materiais de leitura e escrita e formas de ler e … · o estudo monográfico que realizamos...

22
MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E ESCREVER DE PENTECOSTAIS EM SEUS PROCESSOS DE INSERÇÃO E PARTICIPAÇÃO NA CULTURA ESCRITA (PERNAMBUCO, 1950-1970) Sandra Batista de Araujo Silva Universidade Federal de Pernambuco [email protected] Ana Maria de Oliveira Galvão Universidade Federal de Minas Gerais [email protected] Palavras-chave: Materiais de leitura e escrita - Cultura escrita - Pentecostais Introdução Este trabalho é parte de um estudo monográfico recentemente concluído 1 no qual investigamos a influência de práticas religiosas pentecostais, especificamente da Assembléia de Deus, tradicionalmente associadas à oralidade, no processo de inserção e participação de seus membros na cultura escrita, no período de 1950 a 1970, em Pernambuco. Neste artigo, apresentamos uma parte do estudo que trata especificamente dos materiais de leitura e escrita e das formas de ler e escrever dos sujeitos pentecostais investigados. No estudo que desenvolvemos percebemos que, tradicionalmente, os pentecostais eram (são) vistos como praticantes de uma cultura predominantemente oral, principalmente quando comparados com as tradicionais igrejas protestantes históricas. Logo, a igreja Assembléia de Deus era (ainda é) marcada pela utilização da oralidade como forma de participação da maioria dos membros nas práticas religiosas e nos cultos, embora seja uma igreja classificada como pertencente ao ramo protestante. (SILVA; GALVÃO, 2007) Neste artigo, tentamos analisar especificamente que tipo de leitores e escritores os sujeitos pentecostais investigados tiveram condições de se tornar, sendo eles "não-herdeiros" 2 de um capital cultural que lhes permitissem um entrada mais "natural" na escrita? O que eles liam e como liam? O que escreviam e como escreviam? Assim, os materiais lidos e escritos pelos sujeitos e que são constituintes de suas bibliotecas pessoais foram utilizados como fontes principais nesta parte do estudo, no entanto no processo de análise desses materiais também levamos em consideração os depoimentos orais dos sujeitos que foram primordiais no estudo mais amplo, a fim de cruzarmos os dados obtidos. Para isso, partimos do pressuposto de que não há apenas uma cultura escrita, mas sim culturas escritas e que estas possuem identidades específicas, proporcionadas por diversas instâncias de socialização, dentre elas, a pertença religiosa, no caso de nosso objeto de estudo. Assim, a

Upload: nguyentuyen

Post on 12-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E ESCREVER DE PENTECOSTAIS EM SEUS PROCESSOS DE INSERÇÃO E

PARTICIPAÇÃO NA CULTURA ESCRITA (PERNAMBUCO, 1950-1970)

Sandra Batista de Araujo Silva Universidade Federal de Pernambuco

[email protected] Ana Maria de Oliveira Galvão

Universidade Federal de Minas Gerais [email protected]

Palavras-chave: Materiais de leitura e escrita - Cultura escrita - Pentecostais Introdução

Este trabalho é parte de um estudo monográfico recentemente concluído1 no qual

investigamos a influência de práticas religiosas pentecostais, especificamente da Assembléia de

Deus, tradicionalmente associadas à oralidade, no processo de inserção e participação de seus

membros na cultura escrita, no período de 1950 a 1970, em Pernambuco. Neste artigo,

apresentamos uma parte do estudo que trata especificamente dos materiais de leitura e escrita e das

formas de ler e escrever dos sujeitos pentecostais investigados.

No estudo que desenvolvemos percebemos que, tradicionalmente, os pentecostais eram (são)

vistos como praticantes de uma cultura predominantemente oral, principalmente quando

comparados com as tradicionais igrejas protestantes históricas. Logo, a igreja Assembléia de Deus

era (ainda é) marcada pela utilização da oralidade como forma de participação da maioria dos

membros nas práticas religiosas e nos cultos, embora seja uma igreja classificada como pertencente

ao ramo protestante. (SILVA; GALVÃO, 2007)

Neste artigo, tentamos analisar especificamente que tipo de leitores e escritores os sujeitos

pentecostais investigados tiveram condições de se tornar, sendo eles "não-herdeiros"2 de um capital

cultural que lhes permitissem um entrada mais "natural" na escrita? O que eles liam e como liam? O

que escreviam e como escreviam? Assim, os materiais lidos e escritos pelos sujeitos e que são

constituintes de suas bibliotecas pessoais foram utilizados como fontes principais nesta parte do

estudo, no entanto no processo de análise desses materiais também levamos em consideração os

depoimentos orais dos sujeitos que foram primordiais no estudo mais amplo, a fim de cruzarmos os

dados obtidos.

Para isso, partimos do pressuposto de que não há apenas uma cultura escrita, mas sim

culturas escritas e que estas possuem identidades específicas, proporcionadas por diversas instâncias

de socialização, dentre elas, a pertença religiosa, no caso de nosso objeto de estudo. Assim, a

Page 2: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

2

identidade dessas culturas escritas variam segundo as finalidades e os usos que se faz do escrito, ou

mesmo pelos modos pelos quais os indivíduos se inserem nelas, por exemplo, através da oralidade.

(BATISTA et al, 2002).

Portanto, para compreendermos que tipo de leitores e "escritores" os sujeitos pentecostais

investigados se tornaram nos fundamentamos teoricamente nos pressupostos da Nova História

Cultural3, História da Educação4, "História" oral5, Micro-história6 e em estudos referentes à acervos

pessoais e às relações entre oralidade7 e letramento.8

Particularmente, o estudo sobre a biblioteca pessoal e as práticas de leitura e escrita de um

sujeito de meios populares ao longo do século XX, desenvolvido por Galvão e Oliveira (2007),

trouxe-nos importantes subsídios teóricos e metodológicos para analisarmos os materiais das

bibliotecas dos sujeitos pentecostais fazendo-nos refletir sobre as especificidades da biblioteca

pessoal de um sujeito de meio popular e "não-herdeiro". Além disso, o referido estudo possibilitou-

nos perceber que a biblioteca tende a expressar o gosto do seu proprietário, embora a posse do livro

não implique necessariamente na sua leitura, e a não-posse, por outro lado, não é sinônimo de não

leitura. O estudo também demonstrou que os gostos de um proprietário por certas leituras e livros

também podem ser construídos simbolicamente, além de trazer-nos uma reflexão sobre o que

denominam de "clássicas relações entre as preferências por certos gêneros literários e as classes

sociais". (GALVÃO; OLIVEIRA, 2007)

Os sujeitos investigados e o processo de análise de suas bibliotecas pessoais

O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos9 que atenderam

a um perfil10 que nos propusemos investigar e foi, inicialmente, com base nos depoimentos desses

sujeitos que realizamos o estudo mais amplo. Logo, neste artigo, faremos uma caracterização geral

dos sujeitos investigados11, para, em seguida, apresentarmos e descrevermos as fontes e o processo

de análise das mesmas nessa parte do estudo.

O primeiro sujeito, Armando Severino da Silva, nasceu em Aliança, interior do estado de

Pernambuco, no ano de 1941; o segundo sujeito, Ademir Alves, nasceu em Timbaúba, interior do

estado de Pernambuco, no ano de 1955; e o terceiro sujeito, Elias Gomes dos Prazeres, nasceu no

município de Paudalho, interior do estado de Pernambuco, em 1945.

Os três sujeitos eram filhos de pais semi-alfabetizados ou com muito pouca escolaridade,

como também de pais que trabalhavam em serviços manuais ou muito práticos que não exigiam,

portanto, um conhecimento teórico ou mesmo certa especialização. Os três eram oriundos de

municípios que, de acordo com dados do IBGE de 1950, pertenciam a Zona Litoral-Mata do estado

de Pernambuco12 e se distanciavam – em média de 59 quilômetros - da capital, municípios que

Page 3: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

3

possuíam bibliotecas particulares, poucas escolas e taxas de alfabetização em média de 15%,

enquanto no estado era de 27%. Moraram durante a infância nesses lugares e somente anos depois

vieram morar capital do estado juntamente com suas famílias. Os sujeitos exerceram algumas

ocupações profissionais ainda muito jovens e tiveram algumas interrupções ao longo de suas

formações escolares. Foram muito envolvidos, desde o início da adolescência e/ou juventude, em

algumas práticas religiosas pentecostais, nas quais passam a ter mais contato com materiais escritos

da área religiosa que parecem influenciá-los a realizarem leituras intensas de certos materiais

escritos, assim como a busca e a leitura extensiva de materiais relacionados à religiosidade.

