pessoa, direito e direitos · (hans kelsen, «prefácio», in: teoria pura do direito, arménio...

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PESSOA, DIREITO E DIREITOS Colóquios 2014/2015 COORDENAÇÃO Nuno Manuel Pinto Oliveira Benedita Mac Crorie 2016

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Page 1: PESSOA, DIREITO E DIREITOS · (Hans Kelsen, «Prefácio», in: Teoria pura do direito, Arménio Amado, Coimbra, 1979). Em 2014, propusemos ao Direitos Humanos ² Centro de Investigação

PESSOA DIREITO E DIREITOSColoacutequios 20142015

COORDENACcedilAtildeONuno Manuel Pinto OliveiraBenedita Mac Crorie

2016

Pessoa direito e direitos

Coloacutequios 2014 2015

2016

II

Ficha teacutecnica

Tiacutetulo

Pessoa direito e direitos

Coordenadores

Nuno Manuel Pinto Oliveira e Benedita Mac Crorie

Design Graacutefico

Pedro Rito e Ceacutelia Rocha

Data

novembro 2016

Editor

Direitos Humanos ndash Centro de Investigaccedilatildeo Interdisciplinar

Escola de Direito da Universidade do Minho

Campus de Gualtar

ISBN

978-989-97492-2-1

III

Iacutendice

Apresentaccedilatildeo

Coloacutequio Internacional Nos 20 anos de Lifersquos Dominion

LIFErsquoS DOMINIONrsquoS DOMINION DWORKINrsquoS APPROACH AND THE

CURRENT LEGISLATIVE DEBATE ON ASSISTED SUICIDE IN GERMANY

Steffen Augsberg helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip11

DEVE O ESTADO SER NEUTRO AS QUESTOtildeES DIFIacuteCEIS DO ABORTO E

DA EUTANAacuteSIA

Benedita Mac Crorie helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip25

O CONCEITO DE UM PLANO RACIONAL DE VIDA E O SENTIDO DE UMA

MORTE DIGNA

Nuno Manuel Pinto Oliveira helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip35

Coloacutequio Internacional Em torno de Life Time Contracts

PRINCIacutePIOS GERAIS SOBRE OS CONTRATOS DURADOUROS ESSENCIAIS Agrave

EXISTEcircNCIA DA PESSOA

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip55

LIFE TIME CONTRACTS UM PRIMEIRO BALANCcedilO

Luca Nogler amp Udo Reifner helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip65

UMA INTRODUCcedilAtildeO AOS CONTRATOS EXISTENCIAIS

Nuno Manuel Pinto Oliveira helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip89

IV

SERAacute A NEGOCIACcedilAtildeO COLETIVA DESEJAacuteVEL NO CONTEXTO DOS LIFE

TIME CONTRACTS

Antoacutenio Agostinho Guedes helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip101

A ALTERACcedilAtildeO DAS CIRCUNSTAcircNCIAS E OS LIFE TIME CONTRACTS

Henrique Sousa Antunes helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip119

AS FUNCcedilOtildeES DO DIREITO DA INSOLVEcircNCIA NO AcircMBITO DE LIFE TIME

CONTRACTS (BREVE REFLEXAtildeO)

Catarina Serra helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip133

A VINCULACcedilAtildeO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E

OS CONTRATOS DE LONGA DURACcedilAtildeO

Benedita Mac Crorie helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip151

OS PRINCIacutePIOS GERAIS SOBRE OS CONTRATOS DURADOUROS

ESSENCIAIS Agrave EXISTEcircNCIA DA PESSOA (LIFE TIME CONTRACTS)

ALGUNS TOacutePICOS

Joseacute Joatildeo Abrantes helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip helliphelliphelliphelliphelliphellip163

OS CONTRATOS DE PRESTACcedilAtildeO DE SERVICcedilOS PUacuteBLICOS ESSENCIAIS

COMO LIFE TIME CONTRACTS

Jorge Morais Carvalho helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip165

O CONTRATO DE CREacuteDITO PARA AQUISICcedilAtildeO DE HABITACcedilAtildeO

PERMANENTE GARANTIDO POR HIPOTECA Agrave LUZ DOS PRINCIacutePIOS DE

LIFE TIME CONTRACTS

Ana Taveira da Fonseca helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip helliphelliphelliphellip183

V

PROPORCIONALIDADE E ADAPTABILIDADE A JURISPRUDEcircNCIA DO

TEDH NO EQUILIacuteBRIO DA RELACcedilAtildeO ENTRE SENHORIO E INQUILINO

Sandra Passinhas helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip201

BREVES REFLEXOtildeES SOBRE O EXERCIacuteCIO (EXTRAJUDICIAL) DO

DIREITO DE RESOLUCcedilAtildeO DO CONTRATO BILATERAL SINALAGMAacuteTICO

EM PARTICULAR SOBRE AS EXCECcedilOtildeES AO ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS

OPORTUNIDADESrdquo

O CASO PARTICULAR DAS RELACcedilOtildeES CONTRATUAIS DURADOURAS

Maria Joatildeo Sarmento Pestana de Vasconcelos helliphellip237

Coloacutequio ldquoO princiacutepio da dignidade da pessoa humana

e o direito privado Repensar os direitos de

personalidaderdquo

OS DIREITOS DE PERSONALIDADE COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS

Joaquim de Sousa Ribeiro helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip253

A (IR)RENUNCIABILIDADE DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE

Benedita Mac Crorie helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip263

DIREITOS (FUNDAMENTAIS) DE PERSONALIDADE

Luiacutesa Neto helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip275

TOMANDO A SEacuteRIO O PERSONALISMO EacuteTICO

Nuno Manuel Pinto Oliveira helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip277

AUSTERIDADE E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Joaquim Freitas da Rocha helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip295

VI

DIGNIDADE HUMANA E CONTRATO

Joseacute Joatildeo Abrantes helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip301

A VISAtildeO PERSONALISTA DA FAMIacuteLIA E A AFIRMACcedilAtildeO DE DIREITOS

INDIVIDUAIS NO SEIO DO GRUPO FAMILIAR ndash A EMERGEcircNCIA DE UM

NOVO PARADIGMA DECORRENTE DO PROCESSO DE

CONSTITUCIONALIZACcedilAtildeO DO DIREITO DA FAMIacuteLIA

Rute Teixeira Pedro helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip313

Apresentaccedilatildeo

laquoSe [hellip] ouso apresentar nesta altura o resultado do trabalho ateacute

agora realizado faccedilo-o na esperanccedila de que o nuacutemero daqueles que

prezam mais o espiacuterito do que o poder seja maior do que hoje possa

parecer faccedilo-o sobretudo com o desejo de que uma geraccedilatildeo mais

nova natildeo fique no meio do tumulto ruidoso dos nossos dias

completamente destituiacuteda de feacute numa ciecircncia juriacutedica livre faccedilo-o

na firme convicccedilatildeo de que os seus frutos se natildeo perderatildeo para um

futuro distanteraquo

(Hans Kelsen laquoPrefaacutecioraquo in Teoria pura do direito Armeacutenio Amado

Coimbra 1979)

Em 2014 propusemos ao Direitos Humanos mdash Centro de Investigaccedilatildeo

Interdisciplinar a criaccedilatildeo de dois grupos de investigaccedilatildeo em Direitos humanos

e biomedicina e em Direito privado mdash fenoacutemenos de constitucionalizaccedilatildeo de

materializaccedilatildeo e de socializaccedilatildeo

A proposta foi aceite mdash e em cada um dos dois grupos de investigaccedilatildeo

comeccedilaacutemos a desenvolver algumas iniciativas

Comeccedilaacutemos em Dezembro de 2014 com um coloacutequio internacional

sobre os 20 anos do livro de Ronald Dworkin Lifeacutes Dominion

Continuaacutemos em Maio de 2015 com um coloacutequio internacional sobre

o livro de Udo Reifner e Luca Nogler Life Time Contracts e em Dezembro de

2015 com um encontro sobre O princiacutepio da dignidade humana e o direito

privado Repensar os direitos de personalidade

No primeiro contaacutemos com a presenccedila de Joseacute de Sousa e Brito de

Manuel Carneiro da Frada de Steffen Augsberg e de Laura Ferreira dos

Santos

No segundo contaacutemos com a participaccedilatildeo de Udo Reifner e de Luca

Nogler de Agostinho Cardoso Guedes de Henrique Sousa Antunes de

Catarina Serra de Juacutelio Gomes de Joseacute Joatildeo Abrantes de Jorge Morais

Carvalho de Ana Maria Taveira da Fonseca de Sandra Passinhas e de Maria

Joatildeo Vasconcelos

E no terceiro no coloacutequio sobre O princiacutepio da dignidade humana e o

direito privado intervieram Joaquim Sousa Ribeiro entatildeo Presidente do

8

Tribunal Constitucional Maria Luacutecia Amaral Paulo Mota Pinto Luiacutesa Neto

Jorge Pereira da Silva Joaquim Freitas da Rocha Joseacute Joatildeo Abrantes e Rute

Teixeira Pedro

Nenhum acto ou gesto humano se preenche de significado se natildeo for

um acto ou um gesto partilhado Renovamos por isso o nosso agradecimento

a todos por terem aceitado partilhar connosco os seus conhecimentos e as suas

convicccedilotildees renovamos tambeacutem o nosso agradecimento a todos aqueles que se

dispuseram a assistir aos coloacutequios que organizaacutemos participando nos seus

trabalhos

Em tempos como os de hoje em que os recursos disponiacuteveis satildeo tatildeo

escassos tudo ou quase tudo o que podemos fazer depende da generosidade

da disponibilidade e (atrevemo-nos a pensar) de alguma amizade de quem se

dispotildee a aceitar o nosso convite

Estamos convencidos de que nos anima a todos a mesma feacute numa

ciecircncia do direito livre mdash e sobretudo estamos convencidos de que os frutos

do que dissemos se natildeo perderatildeo num futuro mais proacuteximo ou mais distante

Braga novembro de 2016

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Benedita Mac Crorie

Coloacutequio Internacional

Nos 20 anos de Lifersquos Dominion

Braga 12 de Dezembro de 2014

10

11

Lifersquos Dominionrsquos Dominion Dworkinrsquos Approach

and the Current Legislative Debate on Assisted

Suicide in Germany

Steffen Augsberg

A INTRODUCTORY REMARKS

In his seminal book bdquoLifersquos Dominionldquo1 Ronald Dworkin makes the

lucid and helpful distinction between the (objective collective) sanctity of

human life and the (subjective individual) right to life2 He then goes on to

argue that neither of these requires us to try to prolong each and every life at

any cost At this point his discussion is both subtle and convincing More

specifically though according Dworkin this analysis leads to the demand for

specific mechanisms allowing people to choose under certain conditions

whether or not to end their own life Here I find the argumentation too

generalistic and therefore not persuasive In my view Dworkin does not

sufficiently recognise the distinct historical experiences of different countries

and the legal traditions based upon these experiences Furthermore he does

not take into account the possibility that a rigid regulation of euthanasia might

be acceptable or even desirable in order to secure personal autonomy in

precarious circumstances Both of these aspects can be explained in more

detail by a short description of an ongoing debate in the German parliament

the Bundestag It concerns the question whether or not (certain forms of)

assisted suicide ndash which at present is legal due to the fact that suicide itself is

legal and assisting in a legal act cannot according to general criminal law

rules constitute a crime ndash are to be outlawed or even penalised

My argument here is developed in five steps At first it is worth

noticing that the current legislative process is exceptional insofar as it does not

follow the lines of traditional party politics and involves a great deal of

interdisciplinary and comparative work (B) Secondly in order to properly

understand the existing legal regulation of euthanasia and assisted suicide as

1 Dworkin R Lifersquos Dominion An Argument about Abortion and Euthanasia 1993 2 There are noteworthy parallels with Habermasrsquo concept of the sanctity of the human race (as

opposed to each individual human) cf Habermas J Die Zukunft der menschlichen Natur

Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik 2005

12

well as the different approaches to its reform it is important to remind

ourselves of the historical background In general much of what is being said

in German constitutional law has to be understood against the countryrsquos

specific historical experiences primarily the challenge of the fascist regime

At face value this rings especially true with regard to euthanasia although a

further scrutiny of their context creates some doubts as to the validity of the

historical arguments (C) On this basis we can thirdly take a closer look at

the legal framework in which a possible regulatory reform has to operate (D)

thus enabling us to better understand the different legislative proposals being

discussed in the Bundestag today (E) Finally this overview should help

understand why Dworkinrsquos approach regardless of how insightful interesting

and intellectually stimulating it is offers relatively little help with the

legislative task at hand (F)

B MEETING THE NEIGHBOURS THE CURRENT GERMAN DEBATE ON

ASSISTED SUICIDE AS A PARADIGM FOR A DISCUSSION INFLUENCED

BOTH BY INTERDISCIPLINARY INSIGHTS AND COMPARATIVE

PERSPECTIVES

Legal discussions tend to be rather introverted and self-centred and

lawyers are likely to regard legislative action mainly or even solely as a

question of conformity with higher-ranking norms Moreover in the German

parliamentary system at least discussions normally are shortened by means of

parliamentary or more precisely party discipline Although Art 38 of the

Fundamental Law states that members of Parliament bdquoshall be representatives

of the whole people not bound by orders or instructions and responsible only

to their conscienceldquo it is widely recognised that this passage does not stand

in the way of order and organisation within the parliamentary groups and

parliament as a whole Thus even with regard to highly controversial topics

with huge social andor fiscal implications (eg the recent decisions on

extending and expanding the financial support for Greece) the members of the

various parliamentary groups usually vote in accordance with their respective

party leaders This method while being a subject of constant criticism and

calls for reform has by and large been proven successful in the past It enables

parliamentarians to specialise in certain areas of expertise and allows their

colleagues to follow suit where these specific topics are concerned

The current legislative debate in Germany on the necessity to penalise

assisted suicide deviates from these well-trodden paths Its first peculiarity is

the fact that the party leaders have agreed to bdquoopen upldquo the debate ie not to

impose party discipline This is in line with the rather strange tendency in

recent years to allow members of parliament to vote according to their

13

conscience alone where ethical or biopolitical questions are concerned In

these (albeit rather scarce) circumstances parliament abstains from the

common practice of party discipline and adheres more strictly to the letter

(although not necessarily the spirit) of the (Fundamental) Law While it is

highly doubtful that this differentiation is in itself democratically sound3 in

the present context it has had very specific consequences All four legislative

proposals brought before parliament originated within parliament itself ie

none of them was drafted by the government and three out of the four are

based on cooperation of individual MPrsquos across party lines Secondly the

current debate is not limited to the field of law and the profession of lawyers

On the contrary the deliberations have so far included ia religious leaders

moral philosophers medical doctors and representatives of the secular

society4 Furthermore the ongoing discussions also benefit from far-reaching

factual and legal comparisons Specifically in order to support the argument

against stricter regulation regulatory concepts in countries whose approaches

to euthanasia andor (physician) assisted suicide are more liberal or care-free

than Germanyrsquos are being presented as possible role-models5 One might think

that this interdisciplinary and comparative perspective could (and maybe

should) easily link the current parliamentary debate directly to the work of

Dworkin Yet although at its heart lie exactly the problems which are also

pertinent for this conference the sanctity or in Dworkinrsquos terminology

intrinsic value of human life its relation to individual autonomy and freedom

and the ways in which it is to be protected by the legal order as far as I am

aware Dworkinrsquos position on euthanasia as laid out in bdquoLifersquos Dominionldquo is

not expressedly made reference to One might however find traces of his

basic concept and ideas within the details of the various legislative proposals

and their supporting arguments It is these implicit references that I would like

to stress in this short lecture

3 Cf Augsberg S bdquoSternstunden des Parlamentsldquo Ideal und Wirklichkeit biopolitischer

Entscheidungsfindung in der reprasentativen Demokratie forthcoming in Rixen S (Ed) Ist

wahrheitsorientierte Biopolitik moglich Chancen und Grenzen partizipationsfreundlicher

Institutionenarrangements bei politischen Konflikten am Lebensanfang und am Lebensende 4 As a side-note Having been involved in an expertsrsquo hearing held by the largest parliamentary

group (CDUCSU = the Christian Democrats) I was astonished ndash and a bit shocked ndash by the

extent of involvement of religious leaders Their influence is however not tangible in the

final legislative proposals 5 Cf eg the references to Belgium the Netherlands Luxemburg Switzerland and esp the

USA (Oregon Death With Dignity Act of 1997 Washington Death With Dignity Act of 2009

and the [Vermont] Patient Choice and Control at the End of Life Act of 2013) in Borasio G

et al Selbstbestimmung im Sterben ndash Fuumlrsorge zum Leben 2014 pp 41 seq

14

C HISTORICAL BACKGROUND EUTHANASIA AS ANATHEMA FOR

GERMAN SOCIETY

German constitutional thinking is in general highly influenced by the

historical experiences of the 20th century In many ways the Fundamental

Law can be read and interpreted as a normative antidote to the dangers that the

country faced the horror it suffered and the terror it inflicted on other nations

and peoples in the past Some specific sensibilities and peculiarities can be

explained against this background Whereas in other countries the influence of

religion eg catholicism in Southern Europe or Poland may be significantly

higher in Germany the memory oft he Nazi atrocities still shapes the current

legal and political debate Since the Nazi regime made use of the term

bdquoeuthanasialdquo ndash albeit in a completely different and perverted way the idea of

bdquomerciful killingsldquo is traditionally frowned upon in Germany As is the case

with many references to Nazi Germany mentioning these terrible crimes

usually functions as a almost irresistible discussion-stopper This is especially

evident with regard to sect 216 of the German Penal Code (Strafgesetzbuch=

StGB) According to this norm killing a person is a crime even if it is done in

response to and according to the bdquovictimrsquosldquo explicit demands In the political

realm at least this norm is regarded as a taboo that is not to be touched The

one common denominator of the four legislative proposals as well as the

political discussion on assisted suicide in general is the expressed conviction

that sect 216 StGB must not be modified

So on the one hand there can be little doubt that the atrocities of the

past still cast their shadow on the current debate Yet on the other hand there

is a sense there might be some mitigating factors Firstly we have to wonder

whether the importance of the historical experience on the collective psyche

in Germany has been exaggerated Historians have provided us with good

evidence that at least within the medical profession of the post-war period

relatively little attention was paid to past crimes6 Secondly according to

recent polls large parts of the populace do not share the taboo so evidently

dominant in the political sphere Questioned on their preferences with regard

to assisted suicide a solid majority state they would expect and accept bdquohelpldquo

from their respective physicians Obviously the subtle juridical differentiation

6 Cf the various publications of the Giessen university research project bdquoThematisierung der

NS-Medizin in der Nachkriegszeitldquo esp Roelcke VTopp SLepicard E (Eds) Silence

Scapegoats Self-Reflection The Shadow of Nazi Medical Crimes on Medicine and Bioethics

2014 Roelcke VLepicard E (Eds) Medical Narratives on National Socialist Euthanasia

Professional Identity and Ethics between Politics of Memory and Historiography (= Korot ndash

The Israel Journal of the History of Medicine and Science 19 [20072008] 2009 Special

Issue) 2009

15

between (de lege lata legal) assisted suicide and (de lege lata and according

to all relevant political actors de lege ferenda illegal) voluntary killing on

request7 is not only unknown but also irrelevant to the lay man Of course

when reading these polls we have to keep in mind the well-known potential

imprecision of demoscopy More importantly in a representative democracy

legislative reform is not designed directly according to popular demand or

widespread misconceptions of the law And yet the mere fact that there appears

to be such a blatant hiatus between the political class and the general public

merits the question whether and if yes why the criminalisation of the killing

on request is to be upheld Thirdly we have to recognise that the Nazi program

of euthanasia consisted not of voluntary killings but of murders thus

rendering the connection between these crimes and the current legal regulation

frail at best Even more relevant from a legal point of view is the fact that while

historical experiences may influence and explain legislative decisions they do

not in themselves serve as a sufficient legitimatory basis Historia docet but

is does not put forward legally binding demands In other words sect 216 StGB

the criminalisation of voluntary killing on request cannot be explained and

legitimized by objective supra-individualistic arguments This is why modern

criminal lawyers agree that the norm serves to guarantee individual autonomy

by securing that fleeting moments of desperation must not be exploited8 If this

reconstruction of the normrsquos telos is accepted as both legally and morally

convincing it leads pretty straightforwardly to a another conclusion There

may be other equally dangerous inferences on the autonomous decision-

making process These too could (and maybe should) therefore be subjected

to further regulation

D THE NORMATIVE FRAMEWORK FOR EUTHANASIA AND ASSSISTED

SUICIDE DE LEGE LATA

At this point it is necessary to present at least a very short overview oft

he normative framework that such regulatory reform would have operate

within In the given context this means that not only do we need to focus on

the general constitutional law provisions regarding (assisted) suicide (I) but

7 In short The two scenarios can be differentiated by a distinction that although theoretically

persuasive can prove rather difficult in practice we have to impugn whether the final act of

killing is taken by the bdquovictimldquo who is merely assisted by another person or whether this person

is responsible for this act 8 Cf Schneider H Muumlnchener Kommentar zum Strafgesetzbuch Bd 4 Second Edition

2012 sect 216 Rn 2 seq with further references

16

also on the conditions under which the Fundamental Law allows for the use of

criminal law (II)

I A FUNDAMENTAL RIGHTS BASED APPROACH TO THE PROBLEM

Like many modern constitutions the German Fundamental Law does

contain the right to life Its Art 2 subsection 2 does however not not only

concern the physical integrity of the human body Read together with the right

to free development of the individual personality (Art 2 subsec 1 and Art 1

subsec 1) the norm constitutes an encompassing fundamental right to

individual self-determination This dynamic individual right to make decisions

over onersquos own physical and mental integrity is of course especially relevant

in the field of medical attention (be it curative or palliative) Although

naturally patients tend to rely upon the expertise and experience of the medical

professionals involved in their care the constitution guarantees that the latter

have to behave according to the formerrsquos wishes Therefore it is the patient

not the physician who decides which procedure is to be applied This decision

is to be observed even where ndash from a purely medical point of view ndash it appears

bdquowrongldquo oder bdquoirrationalldquo The main goal of the medical treatment is not to

secure or restore the patientrsquos health rather it is his informed consent that

functions as the primary guideline for the medical professionals From a

fundamental rights perspective the hierarchy is very clear indeed Voluntas

non salus aegroti suprema lex9

This right to autonomy does not end where life-threatening decisions

are concerned On the contrary patients are guaranteed the right to decide

whether they agree to a life-saving operation or treatment Just as treatng a

patient is leliant upon his or her informed consent the informed dissent or veto

given by a mentally sound person is binding for the medical professionals

There is no duty of care against the patientrsquos wishes On the contrary

Continuing treatment against his or her wishes means violating his or her

physical integrity ndash from the crimainal law point of view it constitutes assault

As long as the patient is aware of the risks and consequences this is the case

even where non-treatment will lead to the patientrsquos death

About these questions there appears to be a broad maybe even

universal consensus among German constitutional lawyers At this point

Dworkin too would agree For even though he argues in bdquoLifersquos Dominionldquo

that we have to differentiate between the sanctity of life and the right to life

9 Cf Houmlfling W Salus etaut voluntas aegroti suprema lex ndash Verfassungsrechtliche Grenzen

des Selbstbestimmungsrechts in WienkeEberbachKramerJanke (Hrsg) Die Verbesserung

des Menschen 2009 pp 119 seq

17

and that the latter can only be attributed to individuals capable of having and

protecting interests10 thus excluding foetusses and embryos11 this distinction

of course cannot similarly be applied to the problems of suicide and

euthanasia In fact coming back to the German Fundamental Law the only

contentious issue concerns the question whether the constitution does

guranatee the right take onersquos own life meaning there is as it were a

fundamental right to suicide12 Indeed it does sound contradictory to provide

safeguards both for human life as well as the right to end it However any

interpretation that does not recognise the bdquoright to suicideldquo faces highly

problematic consequences Denying the right to end onersquos own life would be

tantamount to establishing a duty to continue living under any circumstances

ndash and that is obviously not acceptable from a fundamental rights perspective13

In stark contrast to religious beliefs this constitutional based approach does not

treat life as sacred or as an intrinsic untouchable value per se but as an

individual right or even as a personal commodity

So in short according to the German Fundamental Law each individual

is entitled to end his or her life Thus a great part of the characteristic problems

with regard to the legality of suicide which are so prominent within the

American legal system (and build the background to Dworkinrsquos analysis in

bdquoLifersquos Dominionldquo) do not exist in Germany Here suicide is not only not a

criminal offense but in principle protected by the law This also means that

assisting a person committing suicide is not punishable either The Penal Code

does however provide in its sect 216 for the criminalisation of euthanasia ie

the active killing of another person even if it happens in strict accordance to

this personrsquos expressed wishes As stated above the logic behind the

criminalisation of killings on request cannot be solely seen in the general taboo

of killing another person Rather the involvement of another person changes

10 Dworkin R Lifersquos Dominion An Argument about Abortion and Euthanasia 1993 p 20

bdquothe scarcely comprehensible idea that an organism that has never had a mental life can still

have interestsldquo 11 It is highly doubtful whether such a position is in accordance with the German Funamental

Law even though the Federal Constitutional Courtrsquos decisions on the criminalisation of

abortion might be interpreted in a similar sense Cf Augsberg S Wuumlrde des Menschen als

Gattungswesen Zur Verrechtlichung des Gattungsargumentes in Dabrock PDenkhaus

RSchaede S (Eds) Gattung Mensch Interdisziplinaumlre Perspektiven 2010 pp 385 seq 12 Cf for the sceptical position eg Di Fabio U MaunzDuumlrig (Eds) Grundgesetz-

Kommentar Art 2 Rn 47 with further references 13 Cf in this sense (among others) the recent recommendation by the German Ethics Council

(Deutscher Ethikrat) bdquoZur Regelung der Suizidbeihilfe in einer offenen Gesellschaft

Deutscher Ethikrat empfiehlt gesetzliche Starkung der Suizidpraventionldquo (18122014) p 3

18

and challenges the basic conception of a conscious and autonomous decision

to end onersquos own life

Moreover accepting the fundamental law basis of the autonomous

decision to end onersquos life is does of course not automatically encompass the

statersquos duty to supply legal mechanisms to successfully complete such an

endeavour Neither the Fundamental Law nor the Europea Convention on

Human Rights nor the European Unionrsquos Charter of Fundamental Rights

contain an entitlement of this sort14 On the other hand it does not proclude

the states from implementing protective measurements either With regard to

the high value the legal system places on human life a specific sensibility is

needed Since both the human autonomous decision-making and the physical

integrity are to be protected it is not only legally acceptable but in principle

necessary to prevent suicides and suicide-attempts The rationale being that

under normal circumstances it is almost impossible to know whether the

suicide (attempt) is grounded in an autonomous conscious and well-thought

out decision and that it is better to err on the side of caution It is not only the

duty to protect other peoplersquos (fundamental) rights ndash the classic example being

traumatized trains conductors ndash but primarily this cognitive insecurity the

unavoidable ignorance whether the decision has really been take

autonomously and without undue influence that legitimizes the statersquos action

against suicide attempts Empirically this approach can be validated by

pointing at statistcs according to which the number of suicide attempts is 10 to

20 times higher than the number of bdquosuccessfulldquo suicides15 Obviously there

exists a massive chasm between the fleeting wish to commit suicide and the

long-time wish for survival

II CRIMINAL LAW PROVISIONS

But is it really necessary to incorporate such provisions in the Penal

Code In a liberal system this question has to be asked and answered In our

case I am however convinced that even if we keep in mind the generally

speaking strict conditions under which criminal sanctions are lawful under the

German constitutional regime (1) the answer is bdquoYesldquo (2)

1 REGULATING PENAL LAW IN GENERAL

Criminalising a behaviour means using the legal systemrsquos most rigid

sanctioning mechanism Penal law provisions therefore must serve (only) to

14 Likewise the legislative proposal BT-Drs 1711126 pp 7 seq BR-Drs 23006 p 1 15 Cf eg Fiedler G Suizide Suizidversuche und Suizidalitat in Deutschland ndash Daten und

Fakten 2005 httpwwwsuicidologydeonline-textdatenpdf

19

enforce basic shared convictions If the law describes a given societyrsquos bdquoethical

minimumldquo16 then the criminal law must be held to an even stricter standard

The severity of the sanctions as well as the stigma that goes along with a

criminal conviction guarantee that trespasses against these norms are reduced

as much as possible Penal law provisions contain bans in the strict sense of

the word and thus form specifically intense infringements of individual

liberties For this reason they must not be used in order to protect mere moral

convictions or where individual rights are not (or not yet) at risk17

Furthermore penal law provisions demand specific legislative care They have

to state their respective aims clearly are to be formulated in a language that is

both precise and easily understandable and and they must avoid unwanted

negative effects In general new provisions should only be incorporated into

the Penal Code when there are no convincing other options

2 CRIMINALISING ASSISTED SUICIDE

However even against this reminder of the general preconditions and

limits of criminal law legislation in the current legislative debate there is no

need to worry that these standards are not met For once in the case of asssisted

suicide ndash as with sect 216 StGB ndash the law aims at protecting the most valuable

assets namely human life and individual autonomy It stipulates that these are

at least abstractly endangered where other persons or organisations are

involved because their involvement casts a doubt over the basic assumption of

self-responsibility that guarantees the legality of suicide (attempts) Clearly

putting life and autonomy at risk warrants a legal reaction and even a change

in the the penal law This ist especially true as other non-criminal law based

measures have been found wanting in the past According to recent experience

neither administrative law norms nor regulations on substance abuse and

(medical) professional behaviour have been able to effectively put a halt to the

attempts to establish assisted suicide as a normal service in Germany18

16 Cf Jellinek G Die socialethische Bedeutung von Recht Unrecht und Strafe 1878 17 Cf Hart HLA Law Liberty and Morality 1963 from a German criminal law perspective

eg Jakobs G Rechtsguumlterschutz Zur Legitimation des Strafrechts 2012 Wohlers W

Deliktstypen des Praumlventionsstrafrechts ndash zur Dogmatik bdquomodernerldquo Gefahrdungsdelikte

2000 18 For example in the case of a Berlin-based physician who claims to have assisted 150

persons with their suicide not only was there no criminal prosecution but an administrative

court even found no reason for a ban on the grounds of professional misbehaviour (VG Berlin

Judgement of March 30th 2012 ndash VG 9 K 6309 = Medizinrecht 2013 pp 58 seq) A spiritual

adviser who admittedly had been assisting with multiple suicides was only found guilty of

illegally importing and distributing narcotics in one instance (BGH Judgement of February

7th 2001 ndash 5 StR 47400 = BGHSt 46 pp 279 seq)

20

Relying on administrative control mechanisms or licensing programs would

also be an insufficient alternative Not only would the enforcement most likely

prove to be very difficult but such an arrangement would even have

counterproductive effects it would help to further strengthen the agenda to

bdquonormaliseldquo assisted suicide since the bdquoSterbehelferorganisationenldquo could

point to the bdquostamp of approvalldquo of being state-policed19

Finally the choice to implement the regulation of assisted suicide

within the Penal Code does have one further advantage In the German federal

system the regulation of professional behaviour is in general a matter of state

law Therefore it has been pointed out that the two legislative proposals that

aim to change just the Civil Code20 are unconstitutional on the grounds that

the competence for the regulation of the medical profession does not lie with

the federal level (bdquoBundldquo) but falls within the sphere of the states (bdquoLanderldquo)21

E ORIGIN AND OUTLINE OF THE ONGOING DEBATE

In the fall of 2015 the Bundestag will discuss and in all likelihood

decide on four legislative proposals Before these proposals can be described

in more detail (II) it is important to have a look at the factual developments

that have brought about this legislative action (I)22

I DEMOGRAPHIC CHANGE AND THE RISE OF

STERBEHELFERORGANISATIONEN (ORGANISATIONS

SPECIALISING IN ASSISTED SUICIDE)

As described above in the given criminal law system assisted suicide

is not a punishable offence This can of course be regarded as an integral and

intentional consequence of the legal systemrsquos approach to suicide in general

It might however also be perceived of as a loop-hole In any case the legality

of assisted suicide has enabled the emergence of a variety of so-called

19 BT-Drs 1711126 p 8 20 BT-Drs 185374 and 185375 21 Cf the expert opinion drafted by the Bundestagrsquos own team of legal advisers (Gutachten

des Wissenschaftlichen Dienstes des Deutschen Bundestags) Gesetzentwurfe zur

Sterbebegleitung Gesetzgebungskompetenz des Bundes und Bestimmtheitsgebot WD 3 ndash

3000 ndash 15515 of August 5th 2015 22 Disclaimer Having previously co-authored a similar proposal as an academic project

(httpstiftung-

patientenschutzdeuploadsfilespdfhibStellungnahmeGesetzentwurfAssistierterSuizid2012

0604pdf) I have been actively involved in drafting the second legislative proposal (Brand et

al)

21

bdquoSterbehelferorganisationenldquo Of course the term in itself is euphemistic as it

appeals to the idea of assisted dying wheras what is really meant is assisted

suicide While the numbers are still quite low they are apparently growing and

the attention and recognition received by these organisations have initiated an

intensive political debate This debate has to understood against the

background of the ndash another euphemism ndash bdquodemographic changeldquo within

German society Not only fort he last cuple of years but for decades the

demographic development ha staken a highly problematic turn As the former

President Koehler infamously put it bdquoWe are getting older and older but we

donrsquot have children anymoreldquo This aging society does affect a whole range of

political topics not the least of which are the ever-growing costs of the

national health service Clearly under these circumstances the idealistic idea

of self-determination regarding end-of-life decisions must be regarded with

even more scrutiny The potential for abuse is evident23

II A SHORT DESCRIPTION OF THE MOST RELEVANT LEGISLATIVE

AGENDAS

In the course of the ongoing debate the Bundestag has already passed

a law that serves to better the conditions for palliative care As stated before

the current debate focuses on the question of whether assisted suicide should

be penalised or whether it should be permissible if certain (mainly procedural)

conditions are met The proposals range from not changing the law at all to

penalising all forms of assisted suicide

1 A first legislative proposal (MP Sensburg et al)24 aims at

incorporating a new provision in the Penal Code that bans any form of assisted

suicide While this obviously serves to produce an easily understandable and

clear-cut solution it is also highly problematic from a constitutional law point

of view Since the new norm does not differentiate between suicides where the

autonomous decision is beyond doubt and suicides where that is not the case

it criminalises assistance even where the suicide itself is protected by the

respective individualrsquos fundamental rights

2 The second legislative proposal (MP Brand et al)25 does also

contain a new criminal law provision (sect 217 StGB) However in this proposal

this norm does not criminalise any form of assisted suicide Rather it penalises

only acts of assistance that are organised and meant to be provided

23 For a humourous yet quite scary take on the subject visit

httpfreakonomicscom20150827are-you-ready-for-a-glorious-sunset-a-new-

freakonomics-radio-episode 24 BT-Drs 185376 25 BT-Drs 185373

22

continuously and in many cases The rationale behind this proposal is that

persons andor organisations providing this kind of assistance are likely to

have interests of their own and develop their own agenda thereby possibly

contravening the wishes of the suicidal person Thus under such circumstances

it can be presumed that there is at least an abstract risk to an autonomous

decision-making process and the human life depending on this process

3 The third proposal (MP Kuumlnast et al)26 does not want to alter the

Penal Code but establishes a separate statute Within this statute however it

too contains a criminal law provision according to which certain forms of

assisted suicide are penalised Where the second proposal looks at continuance

and organisation this proposal relies on the financial aims of the persons

giving assistance The problem with this approach is a) that it can easily be

circumvented and b) that it is quite possible that an undue influence is exerted

even when there no financial interests involved

4 Finally the fourth porposal (MP Hintze et al)27 does not want to

criminalise assisted suicide at all On the contrary the proposal aims to clarify

its legality by integrating norms into the Civil Code that specify the conditions

under which assisted suicide is legal Among these conditions are the fact that

the suicidal person (in the proposalrsquos terminology the bdquopatientldquo) is an adult

and mentally sound yet suffering from a mortal and incurable illness that the

assistance is given by a physician and that certain steps are taken to ensure that

the bdquopatientrsquosldquo decision is sincere final and given voluntarily As with the third

proposal there are good arguments that this proposal is formally

unconstitutuional due to the fact that the Bundestag lacks the necessary

competence to legislate on these matters Furthermore the fact that the

proposal summarily excludes minors as well as persons who are not terminally

ill stands in stark contrast to the fundamental lawrsquos basic concept that no

human life is more or less valuable than another Finally while there is some

appeal in the idea that a procedural mechanism could be used to safeguard an

autonomous decision it is doubtful that this will work Quite obviously even

the drafters of the proposal do not trust their own concept because if they did

there would be no reason not to extend it a) beyond the restricted circle of

persons and b) to instances of killing on request (sect 216 StGB)

5 It remains to be seen how the Bundestag decides As things stand

only the second proposal does not invoke serious legal doubts It is however

quite possible that under these circumstances the Bundestag will vote not to

change the law at all leaving everything at it is

26 BT-Drs 185375 27 BT-Drs 185374

23

F LIFES DOMINIONS DOMINION NATIONAL EXPERIENCES AND

DISCIPLINARY EXPECTATIONS AS BOUNDARIES

As we have seen Dworkinrsquos tentative and balanced yet by tendence

liberal approach is not clearly tangible in the ongoing discussions His concept

of lifersquos intrinsic value can (and maybe must) however be understood against

the background of a nationrsquos specific historical experiences and the legal

traditions built upon those experiences Even if in Germany there is a trend

in recent years to discuss bdquoeuthanasialdquo more frankly and open-mindedly the

past still lingers on in the current debate and shapes recent events Another

aspect that links this discussion to Dworkinrsquos work concerns the use of

paternalistic legislation In the traditional liberal view attempts by the state to

educate and direct its citizens according to a specific idea of an accomplished

life are to be frowned upon To put it simply in a liberal society the individual

is free to do as he or she pleases and as long as this does not put others at risk

it is no one elsersquos especially not the statersquos business With regard to the case

at hand however we must also acknowledge that criticising state action as

paternalistic might often be oversimplistic For as we have seen the concept of

human autonomy and autonomous decision-making is indeed very

complicated and complex sometimes even dubious Even if it is not dicarded

as a myth altogether it is highly context-sensitive and worthy of both close

scientific (juridical) attention and maybe even legal protection In my view

that is one of the lasting lessons we can take from the debate on the

criminalisation of assisted suicide

24

25

Deve o Estado ser neutro

As questotildees difiacuteceis do aborto e da eutanaacutesia

Benedita Mac Crorie

O tema que nos propomos tratar diz respeito ao papel que o Estado

deve assumir a propoacutesito das ldquoquestotildees difiacuteceisrdquo28 do aborto e da eutanaacutesia

Tratando-se este coloacutequio de um coloacutequio comemorativo da obra de Ronald

Dworkin Lifeacutes Dominion gostariacuteamos de num primeiro momento

enquadrar cada uma das questotildees que nos propomos abordar no pensamento

do Autor para a partir daiacute passar para a nossa proacutepria anaacutelise destas

problemaacuteticas no ordenamento juriacutedico portuguecircs

1 O ABORTO

Em relaccedilatildeo agrave questatildeo do aborto e em traccedilos muito gerais a obra de

Dworkin parte de uma distinccedilatildeo que o Autor considera essencial entre uma

ldquoobjecccedilatildeo derivativardquo ao aborto que parte da consideraccedilatildeo do feto como um

ser com interesses proacuteprios e titular de direitos e uma ldquoobjecccedilatildeo

independenterdquo que se funda no valor intriacutenseco da vida humana29

Para o Autor esta distinccedilatildeo eacute essencial porque a confusatildeo entre estes

dois planos tem ldquoenvenenadordquo a discussatildeo puacuteblica sobre o aborto Segundo

ele os defensores do movimento proacute-vida parecem defender que o feto eacute jaacute

28 Sobre o conceito de hard cases ver RONALD DWORKIN Taking Rights Seriously 2ordf

impressatildeo (com resposta a criacuteticas) Duckworth London 2009 pp 81 ss RONALD

DWORKIN A Matter of Principle Clarendon Press Oxford 1985 pp 119 ss ANABELA

LEAtildeO ldquoEm torno dos conceitos de regra e de princiacutepio A poleacutemica entre Hart e Dworkinrdquo

in Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de

Lisboa Almedina Coimbra 2008 p 66 GUSTAVO ZAGREBELSKY El Derecho Duacutectil

Ley Derechos Justicia (trad MARINA GASCOacuteN) 8ordf Ediccedilatildeo Editorial Trotta Madrid

2008 p 139 utiliza a expressatildeo ldquocasos criacuteticosrdquo e considera que estes satildeo os casos ldquosobre os

quais natildeo existe acordo (hellip) entre os inteacuterpretes acerca do sentido e do valor que se lhes deve

atribuirrdquo O Autor daacute como exemplos as questotildees que se relacionam com os temas da vida (a

concepccedilatildeo o aborto) da morte (a eutanaacutesia) da sauacutede (os transplantes a engenharia geneacutetica)

e da bioeacutetica em geral 29 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom Vintage Books New York 1994 pp 11 e ss

26

uma pessoa com os inerentes direitos desde a concepccedilatildeo mas na verdade

muito poucos realmente acreditam nisso ou levam esta sua posiccedilatildeo ateacute agraves

uacuteltimas consequecircncias Assim sendo defende que o que realmente divide as

pessoas eacute a forma de interpretar uma ideia fundamental e que todos

compartilhamos que eacute a de que a vida humana eacute sagrada30

Nessa medida a questatildeo central que entende que se deve colocar eacute a

seguinte pode o aborto ser considerado ilegal para protecccedilatildeo da santidade ou

da inviolabilidade da vida humana Pode uma comunidade poliacutetica tornar

valores intriacutensecos em questatildeo de decisatildeo colectiva em vez de questatildeo de

escolha individual31

Dworkin considera que a criminalizaccedilatildeo do aborto implica que os

poderes puacuteblicos tomem uma posiccedilatildeo acerca de um assunto que eacute

essencialmente do foro religioso A crenccedila que cada um de noacutes tem a propoacutesito

do valor intriacutenseco da vida eacute tatildeo profunda e espiritual como qualquer outra

crenccedila ainda que possa natildeo estar explicitamente ligada a uma religiatildeo Nesse

sentido faz um apelo agrave tradiccedilatildeo de liberdade de consciecircncia em democracias

modernas plurais considerando que eacute uma terriacutevel forma de tirania destrutiva

da responsabilidade moral a comunidade impor princiacutepios de feacute ou convicccedilotildees

individuais Assim defende que o Estado deve assumir uma posiccedilatildeo de

neutralidade neste domiacutenio32

Aquela que nos parece ser uma das criacuteticas mais pertinentes agrave obra de

Dworkin (natildeo pondo em causa evidentemente a sua importacircncia

extraordinaacuteria) prende-se com a separaccedilatildeo estrita que o Autor estabelece entre

questotildees de direito e questotildees de valor estando estas uacuteltimas arredadas da

esfera puacuteblica particularmente se pretendermos transpor as suas ideias para a

ordem juriacutedico-constitucional portuguesa

Num texto em que comenta a obra de Dworkin Jeremy Waldron faz

uma criacutetica ao seu pensamento que vai precisamente nesse sentido dizendo o

seguinte ldquoNo final Dworkin manteacutem a sua argumentaccedilatildeo apenas insistindo

que a atribuiccedilatildeo de direitos nada tem que ver com questotildees de valor intriacutenseco

(hellip)rdquo Waldron considera no entanto que ldquonatildeo estamos em posiccedilatildeo de dizer

30 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit pp 13 ss 31 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit p 26 32 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit p 15

