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Encontros com a leitura
e a escrita
Versão Preliminar Apenas para utilização em estudos e tarefas do curso
“Encontros com a leitura e a escrita”.
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Secretaria de Educação do Estado de São Paulo
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas
Encontros com a leitura e a escrita
Coordenação
Clarícia Akemi Eguti Mara Lúcia David
Regina Aparecida Resek Santiago Roseli Cordeiro
Rozeli Frasca Bueno Alves
Elaboração
Cilza Bignotto
São Paulo, 2010
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Introdução
A presente coletânea apresenta quatro sequências pedagógicas, planejadas para
auxiliar professores do Ensino Fundamental II no planejamento, realização e avaliação
de atividades de leitura e de escrita, cujo objetivo maior é a formação do leitor de obras
literárias. Para tanto, apresenta maneiras de utilizar textos de livros dos acervos da
escola, de sites da Internet, a fim de ampliar o contato dos alunos com diferentes
gêneros literários, além de oferecer procedimentos didáticos que contribuam para
nortear o trabalho dos educadores no processo de formar leitores interessados e
competentes. Todas as sequências pedagógicas estão organizadas em etapas,
apresentadas a seguir.
Preparando a Leitura
Para que tenham sucesso, as atividades de leitura precisam ser bem planejadas.
Essa etapa das sequências didáticas pretende justamente ajudar os educadores na
preparação das atividades. Nesse sentido, oferece informações sobre o gênero literário
a ser lido, além de orientações para os educadores realizarem leituras aprofundadas do
texto. Não há a pretensão de fornecer interpretações ou fórmulas rígidas de análise
para os textos escolhidos. Pelo contrário: a intenção é de auxiliar o educador a fazer sua
leitura do texto, a dialogar com outras leituras, como as de críticos literários, a preparar‐
se para receber e debater as leituras dos alunos. As orientações podem, inclusive, ser
utilizadas como diretrizes para ler outros textos do mesmo gênero.
Aquecendo para a leitura
Nessa etapa, são apresentadas sugestões para estimular os alunos a fazer
antecipações sobre o texto a ser lido. Essas antecipações serão verificadas após a
leitura. O educador é incentivado a registrar os comentários dos alunos, a fim de
retomá‐los posteriormente. Esse registro pode ser feito em um caderno de notas, de
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forma rápida. Há educadores que memorizam as observações dos alunos e conseguem
recuperá‐las depois da leitura para ajudar a turma a verificar as antecipações feitas.
Aconselhamos que, para evitar o risco de esquecer alguma dúvida ou afirmação
importante, o educador faça pelo menos uma lista do que foi dito nessa etapa, e por
quem foi dito. Essas anotações poderão ajudá‐lo, ao longo do ano, a mapear a
participação dos alunos e seus progressos ao fazer antecipações com base na
materialidade do livro e em outros indicadores.
Saboreando o texto
As atividades incentivam e sugerem a prática de vários tipos de leitura:
silenciosa, em voz alta, programada, individual, em duplas, em grupos, coletiva. A leitura
expressiva feita pelo educador é indicada sempre, pois uma das principais maneiras de
ensinar a ler bem, ler com prazer e ler muito é lendo bem, lendo com prazer e lendo
muito com e para seus alunos. A leitura expressiva exige preparação, ensaio, dedicação.
Mas os bons resultados compensam. Ouvindo você ler bem, seus alunos perceberão os
diferentes ritmos dos textos literários, os jogos com sonoridades, as emoções variadas
das personagens, entre outras riquezas.
Entrelaçando leituras coletivas
Uma das peculiaridades do texto literário é a sua plurisignificação, ou seja, sua
capacidade ser lido de muitas maneiras, de possibilitar inúmeros significados. A etapa
Entrelaçando leituras coletivas procura justamente orientar educador e alunos a somar
interpretações do texto lido, apresentando aos colegas diferentes leituras sobre os
“fios” que constituem o texto. Algumas possibilidades de leitura dos textos são
apresentadas ao longo dessa etapa, e podem ser utilizadas em suas aulas.
Um dos maiores prazeres proporcionados pela leitura é a conversa solta, livre,
sobre determinada obra. Essa conversa é bastante incentivada nas atividades, porque
contribui para deixar os alunos à vontade, abertos para ouvir as leituras dos colegas,
sem medo de apresentar suas próprias leituras.
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Desdobramentos para outros momentos
Uma boa leitura dá vontade de fazer outras. A ideia fundamental dessa etapa é
apresentar possíveis desdobramentos das atividades sugeridas, que podem ocorrer em
momentos posteriores. Nesse sentido, foram indicadas outras obras do mesmo gênero,
pertencentes aos acervos das escolas, ou acessíveis na Internet. Elas podem vir a
integrar novas atividades de leitura de textos literários. Também há sugestões de
atividades escritas, que podem auxiliar a compreensão dos textos lidos, além de
possibilitar o exercício de outras competências e habilidades relacionadas à pratica de
escrever.
Lembramos que as etapas das sequências pedagógicas oferecem diretrizes,
caminhos que os professores podem percorrer com seus alunos. Cabe a cada educador a
tarefa de selecionar o que pode ser melhor utilizado com cada turma, o que deve ser
adaptado, o que será mais produtivo se realizado em outras séries que não as sugeridas.
Esperamos que este material seja um ponto de partida para o desenvolvimento, por
parte de cada professor, de aulas especialmente voltadas para a formação de leitores
aptos a ler obras literárias. Estamos certos de que cada profissional acrescentará aos
caminhos aqui sugeridos novas possibilidades de leitura, novas sugestões de textos,
além de apontamentos sobre o que obteve sucesso em suas turmas e o que precisa ser
melhorado.
Boas leituras!
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Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato
Esta sequência didática é indicada para turmas do sexto e do sétimo anos do Ensino Fundamental II. As diferentes etapas têm como objetivo ajudar você a preparar várias aulas em que o livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, seja lido para seus alunos, por eles, com eles. O quadro abaixo apresenta, de modo sintético, as etapas e a sequência em que devem ser realizadas.
Etapas Atividades
1 Preparando a Leitura Atividades realizadas apenas pelo professor.
• Conhecer a obra infantil de Monteiro Lobato;
• ler a primeira parte de Reinações de Narizinho;
• observar aspectos da linguagem usada no livro;
• obter informações sobre a intertextualidade da obra.
2 Aquecendo para a leitura Atividades realizadas por professor e alunos.
• Organizar a sala; • explorar a materialidade de Reinações de
Narizinho; • conhecer o repertório da turma sobre a
obra infantil de Monteiro Lobato; • incentivar os alunos a fazerem
antecipações sobre o livro.
3 Saboreando o texto Atividades realizadas apenas pelo professor.
• Ler o primeiro capítulo do livro para a turma.
4 Entrelaçando leituras coletivas Atividades realizadas por professor e alunos.
• Abrir espaço para os alunos comentarem livremente o trecho lido;
• chamar a atenção para determinadas passagens do texto, como a caracterização das personagens;
• contextualizar aspectos do livro relacionados à história brasileira;
• debater questões éticas que podem surgir da leitura de determinadas cenas;
• observar, com os alunos, os efeitos de sentido provocados pelo modo como Monteiro Lobato constrói o texto.
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5 Desdobramentos para outros momentos Atividades realizadas por professor e alunos.
• Ler para a turma outros capítulos de “Narizinho arrebitado”;
• continuar explorando e fruindo o texto com os alunos, atentando para determinadas passagens;
• solicitar atividade escrita, baseada na leitura realizada em sala;
• orientar a atividade escrita e a revisão do texto;
• estimular a turma a compartilhar os textos, por meio de leituras e de exposições;
• estimular os alunos a lerem outras partes do livro, em sala de aula ou em casa;
• indicar outros livros que tematizem viagens a lugares fantásticos.
Preparando a Leitura
Monteiro Lobato é um dos mais populares escritores brasileiros. É provável que
você o conheça como o criador da personagem Jeca Tatu, o autor de Urupês (1918), o
nome que assina a famosa frase “um país se faz com homens e livros”. Mais provável
ainda é que, ao pensar em Lobato, você o associe ao Sítio do Picapau Amarelo. Afinal,
embora ele tenha começado escrevendo para adultos, hoje é lembrado e reconhecido
principalmente por seus livros para crianças.
Você pode saber mais sobre a vida movimentada de Monteiro Lobato no texto “O
inventor de nosso faz‐de‐conta”, que abre a última edição de Reinações de Narizinho. Se
quiser aprofundar seus conhecimentos sobre o autor, pode consultar as obras e os sites
indicados na bibliografia. Neles, você vai descobrir que Lobato foi pintor, editor,
fotógrafo, dono de companhia de petróleo... Vale a pena conhecer essas e outras
facetas do “pai” da literatura infantil brasileira.
Reinações de Narizinho, livro que hoje é dividido em dois volumes, tem história
longa e bonita. Em 1920, Monteiro Lobato publicou A menina do narizinho arrebitado,
um livro de formato grande (29 x 22 cm), cheio de ilustrações coloridas, com a história
da visita da personagem Lúcia, a Narizinho, ao Reino das Águas Claras. Na época, ele
tinha uma editora, a Monteiro Lobato & Cia., pela qual publicou livros seus e de outros
escritores.
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Em cartas escritas a amigos, naquele período, Monteiro Lobato contava que não
encontrava nada interessante para seus filhos lerem e, por isso, decidira experimentar
escrever livros para crianças. A menina do narizinho arrebitado foi um sucesso, seguido
por outros livros de histórias curtas criados por Lobato: O saci (1921), O Marquês de
Rabicó (1922), O noivado de Narizinho, Aventuras do Príncipe, O Gato Félix (1928), entre
outras, escritas ao longo da década de 1920 e no início dos anos de 1930.
Em 1931, a maior parte dessas histórias foi reunida no volume As reinações de
Narizinho, que, a partir de 1934, passou a chamar‐se Reinações de Narizinho. Ao reunir
as histórias, Monteiro Lobato reescreveu‐as, modificando substancialmente tanto a
forma como o conteúdo das narrativas. Não é improvável que o autor tenha reescrito
trechos do livro até 1946, quando organizou suas Obras Completas. Ele também
reformulou outros de seus livros infantis, procurando sempre melhorá‐los.
Veja só que bonito: a obra considerada “marco” da moderna literatura infantil
brasileira não nasceu da noite para o dia. Pelo contrário: é fruto de um trabalho de
escrita e reescrita, de constante aprimoramento, realizado ao longo de anos. Os leitores
tiveram enorme importância na construção dessa obra, especialmente os infantis, pois
Lobato costumava conversar com crianças, pessoalmente ou por cartas, e levava muito
a sério a opinião delas sobre as histórias que escrevia.
Agora que você já conhece um pouco mais da história editorial de Reinações de
Narizinho, é hora de ler, ou de reler o livro. Talvez, você tenha conhecido a turminha do
Sítio do Picapau Amarelo por meio da televisão, como muitos brasileiros. Experimente,
então, ler esse título inicial da obra infantil lobatiana, de lápis na mão, para marcar as
passagens que mais lhe chamarem a atenção.
Observe a linguagem utilizada por Monteiro Lobato. Ele utiliza construções e
palavras muito próximas do falar cotidiano, o que conquistou os leitores infantis ao
longo de décadas. Você pode encontrar várias palavras que já não são comuns em nosso
cotidiano, porque a língua está sempre mudando. Quando topar com palavras assim,
assinale‐as, para depois procurar o significado no dicionário. Assim, você e seus alunos
vão aprender palavras que são velhas em nossa língua, mas que serão novas e
instigantes para vocês!
Embora palavras mais antigas, como “sobrecasaca” ou “roca”, apareçam vez por
outra na narrativa, não chegam a interromper a fluência do texto. O narrador de
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Reinações de Narizinho é ágil, divertido, criativo: são inúmeros os neologismos que
inventa, como “borboletograma” ou “Vossa Cavalência”. Marque os trechos que
considerar criativos, originais, engraçados. O humor é uma das marcas dos livros de
Monteiro Lobato para crianças e merece ser destacado em sua leitura.
Anote também os nomes de personagens de outras histórias que aparecem em
Reinações. É o caso de Dona Carochinha, a velhinha que narrava contos de fadas nos
livros Contos da Carochinha, Histórias do arco da velha, Histórias da baratinha, de
Figueiredo Pimentel, autor muito popular entre as crianças no final do século XIX e no
começo do século XX. Também é o caso de Tom Mix, nome artístico de um ator norte‐
americano que fez enorme sucesso na época do cinema mudo. Ele atuava
principalmente em filmes de faroeste. Já o Gato Félix é o protagonista de desenhos
animados que, já nos anos de 1920, encantavam adultos e crianças.
Já deu para notar que Reinações de Narizinho dialoga com várias outras obras, não
é mesmo? Monteiro Lobato pôs para brincar com as crianças do Sítio personagens
vindas de outros livros, do cinema, da vida real. Esse diálogo, a que os especialistas em
literatura e linguística chamam intertextualidade, é outra característica da obra
lobatiana. Algumas personagens de outras obras serão facilmente reconhecidas por
seus alunos, como Cinderela. Outras, como Tom Mix e a Dona Carochinha, exigirão que
você as apresente à turma, da mesma maneira caprichada com que apresenta pessoas
queridas, que ainda não se conhecem.
Aquecendo para a leitura
Cenas de leitura e de narração de histórias são muito comuns nos livros infantis
de Monteiro Lobato. Nós, professores, podemos aprender bastante com essas cenas,
em que diferentes personagens leem ou contam histórias, conversam sobre o que leram
ou ouviram, pedem esclarecimentos sobre pontos não entendidos, riem, batem palmas,
expressam indignação ou revolta.
Logo no início de “O gato Félix”, uma das histórias de Reinações de Narizinho, as
personagens se reúnem para ouvir o famoso personagem contar passagens de sua vida.
Tia Nastácia acende o lampião da sala e diz: “É hora, gente!”. Todos, então, se
acomodam: Dona Benta em sua cadeirinha de pernas serradas, Pedrinho e Narizinho na
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rede, Emília no colo da menina, o Visconde de Sabugosa dentro de uma lata.
Aprendamos essa valiosa lição lobatiana: para acompanhar bem uma leitura, os alunos
precisam estar confortáveis.
A sala onde as personagens do Sítio se reúnem para ler é modesta, como muitas
salas de aula. Mas, para que nossos alunos estejam confortáveis, não é preciso muito.
Boas cadeiras e, quando possível, colchonetes, tapetes e almofadas dão conta do
recado. Acomodar todos em um círculo é uma ótima medida, porque assim todos
podem se ver antes, durante e após a leitura.
Organizada a sala, você pode dizer: “É hora, gente!” e começar a receber a turma
para mais um encontro com os livros.
Antes de ler Reinações de Narizinho para seus alunos, explore com eles a
materialidade do livro, ou seja, o formato do volume, as ilustrações, as informações
impressas na capa, na folha de rosto, na quarta capa. Mostre que o livro inicia com uma
apresentação do autor e do livro. Ensine‐os a identificar o índice, de maneira que eles
aprendam a conhecer o conteúdo por meio das partes que constituem o livro.
Incentive os alunos a falarem sobre o que conhecem a respeito de Monteiro
Lobato e do Sítio do Picapau Amarelo. As personagens da obra lobatiana talvez não
sejam estranhas a muitos deles, que podem ter conhecido Emília, o Visconde, Pedrinho
e Narizinho por meio da televisão, de revistas em quadrinhos, de brinquedos, de
conversas familiares, dos livros de Monteiro Lobato. O fato de as personagens do Sítio
serem tão conhecidas geralmente tem efeito muito positivo; os alunos podem conversar
sobre elas com outras pessoas e vão percebendo, aos poucos, que estão desfrutando de
um patrimônio comum à maioria dos brasileiros.
Incentive a turma a fazer antecipações sobre as histórias do livro, a partir do
título: o que os alunos entendem por “reinações”? Será que Narizinho é uma rainha?
Será que é uma menina “levada”? Eles vão descobrir que as duas possibilidades são
válidas.
O aquecimento deve durar no máximo 15 minutos, a fim de que vocês tenham
tempo suficiente para saborear o primeiro capítulo do livro.
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Saboreando o Texto
Terminada a conversa inicial, leia para o pessoal o capítulo “Narizinho”.
Capriche na leitura, que deve ser clara e emocionante. Lembre‐se de que muitos
de seus alunos terão o primeiro contato com a obra de Monteiro Lobato por meio de
sua voz. Assim, eventuais problemas como pular linhas, engolir palavras, gaguejar
demais, ler em voz muito baixa, muito monótona, ou sem emoção poderão afastar sua
turma do livro, em lugar de atraí‐la para ele. Vale a pena, portanto, treinar bastante em
casa!
