

globaritária, a discussão deveria ser

Diante da nova relação entre Estado e Sociedade, em todo esse processo de lutas e superações multiculturais no âmbito local, cria-se um novo espaço comunitário, “de caráter neo-estatal, que funde o Estado e a Sociedade no público: um espaço de decisões não controladas nem determinadas pelo Estado, mas induzidas pela sociedade70.

Tal hipótese é possível?

Recuperando-se um processo histórico, presente na literatura dos interpretes

do Brasil, que Luiz Bernardo Pericás carinhosamente denominou clássicos, rebeldes

e renegados71,em especial Celso Furtado, a formação econômica brasileira

apresenta pistas acerca das possibilidades de rendição ou saídas para manutenção

dos direitos sociais.

Uma vez que, segundo FURTADO (2002) a ocupação econômica da América e

o resultado da expansão comercial da Europa não foi o resultado de uma expansão

demográfica ou de um movimento migratório, mas da atividade comercial do período

em exame pelo autor e, ainda, que o intenso desenvolvimento deste comércio

interno Europeu se deu no séc. XV.

Também, a ocupação das Américas acabou por contrapor Espanha e Portugal

com as demais nações europeias concorrentes (Holanda, França, Inglaterra),

tornando-se também um problema político e, esta pressão política impôs à Portugal

e à Espanha a missão de ocuparem as terras americanas recém conquistadas.

Desta forma, tratava-se de conservar as terras americanas, os metais

preciosos, no caso da Espanha, que se tornou, no início, economicamente atraente.

Mas nas regiões não auríferas prevaleceu um ambiente de escasso interesse

econômico.

Assim sendo, o eixo econômico de que fala o autor é o complexo México-Peru

que, segundo, Furtado coube à Portugal a tarefa de ocupar o espaço físico sem o

70 GENRO, Tarso. O futuro por armar . São Paulo: Vozes, 2001. 71 PERICÁS, Luiz Bernardo (org.) Interpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados. São Paulo: Boitempo, 2014.

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uso exclusivo da exploração dos metais preciosos, ou seja, a partir da exploração

agrícola das terras brasileiras.

O resultado desta ocupação é a produção de bens para o mercado europeu

que Portugal iniciou nas Américas sendo a a “primeira grande empresa colonial

agrícola europeia”, vale dizer, a partir da produção de açúcar (“engenhos

açucareiros”).

Desta forma, a partir do refino, realizado nos países baixos, o açúcar produzido

por Portugal se espalhou pela Europa, tornando possível e efetiva a colonização do

Brasil. A Holanda contribuiu decisivamente com sua experiência comercial e com

elevados capitais para o sucesso da empresa açucareira.

Para contornar o problema da mão-de-obra – uma vez inviável a importação de

trabalhadores europeus – os portugueses adotaram o “mercado africano de

escravos” – constituindo-se uma mão-de-obra barata.

Reflete o autor que as Razões do monopólio seriam o fato de que Espanha

prosseguiu com sua exploração de metais preciosos (ouro/prata), não produzindo

uma alternativa econômica e por isso, uma das razões de sua decadência

econômica: a não variação dos seus produtos comerciais que acabou por favorecer

a empresa colonial portuguesa.

Ainda, a desarticulação do sistema: Guerra da Holanda versus Espanha pelo

controle do comércio de açúcar e a segunda metade do séc. XVII marcada o declínio

de preços da indústria açucareira.

Por fim, Colônia de povoamento do hemisfério norte: assistiu-se neste período

a derrocada do império espanhol e a, concomitante, emergência de seus rivais:

Holanda, França e Inglaterra. Desta forma, as Antilhas tornam-se pontas-de-lança

para futuros ataques à América espanhola e suas riquezas.

Convém destacar que a colonização inglesa é uma colonização de

povoamento, com excedente de população, sobretudo, com origem na zona rural e

uma desarticulação da agricultura coletiva. Tais colônias estavam fincadas na

pequena propriedade. Nas Antilhas, a situação é diferente devido ao clima que

possibilitava a produção de algodão, café e fumo (produtos tropicais) para o

mercado Europeu.

O autor conclui que a produção de açúcar é incompatível com a pequena

propriedade. Assim, foi esta razão que levou ao êxito da propriedade açucareira nas

terras brasileiras, permeadas pelo latifúndio e a mão-de-obra escrava. Tais fatores

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inexistiam nas colônias antilhanas num primeiro momento, passando para o Brasil o

monopólio da produção de açúcar.

A expulsão dos holandeses do Brasil, fez com que estes montassem uma nova

produção açucareira nas Antilhas – já em um segundo momento – em colaboração

com os ingleses e franceses. A mão-de-obra escrava substituiu a população

europeia. O açúcar desorganizou a economia de subsistência nas Antilhas. Assim,

as colônias do norte passaram a exportar alimentos, madeira e outros produtos

manufaturados para as colônias caribenhas.