27

que as nossas controveacutersias sobre valor devem estar fora da tomada de decisatildeo

colectiva acerca da lei (hellip)rdquo33

Dworkin preconiza a neutralidade do Estado liberal e considera que as

decisotildees poliacuteticas devem ser na medida do possiacutevel independentes de

qualquer ldquoconcepccedilatildeo da vida boardquo34 Ora a criacutetica basilar que se tem dirigido

ao liberalismo neutral no qual se insere o pensamento do Autor eacute a de que as

normas de direitos fundamentais natildeo resultam de uma ldquoposiccedilatildeo originalrdquo mas

antes de uma ldquorsquoexperiecircnciarsquo histoacuterico-socialmente situadardquo35 Eacute entatildeo a

constataccedilatildeo de que os homens natildeo existem ldquoem estado purordquo mas ldquosituada e

comprometidamenterdquo que fundamenta a oposiccedilatildeo a esta perspectiva36 Os

preceitos relativos aos direitos fundamentais traduzem o reconhecimento de

ldquobens ou valoresrdquo importantes para uma dada comunidade e que justificam

esses mesmos preceitos37

Haacute entatildeo uma ldquounidade de sentido cultural nos direitos

fundamentaisrdquo o que natildeo significa no entanto a aceitaccedilatildeo de ldquouma

determinada teoria dos valoresrdquo ou ldquoo reconhecimento de uma ordem de

valores hieraacuterquica abstracta e fechadardquo sendo ldquoa ordem constitucional dos

direitos fundamentais uma ordem pluralista e abertardquo38 Eacute o princiacutepio da

dignidade da pessoa humana que confere essa ldquounidade de sentidordquo aos

direitos fundamentais39 Tal implica que devamos partir de uma concepccedilatildeo de

33 JEREMY WALDRON ldquoThe Edges of Liferdquo publicado a 12 de maio de 1994 disponiacutevel

em httpwwwlrbcoukv16n09 jeremy-waldronthe-edges-of-life (11012016) 34 RONALD DWORKIN ldquoLiberalismrdquo in STUART HAMPSHIRE (ed) Public and Private

Morality Cambridge University Press Cambridge 1978 p 127 35 FERNANDO J BRONZE ldquoPessoa Direito e Estadordquo in ANTOacuteNIO MENEZES

CORDEIRO - PEDRO PAIS DE VASCONCELOS ndash PAULA COSTA E SILVA (orgs)

Estudos em Honra do Professor Doutor Joseacute de Oliveira Ascensatildeo Vol I Almedina

Coimbra 2008 p 317 36 LUIacuteS PEDRO PEREIRA COUTINHO A Autoridade Moral da Constituiccedilatildeo Da

Fundamentaccedilatildeo da Validade do Direito Constitucional Coimbra Editora Coimbra 2009 p

51 37 JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 4ordf Ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2009 p 100 38 JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 cit pp 100 e 101 Considerando que ldquoa transformaccedilatildeo da teoria dos

valores numa teoria dos princiacutepios evita a temida lsquotirania dos valoresrsquo sem se cair numa

(impossiacutevel) indiferenccedila aos valoresrdquo ver JOAtildeO LOUREIRO O Procedimento

Administrativo entre a Eficiecircncia e a Garantia dos Particulares Coimbra Editora 1995 p

162 39 JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 cit p 103

28

bem que ldquoinclua de maneira essencial a autonomiardquo40 uma vez que o princiacutepio

da dignidade se consubstancia precisamente na ideia de (igual) autonomia

Assim o Estado deve ser plural mas natildeo tem necessariamente de ser

neutral Nas palavras de Nuno Pinto Oliveira o ldquoprinciacutepio do pluralismordquo

obriga o Estado a assegurar aos seus cidadatildeos ldquopor intermeacutedio da democracia

e dos direitos fundamentais lsquocertos espaccedilos de autodeterminaccedilatildeo em que [os

poderes poliacuteticos e sociais] natildeo podem entrarrsquordquo Por seu lado ldquoo princiacutepio da

neutralidaderdquo impotildee que o Estado ldquoescolha em cada caso concreto soluccedilotildees

inteiramente neutras em relaccedilatildeo agraves autocompreensotildees individuais e

colectivasrdquo Daqui se retira que ldquoo Estado contemporacircneo estaacute subordinado ao

princiacutepio do pluralismo natildeo estaacute no entanto subordinado ao princiacutepio da

neutralidaderdquo41

Tudo isto para dizer que ainda que natildeo se entenda que o feto seja titular

de um direito subjectivo agrave vida tal natildeo deve significar que consequentemente

natildeo deva gozar de nenhuma protecccedilatildeo Natildeo nos parece que esta tenha de ser

uma questatildeo de ldquotudo ou nadardquo O que estaacute em causa natildeo eacute em alternativa

apenas o valor intriacutenseco que cada um de noacutes atribui agrave vida mas antes o valor

que enquanto comunidade decidimos atribuir a este bem erigido em bem

constitucionalmente protegido

Tal tem vindo a ser o caminho trilhado pelo Tribunal Constitucional

Portuguecircs quando afirma por exemplo no Acoacuterdatildeo nordm 617200742 que laquo[d]a

inviolabilidade da vida humana como foacutermula de tutela juriacutedica natildeo deriva

desde logo que a protecccedilatildeo contra agressotildees postule um direito subjectivo do

feto ou que natildeo seja de distinguir um direito subjectivo agrave vida de uma

protecccedilatildeo objectiva da vida intra-uterina como resulta da jurisprudecircncia

constitucional portuguesa e de outros paiacuteses europeus O facto de o feto ser

tutelado em nome da dignidade da vida humana natildeo significa que haja tiacutetulo

idecircntico ao reconhecido a partir do nascimentoraquo

Assim a vida humana eacute um bem juriacutedico-constitucionalmente

protegido e o TC tem entendido que para o Estado mesmo que se considere

que o feto natildeo eacute titular de um direito subjectivo agrave vida decorre um dever de

proteger essa ldquovida em formaccedilatildeordquo Apesar disso na ponderaccedilatildeo que fez entre

o direito ao desenvolvimento da personalidade da mulher de um lado e a

40 CARLOS S NINO ldquoLiberalismo versus Comunitarismordquo in Revista del Centro de Estuacutedios

Constitucionales nordm 1 1988 p 374 41 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA O Direito Geral de Personalidade e a ldquoSoluccedilatildeo do

Dissentimentordquo ndash Ensaio Sobre um Caso de ldquoConstitucionalizaccedilatildeordquo do Direito Civil Coimbra

Editora Coimbra 2002 p 163 42 httpwwwtribunalconstitucionalpttcacordaos20070617html

29

dimensatildeo objectiva do direito agrave vida do outro entendeu que esse dever de

proteger o direito agrave vida natildeo implica necessariamente a criminalizaccedilatildeo do

aborto na medida em que o direito penal eacute a uacuteltima ratio e haveraacute outras

formas de tutelar este bem

Tambeacutem no Acoacuterdatildeo 75201043 o TC foi chamado a pronunciar-se

acerca do modo como foi regulamentada a interrupccedilatildeo voluntaacuteria da gravidez

precisamente no sentido de avaliar se o Estado cumpriu devidamente o dever

de protecccedilatildeo decorrente da norma que consagra o direito agrave vida e se natildeo

poderia estar aqui em causa um deacutefice de protecccedilatildeo ou uma proibiccedilatildeo de

insuficiecircncia Nas palavras do Tribunal ldquoO cumprimento desse dever estaacute

sujeito a uma medida miacutenima sendo violada a proibiccedilatildeo de insuficiecircncia

(ldquoUntermassverbotrdquo) quando as normas de protecccedilatildeo ficarem aqueacutem do

constitucionalmente exigiacutevel44rdquo

Uma das questotildees colocadas no Acoacuterdatildeo prendia-se com saber se a

consulta a que a graacutevida necessariamente tem de comparecer e que eacute uma

consulta meramente informativa eacute ou natildeo idoacutenea e suficiente para o fim a que

se destina ndash a tutela da vida humana intra-uterina

Quanto a essa questatildeo tendemos a concordar com o voto de vencida

da Senhora Conselheira Maria Luacutecia Amaral no qual considera que haacute

efectivamente um deacutefice de protecccedilatildeo particularmente no que se refere agrave

consulta obrigatoacuteria que na sua opiniatildeo ldquodeveria ser o lugar sisteacutemico para

o cumprimento do dever estadual de protecccedilatildeo da vida ndash tornando-se por isso

aberta em relaccedilatildeo ao resultado por dela natildeo dever resultar nenhuma

imposiccedilatildeo da conduta futura da graacutevida mas comprometida quanto aos seus

proacuteprios fins por implicar um reconhecido empenhamento do Estado quanto

agrave desincentivaccedilatildeo do aborto ndash o que natildeo acontece porque vem a ser regulada

pelo legislador como se afinal de um estrito procedimento formal se tratasse

43 httpwwwtribunalconstitucionalpttcacordaos20100075html 44 Sobre o princiacutepio da proibiccedilatildeo do deacutefice ver JORGE PEREIRA DA SILVA rdquoInterdiccedilatildeo de

protecccedilatildeo insuficiente proporcionalidade e conteuacutedo essencialrdquo in Estudos em Homenagem

ao Professor Doutor Jorge Miranda Vol II Coimbra Editora Coimbra 2012 pp 185 ss

JORGE REIS NOVAIS As Restriccedilotildees aos Direitos Fundamentais natildeo Expressamente

Autorizadas pela Constituiccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra 2003 pp 76 e 77 JOSEacute

JOAQUIM GOMES CANOTILHO Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo 7ordf

Ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2003 p 273 OLIVER KLEIN ldquoDas Untermassverbot ndash Uumlber

die Justiziabilitat grundrechtlicher Schutzpflichterfullungrdquo in JuS nordm 11 2006 p 961

DIETER GRIMM ldquoThe protective function of the staterdquo in GEORG NOLTE European and

US Constitutionalism Cambridge University Press Cambridge 2005 p 151

30

(para aleacutem de nela natildeo poderem estar presentes por proibiccedilatildeo decorrente do

nordm 2 do artigo 6ordm da Lei os meacutedicos objectores de consciecircncia)rdquo

Tendemos a concordar com esta posiccedilatildeo porque pensamos que eacute

importante que se entenda o aborto como uma lesatildeo de um bem juriacutedico

constitucionalmente protegido e natildeo como uma conduta meramente neutra45

No que se refere agrave questatildeo do aborto natildeo nos parece entatildeo que esta

seja uma questatildeo que deva apenas ser remetida agrave consciecircncia individual de

cada um tendo aqui o Estado um papel a cumprir ainda que esse papel natildeo

tenha de passar pela criminalizaccedilatildeo da conduta Ainda assim parece-nos

importante que o Estado leve a cabo poliacuteticas puacuteblicas e legisle no sentido de

evitar a sua banalizaccedilatildeo

Haacute ainda uma questatildeo que consideramos importante discutir a este

propoacutesito e em relaccedilatildeo agrave qual a lei eacute omissa o problema da reincidecircncia

Parece-nos que deve haver por parte do Estado uma atenccedilatildeo especial a estas

situaccedilotildees ainda que nos pareccedila que a soluccedilatildeo do problema natildeo deve passar

por medidas punitivas nomeadamente a imposiccedilatildeo do pagamento de taxas

moderadoras para quem reincida

2 A EUTANAacuteSIA

Voltando novamente agrave obra de Dworkin quanto ao fim da vida a

perspectiva do Autor parte da mesma ideia de que o que estaacute em causa eacute o

valor intriacutenseco que se atribui agrave vida sendo que a escolha do momento da

morte deve ser deixada agrave consciecircncia individual de cada um considerando que

estas questotildees que se colocam nos dois extremos da vida tecircm muito em

comum46 Para Dworkin a escolha da forma de morrer pode ser decisiva para

o proacuteprio sentido que pretendemos atribuir agrave nossa vida Assim a convicccedilatildeo

45 Independentemente de estarmos ou natildeo de acordo com as medidas adoptadas a Lei nordm

1362015 de 7 de Setembro que veio alterar a Lei nordm 162007 de 17 de abril sobre exclusatildeo

da ilicitude nos casos de interrupccedilatildeo voluntaacuteria da gravidez parece ter ido nesse sentido ao

estabelecer a obrigatoriedade de a mulher comparecer a consultas com um psicoacutelogo e um

teacutecnico de serviccedilo social bem como a possibilidade de os meacutedicos objectores de consciecircncia

poderem participar nas vaacuterias fases do processo de aconselhamento Esta lei foi entretanto

revogada 46 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit pp 179 e 218

31

de que a vida humana eacute sagrada pode acabar por se tornar em argumento

decisivo a favor em vez de contra a eutanaacutesia47

Pensamos que a argumentaccedilatildeo do Autor eacute mais convincente no que diz

respeito a esta questatildeo uma vez que aqui natildeo estaacute envolvido um ldquoser em

potecircnciardquo (ou o que lhe queiramos chamar) que eacute externo agrave pessoa que decide

morrer e que ainda que se possa considerar que natildeo eacute titular de um direito

subjectivo agrave vida goza da protecccedilatildeo que decorre deste direito na sua dimensatildeo

objectiva Trata-se da escolha que a proacutepria pessoa faz acerca do modo como

pretende terminar a sua proacutepria vida e na nossa perspectiva esse facto faz com

que natildeo possamos pensar os dois problemas exactamente nos mesmos termos

Haacute diferentes razotildees que podem ser invocadas por quem se opotildee agrave

liberdade de escolha em fim de vida O Autor refere que muitas vezes satildeo

razotildees paternalistas que estatildeo na base dessa oposiccedilatildeo defendendo-se que

mesmo quando as pessoas decidem em consciecircncia morrer ainda assim eacute mau

para elas que o faccedilam pelo que natildeo se deve permitir a eutanaacutesia48

Com o termo paternalismo pretende-se designar a ldquoprivaccedilatildeo ou

reduccedilatildeo da liberdade de escolha do indiviacuteduo operada pelo ordenamento a fim

de assegurar uma particular protecccedilatildeo da pessoa ou de uma categoria de

pessoas de actos contraacuterios ao seu proacuteprio interesserdquo49 O paternalismo

estadual goza de uma caracteriacutestica que o distingue das restantes medidas

restritivas do Estado a ldquofinalidade especiacutefica da restriccedilatildeo da liberdaderdquo Neste

caso o fundamento invocado eacute a protecccedilatildeo da pessoa contra possiacuteveis ldquomaacutes

escolhasrdquo que esta possa fazer e natildeo a defesa de interesses puacuteblicos ou de

terceiros50 Estaacute aqui em causa a protecccedilatildeo da pessoa contra si proacutepria

Ora o paternalismo eacute desde logo suspeito na perspectiva dos direitos

fundamentais porque potildee em causa o conteuacutedo de autonomia neles presente

ao permitir que essa autonomia apenas se exerccedila se se dirigir agrave promoccedilatildeo do

proacuteprio bem51 Na base da protecccedilatildeo da pessoa contra si mesma encontra-se

uma concepccedilatildeo de dignidade da pessoa natildeo apenas enquanto princiacutepio

47 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit p 196 e p 218 48 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit p 192 49 FABRIZIO COSENTINO ldquoIl paternalismo del legislatore nelle norme di limitazione

dellrsquoautonomia dei privatirdquo in Quadrimestre nordm 1 1993 p 120 50 KAI MOumlLLER Paternalismus und Persoumlnlichkeitsrecht Duncker amp Humblot Berlin 2005

pp 11 e 12 51 JOEL FEINBERG Harm to Self The Moral Limits of the Criminal Law Oxford University

Press New York Oxford 1986 p 58

32

fundante da liberdade individual mas que se pode sobrepor a esta uacuteltima

justificando restriccedilotildees ao exerciacutecio das liberdades individuais52 Uma das

razotildees invocadas pelo Estado para obrigar o titular da dignidade a um

comportamento conforme agrave dignidade eacute o facto de este considerar que sabe

melhor do que o proacuteprio titular avaliar os seus interesses53

Natildeo estamos no entanto de acordo com esta interpretaccedilatildeo do princiacutepio

da dignidade da pessoa humana Deve ser o proacuteprio sujeito a determinar o que

eacute para si mais ou menos digno Uma ldquovaloraccedilatildeo paternalistardquo que transfere

para o Estado ldquoa decisatildeo uacuteltima sobre aquilo que as pessoas devem ou natildeo

valorar na sua vidardquo independentemente da sua vontade converte os direitos

em deveres54 Ora natildeo haacute nem deve haver como regra ldquodireitos obrigatoacuteriosrdquo

em Estado de Direito55 Nas palavras de Dworkin ldquoas decisotildees sobre a vida e

a morte satildeo as mais importantes as mais essenciais para a formaccedilatildeo e

expressatildeo da personalidade que algueacutem pode tomar Consideramos que eacute

essencial tomar essas decisotildees correctamente mas tambeacutem entendemos ser

essencial tomaacute-las por noacutes proacutepriosrdquo 56

Pensamos que podem ser legiacutetimas medidas estaduais paternalistas

quando nas palavras de Jorge Reis Novais estejam em causa as possibilidades

de ldquoautodeterminaccedilatildeo futurardquo da pessoa57 Sendo a autonomia um valor central

na nossa ordem juriacutedica e cabendo ao Estado criar condiccedilotildees de autonomia

seraacute legiacutetimo que se tomem medidas no sentido de evitar que o titular do direito

leve a cabo uma intervenccedilatildeo que lhe retire a possibilidade de se autodeterminar

livremente no futuro58

52 JEAN-PHILIPPE FELDMAN ldquoFaut-il proteacuteger lrsquohomme contre lui-mecircme La digniteacute

lrsquoindividu et la personne humainerdquo in Droits nordm 48 2009 pp 88 e 89 53 KAI FISCHER Die Zulaumlssigkeit aufgedraumlngten staatlichen Schutzes vor Selbstschaumldigung

Peter Lang Frankfurt am Main 1997 p 192 54 LUIacuteSA NETO ldquoO Direito Fundamental agrave Disposiccedilatildeo sobre o Proacuteprio Corpordquo Revista da

Faculdade de Direito da Universidade do Porto Ano I 2004 p 226 55 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo rdquo in JORGE MIRANDA

(org) Perspectivas Constitucionais ndash Nos 20 Anos da Constituiccedilatildeo Coimbra Editora 1996

pp 286 e 287 Embora sejam de admitir excepccedilotildees como eacute o caso dos direitos-deveres 56 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit p 239 57 Eacute tambeacutem essa a posiccedilatildeo de JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentais

cit p 318 58 MARTINA DOROTHEE EPPELT Grundrechtsverzicht und Humangenetik GCA-Verlag

Herdecke 1999 p 124 REINHOLD ZIPPELIUS ndash THOMAS WUumlRTENBERGER

Deutsches Staatsrecht cit p 195

33

Pensamos que este raciociacutenio natildeo deve no entanto ser transponiacutevel

para a escolha de terminar a proacutepria vida Eacute evidente que a decisatildeo deliberada

de pocircr termo agrave vida tem como consequecircncia que a pessoa natildeo pode continuar

a exercer a sua liberdade no futuro Mas mais do que isso essa decisatildeo implica

que deixa de haver futuro A pessoa natildeo continua consequentemente a viver

a sua vida sem uma parcela de liberdade que possa pocircr em causa a sua

autodeterminaccedilatildeo59

Por outro lado ainda ldquona literatura anglo-saxoacutenica tem-se feito a

distinccedilatildeo entre paternalismo forte (hard paternalism) e paternalismo fraco

(soft paternalism)rdquo Os defensores do ldquopaternalismo forterdquo sustentam que se

pode impor proteccedilatildeo a pessoas capazes que decidiram voluntariamente

autocolocar-se em perigo ou lesar-se Para o ldquopaternalismo fracordquo apenas seraacute

de admitir uma interferecircncia para a proteccedilatildeo do proacuteprio quando a sua decisatildeo

natildeo eacute voluntaacuteria60

Justifica-se uma abordagem paternalista quando se trate ldquode direitos ou

interesses de menores de pessoas incapazes de se autodeterminarem ou que se

encontrem numa posiccedilatildeo conjuntural de debilidade ou desfavorrdquo61 Natildeo

podemos no entanto esquecer aquela que poderaacute ter sido a manifestaccedilatildeo de

vontade da pessoa enquanto ainda era capaz por exemplo atraveacutes de um

testamento vital

Mas natildeo eacute apenas por motivaccedilotildees paternalistas que nos podemos opor

agrave liberdade de escolha no fim da vida Tambeacutem a proacutepria dimensatildeo objectiva

do direito agrave vida enquanto valor que a nossa ordem juriacutedica visa prosseguir

pode ser invocada neste domiacutenio Natildeo nos parece no entanto que neste caso

na ponderaccedilatildeo a fazer entre o direito ao desenvolvimento da personalidade ou

o conteuacutedo de liberdade iacutensito no direito agrave vida de quem sobre ela pretende

dispor por um lado e o direito agrave vida na sua dimensatildeo objectiva por outro a

salvaguarda deste uacuteltimo esteja numa relaccedilatildeo razoaacutevel ou proporcional com a

medida e a importacircncia dos efeitos danosos produzidos na esfera do titular do

direito ao natildeo se permitir que este possa optar por pocircr termo agrave sua vida nas

situaccedilotildees extremas a que nos estamos a referir62

59 BENEDITA MAC CRORIE Os limites da renuacutencia a direitos fundamentais nas relaccedilotildees

entre particulares Almedina Coimbra 2013 p 306 60 KAI MOumlLLER Paternalismus und Persoumlnlichkeitsrecht cit pp 16 e 17 61 JORGE REIS NOVAIS As Restriccedilotildees aos Direitos Fundamentais natildeo Expressamente

Autorizadas pela Constituiccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra 2003 p 450 nota 785 62 Nesse sentido BENEDITA MAC CRORIEldquoA doutrina da renuacutencia a direitos fundamentais

ndash os casos da eutanaacutesia e da colheita de oacutergatildeos em vidardquo in Manuel Curado ndash Nuno Pinto

34

Finalmente e no que se refere agraves preocupaccedilotildees contra eventuais abusos

pensamos que a protecccedilatildeo da liberdade da decisatildeo e a salvaguarda dos

indiviacuteduos dos riscos que esta realidade pode acarretar se consegue instituindo

procedimentos por intermeacutedio dos quais se controlam as condiccedilotildees em que

esta liberdade eacute exercida e natildeo pura e simplesmente suprimindo-a63

Gostariacuteamos de terminar a nossa intervenccedilatildeo com uma frase de

Laurence Tribe a propoacutesito da obra que estamos a discutir hoje ldquoDworkin

pode natildeo nos convencer sobre as suas posiccedilotildees acerca do aborto ou da

eutanaacutesia mas natildeo seremos capazes de ler o seu trabalho sem chegar a um

sentido mais completo sobre o que a morte significa para noacutes e como a sua

interpretaccedilatildeo influencia o sentido que atribuiacutemos agrave vida Porque apesar de

todas as suas falhas este livro a obra prima de Dworkin eacute um deleite para a

mente e um baacutelsamo para a almardquo64

Oliveira (org) Pessoas Transparentes Questotildees Actuais da Bioeacutetica Almedina Coimbra

2010 p109 63 BENEDITA MAC CRORIE ldquoA doutrina da renuacutencia a direitos fundamentais ndash os casos da

eutanaacutesia e da colheita de oacutergatildeos em vidardquo cit p 109 Criticando o argumento slippery slope

isto eacute considerar-se que a legalizaccedilatildeo da eutanaacutesia mesmo em casos cuidadosamente

delimitados torna mais provaacutevel que venha tambeacutem a ser legalizada em situaccedilotildees mais

duvidosas podendo o processo terminar em praacuteticas eugeacutenicas como as que tiveram lugar

durante o nazismo ver RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About

Abortion Euthanasia And Individual Freedom cit p 197 64 LAURENCE H TRIBE ldquoOn the Edges Of Life And Deathrdquo publicado a 16 de maio de

1993 disponiacutevel em httpwwwnytimescom19930516bookson-the-edges-of-life-and-

deathhtml pagewanted=all (11012016)

35

O conceito de um plano racional de vida e o sentido de

uma morte digna

Nuno Manuel Pinto Oliveira

laquoA temperanccedila eacute uma espeacutecie de ordenaccedilatildeo e ainda o domiacutenio de

certos prazeres e desejos como quando dizem natildeo entendo bem de

que maneira ser lsquosenhor de sirsquo e empregam outras expressotildees do

geacutenero que satildeo como que vestiacutegios desta virtuderaquo65

laquo[hellip] na alma do homem haacute como que uma parte melhor e outra

pior quando a melhor por natureza domina a pior chama-se a isso

ser lsquosenhor de sirsquo mdash o que eacute um elogio sem duacutevida poreacutem quando

devido a uma maacute educaccedilatildeo ou companhia a parte melhor sendo mais

pequena eacute dominada pela superabundacircncia da parte pior a tal

expressatildeo censura o facto como coisa vergonhosa e chama ao

homem que se encontra nessa situaccedilatildeo escravo de si mesmoraquo66

I

Em The Autonomy of Morality67 Charles Larmore critica a

pressuposiccedilatildeo de que cada pessoa deve ter um plano coerente ou um plano

racional de vida Dworkin fala da vida como uma narraccedilatildeo criativa

integrada68 Finnis de um plano coerente de vida69 e Rawls de um plano

racional de vida70 Larmore alega que a ideia de um plano de vida conteacutem um

erro O plano de vida pressupotildee duas coisas Em primeiro lugar pressupotildee que

65 Platatildeo Repuacuteblica 5ordf ed Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1987 paacutegs 204-205

(431a) 66 Platatildeo Repuacuteblica cit paacuteg 182 (431a-b) 67 Charles Larmore The Autonomy of Morality Cambridge University Press Cambridge

2008 paacutegs 246-271 68 Ronald Dworkin Il dominio della vita (tiacutetulo original Lifes Dominion) Edizioni di

Comunitagrave Milano 1994 paacuteg 283 69 John Finnis Natural Law and Natural Rights Oxford University Press Oxford 1980 paacutegs

103-105 laquocoherent plan of liferaquo 70 John Rawls A Theory of Justice Revised Edition Harvard University Press Cambridge

(Massachussetts) 1999 paacutegs 153-160 e sobretudo paacutegs 491-496 laquorational plan of liferaquo

36

cada pessoa tenha o dever de dirigir a sua vida71 Em segundo lugar pressupotildee

que cada pessoa tenha o dever de dirigir a sua vida de acordo com uma

concepccedilatildeo harmoniosa mdash com uma unified conception mdash dos nossos fins e

dos meios adequados para os prosseguir72 O plano em causa deveria atender

designadamente agraves nossas convicccedilotildees sobre aquilo que eacute valioso e desvalioso

agravequilo que sabemos sobre as nossas capacidades e agravequilo que sabemos sobre

as probabilidades de alcanccedilarmos aquilo que consideramos valioso e de

afastarmos aquilo que eacute desvalioso73 Larmore sugere que o conceito de um

plano de vida desvaloriza injustificadamente a circunstacircncia de as

concepccedilotildees do bem de cada pessoa estarem sujeitas agrave mudanccedila

ldquoBeing surprised by a good of which we had no inkling is itself an

invaluable element of what makes life worth living Our lives would

be the poorer if our happiness unfolded perfectly according to

planrdquo74

Os argumentos de Charles Larmore confundem frequentemente duas

coisas O termo plano sugere a afectaccedilatildeo de meios determinados a fins

determinados O plano coerente ou plano racional de vida natildeo

O Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa contemporacircnea define plano como

um laquoprojecto para a organizaccedilatildeo e orientaccedilatildeo de um trabalho ou tarefa que

traccedila o esquema deste especificando as suas diversas partes ou etapas e que

visa a consecuccedilatildeo de um objectivoraquo75 Ora o plano coerente ou plano racional

de vida natildeo eacute (natildeo pode ser) representado como um afectaccedilatildeo de determinados

meios a determinados fins mdash a vida natildeo eacute propriamente um trabalho ou uma

tarefa e um plano coerente ou plano racional de vida natildeo traccedila propriamente

o esquema de um trabalho ou de uma tarefa

71 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 247 laquo The mistake lies at its very

core in the attitude toward life it embodies That attitude is the view that a life is something

we are to lead and not something we should allow to happen to usrdquo 72 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 247 laquo we should indeed seek to live

in accord with some unified conception of our overall purposes and of the path to achieve

themrdquo 73 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 247 laquo To the extent that we develop

our plan in a rational way giving due weight to our beliefs about what is valuable our

knowledge of our own abilities and our sense of the possibilities the world provides we will

have determined the character of our good and the way to achieve itrdquo 74 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 252 75 Academia das Ciecircncias de Lisboa Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa contemporacircnea vol

II Verbo Lisboa Satildeo Paulo 2001 paacuteg 2876

37

Entre o sentido geral do termo plano e o sentido especiacutefico do termo

plano coerente ou plano racional de vida na filosofia moral e poliacutetica haacute trecircs

diferenccedilas fundamentais Em primeiro lugar haacute diferenccedilas fundamentais

quanto ao grau de abstracccedilatildeo Em segundo lugar haacute diferenccedilas fundamentais

quanto ao grau de complexidade Em terceiro lugar haacute diferenccedilas

fundamentais quanto ao horizonte temporal dos projectos

mdash Em primeiro lugar haacute diferenccedilas fundamentais quanto ao grau de

abstracccedilatildeo Os fins de um plano podem e devem representar-se em termos

mais concretos Os fins de um plano coerente ou de um plano racional de vida

soacute podem e soacute devem representar-se em termos mais abstractos

mdash Em segundo lugar haacute diferenccedilas fundamentais quanto ao grau de

complexidade Os fins de um plano podem e devem representar-se em termos

mais simples Os fins de um plano coerente ou de um plano racional de vida

soacute podem e soacute devem representar-se em termos mais complexos

i) por um lado por natildeo estarem (por natildeo poderem estar)

determinados desde o iniacutecio76

ii) por outro lado ainda que jaacute estejam determinados (ainda que jaacute

tenham sido determinados) por conflituarem entre si77

mdash Em terceiro lugar haacute diferenccedilas fundamentais quanto ao tempo O

horizonte temporal de um plano eacute (sempre) um horizonte limitado Os planos

laquo acabam raquo ou laquo completam-se raquo com a consecuccedilatildeo do fim prosseguido O

horizonte temporal de um plano coerente ou de um plano racional de vida

esse eacute um horizonte ilimitado O plano coerente ou plano racional de uma vida

natildeo laquo acaba raquo e natildeo se laquo completa raquo78

II

Esclarecidas as diferenccedilas fundamentais entre um plano e um plano de

vida perguntar-se-aacute de que falamos quando falamos de um plano de vida

O problema relaciona-se com uma distinccedilatildeo fundamental em Lifersquos

Dominion Dworkin contrapotildee dois tipos de razotildees para que uma pessoa faccedila

ou natildeo faccedila alguma coisa para que uma pessoa decirc agrave vida uma determinada

76 John Rawls A Theory of Justice paacuteg 492 Os fins de um plano racional de vida

determinam-se gradualmente 77 Cf John Rawls A Theory of Justice cit paacuteg 79 O plano eacute desenhado para permitir uma

satisfaccedilatildeo harmoniosa dos interesses de uma pessoa mdash p ex atraveacutes da planificaccedilatildeo de

actividades laquopara que diferentes desejos natildeo colidam entre siraquo 78 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104

38

direcccedilatildeo79 O primeiro corresponderia aos interesses experienciais80 ou

interesses volicionais81 O segundo corresponderia aos interesses criacuteticos O

facto de todas as pessoas terem terem um plano de vida eacute controverso82 O

facto de os interesses criacuteticos soacute fazerem sentido dentro de um plano coerente

ou de um plano racional de vida esse eacute incontroverso

a) Os interesses criacuteticos exprimem a ambiccedilatildeo abstracta de viver uma

vida boa O termo vida boa eacute (pode ser) um termo um tanto ou quanto

estranho se em inglecircs o termo good life tem um preciso significado eacutetico ou

moral em portuguecircs os termos vida boa ou boa vida natildeo o tecircm O seu

significado eacute perturbado pela conotaccedilatildeo faacutecil com os planos de vida das

pessoas grosseiras ou vulgares que acreditam que o bem eacute o prazer83

O presente texto atribuiraacute ao termo vida boa o sentido que deve ter mdash

a vida boa eacute a vida que procura e prossegue o bem Aristoacuteteles falava de um

bem de um bem supremo laquo que devemos prosseguir em todos os actos da

nossa vida raquo e que Aristoacuteleles identificava com a felicidade84

Independentemente de qual seja o bem supremo mdash independentemente de o

bem supremo ser ou natildeo a felicidade a vida boa seraacute uma vida que o procura

e prossegue

b) Exprimindo a ambiccedilatildeo abstracta de viver uma vida boa os

interesses criacuteticos tecircm duas caracteriacutesticas

Os interesses criacuteticos satildeo razotildees para desejar que o conjunto das

experiecircncias de uma pessoa tenha uma estrutura que exprima escolhas

coerentes O problema estaacute em que o facto de uma vida se fundar sobre uma

soacute convicccedilatildeo natildeo valeraacute de nada se a uacutenica convicccedilatildeo sobre a qual a vida se

funda for uma convicccedilatildeo errada o facto de uma vida exprimir escolhas

coerentes com uma soacute convicccedilatildeo natildeo valeraacute de nada se essas escolhas

coerentes forem escolhas erradas laquonenhum daqueles que considera a sua vida

fundada sobre um erro se consolaraacute de constatar que a sua vida se funda sobre

79 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 277 80 Expressatildeo preferida por Ronald Dworkin em Il dominio della vita cit paacutegs 277 ss 81 Expressatildeo preferida por Ronald Dworkin em ldquoFoundations of Liberal Equalityrdquo in Stephen

L Darwall Equal Freedom Selected Tanner Lectures on Human Values University of

Michigan Press Cambridge (Massachussetts) 1995 paacutegs 190-306 ou em ldquoLiberal

Communityrdquo in California Law Review vol 77 (1989) paacutegs 479-504 82 Dworkin parece pensar que sim mdash que todas as pessoas tecircm um plano de vida laquoas pessoas

cujas vidas natildeo parecem seguir nenhum projecto s[eriam] ainda assim guiadas por um sentido

geral do estilo de vida que consideram apropriadoraquo (Il dominio della vita cit paacuteg 279) 83 Aristoacuteteles Moral a Nicoacutemaco Espasa Calpe Madrid 1978 6ordf reimpressatildeo mdash 1993 paacuteg

67 84 Aristoacuteteles Moral a Nicoacutemaco cit paacuteg 65

39

um soacute erroraquo85 Os interesses criacuteticos satildeo por isso razotildees para desejar que as

escolhas coerentes que o conjunto das experiecircncias exprime sejam escolhas

correctas

III

Em primeiro lugar os interesses criacuteticos satildeo razotildees para desejar que o

conjunto das experiecircncias de uma pessoa tenha uma estrutura mdash e para desejar

que a estrutura das experiecircncias exprima escolhas coerentes

Os interesses experienciais ou volicionais satildeo razotildees para desejar as

experiecircncias agradaacuteveis e para natildeo desejar as experiecircncias desagradeacuteveis86 O

valor das experiecircncias consideradas em si (isoladamente) depende de as

considerarmos agradaacuteveis ou desagradaacuteveis como experiecircncias87 Os

interesses criacuteticos satildeo razotildees para desejar que o conjunto das experiecircncias mdash

agradaacuteveis e desagradaacuteveis mdash tenha uma determinada estrutura88 Dworkin

descreve-a como uma estrutura que exprima escolhas coerentes89

Os termos estrutura ou estrutura que exprima escolhas coerentes

significam (i) que as escolhas de uma pessoa satildeo determinadas por princiacutepios

e por valores (ii) que os princiacutepios e os valores determinantes satildeo em nuacutemero

relativamente restrito e (iii) que os princiacutepios e os valores determinantes em

nuacutemero relativamente resrito satildeo harmonizaacuteveis entre si

Caso as escolhas de uma pessoa sejam coerentes a sua vida exprimiraacute

um compromisso constante constitutivo do laquoeuraquo90 laquono sentido de uma

determinada perspectiva do caraacutecter ou do fim que uma vida entendida como

uma narraccedilatildeo criativa integrada [deve] exprimir ou ilustrarraquo91

O facto de as experiecircncias agradaacuteveis ou desagradaacuteveis de uma

pessoa terem uma determinada estrutura exprimindo escolhas coerentes

corresponderia a um ideal de integridade92 ainda que a integridade natildeo fosse

tudo sempre seria alguma coisa mdash e alguma coisa importante

85 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 284 86 Em Justice for Hedgehogs Dworkin fala em desiderata (paacuteg 118) 87 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 279 88 Em Justice for Hedgehogs Dworkin fala em values (paacuteg 119) 89 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 283 90 Rawls sugere que a unidade do laquoeuraquo depende da coerecircncia do plano de vida seleccionado

ou da coerecircncia das escolhas da pessoa conforme o plano de vida seleccionado (cf John

Rawls A Theory of Justice cit paacuteg 491) 91 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 283 92 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 283

40

laquoa integridaderaquo mdash diz Dworkin mdash laquoreveste-se de grande

importacircncia na vida como na ciecircncia e na arteraquo93

IV

Em segundo lugar os interesses criacuteticos satildeo razotildees para desejar que as

escolhas coerentes que o conjunto das experiecircncias de uma pessoa exprime

ou ilustra correctas mdash tornem a sua vida autenticamente melhor94

O facto de as experiecircncias de uma pessoa terem uma determinada

estrutura exprimindo escolhas coerentes eacute em si insuficiente para que a

estrutura das experiecircncias de uma pessoa seja a estrutura de uma vida boa

Finnis di-lo de uma forma clara O plano coerente ou plano racional

de vida eacute o plano de vida de uma pessoa racional e razoaacutevel Entre os corolaacuterios

da representaccedilatildeo de um plano coerente ou plano racional como plano de vida

de uma pessoa racional e razoaacutevel encontram-se os dois seguintes

O primeiro estaacute em que uma pessoa razoaacutevel natildeo pode conformar-se

com a decisatildeo de viver sem um projecto (= com a decisatildeo de viver de momento

para momento laquoprosseguindo desejos imediatosraquo95) e o segundo em que uma

pessoa razoaacutevel natildeo pode conformar-se com a decisatildeo de viver de projecto

definido para projecto definido O plano de vida de uma pessoa razoaacutevel natildeo

se esgota (natildeo pode esgotar-se) na realizaccedilatildeo de projectos definidos que

podem ser laquoacabadosraquo ou laquocompletadosraquo96

Evitando a irracionalidade de uma vida que decorre sem projectos

definidos ou de uma vida que decorre sem um plano que proporcione uma

estrutura aos projectos definidos que se acabam e se completam o plano de

vida deve representar-se como um compromisso com bens e ou com

valores97

O valor dos interesses experienciais ou volicionais eacute um valor

subjectivo O valor dos interesses criacuteticos eacute um valor objectivo O facto de os

reconhecermos ou de natildeo os reconhecermos natildeo os prejudica

As pessoas que conhecem o valor dos interesses criacuteticos satisfazendo-

os transformam (podem transformar) a sua vida numa vida melhor as pessoas

93 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 284 94 Cf Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 273 Os interesses criacuteticos satildeo

laquointeresses cuja satisfaccedilatildeo torna a vida autenticamente melhorraquo 95 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104 96 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104 97 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104 laquocommitmentraquo

41

que natildeo conhecem o valor dos interesses criacuteticos natildeo os satisfazendo

transformam a sua numa vida pior ldquonatildeo [hellip] reconhecer [=os interesses

criacuteticos] significa cometer um erro tornar pior a proacutepria vidardquo98

O sentido dos termos tornar melhor a proacutepria vida ou tornar pior a

proacutepria vida deve esclarecer-se Tornar melhor a proacutepria vida natildeo significa

de forma nenhuma tornar a vida mais agradaacutevel natildeo significa de forma

nenhuma adoptar um estilo de vida que permita gozaacute-la melhor99 Tornar pior

a proacutepria vida natildeo significa de forma nenhuma tornar a vida menos

agradaacutevel

Os interesses criacuteticos fazem com que tornar a vida de uma pessoa mais

ou menos agradaacutevel fazem com que gozar a vida seja ldquono fim de contas

menos importante do que pareciardquo100 A ambiccedilatildeo abstracta corresponde agrave

ambiccedilatildeo abstracta de participaccedilatildeo em bens humanos fundamentais101 Entre

os quais estariam ou deveriam estar a integridade fiacutesica e psicoloacutegica (life) a

amizade o conhecimento ou a sabedoria (practical reasonableness)102

O termo tornar melhor a proacutepria vida significa fazecirc-la participar dos

bens fundamentais103 significa enchecirc-la com as coisas que satildeo ldquoboas em si

mesmasrdquo104 ou tornaacute-la mais coerente com os princiacutepios e com os valores que

satildeo certos e verdadeiros O termo tornar pior a proacutepria vida esse significa

esvaziaacute-la das coisas que satildeo ldquoboas em si mesmasrdquo tornaacute-la menos coerente

com os bens e com os valores que satildeo certos e verdadeiros

O compromisso com os bens e com os valores que satildeo certos e

verdadeiros estaria laquoacabadoraquo ou laquocompletoraquo desde que os bens ou valores

fossem plenamente realizados O problema estaacute em que os bens e os valores

fundamentais mdash como os bens ou valores da amizade do conhecimento ou da

sabedoria mdash natildeo satildeo nunca plenamente realizados Enquanto compromisso

com os bens e com os valores que satildeo certos e verdadeiros o plano de uma

vida natildeo estaraacute nunca laquocompletoraquo ou laquoacabadoraquo105

98 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 273 99 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 282 100 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 282 101 Expressatildeo de John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 85 102 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacutegs 85-90 103 Expressatildeo de John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacutegs 85-90 104 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 282 105 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104 laquodeep commitmentsraquo

42

Enquanto o sentido geral de uma vida boa da participaccedilatildeo no bem da

amizade ou da participaccedilatildeo no bem do conhecimento ou no bem da sabedoria

pode representar-se com facilidade o sentido especiacutefico natildeo

O facto de a foacutermula encontrada por cada pessoa natildeo ser ldquouma foacutermula

eterna universalmente vaacutelidardquo106 soacute significa que as formas de participaccedilatildeo

em princiacutepios e valores universais107 ou de satisfaccedilatildeo dos interesses criacuteticos

estatildeo condicionadas pelas circunstacircncias especiacuteficas de cada um de noacutes108

Estando condicionadas pelas circunstacircncias especiacuteficas de cada um de noacutes as

formas de participaccedilatildeo em princiacutepios e em valores universais atraveacutes de

decisotildees ou de escolhas sobre acccedilotildees sobre omissotildees ou sobre projectos

definidos satildeo formas de participaccedilatildeo ldquopotencialmente inesgotaacuteveisrdquo109

Entre a afirmaccedilatildeo de que uma vida boa eacute uma vida aberta agrave

experiecircncia filha do seu tempo110 e a afirmaccedilatildeo de que uma vida boa eacute uma

vida conforme a um plano coerente ou a um plano racional natildeo haacute

contradiccedilatildeo alguma Os planos de vida como a justiccedila natildeo dizem respeito agrave

laquoactividade externa do homem mas agrave internaraquo os planos de vida como a

justiccedila dizem respeito laquoagravequilo que [o homem] verdadeiramente ele e ao que

lhe pertenceraquo111

Em diferentes palavras todavia insistindo no mesmo pensamento

O plano de vida eacute um compromisso eacute uma determinaccedilatildeo abstracta da

participaccedilatildeo nos bens e valores fundamentais compatiacutevel com a abertura da

determinaccedilatildeo concreta das formas de participaccedilatildeo a vida conforme ao plano

eacute uma vida aberta agrave experiecircncia filha do seu tempo por ser a experiecircncia que

nos revela as formas de participaccedilatildeo nesses bens e nesses valores

106 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 285 107 Expressatildeo de John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 64 laquoparticipation-

in-a-valueraquo 108 Expressatildeo de Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 285 109 Cf John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 64 110 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 271 ldquoThe good life outruns the

reach of planning because its very nature is to be the child of time To recognize this truth is

the beginning of wisdom for it is to understand why wisdom is something more than

prudencerdquo 111 Platatildeo Repuacuteblica cit paacutegs 204-205 (443c)

43

V

Nozick fala de uma laquomaacutequina da experiecircnciaraquo112 desenhada para

proporcionar todas as experiecircncias que uma pessoa quisesse ter mdash entre as

quais estariam p ex a experiecircncia de estar a fazer um amigo ou de estar a

escrever um grande livro ou de estar a ler um grande livro113 Entre uma vida

soacute com experiecircncias agradaacuteveis determinadas por uma qualquer laquomaacutequina da

experiecircnciaraquo e uma vida com experiecircncias agradaacuteveis e desagradaacuteveis

determinadas por escolhas coerentes Nozick sustenta que deve dar-se

preferecircncia ou prioridade agrave segunda por pelo menos trecircs razotildees

Em primeiro lugar a nossa representaccedilatildeo de uma vida boa implica

fazer determinadas coisas queremos fazer determinadas coisas e natildeo soacute ter a

experiecircncia de as fazer ou de as ter feito114 Em segundo lugar a nossa

representaccedilatildeo de uma vida boa implica ser alguma coisa queremos ser uma

determinada pessoa e natildeo soacute ter a experiecircncia de a ser ou de a ter sido115 Em

terceiro lugar ela implica o contacto com a realidade mdash com uma realidade

mais profunda que uma qualquer realidade artificial

laquoplugging into a experience machine limits us to a man-made reality

to a world no deeper or more important than that which people can

constructraquo116

Entre os argumentos deduzidos por Nozick para sustentar por que

devemos recusar uma vida contendo exclusivamente experiecircncias agradaacuteveis

proporcionadas por uma qualquer ldquomaacutequina da experiecircnciardquo e os argumentos

deduzidos por Dworkin para sustentar por que devemos aceitar uma vida

contendo experiecircncias agradaacuteveis e experiecircncias desagradaacuteveis

proporcionadas por escolhas coerentes haacute uma relaccedilatildeo de semelhanccedila117