Entrelaçando leituras coletivas
Após a leitura, abra espaço para a turma comentar o texto livremente. Ouça os
alunos e, sempre que possível, anote os comentários deles. Desse modo, fica mais fácil
acompanhar o desenvolvimento de cada leitor, responder a perguntas, fazer
comentários gerais sobre a leitura da turma.
Chame a atenção deles para algumas passagens do texto. É importante agir
como Dona Benta e Tia Nastácia que, nas histórias do sítio, mostram carinhosamente
aspectos interessantes do mundo e da leitura para as crianças. Esses momentos de
leitura devem prazerosos para sua turma.
Comente a maneira instigante com que o narrador traz o leitor para as páginas
do livro, logo no primeiro parágrafo, ao apresentar a casinha branca onde moram Dona
Benta, Tia Nastácia, Narizinho e Emília. “Quem passa pela estrada” imagina, segundo o
narrador, como deve ser triste a vida da velhinha sentada na varanda. O sujeito
indeterminado “quem” pode ser o leitor, que logo se põe no lugar do passante e
começa a pensar em como seria viver naquele sitio. Será que seus alunos se
identificaram com esse passante e ficaram imaginando a casa, a estrada, a personagem
Dona Benta?
E quanto a Narizinho? O narrador a caracteriza como uma menina de “sete anos,
morena como jambo”. Alguém da turma sabe que jambo é uma fruta tipicamente
brasileira? Se necessário, mostre a eles uma imagem do jambo, ou a própria fruta, para
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que conheçam sua cor e imaginem uma menina de cor semelhante. Observem como é
bonito comparar a cor de uma pessoa à cor de uma fruta.
Em seguida, conversem sobre as outras características da menina: ela gosta de
comer pipoca e sabe fazer biscoitos de polvilho. O que essas características nos fazem
pensar sobre a personagem? Como será a vida de Narizinho no sítio? Será que ela tem
pai e mãe? Será que ela vai à escola? Essas perguntas serão respondidas no decorrer da
leitura das Reinações.
Tia Nastácia é apresentada ao leitor como “negra de estimação que carregou
Lúcia em pequena”. Explique aos alunos que, no Brasil da primeira metade do século XX,
quando a história foi escrita, era comum encontrar, nas casas de pessoas brancas, as
chamadas “negras de estimação”. O que significa essa expressão?
Durante o período da escravidão, muitas mulheres negras trabalhavam no interior
das casas de seus senhores, fazendo serviços domésticos e cuidando das crianças.
Foram numerosas as crianças brancas amamentadas, carregadas e cuidadas por amas
negras. É o que afirma o historiador Luiz Felipe Alencastro: “Como na Europa e na
América do Norte, o recurso às amas‐de‐leite parecia ser bem comum no Império”1.
Muitas amas continuaram a trabalhar na casa dos antigos senhores e a cuidar de seus
filhos, depois da abolição da escravatura.
Na virada do século, não era difícil encontrar a figura da pajem negra que prestava
serviços remunerados a famílias brancas. Os filhos de Monteiro Lobato tiveram uma
ama chamada Anastácia, que inspirou ao escritor a personagem: “Era uma preta alta,
muito boa, muito resmunguenta, boa quituteira – tal qual a dos meus livros”, contou
Lobato ao jornalista Silveira Peixoto. 2 Há uma foto da Anastácia com Guilherme, filho de
Lobato, na biografia Furacão na Botocúndia, escrita por Vladimir Sacchetta, Marcia
Camargos e Carmem Lúcia de Azevedo.
Hoje, causa estranhamento ler que uma pessoa é considerada “negra de
estimação”, como se fosse um gato ou um cachorro. Nossos valores são – felizmente! –
1 ALENCASTRO, Luiz Felipe. Vida privada e ordem privada no Império. In: ALENCASTRO, Luís Felipe (org.). História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo:Cia. das Letras, 1997, p. 63. 2 PEIXOTO, Silveira. Vida, paixão e morte de Lobato. In: DANTAS, Paulo (org.). Vozes do Tempo de Lobato – depoimento – edição comemorativa do centenário de nascimento de Monteiro Lobato. São Paulo: Traço Editora, 1982, p.95.
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muito diferentes dos valores daqueles brasileiros daqueles anos de 1920 e 1930,
quando Monteiro Lobato escreveu as histórias de Reinações de Narizinho. Havia então
muitas “Tias Nastácias” nas casas das poucas crianças que podiam frequentar escolas,
aprender a ler, desfrutar de livros como os de Lobato. Não se pode declarar, por sinal,
que empregadas como a personagem já não existam em nosso país, ainda tão desigual.
Podemos pensar que, nas figuras de Dona Benta e de Tia Nastácia, estão
condensadas mulheres brasileiras de diferentes classes sociais, diferentes cores,
diferentes formações culturais. A branca Dona Benta, avó de cultura letrada, é a
personagem que introduz as crianças do sítio no mundo da literatura, da história, da
ciência. A negra Tia Nastácia, Tia por carinho e porque assim eram chamados os negros,
apresenta para as crianças conhecimentos originados das tradições orais do país, que
englobam da arte de cozinhar bem à capacidade de fazer bonecas de pano e bonecos de
sabugo de milho, além de contar boas histórias.
Para nós, professores que vivemos em outro tempo, não é admissível tratar
alguém do modo como as personagens do sítio tratam, por vezes, Tia Nastácia. Sabemos
que a cor da pele não diz nada sobre a inteligência ou o caráter de qualquer pessoa. Por
isso, nós e alguns de nossos alunos estranhamos o modo como o narrador designa Tia
Nastácia. Esse estranhamento não deve ser ignorado, pois pode levar a conversas
esclarecedoras com a turma sobre a sociedade em que vivemos, as tensões que muitas
vezes existem entre pessoas de cores diferentes, classes sociais diferentes, formações
culturais diferentes. Monteiro Lobato não suaviza esse tipo de tensão em seus livros, o
que é ótimo: por meio de suas histórias, os jovens podem entender um pouco melhor o
país em que vivem3.
Muitos deles serão netos de mulheres como Dona Benta; outros serão netos de
mulheres como Tia Nastácia. Boa parte terá um pouco das duas na família. No decorrer
do livro, vocês verão como as duas personagens se gostam e se respeitam, como uma
aprende com a outra. Ambas cuidam das crianças, ensinam a elas os conhecimentos que
adquiriram por vias tão diferentes. Eis mais uma lição de Monteiro Lobato: cultura
letrada e cultura oral podem e devem se misturar na educação dos jovens brasileiros.
3 A questão “Monteiro Lobato era racista?” sempre surge entre professores. Para debater esse tema, é recomendável que você e seus colegas leiam e discutam os contos “Negrinha” e “O jardineiro Timóteo”, do livro Negrinha, destinado a adultos e publicado pela primeira vez em 1920.
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Mas, assim como acontece na vida, também nos livros de Lobato surge, vez por
outra, alguma ofensa à Tia Nastácia, geralmente feita por Emília ou pelas crianças, e
direcionada à cor ou à formação cultural da “negra de estimação”. Dona Benta também
ouve desaforos dos netos e de Emília, que a chama, em alguns momentos, de boba ou
de velha gagá. O comportamento das crianças do sítio – e pensemos em Emília como
criança, por um momento – é semelhante ao de crianças reais, que podem ser, às vezes,
bastante cruéis quando contrariadas.
Podemos ficar indignados com alguma personagem querida, caso ela se
comporte mal. Emília costuma ser muito admirada por crianças e jovens, mas também é
comum que eles se irritem e se revoltem quando ela mente, ofende Tia Nastácia ou
Dona Benta, ameaça fazer alguma malvadeza. Seus alunos devem aprender a avaliar os
comportamentos das personagens de livros, sejam elas carismáticas como Emília, ou
não. Eles sabem que, na vida real, pessoas que costumam ser ótimas podem apresentar,
de vez em quando, comportamentos inaceitáveis. Analisar os comportamentos
questionáveis de personagens de ficção pode ser um ótimo exercício de reflexão sobre
os valores morais de nossa sociedade, ou seja, sobre ética.
O mesmo raciocínio vale para passagens deste e de outros livros de Lobato em
que personagens aparecem realizando algum ato que, hoje, não é considerado correto,
como fumar – Tia Nastácia costuma ter sempre um pito de barro por perto – ou caçar
uma onça – animal que, em nossos dias, sofre risco de extinção.
Mas voltemos para a caracterização das personagens que aparecem no capítulo
“Narizinho”. O que a turma achou de Emília ser feia como “uma bruxa”? Mesmo assim,
Narizinho a adora e não a troca por alguma boneca industrializada. Bonecas feitas em
série, quase sempre de cabelos e olhos claros, já existiam em 1920, quando Lobato
escreveu A menina do nariz arrebitado. O que a turma acha de Narizinho gostar de uma
boneca feita de pano por Tia Nastácia, que não é nada parecida com as bonecas
convencionais?
Releiam os parágrafos finais do capítulo, que tratam do ribeirão, outro “encanto”
de Narizinho. Note que o narrador chama as águas de “apressadinhas e mexeriqueiras”,
como se elas fossem gente. O recurso de dar características humanas a animais, a
objetos ou a elementos da natureza é conhecido como “antropomorfismo”. Você não
precisa informar esse nome aos alunos, mas fará bem em chamar a atenção deles para o
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modo como o narrador caracteriza as águas do ribeirão. O barulhinho que elas fazem,
ao correr pelas pedras tão “apressadinhas”, lembra mexericos feitos em voz baixa.
Grandes autores, como Monteiro Lobato, sempre nos surpreendem por mostrar
aspectos do mundo às vezes muito conhecidos, como águas de ribeirão, de maneira tão
original que passamos a vê‐los de maneira diferente, renovada. O modo como o
narrador descreve as horas que Narizinho passa alimentando os peixes também é muito
original, pois lhes confere atitudes também humanas. Alguns peixes são “ressabiados”,
parecem desconfiar da boneca...
O que acontecerá, a seguir? Incentive a turma a imaginar. Como a história é
conhecida, muitos alunos mencionarão o Reino das Águas Claras. Na próxima aula, leia
mais um capítulo...
Desdobramentos para outros momentos
Nas aulas seguintes, leia para a turma os outros seis capítulos de “Narizinho
arrebitado”. Você pode ler um ou dois capítulos por vez, sempre caprichando na
entonação. Após a leitura, abra espaço para que os alunos comentem o que leram e
ouviram.
É provável que eles perguntem o significado de algumas palavras; quando isso
acontecer, aja como Dona Benta. Nas cenas de leitura retratadas em vários livros
infantis de Monteiro Lobato, as personagens infantis perguntam o sentido dos termos
que desconhecem. Dona Benta explica o significado da palavra, que passa a fazer parte
do repertório dos netos. Cenas assim sugerem a preocupação de Monteiro Lobato em
ampliar o vocabulário de seus leitores.
Nas aventuras de Narizinho no Reino das Águas Claras, há a participação
importante de uma personagem dos contos de fadas, o Pequeno Polegar. Caso seus
alunos não o conheçam, você pode ler ou contar para eles a história da personagem.
Explique quem é a Dona Carochinha, que havia aprisionado em seu reino personagens
de outros contos de fadas, como Branca de Neve, Bela Adormecida e o Gato de Botas. A
ideia de que livros de contos podem ser reinos encantados, onde as personagens de
diferentes histórias vivem juntas, é bastante encantadora e pode ser explorada por
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vocês. Que leitor já não teve a sensação, durante a leitura, de que determinadas
personagens são reais, ou de que lugares fictícios realmente existem?
O Reino das Águas Claras é desses lugares imaginários que gostaríamos de
visitar. Chame a atenção de seus alunos para as maravilhas do reino, como o palácio do
Príncipe Escamado, o coche de gala em que Narizinho passeia pelo fundo do mar, o baile
oferecido à menina. As descrições são extremamente vivas, criativas e bem‐humoradas.
A sala de jantar do palácio, por exemplo, é tão bem‐arrumada que Narizinho a considera
mais bonita do que a sala do trono. O príncipe explica que a beleza do arranjo da mesa
se deve às sardinhas, “as melhores arrumadeiras do reino”. A menina, então, pensa
consigo: “Não é à toa que sabem arrumar‐se tão direitinhas dentro das latas...”. Outras
reflexões infantis, tão deliciosas como essa, podem ser encontradas em toda a história.
O capítulo 5, “A costureira das fadas”, merece uma aula só para ele, pois é dos
mais bonitos e emocionantes do livro. O príncipe pede a Dona Aranha, a costureira das
fadas, que faça um vestido para Narizinho. A descrição da maneira como a costureira
veste e enfeita a menina é belíssima: o diadema é de orvalho, as joias são de rubis e
esmeraldas do mar; a menina ainda é “polvilhada” com o “famoso pó Furta‐todas‐as‐
cores, de tanto brilho que parecia pó de céu sem nuvens misturado com pó de sol que
acaba de nascer”. Como os alunos imaginam essa cena?
A beleza da natureza é um tema recorrente nas obras de Monteiro Lobato.
Observe, com seus alunos, o grande valor atribuído a elementos naturais como teias de
aranha, orvalho, luz do sol, brilho das borboletas... Eles são mais valiosos do que
qualquer elemento artificial. Podemos afirmar que, neste e em outros livros de Lobato,
a fruição de belezas naturais proporciona muito mais prazer do que a obtenção de
dinheiro ou de “objetos de grife”, como diríamos hoje.
Também vale a pena debater com a turma a escolha feita pela costureira, que
poderia tornar‐se princesa ou sereia, mas decide continuar sendo aranha. A personagem
percebe que gosta de ser como é, mesmo que a outros olhos esteja bem distante do
“padrão de beleza” atribuído a princesas ou, atualmente, a modelos. A lição de Dona
Aranha pode render bons papos a respeito da valorização, por parte de cada aluno, de
seu corpo, de suas características, de sua identidade. Comente com eles que a beleza
pode assumir inúmeras e diferentes formas, o que certamente deixa o mundo mais
interessante.
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O capítulo 7, “A pílula falante”, também pode render conversa demorada e
intensa exploração do texto. É nesse capítulo que a boneca Emília deixa de ser muda,
graças à pílula falante do Doutor Caramujo. Há passagens divertidíssimas, como aquela
em que Emília começa a “botar para fora” a “fala recolhida”. A caracterização do Doutor
Caramujo, que não sabia curar sem suas pílulas, é engraçada e pode ser vista como
crítica a certa medicina praticada ainda hoje, que prescreve para cada doença um
remédio ou vacina. Comentem também a decisão ética de Narizinho, que não permite a
morte de um papagaio, cuja fala seria “transplantada” na boneca.
Terminada a leitura dessa parte do livro, vocês podem fazer uma atividade
escrita baseada no texto lobatiano. Solicite aos alunos que imaginem a seguinte
situação: eles encontram uma passagem para o Reino das Águas Claras e vão até o
fundo do mar. Lá, vivem uma aventura com alguma das personagens que apareceram
em “Narizinho arrebitado”. Antes de eles começarem a escrever, é importante que você
os estimule a imaginar onde estaria a passagem para o reino, o que eles gostariam de
ver no fundo do mar, que personagem gostariam de encontrar lá.
Como muitos de nós vivemos longe de ribeirões limpos, como o do sítio, pode
ser que alguns alunos inventem passagens para o Reino das Águas Claras que estejam
poluídas, cheias de lixo, escondidas em córregos canalizados. Esse tipo de situação pode
render ótimos textos e ótimas conversas sobre a necessidade de preservação do meio‐
ambiente. É possível, também, que muitos alunos nunca tenham ido a uma praia e só
conheçam o mar por imagens. Não há problema: a própria Narizinho, talvez, nunca
tivesse visto o mar antes de encontrar o Príncipe Escamado. O fundo do mar que seus
alunos imaginarão não precisa ter tanto vínculo com o oceano real. Afinal, Narizinho
passeia pelo reino sem usar roupa de mergulho, não é mesmo?
Eles também podem criar personagens que não aparecem na história lida, como
piratas ou monstros marinhos. O importante é que, em algum momento do texto que
escreverão, alguma personagem do Sítio ou do Reino das Águas Claras interaja com as
demais personagens, entre elas o narrador. O texto será escrito em primeira pessoa, de
modo que o narrador será também uma personagem.
Deixe que os alunos conversem entre si sobre as histórias que criarão, e que
deem palpites nas narrações dos colegas. A atividade escrita não deve ser realizada de
maneira tensa, como se eles estivessem realizando uma prova. Permita que eles se
18
soltem, que fiquem tranquilos; assim, as ideias surgirão mais facilmente. Conforme eles
forem escrevendo, podem parar, mostrar trechos para algum colega, discutir a
continuação da história... É assim que muitos escritores profissionais trabalham. Seus
alunos podem, assim como escritores profissionais, pedir a opinião de leitores amigos,
consultar dicionários, voltar ao texto de Monteiro Lobato, reformular passagens inteiras.
A atividade pode ser realizada em duas ou mais horas de atividades de leitura.