As fontes de investigação utilizadas neste artigo foram os materiais lidos e escritos pelos

sujeitos pesquisados e que pertenciam a suas bibliotecas pessoais. Assim, utilizamos livros de

diversos gêneros, revistas intituladas "Lições Bíblicas", fascículos de curso por correspondência,

folhas avulsas de apostilas e cadernos com esboços de sermões pertencentes a Armando, um dos

sujeitos investigados. Utilizamos um livro de atas registros de leituras e esboços de sermões

registrados em folhas avulsas pertencentes a Ademir. No processo de busca, consulta e análise dos

materiais das bibliotecas dos três sujeitos não foi possível nosso acesso aos materiais pertencentes a

Elias, pois grande parte dos materiais foram doados pelo próprio sujeito para alguns de seus

familiares que moram em municípios distantes e situados no interior do estado de Pernambuco e o

restante não pôde ser consultado por motivo de problemas de saúde do sujeito na época do estudo,

logo, neste artigo, baseamo-nos apenas em seu depoimento.

Para analisarmos os materiais escritos pertencentes aos sujeitos investigados, inicialmente

categorizamos os livros e revistas - excetuando-se os cadernos, apostilas e esboços - a partir de

fichas descritivas. Nelas foram caracterizados, sobretudo, os aspectos que dizem respeito aos

circuitos de produção, circulação e apropriação das obras. Para cada livro ou revista localizado,

foram preenchidos 11 campos diferentes, que envolveram: título, autor, editora, número da edição,

data da publicação, data da primeira edição, assunto da obra, resumo da obra, marcas do leitor,

observações diversas. Posteriormente, foram analisadas as marcas de leitura presentes nos materiais

escritos.

No caso do livro de atas com registro das leituras, complementamos os dados por meio dos

depoimentos do sujeito investigado, como também em sites de busca na internet. Na época da

pesquisa, Ademir, um outro sujeito pesquisado, nos permitiu fotografar a estante com sua biblioteca

pessoal e nos entregou o livro de atas com registros das leituras feitas para o fotografarmos, nos

informando que ali se encontravam registrados os livros que havia lido ao longo da vida. Logo, não

tivemos acesso permitido aos livros de Ademir para podermos verificar e analisar, por exemplo,

possíveis marcas de leitura deixadas por ele nos livros e em outros materiais escritos de sua

biblioteca, mesmo tendo explicado várias vezes ao sujeito que o contato com cada livro seria muito

Page 4: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

4

importante para os objetivos da pesquisa.

Em relação aos cadernos, apostilas e esboços foram categorizados a partir de fichas

descritivas. Para cada um desses materiais escritos, foram preenchidos 6 campos diferentes, que

envolveram: tema do escrito, autor, data do escrito, marcas do leitor/escritor, observações diversas.

Na análise desses materiais procuramos observar aqueles que apresentavam indícios de sua

utilização nas vivências dos sujeitos nas práticas religiosas, procurando cruzar os dados desses

materiais com os depoimentos orais dos sujeitos; como também procuramos indícios nos registros

feitos pelos sujeitos nesses materiais que nos dessem "pistas" do tipo de "escritor"/leitor eles

tiveram condições de se tornar ao longo de suas trajetórias.

Materiais de leitura e formas de ler dos pentecostais investigados

O caso de Ademir

Ademir demonstrou grande preocupação em registrar as leituras que realizava ao longo de

sua vida. Utilizou um livro de atas no qual registrava a caneta cada livro que terminava de ler.

Nesse livro estão registrados títulos de 282 livros diretamente relacionados à religiosidade e mais 29

por ele denominados de "seculares", com os respectivos nomes dos autores. Um fato interessante é

que entre os livros chamados e registrados por ele como "seculares" encontram-se os que são de

outras igrejas como, por exemplo, dos "Adventistas do sétimo dia” e dos "Testemunhas de Jeová" e

alguns livros didáticos de geografia, história e outro de língua portuguesa, além de gramáticas da

língua portuguesa e livros de literatura brasileira.

Dos 282 livros registrados por Ademir e dos 29 denominados por ele como "seculares",

predominam as seguintes temáticas e gêneros demonstrados na tabela abaixo:

Tabela 1 - Livros registrados e lidos por Ademir

Temáticas abordadas nos livros relacionados à religiosidade

N.o % Gêneros dos livros denominados como "seculares"

N.o %

Temas bíblicos diversos 112 39,72 Geografia 4 13,79 Evangelismo 27 9,58 História 3 10,34

Educação religiosa 24 8,51 Literatura brasileira 3 10,34 Pentecostalismo 22 7,80 Adventistas do sétimo dia 3 10,34

Personagens bíblicos 20 7,09 Outras religiosidades 2 6,90 Ensino bíblico 18 6,38 Gramática da língua portuguesa 2 6,90 Teológicos 14 4,96 Língua portuguesa 2 6,90

Confrontos com outras religiosidades 11 3,90 Testemunhas de Jeová 1 3,45 Casamento e namoro cristão 10 3,55 Psicologia 1 3,45

Testemunho de religiosos cristãos 7 2,48 Antropologia 1 3,45 Livros sobre a bíblia 5 1,77 Filosofia 1 3,45

Hermenêutica 3 1,06 Enciclopédia 1 3,45 Livros da bíblia 3 1,06 Outros gêneros 5 17,24

Biografias de líderes religiosos 2 0,71 Total 29 100 História da igreja cristã 2 0,71

Homilética 1 0,36 Bíblia sagrada 1 0,36

Total 282 100

Total geral de livros

registrados

311

Page 5: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

5

Podemos perceber na tabela acima que havia 311 livros registrados por Ademir em seu livro

de atas, bem como uma diversidade de temáticas diretamente relacionadas à religiosidade nos

livros, além de outros gêneros não relacionados à religiosidade que foram privilegiadas por ele ao

longo de sua vida. Ademir preocupou-se em registrar a leitura apenas de livros, ou seja, o tipo de

leitura considerada legítima, de acordo com clássicos estudos da sociologia leitura. Dos 282 livros

classificados por Ademir como relacionados à religiosidade, havia 262 livros, correspondentes a

92,91% da biblioteca, que foram categorizados por nós como da área “não-teológica”, ou seja

tratavam-se de livros que não traziam uma discussão teórica relacionada “aos dogmas e a moral

religiosa cristãos.” (FERNANDES, 1996) Os 20 livros restantes, correspondendo a 7,09%, foram,

portanto, categorizados como leituras da área "teológica". De acordo com o assunto das obras, esses

livros tratavam-se de “livros-texto’ utilizados para uma formação teológica em escolas ou

seminários de Teologia.

Na categoria de livros da área não-teológica – cerca de 92,91% do total - aparece como

predominante a temática "Temas bíblicos diversos", correspondendo a 39,72% dos livros. Essa

temática se sobressai em relação às temáticas seguintes: Evangelismo (9,58%), Educação religiosa

(8,51%), Pentecostalismo (7,80%), Personagens bíblicos (7,09%), Ensino bíblico (6,38), Teológicos

(5,67%), Confrontos com outras religiosidades (3,90%), Testemunho de religiosos cristãos (2,48%),

entre outras. Esses dados parecem demonstrar que as leituras que Ademir privilegiou e registrou ao

longo de sua vida foram possivelmente aquelas mais relacionadas à religiosidade, especificamente

leituras da área não-teológica, ou seja parece que ele privilegiava a leitura de materiais que o

introduzia numa formação e conhecimento cristãos gerais. Parece que essas leituras foram cada vez

mais preponderantes após a sua conversão religiosa aos 12 anos e ao longo de sua adolescência e

juventude. Ao observamos, por exemplo, as dez temáticas mais predominantes em confronto com

trechos de seu depoimento percebemos que elas parecem ser aquelas leituras que ele privilegiava,

no trânsito entre leitura-oralidade-escrita, isto é no ritual de realizar a leitura dos materiais

previamente e utilizar os conhecimentos proporcionados por essas leituras em momentos de fala,

mas com o apoio de seus escritos - em forma de esboços e/ou apostilas - que subsidiavam essa

oralidade e poderiam ser facilmente consultados em caso de necessidade. Possivelmente esse

“ritual” acontecia nos momentos de ensinamento bíblico, palestras e pregações nas práticas

religiosas da igreja, como a escola dominical e a campanha de evangelização - primeiramente como

ouvinte, quando criança, e depois como liderança das práticas, quando adolescente e jovem.