O interesse em fazer determinadas coisas ou em ser uma determinada

pessoa em contacto com uma realidade mais profunda e consequentemente

mais significativa que qualquer realidade artificial corresponde exacta ou

quase exactamente ao conceito de interesse criacutetico

112 Robert Nozick Anarchy State and Utopia Blackwell Publishers Oxford 1974 paacutegs 42-

45 experience machine 113 Robert Nozick Anarchy State and Utopia cit paacuteg 43 114 Robert Nozick Anarchy State and Utopia cit paacuteg 43 115 Robert Nozick Anarchy State and Utopia cit paacuteg 43 116 Robert Nozick Anarchy State and Utopia cit paacutegs 43-44 117 Em Justice for Hedeghogs Dworkin exprime a sua concordacircncia com o raciociacutenio de

Nozick representando-o como algo de mais ou menos evidente (paacuteg 207 e paacuteg 458 mdash nota

nordm 17)

44

O valor dos interesses experienciais eacute um valor instrumental

(transitivo) As experiecircncias valem se forem agradaacuteveis e natildeo valem se o natildeo

forem O valor dos interesses criacuteticos esse eacute um valor final (intransitivo) Os

interesses criacuteticos orientam-se a coisas que satildeo ldquoboas em si mesmasrdquo118

VI

Dworkin extrai da distinccedilatildeo (teoacuterica) entre os conceitos de interesses

experienciais e de interesses criacuteticos o seguinte princiacutepio praacutetico

Os problemas relacionados com o valor da vida humana no seu estaacutedio

inicial (da vida humana ainda natildeo nascida ou ainda natildeo capaz de consciecircncia)

ou no seu estaacutedio final (da vida humana jaacute natildeo capaz de consciecircncia) satildeo

sempre problemas relacionados com os interesses criacuteticos As opccedilotildees sobre a

vida e a sobre a morte seriam as opccedilotildees laquomais importantes [hellip] para a

formaccedilatildeo e para a expressatildeo da personalidaderaquo119 Estando em causa

problemas relacionados com os nossos interesses criacuteticos cada um de noacutes

deveria ter o direito de os resolver conforme as suas convicccedilotildees

Dworkin alega que cada um de noacutes como pessoa considera importante

duas coisas (i) por um lado laquoconsideramos importante tomar as decisotildees mais

correctasraquo e (ii) por outro lado laquoconsideramos [hellip] importante tomar as

decisotildees mais coerentes com o nosso ideal de vida connosco proacutepriosraquo120

O Estado deveria dar a cada pessoa o direito de decidir o problema do

aborto de acordo com as suas convicccedilotildees sobre o valor da vida humana no seu

estaacutedio inicial e de decidir o problema da eutanaacutesia de acordo com as suas

convicccedilotildees sobre o valor da vida humana no seu estaacutedio final

O estaacutedio inicial da vida humana comeccedilaria num momento certo e

terminaria num momento certo mdash comeccedilaria com a concepccedilatildeo e terminaria

com a viabilidade fetal corresponderia aos seis primeiros meses de

gestaccedilatildeo121 O estaacutedio final da vida humana esse natildeo comeccedilaria num

momento certo e natildeo terminaria num momento certo Dworkin liga-o a uma

pluralidade de capacidades eou a uma pluralidade de valores mdash entre os quais

estatildeo p ex a cessaccedilatildeo da capacidade da pessoa para conformar um plano

coerente ou plano racional de vida122 a cessaccedilatildeo da capacidade da pessoa para

118 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 282 119 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 330 120 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 330 121 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit esp paacutegs 230-245 122 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 301

45

determinar acccedilotildees omissotildees eou laquoprojectos definidosraquo conforme a esse plano

coerente de vida123 e o valor do respeito da pessoa por si proacutepria124

O princiacutepio de que cada pessoa tem o direito de decidir o problema do

aborto de acordo com as suas convicccedilotildees sobre o valor da vida humana no seu

estaacutedio inicial concretizar-se numa regra simples O Estado teria o dever de

afirmar a licitude ou pelo menos teria o dever de negar a ilicitude do aborto

durante os seis primeiros meses de gestaccedilatildeo125 O princiacutepio de que cada pessoa

tem o direito de decidir o problema da eutanaacutesia de acordo com as suas

convicccedilotildees sobre o valor da vida humana no seu estaacutedio final esse natildeo se

concretizaria em nenhuma regra regra simples Dworkin diz simplesmente

que a morte tem laquouma importacircncia especial e simboacutelicaraquo126 Cada pessoa teria

direito a uma morte digna O termo morte digna designaria (soacute) uma morte

adequada agrave vida127 mdash a morte soacute seria digna desde que confirmasse ldquoem

termos muito niacutetidosrdquo ldquoos valores que [as pessoas] reconhecem como os mais

importantes das suas vidasrdquo128

Ora ldquoos valores que [as pessoas] reconhecem como os mais

importantes das suas vidas satildeo os valores prosseguidos por um plano coerente

ou um plano racional de vida Os termos cada pessoa tem direito a uma morte

digna significariam que cada pessoa tem direito a uma morte adequada ao seu

plano coerente de vida ou ao seu plano racional de vida Como o plano

coerente de vida ou plano racional de vida eacute um plano orientado pelos

interesses criacuteticos os termos cada pessoa tem direito a uma morte adequaao

ao seu plano coerente ou plano racional de vida significariam que cada pessoa

tem direito a uma morte adequada aos seus interesses criacuteticos129

VII

Dworkin desvaloriza (injustificadamente) a diferenccedila entre os

problemas do aborto ou da eutanaacutesia o caso do aborto natildeo eacute nem exclusiva

123 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 305 124 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 305 125 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacutegs 230-245 126 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 291 127 Cf Martin Koppernock Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung Zur

Rekonstruktion des allgemeinen Persoumlnlichkeitsrechts cit paacuteg 171 128 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 291 129 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacutegs 327-332

46

nem essencialmente um problema de autodeterminaccedilatildeo130 o caso da eutanaacutesia

sim

O argumento dos interesses criacuteticos eacute (e deve ser) um argumento mais

fraco no caso do aborto e mais forte no caso da eutanaacutesia Evitando o caso do

aborto perguntar-se-aacute entatildeo mdash O argumento dos interesses criacuteticos seraacute

razatildeo suficiente para sustentar um direito definitivo agrave eutanaacutesia

Em trecircs acoacuterdatildeos absolutamente fundamentais mdash nos acoacuterdatildeos de 29

de Abril de 2002 no caso Pretty vs Reino Unido de 20 de janeiro de 2011

no caso Haas vs Suiacuteccedila e de 19 de julho de 2012 no caso Koch vs Alemanha

mdash o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem adere ao argumento dos

interesses criacuteticos afirmando que cada pessoa tem o direito de conformar o

processo da sua morte Os acoacuterdatildeos de 29 de abril de 2002 e de 19 de Julho de

2012 descrevem-no pela negativa O primeiro descrevo-o como o direito de

evitar uma morte indigna131 e o segundo como o direito de evitar um processo

de morte caracterizado pela degradaccedilatildeo fiacutesica e psiacutequica

ldquoWithout in any way negating the principle of sanctity of life

protected under the Convention the Court considered that in an era

of growing medical sophistication combined with longer life

expectancies many people were concerned that they should not be

forced to linger on in old age or in states of advanced physical or

mental decrepitude which conflicted with strongly held ideas of self

and personal identityrdquo132

O acoacuterdatildeo de 20 de janeiro de 2011 descreve-o pela positiva mdash como

direito de conformar o processo da morte decidindo p ex quando morrer133

130 Rainer Beckmann descreve-o como um problema de heterodeterminaccedilatildeo de uma pessoa

natildeo nascida (ldquorsquoSelbstbestimmungrsquo uber das Leben Ungeborenerrdquo in Bernward Buumlchner

Claudia Kaminski Mechthild Loumlhr (coord) Abtreibung mdash ein neues Menschenrecht Sinus‐

Verlag Krefeld 2012 paacutegs 27-58) 131 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash

paraacutegrafo 67 laquo The applicant in this case [Diane Pretty] is prevented by law from exercising

her choice to avoid what she considers to be and undignified and distressing end to her life

The Court is not prepared to exclude that this constitutes an interference with her right to

respect for private life as guaranteed under Article 8 [paragraph] 1 of the Convention raquo 132 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 19 de julho de 2012 mdash

paraacutegrafo 51 133 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 20 de janeiro de 2011 mdash

paraacutegrafo 51 ldquothe Court considers that an individualrsquos right to decide by what means and at

what point his or her life will end provided he or she is capable of freely reaching a decision

47

O problema estaacute tatildeo-soacute em averiguar se o direito eacute provisoacuterio ou

definitivo

O caso exige a distinccedilatildeo entre pontos de partida e pontos de chegada

Enquanto o ponto de partida deve representar-se como um princiacutepio mdash como

um direito provisoacuterio (prima facie) mdash o ponto de chegada (soacute) pode

representar-se como uma regra mdash (soacute) pode representar-se como um direito

definitivo O argumento dos interesses criacuteticos pode proporcionar uma

fundamentaccedilatildeo adequada e suficiente para o ponto de partida da discussatildeo

(direito provisoacuterio ou prima facie) mdash natildeo pode poreacutem proporcionar uma

fundamentaccedilatildeo suficiente para o ponto de chegada (= direito definitivo)

Em primeiro lugar o Estado tem o dever de limitar o direito agrave eutanaacutesia

exigindo uma adequada justificaccedilatildeo objectiva para a causaccedilatildeo da morte de

uma pessoa O problema da afirmaccedilatildeo da licitude ou da negaccedilatildeo da ilicitude

da eutanaacutesia soacute deve colocar-se desde que haja uma perturbaccedilatildeo grave da

capacidade de uma pessoa para prosseguir os seus interesses criacuteticos

Entre os casos em que haacute uma perturbaccedilatildeo grave da capacidade de

uma pessoa para prosseguir os seus interesses criacuteticos estatildeo sobretudo os

quatro seguintes (i) casos de perda definitiva da autonomia em que a pessoa

fica na absoluta dependecircncia de outrem (ii) casos de perda definitiva de

consciecircncia (iii) casos de diminuiccedilatildeo grave e irreversiacutevel das capacidades

intelectuais e (iv) casos de sofrimento irreversiacutevel e intoleraacutevel134

Em segundo lugar o Estado tem o dever de limitar o direito agrave eutanaacutesia

exigindo uma adequada justificaccedilatildeo subjectiva para a causaccedilatildeo da morte

O conceito de interesses criacuteticos pressupotildee que a pessoa disponha da

capacidade para representar intelectualmente os bens e os valores mais

importantes da sua vida e da liberdade para determinar as suas acccedilotildees as suas

omissotildees e os seus projectos definidos de acordo com os bens e os valores

representados135 Os poderes poliacuteticos e sociais podem e devem entrar nos

on this question and acting in consequence is one of the aspects of the right to respect for

private life within the meaning of Article 8 of the Conventionrdquo 134 Cf designadamente Joseph Raz ldquoDeath in Our Liferdquo in WWW lt

httpssrncomabstract=2069357 gt ldquoTypically at least four conditions are often thought to

justify voluntary euthanasia (a) a life without consciousness known as a vegetative life (b)

life of unremitting great pain (c) a life of total dependence on others (d) a life of greatly

diminished mental capacities (severe loss of memory absence of linguistic capacity

unremitting severe mental distress fear etc)rdquo 135 Construindo os direitos fundamentais como capabilities Martha Nussbaum Women and

Human Development The Capabilities Approach Cambridge University Press Cambridge

2000 paacutegs 70-105 Idem ldquoThe Supreme Court 2006 Term mdash Foreword lsquoConstitutionsrsquo and

48

espaccedilos de autodeterminaccedilatildeo correspondentes aos interesses criacuteticos para

proteger p ex a plena capacidade e a plena liberdade da pessoa contra o

perigo de uma perturbaccedilatildeo importante da possibilidade faacutectica de

autodeterminaccedilatildeo Estando por causa a eutanaacutesia o perigo de uma

perturbaccedilatildeo importante da possibilidade faacutectica de autodeterminaccedilatildeo eacute um

perigo particularmente seacuterio mdash as pessoas no estaacutedio final da sua vida podem

ser como quase sempre satildeo especialmente fraacutegeis e as pressotildees sociais

(designadamente as pressotildees familiares) sobre as pessoas especialmente

fraacutegeis podem ser especialmente intensas136

VIII

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem confirma que o

argumento dos interesses criacuteticos natildeo pode proporcionar uma fundamentaccedilatildeo

adequada para um direito definitivo agrave eutanaacutesia por pelo menos duas razotildees

a) Em primeiro lugar o direito de autodeterminaccedilatildeo sobre o processo

da sua morte137 pode e deve ser conformado O Estado deve (pelo menos)

determinar um procedimento adequado para que a decisatildeo da pessoa

Capabilities lsquoPerceptionrsquo Against Lofty Formalismrdquo in Harvard Law Review vol 121

(2007) paacutegs 4-97 Idem ldquoHuman Dignity and Political Entitlementsrdquo in Human Dignity

and Bioethics Essays Commissioned by the Presidentrsquos Council on Bioethics Washington

2008 paacutegs 351-380 Thom Brooks ldquoCapabilitiesrdquo in WWW lt

httpssrncomabstract=1964924 gt 136 Cf designadamente Martha Nussbaum ldquoHuman Dignity and Political Entitlementsrdquo cit

paacuteg 373 137 Cf acoacuterdatildeos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002

[paraacutegrafo 67 mdash laquoThe applicant in this case [Diane Pretty] is prevented by law from exercising

her choice to avoid what she considers to be and undignified and distressing end to her life

The Court is not prepared to exclude that this constitutes an interference with her right to

respect for private life as guaranteed under Article 8 [paragraph] 1 of the Conventionraquo] de

20 de janeiro de 2011 [paraacutegrafo 51 mdash laquothe Court considers that an individualrsquos right to decide

by what means and at what point his or her life will end provided he or she is capable of freely

reaching a decision on this question and acting in consequence is one of the aspects of the

right to respect for private life within the meaning of Article 8 of the Conventionrdquo] e de 19 de

julho de 2012 [paraacutegrafo 51 mdash ldquoWithout in any way negating the principle of sanctity of life

protected under the Convention the Court considered that in an era of growing medical

sophistication combined with longer life expectancies many people were concerned that they

should not be forced to linger on in old age or in states of advanced physical or mental

decrepitude which conflicted with strongly held ideas of self and personal identityrdquo]

49

corresponda com suficiente probabilidade e em suficiente medida a um

resultado conforme aos bens e aos valores fundamentais138

Dworkin representa o direito de autodeterminaccedilatildeo de acordo com os

interesses criacuteticos como um espaccedilo[] de autodeterminaccedilatildeo em que [os poderes

poliacuteticos e sociais] natildeo podem entrarrdquo139 Os problemas relacionados com o

valor da vida humana estariam laquoreservadosraquo aos indiviacuteduos

Ora o conceito de interesses criacuteticos pressupotildee que a pessoa disponha

da capacidade para assumir uma (= para se comprometer com uma) particular

representaccedilatildeo de valores universais e para determinar as suas acccedilotildees as suas

omissotildees e ou os seus laquoprojectos definidosraquo de acordo com a particular

representaccedilatildeo em causa140 Os poderes poliacuteticos e sociais devem entrar nos

laquoespaccedilos de autodeterminaccedilatildeoraquo determinados pelos interesses criacuteticos p ex

para proporcionar agrave pessoa a capacidade pressuposta

b) Em segundo lugar o direito de autodeterminaccedilatildeo sobre o processo

da sua morte pode ser restringido para a protecccedilatildeo de bens e de valores

conflituantes protegidos pela lei fundamental mdash como o valor da vida141

Estando em causa a eutanaacutesia (= suiciacutedio medicamente assistido) o

Estado deve (pelo menos) determinar um procedimento adequado para que a

decisatildeo da pessoa corresponda com suficiente probabilidade e em suficiente

medida a um resultado conforme aos bens e aos valores fundamentais

O perigo de uma perturbaccedilatildeo importante da possibilidade faacutectica de

autodeterminaccedilatildeo eacute um perigo seacuterio mdash por causa p ex das pressotildees sociais

sobre pessoas em situaccedilatildeo de especial (excepcional) fragilidade

138 Cf Robert Alexy Theorie der Grundrechte 3a ed Suhrkamp Frankfurt-am-Main 1996

paacuteg 431 139 Karl Loewenstein Teoriacutea de la constitucioacuten (tiacutetulo original Verfassungslehre) Editorial

Ariel Barcelona 1976 paacuteg 390 140 Construindo os direitos fundamentais como laquocapabilitiesraquo Martha Nussbaum ldquoThe

Supreme Court 2006 Term mdash Foreword lsquoConstitutionsrsquo and Capabilities lsquoPerceptionrsquo

Against Lofty Formalismrdquo in Harvard Law Review vol 121 (2007) paacutegs 4-97 Idem

ldquoHuman Dignity and Political Entitlementsrdquo in Human Dignity and Bioethics Essays

Commissioned by the Presidentrsquos Council on Bioethics Washington 2008 paacutegs 351-380

Thom Brooks ldquoCapabilitiesrdquo in WWW lt httpssrncomabstract=1964924 gt 141 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash

paraacutegrafo 74 laquoIt does not appear to be arbitrary to the Court for the law to reflect the

importance of the right to life by prohibiting assisted suicide while providing for a system of

enforcement and adjudication which allows due regard to be given in each particular case to

the public interest in bringing a prosecution as well as to the fair and proper requirements of

retribution and deterrenceraquo

50

Ou bem que o Estado consegue conformar um procedimento adequado

para proteger as pessoas em situaccedilatildeo de fragilidade ou bem natildeo o consegue142

conseguindo conformaacute-lo poderaacute (e deveraacute) afirmar a licitude ou negar a

ilicitude da eutanaacutesia natildeo o conseguindo natildeo poderaacute fazecirc-lo143

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem representa como um fim

legiacutetimo da intervenccedilatildeo do Estado a protecccedilatildeo das pessoas em situaccedilatildeo de

especial fragilidade ou de especial vulnerabilidade mdash em especial a protecccedilatildeo

laquodas pessoas que natildeo estatildeo em condiccedilotildees de tomar decisotildees esclarecidas ou

informadas sobre acccedilotildees ou omissotildees susceptiacuteveis de pocircr termo agrave vida ou de

as assistir no processo de potilder termo agrave vidaraquo144

Esclarecida a existecircncia de um fim legiacutetimo potildee-se os problemas da

adequaccedilatildeo e da necessidade

Ora o problema da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia ou do suiciacutedio assistido potildee-

se e potildee-se de forma semelhante para as pessoas vulneraacuteveis e para as pessoas

natildeo vulneraacuteveis O Estado deveraacute distinguir as pessoas que se encontram em

situaccedilatildeo de especial fragilidade e as pessoas que natildeo se encontram em situaccedilatildeo

de especial fragilidade) deveraacute distinguir as pessoas vulneraacuteveis e as pessoas

natildeo vulneraacuteveis para o efeito de afirmar a ilicitude do suiciacutedio assistido das

pessoas vulneraacuteveis e a licitude natildeo ilicitude da eutanaacutesia ou do suiciacutedio

assistido das pessoas natildeo vulneraacuteveis deveraacute distinguir as pessoas

vulneraacuteveis e as pessoas natildeo vulneraacuteveis para o efeito de proibir a eutanaacutesia

ou o suiciacutedo assistido das pessoas vulneraacuteveis e de natildeo proibir (= de permitir)

o suiciacutedio assistido das pessoas natildeo vulneraacuteveis

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reconstroacutei o problema

representando-o nos seguintes termos a fragilidade tiacutepica da categoria ou

classe seraacute adequada eou suficiente para explicar ou para justificar uma regra

aplicaacutevel a todos os indiviacuteduos da categoria ou classe designada O facto de

as pessoas da categoria ou classe designada estarem tipicamente em situaccedilatildeo

de especial fragilidade explicaraacute justificaraacute a proibiccedilatildeo do suiciacutedio assistido

das pessoas que natildeo estatildeo em situaccedilatildeo de fragilidade

142 Entendendo que o Estado pode sempre e por isso deve sempre conformar um

procedimento adequado Benedita MacCrorie Os limites da renuacutencia a direitos fundamentais

nas relaccedilotildees entre particulares Livraria Almedina 2013 paacutegs 303-307 143 Martha Nussbaum ldquoHuman Dignity and Political Entitlementsrdquo cit paacuteg 373 144 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash

paraacutegrafo 74 laquoThe law in issue in this case section 2 of the 1961 Act was designed to

safeguard life by protecting the weak and vulnerable and especially those who are not in a

condition to take informed decisions against acts intended to end life or to assist in ending

liferaquo

51

Os acoacuterdatildeos de 29 de abril de 2002 e de 20 de janeiro de 2011

respondem-lhe mdash e respondem que sim Os Estados teriam a prerrogativa de

avaliar os riscos da afirmaccedilatildeo da licitude ou da negaccedilatildeo da ilicitude da

eutanaacutesia para o efeito de determinar se conseguiriam ou natildeo conformar um

procedimento adequado para proteger as pessoas em situaccedilatildeo de fragilidade

Caso os Estados concluiacutessem que nenhum procedimento eacute adequado

para proteger as pessoas em situaccedilatildeo de fragilidade o facto de as pessoas da

categoria ou classe designada estarem tipicamente em situaccedilatildeo de fragilidade

explicaria justificaria a proibiccedilatildeo da eutanaacutesia ou do suiciacutedio assistido de

todas as pessoas mdash das pessoas que estatildeo e das pessoas que natildeo estatildeo em

situaccedilatildeo de fragilidade ou de vulnerabilidade Entre os meios adequados e

necessaacuterios para proteger o bem ou valor da vida humana estaria (poderia

estar) a proibiccedilatildeo da eutanaacutesia ou do suiciacutedio assistido145

laquo Clear risks of abuse do exist notwithstanding arguments as to the

possibility of safeguards and protective procedures raquo146

145 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash

paraacutegrafo 76 laquoNonetheless the Court finds in agreement with the House of Lords and the

majority of the Canadian Supreme Court in Rodriguez that States are entitled to regulate

through the operation of the general criminal law activities which are detrimental to the life

and safety of other individuals [hellip] The more serious the harm involved the more heavily will

weigh in the balance considerations of public health and safety against the countervailing

principle of personal autonomyraquo 146 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash

paraacutegrafo 74

52

Coloacutequio Internacional

Em torno de Life Time Contracts

Braga 15 de Maio de 2015

54

55

Princiacutepios gerais sobre os contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa

1 CONTRATOS DURADOUROS ESSENCIAIS Agrave EXISTEcircNCIA DA

PESSOA

Os contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa satildeo relaccedilotildees

sociais que tecircm por objecto proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o

trabalho e os rendimentos necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua

participaccedilatildeo na vida social

2 DIMENSAtildeO HUMANA

(1) O ponto central147 do regime dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa deve ser o indiviacuteduo na sua concreta realidade

material e moral148

(2) O direito deve preocupar-se em disciplinar a conclusatildeo do contrato e as

relaccedilotildees de cooperaccedilatildeo entre as partes conformando-as para proteger

e para promover o desenvolvimento da pessoa humana

(3) Em especial o direito deve preocupar-se em garantir que o

desenvolvimento da pessoa humana natildeo seja nem comprometido nem

sequer deformado por relaccedilotildees de poder149

(4) Ao fazecirc-lo deve ter em conta que o desenvolvimento de cada indiviacuteduo

pressupotildee relaccedilotildees pessoais particularmente significativas150 entre as

quais estatildeo as relaccedilotildees familiares

Traduccedilatildeo para portuguecircs de Nuno Manuel Pinto Oliveira 147 Na versatildeo alematilde fala-se em Mittelpunkt na versatildeo italiana em punto di riferimento 148 Na versatildeo italiana fala-se em realidade cultural O termo realidade moral afigura-se

adequado para abranger todos os elementos da realidade natildeo material mdash designadamente os

elementos construiacutedos pela cultura 149 Na versatildeo inglesa fala-se em relaccedilotildees de poder na versatildeo italiana em relaccedilotildees de forccedila 150 O termo relaccedilotildees pessoais particularmente significativas encontra-se tatildeo-soacute na versatildeo

italiana Embora natildeo conste das versotildees alematilde inglesa francesa ou espanhol afigura-se

especialmente adequado por tornar claro que as relaccedilotildees familiares sotilde soacute um caso especial

56

3 DIMENSAtildeO TEMPORAL (DURACcedilAtildeO)

(1) A confianccedila de ambas as partes na continuidade da relaccedilatildeo contratual

deve ser protegida

(2) Em regra a cessaccedilatildeo antecipada do contrato151 por acto unilateral de

uma das partes natildeo deve ser permitida Exceptua-se os casos em que a

cessaccedilatildeo antecipada eacute necessaacuteria para garantir um miacutenimo de liberdade

de acccedilatildeo e de decisatildeo152

(3) Se a cessaccedilatildeo antecipada do contrato for permitida soacute deveraacute produzir

efeitos para o futuro natildeo abrangendo as prestaccedilotildees jaacute realizadas

4 CONTRATOS COLIGADOS

Os contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa integram-se

em redes de contratos ligados entre si O legislador e o juiz devem apreciar e

resolver os problemas por si suscitados considerando sistematicamente a

ligaccedilatildeo entre todos os contratos integrados na rede153

5 O DEVER DE CONSIDERACcedilAtildeO DA PESSOA DO CONSUMIDOR OU DO

TRABALHADOR154

(1) O facto de algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem bens ou serviccedilos

necessaacuterios agrave satisfaccedilatildeo das necessidades essenciais relacionadas com

das relaccedilotildees particularmente significativas de que depende o desenvolvimento da pessoa

humana Entre tais relaccedilotildees particularmente significativas devem estar p ex as relaccedilotildees de

amizade 151 Prefere-se a expressatildeo cessaccedilatildeo antecipada agrave expressatildeo ruptura (rupture) usada na

traduccedilatildeo francesa por causa da sua neutralidade (comparaacutevel agrave neutralidade do termo alematildeo

Aufloumlsung do termo inglecircs termination ou do termo italiano scioglimento) 152 Na versatildeo italiana fala-se de uma cessaccedilatildeo antecipada necessaacuteria para natildeo mortificar a

liberdade de acccedilatildeo e de decisatildeo da pessoa 153 Em nenhuma das versotildees se fala em legislador ou em juiz Em todo o caso parece adequado

dar aos termos problemas juriacutedicos e ou questotildees juriacutedicas usados em todas as versotildees um

sentido muito amplo abrangendo as questotildees de criaccedilatildeo (legislativa) e as questotildees de

aplicaccedilatildeo (judicial) do direito 154 Nas versotildees alematilde e italiana faz-se sobressair o aspecto da consideraccedilatildeo ou do respeito

A versatildeo italiana eacute particularmente sugestiva por sugerir que o prestador de bens ou de

serviccedilos devem tomar para si proprio o encargo (farsi carico) da situaccedilatildeo de fragilidade do

consumidor ou do trabalhador Nas versotildees inglesa francesa e espanhola faz-se sobressair o

aspecto das necessidades essenciais ou fundamentais do consumidor ou do trabalhador

57

o consumo ou com a habitaccedilatildeo155 ou de algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo

de outrem uma quantia em dinheiro [no quadro de uma relaccedilatildeo de

creacutedito ou de uma relaccedilatildeo de trabalho] implica um dever de

protecccedilatildeo156 da pessoa do consumidor ou da pessoa do trabalhador

como partes mais fracas da relaccedilatildeo contratual

(2) O conteuacutedo do dever depende das concretas circunstacircncias fiacutesicas

psicoloacutegicas e sociais da parte carecida de protecccedilatildeo

(3) Os instrumentos legais e convencionais constituiacutedos em processos de

composiccedilatildeo colectiva de interesses devem conter disposiccedilotildees

imperativas adequadas agrave protecccedilatildeo dos interesses materiais e morais

do consumidor e do trabalhador

(4) Como os contratos podem ter diferentes fins podem ser de diferente

duraccedilatildeo ou de diferente tipo ou podem ter diferente significado para

as relaccedilotildees de vida das pessoas atingidas os instrumentos legais e

convencionais devem enunciar os niacuteveis de protecccedilatildeo e de respeito

necessaacuterios em cada caso

6 O DEVER DE CONSIDERACcedilAtildeO DO FIM DO CONTRATO

Aquele que colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem dinheiro157 bens ou

serviccedilos necessaacuterios agrave satisfaccedilatildeo de necessidades essenciais deve abster-se de

todos os comportamentos que possam pocircr em perigo o fim do contrato158 a

155 Na versatildeo espanhola fala-se em vivienda Em nenhuma das demais versotildees se fala nas

necessidades essenciais relacionadas com a habitaccedilatildeo 156 Na versatildeo italiana liga-se o dever de protecccedilatildeo a um dever de solidaridade laquoa colocaccedilatildeo

agrave disposiccedilatildeo dos bens ou serviccedilos [hellip] pressupotildee a disponibilidade [do prestador de bens ou

serviccedilos] para se encarregar de modo solidaacuterio da protecccedilatildeo da parte mais fraca

considerando a sua integridade fiacutesica e moralraquo 157 Nas versotildees alematilde inglesa francesa e espanhola fala-se em possibilidades ou em

oportunidades de obtenccedilatildeo de rendimento na versatildeo italiana fala-se em possibilidades ou em

oportunidades de acesso ao dinheiro O alcance do texto da versatildeo italiana eacute mais amplo que

o texto das versotildees alematilde inglesa francesa e espanhola As possibilidades de obtenccedilatildeo de

rendimento satildeo soacute as oportunidades proporcionados por um contrato de trabalho as

possibilidades de obtenccedilatildeo de dinheiro podem ser proporcionadas por um contrato de trabalho

ou por um contrato de creacutedito 158 Nas versotildees alematilde inglesa e francesa fala-se em fim social do contrato na versatildeo italiana

em fins cooperativos (scopi cooperativi)

58

fruiccedilatildeo do dinheiro ou dos bens ou dos serviccedilos prestados159 ou o significado

social da relaccedilatildeo160

7 DIMENSAtildeO COLECTIVA ASPECTOS PROCEDIMENTAIS E

SUBSTANTIVOS

(1) [Os contratos duradouros essenciais aacute existecircncia da pessoa tecircm uma

dupla dimensatildeo colectiva]

(2) Os consumidores e os trabalhadores tecircm o direito de exigir do Estado

o reconhecimento de sistemas colectivos de representaccedilatildeo (associaccedilotildees

de consumidores ou associaccedilotildees sindicais)

(3) [Independentemente da representaccedilatildeo dos seus interesses] os

consumidores e os trabalhadores tecircm o direito de exigir do Estado o

reconhecimento e o respeito pelos sistemas de valores colectivos como

aqueles que satildeo designados pelos conceitos de boa feacute e de bons

costumes161

(4) Os sistemas de valores colectivos devem aplicar-se em todas as fases

da relaccedilatildeo contratual desde o acesso aos bens e serviccedilos agrave

conformaccedilatildeo do contrato agrave sua adaptaccedilatildeo modificaccedilatildeo e agrave sua

extinccedilatildeo

8 ACESSO MEDIANTE O CONTRATO AOS BENS E SERVICcedilOS

ESSENCIAIS A EXISTEcircNCIA DA PESSOA

(1) Aquele que propotildee a conclusatildeo de contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa deve abster-se de qualquer discriminaccedilatildeo entre

pessoas ou entre grupos de pessoas em funccedilatildeo das suas caracteriacutesticas

pessoais e sociais

(2) Este dever aplica-se a todas as fases do processo contratual mdash tanto ao

momento em que se anuncia o contrato publicitando a proposta como

ao momento em que o contrato se conclui ou se extingue Aquele que

159 Nas versotildees inglesa e espanhola fala-se em uso produtivo Nas versotildees francesa e

espanhola fala-se simplesmente na utilidade das prestaccedilotildees contratuais 160 Nas versotildees francesa e espanhola fala-se da dimensatildeo social do contrato 161 Prefere-se uma distinccedilatildeo estrita entre o significado procedimental e o significado

substantivo da dimensatildeo colectiva do contrato a dimensatildeo procedimental prende-se com a

representaccedilatildeo colectiva das pessoas interessadas e a dimensatildeo substancial (eacutetica) prende-se

com a aplicaccedilatildeo dos valores colectivos da boa feacute e dos bons costuments

59

propotildee a conclusatildeo do contrato deve designadamente abster-se de

qualquer discriminaccedilatildeo ao definir as categorias de destinataacuterios da

proposta162 dificultando o acesso aos bens e aos serviccedilos prestados no

quadro de uma operaccedilatildeo de consumo ou as possibilidades de obtenccedilatildeo

de rendimento no quadro de uma relaccedilatildeo de trabalho163

(3) Este dever aplica-se ainda a todas as formas de discriminaccedilatildeo mdash tanto

agrave discriminaccedilatildeo relativa a grupos como agrave discriminaccedilatildeo relativa a

membros individuais de um grupo

(4) O significado dos contratos em causa para a satisfaccedilatildeo das necessidades

primaacuterias da pessoa humana como a habitaccedilatildeo o trabalho e a

participaccedilatildeo na vida econoacutemica e na vida social164 exige o

reconhecimento de um direito fundamental ao acesso mediante

contrato165 a tais bens ou agrave prestaccedilatildeo de tais serviccedilos

9 CORRESPECTIVO (PRECcedilO OU REMUNERACcedilAtildeO)

(1) A prestaccedilatildeo e a contraprestaccedilatildeo166 natildeo devem ser gravemente

desproporcionadas natildeo devem encontrar-se entre si numa grosseira

natildeo relaccedilatildeo

(2) O preccedilo dos bens ou serviccedilos prestados deve ser determinado de acordo

com criteacuterios transparentes

(3) [Estando em causa o acesso a bens ou a serviccedilos essenciais agrave satisfaccedilatildeo

das necessidades primaacuterias da pessoa humana] o preccedilo deve ser

162 Na versatildeo italiana fala-se de uma eventual definiccedilatildeo de categorias de destinataacuterios 163 Na versatildeo francesa faz-se uma alusatildeo expressa ao acesso 164 Em nenhuma das versotildees se fala em participaccedilatildeo na vida social Em todo o caso parece

adequado esclarecer que a participaccedilatildeo na vida econoacutemica eacute simultamente uma participaccedilatildeo

na vida social O risco de exclusatildeo econoacutemica eacute sempre um risco de exclusatildeo social 165 A expressatildeo mediante contrato encontra-se tatildeo-soacute na versatildeo italiana 166 Na versatildeo inglesa fala-se de obrigaccedilotildees reciacuteprocas

60

acessiacutevel167 natildeo discriminatoacuterio168 e proporcionado aos custos [de

produccedilatildeo]169

10 ADAPTACcedilAtildeO OU MODIFICACcedilAtildeO DO CONTRATO

(1) Se as circunstacircncias soacutecio-econoacutemicas pressupostas pelas partes como

fundamento da conclusatildeo do contrato natildeo se verificarem havendo

uma grave divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo de que as

partes partiram o conteuacutedo dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa deve ser adaptado ou modificado

(2) A divergecircncia pode referir-se agraves circunstacircncias presentes ou agraves

circunstacircncias futuras (error in futurum) e deve ser tatildeo grave que se

as partes tivessem uma representaccedilatildeo exacta da realidade natildeo teriam

concluiacutedo nenhum contrato ou teriam concluiacutedo um contrato de tipo

ou de conteuacutedo diferente

(3) Ao apreciar-se a gravidade da divergecircncia entre a realidade e a

representaccedilatildeo deve atender-se ao fim do contrato agrave distribuiccedilatildeo legal

ou contratual do risco e ao significado social da relaccedilatildeo170 171

(4) O conteuacutedo do contrato soacute deve ser adaptado ou modificado desde

que a subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual sem qualquer alteraccedilatildeo ou

modificaccedilatildeo seja inexigiacutevel

(5) Ao avaliar-se a exigibilidade ou inexigibilidade da subsistecircncia da

relaccedilatildeo contratual deve atender-se designadamente aos aos deveres

fundamentais de uma pessoa humana172 O consumidor ou o

167 Na versatildeo francesa abordables 168 Nas versotildees alematilde e inglesa fala-se em preccedilos determinados de acordo com criteacuterios natildeo

discriminatoacuterios na versatildeo espanhola em preccedilos natildeo discriminatoacuterios na versatildeo francesa

natildeo se faz referecircncia agrave discriminaccedilatildeo exigindo-se tatildeo-soacute que o preccedilo seja acessiacuteveis e

proporcionado aos custos e na versatildeo italiana natildeo se faz referecircncia nem a uma coisa nem agrave

outra 169 Na versatildeo francesa aligneacutes avec les coucircts 170 Como na traduccedilatildeo do sexto princiacutepio faz-se uma distinccedilatildeo entre o fim do contrato e o

significado social da relaccedilatildeo 171 Prefere-se autonomizar a referecircncia ao fim social do contrato ou ao significado social da

relaccedilatildeo por ser um dos aspectos em que a redacccedilatildeo do deacutecimo princiacutepio se desvia do sect 313

do Coacutedigo Civil alematildeo 172 Prefere-se autonomizar a referecircncia aos deveres fundamentais da pessoa humana por ser

um dos aspectos em que a redacccedilatildeo do deacutecimo princiacutepio se desvia do sect 313 do Coacutedigo Civil

alematildeo

61

trabalhador devem estar em condiccedilotildees de cumprir os seus deveres

fundamentais como por exemplo o dever de assistecircncia aos seus

familiares assegurando-lhes alimento vestuaacuterio e habitaccedilatildeo173

(6) As regulamentaccedilotildees colectivas alcanccediladas atraveacutes dos sistemas de

representaccedilatildeo dos interesses dos consumidores e dos trabalhadores

devem ter prioridade sobre os resultados de uma adaptaccedilatildeo ou de uma

modificaccedilatildeo individual

11 CESSACcedilAtildeO ANTECIPADA DO CONTRATO

(1) A cessaccedilatildeo antecipada dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia

da pessoa [atraveacutes de denuacutencia ou de revogaccedilatildeo por acto unilateral]

deve ser feita de uma forma transparente controlaacutevel174 e socialmente

aceitaacutevel Caso seja feita contra a contra a vontade do consumidor do

locataacuterio ou do trabalhador175 deve representar-se como uma medida

extrema (ultima ratio)

(2) O acto unilateral por que se faz cessar o contrato deve ser

fundamentado e as razotildees comunicadas para fundamentar a cessaccedilatildeo

do contrato devem ser verdadeiras adequadas e justas natildeo podendo

em caso algum ser razotildees discriminatoacuterias ou ter resultados

discriminatoacuterios

(21) O empregador o fornecedor de bens ou o prestador de serviccedilos

soacute pode fazer cessar o contrato contra a vontade do consumidor ou do

trabalhador desde que tenha razotildees relacionadas (i) com as

circunstacircncias pessoais da contraparte mdash designadamente com as suas

condiccedilotildees fiacutesicas176 mdash (ii) com o comportamento do consumidor ou

do trabalhador tatildeo grave ou tatildeo significativo que justifique uma

ruptura ou (iii) com as suas proacuteprias circunstacircncias econoacutemicas e

financeiras

173 Embora nenhuma das versotildees concretize o sentido do termo deveres fundamentais da

pessoa humana ou obrigaccedilotildees fundamentais da pessoa humana parece que deve densificar-

se o sentido da expressatildeo 174 Na versatildeo alematilde nachvollziehbar 175 Embora natildeo esteja nas versotildees alematilde e italiana a restriccedilatildeo encontra-se nas versotildees inglesa

francesa e espanhola 176 Na versatildeo alematilde faz-se referecircncia a circunstacircncias relacionadas com as condiccedilotildees da

pessoa na versatildeo italiana a circunstacircncias relacionadas com as condiccedilotildees fiacutesicas da pessoa

do devedor nas versotildees inglesa e francesa natildeos e faz referecircncia nem a uma coisa nem a outra

62

(22) As circunstacircncias econoacutemicas ou financeiras do empregador do

fornecedor de bens ou do prestador de serviccedilos soacute podem ser invocadas

como fundamento desde que os custos ou os esforccedilos exigidos para que

a relaccedilatildeo contratual continue sejam desproporcionados ou

excessivos177 [colocando em causa sustentabilidade econoacutemica e

financeira da operaccedilatildeo de consumo ou da relaccedilatildeo de trabalho178]

(3) Sempre que o fundamento da cessaccedilatildeo antecipada do contrato sejam as

circunstacircncias econoacutemicas ou financeiras do empregador do

fornecedor de bens ou do prestador de serviccedilos deve procurar-se a

(re)composiccedilatildeo do equiliacutebrio de interesses atraveacutes dos sistemas de

representaccedilatildeo coletiva O procedimento deve dar aos consumidores

aos trabalhadores e aos seus representantes179 uma oportunidade

razoaacutevel para apresentarem as suas razotildees proporcionando-lhes o

tempo suficiente para fazerem propostas que evitem a cessaccedilatildeo

antecipada do contrato ou que natildeo evitando a cessaccedilatildeo atenuem as

suas consequecircncias os seus efeitos

(4) Em todos os casos em que a cessaccedilatildeo antecipada no contrato se decirc no

seu interesse o empregador o fornecedor de bens ou o prestador de

serviccedilos fica adstrito a deveres de protecccedilatildeo para com o consumidor ou

para com o o trabalhador180 deve considerar com toda a diligecircncia181

os direitos e os interesses do consumidor ou do trabalhador Em

particular deve dar-lhe um periacuteodo de tempo adequado para se

preparar para o termo da relaccedilatildeo contratual

12 COMUNICACcedilAtildeO

(1) Em todas as fases da relaccedilatildeo contratual desde que a preparaccedilatildeo do

contrato tem o seu iniacutecio com a entrada em negociaccedilotildees ateacute ao

momento em que a execuccedilatildeo do contrato tem o seu fim devem as

partes comunicar entre si

177 Na versatildeo italiana fala-se de um excesso de custo econoacutemico da cooperaccedilatildeo creditiacutecia 178 Na versatildeo inglesa fala-se da viabilidade do objecto do contrato na versatildeo francesa fala-

se da continuidade do objecto do contrato exigindo-se que fique comprometida para que haja

uma justa causa de ruptura 179 Na versatildeo alematilde p ex diz-se que devem ser ouvidos os indiviacuteduos e os seus

representantes na versatildeo inglesa que devem ser ouvidos os indiviacuteduos ou os seus

representantes 180 O termo deveres de protecccedilatildeo encontra-se tatildeo-soacute na versatildeo italiana 181 Na versatildeo alematilde fala-se soacute em diligecircncia na versatildeo francesa em toda a diligecircncia

63

(2) A comunicaccedilatildeo entre as partes deve ser directa e pessoal e deve ter

lugar designadamente antes de qualquer acto unilateral relativo ao

contrato (com a sua adaptaccedilatildeo a sua modificaccedilatildeo ou a sua resoluccedilatildeo)