Não se esqueça de participar também da escrita dos textos. Circule pela sala,
olhe trechos, oriente correções relacionadas à norma culta, tire as dúvidas de todo tipo
que surgirão. Leve para a sala outros materiais em que o fundo do mar seja tematizado
ou retratado, como revistas, livros, fotos. Eles podem ajudar seus alunos a fazer
descrições, a ter ideias, a aprender mais sobre o cenário da aventura que escreverão.
Além disso, a turma se sentirá estimulada a ler outros gêneros textuais, a pesquisar
informações, a examinar imagens, o que é excelente: cada aluno estará exercitando e
aprimorando diferentes competências.
Terminados os textos, façam uma revisão conjunta. Primeiro, peça aos alunos
que troquem os textos com colegas, que apontarão eventuais problemas de linguagem
ou falhas na narração, na descrição, na caracterização de personagens etc. Depois,
revise os textos, apontando os trechos a corrigir, a esclarecer, a desenvolver mais.
Ajude‐os a refazer os textos, de acordo com os apontamentos dos colegas e as suas
orientações. Explique como escritores profissionais costumam reescrever várias vezes
um texto, até ficarem satisfeitos. Monteiro Lobato, como vimos, reescrevia
constantemente suas histórias.
Quando a última versão do texto for produzida, pode ser ilustrada com desenhos
ou colagens que dialoguem com a narração. Nas aulas de leitura seguintes, cada aluno
pode ler para a turma toda a história que escreveu. Após cada leitura, vocês podem
comentar o texto. Incentive os alunos a ensaiar em casa, antes de ler para os colegas,
assim como você fez. Também é importante orientá‐los a ouvir atentamente a leitura
dos colegas e a expor opiniões sobre os textos alheios de maneira clara, atenciosa,
organizada. Ao fim das leituras, os textos produzidos podem ser reunidos em um livro
artesanal, ou expostos em painéis. As histórias criadas por seus alunos se juntarão aos
outros livros da biblioteca da escola, ampliando o acervo compartilhado por todos.
19
Por meio dessa atividade, você pode acompanhar o desenvolvimento de seus
alunos com relação à compreensão leitora e à elaboração escrita. Anote os avanços
feitos por eles e os aspectos que precisam ser melhorados, tanto com relação à leitura
como à escrita. Nas próximas aulas, procure ajudar os estudantes a aperfeiçoar suas
competências e habilidades.
Novas leituras de Reinações de Narizinho podem ser feitas pelos alunos em casa
ou na escola. Incentive‐os a ler o livro todo, apontando novas aventuras das quais eles
poderão gostar. Eles não precisam seguir a ordem em que as diferentes partes do livro
foram organizadas; podem escolher que aventura lerão primeiro por meio dos títulos,
de sugestões suas, de comentários de outros leitores. Como observamos em
“Preparando a hora”, Monteiro Lobato escreveu várias histórias curtas, que foram
publicadas separadamente e posteriormente reunidas em Reinações de Narizinho.
Assim, cada parte do livro apresenta uma unidade, que pode ser lida separadamente.
Sempre é bom lembrar, aliás, que muitos alunos não aguentam esperar pela
próxima aula para ouvir a continuação de uma história. Se eles tiverem acesso ao livro,
poderão ler antes os capítulos que você planejou ler aos poucos. Não os proíba de agir
assim! É delicioso encontrar um livro do qual não conseguimos largar até conhecer o
final da história. Monteiro Lobato tematizou esse tipo de situação no primeiro capítulo
de “O irmão de Pinóquio”, uma das histórias de Reinações de Narizinho. Dona Benta
havia comprado o livro Pinóquio pelo correio; quando a encomenda chegou, Pedrinho
manifestou sua alegria do seguinte modo:
― Viva! ― exclamou Pedrinho quando o correio entregou
o pacote. ― Vou lê‐lo para mim só, debaixo da jabuticabeira.
― Alto lá! ― interveio Dona Benta. Quem vai ler o
Pinóquio, para que todos ouçam, sou eu, e só lerei três capítulos
por dia, de modo que o livro dure e nosso prazer se prolongue. A
sabedoria da vida é essa.
― Que pena! ― murmurou o menino fazendo bico. Não
fosse a tal sa‐be‐do‐ri‐a da vida, que nunca vi mais gorda, e hoje
mesmo eu dava conta do livro e ficava sabendo toda a história
20
do Pinóquio. Mas, não! Temos de ir na toada de carro de boi em
dia de sol quente – nhem, nhem, nhem.
Essa é uma das inúmeras situações da obra infantil lobatiana em que alguma
personagem infantil contesta, de forma incisiva, a opinião ou as ordens de um adulto. A
zanga de Pedrinho, que não dura muito, lembra a nós, professores, que nem sempre a
leitura que consideramos a mais “sábia”, ou a mais adequada, é a melhor para alguns de
nossos alunos. Eles precisam ter a liberdade de ler um determinado livro quando e onde
quiserem, no ritmo que desejarem. Precisam, ainda, ter a suprema liberdade de não
continuar lendo o livro de que não gostaram. Portanto, deixe seus alunos livres para
continuar – ou não – lendo Reinações de Narizinho. Permita que eles leiam onde
quiserem – que bom seria, debaixo de uma jabuticabeira! – e quando quiserem.
Mas não deixe de abrir espaço nas aulas para aqueles que leram o livro
compartilharem suas leituras com os colegas. Vale a pena, também, provocar a
curiosidade deles contando um trecho interessante de alguma outra parte da obra.
Lembre‐se, ainda, de indicar outros livros cujas histórias se passem em reinos
encantados. Uma boa dica é Amigos secretos, de Ana Maria Machado, que faz parte do
acervo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) de 2006. A história trata das
aventuras de um grupo de jovens que põem um livro de Monteiro Lobato num aparelho
de videocassete. Abre‐se, então, uma passagem para reinos encantados onde vivem
personagens famosas da literatura, entre elas a turminha do sítio.
Outras sugestões que podem interessar aqueles alunos que apreciaram
Reinações de Narizinho são: A fantástica fábrica de chocolate, de Roald Dahl, do PNBE
2006, Alice viaja nas histórias, de Gianni Rodari, do PNBE 2008, As fabulosas histórias de
Merlin e do Rei Artur, de Benjamin Bachelier e Gilles Massardier, do PNBE 2009. O
Picapau Amarelo e Viagem ao céu, de Monteiro Lobato, fazem parte do acervo do PNBE
2009.
Há ainda várias obras do programa Literatura em minha casa e do acervo Hora
de Leitura que podem agradar a seus alunos. Para indicar novos livros a suas turmas,
procure conhecer bem esses e outros acervos disponíveis em sua escola e em sua
cidade. Procure, também, conhecer bem os interesses, as dificuldades, o repertório de
cada um de seus alunos!
21
Bibliografia
Livros sobre Monteiro Lobato
AZEVEDO, Carmem Lúcia de; CAMARGOS, Márcia; SACCHETTA, Vladimir. Monteiro
Lobato: furacão na botocúndia. São Paulo: Senac, 1998.
CAMARGOS, Márcia. Juca e Joyce: memórias da neta de Monteiro Lobato. São Paulo:
Moderna, 2008. (Este livro faz parte do acervo do Programa Nacional Biblioteca da
Escola – 2009).
DANTAS, Paulo (org.). Vozes do Tempo de Lobato: depoimento. Edição comemorativa do
centenário de nascimento de Monteiro Lobato. São Paulo: Traço Editora, 1982.
LAJOLO, Marisa. Monteiro Lobato: um brasileiro sob medida. São Paulo: Moderna, 2006.
(Este livro faz parte do acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola – 2006).
LAJOLO, Marisa e CECCANTINI, João. Monteiro Lobato livro a livro: obra infantil. São
Paulo: Editora Unesp; Imprensa Oficial, 2008.
Livros de Monteiro Lobato
As obras completas de Monteiro Lobato estão sendo publicadas, atualmente, pela
Editora Globo. Todos os livros da coleção infantil que tematiza o Sítio do Picapau
22
Amarelo integram o acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola – 1998. Viagem
ao Céu e O Picapau Amarelo também fazem parte do acervo do Programa Nacional
Biblioteca da Escola – 2009.
Livros sobre História do Brasil
ALENCASTRO, Luís Felipe e NOVAIS, Fernando A. (org.). História da vida privada no
Brasil: Império: A corte e a modernidade nacional. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
NOVAIS, Fernando A. e SEVCENKO, Nicolau (org.). História da vida privada no Brasil:
República: da Belle epoque à era do rádio. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
Sites:
No site oficial de Monteiro Lobato (http://lobato.globo.com/), você encontrará
informações sobre a vida e a obra do escritor, bem como uma miscelânea de textos de
sua autoria. Já o site Monteiro Lobato e outros modernismos
(http://www.unicamp.br/iel/monteirolobato/) reúne documentos e informações
relativos ao autor, além de ensaios e estudos relacionados a sua obra, realizados por
pesquisadores do Instituto de Estudos da Linguagem (Iel) da Unicamp, sob coordenação
da professora Marisa Lajolo.
23
Antiguidades, de Cora Coralina
A sequência didática apresentada neste capítulo é indicada para turmas do sexto e do sétimo anos do Ensino Fundamental II. O objetivo das diferentes etapas é auxiliar você no preparo e na realização de várias atividades que tenham como foco poemas de Cora Coralina, a começar por “Antiguidades”. O quadro abaixo apresenta de modo sintético, as etapas da sequência didática e a ordem em que devem ser realizadas.
Etapas Atividades
1 Preparando a leitura Atividades realizadas apenas pelo professor.
• Obter informações sobre Cora Coralina; • ler o poema “Antiguidades”; • usando uma tabela como guia, anotar
aspectos relacionados à forma e ao conteúdo do poema que podem ser comentados após a leitura.
2 Aquecendo para a leitura Atividades realizadas por professor e alunos.
• Organizar a sala para a aula; • apresentar à turma a poetisa Cora
Coralina; • incentivar os alunos a fazerem
antecipações sobre o poema “Antiguidades”;
• perguntar se eles desejaram muito fazer algo, na infância, que lhes foi proibido.
3 Saboreando o texto Atividade realizadas apenas
• Ler o poema “Antiguidades” para a turma, se possível duas vezes. Na segunda vez, os alunos podem ler o poema.
24
pelo professor.
4 Entrelaçando leituras coletivas Atividades realizadas por professor e alunos.
• Abrir espaço para os alunos comentarem livremente o poema lido;
• chamar a atenção para determinadas passagens do texto, como o sentido conotativo de algumas palavras e expressões;
• explorar os sentidos sugeridos pelo uso do tempo verbal Pretérito Imperfeito do Indicativo;
• perceber como a memória do eu‐lírico traz para o presente, acontecimentos do passado;
• examinar a sonoridade de alguns versos; • examinar o sentido de alguns adjetivos,
quando isolados no verso, quando próximos de outros adjetivos ou substantivos;
• refletir sobre a infância retratada no poema.
5 Desdobramentos para outros momentos Atividades realizadas por professor e alunos.
• Ler mais poemas de Cora Coralina, ou de outros autores que tenham tematizado a infância;
• orientar a organização de antologias, com poemas selecionados pelos alunos;
• pedir aos alunos que escrevam um texto de apresentação para os poemas das antologias organizadas por eles;
• estimular a turma a compartilhar os textos, por meio de leituras e de exposições;
• solicitar aos alunos que escrevam uma carta a Cora Coralina, comentando o poema “Antiguidades”;
• estimular os alunos a lerem outros poemas da autora, em sala ou em casa.
Preparando a leitura
Você vai ler para e com seus alunos o poema “Antiguidades”, de Cora Coralina,
pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas (1889‐1985). O poema foi
publicado originalmente no livro de estreia da poetisa, Poemas dos Becos de Goiás e
Estórias Mais, de 1965. Na época, Cora já tinha 75 anos de vida – e que vida! Vale a
25
pena conhecer a biografia dessa mulher que viveu uma história de amor cheia de lances
românticos, que trabalhou como agricultora e doceira, que encantou poetas como
Carlos Drummond de Andrade quando começou a publicar seus escritos. Você
encontrará, na bibliografia ao final desta sequência, livros e sites onde pode aprender
mais sobre a história de Cora Coralina.
Entretanto, ler seus poemas provavelmente é a melhor maneira de entrar em
contato com a biografia da poetisa. Afinal, como certa vez afirmou o poeta mexicano
Octavio Paz, "os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia"4. Essa bela
observação de Paz, originalmente feita em relação ao poeta português Fernando
Pessoa, parece também válida no caso de Cora Coralina, que escreveu poemas
extremamente confessionais, como você vai perceber ao ler “Antiguidades”. O poema
pode ser encontrado no livro Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, em antologias
da poetisa e na Internet, no site Jornal de Poesia (veja o endereço do site na
bibliografia).
Com o poema em mãos, faça uma leitura atenta, sublinhando trechos que
considerar importantes. Releia o texto várias vezes, observando aspectos relacionados
ao modo como o poema é construído. Sempre que ler um poema, você deve lembrar‐se
de que na poesia a forma pela qual se expressa algo é tão importante quanto o
conteúdo expresso. Assim, é preciso atentar para a ordem em que as palavras estão
organizadas, a sonoridade dos versos, o modo como estão dispostos na página, as
imagens sugeridas pela combinação de palavras, sons e formas gráficas. Nós, leitores,
damos sentido ao texto poético por meio da leitura de todos esses aspectos.
Anote também as sensações que o poema provocou em você, os sentimentos
que despertou, as lembranças do passado que, por acaso, tenham surgido em sua
mente. Procure identificar que trechos provocaram quais sensações, sentimentos,
lembranças.
Use a tabela a seguir como guia para a leitura de “Antiguidades” e de outros
poemas:
Sons Identifique os sons que chamaram sua atenção e
4 PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1926. p. 201-202.
26
explique por quê: há sons que se repetem, no meio ou
no final dos versos? Qual o ritmo dos versos?
Imagens Registre as imagens que surgirem em sua mente
conforme você lê o poema. Procure identificar que
palavras, ou combinação de palavras, sugeriram essas
imagens.
Sensações O poema provocou sensações em você? Despertou
sentimentos, lembranças? Identifique as palavras,
versos, estrofes que sugeriam esses sentimentos,
sensações, lembranças.
Leia o poema silenciosamente; leia‐o, também, em voz alta, saboreando as
palavras, escutando atentamente a sonoridade dos versos. Você vai perceber que,
embora os versos do poema “Antiguidades” sejam livres, eles pulsam em um ritmo
muito particular. Use as anotações que você fez para preparar a aula. Certamente, sua
leitura se misturará à dos alunos e, juntos, vocês farão uma interessante leitura coletiva
do poema.
“Antiguidades” é um poema narrativo, ou seja, conta uma história. Que história é
essa? Podemos afirmar que é a história de uma menina que deseja comer pedaços de
um bolo destinado a visitas, guardado em lugar inacessível para as crianças. O eu‐lírico
― voz que expressa a subjetividade do poeta ― narra a angústia da espera da menina
pela ocasião de comer o bolo, depois que as visitas deixarem a casa. Mas elas demoram,
a menina dorme e, pela manhã, encontra apenas migalhas do doce tão desejado.
Podemos afirmar, igualmente, que o poema conta a história de uma infância cheia de
privações, ou de desejos não alcançados. Afinal, a linguagem da poesia explora o sentido
conotativo, das palavras, isto é, os sentidos que as palavras podem adquirir e que,
muitas vezes, são muito distintos do sentido literal que elas apresentam no dicionário.
Vejamos, por exemplo, os adjetivos usados nos versos “Aquela gente antiga,/ passadiça,
era assim:/ severa, ralhadeira”. O adjetivo “antiga” pode ser entendido de várias
maneiras: as pessoas existiram outrora, não existem mais; as pessoas existem há muito
tempo, não passaram – pelo menos não no interior do eu‐lírico; as pessoas estão ligadas
a uma tradição remota, entre outras possibilidades.
27
O adjetivo “antiga” é seguido por outro, “passadiça”. Num primeiro momento,
“passadiça” pode lembrar passado, o que enfatiza a noção de que aquelas pessoas
pertencem a outro tempo, que passou. No entanto, o significado denotativo da palavra,
exposto em dicionários, é “que passa rapidamente; passageiro, transitório”. Note que
riqueza de sentidos esses dois adjetivos, juntos, provocam: aquela gente era muito
velha, existia há muito tempo, pertencia ao passado; mas, era, ao mesmo tempo,
transitória, efêmera.
Podemos imaginar que a presença daquelas pessoas foi transitória porque teria
durado o tempo da infância da menina; porém, como “aquela gente antiga” ainda vive
em sua memória, o que era transitório não tem fim: dura enquanto durar a memória da
menina. Quanto mais o tempo passa, mais antiga aquela gente fica, pois seus costumes,
como fazer bolo com testo de borralho, tornaram‐se passado remoto. No entanto, a
lembrança de seus atos, pelo eu‐lírico, traz aquela gente para o tempo presente. De
certa forma, o adjetivo “passadiça” adquire sentidos contraditórios, pois o som e a
grafia da palavra lembram “passado”, mas seu sentido denotativo sugere outras
possibilidades, como a efemeridade.