Também podemos perceber na mesma tabela que algumas temáticas privilegiadas por

Ademir são aquelas possivelmente associadas ao interesse por uma formação teológica,

correspondendo a 7,09% dos livros relacionados à religiosidade, categorizados como sendo da área

teológica. Nesta categoria de livros predominavam as temáticas: Teológicos (5,67%), Homilética

Page 6: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

6

(1,06%), História da igreja cristã (0,71%) e Hermenêutica (0,36%). Dessa forma, parece que essas

leituras foram privilegiadas por ele possivelmente pelo seu interesse quando adulto por uma

formação teológica que possibilitou-lhe, posteriormente, ensinar também na escola teológica da

igreja.

Nos livros denominados por Ademir como "seculares", do total de 29 livros, cerca de

47,97% correspondiam a livros relacionados a continuidade da escolarização, possivelmente para a

realização do vestibular; nessa categoria, alguns gêneros foram predominantes, como História

(13,79%), Geografia (10,34%), Literatura Brasileira (10,34%), entre outros. Também verificamos

que 10,35% do total de "seculares" eram de livros acadêmicos, ou seja, destinados a uma

determinada formação a nível superior; assim, apareciam como predominantes algumas áreas, como

Psicologia (3,45%) Antropologia (3,45%), Filosofia (3,45%), entre outras. Possivelmente os dois

gêneros de leitura constituíam leituras importantes para Ademir, pois ele se interessou tardiamente

pelo vestibular para o curso de Economia e, anos depois, para o de História. No entanto, não

conseguiu continuar a formação superior desistindo de ambos os cursos quando cursava o terceiro

período.

Um dado interessante é o fato de Ademir denominar como "secular" alguns livros cujas

temáticas estavam relacionadas a certas religiosidades, como Adventistas do Sétimo Dia (10,34%),

Testemunhas de Jeová (3,45%) e outras (6,90%). Essas três temáticas juntas correspondiam a

20,69% do total de "seculares". Possivelmente o fato de Ademir apresentar a uma identidade

religiosa e uma formação teológica pentecostais, influenciaram-lhe a denominar os livros dessas

religiosidades como "seculares" talvez por considerá-los como livros oriundos de "seitas".

Ao longo de sua trajetória como leitor, Ademir realizava uma forma muito própria e

particular de ler: além dele registrar num livro de atas todas as leituras que realizava ao longo de

sua vida - como já mencionamos no primeiro parágrafo deste tópico - também se preocupou em

anotar o número de páginas de cada livro lido, o ano da realização da leitura e, com pequenos traços

horizontais, registrou o número de vezes que cada livro era lido. Dentre os livros mais lidos por

Ademir, encontra-se a Bíblia, que foi lida 16 vezes e aparece no livro de atas como o primeiro livro

registrado por ele, ou seja o livro que inicia a listagem dos 282 registros. A Bíblia foi, assim, a

leitura que Ademir mais privilegiou e que também realizou de forma mais intensiva, se comparada

com a quantidade de vezes que leu os demais livros. Possivelmente ele desejou se tornar - e se

tornou - um profundo conhecedor da Bíblia, ou seja, um especialista com um profundo domínio

sobre cada livro. Podemos perceber estes indícios devido ao fato de constar registrado no livro de

atas uma terceira listagem na qual constavam registrados por Ademir os nomes de todos os livros

que compõem a Bíblia, o número de seus capítulos e o número de vezes que cada livro foi lido por

ele.

Page 7: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

7

Além disso, nas duas primeiras listagens de livros lidos e registrados por Ademir há diante

de alguns títulos de livros "asteriscos" que, segundo seu depoimento, marcam livros que não

possuía, mas que tomava emprestado de outras pessoas para ler. Em alguns livros há um, dois ou até

três asteriscos o que sugere que os mesmos livros foram tomados emprestados e lidos duas ou três

vezes. Esse dado parece demonstrar que Ademir num dado momento de sua vida começou a

participar talvez de uma rede de sociabilidade que tinha interesses de leituras comuns, o que lhe

possibilitava conseguir emprestado - em alguns casos - os livros cujas leituras ele buscava e,

porventura, privilegiava. Na tabela abaixo podemos observar o número de registros de leituras

realizadas por Ademir por década:

Tabela 2 - Períodos de realização das leituras registrados por Ademir

Períodos de realização das leitura dos livros

N.o de registros de leituras por período

%

1961-1970 3 0,97 1971-1980 96 30,87 1981-1990 152 48,87 1991-2000 20 6,43 2001-2004 7 2,25 Sem data 33 10,61 Total 311 100

Esses dados parecem demonstrar que os períodos de maior intensidade de leituras de livros

realizadas e registradas por Ademir aconteceu nas décadas de 70 (30,87%) e principalmente na

década de 80 (48,87%). De acordo com o depoimento de Ademir sobre as suas ações no âmbito das

práticas religiosas no período de sua adolescência até a juventude, esses períodos parecem coincidir

com sua fase de maior envolvimento nas práticas religiosas da igreja, principalmente com o ensino

bíblico que acontecia na escola dominical e com o evangelismo nas campanhas de evangelização.

No entanto, o próprio sujeito ressaltou em seu depoimento que não registrava em seu livro

de atas as leituras que fazia de outros materiais escritos, como apostilas, jornais, revistas diversas e

revistas "Lições Bíblicas", mas apenas livros, principalmente os relacionados à religiosidade. Logo,

possivelmente Ademir leu muito mais materiais escritos ao longo de sua vida do que a quantidade

de livros registradas no livro de atas de sua biblioteca. Em seu depoimento mencionou que realizava

algumas leituras antes de sua conversão religiosa, como a leitura de um livro intitulado "A história

sagrada" - uma espécie de Bíblia ilustrada da época - folhetos de literatura evangélica, revistas

gibis, histórias em quadrinhos, histórias dos super-heróis e farwest. Além disso, Ademir também

vivenciou experiências escolares e algumas de suas primeiras ocupações profissionais que exigiam

também a leitura e a escrita.

Page 8: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

8

O caso de Armando

No caso de Armando, ele possuía, segundo o seu depoimento, uma biblioteca com cerca de

500 a 600 livros quando morava no bairro da Várzea em Recife/PE. Naquele momento de sua vida

preocupou-se também em registrar por meio de fotografia o momento que ele se encontrava sentado

ao lado de sua biblioteca pessoal. No entanto, afirmou no seu depoimento que muitos de seus

materiais (livros) estragaram quando viajou para São Paulo e depois quando voltou ao Recife e,

posteriormente, porque se mudou várias vezes de residência com a sua família. Mencionou que

alguns de seus livros ficaram na casa de um dos seus irmãos quando viajou para São Paulo, no

entanto haviam sido danificados por animais quando ele voltou de viagem; e outra quantidade de

seus livros havia ficado com uma irmã na mesma época. Ele relatou a necessidade de reunir alguns

livros que ainda estavam na casa de sua irmã, juntamente com os livros e materiais que estavam em

sua atual casa, a fim de reorganizar todo seu acervo. Logo, este fato pode mascarar os tipos de

materiais escritos que existiam em sua biblioteca pessoal, bem como o tipo de leitor que Armando

se tornou. No entanto, acreditamos que os dados apresentados no seu depoimento oral confrontados

com os materiais escritos que restaram de sua biblioteca pessoal podem, sim, nos trazer indícios do

tipo de leituras privilegiadas por ele e, conseqüentemente, o tipo de leitor que ele possivelmente se

tornou.