(3) O diaacutelogo deve basear-se na igualdade deve ser um diaacutelogo entre

iguais conforme aos princiacutepios da confianccedila e da cooperaccedilatildeo

construtiva orientado objectivamente para a plena realizaccedilatildeo do fim

do contrato

13 INFORMACcedilAtildeO E TRANSPAREcircNCIA

(1) Em todas as fases da relaccedilatildeo contratual desde que a preparaccedilatildeo do

contrato tem o seu iniacutecio com a entrada em negociaccedilotildees ateacute ao

momento em que a execuccedilatildeo do contrato tem o seu fim e mesmo

depois desse momento o empregador o fornecedor de bens ou o

prestador de serviccedilos182 deve dar ao consumidor ou ao trabalhador

informaccedilotildees verdadeiras completas atempadas e compreensiacuteveis

sobre todas as circunstacircncias relevantes para a relaccedilatildeo contratual

(2) O conteuacutedo do dever de informaccedilatildeo deve concretizar-se atendendo aos

interesses do consumidor ou do trabalhador e ao fim de corrigir as

assimetrias informacionais que possam subsistir entre as partes

14 MINIMO DE PARTICIPACcedilAtildeO NA VIDA ECONOacuteMICA [MIacuteNIMO DE

EXISTEcircNCIA]183

(1) [O consumidor ou o trabalhador natildeo pode ser privado de um miacutenimo

de participaccedilatildeo na vida econoacutemica]

(2) Os contratos que atingirem os rendimentos do consumidor ou do

trabalhador seja por lhe darem acesso a um rendimento regular

tornando-o disponiacutevel em determinadas circunstacircncias de tempo e de

lugar seja por lhe tirarem o acesso a tal rendimento entregando-o ao

fornecedor de bens ou ao prestador de serviccedilos devem proporcionar agrave

pessoa humana o miacutenimo necessaacuterio para a sua subsistecircncia

(3) O Estado deve conformar as suas leis de forma a proteger os

consumidores e os trabalhadores contra os riscos de exclusatildeo da vida

182 Na versatildeo italiana fala-se da parte que predisponha e organize o contrato 183 Na versatildeo italiana fala-se de miacutenimo vital

64

econoacutemica designadamente no quadro dos processos de execuccedilatildeo de

preacute-insolvecircncia ou de insolvecircncia

15 MIacuteNIMO DE PARTICIPACcedilAtildeO NA VIDA SOCIAL

(1) [O consumidor ou o trabalhador natildeo pode ser privado de um miacutenimo

de participaccedilatildeo na vida social]

(2) No momento da conformaccedilatildeo individual e colectiva184 como no

momento da sua interpretaccedilatildeo dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa185 deve considerar-se adequadamente os riscos de

exclusatildeo social da pessoa do consumidor ou do trabalhador

(3) No momento da conformaccedilatildeo como no momento da intepretaccedilatildeo do

contrato deve considerar-se designadamente os riscos de falta de

emprego de falta de habitaccedilatildeo ou de sobreendividamento

relacionando-os com as suas causas soacutecio-econoacutemicas186

(4) Os princiacutepios e as regras de direito privado por que se pretende prevenir

o perigo de exclusatildeo social devem ser completados pelos princiacutepios e

pelas regras de direito puacuteblico

16 CONFIDENCIALIDADE

Os dados pessoais facultados187 durante um contrato duradouro

essencial agrave existecircncia da pessoa como os juiacutezos de valor proferidos com base

nos dados pessoais assim facultados devem ser tratados confidencialmente e

soacute podem ser usados no quadro da realizaccedilatildeo do fim do contrato188

184 Nas versotildees alematilde inglesa e francesa fala-se de conformaccedilatildeo individual e colectiva na

versatildeo italiana de estruturaccedilatildeo individual e coletiva 185 Na versatildeo espanhola fala-se soacute da interpretaccedilatildeo 186 Na versatildeo francesa fala-se das origens sociais da pessoa Em todas as demais versotildees

fala-se das causas sociais ou da origens sociais dos fenoacutemenos do desemprego da falta de

habitaccedilatildeo ou do sobreendividamento 187 Na versatildeo francesa fala-se em dados comunicados sem distinguir se satildeo dados pessoais

ou natildeo Em todo caso o deacutecimo sexto princiacutepio soacute faz pleno sentido desde que se aplique

exclusivamente aos dados pessoais 188 Nas versotildees alematilde e inglesa diz-se que soacute podem ser usados para a realizaccedilatildeo do fim do

contrato na versatildeo francesa que soacute podem ser usados no quadro da realizaccedilatildeo do fim do

contrato mdash foacutermula mais ampla e aparentemente mais apropriada

65

Life time contracts um primeiro balanccedilo

Luca Nogler amp Udo Reifner

I INTRODUCcedilAtildeO

Neste artigo propomo-nos fazer um primeiro balanccedilo do diaacutelogo em

torno do nosso livro Life Time Contracts com o subtiacutetulo Social Longterm

Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law189 O livro foi

apresentado em muacuteltiplas ocasiotildees em muacuteltiplos paiacuteses190 e apreciado por

uma seacuterie de recensotildees191 sugerindo que o diaacutelogo em torno dos contratos

duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa pode e deve prosseguir

Professor de Direito do trabalho na Universidade de Trento (Itaacutelia) Professor de Direito comercial nas Universidade de Hamburgo (Alemanha) e de Trento

(Itaacutelia) Traduccedilatildeo para portuguecircs de Nuno Manuel Pinto Oliveira 189 Life Time Contracts Social Longterm Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit

Law Eleven The Hague 2014 190 No dia 4 de dezembro de 2013 foi apresentado na Universidade do Luxemburgo por Hugh

Collins e David Hiez no dia 17 de marccedilo de 2014 foi apresentado na Universidade de Porto

Alegre no Brasil no dia 22 de maio de 2014 na Alemanha na Internationale Konferenz zu

Finanzdienstleistungen por Doris Neuberger e Ulrich Magnus nos dias 26 e 27 de setembro

de 2014 na Universidade McGill em Montreacuteal (Canadaacute) no quadro do coloacutequio Le livre agrave

venir dans les faculteacutes de droit no dia 17 de outubro de 2014 na Universidade de Santiago

de Compostela na Espanha por Javier Arias Varona Fernando Gallardo Francisco

Hernaacutendez Javier Lete e Aacutengel Fernaacutendez Albor no dia 8 de novembro de 2014 na

Universidade de Toacutequio no Japatildeo por Katsutoshi Kezuka e por Yasuo Suwa) no dia 6 de

marccedilo de 2015 na Universidade de Pisa em Itaacutelia por Vincenzo Roppo Marco De Cristofaro

Oronzo Mazzotta e Fabio Padovini no dia 15 de maio de 2015 na Universidade do Minho

em Portugal por Nuno Manuel Pinto Oliveira Agostinho Cardoso Guedes Henrique Sousa

Antunes Catarina Serra Juacutelio Gomes Benedita MacCrorie Jorge Morais Carvalho Ana

Maria Taveira de Fonseca Sandra Passinhas e Maria Joatildeo Vasconcelos nos dias 28 a 31 de

maio de 2015 no Annual Meeting da Law and Society Association em Seattle no dia 29 de

junho a 1 de julho de 2015 no 15ordm Annual Meeting da International Association of Consumer

Law em Amesterdatildeo em que foi apresentada uma comunicaccedilatildeo subordinada ao tema ldquoEarly

termination in Life-Time Contractsrdquo e por uacuteltimo no dia 25 de setembro de 2015 na

Universidade de Trento na Itaacutelia por Roberto Fiori e Gianni Santucci 191 David Hiez ldquoAgrave propos des Life Time Contractsrdquo in Revue trimestrelle de droit civil 2014

(4) paacutegs 817-827 Francisco Javier Arias Varona ldquoRecensioacutenrdquo in RPC 21 2014 paacutegs 389-

393 Marina Tamm ldquoBuchbesprechungrdquo in Verbraucher und Recht 2015 (1) paacutegs 39-40

66

Natildeo nos arrependemos em primeiro lugar de ter adoptado uma

perspectiva multicultural Temos a convicccedilatildeo plena de que a forccedila da Europa

estaacute no pluralismo das suas culturas Que a decisatildeo foi acertada demonstram-

no as traduccedilotildees dos Principles on Life Time Contracts em distintas liacutenguas

O livro publica as traduccedilotildees dos Principles em alematildeo em francecircs em

italiano e em espanhol depois de o livro ter sido publicado foram preparadas

as traduccedilotildees em portuguecircs em japonecircs e em coreano Como cada uma das

traduccedilotildees comprova natildeo se trata soacute de substituir palavras de uma liacutengua por

palavras de outra liacutengua Trata-se sim de integrar um texto numa cultura

juriacutedica diferente de quando em quando trata-se de o integrar numa cultura

juriacutedica muito diferente daquela em que o texto foi redigido

Javier Ariacuteas Varona refere-se a um ldquofortalecimento do caraacutecter

multicultural do trabalhordquo representanto-o como necessaacuterio para que os textos

possam produzir os impulsos que os autores pretendem que produzam

Concordando no essencial com Ariacuteas Varona Ewoud Hondius critica

as contribuiccedilotildees de autores neerlandeses publicadas em inglecircs por natildeo se

preocuparem tanto como deveriam preocupar-se com a compreensatildeo dos

conceitos e das estruturas do direito neerlandecircs pelo puacuteblico

O caso do termo centrale ondermingsraad seria um caso examplar

Hondius lamenta que tenha sido traduzido de forma a sugerir que se tratava de

um puro e simples oacutergatildeo de participaccedilatildeo ou de representaccedilatildeo deformando-se

a realidade ao esquecer-se como natildeo deveria esquecer-se a especificidade

das funccedilotildees desempenhadas e a originalidade do oacutergatildeo Com o exemplo do

termo centrale ondermingsraad Hondius pronuncia-se em favor da tese por

noacutes sustentada de que o uso da liacutengua-matildee dos autores pode ser necessaacuterio

ainda que tal liacutengua natildeo esteja entre as mais conhecidas mdash ainda que natildeo seja

a liacutengua mais faacutecil de falar ou a mais simples de compreender

David Hiez exprime uma apreciaccedilatildeo particular pela nossa preferecircncia

ldquoO grupo EuSoCo decidiu trabalhar em diferentes liacutenguas (inglecircs alematildeo

Pompeyo Gabriel Ortega Lozano ldquoRecensioacutenrdquo in Revista espantildeola de derecho del trabajo

2015 paacutegs 287-291 Ewoud Hondius ldquoReviewrdquo in Nederlands Tijdschrift voor Burgerlijk

Recht vol 37 2014 (8) paacutegs 308-309 Hugh Collins ldquoReviewrdquo in European Review of

Contract Law vol 10 2014 (3) paacutegs 466-472 Hans-Wolfgang Micklitz ldquoBook Notes mdash

Law 12015rdquo in Journal of Consumer Policy (2015) 38 paacuteg 108 Michele Graziadei in

Rivista trimestrale di diritto e procedura civile em curso de publicaccedilatildeo Chantal Mark in

European Journal of Comparative Law and Governance 2015 em curso de publicaccedilatildeo G

Loumlschnigg in Das Recht der Arbeit em curso de publicaccedilatildeo Muriel Fabre-Magnan ldquoCritique

de la notion de contenu du contratrdquo in Revue des contrats 01er Septembre 2015 ndeg 3 paacuteg

639 (II C)

67

francecircs e italiano) e natildeo recorrer a um novo esperanto Os leitores com

competecircncias linguiacutesticas mais limitadas poderatildeo porventura perder alguma

coisa Em todo o caso a decisatildeo foi correcta e deve ser apreciada

favoravelmente Faz parte de uma concepccedilatildeo distinta e proacutepria da construccedilatildeo

de um direito privado europeu Como parte de uma concepccedilatildeo distinta e

proacutepria responde pelo menos em parte agrave criacutetica dos que contestam qualquer

tentativa de aproximaccedilatildeo com o argumento da intraduzibilidade do direitordquo

O juiacutezo de Hiez foi de uma forma geral partilhado pelos comentadores

do livro Marina Tamm sentiu-se impelida a falar de uma ldquoheranccedila comum

europeiardquo (de uma gemeinsames europaumlisches Erbe)

Natildeo nos esquecemos em segundo lugar de que o tiacutetulo Life Time

Contracts natildeo eacute auto-explicativo mdash precisa sempre de um esclarecimento

adicional ou suplementar sobretudo se natildeo foi apresentado em inglecircs

Eacute uma designaccedilatildeo geneacuterica deve ser acompanhada por designaccedilotildees

mais especiacuteficas apropriadas para representar os seus dois desafios de uma

forma mais juriacutedica Em primeiro lugar satildeo contratos de longa duraccedilatildeo e em

segundo lugar satildeo contratos essenciais agrave existecircncia da pessoa mdash essenciais

agraves relaccedilotildees humanas Os esclarecimentos adicionais ou suplementares foram

de alguma forma jaacute feitos em algumas das traduccedilotildees dos princiacutepios publicadas

no livro [ou preparadas depois de o livro ter sido publicado]

Hugh Collins alega que ldquoo criteacuterio colocado no centro da definiccedilatildeo de

life time contracts [hellip] estaacute em ser o contrato mais ou menos essencial para a

realizaccedilatildeo da pessoa em ser o contrato mais ou menos essencial para a sua

participaccedilatildeo como pessoa na sociedaderdquo O problema estaria em que todos

ou quase todos os contratos pelo menos potencialmente satildeo essenciais para a

realizaccedilatildeo da pessoa Collins daacute como exemplo o caso de uma pessoa que

precisa de tomar o autocarro todos os dias para chegar ao local de trabalho O

serviccedilo de transportes puacuteblicos tornar-se-ia essencial para a sua realizaccedilatildeo

pessoal Com o uso diaacuterio de tal serviccedilo constituir-se-ia uma relaccedilatildeo e uma

relaccedilatildeo que pode ser descrita como ldquorelaccedilatildeo social duradourardquo O conceito de

life time contracts falharia por natildeo ter capacidade distintiva Seria

potencialmente capaz de incluir quase todos os contratos concluiacutedos

normalmente pelas pessoas ao longo da sua vida

David Hiez responde que o conceito de life time contract define-se em

extensatildeo por duas notas caracterizadoras mdash por um lado pela duraccedilatildeo e por

outro lado pela destinaccedilatildeo funcional agrave realizaccedilatildeo pessoal e social de um dos

contraentes Natildeo eacute suficiente para que o contrato entre na categoria dos life

time contracts que tenha como destinaccedilatildeo funcional a realizaccedilatildeo pessoal e

social de um dos contraentes Eacute necessaacuterio que o contrato seja duradouro

68

Quando os contratos de execuccedilatildeo instantacircnea simplesmente se repetem

e se sucedem sem que haja nada que os ligue desde o iniacutecio satildeo e devem ser

designados como contratos contingentes recorrentes Agraves relaccedilotildees por si

consituiacutedas pode chamar-se relaccedilotildees obrigacionais recorrentes

(Wiederkehrschuldverhaumlltnisse) Em todo o caso natildeo haacute nos contratos

recorrentes nenhuma relaccedilatildeo complexas como natildeo haacute nehuma relaccedilatildeo

duradoura mdash haacute sim sempre e soacute relaccedilotildees singulares sucessivas

Life time contracts poderaacute porventura ser mais bem lido como Life time

contracts Natildeo haacute de facto nada mdash natildeo haacute rigorosamente nada mdash em comum

entre os life time contracts e os contratos vitaliacutecios

Os contratos vitaliacutecios foram abolidos pelas revoluccedilotildees burguesas

conjuntamente com a escravatura e com a servidatildeo Ainda que as perspectivas

se tenham de alguma forma invertido mdash por haver muitos consumidores

muitos inquilinos e muitos trabalhadores que seguramente apreciariam que

os contratos necessaacuterios agrave sua existecircncia como os contratos de trabalho

durassem toda a vida192 mdash natildeo haacute nenhuma relaccedilatildeo sistemaacutetica entre os dois

conceitos Os consumidores os inquilinos ou os trabalhadores que pretendem

que os contratos necessaacuterios agrave sua existecircncia durem toda a vida natildeo querem

de forma nenhuma ficar-lhes vinculados para toda a vida Aquilo que os

trabalhadores que os inquilinos ou que os consumidores querem eacute soacute uma

protecccedilatildeo adequada contra uma cessaccedilatildeo unilateral das relaccedilotildees contratuais

essenciais agrave sua existecircncia E de facto os contratos vitaliacutecios natildeo satildeo coisa

que uma sociedade livre e responsaacutevel possa desejar ou sequer aceitar

Os Principles on life time contracts ao proibirem uma cessaccedilatildeo

arbitraacuteria procuram simplesmente um compromisso entre a liberdade

individual e a solidariedade social mdash compromisso tornado necessaacuterio pela

circunstacircncia de em causa estar uma relaccedilatildeo social que atinge directamente a

existecircncia de devedores inquilinos e trabalhadores Eacute por isso que a protecccedilatildeo

proporcionada contra a cessaccedilatildeo unilateral dos life time contracts natildeo eacute uma

protecccedilatildeo absoluta ou categoacuterica mdash eacute tatildeo-soacute circunstancial e relativa

O conceito de life time contracts implica uma criacutetica ao modelo ou

paradigma do contrato de compra e venda Em rigor uma criacutetica desdobraacutevel

em duas mdash por um lado contesta-se falta de uma dimensatildeo temporal

(ldquoduraccedilatildeordquo) e por outro lado ainda que a dimensatildeo temporal fosse de alguma

forma tomada em consideraccedilatildeo sempre se contestaria que fosse degradada a

uma dimensatildeo quantitativa mdash cuja funccedilatildeo seria soacute a de contribuir para a

192 [Os Professores Nogler e Reifner propotildeem um jogo de palavras que natildeo pode ou que soacute

com dificuldade poderaacute transpor-se para a liacutengua portuguesa ldquoMany consumers workers or

tenants would appreciate if their life time contracts would hold for lifetimerdquo]

69

determinaccedilatildeo do juro da renda ou do salaacuterio mdash e natildeo fosse representada na

sua dimensatildeo qualitativa como componente essencial de determinados

contratos em que o tempo estaacute ligado agraves vidas humanas

As duas dimensotildees satildeo poreacutem os dois lados de uma e da mesma

moeda mdash o anverso e o reverso de uma e da mesma medalha O princiacutepio

histoacuterico do caveat emptor permitiu o desenvolvimento de uma economia de

mercado em que se constituem contactos entre pessoas que natildeo se conhecem

e que se se conhecessem provavelmente natildeo teriam gostado umas das outras

A cooperaccedilatildeo anoacutenima quase necessaacuteria pressuposta por uma economia de

mercado substitui uma cooperaccedilatildeo voluntaacuteria de que de facto estaacute muito

distante Com a reduccedilatildeo das relaccedilotildees a contratos de execuccedilatildeo instantacircnea [a

spot contracts] o capitalismo realizou algo de extradordinaacuterio na perspectiva

da produtividade ao promover a cooperaccedilatildeo internacional e a reparticcedilatildeo do

trabalho [entre paiacuteses e dentro de um mesmo paiacutes entre diversos grupos

sociais]

Natildeo pode duvidar-se de que a ideia de cooperaccedilatildeo anoacutenima reduzida

a contratos de execuccedilatildeo instantacircnea ainda desempenha um papel importante

no comeacutercio internacional e no processo de globalizaccedilatildeo E natildeo se pretende

negar-lhe esse papel A criacutetica natildeo eacute a de que os contratos de execuccedilatildeo

instantatildenea como o contrato de compra e venda deveriam ser substituiacutedos por

contratos de execuccedilatildeo duradoura Eacute sim a de sublinhar que o modelo ou

paradigma da compra e venda natildeo eacute um paradigma adequado a todos os

contratos Natildeo se trata de negar que a ideia de livre escolha expliacutecita no

paradigma da compra e venda e impliacutecita sob designaccedilotildees distintas em alguns

aspectos do regime dos contratos de arrendamento e de trabalho ou em coisas

como o modelo da informaccedilatildeo nos contratos de consumo seja uma ideia

importante Trata-se sim de negar que seja a uacutenica ideia importante do regime

dos contratos ou de que deva ser a ideia mais importante do regime de alguns

tipos de contrato O sucesso do paradigma da compra e venda na conformaccedilatildeo

dos mercados converter-se-aacute em fundamental insucesso desde que todos os

contratos incluindo aqueles que se ligam ao consumo ou que permitem o

acesso agrave habitaccedilatildeo ou ao trabalho fiquem subordinados agrave sua ideologia desde

que haja uma inclusatildeo de relaccedilotildees essencialmente distintas da compra e venda

na ideologia contratual construiacuteda sobre o paradigma dos contratos de

execuccedilatildeo instantacircnea ou desde que haja uma exclusatildeo de tais relaccedilotildees da

ideologia contratual

Como as razotildees apresentadas para explicar tal exclusatildeo eram cada vez

menos convincentes e por isso cada vez mais difiacuteceis de aceitar houve

muacuteltiplas tentativas para reintegrar o pensamento da relaccedilatildeo no direito dos

contratos

70

O tempo deixa entatildeo de ser representado como uma pura e simples

projecccedilatildeo de agora para depois ou como um puro e simples ponto de

referecircncia para a determinaccedilatildeo dos salaacuterios das rendas ou dos juros e passa a

ser representado como uma realidade inquantificaacutevel mdash como o tempo de que

as pessoas dispotildeem para viver como o tempo-de-vida ou como o tempo-para-

a-vida Certas actividades como dormir trabalhar consumir amar e sofrer

criam o seu proacuteprio tempo Criam um tempo que eacute proacuteprio e que como tempo

proacuteprio natildeo eacute fungiacutevel mdash natildeo pode ser trocado por tempos diferentes de

outras actividades ou de outras coisas O direito deveraacute reconhecer que o

tempo-de-e-para-a-vida (life time) eacute a dimensatildeo mais importante de algumas

relaccedilotildees contratuais Se o fizer como deve ficaraacute aberto o caminho para a

definiccedilatildeo de um novo tipo de contrato Os bens e serviccedilos prestados estariam

ligados aacute duraccedilatildeo da vida de uma das partes Em tais contratos a duraccedilatildeo seraacute

(teraacute de ser) um elemento essencial em termos um tanto ou quanto

semelhantes agravequeles que se aplicavam a alguns contratos de locaccedilatildeo da Idade

Meacutedia193

Se a primeira ideia consistia em definir um novo tipo de contrato a

segunda talvez mais desafiante consiste em indicar um modelo ou paradigma

uniforme de regulaccedilatildeo de alguma forma anaacutelogo ao paradigma do contrato de

compra e venda194

O paradigma em causa deveria desenvolver-se de forma a construir-se

uma estrutura juriacutedica capaz de harmonizar o contrato e a relaccedilatildeo Como

acenturam alguns (muitos) observadores do nosso trabalho preocupamo-nos

sobretudo com a relaccedilatildeo entre o direito dos contratos e as necessidades

humanas Marina Tamm di-lo de uma forma particularmente impressiva mdash na

nossa abordagem ao direito dos contratos vai contida uma decisatildeo eacutetica

Decisatildeo que se exprime na criacutetica agrave tendecircncia para uma recepccedilatildeo automaacutetica

no discurso juriacutedico dos conceitos e das estruturas da economia neoclaacutessica O

193 O livro do Eclesiastes 3 1-22 representa um desvio ao uso moderno da palavra ldquotempordquo

O texto do capiacutetulo 3 comeccedila com o versiacuteculo em que se diz que ldquoTodas as coisas tecircm o seu

tempo e tudo o que existe debaixo dos ceacuteus tem a sua horardquo e continua com a enumeraccedilatildeo de

actividades humanas ligando-as ao seu tempo Cada um dos versiacuteculos comeccedila com as

palavras ldquoHaacute tempo parardquo e o desenvolvimento esclarece que se trata do tempo e natildeo do

momento (do dia ou da hora) Com a afirmaccedilatildeo de que ldquoAquilo que eacute jaacute existia e aquilo que

haacute-de ser jaacute existiu Deus faz voltar de novo aquilo que jaacute passourdquo (3 15) recorda-se-nos a

relatividade social do tempo A relatividade material essa eacute desde haacute deacutecadas reconhecida

pelos fiacutesicos 194 Cf G Oppo ldquoI contratti di duratardquo in Rivista di Diritto Commerciale 1943 I paacutegs 143

ss e paacutegs 227 ss e 1944 I p 17 ss

71

fenoacutemeno eacute particularmente grave por tais conceitos e tais estruturas

contaminarem parte significativa da anaacutelise econoacutemica do direito

Como escreve Michele Graziadei ldquona economia neoclaacutessica as

mercadorias satildeo todas iguais a si proacuteprias todas fungiacuteveisrdquo Graziadei remete

para uma obra recente de Debra Satz195 para sustentar que o mercado em que

as mercadorias satildeo transaccionadas eacute um mercado cujas especificiadades e

implicaccedilotildees morais ningueacutem compreende ou quer compreender ldquoNatildeo eacute um

acasordquo continua Michele Graziadei ldquoque um dos artigos publicados no

presente volume dirija uma criacutetica feroz agrave obra de Ronald Coase apresentado

mdash de forma aliaacutes um pouco caricatural mdash como um mau profeta que semeia

entre os juristas uma atitude de anaacuteloga insensibilidaderdquo

O caso seria poreacutem um pouco mais grave A criacutetica dirigida a Ronald

Coase seria pelo menos em parte uma criacutetica injusta Natildeo haveria tatildeo-soacute uma

contaminaccedilatildeo externa da teoria juriacutedica do contrato pela teoria econoacutemica

neoclaacutessica (e neoliberal) mdash haveria uma contaminaccedilatildeo interna da teoria

juriacutedica pelo formalismo ou pelo neoformalismo Entre os fundamentos da

teoria juriacutedica do contrato estaacute ainda a ideia de uma autonomia da vontade

contra a qual se dirigiram autores como Gierke mdash tatildeo frequentemente citado

ao longo de todo o livro mdash ou em tempos mais recentes pelos adeptos do

(chamado) socialismo juriacutedico ou em tempos ainda mais recentes os juristas

comprometidos com ldquocorrentes socialmente orientadasrdquo

Muriel Fabre-Magnan sublinha que life time contracts natildeo satildeo

necessariamente contratos para a vida natildeo satildeo contratos cuja duraccedilatildeo

coincida ou tenda a coincidir com a duraccedilatildeo da vida satildeo contratos

importantes na vida Satildeo contratos que desempenham uma funccedilatildeo importante

na vida de uma pessoa ldquoParecerdquo conclui Fabre-Magnan ldquoque a ideia

subjacente agrave definiccedilatildeo de tal tipo de contratos consiste na sua importacircncia no

acesso aos meios de subsistecircnciardquo Entre os contratos de creacutedito os contratos

de arrendamento e os contratos de trabalho haveria uma coisa em comum mdash

e na verdade uma coisa fundamental mdash cada um dos trecircs tipos de contrato

seria necessaacuterio para que o devedor o arrendataacuterio ou o trabalhador pudesse

alcanccedilar os meios necessaacuterios para a sua subsistacircncia

Fabre-Magnan sublinha ainda que o argumento da funccedilatildeo econoacutemica

e social do contrato mdash e da sua importacircncia para o acesso a bens e a serviccedilos

fundamentais mdash foi por si invocado para sustentar a tese de que o empregador

estaacute adstrito a um dever especial de fundamentaccedilatildeo dos actos unilaterais por

que promova uma cessaccedilatildeo antecipada dos contratos de trabalho Fabre-

195 D Satz Why Certain Things Should Not Be for Sale Oxford University Press Oxford

2010

72

Magnan refere-se em particular agrave nossa 14ordf tese em que a funccedilatildeo econoacutemica

e social do contrato foi enunciada sob a forma de princiacutepio

Continuando com a apreciaccedilatildeo da nossa proposta a autora sustenta

com bons argumentos que ldquoa ideia de protecccedilatildeo dos mais fracos tem os seus

limites e em todo o caso eacute algo artificial a ideia de uma fragilidade ou de

uma vulnerabilidade tiacutepicas da parte mais fraca eacute-o ainda maisrdquo

A protecccedilatildeo natildeo seria ou natildeo deveria ser justificada pelo tipo de

contrato mdash seria ou deveria ser justificada pela importacircncia que o contrato

tem para uma das partes e para a sua subsistecircncia Seria precisamente a

importacircncia que o contrato tem para uma das partes e para a sua subsistecircncia

que explicaria e que justificaria algumas disposiccedilotildees especiais do direito dos

contratos por que se pretende precisamente estabilizar a relaccedilatildeo mdash

proporcionar alguma estabilidade agrave relaccedilatildeo obrigacional

E na verdade se a razatildeo de ser da protecccedilatildeo proporcionada ao devedor

ao arrendataacuterio ou ao trabalhador pelo direito do creacutedito pelo direito do

arrendamento ou pelo direito do trabalho fosse simplesmente a fragilidade ou

a vulnerabilidade da parte mais fraca natildeo seria necessaacuteria uma particular

forma de contrato Pode haver fragilidades e vulnerabilidades em todas as

relaccedilotildees contratuais O problema soacute se potildee e soacute deve pocircr-se se a fragilidade

e a vulnerabilidade no direito satildeo o resultado de uma inadequada forma das

relaccedilotildees juriacutedicas ou de uma inadequada ideologia subjacente agraves relaccedilotildees

juriacutedicas contratuais em que o princiacutepio da igual liberdade de todos eacute

transformado degradando-se em princiacutepio de legitimaccedilatildeo de relaccedilotildees de

dependecircncia de diacutevida e de subordinaccedilatildeo Se tal suceder como

frequentemente sucederaacute pode porventura valer a pena reflectir sobre a

pergunta seguinte O modelo do contrato de compra e venda natildeo precisaraacute

porventura de ser complementado com um modelo (com um ldquoirmatildeordquo ou uma

ldquoirmatilderdquo) mais adaptado agrave economia moderna mdash mais adaptado agrave economia do

creacutedito e dos serviccedilos mdash Se se pusesse a pergunta e se se reflectisse

seriamente sobre os argumentos relevantes para a resposta poderia porventura

atribuir-se alguma relevacircncia agrave chamada ldquoigualdade de direitordquo evocada por

Anatole France Os modelos do direito da compra e venda poderiam

porventura ser representados como casos paradigmaacuteticos de um direito de

protecccedilatildeo do vendedor mdash e desde que os seus resultados fossem transferidos

como casos paradigmaacuteticos de um direito de protecccedilatildeo do empregador do

senhorio ou do mutuante Ora a protecccedilatildeo de um vendedor como a protecccedilatildeo

de um empregador (de uma entidade patronal) de um senhorio ou de um

mutuante precisaria de uma justificaccedilatildeo especial

Natildeo seria necessaacuterio declarar a desigualdade das partes natildeo seria

necessaacuterio dizer que o comprador que o trabalhador que o inquilino ou que

o mutuaacuterio se encontram em situaccedilatildeo de inferioridade e sobretudo natildeo seria

73

necessaacuterio dizer que se encontram em situaccedilatildeo de inferioridade por causa da

sua (alegada) fragilidade pessoal ou da sua (alegada) vulnerabilidade pessoal

Devemos esclarecer que a nossa perspectiva natildeo eacute uma perspectiva

funcional natildeo mdash a nossa perspectiva eacute uma perspectiva teacutecnica

Se o Manifesto para a Justiccedila Social [no direito europeu dos contratos]

adoptava uma perspectiva funcional mdash alegando que o direito dos contratos

deveria realizar a justiccedila social ainda que natildeo demonstrasse com adequada

precisatildeo e com adequado rigor como poderia alcanccedilar-se um tal fim mdash o

nosso projecto mdash a que chamaacutemos de Projecto para um Contrato social

europeu (EuSoCo) e a que hoje deveriacuteamos porventura chamar de Projecto

para um Contrato social internacional (IsoCo) por causa da presenccedila de

participantes da Ameacuterica e da Aacutesia mdash esse adopta uma perspectiva teacutecnica

Natildeo definimos a funccedilatildeo dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa a partir de fora como sucederia se os trataacutessemos a partir

da perspectiva da justiccedila social e sim a partir de dentro

Partimos dos casos mais significativos de um direito dos contratos

socializado mdash como sejam os casos do direito do trabalho do direito da

protecccedilatildeo do inquilino ou do direito da protecccedilatildeo do consumidor como

devedor (mutuaacuterio) mdash para propor uma generalizaccedilatildeo dos aspectos (uma

generalizaccedilatildeo dos princiacutepios e das regras) que tais contratos tecircm em comum

O nosso ponto de partida estaacute na ideia de que a dimensatildeo social eacute

inerente agrave dimensatildeo temporal mdash estaacute de alguma forma contida na dimensatildeo

temporal O tempo soacute poder ser considerado desde que o contrato seja

duradouro desde que a sua execuccedilatildeo se prolongue por um prazo mais ou

menos longo Quanto mais longa for a duraccedilatildeo tanto mais aspectos

relacionais ligando o contrato e a vida se tornaratildeo evidentes Em uacuteltima

anaacutelise o contrato poderaacute tornar-se numa necessidade existencial O nosso

trabalho continua e desenvolve a criacutetica ao modelo dos contratos de execuccedilatildeo

instantacircnea (dos spot contracts) deduzida desde o iniacutecio do seacuteculo XX Se a

dimensatildeo social pode de alguma forma ser posta entre parecircntesis ao tratar-se

dos contratos de execuccedilatildeo instantacircnea tal natildeo pode de forma nenhuma

suceder nos contratos de execuccedilatildeo duradoura (nos long-term contracts) Os

conceitos de contrato social e de contrato de execuccedilatildeo duradoura satildeo

conceitos entre os quais haacute uma ligaccedilatildeo loacutegica Os contratos de execuccedilatildeo

duradoura (long term contracts) satildeo necessariamente contratos sociais (satildeo

necessariamente social contracts) mdash a duraccedilatildeo implica loacutegica e

necessariamente relaccedilotildees sociais e a ordenaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais pelo

contrato implica loacutegica e necessariamente relaccedilotildees juriacutedicas Explicitada a

relaccedilatildeo loacutegica necessaacuteria entre a dimensatildeo temporal e a dimensatildeo social o

74

nosso trabalho desenvolve a discussatildeo interrompida entre os contratos

transaccionais de execuccedilatildeo instantacircnea e os contratos relacionais

Propomo-nos atraveacutes da generalizaccedilatildeo dos aspectos que os contratos

de trabalho de arrendamento e de creacutedito ao consumo tecircm em comum

contribuir para a diferenciaccedilatildeo entre duas partes gerais do direito das

obrigaccedilotildees O modelo dos contratos de execuccedilatildeo instantacircnea desenhado a

partir do paradigma do contrato de compra e venda deve ser completado com

o modelo dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa

desenhado a partir dos paradigmas do creacutedito ao consumo do arrendamento e

do trabalho Construiacuteda de baixo para cima (a partir de uma bottom-up

methodology) a nova parte geral ocupando o cimo da piracircmide poderaacute

adaptar-se a aacutereas distintas do trabalho do arrendamento ou do creacutedito ao

consumo Os contributos relacionados com o direito do trabalho satildeo

particularmente significativos ao afirmarem uma tal possibilidade

II A DEFINICcedilAtildeO DE LIFE TIME CONTRACTS

Chegados aqui deve regressar-se ainda que brevemente agrave anaacutelise dos

elementos essenciais da definiccedilatildeo de Life time contracts

a) A duraccedilatildeo Entre as caracteriacutesticas dos Life time contracts estaacute a de

que ldquoa prestaccedilatildeo na sua integridade depende da duraccedilatildeo do contrato

(Laumlnge)rdquo196

Nos sistemas de Civil law o termo contratos de execuccedilatildeo duradoura

(long term contracts) abrange duas categorias de contratos em primeiro lugar

os contratos de execuccedilatildeo continuada cujo cumprimento se desenvolve

ininterruptamente pelo periacuteodo definido no contrato ou em todo o caso pelo

periacuteodo necessaacuterio para a satisfaccedilatildeo das necessidades do credor e em segundo

lugar os contratos de execuccedilatildeo perioacutedica cujo cumprimento se decompotildee em

actos sucessivos repetidos com intervalos (regulares ou irregulares) A

diferenciaccedilatildeo entre as relaccedilotildees obrigacionais de curto prazo e de longo prazo

relaciona-se com os interesses que a proacutepria obrigaccedilatildeo prossegue ou se propotildee

prosseguir Nos contratos que exigem uma prestaccedilatildeo continuada ou perioacutedica

os interesses do credor satildeo tais que natildeo podem ser satisfeitos por um acto

simples mdash soacute podem secirc-lo por uma prestaccedilatildeo complexa contiacutenua ou

descontiacutenua Nos contratos que natildeo exigem uma prestaccedilatildeo duradoura nem

continuada nem tatildeo-pouco perioacutedica os interesses do credor satildeo tais que

196 Vide por exemplo K Larenz Lehrbuch des Schuldrechts vol I mdash Allgemeiner Teil C

H Beck Muumlnchen 1987) paacuteg 30

75

podem ser satisfeitos por um acto simples A prestaccedilatildeo esgota-se num uacutenico

acto mdash e esse uacutenico acto esgota-se num uacutenico momento

Em termos histoacutericos o desenvolvimento da categoria dos contratos de

duraccedilatildeo mdash e em particular da sub-categoria dos contratos de longa duraccedilatildeo

mdash estaacute relacionada com quatro questotildees com a realizaccedilatildeo dos fins

prosseguidos pelas partes com a conclusatildeo do contrato e em particular com a

plena satisfaccedilatildeo das suas aspiraccedilotildees e dos seus interesses com a adaptaccedilatildeo dos

contratos aos casos de perturbaccedilatildeo do equiliacutebrio econoacutemico subjacente ao

contrato (Geschaumlftsgrundlage clausula rebus sic stantibus) com o direito de

as partes denunciarem discricionariamente ad nutum ou ad libitum os

contratos duradouros desde que a sua duraccedilatildeo seja indeterminada e por

uacuteltimo com os efeitos da resoluccedilatildeo do contrato Independentemente de o

fundamento da resoluccedilatildeo estar no contrato ou estar na lei a resoluccedilatildeo do

contrato natildeo teraacute (natildeo poderaacute em regra ter) efeito retroactivo

O problema estaacute em que a categoria histoacuterica dos contratos de longa

duraccedilatildeo eacute insuficiente natildeo considera ou pelo menos natildeo considera

suficientemente como deveria considerar o aspecto humano as partes de

alguns contrato de longa duraccedilatildeo satildeo seres humanos mdash satildeo pessoas mdash e os

contratos soacute podem compreender-se atendendo agrave sua relaccedilatildeo com um ser

humano (com uma pessoa com o tempo da vida de uma pessoa)

b) O tempo da-e-para a vida de uma pessoa (life time) Foi

precisamente por causa de tal insuficiecircncia que preferimos dar-lhes um nome

diferente mdash o nome de Life time contracts Em portuguecircs o termo poderaacute ser

traduzido ainda que de uma forma tatildeo-soacute aproximada por contratos

duradouros essenciais egrave existecircncia da pessoa

Como diz o nosso Segundo princiacutepio

ldquoO ponto central do regime dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa deve ser o indiviacuteduo na sua concreta realidade

material e moral O direito deve preocupar-se em disciplinar a

conclusatildeo do contrato e as relaccedilotildees de cooperaccedilatildeo entre as partes

conformando-as para proteger e para promover o desenvolvimento

da pessoa humanardquo

Em termos mais geneacutericos dir-se-aacute que os desenvolvimentos recentes

em duas aacutereas especiacuteficas como sejam o direito do arrendamento e o direito

do trabalho introduziram princiacutepios e regras no direito privado por que se

procura realizar o princiacutepio da justiccedila fazendo acepccedilatildeo de pessoas

Hugo Sinzheimer afirmou a propoacutesito dos contratos de trabalho ainda

que em termos todavia extensiacuteveis a todos os Life time contracts que o direito

natildeo deve limitar-se a reconhecer a liberdade formal do cidadatildeo Em vez de

76

tomar a liberdade de cada pessoa como uma formalidade deve projectar-se na

real substacircncia da liberdade para a realizar praticamente referindo-se agraves

necessidades do ser humano na sua natureza de ser em relaccedilatildeo197

Concordando com Sinzheimer decidimos concentrar-nos no aspecto

humano dos contratos sociais de longa duraccedilatildeo O termo Life time contracts

pretende acentuaacute-lo pretende colocaacute-lo em evidecircncia O problema central da

categoria dos Life time contracts mdash da catgoria dos contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa mdash relaciona-se com o ser humano com as

suas necessidades fiacutesicas e morais relacionadas com a pertenccedila com a

seguranccedila com o sucesso ou com a auto-realizaccedilatildeo Em diferentes palavras

relaciona-se com a sua necessidade existencial de gozar de bens e de serviccedilos

de oportunidades de trabalho e de oportunidades de rendimento A satisfaccedilatildeo

das necessidades existenciais do ser humano eacute uma preacute-condiccedilatildeo essencial

para a auto-relizaccedilatildeo para a participaccedilatildeo na vida social numa palavra eacute preacute-

condiccedilatildeo essencial para a prossecuccedilatildeo de uma vida feliz (happy life)

Trata-se de tomar a seacuterio a dimensatildeo do tempo natildeo de a tomar a seacuterio

em dimensotildees tradicionalmente consideradas pela ciecircncia do direito e sim de

a tomar a seacuterio em dimensotildees novas tradicionalmente esquecidas

Tomemos o caso do contrato de trabalho Trata-se de reconhecer que

o trabalho prestado pela pessoa toca o tempo trata-se sobretudo de

reconhecer que o trabalho prestado pela pessoa natildeo toca o tempo como uma

categoria externa ao sujeito (o ser no tempo enquanto tal natildeo pertence ao

empregador) e sim como uma categoria interna O tempo apresenta-se como

uma componente constitutiva do proacuteprio ser humano como pessoa O trabalho

representa um dos principais fenoacutemenos das relaccedilotildees sociais por permitir ao

trabalhador responder ainda que com toda a provisoriedade imposta pela

condiccedilatildeo humana a uma pergunta fundamental para a definiccedilatildeo da identidade

de cada ser humano (de cada pessoa) mdash ldquopor que viverdquo Em tal sentido

poderia porventura falar-se do tempo da vida do trabalhador

Em toda a era taylor-fordista afirmou-se que o trabalho representa uma

etapa da existecircncia em que o trabalhador ldquogastardquo o seu tempo-de-vida (life

time) Tal etapa natildeo faria parte do tempo entendido como kairos mdash ficaria

adscrita ao fazendo parte do tempo entendido como chroacutenos

Ao representar o tempo do trabalho como tempo ldquogastordquo como

chroacutenos o taylor-fordismo faz sobressair aquele que podemos qualificar como

o aspecto mais negativo do envolvimento do trabalhador no cumprimento da

197 H Sinzheimer Das Problem des Menschen im Recht Groningen 1933 republicado em H

Sinzheimer Arbeitsrecht und Rechtssoziologie 2ordf ed Europaumlische Verlagsanstalt Frankfurt-

am-Main 1976 paacutegs 53 ss

77

prestaccedilatildeo laboral O problema estaacute em que do ponto de vista dos princiacutepios e

dos valores o trabalhador natildeo pode ceder-se a si proacuteprio ao empregador e por

isso natildeo pode ceder-lhe o tempo da sua vida Natildeo pode por isso representar-

se o tempo do trabalho como tempo ldquogastordquo cedido ao empregador

A distorccedilatildeo oacuteptica engendrada pelo taylor-fordismo torna-se evidente

desde que consideremos o facto de que o envolvimento do trabalhador

dependente pode atingir em termos em tudo semelhantes os trabalhadores

independente Como soacute pode (sobre)viver atraveacutes do seu trabalho o

trabalhador eacute forccedilado a ldquogastarrdquo o seu tempo preparando ou realizando a sua

prestaccedilatildeo Natildeo eacute por acaso que tem cada vez mais adeptos a posiccedilatildeo segundo

a qual na presenccedila de prestaccedilotildees essencialmente pessoais natildeo deve ser sempre

necessaacuteria a subordinaccedilatildeo Para justificar a aplicaccedilatildeo de partes significativas

do direito do trabalho mdash designadamente daquelas por que se pretende

proteger a esfera existencial do trabalhador mdash deveria ser suficiente que a

prestaccedilatildeo tivesse como destinataacuterio uma empresa uma organizaccedilatildeo

produtiva e que lhe proporcionasse uma particular utilitas Natildeo deveria ser

necessaacuterio que o trabalhador estivesse integrado na empresa mdash seria suficiente

que a prestaccedilatildeo tivesse como destinataacuterio a empresa e que tendo como

destinataacuterio a empresa lhe proporcionasse a particular utilitas resultante da

ligaccedilatildeo entre a prestaccedilatildeo e uma orgnanizaccedilatildeo produtiva