Outro sentido possível para “passadiça”: gente que estava sempre de passagem,
e que se detinha junto à menina apenas para dar ordens ou infligir castigos. A infância
sem brincadeiras, sem carinho dos adultos, sem uma convivência amorosa com eles é
tema de muitos de seus poemas. Neles, como em “Antiguidades”, entramos em contato
com um modelo de infância muito comum no século XIX e no começo do século XX,
quando as crianças eram vistas como “adultos em miniatura” e deviam agir como tais.
Infelizmente, em alguns lugares do Brasil ainda é assim... Mas, hoje sabemos que não é
“natural” maltratar crianças o tempo todo, ou abandoná‐las ao seu destino; pelo
contrário, elas precisam de nossa presença constante e amorosa, de nossos
ensinamentos, de nosso carinho.
Veja só: por meio da combinação de dois adjetivos, “antiga” e “passadiça”, que
por sua vez combinam com todas as outras palavras do poema, o texto nos abre portas
e mais portas para entendermos a infância brasileira de décadas atrás, para
percorrermos com a menina, com a qual nos identificamos, os caminhos daquela casa,
daquele cotidiano do passado. O poema também sugere um complexo entendimento
dos mecanismos da memória. Quantas vezes não nos lembramos de gente que foi
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transitória em nossas vidas, mas que, por alguma razão, tornou‐se antiga dentro de nós,
seja por pertencer ao passado, seja porque ainda existe em nossa lembrança?
Talvez você esteja pensando no quanto o leitor é responsável pelos sentidos que
um poema pode apresentar. Realmente, nós, leitores, temos papel fundamental nesse
processo, pois o repertório, o conhecimento de mundo, as lembranças que guardamos
entram em cena durante a leitura, conferindo sentidos novos, às vezes inusitados, para
as palavras organizadas artisticamente pelos poetas.
O modo como Cora Coralina constrói seus poemas costuma cativar
imediatamente os leitores, porque ela usa uma linguagem “simples, muito próxima do
gosto popular, fluindo com a naturalidade de um riacho entre pedras”5, como afirmou
Darcy França Denófrio. De fato, o poema “Antiguidades” flui como riacho; seu formato
na página, inclusive, lembra o de um rio, que carrega em seu curso as lembranças do eu‐
lírico. Os versos livres se desenrolam de acordo com o que parece ser um fluxo interior,
que libera imagens, palavras, sons, ora aos poucos, como nos versos constituídos por
uma única palavra, ora aos borbotões, como nos versos mais longos.
Essa maneira de construção do poema lembra, também, uma conversa em que
ouvíssemos alguém, modulando o ritmo da fala ao sabor das lembranças que nascem de
seu interior. Lembranças que saem do eu‐lírico como água clara, que nos permite ver os
momentos tão vívidos da infância da menina. Cora Coralina gostava de dizer e de
escrever que era uma contadora de histórias antes de mais nada. Lendo poemas como
“Antiguidades”, fica difícil discordar dela.
Procure fazer outras observações sobre a forma e o conteúdo do poema. Em
seguida, pense em seus alunos e imagine qual a melhor maneira de interpretar o poema
com eles, de forma que percebam as várias riquezas que ele encerra. Para tanto, você
precisa ensinar a eles que a leitura de poesia é diferente da leitura de outros gêneros,
como bem esclarece o poeta Fernando Paixão:
(...) devido à natureza simbólica da linguagem poética, algumas pessoas dizem sentir grande dificuldade para entender a poesia moderna. Muitas vezes, o leitor se põe a ler poemas como
5 DENÓFRIO, Darcy França. Prefácio. In: CORALINA, Cora. Melhores poemas de Cora Coralina. São Paulo: Global, 2004. Trecho do prefácio disponível em: < http://www.globaleditora.com.br> Acesso em: 31 out. 2009.
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quem lê um jornal ou quem está estudando um livro. Sua expectativa diante das palavras é a de absorvê‐las rapidamente, procurando captar com linearidade ou uma espécie de didatismo o pensamento do poeta.
Esse posicionamento desemboca geralmente em decepção. Acostumadas a ler textos e consumir discursos que evitam
falar da dúvida, do incerto e da subjetividade (é o caso da imprensa escrita, dos livros escolares e da televisão, sem falar da política), as pessoas se espantam ao ver na poesia toda uma carga de sucessão de imagens que não conduzem a um aprendizado direto. Essas pessoas estranham os retorcidos pensamentos transmitidos nas palavras e, sem entender didaticamente o que está sendo dito, selam logo o livro ou o poeta com um juízo taxativo: trata‐se de um supérfluo...
.... e assim se perde a perspectiva mais rica da criação poética, que é a de proporcionar ao leitor um aprendizado indireto. 6
Portanto, procure ensinar seus alunos a assumir uma postura relaxada, aberta
para perceber as singularidades da linguagem poética. Não podemos ler um poema
como se estivéssemos lendo uma notícia de jornal. Precisamos seguir com calma os
caminhos nada lineares dos versos, prestar atenção no modo como palavras e sinais
gráficos estão organizados, sentindo a musicalidade e o ritmo, deixando as imagens
projetadas pelo poema se expandirem em nossas mentes.
A leitura concentrada e atenta de diferentes poemas será recompensada com
diferentes prazeres, diferentes aprendizados, diferentes descobertas.
Aquecendo para a leitura
Antes de começar a leitura, reúna os alunos em círculo. Assim, vocês ficarão mais
confortáveis para ouvir a leitura do poema e para, posteriormente, conversar sobre ele.
Informe à turma que vocês lerão um poema de Cora Coralina, chamado “Antiguidades”.
Peça a eles que imaginem a partir do título, qual é o tema do texto. Quais serão as
antiguidades tematizadas pela poetiza?
6 PAIXÃO, 1994, p.38-39.
30
Você pode apresentar Cora Coralina aos alunos, explicando que ela teve uma
vida longa, começada e terminada em Goiás. Se possível, mostre uma foto dela e conte
um pouco de sua história. Explique à turma que muitos dos poemas dela são
“confessionais”, ou seja, tratam de coisas vividas por ela na infância, na juventude, na
vida adulta. Por meio da leitura de “Antiguidades”, eles provavelmente conhecerão
aspectos de uma infância passada ainda no século XIX, quando havia palmatórias nas
casas, e reconhecerão aspectos de sua própria infância, como o desejo de comer um
bolo reservado a visitas chatas.
Aliás, vale perguntar a eles se, na infância – da qual muitos estão saindo – tinham
vontade de fazer algo que era proibido pelos pais ou adultos responsáveis. Anote as
histórias compartilhadas por eles, que devem ser retomadas após a leitura do poema.
Como quase todos nós ouvimos muitos “nãos” quando crianças rapidamente nos
identificamos com a história narrada em “Antiguidades”. É o que acontecerá,
provavelmente, com seus alunos.
Não se esqueça de dizer a eles que a linguagem da poesia é muito diferente da
linguagem de textos como notícias de jornal, verbetes de enciclopédia, enunciados de
livros didáticos. Lembre‐se das palavras de Fernando Paixão sobre a leitura de poesia e
procure transmiti‐las, a seu modo, para a turma.
O tempo de aquecimento para a leitura deve durar cerca de 15 minutos, para
que vocês tenham tempo de ler e saborear o texto com calma.
Saboreando o Texto
Leia o poema para a turma, da maneira mais expressiva possível. Ensaie antes,
para que sua leitura flua como “água de riacho entre as pedras”, como pede o poema.
Os alunos devem ter cópias do texto para acompanhar sua leitura. Peça a eles que
sublinhem as palavras que não entenderem, para que depois você explique seu
significado. Mas eles devem esperar o final da leitura para fazer perguntas, a fim de não
interromper o fluxo do poema.
Você pode ler o poema uma segunda vez, antes de abrir espaço para os
comentários a respeito dele. Uma segunda leitura pode permitir que os alunos
entendam melhor alguns trechos e percebam melhor o ritmo e a sonoridade do poema.
31
Se preferir, peça aos alunos que leiam o texto – cada estudante pode ler uma estrofe,
por exemplo.
Entrelaçando leituras coletivas
Terminada a leitura, convide a turma a fazer comentários gerais sobre o poema.
É hora de os alunos conversarem livremente a respeito do texto, fazendo perguntas
sobre palavras ou trechos que não tenham entendido, lembrando histórias parecidas
que viveram, comentando as sensações, os sentimentos, as lembranças provocadas pelo
poema. Há passagens que, provavelmente, causarão dúvidas ou despertarão a
curiosidade deles, como o verso “com um testo de borralho em cima”. O bolo havia
sido feito, provavelmente, em fogão a lenha, e tinha uma camada bem esticada de
cinzas na superfície. Será que você, ou algum de seus alunos, já ouviu falar em um bolo
assim? Quem sabe alguém conhece uma cozinheira sabedora dessa técnica tão antiga
de culinária?
A descrição do bolo pode fazer o leitor imaginar que a infância da menina
transcorreu num tempo diferente do nosso, talvez muito anterior. Mas essa percepção
só ocorre ao final da primeira estrofe. Os primeiros versos do poema sugerem uma
infância que poderia ter ocorrido há pouco tempo: “Quando eu era menina/ bem
pequena,/ em nossa casa,/certos dias da semana/ se fazia um bolo,/ assado na panela/
com um testo de borralho em cima.”. É somente quando lemos o último verso que
percebemos como esse assar de bolo está distante de nós, no tempo. Pergunte aos
alunos como eles imaginam a infância descrita nesses primeiros versos: há algo familiar
a eles? Há algo estranho? Provavelmente, assar bolo é algo comum na casa de muitos
jovens, ainda que bolos com cinza hoje sejam raros...
Observe, com eles, o uso dos tempos verbais no poema. Circulem os verbos e
reparem que o tempo verbal predominante é o pretérito imperfeito do indicativo: era,
abria, parecia, cortava, governava, regrava, dava, guardava... O que o uso recorrente
desse tempo verbal pode nos indicar? Lembremos que o pretérito imperfeito é usado
para expressar o passado inacabado, um processo anterior ao momento em que se fala,
mas que durou algum tempo no passado. Também pode ser empregado para assinalar
32
um fato habitual, cotidiano. Como esse tempo verbal não se refere a um processo
situado perfeitamente num contexto de passado, chama‐se pretérito imperfeito.
Portanto, as ações descritas no poema aconteciam regularmente, durante um
período que podemos entender como a infância da menina, mas cujos limites são
incertos para nós. Várias vezes ela teria visto o bolo assar, várias vezes teria desejado
comê‐lo, várias vezes o doce teria sido entregue a visitas. Talvez essa seja uma boa
oportunidade para ensinar à turma, ou relembrar com ela, as particularidades desse
tempo verbal. A observação de um aspecto gramatical, como o dos tempos verbais,
pode ajudar a entender melhor um texto literário; além disso, esse tipo de atividade
costuma ocorrer de modo mais solto e interessante quando se tem em mãos um texto
vivo, palpitante, como o do poema de Cora Coralina.
O fato de o pretérito imperfeito assinalar um passado inacabado contribui para
reforçar a ideia de que, na memória do eu‐lírico, a angústia de esperar pelo bolo e a
decepção de encontrar seus restos ainda perduram. É como se aqueles acontecimentos
não tivessem terminado, não fossem um passado acabado, superado – até porque a
poetisa não usa o pretérito perfeito do indicativo. Pergunte aos alunos se já aconteceu a
eles uma situação parecida; alguém, por exemplo, continua lembrando com frequência
um fato importante da vida, ocorrido no passado? Muitas vezes lembramos e
relembramos determinado acontecimento, como se estivéssemos projetando um filme
em nossas mentes, continuamente. Quando fazemos isso, revivemos o fato acontecido,
trazendo‐o novamente para o presente.
Nesse sentido, é possível afirmar que, de certa forma, as “antiguidades” narradas
no poema ainda estão vivas e presentes para o eu‐lírico. Bonito, não? Doloroso,
também, porque são “antiguidades” relacionadas a sofrimentos diversos, como os
castigos distribuídos pela “gente antiga” e o desejo nunca completamente satisfeito de
comer o bolo. Se acreditarmos nessa possibilidade de leitura, poderemos encontrar
outros elementos que a reforçam. Examinem, por exemplo, os versos da quarta estrofe:
“A gente mandona lá de casa/ cortava aquele bolo/ com importância./ Com atenção./
Seriamente./ Eu presente. Com vontade de comer o bolo todo.”.
Notem que, nos dois últimos períodos, não há verbos. Na primeira leitura,
podemos imaginar que o verbo mais provável para preencher a lacuna entre o sujeito,
“eu”, e o predicativo, “presente”, é o verbo ser, no Pretérito Imperfeito do Indicativo:
33
“estava”. Mas o verbo não está expresso e nós, leitores, podemos imaginar que bem
poderia ser usado o verbo ser no presente do Indicativo: “Eu estou presente”. O eu‐
lírico, ao relembrar aquele passado inacabado, revive‐o, como se estivesse novamente
presente naqueles acontecimentos, ou como se aqueles acontecimentos fossem
presentes. Aliás, essa palavra pode ter outro sentido: o de objeto presenteado. O bolo
seria um presente nunca desfrutado, e que por isso mesmo está sempre presente na
memória do eu‐lírico.
Explorem, juntos, os jogos de sentidos provocados pelas combinações de
palavras e pela organização das orações e frases ao longo do poema. Quais os
significados que podemos atribuir, por exemplo, ao verbo regrar, na quinta estrofe? A
irmã regrava no sentido de que traçava linhas sobre o bolo, para cortá‐lo? Ou porque
submetia as crianças a regras para comer as fatias? Porque regulava as porções? Todos
esses sentidos são válidos, e ainda há outros que podem ser descobertos.
Reparem como alguns versos são constituídos por apenas uma palavra, como
ocorre na terceira estrofe: no segundo verso, há apenas a palavra “gulosa”, seguida de
uma vírgula que indica os sentimentos tematizados nos versos seguintes. A palavra
“gulosa”, assim isolada em um verso, não ganha destaque? Aliás, os leitores imaginam,
ao ler essa palavra, uma menina que abra a boca; no entanto, a menina “abria os olhos
para aquele bolo”. Como os alunos entendem essa gulodice que consistia em abrir os
olhos, em lugar de abrir a boca? Será que o bolo só podia entrar no corpo da menina
pelos olhos, pela imaginação, já que estava proibido para sua boca?
Quantas riquezas há para explorar em um texto poético! Percorram o texto
várias vezes, demorando um pouco a cada verso, comentando as imagens e os sentidos
sugeridos pelas palavras e pelo modo como foram organizadas. Não se esqueçam de
também explorar a sonoridade do poema, mapeando sons que se repetem a intervalos
determinados, constituindo um ritmo todo especial. Além disso, os sons, muitas vezes,
reforçam os sentidos indicados pelas palavras. Leiam, por exemplo, o primeiro verso da
quinta estrofe: “Era só olhos e boca e desejo”. A repetição do som sibilante do “s”
lembra uma boca que se enche de saliva, tamanho é o desejo de comer o bolo.
Explique aos alunos os sentidos de palavras que eles não conhecem como
“intangível”, “empertigada”, “abrolhos”. Quando eles conhecerem o sentido denotativo
das palavras, aquele do dicionário,poderão imaginar melhor os sentidos conotativos, ou
34
seja, os novos sentidos que elas adquirem no texto poético. “Intangível”, por exemplo,
significa aquilo que não se pode tanger, ou pegar. O adjetivo também tem o sentido de
algo não perceptível pelo tato; impalpável, incorpóreo. Esses sentidos originais levaram
a outros, derivados, que são os seguintes: aquilo que não é suficientemente claro ou
definido para ser percebido ou entendido; aquilo que, por seu valor e dignidade, não
pode ser atacado e deve permanecer intato.
O bolo “quase intangível” pode ser entendido, então, como um objeto que a
menina não podia pegar, mas também como algo de enorme valor, quase sagrado, que
deveria permanecer intocado, o que a menina não conseguia entender – lembremos
que, no final das contas, o bolo era “muito ruim”.
Levando em conta os sofrimentos infligidos às crianças, que são descritos no
poema – ralhos, beliscão, palmatória, chineladas, entre outros – o que aquele bolo pode
representar? A promessa de agrados, que só eram dados a visitas adultas? Talvez.
Incentive os alunos a imaginar o que faltava na infância do eu‐lírico: carinho, prazeres,
brincadeiras? Quais os sentidos que a palavra “bolo” pode ter? No dicionário, vocês
descobrirão que “bolo” pode significar um tipo de tapa, dado com régua ou palmatória,
na mão de alguém, por castigo. Pode também significar um doce, ou uma recompensa...