Assim, após a reorganização do acervo pessoal de Armando tivemos acesso a parte do que

foi a sua biblioteca. Analisamos um total de 173 materiais escritos - 66 livros e mais 107 materiais

escritos de outros tipos - cujos gêneros predominantes são apresentados na tabela abaixo:

Tabela 3 - Materiais escritos existentes na biblioteca de Armando

Temáticas abordadas nos Materiais escritos (livros)

N.o % Temáticas abordadas nos Materiais escritos (livros)

N.o %

Teológicos 18 27,27 Enciclopédia Psicologia 1 1,52

Eletrotécnica e área afins 7 10,61 Antropologia cristã 1 1,52 Educação religiosa 5 7,57 Sociologia 1 1,52 Temas bíblicos 5 7,57 Coletânea de artigos de anais de congresso

sobre missões 1 1,52

História da igreja cristã 4 6,06 Confrontos com outras religiosidades 1 1,52 Evangelismo 3 4,54 Estatuto da AD 1 1,52

Biografias de líderes religiosos 3 4,54 Outros relacionados a religiosidade 2 3,03

Psicologia/Psicanálise 3 4,54 Total 66 100

Dicionário de Psicologia 2 3,03 Outros gêneros/temáticas predominantes (demais suportes)

N.o %

Gramática da língua grega 2 3,03 Revista "Lições Bíblicas" 65 60,75

Supervisão/administração 2

3,03

Fascículos de cursos por correspondência em eletrônica

21 19,63

Didática

2

3,03

Manuais técnicos da área de Eletrotécnica

18 16,82

Outras revistas informativas da igreja Assembléia de Deus

3 2,80

Total 107 100

Hermenêutica bíblica

2

3,03

Total geral de materiais escritos

173

Page 9: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

9

No caso de Armando a tabela acima parece demonstrar que havia certa diversidade de

gêneros e temáticas nos livros que restaram de sua biblioteca pessoal, bem como a existência de

outros materiais escritos, como, por exemplo, revistas "Lições Bíblicas", revistas informativas da

Assembléia de Deus, manuais técnicos da área de eletricidade e fascículos de cursos por

correspondência.

Dos 173 materiais escritos existentes na biblioteca de Armando, 116 materiais escritos,

correspondentes a 67,05% da biblioteca, foram classificados como materiais diretamente

relacionados à religiosidade. Esses materiais escritos foram classificados entre livros categorizados

por nós como leituras da área não-teológica (51,44%) e leituras da área teológica (15,61%). Logo,

no processo de categorização dos materiais escritos de Armando consideramos todo o seu acervo -

tanto os livros como os demais materiais escritos constituintes de sua biblioteca pessoal.

Assim, nos materiais escritos de Armando relacionados à religiosidade, particularmente na

categoria de leituras não-teológicas aparece como predominante o gênero revistas "Lições Bíblicas"

(60,75%). Este gênero se sobressai em relação aos outros gêneros e/ou temáticas da tabela, por estes

apresentarem percentagens bem menores, porém significativas, como Educação religiosa (7,57%),

Temas bíblicos (7,57%), Evangelismo (4,54%), Biografias de líderes religiosos (4,54%), revistas

informativas da Assembléia de Deus (2,80%), Coletânea de artigos sobre missões (1,52%),

Confrontos com outras religiosidades (1,52%), Estatuto da Assembléia de Deus (1,52%) e livros

sobre outras religiosidades (1,52%). Esses dados parecem demonstrar que as leituras que Armando

privilegiou em momentos de sua vida foram aquelas relacionadas à religiosidade e, a princípio,

aquelas da área não-teológica. Possivelmente essas leituras foram cada vez mais preponderantes

após a sua conversão religiosa na sua juventude. Ao observamos, por exemplo, as dez temáticas

mais predominantes em confronto com trechos de seu depoimento percebemos que essas temáticas

parecem ser aquelas leituras que ele privilegiava, no trânsito entre leitura-oralidade-escrita -

semelhantemente à prática de Ademir -, talvez por serem mais associadas ao uso social que ele fazia

nos momentos de ensinamento bíblico, palestras e pregações nas práticas religiosas da igreja, como

a escola dominical e a campanha de evangelização - primeiramente como ouvinte e depois como

liderança das práticas quando jovem.

Podemos perceber na mesma tabela que algumas temáticas privilegiadas por Armando são

aquelas associadas à área teológica, correspondendo a 15,61% dos livros relacionados à

religiosidade. Nessa categoria de livros predominavam as temáticas: Teológicos (27,27%), História

da igreja cristã (6,06%), Hermenêutica (3,03%), entre outros. Dessa forma, parece que essas leituras

foram privilegiadas por ele talvez pelo seu interesse na área de teologia, já que, posteriomente,

ensinou também na escola teológica da igreja.

Page 10: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

10

O restante de materiais escritos da biblioteca de Armando, correspondente a 57 materiais, ou

seja 32,95% do total de 173 materiais escritos, foram caracterizados como materiais não

relacionados à religiosidade, que se subdividiram entre leituras categorizadas por nós como da

ocupação profissional (26,59%), da formação superior (5,20% ) e de outras áreas (1,16%). Esses

dados parecem demonstrar que Armando em alguns momentos de sua vida privilegiou leituras

relacionadas à sua ocupação profissional, já que mencionou que toda a sua trajetória profissional foi

na área de Eletricidade. Uma outra preferência de Armando era por leituras relacionadas à formação

de nível superior, já que conseguiu concluir tardiamente cursos superiores nas áreas de Filosofia e

Teologia. Percebemos também que Armando tinha interesse por livros sobre outras áreas, como a

supervisão de pessoal e administração de organizações.

No processo de análise da biblioteca de Armando, elaboramos a tabela abaixo que trata das

marcas de leitura existentes nos materiais escritos:

Tabela 4 - Marcas de leitura de Armando

Existência de marcas de leitura

N.o de materiais escritos

%

Presença de muitas marcas de leitura 62 35,84 Presença de poucas marcas de leitura 61 35,26

Sem marcas de leitura 50 28,90 Total 173 100

Podemos perceber, ao analisar a tabela acima, que Armando tinha o hábito de deixar marcas

na maior parte das leituras que fazia. Do total de 173 escritos de sua biblioteca pessoal, há 62

escritos que possuem muitas marcas, correspondendo a 35,84% do acervo; 61 escritos que possuem

poucas marcas, correspondo a 35,26%; e 50 escritos que não possuem marcas de leitor,

correspondendo a 28,90%. Esses números demonstram que Armando se preocupava em "interagir"

com o escrito lido por meio de marcas específicas deixadas por ele como indícios de suas possíveis

leituras privilegiadas.

Entre as marcas de leitura predominantes nos escritos do acervo de Armando estão os

sublinhados que aparecem em trechos grandes e em palavras, tanto nas "Lições Bíblicas" quanto

nos livros, além de trechos longos destacados por um traço vertical ao longo do parágrafo ou da

palavra. Nos livros, são muito empregados parênteses e chaves destacando palavras, frases ou

pequenos trechos. Particularmente nas "Lições Bíblicas", muitas referências bíblicas são circuladas,

corrigidas, grifadas ou possuem ao lado um sinal de interrogação, o que parece demonstrar a

preocupação do leitor em verificar se aquela referência citada estava de acordo com os argumentos

escritos pelo autor da lição ou se ela estava correta. Em outros casos, há acréscimos feitos a caneta

de outras referências bíblicas, assim como frases ou palavras manuscritas, possivelmente para

fundamentar melhor os argumentos da lição e/ou para serem também mencionados e discutidos na

escola dominical. Encontramos também frases ou palavras manuscritas por Armando em língua

Page 11: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

11

inglesa, assim como palavras em grego e hebraico em algumas das "Lições Bíblicas", o que parece

demonstrar o interesse do leitor em observar a origem de certas palavras bíblicas, no caso do grego

e do hebraico, e da apropriação dele da língua inglesa, já que em seu depoimento mencionou que

realizou cursos de inglês por correspondência, talvez para poder compreender os textos de alguns

manuais técnicos na área de eletricidade e de alguns materiais escritos relacionados à religiosidade

nessa língua.

Um fato interessante é que nos fascículos dos cursos por correspondência na área de

eletrônica da instituição denominada "Occidental School", estabelecida em 1947 nos EUA, as

atividades propostas, cujas questões são objetivas, estão todas respondidas pelo sujeito. Esse dado

parece demonstrar que Armando tinha o interesse em leituras relacionadas à sua ocupação

profissional e realizava alguns cursos por correspondência para ter mais conhecimento teórico em

eletricidade e áreas afins. Armando mencionou em seu depoimento que inicialmente trabalhou

numa oficina de rolamentos de motores na área de eletricidade, dos 12 aos 19 anos de idade, e

afirmou que toda sua trajetória profissional foi na área de eletricidade.