Perguntar-se-aacute poreacutem se o direito com os seus conceitos e as suas

estruturas pode dar ao tempo a importacircncia que deve dar-lhe representando-

o como deve representaacute-lo como algo de ontologicamente ligado ao

indiviacuteduo Ora a concepccedilatildeo do tempo aqui invocada mdash a que poderiacuteamos

chamar intermeacutedia por estar situada entre dois indicadores de medida mdash soacute

pode assumir-se como uma concepccedilatildeo significativa desde que seja adequada

aos conceitos aos princiacutepios e as regras aplicaacuteveis agraves relaccedilotildees sociais

disciplinadas pelo direito O aspecto qualitativo do tempo como expressatildeo

directa ou imediata daquilo que faz de cada pessoa uacutenica deve ser sempre

ldquomediatizadordquo pelo direito e por conseguinte pelos conceitos (juriacutedicos)

atraveacutes dos quais se seleccionam aspectos recorrentes (tiacutepicos) como p ex

a doenccedila a pobreza o desemprego as necessidades familiares ou as

necessidades sociais abstraindo da individualidade dos sujeitos implicados na

relaccedilatildeo inter-individual O jurista corre sempre o risco de incorrer numa

abstracccedilatildeo excessiva distanciando-se da realidade O pensamento juriacutedico

tem-se esforccedilado desde haacute muito tempo para desenvolver instrumentos como

o tipo (Typus) capazes incluir na proacutepria reflexatildeo teoreacutetica (designadamente

na proacutepria reflexatildeo sobre os meacutetodos) o substrato vital a que devem aderir os

conceitos do sistema juriacutedico Eacute um movimento desenvolvido pelos juristas

de alguma forma ligado a um movimento porventura mais amplo de

revalorizaccedilatildeo da filosofia praacutetica Em todo o caso na prossecuccedilatildeo de tal fim

com o qual concordamos plenamente o jurista deve ter toda a atenccedilatildeo para

78

natildeo abdicar daquilo que lhe eacute proacuteprio e para natildeo confiar aos outros mdash aos

filoacutesofos aos economistas ou aos socioacutelogos mdash a selecccedilatildeo dos interess

relevantes para a decisatildeo de cada caso concreto

O jurista que pretenda prevenir-se contra a sensaccedilatildeo de que o terreno

sobre o qual se move foge sob os seus peacutes natildeo pode nem por um momento

renunciar aos conceitos ou prescindir dos conceitos Simplesmente prescindir

dos conceitos natildeo se confunde nem deve confundir-se com renunciar agrave

pretensatildeo de estar tatildeo proacuteximo quanto possiacutevel da realidade O jurista e em

especial o jusprivatista pode referir-se simultaneamente aos conceitos e agrave

realidade Pode fazecirc-lo desde que evite colocar entre parecircntesis

reconhecendo-o aquilo que representa o proacuteprio fundamento da sua actividade

de jurista mdash as relaccedilotildees entre as pessoas Em tais relaccedilotildees cada indiviacuteduo tem

uma propensatildeo instintiva ou quase-instintiva para afirmar a sua

subjectividade para actuar a sua vontade de poder O jusprivatista soacute pode

referir-se agrave realidade desde que reconheccedila que a actuaccedilatildeo da vontade de poder

do indiviacuteduo estaacute sujeita a condiccedilotildees e deve estar sujeita a limites

O juslaborista deve ir ainda mais longe O direito do trabalho soacute se

constituiu por ter dado ao direito privado uma dimensatildeo axioloacutegica Em que

consiste tal dimensatildeo perguntar-se-aacute Em enunciar as regras de julgamento

por que haacute-de atribuir-se e distribuir-se os custos do agir humano de forma a

considerar as situaccedilotildees mais relevantes de limitaccedilatildeo da liberdade de cada um

por causa da sua participaccedilatildeo na vida econoacutemica e na vida social Os princiacutepios

e as regras por que haacute-de concretizar-se a regra de julgamento devem ter em

conta por um lado a loacutegica comutativa de uma relaccedilatildeo contratual e por outro

lado os limites que dentro da loacutegica comutativa o princiacutepio da exigibilidade

potildee agrave desequilibrada distribuiccedilatildeo de custos Em todo o caso ainda que dentro

dos limites da exigibilidade e da loacutegica comutativa do contrato a dimensatildeo

axioloacutegica eacute algo de essencial sem o qual o direito do trabalho natildeo pode

explicar-se e natildeo pode justificar-se

Entre os exemplos que poderiam evocar-se para concretizar o

argumento deduzido haacute um caso de particular actualidade mdash o caso da

utilizaccedilatildeo das tecnologias digitais O indiviacuteduo sofre cada vez mais a pressatildeo

da sua presenccedila Em termos tais que se tornam incompreensiacuteveis os atrasos do

pensamento juslaboral em relaccedilatildeo a um tema cada vez mais fundamental nas

relaccedilotildees de trabalho mdash o dever do empregador de proporcionar ao trabalhador

uma adequada formaccedilatildeo Quando um dos sujeitos da relaccedilatildeo sofre a pressatildeo

da realidade circundante instaurando-se o ldquodomiacutenio das coisas sobre os

79

homensrdquo198 o direito deve recordar ao outro sujeito que ser livre ldquonatildeo significa

ser livre do dever mas sim atraveacutes do dever e da responsabilidaderdquo199

Respondida agrave pergunta pelo se mdash se pode o direito dar ao tempo a

importacircncia que deve dar-lhe mdash falta poreacutem responder agrave pergunta pelo como

Como poderaacute dar-se a devida importacircncia agrave dimensatildeo qualitativa do tempo

atendendo ao ldquotempo da vidardquo ou ao ldquotempo vividordquo por cada um200

Reconhecemos que o direito natildeo pode atribuir relevacircncia pelo menos

relevacircncia directa ou imediata ao tempo da vida de cada trabalhador

O pensamento juriacutedico soacute pode operar com conceitos e os conceitos soacute

podem operar colocando o tempo da vida na sua ordem cronoloacutegica e

transformando os factos concretos de que depende a vida de cada trabalhador

em descriccedilotildees gerais e abstractas mdash em conceitos mdash construiacutedos sem fazer

qualquer referecircncia aos traccedilos individuais Transformar os factos em conceitos

e sobretudo transformar os factos concretos em conceitos abstractos e gerais

eacute algo que soacute pode fazer-se por referecircncia a acontecimentos recorrentes e a

acontecimentos recorrentes na vida de uma pluralidade de pessoas (como a

doenccedila a maternidade ou a paternidade)

Reconhecemos por isso que o direito soacute pode atribuir relevacircncia aos

factos recorrentes porque soacute os factos recorrentes satildeo tipicizaacuteveis

c) Essencialidade para a satisfaccedilatildeo das necessidades humanas Os

comentadores sublinharam sem excepccedilatildeo que um dos pontos fortes do livro

eacute a ligaccedilatildeo estabelecida entre os contratos de trabalho e os contratos de creacutedito

mdash entre ldquotemas que soacute raramente satildeo tratados em conjunto pelos juristasrdquo

Hugh Collins sugere que fundamento de tal ligaccedilatildeo estaacute na ideia de que ambos

os contratos datildeo agrave pessoa a capacidade de gastar Os primeiros os contratos

de trabalho atraveacutes da retribuiccedilatildeo do trabalhador e os segundos atraveacutes do

creacutedito David Hiez concorda com a constataccedilatildeo de Hugh Collins que natildeo eacute

habitual considerar em conjunto os contratos de trabalho os contratos de

arrendamento e os contratos de creacutedito ao consumo ldquosobretudo por se tratar

de contratos mais ou menos autoacutenomos ente si no sistema do direito privadordquo

Sem procurar propriamente sugerir uma qualquer explicaccedilatildeo ou justificaccedilatildeo

para o fenoacutemeno Hiez qualifica a opccedilatildeo por um tratamento unitaacuterio dos trecircs

tipos de contrato como particularmente fecunda para o desenvolvimento das

ideias (particolarmente euristica) O tratamento unitaacuterio do creacutedito do

arrendamento e do trabalho coloca em evidecircncia contiguidades que passam

198 Max Weber Der Sozialismus Athenaumlum Weinheim 1995 paacutegs 76 ss 199 Karl Polanyi Una societagrave umana unrsquoumanitagrave sociale Scritti 1918-1963 Jaca Book

Milano 1963 paacuteg136 200 E Borgna Il tempo e la vita Feltrinelli Milano 2015 paacuteg 59

80

ou podem passar despercebidas a um jusprivatista pelo facto de as suas

classificaccedilotildees dos contratos se sustentarem mais em consideraccedilotildees teacutecnicas

que em consideraccedilotildees sociais

ldquoOs autores do livro demonstram de uma forma convincenterdquo

conclui Hiez ldquoque na actual sociedade de consumo o rendimento

constante natildeo eacute suficiente que eacute necessaacuterio de quando em quando

mobilizar quantias elevadas para fazer frente a circunstacircncias

excepcionais e que tais quantidas elevadas soacute podem ser obtidas

atraveacutes do creacutedito O creacutedito ao consumo acaba por desempenhar

uma funccedilatildeo anaacuteloga ao contrato de trabalhordquo

Javier Ariacuteas Varona preocupa-se sobretudo com a relaccedilatildeo entre creacutedito

e insolvecircncia fazendo sobressair a ligaccedilatildeo estabelecida entre o direito puacuteblico

e o direito privado mdash entre o direito da insolvecircncia na medida em que seja

direito puacuteblico e o direito do creacutedito [ao consumo] na medida em que seja

direito privado ldquoA ligaccedilatildeo entre o conceito de contratos duradouros essenciais

agrave existecircncia da pessoa os contratos de creacutedito e as instituiccedilotildees da insolvecircncia

natildeo eacute uma ligaccedilatildeo evidente mdash em todo o caso os autores do livro tornaram-

na transparente Os capiacutetulos sobre o creacutedito e a insolvecircncia abrem

perspectivas para o futuro ao ligarem o desenvolvimento geral do direito [dos

contratos] aos elementos estruturais do direito da insolvecircnciardquo O contrato

permite ou pode permitir uma resoluccedilatildeo dos problemas colocando os

processos de insolvecircncia (ex post) no contexto das relaccedilotildees contratuais (ex

ante) O problema estaria tatildeo-soacute na resistecircncia da legislaccedilatildeo e da

jurisprudecircncia mdash o actual direito do creacutedito ao consumo natildeo estaria como

deveria estar aberto agrave aplicaccedilatildeo da clausula rebus sic stantibus agraves condiccedilotildees

especiais da pessoa

Em todo o caso Ariacuteas Varona qualifica a perspectiva aberta pelo livro

como profundamente original permitindo-nos apreender o fenoacutemeno da

insolvecircncia [das pessoas singulares] de uma forma diferente da habitual

Explicitando a razatildeo de ser da relaccedilatildeo entre os trecircs tipos de contratos

diremos que na sociedade contemporecircna a relaccedilatildeo de trabalho deixou de ser

a relaccedilatildeo de que depende em exclusivo a vida livre e digna de cada pessoa

Se natildeo queremos qua tal dignidade e tal liberdade se transformem numa pura

e simples utopia devemos reconhecer a importacircncia dos actos de consumo por

que se ldquogastardquo o tempo presente ou futuro da vida das pessoas

Como fizemos no passado com as actividades produtivas (como o

trabalho) devemos no presente dar importatildencia ao consumo e ao tempo

O nosso trabalho poderaacute parecer incompleto mdash grandes aacutereas do

direito como os serviccedilos financeiros como as pensotildees por doenccedila ou por

velhice como os seguros ou como os sistemas de pagamentos parecem ter

81

sido arbitrarimente excluiacutedas do conceito de Life time contracts O problema

potildee-se analogamente para os serviccedilos puacuteblicos essenciais O contributo de

Frey Nybergh sublinha-o ao tratar de alguns aspectos do seu regime

Em resposta agrave acusaccedilatildeo de incompletude deveraacute esclarecer-se que os

trecircs tipos de contratos seleccionados satildeo soacute exemplos Os contratos de

trabalho de arrendamento e de creacutedito ao consumo satildeo soacute trecircs casos ainda que

paradigmaacuteticos de contratos que podem e devem coordenar-se ao conceito de

contratos duradouros essenciais agrave existacircncia da pessoa Natildeo satildeo se forma

nenhuma mdash e nunca pretenderam ser mdash uma enumeraccedilatildeo exaustiva O

conceito de Life time contracts eacute na verdade mais amplo que os conceitos

delimitadores dos trecircs sectores especiacuteficos do direito dos contratos

No direito do trabalho propusemos a extensatildeo da ideia a todos os

contratos em que a actividade intelectual ou manual de uma pessoa (scl o

trabalho) eacute aplicada para a obtenccedilatildeo de um rendimento (em regra para a

obtenccedilatildeo de um rendimento necessaacuterio agrave vida) no direito dos serviccedilos

financeiros propusemos a inclusatildeo de todos os contratos relacionados com o

uso do dinheiro para o consumo pessoal ou para o trabalho nos contratos de

locaccedilatildeo propusemos a inclusatildeo da locaccedilatildeo financeira de bens de consumo

(consumer leasing) Os contratos de locaccedilatildeo claacutessicos como p ex o contrato

de arrendamento [para habitaccedilatildeo] constituem um caso paradigmaacutetico de

contratos duradouros essenciais aacute existecircncia da pessoa os contratos de locaccedilatildeo

novos como p ex o contrato de locaccedilatildeo financeira de bens de consumo

constituem um caso talvez menos paradigmaacutetico todavia natildeo menos

significativo Em todo o caso os contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilo necessaacuterios

para o consumo foram completamente omitidos O problema poderaacute ser

resolvido criando uma quarta aacuterea ou um quarto sector mdash os contratos de

prestaccedilatildeo de serviccedilo orientados para a satisfaccedilatildeo das necessidades essenciais

(como sejam os contratos de fornecimento de bens essenciais como sejam a

aacutegua ou a electricidade ou as comunicaccedilotildees)

Feito o alargamento da categoria dos contratos duradouros essenciais

agrave existecircncia da pessoa poderiacuteamos porventura abandonar a linguagem juriacutedica

e abandonando-a definir a aacuterea dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa de forma a abranger o acesso a e o uso de diferentes

formas de capital de diferentes coisas e de diferentes serviccedilos de diferentes

formas de capital (do acesso ao acesso ao capital atraveacutes da do trabalho da

produccedilatildeo e do creacutedito [dos serviccedilos financeiros]) de diferentes coisas (atraveacutes

dos ldquoantigosrdquo contratos de arrendamento [para habitaccedilatildeo] e dos novos

contratos de locaccedilatildeo financeira de bens de consumo) e de diferentes serviccedilos

(como a aacutegua a electricidade o telefone e as telecomunicaccedilotildees de massa) Os

contratos de trabalho de arrendamento e de creacutedito satildeo soacute os exemplos mais

82

claros e mais distintos de tais contratos simultaneamente duradouros (da-e-

para a vida) e essenciais para a satisfaccedilatildeo das necessidades humanas

O facto de termos incluiacutedo na definiccedilatildeo de Life time contracts uma

referecircncia agrave sua essencialidade para a satisfaccedilatildeo das necessidades humanas

fundamentais (basic needs) carece de alguma explicaccedilatildeo

Deve esclarecer-se em primeiro lugar que a referecircncia agraves

necessidades humanas fundamentais natildeo eacute o criteacuterio da classificaccedilatildeo

Os contratos natildeo se subsumem ao conceito de Life time contracts por

serem contratos essenciais agrave satisfaccedilatildeo das necessidades humanas

fundamentais (basic needs) soacute se lhe subsumem se forem contratos

duradouros e se por serem contratos duradouros tocarem o tempo da-e-para-

a-vida (por tocarem o life time) Em diferentes termos A referecircncia agraves

necessidades humanas fundamentais eacute menos a causa que o efeito de uma

adaptaccedilatildeo das formas contratuais ao tempo da-e-para-a-vida

Deve esclarecer-se em segundo lugar que a referecircncia agraves necessidades

humanas fundamentais natildeo eacute soacute por si suficiente

David Hiez alega com alguma razatildeo que ldquoo criteacuterio baseado na

conexatildeo entre o contrato e a realizaccedilatildeo pessoal do contrato eacute um criteacuterio

susceptiacutevel de uma extensatildeo difiacutecil quase impossiacutevel de delimitarrdquo

O problema pode e deve resolver-se atraveacutes de uma tipificaccedilatildeo dos

interesses relevantes para que um contrato deva incluir-se na categoria dos

Life time contracts Os termos ldquorelaccedilotildees sociais que tecircm por objecto

proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos

necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialrdquo

exigem uma densificaccedilatildeo e uma especificaccedilatildeo jurisprudenciais Entre os

criteacuterios relevantes para tal densificaccedilatildeo para tal especificaccedilatildeo encontra-se o

criteacuterio da conformidade com o sistema de direitos fundamentais O aplicador

do direito deve concretizar os termos da definiccedilatildeo aderindo estritamente aos

direitos fundamentais reconhecidos pelas tradiccedilotildees constitucionais

Em abono da afirmaccedilatildeo de que o problema soacute pode resolver-se atraveacutes

de uma tipificaccedilatildeo dos interesses relevantes podem deduzir-se dois

argumentos O primeiro relaciona-se com o princiacutepio geral da certeza e da

seguranccedila juriacutedicas e o segundo com a regra especiacutefica [do direito alematildeo da

responsabilidade civil] de acordo com a qual os danos natildeo patrimoniais soacute satildeo

indemnizaacuteveis nos casos previstos na lei (sect 253 do Coacutedigo Civil alematildeo)

Na Introduccedilatildeo ao nossso livro chamaacutemos ao caso a jurisprudecircncia do

Supremo Tribunal Federal alematildeo (do Bundesgerichtshof) para darmos um

exemplo de uma densificaccedilatildeo e especificaccedilatildeo jurisprudecircncias dos interesses

relevantes O Supremo Tribunal Federal alematildeo reconhece um direito agrave

83

indemnizaccedilatildeo dos danos natildeo patrimoniais incluindo os danos contratuais pela

privaccedilatildeo ou perturbaccedilatildeo do uso (Nutzungsentschaumldigung) dos bens e serviccedilos

que satildeo essenciais para um estilo de vida econoacutemica e financeiramente

autoacutenomo (eigenwirtschaftliche Lebenshaltung)

O criteacuterio do estilo de vida econoacutemica e financeiramente autoacutenomo

deve em todo o caso alargar-se em termos de incluir todos os casos em que a

interrupccedilatildeo do acesso a certos bens e a certos serviccedilos tem um impacto

significativo sobre os fundamentos materiais da vida de uma pessoa

Entre os casos em que o Supremo Tribunal Federal reconhece um

direito agrave indemnizaccedilatildeo encontram-se p ex os danos causados pela

interrupccedilatildeo do acesso aacute Internet necessaacuterio para a utilizaccedilatildeo do e-mail201 Os

casos de responsabilidade pela privaccedilatildeo ou pela perturbaccedilatildeo do uso devem de

qualquer forma expandir-se de forma a incluir o uso de um aparelho de

televisatildeo ou de um computador incluindo de um computador portaacutetil ou de

uma bicicleta ou de um equipamento de cozinha ou de uma casa de feacuterias

Entre os casos em que o Supremo Tribunal Federal natildeo reconhece ou

natildeo deve reconhecer nenhum direito agrave indemnizaccedilatildeo estatildeo p ex os danos

causados pela privaccedilatildeo ou pela perturbaccedilatildeo do uso de uma piscina privada202

de uma autocaravana203 de um casaco de peles204 ou de um barco a motor205

III POR QUEcirc UM DIREITO DO CONTRATO (SOCIAL) [OU UM DIREITO

(SOCIAL) DO CONTRATO]

Os Life time contracts natildeo estatildeo sujeitos a um regime autoacutenomo nos

direitos nacionais nem no direito europeu nem muito menos no direito

comunitaacuterio Os tipos especiacuteficos de contrato como o contrato de

arrendamento ou o contrato de trabalho tecircm sido regulados pelos direitos

nacionais O tipo geral dos Life time contracts natildeo [O caso do tipo geral

contratos de longa duraccedilatildeo eacute de alguma forma um caso semelhante]

Os juristas da Europa (continental) tecircm-se esforccedilado por enunciar uma

espeacutecie de ldquoparte geral do direito dos contratos e das obrigaccedilotildees para a

[protecccedilatildeo da] parte mais fracardquo (allgemeiner Teil des Rechts des schwaumlcheren

201 BGHZ de 24 de janeiro de 2013 ndash III ZR 9812 in httpjurisbundesgerichtshofdecgi-

binrechtsprechungdocumentpyGericht=bghampArt=enampnr=63259amppos=0ampanz=1 202 BGHZ de 28 de fevereiro de 1980 mdash VII ZR 13173 203 BGHZ de 15 de dezembro de 1982 mdash VIII ZR 31580 204 BGHZ de 12 de fevereiro de 1975 mdash VIII ZR 1173 205 BGHZ de 15 de novembro de 1983

84

Partners)206 O problema estaacute em que a construccedilatildeo de um tipo geral a partir da

fragilidade ou da vulnerabilidade das partes suscita duas dificuldades [Em

primeiro lugar] o criteacuterio da fragilidade ou da vulnerabilidade tende a

favorecer simplesmente uma igualdade formal O direito da parte mais fraca

tende a concretizar-se em princiacutepios e em regras por que se pretende

compensar a assimetria designadamente a assimetria informacional entre as

partes de um contrato Em termos praacuteticos uma compensccedilatildeo da assimetria

designadamente da assimetria informacional corresponderia tatildeo-soacute a uma

generalizaccedilatildeo do actual estado de coisas mdash do actual conjunto dos princiacutepios

e das regras do direito comunitaacuterio relativos agrave protecccedilatildeo dos consumidores

[Em segundo lugar] o criteacuterio da fagilidade ou da vulnerabilidade natildeo parece

ser um criteacuterio particularmente selectivo (natildeo parece ter uma particular

capacidade de selecccedilatildeo) Como afirma Andrea Nicolussi na sua contribuiccedilatildeo

para o livro ldquonos contratos haacute sempre ou quase sempre uma parte que eacute mais

fraca que a outrardquo mdash O direito da parte mais fraca tende a ser um direito de

todos os contratos

Se o contributo da teoria juriacutedica europeia (continental) falha por

convocar um criteacuterio que natildeo eacute adequado o contributo da teoria econoacutemica

norte-americana e em especial da teoria dos contratos relacionais esse falha

por negar as necessidades existenciais das pessoas envolvidas

Os economistas dos Estados Unidos esses tecircm-se esforccedilado por

distinguir os contratos transaccionais e os contratos relacionais enunciando os

princiacutepios e as regras gerais de uma teoria dos relational contracts

Ora a teoria dos contratos relacionais tem um aspecto positivo

reconhece uma parte do problema mdash em todos os contratos de longa duraccedilatildeo

o direito deve atender agrave relaccedilatildeo deve atender ao contacto altamente interactivo

entre as partes mdash natildeo obstante o seu aspecto positivo a teoria dos contratos

relacionais tem um aspecto negativo natildeo reconhece como deveria

reconhecer a outra parte do problema Em alguns contratos de longa duraccedilatildeo

como sejam os contratos de arrendamento de creacutedito ou de trabalho o direito

206 F Gamillscheg ldquoZivilrechtliche Denkformen und die Entwicklung des

Individualarbeitsrechts Zum Verhaumlltnis von Arbeitsrecht und BGBrdquo in Archiv fuumlr die

civilistische Praxis 1976 paacutegs 197 ss (= Idem Ausgewaumlhlte Schriften zu Arbeitsrecht und

Rechtsvergleichung Nomos Baden-Baden 2006 paacutegs 124 ss) P Derleder

ldquoUnterlegenenschutz im Vertragsrecht Ein Modell fuumlr das Arbeitsrechtrdquo in Kristische

Justiz 1995 paacutegs 320 ss G Houmlhn Kompensation gestoumlrter Vertragsparitaumlt Beck Muumlnchen

1982) E Roppo ldquoParte generale del contratto contratti del consumatore e contratti

asimmetricirdquo in Rivista di diritto privato 2007 paacutegs 669 ss G Gitti G Villa (coord) Il

terzo contratto Il Mulino Bologna 2008

85

dos contratos deve atender agraves necessidades existenciais de uma das partes mdash

como sejam p ex o arrendataacuterio o devedor ou o trabalhador

Foram as insuficiecircncias da teoria juriacutedica e da teoria econoacutemica do

contrato que nos fizeram desenvolver um conjunto de princiacutepios e de regras

gerais capazes de reger os Life time contracts Natildeo podemos considerar tatildeo-

soacute a fase da formaccedilatildeo do contrato temos de considerar sobretudo as relaccedilotildees

constituiacutedas na fase da execuccedilatildeo do contrato Em especial natildeo podemos por

considerarmos tatildeo-soacute a fase da formaccedilatildeo do contrato privilegiar a vontade

das partes Os Life time contracts requerem sempre princiacutepios e regras

inderrogaacuteveis O ponto deve enfatizar-se em resposta agravequeles que como Hugh

Collins consideram que a posiccedilatildeo tomada pelos autores do livro natildeo eacute uma

posiccedilatildeo particularmente clara

David Hiez conclui que o Life time contract natildeo eacute (ainda natildeo eacute) um

tipo de contrato ldquoTrata-se de uma categoria abstracta trata-se ainda de uma

categoria intelectual mas natildeo se trata de uma categoria juriacutedica O seu

propoacutesito natildeo eacute o de produzir consequecircncias juriacutedicas imediatas Eacute sim o de

fazer reflectir sobre a orientaccedilatildeo do direito europeu dos contratos [O trabalho

desenvolvido eacute] por isso um trabalho de caraacutecter estritamente doutrinalrdquo

No presente momento histoacuterico a conclusatildeo ainda eacute plenamente

exacta Em todo o caso como eacute mais ou menos manifesto temos a esperanccedila

de que os nossos princiacutepios sejam recebidos por um direito geral dos contratos

e mais mdash temos a esperanccedila de que o sejam num futuro proacuteximo A

globalizaccedilatildeo mundial estaacute a produzir uma cada vez mais marcada integraccedilatildeo

indirecta produzida pelos mercados Eacute tempo de reflectirmos sobre a

oportunidade uma integraccedilatildeo directa produzida pelo direito

O nosso livro privilegia o direito dos contratos Entre a nossa

perspectiva e as perspectivas preconizadas em trabalhos precedentes sobre os

contratos de longa duraccedilatildeo haacute uma diferenccedila fundamental noacutes concentraacutemo-

nos sobre o direito dos contratos e natildeo como Grossi na combinaccedilatildeo do direito

dos contratos com o direito das coisas207 ou como Gierke na combinaccedilatildeo do

direito dos contratos com o direito das pessoas208

O direito do trabalho eacute a prova de que a forma contrato eacute ainda uma

forma conveniente e de que eacute porventura uma forma necessaacuteria

207 P Grossi Locatio ad longum tempus ndash Locazione e rapporti reali di godimento nella

problematica di diritto comune Morano Napoli 1963 paacuteg 26 208 O von Gierke Dauernde Schuldverhaumlltnisse in Jherings Jahrbuumlcher fuumlr die Dogmatik des

buumlrgerlichen Rechts vol 64 (1914) paacutegs 24 ss

86

Em primeiro lugar o paradigma do direito dos contratos permite ligar

a liberdade e a igualdade (formais) entre as partes

A aplicaccedilatildeo da forma contrato agraves relaccedilotildees de trabalho representa para

o trabalhador uma primeira garantia de que eacute ldquoportador de valores ligados agrave

liberdade do ser humanordquo (porteur de valeurs lieacutees agrave la liberteacute de lrsquohomme)209

Eacute evidente que se trata apenas e soacute de uma garantia negativa em todo

o caso mesmo que se trate apenas e soacute de uma garantia negativa e mesmo que

tal seja evidente eacute sempre uma garantia Sem uma contratualizaccedilatildeo poderia

dar-se o caso de a relaccedilatildeo de trabalho se constituir ab initio como uma relaccedilatildeo

juridicamente desequilibrada com uma contratualizaccedilatildeo tal caso natildeo pode

dar-se O contrato eacute uma garantiia que a relaccedilatildeo natildeo se constitua pelo menos

juridicamente como uma relaccedilatildeo desequilibrada

Em segundo lugar independentemente do significado positivo a forma

contrato tem um significado negativo O paradigma do direito ds coisas natildeo

permite representar a realidade de uma forma adequada e sobretudo natildeo

permite resolver os problemas postos pela realidade de uma forma justa

Natildeo permite por um lado representar a realidade de uma forma

adequada Natildeo pode pensar-se com realismo que o trabalhador seja titular de

uma posiccedilatildeo de proprietaacuterio ou sequer de uma posiccedilatildeo anaacuteloga aacute de

proprietaacuterio (natildeo pode p ex pensar-se que o trabalhador seja ldquoproprietaacuteriordquo

de um lugar de trabalho)

Natildeo permite por outro lado resolver os problemas postos pela

realidade de uma forma justa O paradigma do direito dos contratos reconhece

que a composiccedilatildeo das relaccedilotildees entre as partes deve orientar-se por princiacutepios

de justiccedila relacional O paradigma do direito das coisas natildeo o reconhece Ora

na parte da realidade seleccionada pelos princiacutepios e pelas regras do direito

dos contratos estatildeo sempre em causa dois e quase sempre (muito) mais de

dois direitos fundamentais210 Os princiacutepios e as regras de direitos

fundamentais devem ser compreendidos como ldquoprinciacutepiosrdquo e como

ldquoprinciacutepiosrdquo devem condicionar quer a conformaccedilatildeo dos actos legislativos

quer a conformaccedilatildeo dos actos jurisdicionais Os direitos fundamentais devem

aplicar-se (indirecta ou mediatamente) agraves relaccedilotildees juriacutedico-privadas atraveacutes

p ex da interpretaccedilatildeo das disposiccedilotildees legais211 Compreendendo-se os

209 G Lyon-Caen Deacutefense et illustration du contract de travail in Archives de Philosophie

du Droit vol 13 (1968) paacuteg 69 210 Redescobre-se assim a concepccedilatildeo aristoteacutelica de justiccedila mdash vide Aristoacuteteles Eacutetica a

Nicoacutemaco 211 Cf CW Canaris ldquoGrundrechte und Privatrechtrdquo in Archiv fuumlr die civilistische Praxis

vol 184 (1984) paacutegs 201 ss concordando com a jurisprudecircncia constitucional da Repuacuteblica

87

direitos fundamentais como ldquoprinciacutepiosrdquo a aplicaccedilatildeo dos direitos

fundamentais agraves relaccedilotildees juriacutedico-privadas deve sempre realizar-se sob o signo

do balanceamento da nobre arte do compromisso ou da ponderaccedilatildeo da

proportio mdash sob o signo das exigecircncias relacionais

O conceito de exigecircncias relacionais conteacutem em si ldquoelementos de

orientaccedilatildeordquo e ldquoelementos de respostardquo agraves questotildees sobre os valores212

reconhecendo-se como deve reconhecer-se que ldquoas questotildees sobre os valores

[hellip] podem reduzir-se a questotildees sobre as consequecircncias das respectivas

escolhas transferindo a discussatildeo para uma ordem de argumentaccedilotildees e de

valoraccedilotildees das quais eacute mais faacutecil controlar a racionalidaderdquo213

Hugh Collins opotildee um uacuteltimo obstaacuteculo agrave aplicaccedilatildeo do paradigma do

direito dos contratos agraves ldquorelaccedilotildees sociais que tecircm por objecto proporcionar ao

indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos necessaacuterios para a

sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialrdquo

Estando em causa contratos essenciais agrave auto-realizaccedilatildeo pessoal

deveria reconhecer-se a cada ser humano um direito fundamental de acesso agraves

oportunidades proporcionadas pelo mercado Collins critica poreacutem a

convicccedilatildeo de que as normas que disciplinam o acesso aos mercados possam

ser conformadas como propotildeem os Principles on Life Time Contracts mdash as

normas que disciplinam o acesso aos mercados natildeo seriam suficientemente

fortes para proporcionar a cada um um tal acesso a tais mercados

O raciociacutenio de Hugh Collins natildeo deve sufragar-se por desvalorizar

injustificadamente a relaccedilatildeo entre direito privado e os sistemas de valores

colectivos O direito privado tem necessidade de ser completado de ser

integrado pelas poliacuteticas puacuteblicas para que o acesso aos bens aos serviccedilos ao

trabalho e aos rendimentos necessaacuterios para a auto-realizaccedilatildeo e para a

participaccedilatildeo na vida social seja como deve ser universal

Federal da Alemanha mdash M Ruffert ldquoDie Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts

zum Privatrechtrdquo in Juristen Zeitung 20088 paacutegs 389-390 212 G Vettori ldquoIl tempo dei dirittirdquo in Rivista trimestrale di diritto e procedura civile 2014

paacuteg 91 213 L Mengoni Diritto e valori Il Mulino Bologna 1985 paacuteg 46 nota nordm 100

88

89

Uma introduccedilatildeo aos contratos existenciais

Nuno Manuel Pinto Oliveira

laquoWer den Rechtstaat will muszlig den Sozialstaat befuumlrworten wer

liberale Grundrechte einfordert muszlig soziale Rechte anerkennen und

wer die Privtrechtsgesellschaft postuliert muszlig deren soziale

Verantwortung respektierenraquo214

I INTRODUCcedilAtildeO O DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS COMO

DIREITO SOCIAL

Em LrsquoEacutetat Providence Franccedilois Ewald distingue dois tipos de direito

privado O direito privado ldquoclaacutessicordquo poderia chamar-se direito civil O direito

privado moderno poderia chamar-se p ex direito social215

Entre o direito civil e o direito social encontrar-se-ia duas diferenccedilas

fundamentais216 O direito civil dirigir-se-ia ao indiviacuteduo o direito social

dirigir-se-iacutea agrave ldquoclasserdquo ou ao ldquogrupordquo dirigindo-se ao indiviacuteduo o direito civil

seria um direito da igualdade dirigindo-se agrave ldquoclasserdquo ou ao ldquogrupordquo o direito

social seria um direito de desigualdades217 Ewald fala impressivamente de

um ldquodireito discriminatoacuteriordquo e de um um ldquodireito de preferecircnciasrdquo218

O actual direito europeu dos contratos inscreve-se (aparentemente) no

direito social em primeiro lugar como direito dos consumidores dirige-se a

uma ldquoclasserdquo ou a um ldquogrupordquo e em segundo lugar como direito de protecccedilatildeo

dos consumidores dirige-se agrave ldquoclasserdquo ou ao ldquogrupordquo dos consumidores para

os preferir O problema estaacute em que o projecto de um direito europeu dos

Professor da Escola de Direito da Universidade do Minho 214 Joumlrg Neuner Privatrecht und Sozialstaat C H Beck Muumlnchen 1998 paacuteg 291 215 Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence Editions Grasset Paris 1986 mdash esp Capiacutetulo II mdash

Droit social (consultado em formato electroacutenico epub) paacutegs 554 ss 216 Franccedilois Ewald fala de trecircs diferenccedilas As duas primeiras afiguram-se essenciais a terceira

natildeo Ewald alega que o fundamento do direito civil eacute um fundamento filosoacutefico e que o

fundamento do direito social eacute um fundamento socioloacutegico mdash a alegaccedilatildeo eacute pelo menos

contestaacutevel 217 Cf Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacuteg 577 (ldquodroit des ineacutegaliteacutesrdquo) 218 Cf Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacuteg 579

90

contratos com os consumidores como direito de desigualdades

discriminaccedilotildees ou preferecircncias eacute hoje um projecto em crise

O conceito de um direito social seria um conceito perigoso por causa

da sua imprecisatildeo219 mdash e o projecto de uma justiccedila social atraveacutes p ex de

um direito de protecccedilatildeo do consumidor seria um projecto perigoso

Heinrich Honsell critica o princiacutepio de uma protecccedilatildeo do consumidor

por contribuir para a diminuiccedilatildeo da qualidade da legislaccedilatildeo de direito privado

O conceito de consumidor seria em si controverso ao aceitar-se que

todos os membros de uma ldquoclasserdquo ou de um ldquogrupordquo carecem de protecccedilatildeo

estaacute a rejeitar-se estaacute a renunciar-se a uma diferenciaccedilatildeo entre os membros

da ldquoclasserdquo ou do ldquogrupordquo em que haacute uma carecircncia de protecccedilatildeo ou uma

necessidade de protecccedilatildeo materialmente justificada e os membros da ldquoclasserdquo

ou do ldquogrupordquo em que natildeo haacute nenhuma necessidade de protecccedilatildeo220

Em texto colectivo subscrito p ex por Grigoleit Jansen ou

Zimmermann alega-se que o conceito de consumidor designa exclusivamente

uma ldquofunccedilatildeo socialrdquo que ldquoos seres humanos natildeo satildeo necessariamente lsquofraacutegeisrsquo

quando desempenham a funccedilatildeo social [de consumidores]rdquo mdash e que a

(alegada) fragilidade dos consumidores ldquonatildeo proporciona uma adequada

fundamentaccedilatildeo para que se tomem medidas de protecccedilatildeo dos consumidores

como normas imperativasrdquo A fragilidade dos consumidores seria

simplesmente ldquoa poorly reasoned artefactrdquo221 222

219 Cf designadamente Friedrich von Hayek Die Verfassung der Freiheit mdash apud Joumlrg

Neuner Privatrecht und Sozialstaat cit paacutegs 73-74 laquoQue realmente significa [a palavra

lsquosocialrsquo] ningueacutem sabe Sabe-se apenas que uma economia de mercado social natildeo eacute uma

economia de mercado que um Estado de direito social natildeo eacute um Estado de direito que uma

consciecircncia social natildeo eacute uma consciecircncia que uma justiccedila social natildeo eacute uma justiccedila mdash e receio

que uma democracia social natildeo seja uma democraciaraquo 220 Heinrich Honsell em ldquoDie Zukunft des Privatrechtsrdquo in Zeitschift fuumlr schweizerisches

Recht 2007 e sobretudo em ldquoDie Erosion des Privatrechts durch das Europarechtrdquo in ZIP

mdash Zeitschrift fuumlr Wirtschaftsrecht 2008 paacutegs 621-630 (623-624) 221 Horst Eidenmuumlller Florian Faust Hans-Christoph Grigoleit Nils Jansen Gerhard

Wagner Reinhard Zimmermann ldquoTowards a Revision of the Consumer-acquisrdquo in Common

Market Law Review vol 48 (2011) paacutegs 1077-1123 (= WWW

lthttppapersssrncomsol3paperscfmabstract_id=1807943gt) 222 Em termos semelhantes Joumlrg Neuner Privatrecht und Sozialstaat cit paacuteg 279 O

princiacutepio da protecccedilatildeo do consumidor soacute em parte e em parte restrita pode procurar a sua

legitimaccedilatildeo atraveacutes do princiacutepio da protecccedilatildeo da parte mais fraca O princiacutepio em causa

precisa de ser completado por consideraccedilotildees morais eacuteticas e pragmaacuteticas mdash designadamente

91

Zimmermann explica que a divisatildeo do direito privado em direito civil

e em direito do consumo seria ldquofatalrdquo para o sistema O direito civil ficaria

ldquopresordquo a um princiacutepio de liberdade e a um princiacutepio de igualdade (formais) e

o direito dos consumidores ao tentar ldquolibertar-serdquo dos princiacutepio de uma

liberdade e de igualdade ldquoformaisrdquo ficaria ldquopresordquo a um princiacutepio de negaccedilatildeo

da liberdade pela protecccedilatildeo do consumidor contra a sua fragilidade223

II O DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS COMO DIREITO CIVIL

Entre os contributos do direito europeu para o desenvolvimento do

direito dos contratos sobressaem duas directivas mdash a Directiva 199313CE

de 5 de Abril de 1993 e a Directiva 199944CE de 25 de Maio de 1999

A primeira pronuncia-se sobre o conteuacutedo dos contratos (sobre as

claacuteusulas abusivas) a segunda pronuncia-se sobre o cumprimento e o natildeo

cumprimento dos contratos [de compra e venda de bens de consumo]

Ora o Tribunal de Justiccedila em acoacuterdatildeos recentes sobre as duas

directivas propotildee-se superar a tese de que o direito europeu dos contratos eacute

um direito da desigualdade discriminando entre os sujeitos da relaccedilatildeo

contratual para proteger o consumidor A representaccedilatildeo do direito europeu

dos contratos como um direito ldquodiscriminatoacuteriordquo ou como um ldquodireito de

preferecircnciasrdquo orientado para a protecccedilatildeo dos interesses de um e soacute um dos

sujeitos da relaccedilatildeo contratual deveria ser abandonada em favor da sua

representaccedilatildeo como um direito ldquonatildeo discriminatoacuteriordquo orientado para um

equiliacutebrio justo

1 A JURISPRUDEcircNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTICcedilA SOBRE A DIRECTIVA

199313CEE DE 5 DE ABRIL DE 1993

O acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila de 14 de marccedilo de 2013 (caso Aziz)

pronunciou-se sobre o conceito de claacuteusula abusiva do art 3ordm

ldquouma claacuteusula contratual que natildeo tenha sido objecto de negociaccedilatildeo

individual eacute considerada abusiva quando a despeito da exigecircncia de

pela conveniecircncia de fazer recair o risco sobre a parte que tem a possibilidade de se proteger

contra o risco atraveacutes de um contrato de seguro 223 Reinhard Zimmermann ldquoContract Law Reform The German Experiencerdquo in Stefan

Vogenauer Stephen Weatherill (coord) The Harmonisation of European Contract Law

Implications for European Private Law Business and Legal Practice Hart Publisnhing

Oxford Portland (Oregon) 2006 paacutegs 71-87 (84-85)

92

boa feacute der origem a um desequiliacutebrio significativo em detrimento do

consumidor entre os direitos e [as] obrigaccedilotildees das partes

decorrentes do contratordquo

O primeiro problema consistia em concretizar o requisito do

ldquodesequiliacutebrio significativordquo O Tribunal de Justiccedila interpretou-o como

significando uma diferenccedila entre as normas contratuais e as normas legais

(dispositivas ou supletivas) Existindo uma diferenccedila (significativa) entre a

situaccedilatildeo em que as normas contratuais e a situaccedilatildeo em que as normas legais

(dispositivas ou supletivas) colocariam o consumidor haacute um desequiliacutebrio

significativo entre os direitos e os deveres das partes decorrentes do

contrato224

O segundo problema consistia em concretizar o requisito da

desconformidade com a boa feacute (ldquoa despeito da exigecircncia de boa feacuterdquo) O

Tribunal de Justiccedila interpretou-o como significando uma diferenccedila

injustificada

O desequiliacutebrio significativo em detrimento do consumidor poderia

ser justificado ou injustificado poderia ser justificado desde que fosse

adequado necessaacuterio e proporcionado agrave prossecuccedilatildeo de um fim legiacutetimo do

profissional poderia ser injustificado desde que natildeo fosse adequado ou natildeo

fosse necessaacuterio ou natildeo fosse proporcionado O desequiliacutebrio justificado seria

conforme agrave exigecircncia da boa feacute o desequiliacutebrio injustificado natildeo mdash dar-se-

ia ldquoa despeito da exigecircncia de boa feacuterdquo Se claacuteusula contratual natildeo negociada

causasse um desequiliacutebrio injustificado e soacute se causasse um desequiliacutebrio

injustificado seria uma claacuteusula abusiva

O conceito de boa feacute garantiria o ldquoequiliacutebrio justordquo entre os interesses

legiacutetimos do profissional e os interesses legiacutetimos do consumidor mdash por um

lado protegeria o ldquointeresse legiacutetimordquo do profissional ldquonuma configuraccedilatildeo das

suas relaccedilotildees contratuais diferente da leirdquo225 mdash por outro lado protegeria o

224 Cf designadamente Stefan Grundmann ldquoThe General Clause or Standard in EC Contract

Law Directivas mdash A Survey on Some Important Legal Measures and Aspects in EC Lawrdquo in

Stefan Grundmann Denis Mazeaud (coord) General Clauses and Standards in European

Contract Law Kluwer Law International The Hague 2006 paacutegs 141-161 (145) ldquoThe most

important element in value judgements (abuse of rights) is where the party setting the

standard terms deviates considerably from default ruleshelliprdquo 225 Cf conclusotildees da advogada-geral Julianne Kokott no processo C-41511 (Aziz) mdash nordm 73

com a distinccedilatildeo entre o primeiro requisito (ldquodesequiliacutebrio significativo em detrimento do

consumidor entre os direitos e [as] obrigaccedilotildees das partes decorrentes do contratordquo) e o

segundo requisito (ldquoa despeito da exigecircncia de boa feacuterdquo) ldquogarante‐se o princiacutepio da liberdade