Em torno dessa tensão entre castigos e prêmios parece girar o poema.
Não se esqueçam de explorar com atenção as estrofes em que são descritas as
visitas, de nomes antigos e qualidades as mais interessantes. D. Joaquina Amâncio, por
exemplo, era uma velha “grossa, rombuda, aparatosa./ Esquisita./ Demorona.”. Como
os alunos a imaginam? O que é “rombuda”, o que é “aparatosa”? “Demorona” é palavra
que não existe no dicionário; pode ser um regionalismo, pode ser um neologismo, uma
nova palavra inventada pela poetisa. Mas seu significado é bem fácil de entender, não?
Os alunos podem se divertir com a caracterização das visitas, pois certamente
encontrarão qualidades dessa gente antiga que se aplica muito bem a certas gentes de
hoje.
Você pode explicar a eles que os versos apresentam, de maneira bastante
subjetiva e artística, o retrato da infância de muitos brasileiros do final do século XIX e
do começo do século XX, que sofriam com a “pedagogia” descrita pelo eu‐lírico em
“Antiguidades”. Que semelhanças e que diferenças existem entre a infância tematizada
no poema e a infância de hoje? Provavelmente, eles vão perceber que existem no país,
35
infelizmente, várias infâncias: a de crianças que são obrigadas a agir como adultos em
miniatura e a passar por provações, e a de crianças que podem brincar, que têm o afeto
dos adultos, que podem estudar.
Desdobramentos para outros momentos
Procurem ler outros poemas de Cora Coralina, que vocês encontrarão na
Internet ou nos livros da autora, alguns deles integrantes de acervos distribuídos pelo
Ministério da Educação, como você pode verificar na bibliografia. Vocês descobrirão
juntos muitos tesouros quando explorarem mais o universo poético de Cora. Há um livro
especialmente interessante para jovens do sexto ano, A moeda de ouro que um pato
engoliu, que deve constar do acervo escolar.
Privilegie as atividades de leitura dos poemas, antes de realizar alguma atividade
escrita. Vale lembrar que, antes de pedir a seus alunos que escrevam poemas, é preciso
ler muitos com eles, para que se familiarizem com o gênero. Fazer poesia não é nada
fácil, de modo que você não deve pedir poemas aos alunos logo após uma primeira
leitura. Como vimos, ao analisar “Antiguidades”, um poema é muito mais do que
palavras dispersas pela página ou frases cortadas, simulando versos.
Procure formar bons leitores de poesia. Uma atividade escrita que pode ajudar
nessa formação é a organização de antologias, ou seja, coleções de poemas preferidos.
Os alunos podem escolher poemas de Cora Coralina, ou poemas de vários autores sobre
infância, por exemplo, e organizar um livro artesanal com eles. Para apresentar os
poemas escolhidos, eles podem escrever um texto, em que justifiquem a seleção feita. É
uma atividade excelente para realizar no final do ano, quando eles já tiverem lido vários
poemas. Assim, poderão escolher alguns, transcrevê‐los manual ou digitalmente, e
organizar a antologia, que pode ser presenteada a um colega, nas festas antes das
férias.
Para escrever o texto de introdução do livro artesanal, eles podem pesquisar a
vida e a obra dos poetas escolhidos e comentar a seleção dos poemas que compõem a
antologia. É possível justificar a escolha dos poemas pelas sensações produzidas pela
leitura, pela beleza das imagens ou da sonoridade dos versos. Por meio desses textos,
você poderá avaliar como sua turma está aproveitando as aulas. Oriente‐os na escrita e
36
ajude‐os a revisar problemas de linguagem. Incentive a troca de ideias entre os alunos,
para selecionar poemas, opinar sobre eles, apresentá‐los ao leitor. Os estudantes
podem também ilustrar os livros artesanais como quiserem.
Se você pretende, porém, fazer alguma atividade específica a respeito do poema
“Antiguidades”, pode pedir aos alunos que escrevam uma carta a Cora Coralina,
comentando o poema lido. Imaginem que ela ainda vive, e que gostaria de saber o que
jovens de hoje pensam a respeito da infância que ela retratou no poema, do desejo de
comer aquele bolo nunca alcançado, das visitas chatas que demoravam tanto para ir
embora. Na carta à poetisa, eles devem informar que leram “Antiguidades” com você e
comentar o que mais gostaram no poema. Aliás, permita que eles critiquem o texto, que
expressem opiniões tanto positivas quanto negativas. É assim que amadurecerão como
leitores.
As cartas podem ser lidas aos colegas, durante o processo de escrita e revisão.
Quando os textos estiverem terminados, podem ser afixados em um painel, ou
pendurados em um varal. Assim, as leituras coletivas ficarão todas visíveis, entrelaçadas
pelo espaço da sala de aula.
Bibliografia
Alguns livros de Cora Coralina:
CORALINA, Cora. A moeda de ouro que um pato engoliu. São Paulo: Global, 2004.
CORALINA, Cora. Becos de Goiás e outras histórias mais. 18ª ed. São Paulo: Global, 1993.
CORALINA, Cora. Melhores poemas de Cora Coralina. Seleção e prefácio de Darcy França
Denófrio. São Paulo: Global, 2004.
Livros sobre poesia:
37
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo na poesia. São Paulo: Cultrix, 1993.
CANDIDO, Antonio. Poesia e ficção na autobiografia. In: A educação pela noite e outros
ensaios. 3ed., São Paulo: Ática, 2000.
PAIXÃO, Fernando. O que é poesia. 3º ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
Cora Coralina em sites e livro:
BIOGRAFIA de Cora Coralina. In: Enciclopédia Itaú Cultural da Literatura Brasileira.
Disponível em: < http://www.itaucultural.org.br>. Acesso em: 28 out. 2009.
CORALINA, Cora. Antiguidades. In: Jornal de Poesia. Disponível em:
http://www.revista.agulha.nom.br/cora.html#passado. Acesso em: 30 out. 2009.
TAHAN, Vicência Bretas. Cora coragem cora poesia. 3.ed. São Paulo: Global,1995.
YOKOZAWA, Solange Fiuza Cardoso. Estórias da velha rapsoda da casa da ponte. In:
Revista Ciências e Letras, Porto Alegre, n.39, p.195‐212, jan./jun. 2006. Disponível em:
http://www.fapa.com.br/cienciaseletras/publicacao.htm. Acesso em: 30 out. 2009.
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Infância, de Carlos Drummond de Andrade
A sequência didática apresentada neste capítulo é indicada para turmas do oitavo e do nono anos do Ensino Fundamental II. O objetivo das diferentes etapas é auxiliar você no preparo e na realização de várias atividades de leitura que tenham como foco poemas de Carlos Drummond de Andrade, a começar por “Infância”. O quadro abaixo apresenta, de modo sintético, as etapas da sequência didática e a ordem em que devem ser realizadas.
Etapas Atividades
1 Preparando a leitura Atividades realizadas apenas pelo professor.
• Obter informações a obra de Carlos Drummond de Andrade;
• ler o poema “Infância”; • usando uma tabela como guia, anotar
aspectos relacionados à forma e ao conteúdo do poema que podem ser comentados após a leitura.
2 Aquecendo para a leitura Atividades realizadas por professor e alunos.
• Organizar a sala; • apresentar à turma o poeta Carlos
Drummond de Andrade; • incentivar os alunos a fazerem
antecipações sobre o poema “Infância”; • explicar que poemas não precisam ter
rimas, e que textos rimados não são necessariamente poemas.
3 Saboreando o texto Atividades realizadas por professor e alunos
• Iniciar lendo “Infância” para a turma. Na segunda vez, os alunos podem ler o poema.
4 Entrelaçando leituras coletivas Atividades realizadas por professor e alunos.
• Abrir espaço para os alunos comentarem livremente o poema lido;
• chamar a atenção para determinadas passagens do texto, como o sentido conotativo de algumas palavras e expressões;
• explorar os sentidos sugeridos pela sonoridade e pela organização das palavras do poema;
• fazer leitura atenta das imagens sugeridas pelos versos;
• perceber os vários tempos presentes no poema;
• examinar o sentido denotativo e conotativo de alguns adjetivos, advérbios
39
e substantivos; • ensinar como o poema é construído de
forma prismática. 5 Desdobramentos para
outros momentos Atividades realizadas por professor e alunos.
• Ler mais poemas de Carlos Drummond de Andrade;
• orientar a escrita de redações em que os alunos apresentem duas leituras particulares de “Infância”;
• estimular a turma a compartilhar os textos, por meio de leituras;
• sugerir a organização de saraus em que poemas sejam lidos e debatidos.
Preparando a Leitura
Carlos Drummond de Andrade é um dos maiores poetas brasileiros – talvez o
maior. Nesta atividade de leitura, seus alunos lerão um de seus poemas mais
conhecidos: Infância, que você encontra no site oficial do poeta (veja o endereço na
bibliografia). Neste, e nos outros sites indicados ao final da sequência didática, você
poderá obter informações sobre a vida e a obra do itabirano que, segundo Italo
Morricone, “só não ganhou o Nobel porque não quis”7.
“Infância” faz parte do livro de estreia de Drummond, Alguma poesia, publicado
em 1930. Para grande parte dos críticos literários, esse livro é um marco na história da
poesia brasileira, pois inaugurou novos rumos para a arte de fazer versos no país. Com
Drummond, a poesia deu um grande passo ao se livrar de algumas “amarras”
parnasianas, como a necessidade de fazer poemas com rimas. Em “Consideração do
poema”, também presente em Alguma poesia, lemos:
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
7 Vide bibliografia
40
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.
Bonito, não? Esse é um dos vários poemas em que Drummond tematizou o fazer
poético e traçou novos rumos para a arte poética nacional.
Para Silviano Santiago, Drummond é muito mais do que um grande poeta;
segundo o crítico, ele é o “melhor e mais multifacetado intérprete do século XX na
literatura brasileira”8. Afinal, Drummond, nascido em 1902 e morto em 1986, teria
sondado como ninguém os sonhos e as angústias dos brasileiros que viveram ao longo
daquele século. Essa é uma das razões da popularidade do poeta; os leitores costumam
encontrar, em seus textos, as inquietações, os anseios, as alegrias cotidianas presentes
na vida de todos nós. A vida é o assunto de seus poemas, marcados “pelo antilirismo
intencional, pela ironia (...) e pelo humor desencantado”, como afirmaram Antonio
Candido e José Aderaldo Castelo.
Mas o melhor jeito de conhecer a poesia de Drummond é lendo‐a; portanto,
vamos à leitura do poema “Infância”, por meio do qual entraremos no universo
drummondiano.
Leia “Infância” com atenção, sublinhando trechos que considerar importantes.
Releia o texto várias vezes, observando aspectos relacionados ao modo como o poema é
construído. Observe a maneira como o poema começa, se desenvolve e termina;
examine as palavras escolhidas e a organização delas nos versos. Escreva que imagens
foram projetadas em sua mente durante a leitura. Leia o poema em voz alta,
procurando sentir seu ritmo, perceber o tempo rítmico das frases.
Ritmo e tempo são eixos fundamentais do poema, como bem disse o poeta
Fernando Paixão:
Como as contas formam o colar, as palavras formam o poema. E o poeta é seu artesão, escolhendo a cor, o brilho e a intensidade de suas peças. Isto é, dando‐lhe ritmo e situando‐as no tempo.
São esses os dois eixos fundamentais que formam as coordenadas sobre as quais o poeta constrói sua visão de mundo, sua marca explícita, sua presença visível. Palavras soltas
8 SANTIAGO, 2002.
41
no espaço, sem magnetismo entre si, são como contas opacas repetindo‐se monotonamente.
É sobre o ritmo e o tempo, portanto, que se sustentam a novidade e o encanto do dizer poético.9
Sinta o ritmo do poema, lendo‐o várias vezes em voz alta. Perceba o tempo
rítmico dos versos, e também os outros tempos presentes no poema: o tempo pessoal
do eu‐lírico, o tempo histórico‐social, o tempo das imagens que aparecem no poema. Na
etapa “Entrelaçando leituras coletivas”, comentaremos esses diferentes tempos.
Anote também as sensações que o poema provocou em você, os sentimentos
que despertou, as lembranças do passado que por acaso tenham surgido em sua mente.
Procure identificar que trechos provocaram quais sensações, sentimentos, lembranças.
Use a tabela a seguir como guia para sua leitura:
Sons Identifique os sons que chamaram sua atenção e
explique por que há sons que se repetem, no meio ou
no final dos versos? Qual o ritmo dos versos?
Imagens Registre as imagens que surgirem em sua mente
conforme você lê o poema. Procure identificar que
palavras, ou combinação de palavras, sugeriram essas
imagens.
Sensações O poema provocou sensações em você? Despertou
sentimentos, lembranças? Identifique as palavras,
versos, estrofes que sugeriam esses sentimentos,
sensações, lembranças.
Procure analisar o poema de acordo com suas observações, antes de ler
comentários críticos a respeito desse poema em especial e da obra drummondiana em
geral. Na bibliografia, você encontrará sugestões de livros e sites que podem ser bons
pontos de partida para conhecer as leituras que críticos profissionais fizeram da obra de
Drummond. Essas leituras críticas podem se somar à sua leitura e à de seus alunos.
9 PAIXÃO, 1984, p.49.
42
Aquecendo para a leitura
Organize os alunos em um grande círculo, para que todos se vejam. Os alunos
podem sentar em cadeiras ou em colchonetes, almofadas; o importante é que estejam
confortáveis e relaxados, para que possam ouvir atentamente a leitura.
Leve livros de Drummond para que eles vejam, bem como fotos do poeta, se
possível. “Infância” faz parte de Alguma poesia e de várias antologias poéticas de
Drummond, de modo que não será difícil encontrá‐lo reproduzido em livros. Providencie
para que todos os alunos possam ler o poema em um livro, ou em versão copiada da
Internet. Tenha cuidado, apenas, para copiar o poema do site oficial do escritor, já que
nem sempre textos literários são reproduzidos corretamente em sites da rede.
Como “Infância” é um poema curto, você também pode escrevê‐lo na lousa.
Caso opte por copiá‐lo no quadro, procure respeitar o modo como o poeta dispôs os
versos. Afinal, se mudamos a estrutura do poema – nem que seja para caber num canto
de lousa – ele já não é o mesmo poema. É interessante que você o copie antes de
realizar a atividade para aproveitar melhor o tempo com seus alunos. Se quiser, esconda
o poema com papelão ou outro material e revele o texto à classe somente no momento
de ler.
Informe à turma que vocês lerão o poema “Infância”. Como será esse poema?
Deixe os alunos à vontade para inferir o tema e a forma do poema. É possível que alguns
jovens imaginem um poema organizado em estrofes regulares, em versos rimados.
Depois da leitura, vocês poderão conversar sobre o fato de poemas não serem
construídos, necessariamente, segundo regras de métrica e de rima. Com o
Modernismo, a poesia libertou‐se da necessidade de usar esses recursos. Vale lembrar
as palavras esclarecedoras do professor e crítico Antonio Candido a respeito da relação
do poema com a poesia. Para ele, é importante sabermos:
a) que a poesia não se confunde necessariamente com o
verso, muito menos com o verso metrificado. Pode haver poesia
em prosa e poesia em verso livre. Com o advento das correntes
pós‐simbolistas, sabemos inclusive que a poesia não se contém
43
apenas nos chamados gêneros poéticos, mas pode estar
autenticamente presentes na prosa de ficção;
b) que pode ser feita em verso muita coisa que não é poesia.
(...) 10
Se você deseja aprender mais sobre análise de poemas, deve ler O estudo
analítico do poema, de Antonio Candido, de onde foi extraído o trecho acima. Você não
precisa (e não deve) ler o trecho para seus alunos. Mas pode, e deve, explicar a eles que
nem tudo o que vem em verso metrificado e rimado é poesia, ou seja, arte feita com
palavras. Não basta rimar quaisquer palavras para atingir a expressividade pressuposta
pelo texto poético. Por outro lado, versos livres, como os de “Infância”, apresentam
uma enorme eficácia expressiva, típica do gênero poético, como veremos na etapa a
seguir.
Anote as observações dos alunos sobre o tema e a forma do poema. Depois da
leitura, essas observações podem ser retomadas e comentadas à luz do que foi lido.
Saboreando o Texto
Peça que os alunos leiam “Infância”, a princípio, em silêncio. Observe as reações
deles, a expressão de cada rosto, eventuais interjeições ou comentários. Quando notar
que terminaram a leitura, peça que eles anotem impressões que tiveram ao LER o
poema. Essa anotação deve ser breve; proponha que tenha no máximo três linhas.