O desenvolvimento das colônias setentrionais teria se dado a partir deste

intenso comércio com as colônias produtoras de artigos comerciais. Para o autor a

diferença fundamental entre os dois tipos de colonização reside no fato de que nas

colônias setentrionais prevaleceram as pequenas unidades produtivas, de base

familiar, população europeia, produtos não tropicais e a pequena propriedade. Já

nas colônias Antilhanas imperou a monocultura (açúcar; fumo), a mão-de-obra

escrava, o latifúndio e a produção em grande escala. Ainda, nas colônias de

pequenos proprietários, a concentração de renda foi muito menor.

Também a mentalidade das classes dominantes, tanto nas colônias de

povoamento, quanto nas colônias de produção era radicalmente diferente: nas

colônias antilhanas, as classes dominantes tinham uma ligação umbilical com o

poder econômico e político da metrópole, já os habitantes das colônias setentrionais

eram refratários à intromissão da metrópole (Inglaterra).

Furtado ilustra o que chama de encerramento da etapa colonial: Para

sobreviver como metrópole colonial, Portugal, alienando parte de sua soberania,

firmou acordos com a Inglaterra (século XVII), o que perdurará por mais dois

séculos. Alega a semi-dependência em relação à Inglaterra, o que se dava na

modalidade de privilégios comerciais, paradoxalmente, em nome da liberdade

comercial, enfim, houve uma clara ascendência política sobre o Reino Português.

Era uma política de concessões econômicas do reino de Portugal.

Restava um problema econômico: a desorganização da indústria açucareira em

terras brasileiras caracterizada por uma nova “parceria” entre os dois países foi

encetada no começo do século XVII que proíbe o desenvolvimento manufatureiro

português (tecidos de lã, por exemplo), em troca da preservação da colônia e seu

território.

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Este período será consagrado pelo ciclo do ouro. A Inglaterra beneficiou-se

financeiramente do ouro brasileiro, se capitalizando e criando um forte sistema

bancário. Portugal, por outro lado, copiando o modelo espanhol anterior, criou uma

falsa aparência de riqueza com o referido metal. No final do séc. XVII, o ciclo

aurífero entra em crise e a Inglaterra já entrava na primeira fase da revolução

industrial. O mercantilismo ficara para trás e o discurso liberal de mercados abertos

e livres para as manufaturas inglesas passa a ser hegemônico.

Quando da Independência do Brasil, devido a um processo de continuidade, os

compromissos entre Portugal e Inglaterra, passam a ser os compromissos

(comerciais/políticos) entre Brasil e Inglaterra. A história se repete, ou seja, o Brasil

delimita sua soberania em prol dos privilégios ingleses.

Do ponto de vista econômico, o Brasil de meados do séc. XIX era praticamente

o mesmo de três séculos anteriores: trabalho escravo; falta de industrialização. A

“nova” economia cafeeira representou um período de transição econômica.

Dentre os principais objetivos das reflexões de Furtado nas considerações

finais é demonstrar o processo de seletividade da construção do desenvolvimento

econômico brasileiro, ou seja, uma perspectiva ocidental, formada pelas categorias

do sistema teórico eurocêntrico, não resolveria a análise do processo de rendição

dos direitos sociais ou a tentativa dele.

O objetivo do primeiro capítulo foi aprofundar a discussão em torno da releitura

do Direito Privado no Brasil, sobretudo no que toca às questões candentes que

envolvem o contrato e a responsabilidade civil. Entende-se haver um absoluto

descompasso entre o novo e fecundo saber acerca do destes institutos de Direito

Civil e uma teoria renovada produzida na academia e a resistência ou ignorância de

parte significativa do poder judiciário na aplicação do Direito em favor dos

hipossuficientes.

Já no segundo capítulo o objetivo fundamental é demonstrar o processo de

rendição dos direitos sociais e suas marcas no Direito Brasileiro, aprofundadas no

quarto capítulo quando destaca-se os efeitos da Globalização – que, aliás, ainda não

se esgotaram – e as formas de precarização do trabalho, ilustrados na análise do

projeto de lei em trâmite no Congresso Nacional acerca da “Terceirização” de todos

os setores da produção econômica.

Acerca do terceiro capítulo, há uma pretensão de debater as ideias acerca das

limitações e contradições (insanáveis?) entre os Direitos Sociais, o conceito de

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cidadania e o princípio da dignidade humana para além da férrea e indestrutível

“Ordem Econômica” ou como a mesma estaria solapando as bases sociais da

chamada “Constituição Cidadã”.

Por fim, na retomada sobre a análise do quarto capítulo tornar mais nítido o

cenário do “retorno à velha fórmula”, ou seja, a reaparição extemporânea de

ingredientes do capitalismo do século XIX, representados nas relações de trabalho.

Seria isto um movimento inexorável? Estaríamos diante de uma perigosa lacuna na

correlação de forças tese/antítese que resultaria num grave quadro social? Quais

seriam as saídas intermediárias possíveis? A resposta viria de uma possibilidade de

análise da realidade, sob a base da libertação pela história, enquanto elucidação da

verdade que os registros oficiais por vezes tendem a encobriram e que fatalmente

serão descortinados pela disciplina e virulência de cientistas destemidos.

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