93

ldquointeresse legiacutetimordquo do consumidor em que a configuraccedilatildeo das contratuais natildeo

excedesse os limites da proporcionalidade

2 A JURISPRUDEcircNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTICcedilA SOBRE A DIRECTIVA

199944CE DE 25 DE MAIO DE 1999

O acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila de 16 de junho de 2011 (caso Weber

Putz) pronunciou-se sobre duas questotildees mdash sobre o conceito de ldquoreposiccedilatildeo

da conformidaderdquo atraveacutes da substituiccedilatildeo da coisa do art 3ordm nordm 2 e sobre o

conceito de desproporccedilatildeo do art 3ordm nordm 3 da Directiva 199944CE

O art 3ordm nordm 2 designa dois modos de ldquoreposiccedilatildeo da conformidaderdquo

com o contrato mdash a reparaccedilatildeo e a substituiccedilatildeo do bem ldquonatildeo conformerdquo

Caso o consumidor pudesse optar por qualquer um dos dois modos de

ldquoreposiccedilatildeo da conformidaderdquo e o fizesse o profissional poderaacute opor-se-lhe

alegando a desproporccedilatildeo relativa Caso o consumidor soacute pudesse optar por

um dos dois modos de ldquoreposiccedilatildeo da conformidaderdquo perguntava-se o

profissional poderaacute opor-se-lhe alegando a desproporccedilatildeo absoluta

O problema dependia da representaccedilatildeo da directiva como uma

directiva ldquodiscriminatoacuteriardquo orientada para a protecccedilatildeo dos interesses de uma

e soacute de uma das partes ou como uma directiva ldquonatildeo discriminatoacuteriardquo

orientada para o ldquoequiliacutebrio justordquo entre os interesses das duas partes

Entendendo-se que o fim da directiva eacute a protecccedilatildeo do consumidor a

resposta negativa seria (deveria ser) evidente O profissional natildeo poderia opor

a desproporccedilatildeo absoluta Ententendo-se que o fim da directiva eacute

simultaneamente a protecccedilatildeo do consumidor e do profissional a resposta

negativa natildeo seria evidente mdash ou pelo menos tatildeo evidente

O advogado-geral Jan Mazak dizia que o fim da directiva era

simultaneamente a protecccedilatildeo do consumidor e do profissional

ldquoComo qualquer outro sistema juriacutedico avanccedilado que regul[asse] os

direitos e obrigaccedilotildees do comprador e do vendedor decorrentes de um

cumprimento [defeituoso] o esquema de soluccedilotildees [hellip] da directiva

contratual e reconhece‐se que as partes possuem frequentemente um interesse legiacutetimo numa

configuraccedilatildeo das suas relaccedilotildees contratuais diferente da leirdquo

94

natildeo pode[ria] de modo algum favorecer nem o consumidor nem o

vendedorrdquo226 227

O Tribunal de Justiccedila ainda que natildeo subscrevesse completamente com

as conclusotildees do advogado-geral228 sufragou a tese do ldquoequiliacutebrio justordquo mdash

O fim da Directiva 199944CE consistiria (teria de consistir) em alcanccedilar um

ldquoequiliacutebrio justordquo atendendo designadamente a consideraccedilotildees de ordem

econoacutemica deduzidas pelo profissional (= deduzidas pelo vendedor)229

O raciociacutenio do Tribunal de Justiccedila conduz-nos agrave conclusatildeo de que as

directivas de protecccedilatildeo do consumidor satildeo simultaneamente directivas de

protecccedilatildeo do consumidor e directivas de protecccedilatildeo do profissional Entre os

direitos atribuiacutedos pelas directivas de protecccedilatildeo do consumidor estatildeo (podem

estar) direitos do profissional (p ex direitos do vendedor)

Face ao acoacuterdatildeo de 16 de Junho de 2011 poderaacute p ex perguntar-se

se o art 4ordm nordm 1 do Decreto-Lei nordm 672003 de 8 de Abril [alterado pelo

Decreto-Lei nordm 842008 de 21 de Maio] ao consagrar uma relaccedilatildeo de

alternatividade entre a reparaccedilatildeo da coisa a substituiccedilatildeo da coisa a reduccedilatildeo

do preccedilo e a resoluccedilatildeo do contrato ainda seraacute compatiacutevel com a directiva O

art 3ordm nordm 6 da Directiva 199944CE natildeo teraacute porventura pretendido dar ao

profissional (ao vendedor) o direito a uma segunda oportunidade (right to

cure)230

226 Conclusotildees do advogado-geral Jan Mazak nos processos C‑6509 (Gebr Weber) e C‑

8709 (Ingrid Putz) mdash paraacutegrafo nordm 30 227 Entre os corolaacuterios do ldquoequiliacutebrio justordquo estaria a protecccedilatildeo do profissional contra custos

desproporcionados ou excessivos O profissional poderia opor ao consumidor a desproporccedilatildeo

absoluta 228 Entre o advogado-geral e o tribunal havia tatildeo-soacute uma diferenccedila O advogado-geral alegava

que o ldquoequiliacutebrio justordquo exigia uma protecccedilatildeo do profissional contra os custos

desproporcionados ou excessivos O tribunal decidiu que natildeo mdash que o profissional natildeo

poderia opor ao consumidor a desproporccedilatildeo absoluta 229 Acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila de 16 de junho de 2011 nos processos C‑6509 (Gebr

Weber) e C‑8709 (Ingrid Putz) mdash paraacutegrafo nordm 75 230 A favor da tese de que o art 3ordm da Directiva 199944CE daacute ao profissional o direito a duas

oportunidades Peter Rott ldquoMinimum Harmonisation for the Completion of the Internal

Market The Example of Consumer Sales Lawrdquo in Common Market Law Review vol 40

(2003) paacutegs 1107-1135 e tendencialmente Stefan Grundmann ldquoRegulating Breach of

Contract mdash The Right to Reject Performance by the Party in Breachrdquo in European Review

of Contract Law vol 2 (2007) paacutegs 121-149 contra Andrea Nicolussi ldquoEtica del contratto

e lsquocontratti di durata per lrsquoesistenza della personarsquordquo in Luca Nogler Udo Reifner (coord)

Life Time Contracts Eleven International Publishing The Hague 2014 paacutegs 123-167 (135)

95

III O DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS COMO DIREITO

CIVIL rdquoMATERIALIZADOrdquo

O conceito de equiliacutebrio justo deve compreender-se relacionando-o

com a alteraccedilatildeo com a mudanccedila ou com a transiccedilatildeo de paradigmas mdash do

paradigma de um direito privado formal para um direito privado material231

O paradigma de um direito privado formal centrado em

ldquoabstractismosrdquo232 ou seja centrado em conceitos abstractos de pessoa de

dignidade e de liberdade e dirigido (soacute) para realizaccedilatildeo da liberdade

individual tende a ser insensiacutevel aos contextos sociais em que a liberdade e a

igualdade hatildeo-de realizar-se tende a afirmar os princiacutepios de uma liberdade

formal de uma igualdade formal e de uma justiccedila formal (justiccedila

procedimental)

ldquola garanzia in forma specifica che il consumatore puograve far valere in base alla disciplina

europea della vendita dei beni di consumo non puograve essere concepita come uno strumento per

vincolarlo al contratto impedendogli di tornare sul mercato ma la misura piugrave adeguata

affincheacute il venditore si faccia carico della specifico interesse del consumatore al benerdquo 231 Cf Franz Wieacker Histoacuteria do direito privado moderno (tiacutetulo original

Privatrechtsgeschichte der Neuzeit unter besonderer Beruumlcksichtigung der deutschen

Entwicklung) 2ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1995 paacutegs 679-722 Juumlrgen

Habermas Fatti e norme Contributi a una teoria discorsiva del diritto e della democrazia

(tiacutetulo original Faktizitaumlt und Geltung Beitraumlge zur Diskurstheorie des Rechts und des

demokratischen Rechtsstaats) Milan Guerini 1996 paacutegs 463-484 Claus-Wilhelm Canaris

ldquoWandlungen des Schuldvertragsrechts mdash Tendenzen zu seiner Materialisierungldquo in Archiv

fuumlr die civilistische Praxis vol 200 (2000) paacutegs 273-364 Gralf-Peter Calliess ldquoDie Zukunft

der Privatautonomie Zur neueren Entwicklung eines gemeineuropaumlischen Rechtsprinzipsrdquo

in Jahrbuch junger Zivilrechtswissenschaftler 2000 mdash Prinzipien des Privatrechts und

Rechtsvereinheitlichung Richard Boorberg Verlag Stuttgart Muumlnchen Hannover Berlin

Weimar Dresden 2001 paacutegs 85-110 Stefan Grundmann ldquoEuropean Contract Law(s) mdash Of

What Colourrdquo in European Review of Contract Law vol 1 (2005) paacutegs 184-210 Marietta

Auer Materialisierung Flexibilisierung Richterfreiheit Generalklauseln im Spiegel der

Antinomien des Privatrechtsdenken J C B Mohr (Paul Siebeck) Tuumlbingen 2005 Michael

Martinek ldquoVertragsrechtstheorie und Burgerliches Gesetzbuchrdquo (2005) in WWW

lthttparchivjurauni-saarlanddeprojekteBibliothektextphpid=375sdfootnote7symgt

Ralf Michaels ldquoRollen und Rollenverstandnisse im transnationalen Privatrechtrdquo (2011) in

WWW lt httppapersssrncomsol3paperscfmabstract_id=1938441gt paacutegs 29-31 Stefan

Grundmann ldquoThe Future of Contract Lawrdquo in European Review of Contract Law vol 6

(2011) paacutegs 490-527 (sobretudo pp 500-509) 232 Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica 2ordf ed

Coimbra Editora Coimbra 1955 paacuteg 367

96

O paradigma de um direito privado material centrado em conceitos

(mais) concretos de pessoa de dignidade e de liberdade e dirigido para a

realizaccedilatildeo simultacircnea da liberdade individual e da justiccedila social tende a ser

sensiacutevel aos contextos sociais em que a liberdade e a igualdade hatildeo-de realizar-

se tende a negar os princiacutepios de uma liberdade formal de uma igualdade

formal eou de uma justiccedila formal (procedimental) para os superar233

Habermas fala impressivamente de uma ldquomudanccedila na percepccedilatildeo dos

contextos sociais nos quais a autonomia [ou a liberdade] de cada um deve

encontrar igual realizaccedilatildeordquo234 de que decorre uma ldquoregulamentaccedilatildeo

intencional superior agraves duas partesrdquo235 destinada a compensar as disfunccedilotildees

do mercado favorecendo quem estaacute em posiccedilatildeo mais fraacutegil236

Entre a coordenaccedilatildeo do direito europeu dos contratos ao direito civil

mdashldquomaterializadordquo mdash ou ao direito social haacute tatildeo-soacute uma diferenccedila

O direito social orienta-se por criteacuterios de carecircncia de protecccedilatildeo ou de

necessidade de protecccedilatildeo relacionados com os sujeitos mdash com as pessoas

com as ldquoclassesrdquo ou com os ldquogruposrdquo de pessoas carecidas de protecccedilatildeo237 O

direito civil orienta-se por criteacuterios de carecircncia de protecccedilatildeo ou de

necessidade de protecccedilatildeo relacionados com as situaccedilotildees mdash com os ldquocontextos

sociaisrdquo ou com os ldquocontextos situacionaisrdquo da liberdade238

233 Criticando o termo ldquomaterializaccedilatildeordquo Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacuteg 764

ldquoLrsquoexpression est commode elle est mauvaise par les confusions auxquelles elle invite En

effet si de nouveaux sujets et objets deviennent juridiquement pertinents cela ne tient pas tant

aacute une reacutevolte des faits contre un droit trop formel qursquoagrave une transformation de la rationaliteacute

juridique qui permet leur juridicisationrdquo 234 Juumlrgen Habermas Fatti e norme cit paacuteg 474 235 G W F Hegel Princiacutepios de filosofia do direito Martins Fontes Satildeo Paulo 1997 paacutegs

204-205 236 Juumlrgen Habermas Fatti e norme cit paacuteg 478 237 Joumlrg Neuner fala de uma compensaccedilatildeo de desigualdades determinadas de forma geral e

abstracta (Privatrecht und Sozialstaat cit paacuteg 276 ldquoKompensation abstrakter-generell

Ungleichheitenrdquo) 238 Joumlrg Neuner fala de uma compensaccedilatildeo de deficits determinados de forma individual e

concreta e relacionados com o processo de decisatildeo (Privatrecht und Sozialstaat cit paacuteg 274

ldquoKompensation konkret-entscheidungsbezogener Defiziterdquo)

97

IV O CONTRIBUTO DOS PRINCIacutePIOS SOBRE OS CONTRATOS

DURADOUROS ESSENCIAIS Agrave EXISTAcircNCIA DA PESSOA PARA A

MATERIALIZACcedilAtildeO DO DIREITO CIVIL

Em texto recente Stefan Grundmann apresenta o direito dos contratos

do futuro como um direito com uma diferenciaccedilatildeo acrescida ou reforccedilada

dentro de um sistema de princiacutepios e de regras Os actuais criteacuterios de

diferenciaccedilatildeo (entre ldquoclassesrdquo ou ldquogruposrdquo de pessoas) deveriam ser

completados por novos criteacuterios mdash considerando designadamente os tipos de

contratos e os tipos de situaccedilotildees em que se encontram os sujeitos da relaccedilatildeo

contratual

Grundmann propotildee que a sistematizaccedilatildeo do direito dos contratos em

torno de duas distinccedilotildees Em primeiro lugar da distinccedilatildeo entre os contratos

negociados e os contratos natildeo negociados Em segundo lugar da distinccedilatildeo

entre os contratos de execuccedilatildeo instantacircnea (spot contracts) e os contratos de

execuccedilatildeo duradoura (long-term contracts)239 Os princiacutepios e as regras de

direito civil sobre o conteuacutedo sobre o cumprimento e sobre o natildeo

cumprimento dos contratos de execuccedilatildeo instantantacircnea dos spot contracts

natildeo poderiam aplicar-se aos contratos de execuccedilatildeo duradoura A presunccedilatildeo de

semelhanccedila (presumptio similitatis) entre os dois tipos de relaccedilotildees contratuais

seria pura e simplesmente uma presunccedilatildeo errada240

Os Princiacutepios relativos aos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa propotildeem-se integrar as duas distinccedilotildees desenhadas por

Stefan Grundmann com uma terceira distinccedilatildeo mdash entre os contratos

eticamente irrelevantes (eticamente neutros) e os contratos eticamente

relevantes por serem necessaacuterios para a auto-realizaccedilatildeo da pessoa humana241

O paradigma dos contratos de execuccedilatildeo instantatildenea eticamente

irrelevantes (eticamente neutros) concentrava-se no procedimento de

conformaccedilatildeo do conteuacutedo do contrato e nos resultados do procedimento de

conformaccedilatildeo do conteuacutedo do contrato O significado da justiccedila contratual

quando aplicada ao procedimento relacionava-se com uma ideia de liberdade

e quando aplicada aos resultados relacionava-se com uma ideia de

proporcionalidade mdash o resultado seria justo desde que entre a prestaccedilatildeo e a

239 Stefan Grundmann ldquoThe Future of Contract Lawrdquo cit paacutegs 515-518 240 Stefan Grundmann ldquoThe Future of Contract Lawrdquo cit paacutegs 523-524 241 Cf desenvolvidamente Luca Nogler Udo Reifner ldquoIntroduction The New Dimension of

Life Time in the Law of Contracts and Obligationsrdquo in Luca Nogler Udo Reifner (coord)

Life Time Contracts Eleven International Publishing The Hague 2014 paacutegs 1-71 e Helena

Klinger ldquoLebenszeitvertrage mdash Natur und Ethikrdquo in Luca Nogler Udo Reifner (coord)

Life Time Contracts Eleven International Publishing The Hague 2014 paacutegs 189-220

98

contraprestaccedilatildeo houvesse uma relaccedilatildeo de proporcionalidade O paradigma dos

contratos (de execuccedilatildeo duradoura) eticamente relevantes por serem contratos

essenciais para a auto-realizaccedilatildeo da pessoa humana esse chama a atenccedilatildeo

para pelo menos trecircs coisas

Em primeiro lugar para o tema do acesso ao contrato (para o acesso

atraveacutes do contrato aos bens e aos serviccedilos essenciais agrave auto-realizaccedilatildeo da

pessoa) Em segundo lugar para o tema da justiccedila na relaccedilatildeo entre os sujeitos

da relaccedilatildeo contratual Em terceiro lugar para o tema da justiccedila na relaccedilatildeo

entre todos os sujeitos de todas as relaccedilotildees econoacutemicas e sociais Estando em

causa contratos existenciais cada relaccedilatildeo contratual eacute (soacute) uma fracccedilatildeo da

totalidade de relaccedilotildees da vida econoacutemica e social242

O 1ordm princiacutepio afirma-o ao colocar entre os fins dos ldquocontratos

existenciaisrdquo a participaccedilatildeo na vida social O 14ordm e o 15ordm princiacutepios

confirmam-no ao consagrar garantias de um miacutenimo de participaccedilatildeo na vida

econoacutemica e de um miacutenimo de participaccedilatildeo na vida social

Os princiacutepios da liberdade geral de agir e da liberdade especiacutefica de

contratar natildeo satildeo adequados ou pelo menos natildeo satildeo suficientes O direito ao

delegar a competecircncia para decidir o acesso aos bens e aos serviccedilos

fundamentais na economia faria com que houvesse um perigo de

discriminaccedilatildeo ou um perigo de exclusatildeo ainda que natildeo houvesse nem

discriminaccedilatildeo nem exclusatildeo sempre poderia haver um perigo de que a

conformaccedilatildeo do contrato pusesse em perigo a auto-realizaccedilatildeo da pessoa a

sua participaccedilatildeo na vida econoacutemica ou a sua participaccedilatildeo na vida social

Como o 8ordm princiacutepio propotildee que o direito de acesso atraveacutes do contrato aos

bens e aos serviccedilos essenciais tenha a dignidade de um direito fundamental

dir-se-aacute o seguinte os princiacutepios da liberdade de agir e da liberdade de

contratar natildeo satildeo ou pelo menos podem natildeo ser suficientes para

proporcionar um resultado conforme aos direitos fundamentais

Entre as afirmaccedilotildees mais comuns estaacute a de que o personalismo eacutetico eacute

ou pelo menos deve ser o fundamento do direito civil243 se o termo

242 Cf Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacuteg 558 ldquoAlors que le contrat classique

srsquoanalyse comme la relation immeacutediate drsquoindividu agrave individu souverains et autonomes [hellip]

dans le contrat de droit social le tout a une existence propre et indeacutependante des parties mdash ce

nrsquoest plus lrsquoEacutetat mais la societeacute mdash et les parties ne peuvent jamais srsquoobliger directement sans

passer par la meacutediation du toutrdquo 243 Cf Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts 9ordf ed C H

Beck Muumlnchen 2004 paacuteg 21 ldquoHinter dem BGB seiner Grundbegriffen und seinen

grundlegenden Wertungen steht der ethische Personalismus als Menschenbild den seine

Verfasser ohne es ausdrucklich auszusprechen als selbstverstandlich vorausgesetzt habenrdquo

99

personalismo eacutetico tem algum significado soacute pode ser o seguinte O direito

civil deve contribuir para proporcionar a cada concreta pessoa o acesso aos

bens e aos serviccedilos essenciais deve contribuir para proporcionar a cada

concreta pessoa o acesso agraves relaccedilotildees essenciais para a sua auto-realizaccedilatildeo e

para a sua participaccedilatildeo na vida econoacutemica e na vida social 244 Se os contratos

eticamente irrelevantes podem ser soacute contratos de liberdade os contratos

eticamente relevantes essenciais para a auto-realizaccedilatildeo da pessoa soacute podem

ser contratos de solidariedade245 246

244 Cf Nuno Manuel Pinto Oliveira ldquoOs princiacutepios de um lsquopersonalismo eacuteticorsquo como projecto

de lsquomaterializaccedilatildeorsquo do direito privadordquo in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Joseacute

Lebre de Freitas Coimbra Editora Coimbra 2013 245 Expressatildeo de Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacutegs 446 ss mdash ainda que dentro de

um contexto diferente Ewald fala de um contrato social de solidariedade no texto fala-se de

um contrato individual de solidariedade 246 Cf 5ordm princiacutepio ldquoO facto de algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem bens ou serviccedilos

necessaacuterios agrave satisfaccedilatildeo das necessidades essenciais relacionadas com o consumo ou com a

habitaccedilatildeo ou de algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem uma quantia em dinheiro [no quadro

de uma relaccedilatildeo de creacutedito ou de uma relaccedilatildeo de trabalho] implica um dever de protecccedilatildeo da

pessoa do consumidor ou da pessoa do trabalhador como partes mais fracas da relaccedilatildeo

contratualrdquo mdash O texto da versatildeo italiana eacute particularmente impressivo por relacionar o o

dever de protecccedilatildeo com um dever de solidaridade ao referir a ldquodisponibilidade [do prestador

de bens ou serviccedilos] para se encarregar de modo solidaacuterio da protecccedilatildeo da parte mais fraca

considerando a sua integridade fiacutesica e moralrdquo

100

101

Seraacute a negociaccedilatildeo coletiva desejaacutevel no contexto dos

life time contracts

Antoacutenio Agostinho Guedes

SUMAacuteRIO 1 Introduccedilatildeo Enunciado da questatildeo 2 Para que serve o

Direito Valores normas e conflitos de interesse 3 Os ldquoprinciacutepiosrdquo ligados

aos Life Time Contracts 4 A negociaccedilatildeo coletiva e os seus perigos

1 Numa aproximaccedilatildeo ao conceito de Life Time Contracts Luca

Nogler e Udo Reifner apontam para uma ideia de contratos que desempenham

um papel fundamental no dia-a-dia e existecircncia das pessoas contratos que

criam relaccedilotildees sociais de longo prazo atraveacutes dos quais se adquirem bens e

serviccedilos oportunidades de trabalho e de rendimento importantes para a

autorrealizaccedilatildeo de cada pessoa e para a sua participaccedilatildeo plena na

comunidade247

Estariam em causa certos contratos aos quais os autores recusam

aplicar a velha loacutegica liberal do contrato de troca (em sentido amplo) de

mercadoria ou de serviccedilos por dinheiro tratado como uma pura transaccedilatildeo

comercial de execuccedilatildeo instantacircnea que se esgota e extingue no ato de

cumprimento

Referindo-se agraves iniciativas das instituiccedilotildees da Uniatildeo Europeia

especialmente agraves Diretivas sobre proteccedilatildeo dos consumidores creacutedito ao

consumo e relaccedilotildees laborais os autores e o restante grupo de trabalho numa

O presente estudo corresponde genericamente ao registo escrito da comunicaccedilatildeo

apresentada no acircmbito do coloacutequio denominado ldquoColoacutequio Internacional em Torno dos Life

Time Contractsrdquo promovido pelo centro de investigaccedilatildeo Direitos Humanos ndash Centro de

Investigaccedilatildeo Interdisciplinar cuja coordenaccedilatildeo cientiacutefica esteve a cargo do Doutor Nuno

Manuel Pinto de Oliveira e da Doutora Benedita Mac Crorie e que teve lugar na cidade de

Braga em maio de 2015 Professor da Faculdade de Direito da Universidade Catoacutelica Portuguesa (UCP) Escola do

Porto e investigador do Catoacutelica Research Centre for the Future of Law - Centro de Estudos

e Investigaccedilatildeo em Direito 247 Introduction The New Dimension of Life Time in the Law of Contracts and Obligations

in Life Time Contracts ndash Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer

Credit Law Eleven International Publishing (versatildeo e-book) paacuteg 41

102

declaraccedilatildeo conjunta248 criticam o facto de tais iniciativas reduzirem os Life

Time Contracts a contratos sinalagmaacuteticos relativos a prestaccedilotildees presentes

tomando como ponto de partida o modelo do contrato de compra e venda

Justamente com o objetivo de pocircr em relevo as diferenccedilas entre aqueles

contratos e os simples contratos comerciais de troca o grupo EuSoCo

(European Social Contract) elaborou um conjunto de princiacutepios (em sentido

amplo) que seriam privativos dos Life Time Contracts e enunciou-os na obra

coletiva que temos vindo a citar249

Nessa enunciaccedilatildeo e para aleacutem de muitos outros aspetos relevantes

destacaria a adoccedilatildeo de uma noccedilatildeo de Life Time Contracts segundo a qual estes

seratildeo contratos ldquoduradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa [hellip] relaccedilotildees

sociais que tecircm por objeto proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o

trabalho e os rendimentos necessaacuterios para a sua autorrealizaccedilatildeo e para a sua

participaccedilatildeo na vida socialrdquo250

Destaco tambeacutem o princiacutepio enunciado em seacutetimo lugar (Collective

and ethical dimensions) de acordo com o qual os ldquoconsumidores e os

trabalhadores tecircm o direito de exigir do Estado o reconhecimento de sistemas

coletivos de representaccedilatildeo (associaccedilotildees de consumidores ou associaccedilotildees

sindicais)rdquo ldquotecircm o direito de exigir do Estado o reconhecimento e o respeito

pelos sistemas de valores coletivos como aqueles que satildeo designados pelos

conceitos de boa feacute e de bons costumesrdquo estes ldquosistemas de valores coletivos

devem aplicar-se em todas as fases da relaccedilatildeo contratual desde o acesso aos

bens e serviccedilos agrave conformaccedilatildeo do contrato agrave sua adaptaccedilatildeomodificaccedilatildeo e agrave

sua extinccedilatildeordquo251

Este princiacutepio assim enunciado levanta algumas duacutevidas

Naturalmente natildeo sofre contestaccedilatildeo a ideia de que consumidores e

trabalhadores tecircm o direito de se organizar em associaccedilotildees ou outros

mecanismos de representaccedilatildeo coletiva e que o Estado deve reconhecer a tais

organizaccedilotildees legitimidade para essa representaccedilatildeo eacute aliaacutes o que decorre da

nossa Constituiccedilatildeo designadamente dos arts 60ordm 55ordm e 56ordm

A questatildeo que se me coloca neste acircmbito eacute a da saber ateacute onde se pode

admitir a intervenccedilatildeo de tais associaccedilotildees e mecanismos de representaccedilatildeo

248 Declaration in Life Time Contracts hellip cit paacuteg 32 249 Paacutegs 8 e ss 250 Extratos retirados da traduccedilatildeo preliminar para portuguecircs dos ldquoPrinciacutepios Gerais Sobre os

Contratos Duradouros Essenciais agrave Existecircncia da Pessoardquo preparada pelos coordenadores

cientiacuteficos do coloacutequio e distribuiacuteda aos participantes 251 Trad cit

103

coletiva nomeadamente se essa intervenccedilatildeo deve ser admitida desde logo na

proacutepria conformaccedilatildeo das normas reguladoras dos Life Time Contracts e desta

forma na proacutepria concretizaccedilatildeo atraveacutes da lei do que sejam os ldquovalores

coletivosrdquo que ldquodevem aplicar-se em todas as fases da relaccedilatildeo contratual

desde o acesso aos bens e serviccedilos agrave conformaccedilatildeo do contrato agrave sua

adaptaccedilatildeomodificaccedilatildeo e agrave sua extinccedilatildeordquo

Satildeo estas as questotildees sobre as quais me proponho refletir sendo certo

que as respostas encontradas seratildeo necessariamente determinadas pela minha

preacute-compreensatildeo do fenoacutemeno juriacutedico e especialmente do modo como o

legislador se acha vinculado aos valores juriacutedicos

2 De uma forma simples podemos dizer que o primeiro objetivo do

Direito eacute antes de mais resolver (e prevenir) conflitos de interesse segundo

um criteacuterio de justiccedila252

Na verdade enquanto ser autoacutenomo ldquoo homem procura realizar as

suas oportunidades conforme os seus interesses proacuteprios (e nem sempre o faz

por meios honestos ou processos leais) Mas esta satisfaccedilatildeo de interesses soacute

lhe eacute possiacutevel em sociedade quer dizer em intercacircmbio com outros homens

O homem eacute um ser social que apenas na convivecircncia com os outros (p ex na

famiacutelia na escola no trabalho nos tempos de lazer) pode evoluir e realizar-

se Eacute esta sua natureza ambivalente como indiviacuteduo autoacutenomo e ser social a

lsquosociabilidade natildeo-socialrsquo no dizer de Kant que explica as diversidades de

interesses as quais podem conduzir a tensotildees tensotildees essas que surgem tanto

entre os homens entre si como entre o homem e a sociedade a comunidade

em que se insere Estas tensotildees resultantes de interesses divergentes se por

um lado se revelam como estimulantes e dinamizadoras podem por outro lado

assumir a extensatildeo de conflitosrdquo253

Nas sociedades ocidentais este objetivo de resolver e prevenir

conflitos de interesse entre os membros da sociedade eacute normalmente

prosseguido pela criaccedilatildeo de normas gerais e abstratas por parte dos oacutergatildeos

252 Como bem refere ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO Teoria Geral do Direito Civil ndash

Relatoacuterio in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa vol XXIX (1988)

paacuteg 275 253 Heinrich Houmlrster A Parte Geral do Coacutedigo Civil Portuguecircs ndash Teoria Geral do Direito

Civil Almedina 1992 paacuteg 7

104

poliacuteticos da comunidade as quais satildeo depois aplicadas pelos tribunais na

resoluccedilatildeo dos singulares conflitos de interesse254

Naturalmente que a norma legal natildeo vale apenas por si ou pela

legitimidade poliacutetica do oacutergatildeo que a criou essa norma vale antes de mais

porque encerra uma pretensatildeo de justiccedila ou seja porque liga a uma certa

situaccedilatildeo tiacutepica de conflito de interesses (descrita na sua hipoacutetese legal) a

soluccedilatildeo que o legislador entende ser a soluccedilatildeo justa para esse tipo de conflito

Natildeo eacute este o momento nem o lugar para ensaiar uma definiccedilatildeo de

Justiccedila no sentido acabado de apontar aliaacutes as tentativas de definiccedilatildeo da

Justiccedila tecircm ocupado mais os filoacutesofos do que os juristas255 256

A preocupaccedilatildeo destes (dos juristas) tem-se situado mais ao niacutevel da

identificaccedilatildeo de quais os valores que podem ser deduzidos da ideia de Direito

(e portanto de uma ideia de Justiccedila) e que por essa razatildeo devem ser

considerados os valores juriacutedicos fundamentais

Com efeito a ensaiar uma tentativa de descriccedilatildeo daquilo que deve ser

o processo loacutegico de criaccedilatildeo de Direito ou seja um sistema de normas visando

a resoluccedilatildeo de conflitos de interesse segundo um criteacuterio de justiccedila diria que

o primeiro passo seria a escolha pela comunidade dos seus valores essenciais

Claro que historicamente natildeo se pode dizer que os vaacuterios

ordenamentos juriacutedicos de cada comunidade politicamente organizada tenham

resultado de forma imediata de escolhas conscientes de certos valores como

resultado de uma reflexatildeo conjunta de todos os seus membros Pelo contraacuterio

todos os dados histoacutericos disponiacuteveis apontam para que a origem dos primeiros

sistemas juriacutedicos tenha sido a tradiccedilatildeo os usos e o costume e natildeo tanto

processos conscientes e atos expliacutecitos de reconhecimento de certos valores257

254 Estamos a falar principalmente dos paiacuteses da Europa continental sendo certo poreacutem que

tambeacutem nos paiacuteses de cultura anglo-saxoacutenica se tem assistido a um crescimento do statute

law 255 Cfr a este propoacutesito o interessante estudo de Joatildeo Cardoso Rosas Concepccedilotildees da Justiccedila

Ediccedilotildees 70 2011 256 Com bem refere Karl Larenz no seu ensaio Richtiges Recht Grundzuumlge einer Rechtsethik

(trad espanhola de Luis Diacuteez-Picazo Civitas 1985 reimp 1993) ldquoDe acordo com uma larga

tradiccedilatildeo da filosofia ocidental a tarefa dos filoacutesofos consiste em buscar a lsquounidadersquo subjacente

agrave multiplicidade de normas e de decisotildees A tarefa do jurista diversamente consiste em

encontrar decisotildees justas de casos concretosrdquo (traduccedilatildeo nossa do castelhano) 257 Sobre as origens do Direito cfr John Gilissen Introduccedilatildeo Histoacuterica ao Direito (trad de

Antoacutenio Manuel Hespanha e Manuel Macaiacutesta Malheiros) 7ordf ed Ed Gulbenkian 2013

paacutegs 31 e ss

105

A verdade poreacutem eacute que modernamente se tem assistido a um esforccedilo

de identificaccedilatildeo e revelaccedilatildeo dos princiacutepios e valores fundamentais que

conferem sentido ao (e legitimam o) Direito legislado um esforccedilo levado a

cabo algumas vezes ateacute pelo proacuteprio legislador258

A tradiccedilatildeo humanista judaico-cristatilde das sociedades ocidentais levou

desde logo a que esse esforccedilo de identificaccedilatildeo se dirigisse aos valores

relacionados com a dignidade da Pessoa do qual o melhor exemplo eacute sem

duacutevida a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Esta consagra

princiacutepios como a igualdade liberdade proteccedilatildeo da vida e da seguranccedila

pessoal a imparcialidade dos tribunais a presunccedilatildeo de inocecircncia o princiacutepio

nulla poena sine lege a proteccedilatildeo da privacidade e da honra e alguns outros

todos acolhidos na nossa Constituiccedilatildeo

Mais recentemente Karl Larenz ensaiou um esforccedilo semelhante mas

agora dirigido aos valores fundamentais que podem ser deduzidos da ideia de

Direito259 Neste contexto Larenz identifica princiacutepios como o respeito muacutetuo

a autonomia privada e a auto-vinculaccedilatildeo atraveacutes dos contratos a equivalecircncia

de prestaccedilotildees nos contratos sinalagmaacuteticos o princiacutepio da confianccedila (no qual

inclui o princiacutepio da boa feacute) o princiacutepio da culpa na responsabilidade civil e

penal mas tambeacutem os princiacutepios da proporcionalidade da natildeo retroatividade

das leis ou os princiacutepios da imparcialidade dos tribunais e do contraditoacuterio

Para aleacutem dos valores ligados agrave dignidade da Pessoa e deduzidos da

ideia de Direito eacute evidente que cada comunidade protege tambeacutem certos

valores ligados agrave sua heranccedila cultural os quais satildeo igualmente refletidos no

direito positivo Eacute o que acontece entre noacutes com certos valores ligados agrave

solidariedade social como o princiacutepio da proteccedilatildeo dos mais fracos social ou

economicamente mais deacutebeis patente em muitas normas relativas ao Direito

do Trabalho ao Direito do Consumo ou ao arrendamento urbano por exemplo

Dada a importacircncia destes valores para cada sociedade eacute normal que

os mesmos sejam enunciados na Lei Fundamental como acontece entre noacutes

aliaacutes A Parte I (Direitos e Deveres Fundamentais) da nossa Constituiccedilatildeo

enuncia muitos dos valores e princiacutepios acima mencionados formalizando um

certo compromisso entre os membros da sociedade portuguesa sobre um

conjunto de valores presentes e futuros

Este consenso sobre os valores fundamentais da sociedade traduz

assim o primeiro passo na construccedilatildeo de um sistema de normas juriacutedicas e

tende a refletir as conceccedilotildees dominantes na sociedade em certo periacuteodo

258 V por exemplo o art 5ordm da Lei nordm 66-B2007 de 28 de dezembro que cria o Sistema

Integrado de Gestatildeo e Avaliaccedilatildeo de Desempenho na Administraccedilatildeo Puacuteblica 259 Richtiges Recht cit paacutegs 55 e ss e passim

106

histoacuterico sejam de natureza moral filosoacutefica poliacutetica social ou cultural O

Direito eacute assim um resultado da cultura eacute uma realidade ldquohistoricamente

instituiacutedardquo260

Sobre estes valores importa ainda dizer duas coisas

Por um lado estatildeo em causa valores extralegais porque estatildeo acima

da lei escrita Constituem na expressatildeo feliz de J Baptista Machado o

ldquoreferente fundamentalrdquo do direito positivo261 no sentido em que cada norma

(e portanto o ordenamento no seu conjunto) remete para (refere-se a) esses

valores ou seja traduz uma ideia ou conceccedilatildeo de justiccedila (a conceccedilatildeo de justiccedila

do legislador) a qual estaacute pressuposta na soluccedilatildeo fornecida pela norma de tal

modo que a perfeita interpretaccedilatildeo ou compreensatildeo da mesma soacute eacute possiacutevel

quando o esforccedilo do inteacuterprete eacute tambeacutem dirigido a conhecer essa conceccedilatildeo ou

ideia de justiccedila traduzida na norma Numa palavra a norma soacute tem sentido

quando se toma em conta o valor para que a mesma remete

Por outro lado estamos em presenccedila de valores juriacutedicos pois os

mesmos tecircm vigecircncia justamente atraveacutes das normas que os concretizam

Valores que natildeo estejam concretizados em normas juriacutedicas natildeo vigoram na

ordem juriacutedica Recorrendo mais uma vez ao texto de J Baptista Machado

ldquoeste quid tans-positivo [o valor] natildeo tem existecircncia a se (autoacutenoma) pois soacute

existe ou tem vigecircncia atraveacutes dos textos positivos e na interpretaccedilatildeo e

aplicaccedilatildeo delesrdquo262

Importa recordar com efeito que haacute muitos aspetos da vida social

subtraiacutedos ao Direito mas natildeo subtraiacutedos agraves regras morais e sociais estas

tambeacutem inspiradas em valores (morais e sociais) mas justamente porque os

conflitos gerados nesses domiacutenios da vida social natildeo satildeo juridicamente

relevantes e portanto natildeo satildeo dirimidos pelo recurso a normas juriacutedicas os

valores invocados ou postos em causa em tais conflitos natildeo podem ser

considerados valores juriacutedicos

260 A expressatildeo eacute de J Baptista Machado (Introduccedilatildeo ao Direito e ao Discurso Legitimador

Almedina 2002 13ordf reimp paacuteg 7 261 Introduccedilatildeo hellip cit paacutegs 206 e ss 262 Introduccedilatildeo hellip cit paacuteg 210 Em sentido semelhante Karl Larenz Richtiges Recht cit

paacuteg 34 Este aspeto coloca em relevo a ideia de que natildeo basta enunciar nos primeiros artigos

de um diploma legal a vinculaccedilatildeo desse conjunto de normas a certos valores ou princiacutepios em

rigor essa enunciaccedilatildeo pouco vale se natildeo estiver traduzida em regras de comportamento

porque eacute dessas regras que se deduzem os tais valores que as mesmas visam concretizar

Enunciar um conjunto de valores ou princiacutepios sem os concretizar em normas de pouco vale

107

Dado este primeiro passo eleiccedilatildeo dos valores fundamentais da

comunidade torna-se necessaacuterio um segundo passo agora em nome da

praticabilidade e exequibilidade

A verdade eacute que se torna muito difiacutecil em alguns casos praticamente

impossiacutevel resolver conflitos de interesse concretos apenas com referecircncia aos

valores ou princiacutepios gerais Estes ldquosatildeo os pensamentos diretores de uma

regulamentaccedilatildeo juriacutedica existente ou possiacutevel Em si mesmos natildeo satildeo ainda

regras suscetiacuteveis de aplicaccedilatildeo embora possam transformar-se em regras [hellip]

Os princiacutepios indicam apenas a direccedilatildeo [o sentido] da regra que se pretende

encontrar Podemos dizer que satildeo o primeiro passo para a obtenccedilatildeo da regra

que determina os passos posterioresrdquo263

Neste sentido e no que toca agrave funccedilatildeo de dirimir conflitos de interesse

os princiacutepios carecem de concretizaccedilatildeo a qual resulta numa norma e pressupotildee

uma nova valoraccedilatildeo264

Na verdade enquanto pensamento diretor um determinado princiacutepio

pode comportar (e frequentemente comporta) um conjunto de concretizaccedilotildees

todas elas ldquojustasrdquo porque conformes ao princiacutepio em causa ou seja conteacutem

uma ldquopluralidade de possibilidades de concretizaccedilatildeordquo265 Assim a criaccedilatildeo de

uma norma inspirada no princiacutepio (a concretizaccedilatildeo do princiacutepio) obriga agrave

escolha de uma dessas possibilidades

Podemos ateacute dizer com J Baptista Machado que as normas

ldquorepresentam [hellip] lsquointerpretaccedilotildeesrsquo do legislador da sua proacutepria conceccedilatildeo de

Direito ou da ideia de Justiccedila a que adererdquo266 isto eacute o legislador elege a

soluccedilatildeo que ele considera mais justa de entre as vaacuterias soluccedilotildees justas que o

valor permite pelo que a norma incorpora a concepccedilatildeo de justiccedila do

legislador

Esta escolha e o juiacutezo de valor que a mesma encerra eacute o momento

poliacutetico do ato legislativo e nela o legislador atua em nome do Povo como

resulta do art 108ordm da nossa Constituiccedilatildeo Tal como acontece na definiccedilatildeo dos

valores constitucionais nas democracias representativas a concretizaccedilatildeo (e

interpretaccedilatildeo) desses valores eacute levada a cabo pelos oacutergatildeos poliacuteticos

263 Karl Larenz Richtiges Recht cit paacutegs 32 e 33 (traduccedilatildeo nossa do castelhano) 264 Karl Larenz Richtiges Recht cit paacuteg 33 265 Karl Larenz Richtiges Recht cit paacuteg 31 266 Introduccedilatildeo hellip cit paacuteg 207

108

(nomeadamente a Assembleia da Repuacuteblica) os quais atuam em nome do

Povo exercendo uma competecircncia poliacutetica267

A escolha feita pelo legislador resulta da ponderaccedilatildeo de vaacuterios aspetos

Num primeiro momento o legislador deve ponderar desde logo o

significado do valor em si o seu conteuacutedo material mas ao mesmo tempo

deve ponderar outros valores igualmente importantes em sede da regulaccedilatildeo

daquela categoria de conflitos de interesse

Por exemplo perante a duacutevida de saber se o proponente deve ou natildeo

poder revogar ou modificar a sua proposta a mera consideraccedilatildeo do princiacutepio

da autonomia privada deveria levar a que se desse uma resposta positiva a tal

questatildeo (como resulta do art 230ordm nordm 2 do Coacutedigo Civil) uma vez que a

proposta soacute estaraacute em linha com os interesses do declarante se prevalecer a

manifestaccedilatildeo mais recente da sua vontade ao mesmo tempo poreacutem a

consideraccedilatildeo do princiacutepio da confianccedila deve levar a que essa revogaccedilatildeo ou

modificaccedilatildeo soacute seja admitida nos casos em que ainda natildeo existam expectativas

consolidadas por parte do destinataacuterio na versatildeo inicial da proposta (e daiacute a

soluccedilatildeo do art 230ordm nordm 1 do Coacutedigo Civil)

Ainda neste primeiro momento a ponderaccedilatildeo dos dois aspetos

mencionados eacute ldquocoloridardquo pelas concepccedilotildees filosoacuteficas poliacuteticas e sociais do

legislador podendo ainda intervir consideraccedilotildees de poliacutetica legislativa eou

ligadas ao momento histoacuterico (como aconteceu nas alteraccedilotildees produzidas no

regime do contrato-promessa em 1980 e 1986 por exemplo)

Ao mesmo tempo o legislador deve levar em conta a necessidade de

assegurar a coerecircncia do sistema (a unidade do sistema juriacutedico de que fala o

art 9ordm do Coacutedigo Civil) evitando contradiccedilotildees com outras normas

(contradiccedilotildees loacutegicas ou teleoloacutegicas) ou com outros valores (contradiccedilotildees

valorativas)

Arriscaria a dizer que a consideraccedilatildeo de todos estes aspetos pesa

essencialmente na busca daquela que na perspetiva do legislador eacute a soluccedilatildeo

justa para certo tipo de conflito de interesses Mas na criaccedilatildeo da norma devem

ainda intervir outros aspetos agora ligados a consideraccedilotildees de seguranccedila

juriacutedica e de justiccedila relativa

267 Eacute tambeacutem por esta razatildeo que a enunciaccedilatildeo de certos princiacutepios em diplomas legais (cfr

notas 14 e 18) aleacutem de inuacutetil pode tornar-se inconveniente se for entendida como um mandato

dado pelo legislador ao tribunal para concretizar esses princiacutepios para aleacutem do direito posto

este mandato natildeo poderaacute deixar de ser considerado uma violaccedilatildeo grosseira do princiacutepio da

separaccedilatildeo de poderes plasmado no art 111ordm da nossa Constituiccedilatildeo