Em seguida, leia o poema para a turma. Capriche na entonação. Finda a leitura,
solicite a eles que escrevam em poucas linhas o que sentiram, perceberam, pensaram
ao OUVIR o poema. Não se esqueça de deixar claro que essa tarefa não é para nota ou
para qualquer tipo de avaliação. É para eles poderem compartilhar com os colegas as
impressões, positivas ou negativas, que tiveram ao ler e ao ouvir o texto.
Assim, não há problema se a letra sair feia, se eles escreverem palavras soltas, ou
um parágrafo sem articulação. O essencial é que eles registrem os efeitos que o poema
causou neles. Leia mais uma ou duas vezes, para que eles possam apreciar de novo a
vibração das palavras e o ritmo dos versos. Se for possível, toque para a classe a 10 CANDIDO, 2004, p. 21-22.
44
gravação de leitura do poema feita pelo próprio Carlos Drummond de Andrade,
disponível no site oficial do autor.
Diferentes práticas de leitura contribuem para uma maior percepção das
riquezas de um texto literário. Ler o poema em silêncio, lê‐lo em voz alta, ouvir
diferentes vozes interpretando o mesmo poema são atividades que você deve fazer
sempre em sala de aula.
Entrelaçando leituras coletivas
Após a leitura, convide os alunos a comentarem livremente o poema, com base
nas anotações feitas durante a leitura. Que aspectos chamaram mais a atenção da
turma? Como eles compreenderam o poema?
Explique a dedicatória logo abaixo do título: “a Abgard Renault”. Comente que é
comum poetas dedicarem um determinado poema a outra pessoa. Abgard Renault
(1901‐1995) foi também poeta, além de professor e político. Era um grande amigo de
Carlos Drummond de Andrade. Que belo presente Drummond lhe deu, não?
Lembre para a turma que poemas exigem uma leitura diferente daquela que
fazemos de outros gêneros. Aliás, cada gênero textual pede um tipo diferente de leitura,
uma atenção específica. No caso dos poemas, é preciso que leiamos com calma,
concentração, demorando nossos olhos e nossa imaginação em cada verso, deixando
que os caminhos sinuosos das palavras organizadas na página nos levem a outros
lugares, nos façam pensar sobre a vida ali concentrada, nos encantem com seu ritmo e
sua sonoridade.
Releiam o primeiro verso. Não é interessante que, num poema chamado
“Infância”, as primeiras palavras tratem da figura paterna? Como essa figura surge no
poema? “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo”. O pai aparece montando o
cavalo, ou montado nele – o que isso sugere sobre a figura paterna? Podemos pensar
em uma figura grandiosa, pois está no alto, sobre o cavalo. O que seria o campo? Como
os alunos o interpretam? O pai era um peão? Um agricultor? O ato de montar a cavalo e
ir para o campo é visto pela turma como predominantemente masculino ou feminino?
Atentem para o ritmo do verso, marcado pela repetição de vogais abertas e uma
semiaberta, representadas por “a” e “ã”: “Meu PAi monTAva a caVAlo, ia PAra o
45
CAMpo”. Percebam como a repetição desses sons marca um ritmo muito especial. A
sonoridade aberta promove que sensações em vocês? Remete a que sentimentos? Pode
ser que alguns alunos pensem na repetição de tantos “a” como um lamento: aaaaa...
pode ser que outros sintam essa repetição como um grito, algo que lembre vocalizações
feitas por peões, por exemplo, ao montar cavalos: aaaaa!!!
Muitas vezes, o som e o ritmo de um poema nos chamam a atenção antes do
significado das palavras, ainda que não percebamos conscientemente que estamos
sendo afetados por eles. Como o ritmo e a sonoridade desse verso se combinam com os
sentidos sugeridos pelas palavras, com as imagens projetadas pelo verso? Podemos
observar uma repetição muito específica em “montAVA a cAVAlo”, que não só marca o
ritmo como indica um paralelismo. É possível interpretá‐lo, talvez, como uma integração
muito forte entre homem e cavalo. O que você e seus alunos acham dessa repetição?
Comentem, opinem, anotem as possíveis leituras. Mas tenham o cuidado de não
ultrapassarem os sentidos contidos pelo verso; não é possível afirmar que esse homem
é um ladrão ferido por uma bala, por exemplo. Procurem sempre apoiar‐se no texto,
separando possíveis desdobramentos pensados por vocês daquilo que realmente pode
ser lido nos versos.
Agora, vamos examinar o segundo verso: “Minha mãe ficava sentada cosendo”.
Coser é costurar. Como a turma imagina essa mãe? Ela está em posição mais baixa, por
estar sentada, inclinada sobre a costura? Seu trabalho é predominantemente feminino,
ou masculino? Examinem o ritmo e a sonoridade. Há mudanças, em relação ao primeiro
verso? Vejamos quais são as sílabas tônicas: “MInha MÃe fiCAva senTAda coSEndo”.
Algo mudou, não? Apareceram outros sons, mais fechados, marcados pelas vogais “i” e
“e”. O que eles nos sugerem? Será que o som de “a”, do primeiro verso, é mais forte
que os sons “i” e “e”? Como essa contraposição de sons abertos e fechados pode ser
entendida, com relação às figuras do pai e da mãe?
Procurem fazer esse tipo de exame demorado em todos os versos, lendo‐os
sempre em voz alta, sentindo o ritmo marcado pelo número de sílabas e a alternância
entre sílabas tônicas e átonas, vogais abertas e fechadas. O tempo rítmico do poema é
percebido dessa maneira.
A família se completa a partir do terceiro verso, quando surge o irmão, e do
quarto, quando aparece a imagem do eu‐lírico criança: “Meu irmão pequeno dormia./Eu
46
sozinho menino entre mangueiras/ Lia a história de Robinson Crusoé/ Comprida história
que não acabava mais.”. Como os alunos veem a atividade do eu lírico? É masculina,
feminina? É diferente das atividades de montar a cavalo, ou de costurar? Talvez eles
percebam que a atividade do menino é intelectual, enquanto a atividade dos pais é
essencialmente manual – embora também usemos o intelecto para saber como montar
e coser.
Vejam que interessante: enquanto lemos os versos sobre o menino, o menino
dos versos lê outra história, a de Robinson Crusoé. Seus alunos a conhecem? Informe a
eles que o romance foi escrito pelo inglês Daniel Defoe e publicado em 1719. É um dos
romances mais famosos do Ocidente. Narra a história de um marinheiro, único
sobrevivente de um naufrágio, que consegue chegar a uma ilha deserta, onde passa a
viver. Nela permanece sozinho por 28 anos, até que encontra outro homem, um nativo
da região. Pode ser que alguns alunos já tenham ouvido falar dessa história, ou tenham
visto alguma adaptação dela em filme, desenho animado, história em quadrinhos.
O romance Robinson Crusoé pode ser entendido como uma história sobre a luta
de um homem contra a natureza, que tenta reconstituir sozinho, elementos da
civilização, unicamente com sua energia e seu conhecimento. É também um romance
sobre a solidão. Nesse sentido, o que a leitura desse romance nos diz sobre o menino do
poema? Será que ele se sentia tão só quando Robinson Crusoé, náufrago num mundo
desconhecido? É interessante lembrar que Drummond realmente leu o romance quando
criança – mas não o romance original, e sim uma adaptação em quadrinhos que saía em
capítulos na revista infantil O Tico‐tico, muito famosa no começo do século XX.
Não é sensacional saber que um dos maiores poetas do século XX lia quadrinhos
quando criança? Essa passagem da biografia de Drummond nos faz pensar que
adaptações de clássicos, sejam em forma de livro, sejam em quadrinhos ou jogos
eletrônicos podem, sim, ajudar a formar o repertório de leitura de crianças e jovens.
Mas voltemos ao poema. Conversem bastante sobre a imagem do menino lendo
solitário, entre mangueiras, essa longa história de Robinson Crusoé. Como os alunos
veem esse menino? Como o caracterizam? Sentem familiaridade com ele? Escutem os
sons e o ritmo dos versos: “Eu soZInho meNIno entre manGUEiras/ Lia a hisTÓria de
RObinson CrusoÉ./ComPRIda hisTÓria que NÃo acaBAva MAis.”. O que os sons nos
dizem sobre o menino? Reparem que, no último verso, surge novamente o som “AVA”,
47
presente no primeiro verso. Esse som nos remete à figura do pai, que de alguma
maneira se faz presente na figura do menino.
Observemos a segunda estrofe, que se espraia maior do que a primeira. Agora, o
que surge não é uma imagem, mas uma voz: “No meio‐dia branco de luz uma voz que
aprendeu/ a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu/ chamava para o café/
café preto que nem a preta velha/ café gostoso/ café bom”. Que imagens se projetaram
nas mentes de seus alunos, quando eles leram e ouviram esses versos? Notem que é a
voz da preta velha que irrompe no poema, sem que haja uma descrição de sua figura.
Como podemos entender a presença dessa pessoa, cuja voz se faz presente na vida do
menino?
Observem que a voz da mulher PRETA surge no meio‐dia BRANCO de luz. Como
podemos ler esse contraste? O que ele nos diz a respeito da história brasileira? À luz do
dia branco se contrapõe o escuro da senzala, onde a voz aprendeu a ninar. Peça aos
alunos para imaginarem a fazenda onde está o menino, o pai montado a cavalo, a mãe
costurando, a preta que chama para o café – e que, portanto, é empregada (ou escrava).
Em versos curtos e brilhantes, o eu‐lírico concentra imagens candentes da história do
país feita de senhores e escravos, revelando‐as em flashes rápidos que nos contam
muito sobre nossa sociedade.
Percebam que, além do tempo rítmico dos versos, há outros tempos presentes
no poema. Há o tempo do passado histórico e social compartilhado por todos nós,
brasileiros, e sugerido pela empregada negra cuja voz aprendeu a ninar na senzala; pelas
figuras do pai e da mãe em atividades tradicionalmente ligadas ao sexo de cada um. Há
o tempo das imagens que aparecem no poema, relacionadas à infância do menino e à
memória do eu‐lírico. Os tempos verbais estão, em sua maioria, no Pretérito Imperfeito
do Indicativo, o que indica ações que se repetiram por um período no passado, cujos
limites temporais são indefinidos para nós. Não sabemos quando elas acabaram. Não
sabemos se elas acabaram; pode ser que os limites sejam indefinidos também para o
eu‐lírico, que revive as cenas ao rememorá‐las, trazendo‐as para o presente.
É possível ler no poema, ainda um outro tempo, o tempo pessoal do poeta,
escritor modernista que construiu o poema “Infância” com linguagem bastante
inovadora para sua época. Explore, com seus alunos, essas diferentes temporalidades
existentes no poema. Elas estão concentradas nos versos e se ampliam, desdobram‐se,
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na medida em que lemos atentamente os versos. Como na vida – e poesia é sempre vida
pulsante – o passado das pessoas se entrelaça com o passado do país; para
expressarmos nossas experiências, nós nos comunicamos usando a linguagem de nosso
tempo, acumulada por meio de nossas leituras e experiências.
Analisem a repetição da palavra “café” e os diferentes adjetivos que a
acompanham: “Café preto que nem a preta velha/ café gostoso/ café bom”. A primeira
qualidade do café é a cor, semelhante à da preta velha. A segunda qualidade é a
gostosura, a terceira é o fato de ser algo bom. Podemos pensar que, se o café e mulher
são pretos, ambos também são gostosos e bons. Quantas camadas de sentido esse
raciocínio permite entrever! O adjetivo “gostoso”, quando transferido para a mulher,
adquire uma carga de erotismo que remete a tantas histórias de escravas desejadas por
seus senhores. Já o adjetivo “bom” remete a sentidos ambíguos que se complementam:
negros são bons, na acepção de bondosos, e são bons como trabalhadores, ou como
escravos.
Essa sobreposição de sentidos que se complementam permite uma rica leitura
da nossa história; permite perceber, por exemplo, as diferentes maneiras como pessoas
negras foram e são vistas em nossa sociedade. O fato de a preta velha ter aprendido a
ninar na senzala é doloroso; a quem ela ninava? A seus filhos? Eles viviam como
escravos? Se ela não esqueceu o canto, a quem ninou depois? Aos filhos dos senhores?
O que essa persistência amorosa do ninar nos diz sobre a preta velha? Se sua voz é,
sobretudo, uma voz que nina, o que podemos pensar dela?
Para saber um pouco mais sobre a história das amas negras no Brasil, leia a
sequência didática baseada em Reinações de Narizinho.
Enquanto a voz da preta velha é caracterizada como a de alguém que nina, como
é caracterizada a voz da mãe do menino? Vejamos nos próximos versos: “Minha mãe
ficava sentada cosendo/ olhando para mim: ‐ Psiu... não acorde o menino./ Para o berço
onde pousou um mosquito./ E dava um suspiro... que fundo!”. O que a turma acha da
voz da mãe, que pedia ao menino para se calar e que suspirava? Por que o suspiro da
mãe seria fundo? A mãe seria triste? Por quê?
É por meio dos “porquês” que vocês irão descobrindo os muitos sentidos
encerrados no texto, alguns bem desafiadores: a preta velha ninava, enquanto a mãe
suspirava, talvez de tristeza; não deveria ser o contrário? Por que as duas mulheres, a
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negra e a branca, a ama e a mãe, são retratadas numa mesma estrofe, a mais longa do
poema? O que isso pode nos dizer sobre a presença dessas mulheres na vida do
menino? Uma servia o café, alimento apreciado, outra protegia o sono do filho menor.
Como essas atividades podem ser compreendidas? Ambas nutriam e cuidavam das
crianças?
Os últimos versos são de grande beleza. A terceira estrofe apresenta novamente
uma imagem do pai: “Lá longe meu pai campeava/ no mato sem fim da fazenda”. Por
que essas imagens estão isoladas em uma curta estrofe, separada daquela que tematiza
a mãe e a preta velha? Como os alunos entendem o “lá longe”? “Longe” pode ter vários
sentidos denotativos, aqueles encontrados no dicionário. Pode ser um advérbio que
marca a distância espacial separando o pai e o menino; pode ser um adjetivo,
significando que o pai estava distante do menino naqueles momentos; pode ainda ser
um substantivo, marcando o “longe” como um lugar vago onde se encontrava o pai.
Se os sentidos denotativos são vários, mais variados ainda são os conotativos.
Será que essa distância, esse “longe”, eram somente geográficos, ou eram também
emocionais? O pai não é retratado na fazenda, cuidando do menino. Essa ausência seria
somente física? Seria breve? O que pensam os alunos? Notem que a palavra
“campeava” apresenta o mesmo som “AVA” presente no primeiro verso do poema, em
que o pai surge em cena. Agora, na mesma palavra encontramos os ecos de outras duas,
presentes no primeiro verso: CAMPo e cAVAlo. O pai está ligado ao campo e ao cavalo
por palavras, sons e imagens. Que enorme magnetismo existe entre essas palavras, não
é mesmo?
E quanto ao “mato sem fim” da fazenda, como pode ser lido? Pode ser que
alguns alunos imaginem que as terras do pai eram tantas que seus limites pareciam
infinitos. Também pode ser que, para alguns, a ideia de mato sem fim esteja relacionada
à infância do menino. Afinal, tudo parece muito grande para as crianças. Pode ser que o
menino do poema achasse uma fazenda pequena infinita, porque era enorme para ele.
Chegamos aos versos que fecham o poema. Como eles foram compreendidos
pelos alunos? O eu‐lírico que se expressa nesses versos finais pode ser entendido como
o menino, ou o adulto que lembra sua infância? É possível pensarmos que o eu‐lírico lê
sua infância, com olhos de adulto, e ela lhe parece mais bonita do que o romance do
marinheiro náufrago. Mas, por que seria mais bonita? Qual a sua leitura desse final? E a
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de seus alunos? Será que eles já pensaram na história pessoal deles como um romance,
e um romance mais bonito do que clássicos da literatura?
Para terminar, chame a atenção deles para uma técnica de construção, muito
usada por Drummond, que o crítico Italo Morriconi chama de “prismática”. É como se o
poema fosse um prisma constituído de várias faces, cada uma delas apresentando um
flash, uma cena, um foco. Em uma das faces do prisma “Infância”, vemos o pai
campeando no mato; em outra, a mãe cosendo; em outra, o menino lendo; em outra, o
irmão dormindo; em outra, a preta velha chamando para o café; em outra, o café
gostoso, e assim por diante. Ao observarmos o poema‐prisma, nossos olhos percorrem
as diferentes faces, às vezes lentamente, às vezes rapidamente, às vezes examinando
uma em especial, às vezes olhando todas ao mesmo tempo.
Os efeitos desse tipo de montagem são maravilhosos, porque as cenas ora se
misturam, ora se sobrepõem, ora aparecem nítidas, como que iluminadas pela luz
branca daquele meio‐dia mencionado no poema. Toda a construção imagética,
significativa e sonora do poema é prismática, no sentido de que nos permite ver a
infância do menino por meio de fragmentos, os quais estão íntima e belamente unidos
em um objeto único, o poema.