Para tentarmos identificar os possíveis períodos que Armando realizou as suas preferências

de leitura, construímos a tabela abaixo com base nas datas de publicação dos materiais escritos de

sua biblioteca.

Tabela 5 - Períodos de realização de leitura de Armando

Períodos de publicação

N.o Livros

N.o Lições Bíblicas

N.o Revista A Seara

N.o Revistas

informativas da igreja AD

N.o Manuais Técnicos

N.o Fascículos de cursos por

correspondência

N.o de materiais escritos por período

%

1951-1960 2 - - - - - 2 1,16 1961-1970 7 5 1 - - - 13 7,51 1971-1980 18 15 - - - - 33 19,08 1981-1990 20 27 - 2 - - 49 28,32 1991-1999 1 16 - - - - 17 9,83 Sem data 18 2 - - 18 21 59 34,10 Total 66 65 1 2 18 21 173 100

Os dados da tabela parecem demonstrar que Armando compôs o seu acervo pessoal com

diversos materiais escritos, a maioria publicados entre as décadas de 70 e 80. Há poucos exemplares

publicados na década de 50, assim como na década de 60, porém é nessa década que aparecem

como constituintes do acervo as revistas "Lições Bíblicas” e "A Seara", a revista informativa da

igreja, ambas publicadas pela Casa Publicadora da Assembléia de Deus. Apenas na década de 80

outras revistas informativas da igreja Assembléia de Deus aparecem como constituintes da

biblioteca de Armando. Esses dados parecem trazer indícios de que o acervo de Armando foi

composto por ele aos poucos e os materiais escritos, principalmente livros e as "Lições Bíblicas",

em menor ou maior quantidade, estiveram sempre presentes na vida do proprietário. Os livros e as

"Lições Bíblicas" aparecem como publicações predominantes e distribuídas gradualmente numa

Page 12: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

12

progressão até a década de 80. Na década de 90, a presença de materiais decresce - principalmente

os livros.

Com base nesses dados, podemos inferir que as décadas de 70 e 80 parecem ter sido os

períodos de maior intensidade de leitura de livros relacionados à religiosidade - a maioria da área

não-teológica - e livros da área de elétrica, como também da revista "Lições Bíblicas" por Armando.

Esse dado parece indicar que Armando realizava essas leituras numa época em que estava bastante

envolvido tanto com as práticas religiosas da igreja - e depois com o ensino na escola teológica da

igreja - como também com sua atividade profissional.

O caso de Elias

No caso da trajetória de Elias como leitor, baseamos nossa análise apenas em trechos de seu

depoimento oral, pois não tivemos acesso aos materiais escritos de sua biblioteca, como já tínhamos

mencionado no tópico relacionado a caracterização dos sujeitos investigados e o processo de análise

de suas bibliotecas pessoais. Ao logo do seu depoimento, Elias comentou alguns tipos de leitura que

fazia quando criança e ao longo de sua juventude, que ocorriam, segundo ele, no seu processo de

envolvimento com as práticas religiosas da igreja.

De acordo com alguns trechos de seu depoimento, o fato de Elias ter nascido num lar de

família evangélica parece ter influenciado a sua preferência desde criança pela leitura religiosa. A

Bíblia, para Elias, tem um grande valor simbólico. Tratava-se, portanto, de uma leitura

indispensável na sua formação religiosa e que deveria ser complementada e não totalmente

substituída por outras leituras: "[…] Mais tarde quando aprendi ler, aprendi ler a Bíblia e tomei gosto em

ler a Bíblia, […] e nesse período de tempo acompanhei outros livros. […]"(Elias).

No entanto, Elias também mencionou no seu depoimento que tinha preferência por outras

leituras além da Bíblia, como livros sobre a igreja, história da igreja, livros extraídos da bíblia,

dicionários, enciclopédias, catecismos, jornais da igreja Assembléia de Deus e católicos. Seus

interesses de leitura se concentravam, portanto, em temáticas relacionadas à religiosidade, como

podemos observar no depoimento abaixo:

"[…] Eu gostei de ler muito […] livros que falavam sobre a igreja, como a igreja

se originou, a história da igreja, […] outros livros que eram extraídos da Bíblia, confeccionados por alguns escritores […] Então eu li bastante livro, comprei

bastante livro. […] Eu li muito enciclopédia.[…] Eu li muitos dicionários, bastante! […] Eu gostava, às vezes eu pegava o catecismo com alguém […] pegava […] jornais da igreja mesmo […] também da igreja católica que eles distribuem na cidade. Pegava os jornais da igreja católica […] gostava de ler pra tomar conhecimento também daquelas coisas que acontecia lá. […] Jornal . […] então eu gostava de ler jornal pra puder […] ficar a par de alguma coisa, então a gente tinha

Page 13: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

13

conhecimento por isso aí, hoje eu não leio mais jornal, […] Eu lia a Bíblia

Católica, gostava de ler […] (Elias) (grifos nossos)

No depoimento acima percebemos a utilização de algumas expressões – como "Eu gostei

muito de ler…", "eu li bastante…", "Eu lia…" e "Eu gostava de ler…" – que ressaltam um certo

gosto que Elias tinha pela leitura das temáticas abordadas nos livros de sua "coleção", bem como

nos fornece alguns indícios de uma possível prática intensiva de leitura desses materiais pelo sujeito

ao longo de sua vida. No depoimento de Elias também aparece a afirmação "comprei bastante…", o

que parece demonstrar que ele em alguns momentos de sua vida possuía certas condições

econômicas que lhe possibilitava adquirir muitos livros. No entanto, outras afirmações – como "Eu

pegava emprestado…" e "Eu pegava... …com alguém" –, parecem demonstrar que Elias

possivelmente participou em algum momento de alguma rede de sociabilidade, cujos interesses de

leitura eram comuns aos dele.

No depoimento anterior de Elias podemos perceber que ele considerava aquelas leituras

importantes para seu maior conhecimento e informação, quando ele diz que: "[…] gostava de ler pra

tomar conhecimento também daquelas coisas que acontecia lá. […] então eu gostava de ler jornal pra puder

[…] ficar a par de alguma coisa, então a gente tinha conhecimento por isso aí [..]" No entanto, em outro

trecho de seu depoimento ressalta o seu interesse também pela leitura das "Lições Bíblicas",

principalmente para sua aprendizagem inicial da leitura quando criança na escola dominical:

[…] um livro que me ajudou muito: a Lição […] Bíblica da escola dominical que eu tive o privilégio de acompanhar […] desde criança, mesmo antes de saber ler, estava ali sentado numa classe de escola dominical aprendendo […] aprendia algumas coisas, mas quando aprendi ler, aprendi mais, então continuei lendo a Lição da escola dominical e fui tendo mais prazer de ler a Bíblia. Pegava a Bíblia, a Lição, a Bíblia, a Lição e lia em conjunto, e fui me desenvolvendo, tendo conhecimento, apesar de não ter um estudo tão elevado […] (Elias) (grifos nossos)

O trecho acima parece trazer indícios da forma como Elias realizava a leitura das "Lições

Bíblicas": na dinâmica da prática religiosa de ensino-aprendizado proporcionado pela escola

dominical. Parece que o fato dele escutar a lição e aprendê-la - "memorizá-la" - antes de saber ler

possivelmente contribuiu no seu processo de alfabetização e letramento. Com o aprendizado da

leitura, o contato e a relação de Elias com os materiais escritos - a leitura das “Lições Bíblicas” e da

Bíblia, e, posteriormente, de outros materiais como jornais, revistas e livros todos relacionados a

igreja e a Bíblia - parece que também foram se intensificando cada vez mais e contribuindo para sua

inserção e participação na cultura escrita. Posteriormente, as "Lições Bíblicas" foram utilizadas por

Elias como material de ensino da escola dominical da qual participou como ouvinte e depois como

professor quando jovem e adulto por alguns anos.