109

Assim num segundo momento o legislador deve ponderar a

exequibilidade da soluccedilatildeo gizada de nada adianta uma norma que em si

mesma eacute um exemplo de justiccedila se depois a mesma se revela de aplicaccedilatildeo

impossiacutevel por razotildees praacuteticas

Por exemplo a soluccedilatildeo mais justa para resolver os conflitos de

interesse relacionados com a capacidade negocial seria talvez submeter todas

pessoas singulares a testes destinados a avaliar a sua maturidade perioacutedicos

ou melhor ainda previamente agrave praacutetica de qualquer ato negocial Ainda que

indiscutivelmente justa esta soluccedilatildeo eacute totalmente inexequiacutevel e qualquer

norma que a consagrasse se tornaria rapidamente letra morta ou pior

paralisaria o traacutefico juriacutedico

Tambeacutem neste segundo momento devem intervir consideraccedilotildees

ligadas agrave proporcionalidade considerando o objetivo prosseguido pelo

legislador (seja uma mera ordenaccedilatildeo da liberdade seja uma intenccedilatildeo

conformadora) bem como a necessidade de natildeo causar perturbaccedilatildeo nos

equiliacutebrios sociais por forma a na medida do possiacutevel preservar a

estabilidade do sistema juriacutedico e concomitantemente do sistema social

particularmente nos casos em que o legislador eacute animado por uma intenccedilatildeo

conformadora da sociedade

Relativamente ao primeiro aspeto pense-se por exemplo nos regimes

da nulidade e da anulabilidade O negoacutecio nulo natildeo produz efeitos nem a

nulidade pode ser sanada porque o que estaacute na base desta invalidade satildeo

razotildees relativas a interesses gerais da comunidade (ou estaacute em causa apenas a

aparecircncia de um negoacutecio) circunstacircncias que impotildeem uma reaccedilatildeo mais

vigorosa da lei Jaacute no caso da anulabilidade estaacute em causa a proteccedilatildeo de

interesses privados circunstacircncia refletida no respetivo regime juriacutedico Na

verdade natildeo soacute o negoacutecio anulaacutevel produz provisoriamente efeitos como estes

apenas poderatildeo ser destruiacutedos pelo tribunal a requerimento do titular do

interesse que a lei visava proteger com a anulabilidade ficando ainda

salvaguardado o direito daquele em confirmar o negoacutecio sanando a

invalidade268

Ou seja o regime juriacutedico de cada um destes tipos de invalidade reflete

uma reaccedilatildeo diferente da lei mais ou menos intrusiva da liberdade individual

segundo os valores que a mesma lei visa salvaguardar

Para o segundo aspeto (estabilidade e previsibilidade) cada vez menos

valorizado numa sociedade em que cada maioria no Parlamento (e cada

Governo que dela emana) pretende reconfigurar a sociedade e os seus

268 Para uma anaacutelise da proporcionalidade como um verdadeiro princiacutepio fundamental de

Direito cfr Antoacutenio Cortecircs Jurisprudecircncia dos Princiacutepios Lisboa 2010 paacutegs 270 e ss

110

equiliacutebrios segundo a sua ideologia poliacutetica ou as modas do momento basta

pensar na importacircncia fundamental da uniformidade de julgados que obriga

(deveria obrigar) a que o legislador no desenho de cada hipoacutetese legal eleja

com criteacuterio os dados juridicamente relevantes para a resoluccedilatildeo da questatildeo de

direito visada na norma desvalorizando outros que embora potencialmente

relevantes para uma soluccedilatildeo justa dos casos aiacute contemplados introduziriam

uma inseguranccedila indesejaacutevel na aplicaccedilatildeo da norma em causa269

Tudo visto fica entatildeo claro que as normas exercem uma funccedilatildeo de

mediaccedilatildeo entre os valores e os concretos conflitos de interesse mediaccedilatildeo essa

exercida em dois sentidos por um lado cada norma traduz uma certa ideia

(conceccedilatildeo) de justiccedila (do legislador) e eacute atraveacutes dela (do enunciado linguiacutestico

contido na norma) que se revela essa ideia de justiccedila por outro lado eacute tambeacutem

atraveacutes da norma que o valor juriacutedico concretizado na mesma adquire

positividade e portanto juridicidade270

Sob o ponto de vista da teacutecnica legislativa a norma descreve na sua

hipoacutetese uma certa categoria de conflito de interesses (ligando-se deste modo

aos concretos conflitos que a mesma norma haacute de resolver quando convocada

pelo tribunal para esse efeito) e na estatuiccedilatildeo associa a esse tipo de conflito

uma soluccedilatildeo que revela a conceccedilatildeo de justiccedila do legislador a qual resulta jaacute

de uma interpretaccedilatildeo que o mesmo levou a cabo dos valores do ordenamento

Eacute desta forma que cada concreto conflito de interesses eacute solucionado

segundo um criteacuterio de justiccedila

3 O primeiro aspeto a considerar no que aos Life Time Contracts diz

respeito eacute que subjacente agrave generalidade dos ldquoprinciacutepiosrdquo identificados pelo

grupo de trabalho parece existir uma ideia de proteccedilatildeo da parte contratual mais

deacutebil

Eacute certo que o relevo dado a esta categoria de contratos parece incidir

mais na dimensatildeo existencial de cada pessoa Luca Nogler e Udo Reifner

referem que Life Time Contracts ldquosatildeo acima de tudo aqueles que asseguram

um lugar para viver (contratos de arrendamento) bens e serviccedilos (contratos de

fornecimento) e rendimento (contratos de trabalho e contratos de

financiamento) o que eacute necessaacuterio para viverrdquo271

269 A velha tensatildeo entre justiccedila e seguranccedila cfr J Baptista Machado Introduccedilatildeohellip cit paacutegs

56 e ss 270 Cfr J Baptista Machado Introduccedilatildeo hellip cit paacutegs 207 e 292 271 Ob cit paacuteg 47

111

Poreacutem a ideia fundamental subentendida no conjunto dos princiacutepios

enunciados pelo grupo de trabalho eacute sem duacutevida a de que nesta categoria de

contratos existe uma parte mais deacutebil carecendo de uma proteccedilatildeo especiacutefica

dada a importacircncia que tais contratos assumem na existecircncia das pessoas em

geral

Tal ideia eacute enunciada de forma clara no quinto princiacutepio

(ldquoNecessidades Baacutesicasrdquo) quando se refere que o ldquofornecimento de bens e

serviccedilos essenciais para necessidades baacutesicas relacionadas com o consumo e

o emprego obriga a levar em conta consideraccedilotildees materiais sociais e

psicoloacutegicas tendo em vista a proteccedilatildeo da parte mais fraca do contrato Uma

regulamentaccedilatildeo rigorosa ou outras regras coletivas devem assegurar um grau

de proteccedilatildeo social adequado em linha com o objeto do contrato a sua duraccedilatildeo

e a sua importacircncia na vida das pessoas em causardquo272

Isso mesmo eacute reafirmado noutros ldquoprinciacutepiosrdquo quando se menciona as

ldquorelaccedilotildees de poderrdquo nos contratos ou se refere a necessidade de ldquoproteger a

confianccedila muacutetuardquo quando se aponta a ldquofinalidade social do contratordquo quando

se exige que os gastos associados a tais contratos sejam ldquoacessiacuteveis e em linha

com os custosrdquo ou que a extinccedilatildeo desses contratos seja ldquosocialmente

responsaacutevelrdquo mais claramente ainda quando relativamente aos contratos que

assegurem um rendimento regular se refere a necessidade de garantir um

ldquoniacutevel miacutenimo de rendimento [hellip] na forma de pagamentos continuados

suficientes para ir ao encontro das necessidades do consumidorrdquo e ainda que

ldquoos riscos sociais de desemprego falta de habitaccedilatildeo e sobre-endividamento

devem ser tidos em conta em todas as formas individuais e coletivas de

contrato considerando as origens sociais da pessoardquo

Podemos dizer que a proteccedilatildeo da parte mais deacutebil do contrato natildeo eacute

uma novidade no nosso ordenamento juriacutedico em vaacuterios ramos do Direito o

nosso legislador tem vindo a ensaiar formas variadas de proteccedilatildeo da parte mais

fraca do contrato ateacute no Direito Civil que continua a ser o ramo do Direito

Privado em que tradicionalmente existe uma maior neutralidade poliacutetica

relativamente a este aspeto

De que forma atua o legislador na interpretaccedilatildeo deste princiacutepio de

proteccedilatildeo da parte mais deacutebil

Na impossibilidade de determinar em cada caso concreto quem eacute a

parte mais fraca e qual a medida justa da proteccedilatildeo a dispensar-lhe o legislador

identifica situaccedilotildees tiacutepicas em que um dos contraentes tende a ter menos poder

negocial social ou econoacutemico seja em termos estatiacutesticos seja pela

interpretaccedilatildeo que o proacuteprio legislador faz da realidade social Eacute o que acontece

272 Ob cit paacutegs 12 e 13

112

com a viacutetima de negoacutecio usuraacuterio com o inquilino nas vaacuterias modalidades de

contrato de arrendamento com o trabalhador com o consumidor com o

pequeno empresaacuterio ou com o promitente-comprador de preacutedios urbanos para

citar os exemplos mais significativos

Num segundo momento o legislador cria normas imperativas que por

um lado visam defender o parte mais deacutebil contra a sua proacutepria fraqueza e

que por outro estabelecem soluccedilotildees visando alterar a partilha de risco que

existiria sem esta preocupaccedilatildeo Por partilha de risco pretendo designar o modo

como satildeo distribuiacutedas pelos contraentes as consequecircncias de certos eventos

natildeo causados pelas partes que afetam negativamente o normal cumprimento

do contrato causando designadamente maior dificuldade em cumprir maior

onerosidade da prestaccedilatildeo degradaccedilatildeo da situaccedilatildeo econoacutemica de uma das

partes (ou de ambas) ou ateacute impossibilidade de cumprimento

Um dos riscos mais importantes nesta categoria dos Life Time

Contracts eacute sem duacutevida o chamado risco normal da vida como sejam por

exemplo o risco de acidente incapacitante doenccedila desemprego perturbaccedilotildees

familiares (separaccedilotildees e divoacutercios com todo o seu cortejo de consequecircncias

negativas) acontecimentos que podem ter efeitos muitiacutessimo adversos para a

capacidade de a pessoa afetada honrar os seus compromissos contratuais

particularmente aqueles que se destinam a perdurar no tempo

Ora algumas das soluccedilotildees apontadas pelo EuSoCo foram jaacute acolhidas

no nosso Direito expressando as preocupaccedilotildees sociais do nosso legislador

civil Eacute o que se passa com a consagraccedilatildeo da possibilidade de extinguir ou

modificar contratos em consequecircncia de alteraccedilotildees do contexto que as partes

natildeo previram e que conduzem a um desequiliacutebrio das prestaccedilotildees (art 437ordm do

Coacutedigo Civil) ou no efeito natildeo retroativo da resoluccedilatildeo do contrato nos

contratos de execuccedilatildeo duradoura na proteccedilatildeo do inquilino no arrendamento

urbano ou ainda na proteccedilatildeo do trabalhador na relaccedilatildeo laboral (ambas algo

atenuadas com as recentes alteraccedilotildees legislativas nestas mateacuterias eacute certo) Eacute o

que acontece tambeacutem com a garantia de acesso a certos bens e serviccedilos

essenciais e com a proteccedilatildeo do consumidor tanto na fase da contrataccedilatildeo como

na fase do cumprimento do contrato com relevo para algumas das mais

recentes medidas adotadas para os contratos de creacutedito agrave habitaccedilatildeo na

sequecircncia da crise econoacutemica de 2008

Aquilo que eacute proposto nos ldquoprinciacutepiosrdquo dos Life Time Contracts eacute

portanto retirar da esfera de risco da parte mais fraca as consequecircncias de

certos eventos que resultam do risco normal da vida e deslocaacute-las para a esfera

de risco do outro contraente

113

4 Parece claro que a proteccedilatildeo da parte mais fraca e o modo como a

mesma eacute prosseguida encontra o seu fundamento na necessidade de defender

a dignidade da Pessoa tanto numa perspetiva formal como numa perspetiva

material Trata-se de proteger de uma forma efetiva o ciacuterculo de direitos

fundamentais e a liberdade de cada indiviacuteduo mas tambeacutem uma integraccedilatildeo

plena na sociedade nomeadamente assegurando na medida do possiacutevel que

cada um(a) tenha a oportunidade de realizar o seu projeto de vida pessoal e

profissional assegurando alguma estabilidade econoacutemica e o acesso a recursos

que permitam a satisfaccedilatildeo de certas necessidades baacutesicas273

Ora dir-se-ia que estas preocupaccedilotildees satildeo legiacutetimas e fazem todo o

sentido na perspetiva de considerar cada um(a) em toda a sua dimensatildeo de

Pessoa incluindo a dimensatildeo existencial Com efeito natildeo podemos perder de

vista que uma regulamentaccedilatildeo do fenoacutemeno contratual que tem como

horizonte apenas a ordenaccedilatildeo da liberdade individual e uma adequada

distribuiccedilatildeo entre as partes dos benefiacutecios e custos encarada numa perspetiva

puramente econoacutemica corre o risco de considerar apenas certas dimensotildees

parciais e portanto redutoras da Pessoa e do proacuteprio objetivo fundamental do

Direito no seu conjunto

Cada pessoa natildeo eacute apenas ldquoo vendedorrdquo ldquoo compradorrdquo ldquoo

empreiteirordquo ldquoo dono de obrardquo o ldquoproprietaacuteriordquo o ldquolocataacuteriordquo o

ldquoprofissionalrdquo ou o ldquoconsumidorrdquo cada pessoa assume pontualmente cada

um desses papeacuteis e muitas vezes vaacuterios desses papeacuteis ao mesmo tempo em

diversos contextos mas nunca podemos dizer que o conjunto desses papeacuteis

sociais define ou esgota cada pessoa

Cada um de noacutes eacute mais do que o conjunto das circunstacircncias que

definem o nosso lugar na sociedade seja a profissatildeo o estado civil a relaccedilatildeo

familiar a condiccedilatildeo de proprietaacuterio ou utilizador Numa perspetiva humanista

cristatilde em linha com a nossa heranccedila cultural uma comunidade de pessoas natildeo

pode ser a mera soma de um conjunto de individualidades ligadas por relaccedilotildees

de troca com colunas de ldquodeverdquo e ldquohaverrdquo assim uma adequada regulaccedilatildeo da

vida em sociedade baseada no respeito muacutetuo numa dimensatildeo global natildeo

pode perder de vista essa realidade

As preocupaccedilotildees expressas nas consideraccedilotildees que serviram de base aos

Life Time Contracts chamam a atenccedilatildeo para aspetos importantes da vida em

sociedade e atingem a proacutepria ideia de Direito enquanto conjunto de valores

e regras que tecircm em vista a ordenaccedilatildeo da vida em sociedade de acordo com

273 Logo no primeiro ldquoprinciacutepiordquo que conteacutem a definiccedilatildeo de Life Time Contracts refere-se a

importacircncia fundamental destes contratos para a autorrealizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e para a sua

participaccedilatildeo na comunidade

114

um criteacuterio de justiccedila e a realidade humana da vida em sociedade natildeo se esgota

em relaccedilotildees de troca

Isto dito importa tambeacutem ter presente os perigos que uma regulaccedilatildeo

demasiado intrusiva da liberdade individual pode gerar nos equiliacutebrios sociais

tendo em conta que as economias das sociedades ocidentais natildeo assentam em

modelos dirigistas mas sim em modelos assentes na liberdade de escolha em

linha aliaacutes com os respetivos modelos de organizaccedilatildeo poliacutetica e social

A questatildeo eacute que ao gizar as normas adequadas a prosseguir um objetivo

de proteccedilatildeo da parte contratual mais deacutebil eacute necessaacuterio identificar o valor

juriacutedico que o fundamenta e encontrar a interpretaccedilatildeo mais razoaacutevel (justa)

desse valor sem perder de vista outros valores igualmente importantes na

prossecuccedilatildeo das finalidades fundamentais do Direito Como jaacute disse antes eacute

necessaacuterio ponderar a coerecircncia do sistema bem como as condiccedilotildees de

exequibilidade oportunidade e proporcionalidade da soluccedilatildeo visada

Eacute tambeacutem muito importante ter a consciecircncia de que a proteccedilatildeo do

contraente mais fraco seraacute prosseguida agrave custa da deslocaccedilatildeo de certos riscos

a maior parte das vezes ligados ao risco normal da vida da esfera daquele a

quem o evento respeita para a esfera de outra pessoa que natildeo o pode gerir ou

controlar e tambeacutem por isso natildeo o quer suportar ou seja a proteccedilatildeo de uma

parte eacute conseguida agrave custa da outra parte (no sentido amplo do termo)

Deste modo independentemente da concepccedilatildeo de justiccedila subjacente agrave

soluccedilatildeo encontrada torna-se ainda necessaacuterio avaliar os efeitos perversos que

a mesma pode ter no sistema social e econoacutemico274 Isto porque num modelo

econoacutemico assente na liberdade individual as pessoas podem definir o limite

dos riscos que estatildeo dispostos a suportar para atingir os seus objetivos

nomeadamente no exerciacutecio de uma atividade profissional ou comercial

Neste sentido uma intervenccedilatildeo legislativa tendo em vista uma

alteraccedilatildeo fundamental do equiliacutebrio das partes em determinados contratos de

bens ou serviccedilos poderaacute ter como consequecircncia um agravamento da

contrapartida exigida por quem fornece esse bem ou serviccedilo na melhor das

hipoacuteteses (para refletir o maior risco em que a parte incorre com a celebraccedilatildeo

do contrato) ou ateacute a necessidade de ser o Estado a assumir certa atividade (e

a inerente socializaccedilatildeo do risco) em virtude de nenhum particular estar

disposto a fazecirc-lo tendo em conta os riscos econoacutemicos envolvidos

Por outro lado no que especialmente diz respeito ao seacutetimo ldquoprinciacutepiordquo

(Dimensatildeo Coletiva e Eacutetica) parece-me natildeo estar em causa um verdadeiro

274 Importa lembrar por exemplo que o congelamento das rendas praticamente levou agrave

extinccedilatildeo do mercado de arrendamento

115

princiacutepio mas sim uma regra com algumas matizes de natureza procedimental

ainda que com oacutebvias repercussotildees a niacutevel material275

Num primeiro passo afirma-se o direito que os ldquoconsumidores e os

trabalhadoresrdquo tecircm de ldquoexigir do Estado o reconhecimento de sistemas

coletivos de representaccedilatildeo (associaccedilotildees de consumidores ou associaccedilotildees

sindicais)rdquo Para aleacutem de um afloramento do princiacutepio da liberdade de

associaccedilatildeo esta menccedilatildeo a um ldquodireito de exigir do Estadordquo remete claramente

para uma norma e natildeo propriamente para um princiacutepio

Depois refere-se que os mesmos consumidores e trabalhadores ldquotecircm o

direito de exigir do Estado o reconhecimento e o respeito pelos sistemas de

valores coletivos como aqueles que satildeo designados pelos conceitos de boa feacute

e de bons costumesrdquo Mais uma vez estaacute em causa o ldquoexigir do Estadordquo um

determinado comportamento que aparentemente deveraacute ser traduzido em

medidas de caraacuteter legislativo destinadas a assegurar que estes sistemas de

valores coletivos se apliquem ldquoem todas as fases da relaccedilatildeo contratual desde

o acesso aos bens e serviccedilos agrave conformaccedilatildeo do contrato agrave sua

adaptaccedilatildeomodificaccedilatildeo e agrave sua extinccedilatildeordquo

Salvo melhor opiniatildeo assim enunciado o ldquoprinciacutepiordquo diria que natildeo

estamos em presenccedila de um verdadeiro pensamento diretor de uma

regulamentaccedilatildeo juriacutedica mas face a algo que resulta da combinaccedilatildeo de uma

verdadeira regra de natureza essencialmente adjetiva (negociaccedilatildeo coletiva

prevalece sobre a negociaccedilatildeo individual) com o recurso a conceitos

indeterminados (boa feacute e bons costumes)

Note-se que este ldquoprinciacutepiordquo natildeo se confunde com o princiacutepio da boa

feacute pelo contraacuterio ele remete para o princiacutepio da boa feacute o qual recorde-se

estaacute consagrado no nosso Direito relativamente agrave fase da contrataccedilatildeo e

cumprimento do contrato (arts 227ordm e 762ordm do Coacutedigo Civil) e eacute ainda

relevante em sede de licitude material do conteuacutedo do contrato no acircmbito das

regulamentaccedilatildeo das claacuteusulas contratuais gerais276

Jaacute o conceito de ldquobons costumesrdquo remete para certos valores morais e

deontoloacutegicos e natildeo propriamente para determinado valor juriacutedico277

A verdade eacute que mais do que verdadeiros princiacutepios de Direito os

ldquoprinciacutepiosrdquo enunciados a propoacutesito dos Life Time Contracts remetem para

275 Uma distinccedilatildeo entre ldquoprinciacutepiordquo enquanto paracircmetro normativo e ldquoregrardquo (e as

dificuldades que a mesma envolve) eacute ensaiada por Antoacutenio Cortecircs ob cit paacutegs 127 e ss 276 Cfr o art 15ordm do Decreto-Lei nordm 44685 de 25 de outubro 277 Cfr por todos L Carvalho Fernandes Teoria Geral do Direito Civil vol II 4ordf ed

Lisboa 2007 paacuteg 199

116

um conjunto de ideias que no seu conjunto ajudam a definir o que possam ser

estes contratos descrevendo as suas carateriacutesticas ou apontam certas regras

(mais normas do que verdadeiros princiacutepios) mais ou menos concretas de

natureza substantiva ou procedimental

Talvez natildeo seja descabido dizer que o princiacutepio fundamental

subjacente aos Life Time Contracts eacute o da proteccedilatildeo da dignidade da Pessoa tal

como ficou dito antes e que o conjunto das 16 regras denominadas

ldquoprinciacutepiosrdquo satildeo jaacute concretizaccedilotildees desse princiacutepio fundamental A ser assim

devemos ter presente que tais concretizaccedilotildees podem natildeo ser politicamente

neutras e mais do isso poderatildeo aqui e ali estar marcadas por uma visatildeo

ideologicamente comprometida estando por isso abertas a discussatildeo

Esta perspetiva natildeo prejudica naturalmente o caraacuteter consensual de

algumas das regras em causa como sejam por exemplo certas normas

relativas agrave extinccedilatildeo dos contratos (deacutecimo primeiro ldquoprinciacutepiordquo mesmo tendo

em conta a necessidade de determinar o que significa entre outras coisas uma

conduta socialmente responsaacutevel) agrave comunicaccedilatildeo e informaccedilatildeo entre as partes

(deacutecimo segundo e deacutecimo terceiro ldquoprinciacutepiosrdquo) e agrave proteccedilatildeo dos dados

pessoais (deacutecimo sexto ldquoprinciacutepiordquo)

Eacute agrave luz destas consideraccedilotildees que o seacutetimo ldquoprinciacutepiordquo deve ser

apreciado

Por princiacutepio natildeo tenho preconceitos (ideoloacutegicos ou outros) contra a

negociaccedilatildeo coletiva quando a mesma eacute levada a cabo dentro de uma quadro

normativo claro e coerente ou seja dentro dos limites da lei criada pelos

oacutergatildeos poliacuteticos da comunidade a quem esta conferiu legitimidade para tal

Recentemente a DECO tem protagonizado a negociaccedilatildeo de condiccedilotildees mais

favoraacuteveis para os consumidores de contratos de fornecimento de bens e

serviccedilos essenciais (e natildeo soacute) tirando justamente partido do facto de atuar por

conta de grupos significativos de consumidores Digamos que desta forma se

consegue equilibrar o peso negocial de cada uma das partes envolvidas na

negociaccedilatildeo e isso eacute beneacutefico para todos os envolvidos e para a sociedade em

geral sob qualquer perspetiva

Poreacutem se a ideia que estaacute na base dessa negociaccedilatildeo coletiva eacute ganhar

peso negocial junto dos poderes puacuteblicos para ldquopermearrdquo a lei aos resultados

da negociaccedilatildeo coletiva entatildeo terei de manifestar a minha total discordacircncia agrave

luz de tudo o ficou dito acima sobre o que significa legislar

Para o poder puacuteblico seraacute sempre confortaacutevel ter grupos sociais

organizados a ldquonegociarrdquo as leis que hatildeo de regular a atividade de tais grupos

(ou parte dela) na medida em que natildeo teraacute de fazer escolhas que o exponham

agrave criacutetica puacuteblica (a coragem natildeo costuma ser um dos atributos dos titulares de

117

cargos puacuteblicos) e sempre se poderaacute desresponsabilizar dos resultados dessa

negociaccedilatildeo

A questatildeo eacute que uma lei raramente diz respeito apenas ao grupo A ou

B Por definiccedilatildeo uma lei diz respeito a toda a comunidade e quem representa

a comunidade satildeo os oacutergatildeos poliacuteticos que a mesma escolheu de acordo com os

mecanismos constitucionais

Por muito que isso possa custar a alguns setores da nossa sociedade os

sindicatos as associaccedilotildees de consumidores as associaccedilotildees de empresaacuterios ou

as organizaccedilotildees profissionais natildeo tecircm legitimidade democraacutetica para legislar

ningueacutem lhes conferiu atraveacutes de sufraacutegio universal e direto legitimidade

para em nome do Povo (de todo o Povo) traduzir em forma de lei uma

determinada ideia de justiccedila enquanto interpretaccedilatildeo de um princiacutepio juriacutedico

fundamental

Estas instituiccedilotildees (a que alguns chamam ldquoorganizaccedilotildees de classerdquo)

estatildeo essencialmente (diria ateacute unicamente) preocupadas com a defesa dos

interesses dos seus associados tal como normalmente resulta dos seus

estatutos e em refletir na lei a proteccedilatildeo desses interesses Por definiccedilatildeo a

procura de leis justas para todos natildeo estaacute no horizonte das suas preocupaccedilotildees

nem se espera que estejam em rigor

Em resultado desta postura de defesa dos interesses de classe perde-se

de vista o essencial Perde-se de vista a justiccedila bem como a ligaccedilatildeo aos valores

juriacutedicos fundamentais perde-se a coerecircncia do sistema (justamente pela

ausecircncia de ligaccedilatildeo aos princiacutepios) e passamos a ter leis que representam o

resultado de uma relaccedilatildeo de forccedila sociopoliacutetica

Quando as leis traduzem apenas uma relaccedilatildeo de forccedila transformam-se

na ldquolei do mais forterdquo e isso natildeo eacute Direito

Os ldquoprinciacutepiosrdquo informadores dos Life Time Contracts devem entatildeo ser

vistos como propostas de regulamentaccedilatildeo inspiradas na proteccedilatildeo da

dignidade da Pessoa que tecircm o meacuterito de trazer para o debate juscientiacutefico

uma questatildeo de indiscutiacutevel importacircncia econoacutemica e social

118

119

A alteraccedilatildeo das circunstacircncias e os life time contracts

Henrique Sousa Antunes

1 ENQUADRAMENTO DO TEMA

Eacute sabido que a natureza dos contratos condiciona a aplicaccedilatildeo dos

princiacutepios e regras contratuais Satildeo diversas as espeacutecies normativas que

disciplinam a relaccedilatildeo entre as partes em razatildeo da natureza unilateral ou

bilateral do contrato do seu caraacutecter instantacircneo ou duradouro da unicidade

ou do fraccionamento das prestaccedilotildees do alcance comutativo ou aleatoacuterio do

negoacutecio da sua dimensatildeo gratuita ou onerosa Tambeacutem na alteraccedilatildeo das

circunstacircncias a caracterizaccedilatildeo eacute relevante para a aplicaccedilatildeo do respectivo

regime

A lei portuguesa prevecirc nos artigos 437ordm a 439ordm do Coacutedigo Civil a

possibilidade da modificaccedilatildeo ou resoluccedilatildeo do contrato por alteraccedilatildeo das

circunstacircncias excepcionando o princiacutepio pacta sunt servanda O regime

parece vocacionado para os contratos duradouros mas abrange tambeacutem os

contratos instantacircneos Neste caso poreacutem a sua aplicaccedilatildeo afigura-se

condicionada pela subsistecircncia de prestaccedilotildees em falta278 O instituto alcanccedila

fundamentalmente os contratos comutativos mas agrave revisatildeo do conteuacutedo do

contrato natildeo se julga imune o contrato aleatoacuterio se a boa feacute assim o impuser279

Eacute neste contexto de acomodaccedilatildeo do regime da resoluccedilatildeo ou

modificaccedilatildeo do contrato por alteraccedilatildeo das circunstacircncias agraves caracteriacutesticas do

contrato afectado que se julga interessante retomar o tema que em texto

recente abordaacutemos entatildeo para apreciar criticamente o direito portuguecircs agrave luz

do direito europeu dos contratos280

O sentido geral da nossa anaacutelise concede agrave boa feacute a margem de

liberdade que a centralidade do recurso a este criteacuterio permite libertando o

julgador da limitaccedilatildeo que a invocaccedilatildeo do requisito da base do negoacutecio

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Catoacutelica Portuguesa 278 Ver por todos Maacuterio Juacutelio de Almeida Costa Direito das Obrigaccedilotildees 12ordf ediccedilatildeo

Coimbra 2009 paacutegs 342 e seguinte 279 Ver por todos Maacuterio Juacutelio de Almeida Costa Direito das Obrigaccedilotildees cit paacutegs 343 e

seguintes 280 A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos contratos in laquoCadernos de Direito

Privadoraquo nordm 47 julhosetembro de 2014 paacutegs 3 e seguintes

120

pressupotildee Agravequele eacute permitida a avaliaccedilatildeo de todas as circunstacircncias mesmo

extracontratuais que em razatildeo da alteraccedilatildeo verificada tornam inexigiacutevel a

prestaccedilatildeo Satildeo circunstacircncias em que as partes fundaram a decisatildeo de contratar

as circunstacircncias existentes ao tempo da vinculaccedilatildeo negocial

independentemente de integrarem a base do negoacutecio Cabe avaliar se no

momento do cumprimento da obrigaccedilatildeo a boa feacute escuda o devedor contra esse

dever Concluiacutemos entatildeo laquoA prevalecircncia da actuaccedilatildeo conjugada da doutrina

da claacuteusula rebus sic stantibus com criteacuterios de gravidade ou razoabilidade

permitiria evitar os equiacutevocos que no direito portuguecircs a associaccedilatildeo do

regime do art 437ordm do CC ao conceito de base negocial previsto no art 252ordm

nordm 2 desse diploma trouxe Lembra-se que segundo a jurisprudecircncia

portuguesa natildeo soacute a situaccedilatildeo econoacutemica ou pessoal do comprador ao tempo

do cumprimento ou em geral os motivos determinantes da vontade parecem

excluiacutedos do regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias como se diversamente

fosse na delimitaccedilatildeo do acircmbito de aplicaccedilatildeo do art 437ordm do CC eacute utilizada

exigecircncia idecircntica agrave do regime do erro sobre os motivos o acordo expresso

das partes sobre a essencialidade do motivo Esta orientaccedilatildeo deixa sem tutela

a alteraccedilatildeo de razotildees extracontratuais de natureza material ou pessoal que

pela sua gravidade merecem essa protecccedilatildeoraquo281

2 O CONCEITO DE LIFE TIME CONTRACTS

A temaacutetica deste coloacutequio na oacuterbita dos life time contracts permite

testar a bondade das nossas conclusotildees a respeito da delimitaccedilatildeo das

circunstacircncias atendiacuteveis por referecircncia agrave restriccedilatildeo que o conceito de base

negocial implica mas tambeacutem acerca do requisito negativo do alcance dos

riscos proacuteprios do contrato

O reconhecimento da existecircncia de contratos que pela natureza das

prestaccedilotildees envolvidas e pela sua duraccedilatildeo se revelam conaturais agrave existecircncia

da pessoa humana serve de fundamento agrave conceptualizaccedilatildeo dos life time

contracts e agrave anaacutelise da sua repercussatildeo em diferentes domiacutenios juriacutedicos

Trata-se de contratos que acompanham a expressatildeo da experiecircncia humana nas

suas vaacuterias dimensotildees e que em razatildeo da sua extensatildeo temporal imprimem

uma marca existencialista que soacute o tempo de uma vida permite Satildeo contratos

que garantem o substrato da vida do indiviacuteduo como o trabalho o

arrendamento os empreacutestimos de longa duraccedilatildeo Na definiccedilatildeo proposta pelo

grupo de trabalho liderado por Luca Nogler e Ugo Reifner (EuSoCo) laquolife

281 Henrique Sousa Antunes A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos contratos

cit paacutegs 20 e seguinte

121

time contracts are long-term social relationships providing goods services

and opportunities for work and income creation They are essential for the

self-realisation of individuals and their participation in society at various

stages in their liferaquo282 Eacute feliz a traduccedilatildeo de Nuno Manuel Pinto Oliveira em

texto que acompanhamos noutros momentos da nossa exposiccedilatildeo283 laquoOs

contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa satildeo relaccedilotildees sociais que

tecircm por objecto proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e

os rendimentos necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo

na vida socialraquo

No nosso entendimento esta categoria contratual justificaria uma outra

conceptualizaccedilatildeo subsidiaacuteria fundada nos reflexos vitaliacutecios de contratos

instantacircneos A comercializaccedilatildeo de bens pessoais como a imagem ou a voz

ou os negoacutecios que tenham por objecto a aquisiccedilatildeo de bens duradouros satildeo

contratos que em medida relevante devem beneficiar da tutela que a

construccedilatildeo de princiacutepios fundamentais procura assegurar aos life time

contracts Estamos perante life time effects contracts

3 O ALCANCE DO PRINCIacutePIO PACTA SUNT SERVANDA

Na regulamentaccedilatildeo geneacuterica dos contratos predomina a perspectiva

relacional da liberdade de conformaccedilatildeo do conteuacutedo e assim da estabilidade

dos direitos e deveres acordados Uma vez nascida a relaccedilatildeo obrigacional o

seu cumprimento soacute muito residualmente pode ser afectado em razatildeo do

princiacutepio pacta sunt servanda Entende-se em geral que a vontade das partes

cria um espaccedilo de reserva que o salvaguarda das vicissitudes que a

socializaccedilatildeo justifica

No direito europeu a utilizaccedilatildeo da compra e venda como paradigma

da harmonizaccedilatildeo das regras contratuais acentua pelo seu caraacutecter instantacircneo

a desconsideraccedilatildeo dos interesses econoacutemicos e sociais que o reflexo

existencial de um contrato explica relevando neste contexto a situaccedilatildeo dos

trabalhadores arrendataacuterios e consumidores enquanto partes de contratos

duradouros

Em tais hipoacuteteses a tutela do creacutedito natildeo pode desconhecer os fins

existenciais que acompanham a prestaccedilatildeo Natildeo se trata de introduzir qualquer

282 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer

Credit Lawraquo (Luca NoglerUdo Reifner ndash eds) The Hague 2014 paacuteg xvii 283 Princiacutepios gerais sobre os contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa

(traduccedilatildeo preliminar para portuguecircs ndash 1 de maio de 2015 documento distribuiacutedo aos

participantes no Coloacutequio)

122

dirigismo contratual de alcance colectivizante mas tatildeo-somente de

reconhecer que se agrave dimensatildeo econoacutemica do contrato acresce um outro

interesse principal relativo agrave dignidade da pessoa humana e assim de

impacto social o direito deve responder de forma ajustada apesar do princiacutepio

pacta sunt servanda

4 A ALTERACcedilAtildeO DAS CIRCUNSTAcircNCIAS NO DIREITO PORTUGUEcircS

A questatildeo eacute em especial significativa acerca da interpretaccedilatildeo dos

requisitos da resoluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo do contrato por alteraccedilatildeo das

circunstacircncias no direito portuguecircs Desde logo e como noutra altura

salientaacutemos eacute preciso romper com a limitaccedilatildeo tradicional agrave base do negoacutecio

As razotildees extracontratuais satildeo frequentemente desconsideradas impedindo

a apreciaccedilatildeo dos factos agrave luz da boa feacute Na verdade se a variaccedilatildeo ocorre em

factos alheios aos pressupostos em que assentou a vontade de ambas as partes

o instituto vecirc a sua aplicaccedilatildeo prejudicada mesmo que a boa feacute aconselhasse a

revisatildeo

Eacute emblemaacutetico do sentido emprestado ao regime juriacutedico portuguecircs o

Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de 23 de janeiro de 2014 (Processo

1117109TVLSBP1S1 Relator Granja da Fonseca) a respeito do pedido

subsidiaacuterio de resoluccedilatildeo de um contrato-promessa de compra e venda de duas

fracccedilotildees imobiliaacuterias por alteraccedilatildeo das circunstacircncias pessoais e econoacutemicas

dos promitentes-compradores laquoDiferentemente do erro em que a base do

negoacutecio eacute unilateral respeitando exclusivamente ao errante na alteraccedilatildeo das

circunstacircncias a mesma eacute bilateral respeitando simultaneamente aos dois

contraentes (ie que se produza uma alteraccedilatildeo anormal das circunstacircncias em

que ambas as partes fundaram a decisatildeo de contratar) (hellip) De onde decorre

tout court que a alteraccedilatildeo das circunstacircncias pessoais dos contraentes eacute

insusceptiacutevel de preencher o instituto Designadamente a invocada

ldquodiminuiccedilatildeo significativa do poder de compra dos autores e a situaccedilatildeo de

desemprego em que se encontra a autora desde outubro de 2009rdquo Afloramento

aliaacutes da proibiccedilatildeo da sua invocaccedilatildeo como fundamento para exigir qualquer

reduccedilatildeo desconto ou abatimento da diacutevida ou dilaccedilatildeo da data do seu

vencimento como decorre do beneficium competentiae ou ne egeant do direito

romanoraquo Eacute ainda salientado que sem prejuiacutezo da aplicaccedilatildeo do entendimento

tradicional da teoria da base do negoacutecio excluindo pois a relevacircncia dos

factos considerados a exigecircncia de imprevisibilidade vedaria o pedido de

resoluccedilatildeo do contrato com os fundamentos invocados laquo(hellip) o nosso Supremo

Tribunal tem vindo a entender que nas situaccedilotildees de crise a alteraccedilatildeo relevante

carece ainda de ser anormal requisito ligado agrave imprevisibilidade pois que

sendo a alteraccedilatildeo normal as partes podiam tecirc-la previsto e acautelado na

123

conclusatildeo do contrato as suas consequecircncias (hellip) Ora as alteraccedilotildees da taxa

de juro e de esforccedilo o desemprego e a desvalorizaccedilatildeo da moeda mais a mais

desacompanhada da invocaccedilatildeo das concretas circunstacircncias de vida dos

autores agrave data da outorga dos contratos-promessas natildeo satildeo fundamentos

ligados agrave ideia de imprevisibilidaderaquo284

Eacute outra a liccedilatildeo do direito europeu que adoptando a perspectiva da

teoria da claacuteusula rebus sic stantibus permite submeter agrave anaacutelise de um criteacuterio

de razoabilidade circunstacircncias que embora alheias agrave definiccedilatildeo do objecto

contratual tecircm implicaccedilotildees numa dimensatildeo existencial da parte laquo(A

irrelevacircncia do conceito de base negocial) eacute o caminho dos instrumentos

internacionais mencionados A determinaccedilatildeo da alteraccedilatildeo das circunstacircncias

por referecircncia ao momento do cumprimento possibilita a consideraccedilatildeo de

factos que se tornaram essenciais depois da celebraccedilatildeo do contrato

designadamente no contexto da chamada ldquogrande base negocialrdquo ou razotildees

diversas da desproporccedilatildeo econoacutemica e assim alargar o acircmbito dos negoacutecios

abrangidos Estabelece-se um paralelismo com as razotildees da impossibilidade

de cumprimento permitindo entatildeo julgar que embora o requisito da

afectaccedilatildeo do objecto da prestaccedilatildeo distinga os regimes da impossibilidade e da

alteraccedilatildeo das circunstacircncias os factos que os motivam divergem da base

negocialraquo285

5 A ALTERACcedilAtildeO DAS CIRCUNSTAcircNCIAS NO DIREITO PORTUGUEcircS Agrave

LUZ DAS REFLEXOtildeES SOBRE LIFE TIME CONTRACTS AS

CIRCUNSTAcircNCIAS ATENDIacuteVEIS

A abordagem seguida no estudo sobre life time contracts a respeito das

circunstacircncias atendiacuteveis parece-nos equiacutevoca e porventura estranhamente

errada ao arrepio das opccedilotildees tomadas nos Princiacutepios Unidroit relativos aos

Contratos Comerciais Internacionais nos Principles of European Contract

Law (PECL) e no Draft Common Frame of Reference que neste contexto se

afiguram bem mais generosos286 As diferentes versotildees linguiacutesticas do estudo

que motiva esta reflexatildeo embora em sentidos natildeo necessariamente

convergentes acomodam a teoria da base do negoacutecio em eventual prejuiacutezo do

beneficiaacuterio da prestaccedilatildeo existencial Por outro lado no que excede a base do

284 Pode ser consultado nas bases de dados juriacutedico-documentais do Instituto de Gestatildeo

Financeira e Equipamentos da Justiccedila IP 285 Henrique Sousa Antunes A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos contratos

cit paacutegs 11 e seguinte 286 Ver Henrique Sousa Antunes A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos

contratos cit paacutegs 3 e seguintes

124

negoacutecio a proposta eacute injustificadamente limitada a circunstacircncias materiais

ou econoacutemicas

Cita-se a versatildeo inglesa laquo10 Adaptation If the social and economic

circumstances upon which a life time contract is based have changed

significantly since the contract was entered into or if material circumstances

from which the parties derived have arisen that are found to be at variance

with its original situation to such an extent that the social nature of the

contract is jeopardised and if the parties would not have entered into the

contract or would have entered into it on different terms had they foreseen this

change adaptation of the contract may be required if taking into account all

the circumstances of the specific case and in particular the contractual or

statutory allocation of risk and the fundamental obligation of a human being

one of the parties cannot reasonably be expected to continue to comply with

the contract without variation of its terms Collective regulation shall take

precedence over individual adaptationraquo287

Na traduccedilatildeo de Nuno Manuel Pinto Oliveira (laquo10 Adaptaccedilatildeo ou

modificaccedilatildeo do contratoraquo) laquo101 Se as circunstacircncias soacutecio-econoacutemicas

pressupostas pelas partes como fundamento da conclusatildeo do contrato natildeo se

verificarem havendo uma grave divergecircncia entre a realidade e a

representaccedilatildeo de que as partes partiram o conteuacutedo dos contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa deve ser adaptado ou modificado 102 A

divergecircncia pode referir-se agraves circunstacircncias presentes ou agraves circunstacircncias

futuras (error in futurum) e deve ser tatildeo grave que se as partes tivessem uma

representaccedilatildeo exacta da realidade natildeo teriam concluiacutedo nenhum contrato ou

teriam concluiacutedo um contrato de tipo ou de conteuacutedo diferente 103 Ao

apreciar-se a gravidade da divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo

deve atender-se ao fim do contrato agrave distribuiccedilatildeo legal ou contratual do risco

e ao significado social da relaccedilatildeo 104 O conteuacutedo do contrato soacute deve ser

adaptado ou modificado desde que a subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual sem

qualquer alteraccedilatildeo ou modificaccedilatildeo seja inexigiacutevel 105 Ao avaliar-se a

exigibilidade ou inexigibilidade da subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual deve

atender-se designadamente aos deveres fundamentais de uma pessoa

humana 106 O consumidor ou o trabalhador devem estar em condiccedilotildees de

cumprir os seus deveres fundamentais como por exemplo o dever de

assistecircncia aos seus familiares assegurando-lhes alimento vestuaacuterio e

habitaccedilatildeo 107 As regulamentaccedilotildees colectivas alcanccediladas atraveacutes dos

sistemas de representaccedilatildeo dos interesses dos consumidores e dos

287 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer

Credit Lawraquo cit paacuteg xix

125

trabalhadores devem ter prioridade sobre os resultados de uma adaptaccedilatildeo ou

de uma modificaccedilatildeo individualraquo

O juiacutezo que agora se faz eacute ainda mais discordante se considerarmos

que na anaacutelise das especificidades dos life time contracts o grupo de trabalho