Conversem o quanto puderem sobre as múltiplas leituras sugeridas por esse
poema tão bonito.
Desdobramentos para outros momentos
Incentive os alunos a ler outros poemas de Drummond, em outros espaços da
escola, ou em casa, no ônibus, no pátio da escola. A leitura de poesia, que tanto nos
ensina sobre nós mesmos, sobre o mundo, sobre a linguagem, pode ser feita a qualquer
hora, em praticamente qualquer lugar.
Leiam poemas drummondianos uns para os outros; comentem as diferentes
leituras, troquem ideias sobre aspectos formais e conteudísticos dos textos. Vocês
podem organizar uma lista de poemas preferidos e afixar na sala. Também podem
gravar leituras de vários poemas, a fim de que eles sejam ouvidos por outras pessoas. A
criação de “audiolivros” com poemas de Drummond e de outros autores será um bom
exercício para os alunos e uma boa doação para a biblioteca da escola.
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Caso deseje realizar uma atividade escrita sobre o poema, solicite aos alunos que
eles façam uma redação apresentando sua leitura particular de “Infância”. Eles podem
usar, como ponto de partida, as anotações feitas durante a atividade. Oriente‐os a
organizar o texto de maneira clara e bem estruturada, a apresentar uma leitura apoiada
nos sons, nas imagens e nos significados das palavras de cada verso, a avaliar o poema –
por que não? Assim, você acompanha o desenvolvimento da compreensão leitora de
textos literários e o desenvolvimento da capacidade de expressar por escrito essa
compreensão do poema lido.
As redações, depois de revisadas e reescritas, podem ser lidas para os colegas,
em alguma ocasião especial. Quem sabe não é o começo de uma série de saraus, em
que poemas sejam lidos e debatidos por seus alunos, com muita alegria, muito respeito,
muito prazer?
Bibliografia
Alguns livros de Carlos Drummond de Andrade:
ANDRADE, Carlos Drummond de. Alguma poesia. São Paulo: Record, 2002.
_____. Antologia poética. São Paulo: Record, 2001.
O acervo PNBE de 1998 contém uma antologia poética de Drummond.
_____. Claro enigma. São Paulo: Record, 2004.
Livros sobre poesia:
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas; FFLCH/USP,
1996.
INFANTES, José de; NICOLA, Ulisses. Como ler poesia. São Paulo: Scipione, 1988.
MORRICONI, Italo. Como e por que ler a poesia brasileira do século XX. São Paulo: 2002.
52
Carlos Drummond de Andrade em sites e livro:
FIGUEIREDO, Priscila. Análise do poema “Campo de flores”, de Carlos Drummond de
Andrade. In: Ponto com poesia. Disponível em: <
http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/poesias/carlosdrummond_campodefl
ores.htm > Acesso em 05 nov. 2009.
PROJETO RELEITURAS. Disponível em: < http://www.releituras.com/drummond_bio.asp
Acesso em05 nov. 2009.
SANTIAGO, Silviano. Introdução è leitura dos poemas de Carlos Drummond de Andrade.
In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
2002.
SITE OFICIAL de Carlos Drummond de Andrade. Disponível em:
< http://www.carlosdrummonddeandrade.com.br/>Acesso em 05 nov. 2009.
53
As formigas, de Lygia Fagundes Telles
A sequência didática apresentada neste capítulo é indicada para turmas do oitavo e do nono anos do Ensino Fundamental II. O objetivo das diferentes etapas é auxiliar você, professor, no preparo e na realização de várias atividades que tenham como foco os contos de Histórias de Mistério, de Lygia Fagundes Telles, a começar por “As formigas”. O quadro abaixo apresenta de modo sintético, as etapas da sequência didática e a ordem em que devem ser realizadas.
Etapas Atividades
1 Preparando a leitura Atividades realizadas apenas pelo professor.
• Obter informações sobre o gênero conto: sua história e suas características;
• ler o conto “As formigas”; • valer‐se de diretrizes para planejar a
leitura do conto em sala de aula. 2 Aquecendo para a leitura
Atividades realizadas por professor e alunos.
• organizar a sala ; • explorar a materialidade de Histórias de
mistério; • conhecer o repertório da turma sobre
histórias de mistério; • incentivar os alunos a fazer antecipações
sobre o conto “As formigas”.
3 Saboreando o texto Atividade realizada apenas pelo professor.
• Ler o conto “As formigas” para a turma, fazendo interrupções, ou apresentar a eles gravação de leitura feita por Lygia Fagundes Telles.
4 Entrelaçando leituras coletivas Atividades realizadas por professor e alunos.
• Abrir espaço para os alunos comentarem livremente o conto lido;
• chamar a atenção para determinadas passagens do texto, como a caracterização das personagens e a descrição do cenário;
• explorar algumas passagens a fim de compreender melhor um tipo de estrutura comum no gênero conto;
• perceber a alternância de situações de tensão e situações de relaxamento;
• examinar os momentos de conflito, de clímax e de desfecho do conto;
• perceber a maneira como o conto é construído com concisão;
• observar a densidade obtida por meio da construção da narrativa.
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5 Desdobramentos para outros momentos Atividades realizadas por professor e alunos.
• Solicitar atividade escrita, baseada na leitura realizada em sala;
• orientar a atividade escrita e a revisão do texto;
• estimular a turma a compartilhar os textos, por meio de leituras e de exposições;
• estimular os alunos a ler outros contos do livro, em sala ou em casa;
• indicar outros livros de contos.
Preparando a Leitura
Você e seus alunos lerão os contos da coletânea Histórias de mistério, de Lygia
Fagundes Telles. Para começar a preparar a aula, vale a pena relembrar o que é um
conto literário. Em Português, a palavra conto pode se referir tanto a uma narrativa da
tradição oral como a um texto literário, ambos fictícios. É por isso que o termo lembra‐
nos contos de fadas, como Cinderela, ou títulos como Contos da meia‐noite, de
Machado de Assis.
Entre esses dois tipos de narrativa há muitas diferenças. Comecemos por
caracterizar os contos de tradição oral.
Não é possível afirmar com certeza quando o homem começou a contar histórias.
Mas podemos especular que os primeiros falantes, quando se reuniam, narravam fatos,
reais ou imaginários. O pouco que sabemos sobre as criações de nossos ancestrais pré‐
históricos deve‐se a achados como ferramentas ou pinturas em paredes de pedra, como
as da caverna de Altamira, na Espanha, que podem ter sido feitas há cerca de 18 mil
anos. Talvez, o ato de narrar seja ainda mais antigo do que essas pinturas, como imagina
o escritor cubano Guilhermo Cabrera Infante:
Antes até que aquele anônimo artista de Altamira pintasse seus minuciosos murais, deve ter existido um autor anônimo na região que contasse contos para seus companheiros de caverna sentados em volta de uma fogueira. O homem, como sabemos, é o único animal que faz fogo. O contista é o único ser humano que faz contos. Esses contos seriam, por exemplo, narrações de um dia de caça perdido no encalço de um cervo branco com um chifre na testa. Os contos não perduraram nas paredes da
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caverna, mas não se perderam: foram reencontrados, contados, na memória coletiva.11
Muitos contos que compartilhamos hoje têm origem remotíssima. É o caso de Ali
Babá e os quarenta ladrões e Simbad, o marujo, duas narrativas que fazem parte das Mil
e uma noites, coleção de contos orientais que circulavam desde primórdios do século X
na Pérsia (atual Irã), de onde se expandiram para o Egito, no século XII, e para os países
europeus, no século XVIII. Também são muito antigos os contos de fadas, como Branca
de Neve e João e Maria, entre outros narrados em vários países da Europa feudal.
Aos poucos, esses contos da tradição oral foram compilados e escritos,
principalmente após o surgimento da imprensa, no século XV. Histórias como Cinderela,
Branca de Neve e O gato de botas foram registradas pelo francês Charles Perrault no
final do século XVIII, no livro Histórias ou contos de tempos passados, cujo subtítulo era
Contos da mamãe gansa. Note que Perrault não era o autor dessas histórias, embora
ele as tenha modificado um pouco ao registrá‐las em livro. Da mesma forma, os irmãos
Grimm não são os autores de A bela adormecida e de outros contos que recolheram na
Alemanha, no século XIX.
Esses contos são anônimos; sua origem se perde no tempo. Eles foram passados
de boca em boca, de geração para geração, durante séculos, antes de irem parar nas
páginas de livros e nas telas do cinema e da televisão. Ainda hoje, pessoas se reúnem
para ouvir essas e outras histórias ancestrais, geralmente narradas por alguém que sabe
prender a atenção de seu público. Os contadores de histórias costumam respeitar o que
podemos chamar de estrutura do conto, ainda que mudem alguns detalhes da história.
Assim, nas várias versões de Cinderela, a moça sempre perde um sapatinho, que ora é
de ouro, ora é de vidro, ora é de cristal...
Os contos literários, por sua vez, têm autoria bem definida, como aqueles
reunidos em Histórias de mistério, todos criados pela escritora paulista Lygia Fagundes
Telles. São contos feitos para serem lidos; se tentamos recontá‐los oralmente, trocando
palavras, cortando passagens, modificando trechos, já não serão os mesmos contos. Nos
textos literários, não importa apenas o que é narrado, mas como se narra. O modo
11 INFANTE, Guilhermo Cabrera. Uma história do conto. In: Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 30/12/2001. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs3012200107.htm> Acesso em 10 out. 2009.
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como um escritor constrói cenário e personagens, a maneira como escolhe e organiza as
palavras que compõem o texto, o jeito como descreve determinada cena são muito
importantes.
De modo geral, os contos literários como os conhecemos hoje, apresentam um
formato que se firmou no século XIX, por meio dos trabalhos de escritores vistos na
atualidade como mestres do gênero, como o norte‐americano Edgard Allan Poe (1809‐
1849) e o francês Guy de Maupassant (1850‐1893). No Brasil, Machado de Assis (1839‐
1908), talvez o maior contista daquele século, criou contos modelares.
Talvez você esteja se perguntando, a essa altura, quais seriam as características
principais do gênero conto, especialmente aquele conto literário produzido para
leitores, como os de Lygia. A principal característica do conto provavelmente é a
brevidade. Costumamos reconhecer um conto por seu tamanho, que costuma variar
bastante, mas geralmente é menor do que o de um romance. Grandes contistas como
Machado de Assis, por exemplo, construíram textos extremamente concisos, reduzindo
a narrativa a elementos essenciais. Assim, não há muitas personagens em seus contos,
nem muitos cenários onde transcorre a ação. Nesse sentido, a crítica Luzia de Maria R.
Reis afirma:
É inegável, por exemplo, que um escritor, ao escrever um conto, parte da noção de limite, sabendo que, se não tem o fator tempo jogando no seu time, deverá brigar pela densidade. Se não conta com o livre esparramar‐se no sentido horizontal, se busca construir com a linguagem quase que o efeito de um flash, conduz a narrativa de modo a que o princípio da economia opere a máxima profundidade, alcançando a dimensão vertical.12
Outra característica do conto seria, portanto, a densidade. Um conto excelente
seria aquele que concentra, em uma narrativa breve e concisa, qualidades como riqueza
de conteúdo e profundidade psicológica. O contista procura explorar ao máximo uma
situação única, um episódio fugaz, de modo a produzir sentidos que podem causar no
leitor “algo como uma explosão, levando as comportas mentais a expandirem‐se,
12 REIS, 1992, p.23-24.
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projetando a sensibilidade e a inteligência a dimensões que ultrapassem infinitamente o
espaço e o tempo da leitura”13.
O princípio de economia levou, no século XX, ao surgimento de minicontos,
compostos por vezes de algumas poucas palavras. É o caso do famoso miniconto do
escritor guatemalteco Augusto Monterroso Bonilla (1921‐2003), escrito com apenas
trinta e sete letras:
“Quando acordou o dinossauro ainda estava lá.”
Caso você tenha se espantado com a brevidade deste miniconto, saiba que sua
densidade já “expandiu as comportas mentais” de leitores do mundo todo, críticos ou
não, que descobriram camadas e mais camadas de sentidos, concentradas em suas
poucas palavras. Se quiser conhecer melhor as inúmeras formas assumidas pelo conto, a
partir do século XX, principalmente, consulte a bibliografia ao final desta sequência
didática. Você verá que a problemática em torno da definição do gênero conto é tanta
que levou Mario de Andrade (1893‐1945) a afirmar, em 1938: “Em verdade, será sempre
conto aquilo que seu autor batizou com o nome de conto”14.
Nós, leitores, profissionais ou leigos, tentamos sempre encontrar características
comuns a determinados textos para melhor entendê‐los, classificá‐los, estudá‐los.
Ocorre que contistas, romancistas, poetas – artistas, de modo geral – não criam
seguindo regras previstas nos manuais de literatura. Pelo contrário: a partir do início do
século XX, quando as vanguardas literárias começaram a se espalhar pelo mundo, os
artistas passaram a romper normas de criação estética, brincar com os limites dos
gêneros, fazer experimentações de todo tipo com textos.
Mas você não precisa levar para as aulas, polêmicas tão complexas como as que
envolvem a definição do gênero conto – embora seja muito importante que você as
conheça e as entenda. Seus alunos ainda estão construindo, com você, um repertório,
uma “bagagem literária”. Mais adiante, no Ensino Médio, eles entrarão em contato com
tópicos como as inovações literárias provocadas pelo Modernismo e por outros “ismos”
13 Idem, ibidem. 14 Apud REIS, 1992, p.18.
58
que mudaram a forma e o conteúdo de contos, romances, poemas, crônicas e outros
gêneros literários.
Por enquanto, leia o conto “As formigas” e reflita sobre o modo como é
construído. Os contos de Lygia Fagundes Telles presentes na coletânea que você tem em
mãos apresentam uma estrutura semelhante à de grandes clássicos do gênero, e que se
organiza da seguinte maneira:
1. Há uma situação inicial, em que o narrador expõe as personagens, o cenário
onde a ação vai ocorrer, o tema do conto;
2. Surge um conflito, um problema que vai se apresentando gradativamente.
3. Ocorre o clímax, o momento em que a tensão provocada pelo conflito é
elevada ao máximo de suspense.
4. Chega‐se ao desfecho, que apresenta, ou tenta apresentar, uma solução para
o conflito.
Você pode usar a tabela a seguir como ponto de partida para suas observações:
CATEGORIA ITENS RELEVANTES ANOTAÇÕES
Narrador O texto é narrado em primeira pessoa, ou em terceira? O narrador é personagem, faz parte da ação? Caso a narrativa seja em terceira pessoa, o narrador é onisciente, isto é, conhece
os sentimentos interiores das personagens?
Personagens
Quantas são as personagens? Quem é a personagem principal, a protagonista? Há mais de um
protagonista?
Espaço da ação
(= cenário)
Onde se passa a ação? Quais as características do cenário?
Tempo da ação Em que tempo se passa a história? Quanto tempo dura a ação?
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Linguagem Que tipo de linguagem é usada? Há palavras ou expressões que você
desconhece? Há figuras de linguagem? Há termos típicos de
determinada região?
Conflito Qual é o acontecimento que precipita os principais lances da história?
Clímax Existe um clímax? A partir de que trecho ele pode ser identificado?
Desfecho Há um desfecho? Existe uma solução para o conflito?
Essa tabela deve ser usada como um guia por você, a fim de sistematizar o registro
de suas leituras de contos. Se resolver utilizá‐la, tome cuidado para que ela não se
transforme em fonte de exercícios enfadonhos, “assassinos” da fruição do texto. Você
pode abordar os mesmos elementos de outras formas com seus alunos – por exemplo,
por meio de um bate‐papo informal, de uma construção coletiva de leituras sobre cada
elemento, de algum tipo de jogo sem “certos e errados” inibidores.
Aquecendo para a leitura
Antes de pedir a seus alunos que leiam o texto, examine com eles a
materialidade do livro. Pergunte à turma o que são histórias de mistério, tenham elas a
forma de conto, romance, filme, seriado de televisão...
Procure fazer uma lista, com os alunos, dos elementos que existem nas histórias
de mistério. Anote o que eles disserem se possível em um cartaz, que poderá ficar
exposto ao longo das aulas em que vocês explorarem os contos de Lygia.
Será que uma história de mistério é, necessariamente, uma história de terror?
Para os alunos, há diferença entre esses dois tipos de história? Anote as respostas, para
retomá‐las após a leitura.
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Mostre à classe a ilustração que toma as primeiras páginas, no início do conto.
Examinem a figura: quem são as pessoas que nela aparecem? São jovens ou velhas?
Será que entrarão na casa? O que a aparência da casa tem de especial? E quanto às
formigas – qual será o papel delas na história? Não se surpreenda se alguns alunos,
influenciados por filmes de terror, imaginarem que a história trata de formigas
“assassinas” que devoram pessoas...
Reserve cerca de 15 minutos para essa conversa inicial. Em seguida, leia o conto
para eles.