Page 14: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

14

As preferências de leitura dos três sujeitos pentecostais investigados: que tipo de leitores tiveram

condições de se tornar

Ao analisarmos as preferências de leitura dos sujeitos investigados com base em seus

depoimentos verificamos que antes da conversão religiosa de dois deles - Armando e Ademir - os

tipos de leitura procurados e realizados por eles, segundo seus depoimentos e com base nos

materiais escritos de suas bibliotecas, parecem que foram distintos. No caso de Armando, as

preferências de leitura foram aquelas relacionadas à sua formação profissional; e, no caso de

Ademir, de assuntos já relacionados à religiosidade. Logo, percebemos na biblioteca de Armando e

em seu depoimento indícios de que ele parece ter possuído e lido livros e manuais da área de

eletrotécnica, eletricidade e eletrônica, coleções de desenho mecânico e torneiro mecânico e livros

de inglês, áreas de seu interesse antes da conversão. De acordo com o depoimento oral de Ademir,

as suas preferências de leitura voltavam-se para uma espécie de Bíblia católica ilustrada, chamada

de "A história sagrada", folheto evangélico, além de outros tipos de leitura, como informativas e de

lazer como revistas, histórias em quadrinhos, gibis e histórias de super-heróis e farwest, ou seja,

realizava leituras religiosas, informativas e de lazer antes de sua conversão religiosa.

Os três sujeitos mencionaram em seus depoimentos a realização de leituras informativas e

de leituras didáticas durante a escolarização. Destacaram os livros didáticos como leituras

importantes e realizadas por eles neste período. Elias menciona a Carta de ABC, cartilhas, a coleção

de Felisberto de Carvalho, como leituras que realizava nos primeiros anos de sua escolarização.

Elias e Ademir citam o livro "Minha Pátria", livro didático que continha várias disciplinas, como

português, matemática, ciências sociais e ciências naturais.

Percebemos nas bibliotecas de Armando e de Ademir a presença de livros relacionados a

uma formação de nível superior e a possível leitura dos mesmos pelos sujeitos. No caso de

Armando, conseguiu fazer o curso superior em Teologia e um outro em Filosofia. No caso de

Ademir, embora tenha feito vestibular para curso de Economia e anos depois para História, não

concluiu nenhum dos dois cursos, pois desistiu de ambos quando cursava o terceiro período.

Além disso, Armando e Ademir mencionaram em seus depoimentos a leitura de materiais

escritos relacionados às suas ocupações profissionais. No caso de Armando, realizava leituras

relacionadas à área de eletricidade e áreas afins, como eletrônica e eletrotécnica. No caso de

Ademir, realizava leituras atentas de recibos, notas fiscais e cobranças emitidos ou recebidos de

uma distribuidora de discos evangélicos devido as ausências costumeiras do chefe, que era seu

irmão. Posteriormente, ele precisou realizar o registro das atividades diárias de um escritório de

uma distribuidora central de alimentos e relatórios mensais. Diferentemente dos outros sujeitos

investigados, Elias trabalhou durante muito tempo ajudando o pai em atividades manuais, como a

Page 15: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

15

lavoura; parece, a princípio, que este tipo de trabalho não contribuiu para sua intimidade com a

prática da leitura. Assim, no caso de Elias, parece que o fato de ter nascido numa família muito

religiosa que o incentivava sempre a freqüentar os cultos foi mais decisivo na sua trajetória como

leitor.

Quando analisamos as bibliotecas de Armando e de Ademir, e observamos o depoimento de

Elias em relação aos indícios de suas preferências de leitura, podemos perceber que Armando e

Ademir buscaram realizar leituras relacionadas à religiosidade depois de suas conversões religiosas,

e desde a infância Elias foi se formando um leitor apenas da leitura associada à religiosidade. Os

três mencionaram em seus depoimentos que realizavam a leitura da Bíblia, das Lições Bíblicas, de

jornais e revistas da Assembléia de Deus, de hinários da igreja – como a Harpa Cristã, ou seja,

realizavam leituras relacionadas as suas novas condições de vida, ou seja, a condição de recém-

conversos, no caso de Armando e Ademir. Tratava-se, portanto, de leituras indispensáveis naquele

momento de suas vidas. Nas duas bibliotecas analisadas percebemos os interesses de Armando e de

Ademir por livros relacionados à religiosidade tanto da área não-teológica como teológica e, de

acordo com o depoimento de Elias, indícios da leitura de livros da área não-teológica. Os três

parecem ser também leitores de dicionários, livros didáticos e enciclopédias.

As preferências de leitura "depois da conversão religiosa" de Armando e Ademir parecem

demonstrar uma reorganização13 de suas vidas motivada pelas condições de inserção e pelas formas

de participação vivenciada por eles. Nos três casos percebemos a predominância de leituras

relacionadas à religiosidade, seja aquela da área não-teológica ou teológica. Logo, os livros lidos

pelos sujeitos e que são constituintes de suas bibliotecas pessoais - no caso de Armando e de

Ademir - são marcadamente de leitura “interessada”, livros que são considerados úteis, em que

sobressai o aspecto ético e não estético da leitura14. Ou seja, os três sujeitos relacionam-se com os

materiais escritos e realizam suas leituras segundo um modo considerado "popular". As análises de

suas bibliotecas também revelam os esforços dos sujeitos de se inserirem na cultura escrita, de se

constituírem como leitores. Dessa forma, os materiais escritos das bibliotecas pessoais dos sujeitos

aproximam-se de bibliotecas típicas do perfil de autodidatas15.

Materiais de escrita e formas de escrever de dois sujeitos investigados

O caso de Armando

Armando se preocupou em escrever esboços e apostilas sobre temas relacionados à

religiosidade, principalmente na área de evangelismo. Alguns esboços foram escritos em cadernos e

outros numa espécie de fichário, possivelmente, para serem utilizados em palestras ou em

Page 16: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

16

momentos de ensino. As apostilas eram rascunhadas no caderno e depois datilografadas. Em um de

seus cadernos consta o rascunho de um livreto sobre evangelismo que está escrito em forma de

relato: seu livreto é uma "conversa com o leitor", pois ele "conta uma história", e é bastante

"didático" ao contá-la, já que explica o assunto com muitos detalhes, cita diversos exemplos do dia-

a-dia e utiliza uma linguagem clara para tornar seus argumentos compreensíveis. Na primeira

página de um dos seus cadernos explica o objetivo de escrever o livreto e a tensão que sentia ao

fazê-lo por não se considerar um "escritor" e por ser um desconhecido, fatores que, para ele,

requisitavam a compreensão do leitor que se interessasse por seu escrito:

Ao tentar escrever este livreto sobre um assunto de tal importância como é este de evangelização, fui por várias vezes interrompido em meus propósitos, interrupções estas causadas por vários motivos frutos de minha consciência, incapacidade sempre era o maior motivo. Quem haveria de se deter para ler um livreto escrito por mim? Um desconhecido, e quando conhecido não reunia elementos suficientes para valorizar o escrito, entretanto entre relutâncias de anos veio-me coragem e orando ao senhor busquei forças para empreender tal empresa. Espero que todos aqueles que tiverem a oportunidade de terem em mãos este livreto, possam usar de complacência para com o que escreveu-o. Não sou escritor e seria demais ter tal pretenção. Se escrevi o fiz simplesmente dentro de um proposito de poder dar algo de contribuição para a obra do Senhor Jesus Cristo, e também para aqueles que desejarem usar neste livreto alguns métodos e técnicas de evangelização que poderá vir a ser útil, ainda que elementar, para muitos dos amados irmãos que desempenham este nobre trabalho da evangelização, a estes peço a nossa ajuda e compreenção para comigo e o meu trabalho […] (Armando, s/d)

Ao longo de seu livreto, Armando relata acontecimentos relacionados à sua experiência na

prática da evangelização, como também cita fatos ocorridos com outros evangelizadores conhecidos

por ele. Fundamentou seus argumentos utilizando muitas perguntas norteadoras do assunto,

apresentação de conceitos simples, a citação de muitas referências bíblicas sobre o assunto e

situações reais de evangelismo, organizados em forma de relato, para seus leitores-evangelizadores,

denominados por ele de "povo simples":

Certa vez eu chegava na residência de uma senhora para oferecer uma literatura, e tal não foi a minha surpresa quando aquela mulher disse para mim, com certo rancor: 'pode ir embora com seu livro que eu não tenho dinheiro pra comprar isto." Logo entendi que eu estava sendo trocado por um dos evangelizadores do Reino, mas expliquei minha posição para aquela senhora e fiz o meu trabalho pregando a Cristo Jesus, deixei uma literatura e aquela senhora ficou satisfeita com a vizita. […] (Armando, s/d)

Num outro trecho de seu escrito Armando parece demonstrar um grande esforço para se

inserir na cultura letrada e participar dela também como "escritor". Armando afirma, no segundo

trecho de seu livreto, que seu objetivo não era fazer "explanações" teológicas ou filosóficas sobre o

tema, e parece não se sentir preparado ou com formação para tal realização:

Page 17: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

17

[…] Em toda a extenção deste livreto tentarei uzar têrmos puramente práticos, para que ele possa atingir seu real objetivo, que é está nas mãos do povo simples. Não é minha intenção aprofundar-me em explanações teológicas ou filosóficas, o que seria pra mim um desastre. […] (Armando, s/d)

Os trechos dos escritos de Armando parecem demonstrar o esforço dele em se tornar um

"escritor" de materiais escritos considerados "ilegítimos"16 pelos autores da tradição sociológica17,

por se tratarem de materiais cujo uso social está diretamente associado à oralidade18, ou seja a um

habitus considerado popular em relação às formas legítimas de cultura escrita.

O caso de Ademir

Os escritos realizados por Ademir evidenciam sua dedicação em escrever apostilas e

esboços e seu processo de produção desses textos: inicialmente foram rascunhados e manuscritos;

depois datilografados, com algumas correções e/ou acréscimos de referências bíblicas, palavras e/ou

tópicos sobre determinado assunto; e posteriormente, passaram a ser digitados e impressos. Os

esboços possuem um tema e sua respectiva referência bíblica ao lado; uma introdução, na qual

justifica a importância do tema num texto resumido; argumentos que se organizam em forma de

tópicos com frases curtas acompanhadas de muitas referências bíblicas; e uma conclusão na qual

sintetiza a contribuição do estudo do tema.

Os esboços escritos por Ademir estão fixos numa pasta preta e pequena dentro de sacos

plásticos e compreendem temas baseados em todos os livros da Bíblia. Além disso, estão fixos na

pasta, obedecendo a seqüência dos livros da Bíblia, ou seja, do Gênesis ao Apocalipse. Um fato

interessante é que a pasta foi estrategicamente elaborada e confeccionada por Ademir para ser

"confundida" com uma bíblia, já que ele a utilizava como suporte à sua fala em momentos de culto

e ensino bíblico.

Na pasta de Ademir havia mais de cem esboços. A preocupação dele era esquematizar as

leituras que realizava num tipo de material escrito - o esboço - que além de dar suporte à oralidade,

também era fácil de ser consultado num momento de necessidade ao longo das práticas religiosas

e/ou ensino bíblico:

Eu tenho muitos assim... anotações, assim... esboços, dezenas, tenho mais de cem, assim, prontinhos, digitadinhos, impressos e alguns assim reimpressos, antigos ainda de máquina de datilografia, (risos) mas, assim, que eu xeroquei e estão guardados e que eu uso, assim, pra falar na igreja […] eu tenho até uma pasta de anotações […] que se eu fosse desenvolver dava […] pra fazer um livro (risos) […] tem muita coisa assim, muita mesmo, e rascunhado também, creio que tem cerca de quase uma centena, ai em envelopes […] pra passar a limpo […] mas são tudo anotações […] divididas […] esquematizadas […] pra uma necessidade de uma palestra, pra ensinar, que eu gosto muito de ensinar […] (Ademir)

Page 18: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

18

Os tipos de materiais escritos feitos por Ademir - esboços e apostilas - parecem demonstrar

o esforço dele de se inserir na cultura letrada e participar dela como "escritor", através de materiais

escritos considerados "ilegítimos", por serem utilizados apenas como suporte à oralidade em

práticas sociais, como por exemplo as práticas religiosas e/ou ensino bíblico.

As preferências de escrita de dois sujeitos pentecostais investigados: que tipo de escritores

tiveram condições de se tornar

Os tipos de escritos feitos por Armando e Ademir, esboços e apostilas, e a maneira como

estes eram organizados – os esboços em pequenos textos organizados em tópicos e subtópicos com

várias referências bíblicas; e as apostilas em forma de relatos ou em pequenos textos com tópicos e

várias referências bíblicas – demonstram o cuidado em apresentar os argumentos de maneira

"didática", bem fundamentada para que fossem claramente compreendidos pelos ouvintes durante

as práticas religiosas de ensino, palestras e cultos, além de facilitar a consulta sempre que

necessário.

Os esboços eram constantemente consultados pelos sujeitos na dinâmica das práticas

religiosas, assim como as apostilas organizadas e distribuídas por eles que, posteriormente, serviram

de "livro texto" para seus alunos na escola teológica da igreja. Dessa forma, os sujeitos

desenvolveram uma produção escrita que subsidiava a oralidade na dinâmica das práticas religiosas.

Assim como observado em relação às práticas de leitura, as situações de liderança e de ensino

demandavam dos sujeitos maior contato com a escrita e influenciaram significativamente os usos

que dela fizeram.

Assim, parece que os sujeitos buscaram se tornar "escritores" de materiais escritos utilizados

para oralidade na dinâmica das práticas religiosas que participavam, ou seja a um tipo de escrito

considerado "utilitário" e, portanto, "ilegítimo".

Considerações finais

Embora analisando apenas a biblioteca de dois sujeitos e tomando como base somente o

depoimento oral do terceiro sujeito, chegamos a alguns resultados sobre o tipo de leituras e escritos

que esses sujeitos pentecostais realizavam, bem como a forma como liam e escreviam.

Os resultados demonstraram que os três sujeitos investigados dedicaram esforços para se

constituírem como leitores e "escritores" de materiais escritos predominantemente associados à

religiosidade. No caso dos três sujeitos parece que a leitura intensa da Bíblia nos primeiros anos de

Page 19: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

19

conversão religiosa, no caso de Armando e Ademir, e durante a infância na igreja, no caso de Elias,

ao lado dos materiais publicados pela igreja, como as "revistas "Lições bíblicas" e a maneira como

esses materiais eram utilizados por eles na dinâmica das práticas religiosas da igreja parece ter

motivado os sujeitos na busca por outras leituras associadas à religiosidade. As bibliotecas de dois

dos sujeitos e os indícios das leituras privilegiadas pelo terceiro sujeito parecem demonstrar, assim,

que as suas preferências de leituras - representadas pelos materiais escritos existentes em suas

bibliotecas pessoais - foram construídas progressivamente e constituídas apenas por leituras

consideradas "interessadas" ou seja "utilitárias".

A análise das marcas de leitura nos materiais escritos de Armando revela a intensa atividade

que ele realizava ao ler: circulava, grifava, corrigia, complementava, acrescentava, tanto referências

bíblicas, trechos dos escritos ou pequenos textos dos materiais da sua biblioteca. Ademir lia os

materiais escritos de sua biblioteca preocupando-se sempre em registrar os títulos dos livros, seus

respectivos autores, a quantidade de vezes que havia lido o livro, o ano de realização da leitura,

além de contar quantidade de páginas lidas dos livros e registrá-las no livro de atas. No caso de

Elias, a análise de seu depoimento parece demonstrar alguns indícios do seu gosto, da posse e de

sua leitura intensa de livros considerados úteis para a religiosidade. Assim, os percursos e as

estratégias dos sujeitos parecem demonstrar um grande esforço autodidata para se apropriarem da

cultura escrita, sobretudo, daquela considerada "legítima".

Por outro lado, os tipos de escritos feitos pelos sujeitos, esboços e apostilas, e a maneira

como estes eram organizados – os esboços em pequenos textos organizados em tópicos e subtópicos

com várias referências bíblicas; e as apostilas em forma de relatos ou em pequenos textos com

tópicos e várias referências bíblicas – de maneira semelhante ao que foi observado em relação às

práticas de leitura verificamos que o perfil dos acervos dos sujeitos parece ser de leitores e

escritores cujos interesses de leitura e de escrita são, predominantemente, "utilitários". A escrita

desses tipos de materiais escritos pelos sujeitos parecem resultantes de um habitus associado ao

gosto popular, ou seja a um tipo de escrito considerado "ilegítimo".