Saboreando o Texto
A leitura de “As formigas” pode ser feita aos poucos. A princípio, você pode ler,
por exemplo, até o momento em que a prima da narradora pergunta: “Um caixote de
ossos?”. Faça uma pausa e pergunte aos alunos o que eles acham desse elemento
surpreendente, o caixote de ossos. Observe que não se trata de um caixão, mas de um
caixote. Permita que a turma faça predições de leitura, imaginando qual a razão de o
inquilino anterior ter deixado um caixote de ossos na pensão, qual o papel que esse
caixote terá na história, entre outras possibilidades.
Continue a leitura e pare novamente, desta vez no trecho em que a narradora
pergunta: “De onde vem esse cheiro?”. Estimule os alunos a opinarem sobre os
elementos da narrativa já lidos – o fato de os ossos serem de um anão, por exemplo – e
peça a eles para antecipar o que virá na sequência. Volte a ler o conto e faça nova pausa
no trecho em que a prima da narradora afirma: “Muito esquisito mesmo.
Esquisitíssimo.”. O que os alunos acham que está havendo? O que teria acontecido com
as formigas mortas? Conversem sobre os estranhos acontecimentos vividos pelas
personagens; ouça‐os fazerem mais predições.
Leia mais um trecho do conto, até o momento em que a narradora confessa à
prima “Estou com medo”. Os alunos também estariam? O que eles acham que vai
acontecer? Como será que o conto vai acabar? Retome a leitura, desta vez até o fim da
história. Na sequência, abra espaço para as explorações textuais previstas na próxima
etapa.
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Não se esqueça de fazer uma leitura emocionante, expressando com diferentes
entonações de voz, os momentos de suspense, de medo, de expectativa... Ensaie em
casa, antes de fazer a leitura para seus alunos. Que tal ler o conto para seus familiares?
Eles podem gostar dessa atividade diferente, que era muito realizada no Brasil antes da
chegada do rádio e da televisão. E você pode observar como eles reagem ao conto e a
seu modo de ler!
Outra possibilidade é reproduzir na sala, gravação em que a própria Lygia
Fagundes Telles lê o conto “As formigas”. A gravação pode ser ouvida no site do
Instituto Moreira Salles, cujo endereço você encontra na Bibliografia.
Entrelaçando leituras coletivas
Investigue com os alunos algumas particularidades do texto que são comuns ao
gênero conto. A narração é feita em primeira pessoa, e a narradora é também
protagonista da história. Ela e a prima – cujos nomes não conhecemos – são as
personagens principais do conto. A situação inicial é a chegada das duas à pensão,
quando anoitece. Observe que a narradora não informa nada sobre as vidas das
personagens antes desta situação inicial, assim como não revela o que aconteceu com
elas após o desfecho da história.
Esse tipo de recorte é frequente em contos, nos quais comumente se explora
uma situação única, vivida por poucas personagens, durante um determinado período
temporal. Em um romance, ou em uma novela, provavelmente seriam narrados fatos
sobre a vida pregressa das personagens, e mais detalhes seriam dados a respeito do que
aconteceu com elas após deixarem o sobrado. Podemos imaginar que romances e
novelas são mais parecidos com filmes, enquanto contos lembram fotografias: são como
instantâneos de um momento muito específico.
A casa descrita pela narradora lembra um rosto humano: tem janelas “iguais a
olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada”. Note como esses pouquíssimos
elementos já são suficientes para projetar na mente dos leitores toda uma atmosfera de
mistério. Afinal, a imagem de um olho furado por uma pedra é das mais perturbadoras!
Como os alunos imaginaram esse sobrado? Ele lembra casas de filmes de terror? A
ilustração influenciou o modo como eles pensam a respeito da pensão?
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A narradora afirma que o sobrado é “sinistro” e, no parágrafo seguinte,
pergunta: “Tínhamos outra escolha?”. Ela parece reproduzir a pergunta que nós,
leitores, faríamos: mas vocês não têm outra escolha? Não percebem que coisas horríveis
podem acontecer nesse sobrado? Como resposta a um leitor assim, a narradora
justifica, também com poucos elementos, a precariedade da vida que ela e a prima
levavam. Não, elas não tinham escolha. Talvez, alguns alunos reconheçam, nessa
situação inicial, alguns aspectos que, não raro, aparecem em filmes sobre casas
assombradas. Elas parecem sinistras aos personagens logo de cara, mas eles não têm
escolha (porque há uma tempestade, porque são pobres, ou algo parecido) e precisam
entrar na casa.
A descrição da dona da pensão merece atenção. Ela era “uma velha balofa, de
peruca mais negra do que a asa da graúna”. Essa descrição faz leitores mais experientes
lembrarem, imediatamente, de outra descrição: a de Iracema, a heroína do romance
homônimo de José de Alencar. Logo no início do romance, o narrador descreve a jovem
índia da seguinte maneira: “Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos
mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira”. Enquanto a
beleza esplêndida de Iracema era natural, a feiura da dona da pensão é artificial, pois
seus cabelos são falsos. A intertextualidade, nessa passagem, provoca vários efeitos. A
lembrança da descrição romântica de Alencar é irônica e reforça a má aparência da
proprietária, pois a contrasta com a beleza da índia.
É quase certo que seus alunos não percebam o diálogo do conto com o romance
Iracema, que talvez leiam no futuro. Não há problema; o importante é que eles
entendam o que é graúna, nome dado a pássaros de coloração negra. Você pode
explicar‐lhes brevemente a origem da comparação dos cabelos falsos com a asa da
graúna. É uma maneira de ensinar à turma que textos literários dialogam entre si e que,
quanto mais lemos, mais ricas ficam nossas leituras, porque nos tornamos mais capazes
de perceber essa intertextualidade. É possível que eles leiam Iracema no futuro e se
lembrem do conto “As formigas”...
A descrição da dona da pensão também é concisa. Vejam que nenhuma
personagem é nomeada: nem as protagonistas, nem a velha senhora, nem o anão, ou o
antigo inquilino. Vamos conhecendo a intimidade das personagens aos poucos, por
meio dos comportamentos assumidos por elas, das descrições da narradora, dos
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diálogos. Vale a pena vocês se demorarem no exame de alguns substantivos, adjetivos,
verbos escolhidos pela narradora. Por exemplo: não sabemos como são os olhos da
proprietária, ou traços de seu rosto. Sabemos apenas que é gorda, que vestia um
desbotado pijama de seda japonesa e que “tinha as unhas aduncas recobertas por uma
crosta de esmalte vermelho‐escuro descascado nas pontas encardidas”.
Portanto, as únicas informações sobre o físico da mulher referem‐se à sua
obesidade, à peruca que usa e às suas unhas. Mas quanto, esses poucos elementos nos
revelam sobre a mulher! Unhas aduncas são unhas em forma de gancho, recurvadas.
Peça aos alunos que imaginem essas unhas grandes e curvas, com pontas sujas,
cobertas de tinta vermelha escura. Que sensações eles têm? O vermelho lembra algo –
sangue, talvez? Unhas curvas lembram outras personagens de histórias de terror? Como
eles imaginam a personalidade e a vida dessa mulher, a partir dos poucos dados a
respeito dela? Façam o mesmo tipo de exame demorado dos elementos de outras
descrições, como as da saleta da pensão e do quarto das moças.
Falando nelas, será que eles conseguem encontrar informações sobre a
aparência das jovens? Eles podem não perceber a princípio, mas a aparência delas não é
descrita. Vamos, aos poucos, entrando no íntimo das moças – conhecendo seus medos,
seus sonhos, suas reações aos acontecimentos estranhos que ocorrem na casa. Mas não
sabemos como é o rosto de cada uma, qual a cor de seus olhos, que altura elas têm. O
que a turma pensa dessa ausência de informações sobre a aparência das protagonistas?
Vamos, agora, estudar a estrutura do conto, o modo como ele se desenvolve.
Logo após a situação inicial ser definida, ocorre um fato que desencadeia o conflito da
história. Trata‐se da descoberta do caixote de ossos, que seriam de um anão. Os ossos
teriam pertencido ao inquilino anterior, estudante de medicina como uma das
protagonistas. Nada sabemos desse homem: por que tinha um caixote com ossos, por
que ossos de um anão, por que foi embora da pensão, por que deixou para trás o
caixote. Solicite aos alunos que imaginem a história desse homem, o motivo de ele ter
abandonado os ossos na pensão da qual partiu. Permita que eles troquem ideias sobre
essa história misteriosa.
O escritor argentino Ricardo Piglia tem uma teoria muito interessante a respeito
de contos. Segundo ele, “um conto sempre conta duas histórias”. Há uma história visível
que esconde uma história secreta, “narrada de um modo elíptico e fragmentário”. Para
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o escritor, “quando o final da história secreta aparece na superfície”15, produz‐se um
efeito surpresa, característico do gênero. Você pode usar essa tese para investigar, com
seus alunos, como uma história secreta – a dos ossos do anão, misteriosamente
montados por estranhíssimas formigas – começa a se desenhar em segundo plano,
enquanto a história visível – a das duas moças na pensão – é desenvolvida em primeiro
plano. Para fazer esse tipo de investigação, não é necessário apresentar Piglia para sua
turma, embora você possa fazê‐lo, da maneira mais simples possível.
Percebam como a história misteriosa dos ossos vai ganhando espaço na
narrativa, até que, no clímax do conto, ela surge com força na superfície da história.
Lygia Fagundes Telles conduz com maestria o desenvolvimento das duas histórias,
entremeando os momentos de tensão produzidos pelo mistério dos ossos com
momentos de relaxamento, produzidos pelo desenrolar da vida cotidiana das jovens.
Assim, logo após o momento de tensão causado pela descoberta do caixote de ossos do
anão, há um momento divertido, em que a narradora se concentra em descrever como
as moças riem ao ouvir o som dos chinelos da proprietária na escada, como procuram
embelezar o quarto, que fica mais alegre com os objetos trazidos por elas.
Essa alternância de momentos de tensão com momentos de relaxamento é
muito comum em histórias de mistério, terror, ou ação, sejam elas contos, romances,
filmes ou peças de teatro. Seria praticamente insuportável, para leitores ou
espectadores, acompanhar uma história feita apenas de momentos tensos. Por essa
razão, escritores e roteiristas costumam entremear momentos de descontração aos
momentos de “alta voltagem” produzidos por muita ação, muito suspense, sustos em
série etc. Os alunos vão se divertir, nas próximas vezes em que assistirem a um filme de
ação ou lerem uma história de mistério, mapeando os momentos em que a tensão é
aliviada por cenas de romance, de risos, de descanso.
O clímax do conto é extremamente tenso: trata‐se do momento em que a
história secreta aparece com força na superfície do conto, o que ocorre na cena em que
a prima da narradora relata que as formigas estão montando o esqueleto. Faltam
apenas o fêmur e os ossos da mão esquerda. O leitor descobre, então, porque o caixote
foi abandonado pelo antigo dono; talvez, o estudante de medicina também tenha fugido
ao constatar a estranha operação realizada pelas formigas. Acompanhamos nervosos, a 15 PIGLIA, 1991, p. 22.
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decisão das moças de abandonar a pensão antes que o esqueleto se complete: o que
poderá acontecer depois disso?
Não sabemos. O desfecho do conto traz a solução do conflito por meio da fuga
das jovens, que conseguem escapar da casa em segurança. Salvam‐se, quem sabe, do
horror que permanece na casa, envolto em mistério. Não sabem, e também não
sabemos, se o último som ouvido foi um miado ou um grito. As últimas linhas do conto
levam‐nos a imaginar novamente a casa, agora ao amanhecer. Novamente, o sobrado é
comparado a um corpo vivo; as janelas são como olhos. Apenas um “via” as moças; o
outro – talvez o do quarto delas – permanecia escuro. A casa, afinal, parece ter
participação no mistério dos ossos e das formigas que abriga.
É possível que vocês levem uma aula inteira analisando as personagens, o
cenário, a estrutura do conto, o modo como ele é desenvolvido. Será certamente uma
hora muito rica, em que diferentes leituras dos elementos da história surgirão e se
entrelaçarão, formando uma rica leitura coletiva.
Desdobramentos para outros momentos
A história do esqueleto do anão, que fantásticas formigas montam toda noite,
permanece envolta em mistério ao término da leitura. Que tal imaginar os elementos
que faltam a esse quebra‐cabeça, em uma atividade escrita? Peça aos alunos que
escrevam uma narrativa em que essa estranhíssima história seja desvendada. Vocês
podem fazer um bate‐papo inicial, pensando coletivamente em respostas para as
seguintes perguntas:
• Quem era o anão? Por que seus ossos estavam com um estudante de
medicina?
• Quem era esse estudante? Por que ele havia fugido da pensão, deixando o
caixote de ossos para trás?
• De onde vinha o misterioso cheiro sentido pelas jovens?
• Haveria mesmo “alguém do ramo” montando o esqueleto, com a ajuda
das formigas?
• Por que as formigas desapareciam durante o dia?
• O que aconteceria quando o esqueleto estivesse montado?
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• Será que ocorreria algo às moças se elas permanecessem na pensão,
esperando para ver o esqueleto completo montado pelas formigas?
Vocês podem acrescentar outras perguntas, se desejarem. Depois de discutirem
bastante possíveis explicações para o mistério, os alunos podem escrever
individualmente, ou em grupo, a história secreta das formigas e dos ossos. Oriente‐os
na construção das personagens e dos cenários, na elaboração dos diálogos e das
descrições, na estruturação da narrativa. Prontos os textos, façam uma revisão
conjunta, buscando sanar problemas de linguagem, de coerência, de clareza, entre
outros. Os textos reescritos podem ser expostos em um painel, um varal, um blog da
Internet... Ou podem ser reunidos em um livro artesanal, ilustrado pelos alunos.
Outra possibilidade de atividade escrita é criar uma continuação para o conto, que
narre o que acontece com as moças depois que elas deixam a pensão.
Estimule a turma a ler os outros contos do livro, todos excelentes. Vocês podem
programar outras aulas para reler juntos e analisar outras histórias de mistério,
criadas por Lygia Fagundes Telles e por outros autores. Procurem sempre observar
como são construídas as personagens, quais são os elementos presentes nas
descrições, qual é o conflito, quando acontece o clímax do conto, de que maneira se dá
seu desfecho. Desse modo, os alunos irão se familiarizando com aspectos comuns ao
gênero, como a concisão e a densidade. É interessante que eles percebam quantas
possibilidades de leitura podem surgir dos poucos elementos fornecidos pelos textos.
Procure sugerir a leitura de outros contos de mistério, como os do livro Os
melhores contos de medo, horror e morte. Esse livro reúne contos clássicos de autores
como Edgar Allan Poe e Machado de Assis. Alguns desses contos não serão de fácil
leitura para alunos da sétima e da oitava séries, devido à linguagem usada pelos
autores, à complexidade dos temas, às referências a personalidades, conceitos ou
culturas ainda desconhecidos dos alunos. Procure ajudá‐los a vencer essas
dificuldades, lendo os textos com eles e explicando os aspectos mais complicados.
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Bibliografia
Livros de contos:
ABREU, Caio Fernando et al. A prosa do mundo. São Paulo: Global, 2009. Esta antologia
de contos e crônicas integra o acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE)
2009.
COSTA, Flávio Moreira da (org.). Os melhores contos de medo, horror e morte. Rio de
Janeiro:
Nova Fronteira, 2005. Esta antologia integra o acervo Apoio ao Saber.
TELLES, Lygia Fagundes. Histórias de mistério.Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
Livros e artigos sobre contos:
GOTLIB, Nádia Battela. Teoria do Conto. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1988.
PIGLIA, Ricardo. “Tesis sobre el cuento”. Revista Brasileira de Literatura Comparada. São
Paulo, vol.1, p.22‐25, 1991. Tradução deste artigo pode ser lida no site Recanto das
Letras. Disponível em: http://recantodasletras.uol.com.br/teorialiteraria/254998.
Acesso em 12 out. 2009.
REIS, Luzia de Maria R. O que é conto. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. p.23‐24.
Sites sobre Lygia Fagundes Telles:
Lygia Fagundes Telles no Instituto Moreira Salles. Disponível em:
http://ims.uol.com.br/hs/lygiafagundestelles/lygiafagundestelles.html . Acesso em 12
out. 2009.
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Neste site, você encontra gravação das leituras realizadas por Lygia Fagundes Telles dos
contos “As formigas” e “A estrutura da bolha de sabão”. Há ainda há trechos de textos
literários da autora, entrevistas, fotos e textos de sua produção literária.
Site Especial sobre Lygia Fagundes Telles, produzido pelo Centro de Referência em
Educação (CRE) Mario Covas. Disponível em:
http://www.crmariocovas.sp.gov.br/site_lygia/index.htm. Acesso em 12 out. 2009.
Neste site, há contos integrais da autora, bem como informações sobre sua vida e obra.