Enfim, os três sujeitos parecem ter se aproriado da cultura considerada "legítima" não de

uma forma “natural”, ou seja "herdada" de seus pais, mas devido a um grande esforço, sobretudo,

autoditada, como ocorre com os “novos letrados”19, isto é "com a primeira geração de indivíduos

que se inseriram na cultura escrita". Logo, a apropriação da cultura escrita pelos sujeitos parece ter

sido marcada por um progressivo crescimento simbólico – registrado, inclusive – que marca a

passagem da condição de “não herdeiros” para a de leitores e “escritores” religiosos.

Page 20: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

20

Referências Bibliográficas

BATISTA, Antônio Augusto Gomes; et al. Entrando na cultura escrita: percursos individuais,

familiares e sociais nos séculos XIX e XX. Projeto de pesquisa integrada. Belo Horizonte, 2002.

BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI,

Afrânio (orgs.). Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.

BURKE, Peter (org.). A escrita da História: novas pespectivas. Tradução de Magda Lopes. São

Paulo: Editora da Universidade Federal Paulista, 1992. 355 p.

CHARTIER, Roger. Textos, impressos, leituras. In: ______. A História Cultural: entre práticas e

representações. Tradução de Maria Manuela Galhardo. 2. ed. Lisboa: Difusão Editorail Ltda, 2002.

p. 121-138.

FERNANDES, Francisco. et al. Dicionário Brasileiro Globo. 43. ed. São Paulo: Globo,1996.

FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaína. Usos e abusos da História Oral. Rio de Janeiro:

Fundação Getúlio Vargas, 1996.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Cordel: leitores e ouvintes. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. et al (org.) História da cultura escrita: estudos nos séculos

XIX e XX. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; OLIVEIRA, Poliana Prates Janaína de. Objetos e práticas de

leitura de um "novo letrado": estudo de um percurso individual no século XX. In: GALVÃO, Ana

Maria de Oliveira. et al (orgs.). História da cultura escrita: séculos XIX e XX. Belo Horizonte:

Autêntica, 2007. p.97-185.

GINZBURG, Carlo; CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro-história e outros ensaios.

São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

HÉBRARD, Jean. Les nouveaux lecteurs. In : CHARTIER, Roger; MARTIN, Henri-Jean (dir.).

Histoire de l´édition française. 2. ed. Tome 3. Paris: Fayard, Promodis, 1990. p. 526-565.

______. O autodidatismo exemplar. Como Valentin Jamerey-Duval aprendeu a ler? In:

CHARTIER, Roger. Práticas de leitura. Tradução de Cristiane Nascimento. 2. ed. São Paulo:

Estação Liberdade, 2001. p. 35-73.

IBGE. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. VIII Volume. Rio de janeiro, 1958. pp. 33-37;

200-205; 299-304.

LAHIRE, Bernard. Homem plural: Os determinantes da ação. Tradução de Jaime A. Clasen.

Petrópolis: Vozes, 2002. 231

LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas

perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p.133-161.

LOPES, Eliane Maria Teixeira Lopes; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da Educação.

Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 120 p.

Page 21: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

21

ORTIZ, Renato. (org.) Gostos de classe e estilos de vida. In: ______.Pierre Bourdieu. Sociologia.

São Paulo: Ática, 1994. p.82-121.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

REVEL, Jacques (org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV,

1998.

SILVA, Sandra Batista de Araujo; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira.. Práticas religiosas

Pentecostais e Processos de inserção na Cultura escrita (Pernambuco, 1950-1970). In: GALVÃO,

Ana Maria de Oliveira. et al. (orgs.). História da cultura escrita: séculos XIX e XX. Belo

Horizonte: Autêntica, 2007. p. 365-403.

SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

1O estudo fez parte de um conjunto de estudos monográficos, realizados em uma pesquisa integrada interistitucional, que tiveram por objetivo apreender os diferentes modos pelos quais indivíduos, famílias e grupos sociais tradicionalmente associados ao mundo do oral realizaram, no séculos XIX e XX, sua participação nas culturas do escrito. Ver Galvão et al (2007). 2 O termo refere-se à condição de não possuidor de uma "herança", ou seja, de um bem simbólico, no caso cultural, transmitido pelos pais aos filhos, como investimento para perpetuar o capital cultural incorporado, objetivado ou institucionalizado pela família. Ver Bourdieu (2002). 3 A Nova história, influenciada pela antropologia, pressupõe que a realidade é social e culturalmente construída, dessa forma, interessa-se por toda atividade humana, pois nesse paradigma "tudo tem história", assim o foco de investigação passou a ser as pessoas comuns inseridas em seus cotidianos. Baseia-se na análise das estruturas sociais, observando, principalmente, as limitações, as potencialidades e as especificidades das várias fontes em oposição ao paradigma tradicional de investigação histórica. Ver, entre outros, Burke (1992) e Pesavento (2003). 4 Ver, por exemplo, Lopes & Galvão (2001). 5 Utilizamos o termo “História” entre aspas na medida em que comungamos da concepção de alguns autores de que a “história” em si não é oral, mas as fontes utilizadas para construí-la. Ver Ferreira e Amado (1996). 6 Como afirma Revel "A aposta da análise microssocial (...) é que a experiência mais elementar, a do grupo restrito, e até mesmo do indivíduo, é a mais complexa e porque se inscreve no maior número de contextos diferentes” (p.32). Sobre a micro-história, ver, entre outros, Revel (1998), Ginzburg, Castelnuovo e Poni (1989), Levi (1992). 7O estudo realizado por Galvão (2001) discute como leitores e ouvintes de cordel estabelecem uma relação intensa com a cultura escrita. 8 Compreendemos “letramento” como a prática social da leitura e da escrita. Ver, entre outros, Soares (2002). 9 Realizamos primeiramente entrevistas com os sujeitos que geraram depoimentos com uma média de 4h20 e foram realizadas entre os anos de 2004 e 2005. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. Todas aconteceram em dias e locais previamente marcados e em locais escolhidos por eles. 10 A quantidade de sujeitos a serem estudados para o desenvolvimento da pesquisa não foi determinada a priori, na medida em que nosso objetivo era tentar compreender o papel desempenhado pelas práticas religiosas pentecostais na inserção de indivíduos na cultura escrita. Logo, para o estudo, era importante identificar indivíduos membros da Assembléia de Deus entre 1950 e 1970, “não herdeiros”, que demonstrassem uma certa intimidade ou gosto pelas práticas de leitura e escrita, construídos, sobretudo, nas suas experiências religiosas. 11 O perfil individual detalhado de cada sujeito é apresentado no estudo monográfico que realizamos. Ver Silva e Galvão (2007) 12 Ver IBGE (1958). 13 Refirimo-nos a uma forma de reorganização "racional" da vida ou a expressão de um caráter ético orientador da vida, segundo Weber (2001), característico do ethos protestante. 14 Para uma discussão sobre os aspectos éticos e estéticos da leitura ver Lahire (1997). 15 Hébrard (2001), demonstra em seu estudo sobre o leitor Valentin Jamerey-Duval que a leitura nem sempre é herdada dos pais, logo era possível uma aprendizagens de leitura que não seria uma "simples atualização do capital herdado", como é o caso dos autodidatas. 16 Em outros estudos podemos compreender como o processo de circulação de um produto cultural, como o impresso, permite o aprendizado da escrita, seus usos efetivos e as formas de legitimação pelos diferentes meios e grupos sociais (Chartier, 2001). 17 Segundo Ortiz (1994), Bourdieu faz um a distinção entre o "gosto" das classes populares considerado "bárbaro" em oposição ao gosto "puro" e "desinteressado" das classes superiores.

Page 22: MATERIAIS DE LEITURA E ESCRITA E FORMAS DE LER E … · O estudo monográfico que realizamos baseou-se na trajetória de três sujeitos 9 que atenderam a um perfil 10 que nos propusemos

22

18 O estudo já citado de Galvão (2001) aponta alguns fatores importantes que contribuíram para a inserção de sujeitos mesmo analfabetos e outros semi-alfabetizados na cultura escrita, como a memorização resultante das situações de leitura e a leitura intensiva, coletiva e em voz alta dos cordéis. Essas pessoas experienciaram práticas de letramento nas quais utilizaram a palavra escrita e impressa mesmo não estando na escola; mantiveram relação de intimidade com a escrita através da própria prática da oralidade. 19 Utilizamos este termo com base no estudo sobre “novos leitores” no século XIX. Ver Hébrard (1990).