(EuSoCo) olhou para as relaccedilotildees obrigacionais no seu plano primaacuterio de

desenvolvimento ou seja entre as partes Eacute paradigmaacutetico o princiacutepio relativo

ao reflexo da dimensatildeo humana dessas relaccedilotildees no exerciacutecio dos direitos e

deveres correspondentes laquo2 Human Dimension The subject matter of life time

contracts is real-life circumstances The role of the law governing them is to

frame the power relationships of those contracts in terms of human

development so that on-going co-operation rather than the formation of the

contract lies at the heart of the contratual relationship Personal relations

(such as the family) have to be taken into accountraquo288 Na traduccedilatildeo de Nuno

Manuel Pinto Oliveira (laquo2 Dimensatildeo humanaraquo) laquo21 O ponto central do

regime dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa deve ser o

indiviacuteduo na sua concreta realidade material e moral 22 O direito deve

preocupar-se em disciplinar a conclusatildeo do contrato e as relaccedilotildees de

cooperaccedilatildeo entre as partes conformando-as para proteger e para promover o

desenvolvimento da pessoa humana 23 Em especial o direito deve

preocupar-se em garantir que o desenvolvimento da pessoa humana natildeo seja

nem comprometido nem sequer deformado por relaccedilotildees de poder 24 Ao

fazecirc-lo deve ter em conta que o desenvolvimento de cada indiviacuteduo pressupotildee

relaccedilotildees pessoais particularmente significativas entre as quais estatildeo as

relaccedilotildees familiaresraquo

Se a existecircncia da pessoa eacute afectada na dimensatildeo primaacuteria referida

pouco interessa saber se a alteraccedilatildeo das circunstacircncias integra a base negocial

Eis o sentido que se procura tambeacutem emprestar ao direito portuguecircs Eacute

verdade que a abordagem do Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila antes

citado tomava por referecircncia a prestaccedilatildeo de trabalho remunerado nas

implicaccedilotildees que as suas vicissitudes tecircm noutras vinculaccedilotildees da pessoa

divergindo pois da perspectiva do estudo coordenado por Nogler e Reifner

A questatildeo analisa-se poreacutem do mesmo modo nos dois planos considerados

Desrespeita a dignidade humana pretender que os demais negoacutecios em

que o indiviacuteduo eacute parte satildeo imunes agrave alteraccedilatildeo das circunstacircncias existentes ao

tempo em que as partes celebraram life time contracts ao abrigo da

relatividade dos contratos (artigo 406ordm nordm 2 do Coacutedigo Civil) Fundando as

razotildees que justificam proteger a relaccedilatildeo duradoura nos benefiacutecios que essa

relaccedilatildeo traz agrave existecircncia da pessoa eacute a relaccedilatildeo de causalidade que determina o

288 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer

Credit Lawraquo cit paacuteg xvii

126

contaacutegio das vicissitudes aos proveitos que aquela relaccedilatildeo duradoura permitia

Lembra-se que na definiccedilatildeo de life time contracts a dimensatildeo reflexa dos

efeitos permitidos pelo contrato eacute nuclear laquoThey are essential for the self-

realisation of individuals and their participation in society at various stages

in their liferaquo289 Na traduccedilatildeo de Nuno Manuel Pinto Oliveira recorda-se laquoOs

contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa (hellip) tecircm por objecto

proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos

necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialraquo

O regime dos artigos 437ordm a 439ordm do Coacutedigo Civil constitui lei que

excepciona a relatividade dos contratos pois a nosso ver a necessidade de

valoraccedilatildeo da manutenccedilatildeo do contrato sob o prisma da boa feacute exclui o conceito

de base negocial Eacute esta avaliaccedilatildeo que condiciona a decisatildeo sobre a

estabilidade da relaccedilatildeo obrigacional Como tambeacutem na jurisprudecircncia

portuguesa se salienta laquo(hellip) o direito das obrigaccedilotildees eacute um direito de

cooperaccedilatildeo social o negoacutecio juriacutedico visa realizar determinada cooperaccedilatildeo

entre os indiviacuteduos nele interferentes Daqui resulta que o negoacutecio deixaraacute de

produzir os seus efeitos tiacutepicos se factos supervenientes tornarem impossiacutevel

o miacutenimo de cooperaccedilatildeo nele visado Na determinaccedilatildeo e concretizaccedilatildeo desse

miacutenimo estaacute o princiacutepio da boa feacute Eacute ele que orienta todo o artigo 437ordm

envolvendo uma certa atipicidade A base do negoacutecio na altura da publicaccedilatildeo

do nosso Coacutedigo Civil era jaacute na Alemanha uma foacutermula vazia (hellip)raquo (Acoacuterdatildeo

do Supremo Tribunal de Justiccedila de 11 de marccedilo de 1999 Processo 15899

Relator Torres Paulo)290

Haacute uma eficaacutecia irradiante das vicissitudes dos contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa humana nas condiccedilotildees em que essa existecircncia

se desenvolve ou se expressa Assim justifica-se que num plano secundaacuterio

de desenvolvimento das relaccedilotildees obrigacionais apreciadas se situe a afectaccedilatildeo

de outros contratos se a boa feacute ou outro criteacuterio equivalente o legitimar As

vicissitudes nos life time contracts reforccedilam pois a adopccedilatildeo do criteacuterio da

claacuteusula rebus sic stantibus na aplicaccedilatildeo do artigo 437ordm do Coacutedigo Civil

Entre os princiacutepios desenhados para os life time contracts encontra-se

a fundaccedilatildeo desta tese Escreve-se sobre contratos relacionados laquo4 Linked

contracts Life time contracts are embedded in a network of linked contracts

to which the law must have regard when legal questions fall to be decidedraquo291

Na traduccedilatildeo de Nuno Manuel Pinto Oliveira (laquo4 Contratos coligadosraquo) laquoOs

289 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer

Credit Lawraquo cit paacuteg xvii 290 Pode ser consultado nas bases de dados da Colectacircnea de Jurisprudecircncia 291 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer

Credit Lawraquo cit paacuteg xvii

127

contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa integram-se em redes

de contratos ligados entre si O legislador e o juiz devem apreciar e resolver

os problemas por si suscitados considerando sistematicamente a ligaccedilatildeo entre

todos os contratos integrados na rederaquo

Eacute claro que na relaccedilatildeo entre outros contratos e os contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa podemos encontrar niacuteveis diversos de

dependecircncia No contrato de concessatildeo de creacutedito os contratos associados ao

objecto ou agrave actividade financiados estatildeo na oacuterbita contratual daquele Diverso

eacute o grau de dependecircncia entre os contratos que o salaacuterio de uma actividade

laboral remunera e a relaccedilatildeo de trabalho do devedor Neste caso a ausecircncia de

determinaccedilatildeo da finalidade da prestaccedilatildeo cumprida pela entidade empregadora

torna a ligaccedilatildeo entre o contrato de trabalho e as actividades juriacutedico-

econoacutemicas que o trabalhador desenvolve numa relaccedilatildeo indirecta Resta saber

se a teleologia em que se desenvolve a doutrina dos life time contracts tem a

amplitude suficiente para abranger os dois tipos de dependecircncia assinalados

A resposta parece-nos afirmativa

Em resumo as vicissitudes dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa reflectem-se nos contratos com aqueles relacionados

directa ou indirectamente como alteraccedilotildees relevantes nos termos do artigo

437ordm do Coacutedigo Civil A diferenciaccedilatildeo entre os planos primaacuterio e secundaacuterio

daqueles contratos natildeo eacute contudo despreziacutevel como veremos de seguida

6 A ALTERACcedilAtildeO DAS CIRCUNSTAcircNCIAS NO DIREITO PORTUGUEcircS Agrave

LUZ DAS REFLEXOtildeES SOBRE LIFE TIME CONTRACTS O RISCO

Deve reconhecer-se que uma malha menos apertada se justifica para a

relevacircncia da alteraccedilatildeo das circunstacircncias no contexto dos proacuteprios contratos

duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa Referimo-nos em especial ao

requisito negativo de a alteraccedilatildeo natildeo estar coberta pelos riscos proacuteprios do

contracto Julgamos assim questionaacutevel a opccedilatildeo tomada na definiccedilatildeo dos

princiacutepios aplicaacuteveis aos life time contracts Lembra-se a passagem relevante

do princiacutepio 10 sobre adaptation laquo(hellip) taking into account all the

circumstances of the specific case and in particular the contractual or

statutory allocation of risk and the fundamental obligation of a human being

()raquo Na traduccedilatildeo citada de Nuno Manuel Pinto Oliveira (laquo10 Adaptaccedilatildeo ou

modificaccedilatildeo do contratoraquo) laquo103 Ao apreciar-se a gravidade da divergecircncia

entre a realidade e a representaccedilatildeo deve atender-se ao fim do contrato agrave

distribuiccedilatildeo legal ou contratual do risco e ao significado social da relaccedilatildeoraquo

Exemplifiquemos a cessaccedilatildeo do contrato de trabalho eacute uma

circunstacircncia atendiacutevel na ponderaccedilatildeo da estabilidade dos negoacutecios celebrados

pelo indiviacuteduo com terceiros o agravamento dos encargos com um

128

empreacutestimo destinado a financiar a compra de uma casa eacute ponderaacutevel a

respeito da manutenccedilatildeo do respectivo contrato-promessa de aquisiccedilatildeo Em

qualquer dos casos as questotildees parecem enquadraacuteveis na aplicaccedilatildeo do artigo

437ordm do Coacutedigo Civil implicando a ponderaccedilatildeo do risco assumido pelo

interessado

Diversamente num contrato de creacutedito agrave habitaccedilatildeo adquirida a casa e

cessada portanto a relaccedilatildeo juriacutedica estabelecida com o vendedor a

legitimidade do exerciacutecio do direito de creacutedito pela instituiccedilatildeo financeira eacute

indissociaacutevel da dimensatildeo existencial do bem que o financiamento facultou e

a instituiccedilatildeo conhece Assim o incumprimento das prestaccedilotildees pelo aumento

das taxas de juro deve ser apreciado na perspectiva das consequecircncias que os

meios facultados ao credor para a tutela do seu direito tecircm na vida do devedor

A tal juiacutezo deve permanecer alheia a imputaccedilatildeo do risco legal ou contratual

ao arrepio do que a aplicaccedilatildeo do artigo 437ordm do Coacutedigo Civil determinaria

Eacute considerando este uacuteltimo enquadramento que se lecirc entre os

princiacutepios aplicaacuteveis aos life time contracts laquo15 Exclusion The social risks

of unemployment homelessness and over-indebtedness must be taken into

account in both the individual and the collective forms of the contract with due

regard to its social origin and in line with public lawraquo Na traduccedilatildeo de Nuno

Manuel Pinto Oliveira (laquo15 Miacutenimo de participaccedilatildeo na vida socialraquo) laquo151

O consumidor ou o trabalhador natildeo pode ser privado de um miacutenimo de

participaccedilatildeo na vida social 152 No momento da conformaccedilatildeo individual e

colectiva como no momento da interpretaccedilatildeo dos contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa deve considerar-se adequadamente os riscos

de exclusatildeo social da pessoa do consumidor ou do trabalhador 153 No

momento da conformaccedilatildeo como no momento da interpretaccedilatildeo do contrato

deve considerar-se designadamente os riscos de falta de emprego de falta de

habitaccedilatildeo ou de sobreendividamento relacionando-os com as suas causas

soacutecio-econoacutemicas 154 Os princiacutepios e as regras de direito privado por que

se pretende prevenir o perigo de exclusatildeo social devem ser completados pelos

princiacutepios e pelas regras de direito puacuteblicoraquo A ideia tem reflexo em medidas

avulsas do legislador inclusivamente o portuguecircs Referem-se

designadamente os regimes estabelecidos nas Leis nordms 572012 582012 e

592012 de 9 de novembro reforccedilando a protecccedilatildeo dos mutuaacuterios de contratos

de creacutedito agrave habitaccedilatildeo e no Decreto-Lei nordm 582013 de 8 de Maio afastando

o regime geral da mora no cumprimento das obrigaccedilotildees em diacutevidas do

beneficiaacuterio de uma operaccedilatildeo de creacutedito

A resposta deve ser no entanto mais abrangente Encontra-se na

doutrina que sobre os life time contracts se pronuncia o reconhecimento da

insuficiecircncia do regime da resoluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo do contrato por alteraccedilatildeo

das circunstacircncias na determinaccedilatildeo de um remeacutedio satisfatoacuterio para os

129

problemas que as vicissitudes naquele acircmbito colocam laquo(hellip) it could be

argued that when a debtor becomes unemployed or suffers an increase in the

interest rates applicable to the finance agreement or is affected by a global

economic crisis such as the current one the ldquostatus quordquo of the contract has

been breached The contract should therefore no longer be binding upon the

parties by application of the ldquorebus sic stantibusrdquo clause and the prejudiced

party would be entitled to amendment or termination of the contractual

relationship The ldquorebus sic stantibusrdquo clause therefore would allow the ex

post or retrospective amendment of the terms and conditions initially agreed

upon in the contract in order to rebalance the consideration resulting from it

However the lack of statutory recognition in the majority of legal systems ()

and a doctrinal foundation based on equity principles coupled with a

restrictive jurisprudential interpretation puts into question its operative

effectivenessraquo292

Em nossa opiniatildeo falta uma norma sobre a inexigibilidade da

prestaccedilatildeo entre os princiacutepios identificados no estudo editado por Luca Nogler

e Udo Reifner Na verdade na sua ausecircncia a alteraccedilatildeo das circunstacircncias fica

aprisionada pela assunccedilatildeo dos riscos proacuteprios do contrato

Exemplifique-se com o direito portuguecircs (artigo 437ordm do Coacutedigo

Civil) verifica-se uma precedecircncia loacutegica do criteacuterio do risco relativamente

ao criteacuterio da boa feacute A parte que assumiu o risco da alteraccedilatildeo das

circunstacircncias estaacute impedida de invocar a boa feacute em seu benefiacutecio Haacute uma

incompatibilidade natural entre a imputaccedilatildeo ao declarante da lesatildeo e o

reconhecimento de que a manutenccedilatildeo do contrato ofende gravemente o

princiacutepio da boa feacute Alguma doutrina admite ainda assim que

episodicamente a boa feacute prevaleccedila sobre a assunccedilatildeo do risco em razatildeo da

especial gravidade da alteraccedilatildeo para o lesado Neste sentido leia-se Almeida

Costa laquoNatildeo se exclui no entanto a possibilidade da ocorrecircncia de situaccedilotildees

excepcionais que apontem para a orientaccedilatildeo oposta visto que tambeacutem deve

ter-se presente o apelo que eacute feito aos princiacutepios da boa feacute Tudo residiraacute em

demonstrar riscos que excedam essa aacutelea normal definida supletivamente no

artigo 796ordm De qualquer modo apenas se coloca o problema a respeito da

292 Juana Pulgar A Contractual Approach to Over-Indebtedness Rebus Sic Stantibus Instead

of Bankruptcy in laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and

Consumer Credit Lawraquo cit paacuteg 534 Ver ainda Geraint Howells Change of Circumstances

in Consumer Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call for the

Maintenance of Sector Specific Rules in laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts

in Labour Tenancy and Consumer Credit Lawraquo cit paacutegs 460 e seguintes

130

revisatildeo e nunca da resoluccedilatildeo do contrato ou seja com vista a uma reparticcedilatildeo

equitativa dos danos pelas partesraquo293

A introduccedilatildeo de uma regra de inexigibilidade da prestaccedilatildeo permitiria

tratar a alteraccedilatildeo das circunstacircncias em contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa com a dulcificaccedilatildeo que a natureza desses contratos

justifica Retoma-se aqui a proposta de Nuno Manuel Pinto Oliveira que

merece o nosso aplauso Escreve laquoO Coacutedigo Civil poderia e porventura

deveria conter um artigo (p ex um art 790ordm-A) em que se dissesse o

seguinte ldquoSe a prestaccedilatildeo eacute excessivamente difiacutecil em tais condiccedilotildees que seria

gravemente contraacuterio agrave boa feacute reclamar o cumprimento pode o devedor

exonerar-se da obrigaccedilatildeo ou obter a modificaccedilatildeo destardquo O adveacuterbio

gravemente circunscreveria a aplicaccedilatildeo da regra aos casos em que a actuaccedilatildeo

do direito de creacutedito excedesse de forma evidente (hellip) os limites da boa feacute

deixando a descoberto o enlace entre os casos de dificuldade excessiva e de

abuso do direitoraquo294

Uma claacuteusula de inexigibilidade subtrairia a alteraccedilatildeo das

circunstacircncias ao procedimento de avaliaccedilatildeo do risco submetendo de

imediato a apreciaccedilatildeo da referida alteraccedilatildeo ao criteacuterio da boa feacute Esse parece-

nos ser o sentido que a legislaccedilatildeo portuguesa deveraacute seguir acomodando a

soluccedilatildeo que na actualidade tatildeo-soacute o recurso a argumentos de salvaguarda

permitem

A intervenccedilatildeo da lei que impute o risco ao lesado em contrato essencial

agrave existecircncia da pessoa pode estar ferida de inconstitucionalidade em razatildeo da

tutela da dignidade humana das condiccedilotildees de que a realizaccedilatildeo humana

concreta depende laquoA Constituiccedilatildeo confere uma unidade de sentido de valor

e de concordacircncia praacutetica ao sistema de direitos fundamentais E ela repousa

na dignidade humana O princiacutepio da dignidade da pessoa humana eacute pois a

referecircncia axial de todo o sistema de direitos fundamentais Pelo menos de

modo directo e evidente os direitos liberdades e garantias pessoais e os

direitos econoacutemicos sociais e culturais comuns tecircm a sua fonte eacutetica na

dignidade da pessoa de todas as pessoas Mas quase todos os outros direitos

ainda quando projectados em instituiccedilotildees remontam tambeacutem agrave ideia de

protecccedilatildeo e desenvolvimento das pessoas e a copiosa extensatildeo do elenco dos

direitos fundamentais das garantias institucionais e das tarefas do Estado natildeo

deve fazer perder de vista esse referencialraquo295 Tratando-se de uma claacuteusula de

293 Direito das Obrigaccedilotildees cit paacuteg 347 294 Princiacutepios de Direito dos Contratos Coimbra 2011 paacuteg 571 295 Jorge MirandaAntoacutenio Cortecircs Anotaccedilatildeo ao artigo 1ordm da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica

Portuguesa in laquoConstituiccedilatildeo Portuguesa Anotadaraquo (coord por Jorge MirandaRui Medeiros)

2ordf ediccedilatildeo Coimbra 2010 paacuteg 82

131

assunccedilatildeo voluntaacuteria do risco crecirc-se que o regime do artigo 280ordm nordm 2 do

Coacutedigo Civil fundamenta a sua ilicitude (laquoEacute nulo o negoacutecio contraacuterio agrave ordem

puacuteblica ou ofensivo dos bons costumesraquo)

Entretanto reconheccedila-se que em geral o reflexo das vicissitudes dos

contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa noutros contratos da

mesma natureza ou diversa eacute apreciado segundo a determinaccedilatildeo imediata da

boa feacute sem a triagem preacutevia dos pressupostos relativos agraves circunstacircncias em

que as partes fundaram a decisatildeo de contratar e ao risco proacuteprio do contrato

(artigo 437ordmdo Coacutedigo Civil)

Na verdade em relaccedilatildeo agraves circunstacircncias contemporacircneas do contrato

que poreacutem se distanciam da sua base negocial falta em regra pela sua

natureza qualquer declaraccedilatildeo preacutevia da lei ou das partes a respeito da

imputaccedilatildeo do deacutebito da lesatildeo agrave esfera juriacutedica do proacuteprio lesado Em sentido

diferente do que sucede com a alteraccedilatildeo verificada no domiacutenio da base

negocial o risco eacute um risco de vida que por essa razatildeo deve ser apreciado

segundo o criteacuterio da boa feacute296

Admite-se contudo que a previsatildeo da lei ou a estipulaccedilatildeo das partes

possa dispor validamente sobre o risco da verificaccedilatildeo de factos

extracontratuais Nesse caso a disposiccedilatildeo parece imune aos argumentos de

ilicitude atraacutes invocados considerando a relatividade dos contratos Eis o

campo de aplicaccedilatildeo natural do princiacutepio sobre adaptaccedilatildeo ou modificaccedilatildeo

aplicaacutevel aos life time contracts que agora se propotildee

7 NOTAS FINAIS

Em suma meacuterito seja reconhecido aos promotores desta abordagem

que reclama a especificidade dos life time contracts A Luca Nogler e Udo

Reifner os parabeacutens pela publicaccedilatildeo de estudo tatildeo oportuno Sirva esta

intervenccedilatildeo como um desafio um repto que convoca o legislador e o aplicador

do direito portugueses mas espera-se que tambeacutem estimule os nossos colegas

estrangeiros a uma renovada ambiccedilatildeo na conceptualizaccedilatildeo dos princiacutepios

aplicaacuteveis aos contratos essenciais agrave existecircncia da pessoa humana A adopccedilatildeo

da claacuteusula rebus sic stantibus e a imunidade da apreciaccedilatildeo da alteraccedilatildeo das

circunstacircncias agrave imputaccedilatildeo legal ou contratual do risco satildeo as propostas

fundamentais que deixamos agrave reflexatildeo dos interessados Muito obrigado

296 Ver Henrique Sousa Antunes A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos

contratos cit paacutegs 14 e seguintes

132

133

As funccedilotildees do Direito da insolvecircncia no acircmbito de life

time contracts

(Breve reflexatildeo)

Catarina Serra

SUMAacuteRIO 1 Life time contracts 2 Contrato de creacutedito e insolvecircncia

3 O processo de insolvecircncia como via para o exerciacutecio de um direito ao

cumprimento (e ao natildeo cumprimento) das obrigaccedilotildees 4 A extinccedilatildeo dos

contratos O instituto da exoneraccedilatildeo do passivo restante 41 Nota histoacuterica

42 A exoneraccedilatildeo do passivo restante como causa extraordinaacuteria de extinccedilatildeo

das obrigaccedilotildees 43 O princiacutepio do cumprimento dos contratos e as razotildees que

justificam a exoneraccedilatildeo do passivo restante 44 Os abusos de exoneraccedilatildeo do

passivo restante 45 Sugestotildees de ajustamentos ao regime da exoneraccedilatildeo do

passivo restante

1 LIFE TIME CONTRACTS

Na preparaccedilatildeo desta intervenccedilatildeo aleacutem das naturais dificuldades

relacionadas com a falta de tempo deparei-me com as dificuldades do tema

central do Coloacutequio life time contracts

A primeira coisa que salta agrave vista eacute o facto de as palavras life e time

aparecerem separadas

Seria ldquocontratos vitaliacuteciosrdquo (ou contratos para toda a vida) uma

traduccedilatildeo adequada da expressatildeo life time contracts

Lendo o sub-tiacutetulo e as palavras introdutoacuterias dos Professores Luca

Nogler e Udo Reifner no livro homoacutenimo coordenado por ambos297 percebe-

O texto que se apresenta corresponde agrave intervenccedilatildeo oral efectuada no Coloacutequio Internacional

ldquoEm torno de Life Time Contractsrdquo realizado no dia 15 de maio de 2015 na Escola de Direito

da Universidade do Minho com a coordenaccedilatildeo cientiacutefica de Nuno Manuel Pinto Oliveira e

Benedita Mac Crorie Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho 297 LUCA NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life Time contracts ndash Social Long-term Contracts in

Labour Tenancy and Consumer Credit Law The Netherlands Eleven International

Publishing 2014

134

se que natildeo ldquoLife timerdquo natildeo se refere ndash ou natildeo se refere exclusivamente ndash agrave

duraccedilatildeo da relaccedilatildeo contratual

Aleacutem de os contratos vitaliacutecios serem contraacuterios a um princiacutepio geral

do direito (o princiacutepio segundo o qual ningueacutem pode ficar indefinidamente

vinculado a uma obrigaccedilatildeo disposto em Portugal no art 280ordm nordm 1ordm do

Coacutedigo Civil)298 verifica-se que o que estaacute em causa satildeo contratos em que a

vida e o tempo aparecem como dois objectos distintos da relaccedilatildeo contratual

ou seja os contratos que tecircm em vista a satisfaccedilatildeo de necessidades baacutesicas

como um lugar para viver (contrato de locaccedilatildeo) o acesso a produtos e serviccedilos

(contrato de fornecimento) e o acesso a rendimentos (contrato de trabalho e

contrato de creacutedito)299 300

A noccedilatildeo de tempo natildeo eacute poreacutem completamente indiferente agrave

caracterizaccedilatildeo destes contratos No quadro dos sistemas de civil law eles satildeo

geralmente reconduzidos agrave categoria dos contratos de execuccedilatildeo continuada

(ininterrupta ou perioacutedica) Um dos traccedilos essenciais destes contratos eacute

portanto o de que o seu cumprimento integral depende da duraccedilatildeo301

2 CONTRATO DE CREacuteDITO E INSOLVEcircNCIA

Na obra dos Professores Luca Nogler e Udo Reifner o contrato de

creacutedito aparece como fonte de uma relaccedilatildeo contratual necessaacuteria e

complementar que permite seja disponibilizar rendimentos agrave medida das

298 No quadro das obrigaccedilotildees duradouras ldquo[a] faculdade de denuacutencia resulta como a doutrina

corrente assinala da natildeo admissibilidade da existecircncia de vinculaccedilotildees negociais eternas ou

excessivamente duradouras que satildeo consideradas contraacuterias agrave ordem puacuteblica entendimento

que se funda no art 280ordm do CCiv (hellip)rdquo [cfr LUIacuteS CARVALHO FERNANDES Teoria Geral

do Direito Civil vol II Lisboa Universidade Catoacutelica Portuguesa 2007 (4ordf ed) p 476] 299 Cfr LUCA NOGLER UDO REIFNER ldquoIntroduction The new dimension of life time in the

law of contracts and obligationsrdquo in LUCA NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life Time contracts

ndash Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law cit pp 1-6 300 Na definiccedilatildeo dos Principles of Life Time Contracts life time contracts ou em portuguecircs

ldquocontratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoardquo satildeo ldquoas relaccedilotildees sociais que tecircm por

objecto proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos

necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialrdquo [cfr ldquoPrinciples

of Life Time Contractsrdquo in LUCA NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life Time contracts ndash Social

Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law cit xvii-xxx (traduccedilatildeo

preliminar de Nuno Manuel Pinto Oliveira)] 301 Cfr LUCA NOGLER UDO REIFNER ldquoIntroduction The new dimension of life time in the

law of contracts and obligationsrdquo cit pp 2-3

135

necessidades (creacutedito ao consumo empreacutestimos garantidos sistema de

pensotildees e reformas apoios agrave educcedilatildeo contas bancaacuterias serviccedilos de

pagamentos) seja aceder directamente a certos bens ou serviccedilos (habitaccedilatildeo

transporte luz aacutegua gaacutes) mediante pagamento diferido ou perioacutedico302 303

Adopte-se esta definiccedilatildeo e pense-se na impossibilidade de

cumprimento que pode afectar o consumidor dos rendimentos ou dos bens e

serviccedilos ndash a impossibilidade de cumprimento do dever de retribuir as

vantagens que o acesso agravequeles rendimentos e agravequeles bens e serviccedilos

representam (pagar o correspectivo)

Se essa impossibilidade de cumprimento for uma impossibilidade

qualificada existe insolvecircncia

Torna-se entatildeo necessaacuterio saber o que fazer com os contratos de

creacutedito

A dar-se-lhes sem mais continuidade existe o risco de que estes

contratos originariamente pensados para durar mas ainda assim

limitadamente se transmutem em obrigaccedilotildees vitaliacutecias pesando sobre o

sujeito ldquopara o resto da vidardquo (debt for life304)

A questatildeo seraacute entatildeo a de como controlar (limitar ou atenuar) estes

efeitos

A funccedilatildeo do Direito da insolvecircncia nestes contextos eacute oacutebvia Ele

disponibiliza formas para a adaptaccedilatildeo da relaccedilatildeo contratual agrave nova situaccedilatildeo do

devedor ou seja para modificar ou fazer cessar os contratos que natildeo podem

ser cumpridos pelo devedor nos termos inicialmente acordados305

Tendo em consideraccedilatildeo contudo que estaacute em causa o confronto dos

direitos de creacutedito com direitos absolutos de tipo pessoal (direitos de

personalidade) pergunta-se seratildeo o Direito da insolvecircncia e as formas por ele

disponibilizadas adequados a estes desiacutegnios

302 Cfr LUCA NOGLER UDO REIFNER ldquoIntroduction The new dimension of life time in the

law of contracts and obligationsrdquo cit p 6 303 O contrato de creacutedito assume entatildeo nesta uacuteltima modalidade a forma de um life time

contract impliacutecito que emerge no quadro de outros life time contracts 304 Para usar a expressatildeo de PETER COY [ldquoStudent Loans Debt for Liferdquo Business Week 2012

18 (disponiacutevel em httpwwwbloombergcombwarticles2012-09-06student-loans-debt-

for-life)] 305 Natildeo houve infelizmente tempo para tratar os instrumentos vocacionados para a

renegociaccedilatildeo dos contratos no caso de situaccedilatildeo econoacutemica difiacutecil ou insolvecircncia de pessoa

singular nomeadamente no quadro da lei portuguesa o plano de pagamentos aos credores e

o plano de revitalizaccedilatildeo

136

3 O PROCESSO DE INSOLVEcircNCIA COMO VIA PARA O EXERCIacuteCIO DE UM

DIREITO AO CUMPRIMENTO (E AO NAtildeO CUMPRIMENTO) DAS

OBRIGACcedilOtildeES

Eacute um facto incontestaacutevel que o acolhimento do instituto da exoneraccedilatildeo

do passivo restante por todas as leis da insolvecircncia europeias306 aumentou

significativamente o nuacutemero de casos em que o processo de insolvecircncia se

abre por iniciativa do devedor e em geral o nuacutemero de processos de

insolvecircncia307

As razotildees para isso satildeo evidentes

Mas a verdade eacute que jaacute muito antes de existir o atractivo da exoneraccedilatildeo

o poder de acccedilatildeo judicial do devedor era associado sobretudo pela doutrina

italiana a um direito ndash ao direito de cumprir308

306 A uacuteltima lei foi a espanhola que pela Ley 242013 de 27 de septiembre de apoyo a los

emprendedores y su internacionalizacioacuten introduziu a figura da ldquoliberacioacuten o remisioacuten de las

deudas insatisfechas en el concurso de acreedores de persona fiacutesicardquo A disciplina comporta

poreacutem uma importante diferenccedila face agrave disciplina prevista no Direito portuguecircs (e na maioria

dos ordenamentos) a exoneraccedilatildeo depende de o devedor ter conseguido satisfazer ateacute ao

encerramento do processo de insolvecircncia aleacutem dos creacuteditos sobre a massa e dos creacuteditos sobre

a insolvecircncia que beneficiem de garantias pelo menos 25 dos creacuteditos comuns 307 Cfr LUTHER ZEIGLER ldquoThe Fraud Exception to Discharge in Bankruptcy A Reappraisalrdquo

Stanford Law Review 1986 38 (3) p 891 308 Como se assinalou haacute algum tempo no plano formal ou processual a apresentaccedilatildeo agrave

insolvecircncia suscitou intensa discussatildeo A hipoacutetese (inicial) de considerar a iniciativa do

devedor como exerciacutecio de poder executivo que se apoiava na concepccedilatildeo (redutora) da

falecircncia como uma execuccedilatildeo (o devedor era o sujeito passivo do processo e a sentenccedila de

declaraccedilatildeo de falecircncia equivalia a uma sentenccedila de condenaccedilatildeo) foi excluiacuteda dada a

impossibilidade processual de se requerer uma execuccedilatildeo contra si proacuteprio Surge entatildeo a tese

do poder de acccedilatildeo judicial defendida pese embora com fundamentos e desenvolvimentos

diversos por GUSTAVO BONELLI [Commentario al Codice di Commercio volume VIII (Del

fallimento) Parte I Milano Vallardi sd p 154] ANTONIO BRUNETTI (Diritto fallimentare

italiano Roma SEFI 1932 p 121) CARLO DAVACK (La natura giuridica del fallimento

Padova CEDAM 1940 pp 178 e s) RENZO PROVINCIALI (Manuale di diritto fallimentare

I Milano Giuffregrave 1962 p 345) GIORGIO DE SEMO (Diritto fallimentare Padova CEDAM

1961 p 135) e PIERO PAJARDI [Manuale di diritto fallimentare (a cura di Manuela Bocchiola

e Alida Paluchowski) Milano Giuffregrave 2002 pp 84 e s] Todos eles associaram mais ou

menos explicitamente este direito de acccedilatildeo ao direito de cumprir e ao facto de o processo de

falecircncia ser o uacutenico meio que permite ao devedor insolvente exonerar-se das suas obrigaccedilotildees

Em Portugal a tese da apresentaccedilatildeo do devedor agrave falecircncia como exerciacutecio do poder de acccedilatildeo

foi perfilhada por vaacuterios autores como por exemplo PEDRO DE SOUSA MACEDO (Manual de

direito das falecircncias volume I Coimbra Almedina 1964 pp 315 e 316)

137

Estaraacute de facto o poder de acccedilatildeo do devedor associado ao direito de

cumprir ndash e logicamente ao (simeacutetrico) direito de natildeo cumprir309

Em defesa da tese da associaccedilatildeo do poder de acccedilatildeo do devedor ao

direito de cumprir dizia-se que tal como nas situaccedilotildees normais o devedor

pode paralisar a acccedilatildeo executiva cumprindo a obrigaccedilatildeo (exercendo o direito

de cumprir) nas situaccedilotildees em que o devedor estaacute insolvente portanto

impossibilitado de cumprir (de exercer o direito de cumprir) ele tem em

alternativa o poder de escolher o tipo de execuccedilatildeo mais adequada agrave sua

situaccedilatildeo patrimonial especial e ao oacutenus de respeitar a par conditio creditorum

O devedor exerceria em ambos os casos o seu direito de cumprir

expressamente tutelado na lei atraveacutes de institutos como a mora do credor

A admissibilidade desta tese eacute duvidosa

E a razatildeo fundamental para isso eacute numa palavra a de que o processo

de insolvecircncia natildeo assegura o cumprimento

Na grande maioria dos casos o processo de insolvecircncia eacute encerrado

permanecendo embora ainda muitas obrigaccedilotildees por cumprir O devedor

manteacutem-se pois vinculado e pode ser executado a qualquer momento por

estas obrigaccedilotildees

Mesmo quando o pedido de declaraccedilatildeo de insolvecircncia eacute acompanhado

por um pedido de exoneraccedilatildeo do passivo restante a exoneraccedilatildeo do devedor eacute

sempre soacute um resultado possiacutevel e limitado do processo de insolvecircncia ou seja

primeiro natildeo eacute garantido que a exoneraccedilatildeo seja concedida310 e mesmo quando

ela eacute concedida deixa sempre algumas categorias de obrigaccedilotildees incoacutelumes311

309 Enquanto direito ou faculdade o direito de cumprir envolve a possibilidade de deixar de

cumprir 310 Excepto no caso de pessoas juriacutedicas que em princiacutepio se extinguem apoacutes o encerramento

do processo de insolvecircncia em sistema nenhum o processo de insolvecircncia garante o devedor

um meio de exoneraccedilatildeo Assim eacute tambeacutem no Direito portuguecircs [cfr art 233ordm nordm 1 als c) e

d) do CIRE] 311 Da exoneraccedilatildeo satildeo ressalvados certos creacuteditos Desde logo implicitamente os creacuteditos

sobre a massa insolvente (cfr nordm 1 do art 245ordm do CIRE a silentio) Depois expressamente

os creacuteditos por alimentos as indemnizaccedilotildees devidas por factos iliacutecitos dolosos praticados pelo

devedor que hajam sido reclamados nessa qualidade os creacuteditos por multas coimas e outras

sanccedilotildees pecuniaacuterias por crimes ou contra-ordenaccedilotildees e os creacuteditos tributaacuterios [cfr art 245ordm

nordm 2 als a) b) c) e d) do CIRE]

138

4 A EXTINCcedilAtildeO DOS CONTRATOS O INSTITUTO DA EXONERACcedilAtildeO DO

PASSIVO RESTANTE

a NOTA HISTORICA

Pode pensar-se que a exoneraccedilatildeo eacute uma aquisiccedilatildeo recente mas a

verdade eacute que tanto quanto se sabe a primeira referecircncia agrave discharge aparece

no Direito inglecircs logo no iniacutecio seacuteculo XVIII mais precisamente num estatuto

de 1705312

Isto significa que a sua emergecircncia tem fundamentos mais antigos do

que as ideias recentes sobre o impacto da sociedade de consumo e a

necessidade de uma poliacutetica protectora (paternalista) dos consumidores313

Haacute sinais de que o destinataacuterio da discharge era inicialmente o

comerciante que colaborasse no processo de pagamento aos credores e nem

tanto o comerciante desafortunado ou infeliz mas o certo eacute que a lei acabou

por se fixar na imagem do ldquoinsolvente viacutetima das circunstacircnciasrdquo

O acircmbito dos beneficiaacuterios da discharge foi ao longo do tempo sendo

sucessivamente alargado ateacute que em 1861 se estendeu em definitivo a todos

os sujeitos314

b A EXONERACcedilAtildeO DO PASSIVO RESTANTE COMO CAUSA

EXTRAORDINAacuteRIA DE EXTINCcedilAtildeO DAS OBRIGACcedilOtildeES

Em rigor a exoneraccedilatildeo do passivo restante qualifica-se como uma

causa de extinccedilatildeo das obrigaccedilotildees extraordinaacuteria relativamente ao elenco de

causas tipificado geralmente nas lei civil

No Coacutedigo Civil portuguecircs existe um cataacutelogo (ainda que incompleto)

dos factos extintivos aleacutem do cumprimento do qual constam a daccedilatildeo em

cumprimento a consignaccedilatildeo em depoacutesito a compensaccedilatildeo a novaccedilatildeo a

remissatildeo e a confusatildeo (cfr arts 837ordm a 874ordm do Coacutedigo Civil)

312 Isto apesar de se ter mantido a pena de prisatildeo para o comerciante falido ateacute 1869 (e a pena

de morte para os casos de falecircncia fraudulenta) [cfr VANESSA FINCH (Corporate insolvency

law mdash Perspectives and principles Cambridge 2009 (second edition) p 11] 313 Na realidade em particular nas aacutereas do Direito com repercussatildeo econoacutemica (Direito

comercial Direito das sociedades Direito da insolvecircncia) parece existir a premissa de que as

pessoas singulares se opotildeem agraves pessoas juriacutedicas e se encontram face a estas em permanente

situaccedilatildeo de fragilidade 314 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law

Review 19901991 43 pp 109-110

139

Deste cataacutelogo resulta mais ou menos claro que os casos em que as

obrigaccedilotildees se extinguem por uma causa que natildeo seja o cumprimento satildeo

poucos e os casos em que as obrigaccedilotildees se extinguem sem nenhuma

contrapartida para o credor satildeo raros (em rigor apenas a remissatildeo entra nessa

categoria)

c O PRINCIacutePIO DO CUMPRIMENTO DOS CONTRATOS E AS

RAZOtildeES QUE JUSTIFICAM A EXONERACcedilAtildeO DO PASSIVO

RESTANTE

A convicccedilatildeo geral eacute a de que a liberaccedilatildeo do devedor deve ficar

dependente do consentimento do credor (soacute ele podendo abdicar do direito a

exigir a satisfaccedilatildeo do seu interesse) e natildeo pode ser judicialmente decidida315

Independentemente do que aconteccedila depois da celebraccedilatildeo do contrato e da

constituiccedilatildeo do devedor na obrigaccedilatildeo (das circunstacircncias supervenientes que

tornem o seu cumprimento mais oneroso) pacta sunt servanda Caso contraacuterio

criar-se-ia uma desconfianccedila generalizada quanto agrave forccedila vinculativa dos

contratos316

O que estaacute na base desta convicccedilatildeo eacute uma visatildeo de tipo individualista

(individualistic) tiacutepica de quem raciocina no estrito quadro do Direito dos

contratos

A esta visatildeo sobreveio ndash e foi-se impondo ndash uma visatildeo de tipo

comunitarista (communitarian) tiacutepica de um alargamento da reflexatildeo ao

Direito da insolvecircncia

Em defesa desta visatildeo argumenta-se que o ldquoganho socialrdquo (net social

gain) alcanccedilado com a exoneraccedilatildeo do devedor compensa os prejuiacutezos

associados agrave ldquoexpropriaccedilatildeordquo dos credores317

315 Este eacute justamente o caso da exoneraccedilatildeo em que os credores satildeo destituiacutedos dos seus

direitos de creacutedito independentemente de consentimento Como se diz no Acoacuterdatildeo do Tribunal

da Relaccedilatildeo do Porto de 23 de outubro de 2008 (relatora ANA PAULA LOBO) (disponiacutevel em

httpwwwdgsipt) ldquoa oposiccedilatildeo dos credores ao deferimento do pedido de exoneraccedilatildeo do

passivo restante natildeo eacute fundamento legal para o indeferimento desse pedidordquo Esta eacute a razatildeo

pela qual vem sendo sustentado que o acesso agrave exoneraccedilatildeo eacute um verdadeiro direito potestativo

do devedor (cfr por todos JOSEacute GONCcedilALVES FERREIRA A exoneraccedilatildeo do passivo restante

Coimbra Coimbra Editora 2013 pp 69-70 e p 123) 316 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law

Review 19901991 43 p 99 317 Exclui-se desde jaacute qualquer possibilidade de associar a exoneraccedilatildeo a um ldquoganho

econoacutemicordquo ou seja de ver na exoneraccedilatildeo um mecanismo adicional para a satisfaccedilatildeo dos

credores Natildeo se adere assim a tese de LUIacuteS MENEZES LEITAtildeO [Direito da Insolvecircncia

140

A ideia encontra-se enraiacutezada desde haacute muito tempo no Direito norte-

americano e associa-se a uma outra a de que natildeo faz sentido (eacute mesmo injusto)

exigir o cumprimento em situaccedilotildees de excessivo sacrifiacutecio318

Para este entendimento teraacute sido decisiva de iniacutecio a ldquoideologia

burguesardquo reclamando o reconhecimento dos riscos inerentes agrave vida

econoacutemica e da mais-valia que representa a restituiccedilatildeo de um comerciante agrave

actividade produtiva

Coimbra Almedina 2009 (2ordf ed) pp 307-308] que afirma que a exoneraccedilatildeo natildeo representa

grande prejuiacutezo para os credores que passam a ter uma dupla oportunidade de satisfaccedilatildeo

durante o processo de insolvecircncia e durante o chamado ldquoperiacuteodo de cessatildeordquo em que o

rendimento disponiacutevel do devedor eacute afectado durante cinco anos ao pagamento dos creacuteditos

Na realidade com a exoneraccedilatildeo cada credor fica novamente sujeito a um rateio sendo que

ainda por cima quanto aos credores da insolvecircncia o que se reparte eacute tatildeo-soacute o remanescente

do pagamento aos credores da massa insolvente [cfr art 241ordm nordm 1 al d) do CIRE] Ora se

natildeo houvesse exoneraccedilatildeo natildeo haveria rateio A satisfaccedilatildeo do credor dependeria apenas da sua

diligecircncia processual e da data de prescriccedilatildeo do seu creacutedito o que natildeo poucas vezes

representaria um aumento significativo do prazo para agir executivamente contra o devedor

O periacuteodo de cessatildeo natildeo eacute aleacutem do mais suficientemente longo para que seja frequente o

devedor reconstituir-se in bonis e pagar dentro desse periacuteodo a todos os que permaneceram

seus credores 318 Apesar do Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer Protection Act of 2005 tornando

mais difiacutecil o acesso agrave discharge subsiste ainda hoje no Direito norte-americano uma

tendecircncia para a desresponsabilizaccedilatildeo do devedor ndash ldquotheory of irresponsabilityrdquo como alguns

lhe chamam (cfr BRIAN ROTHSCHILD ldquoThe illogic of no limits on bankruptcyrdquo Emory

Bankruptcy Developments Journal 2007 2 p 485) ndash para a imputaccedilatildeo do desastre

econoacutemico aos riscos normais da vida como o aparecimento de uma doenccedila que obriga a

despesas meacutedicas excepcionais o despedimento suacutebito ou ateacute o divoacutercio A generosidade do

regime legal para com o devedor serviria para compensar o baixo niacutevel de assistecircncia puacuteblica

Justamente na cerimoacutenia de assinatura do Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer

Protection Act of 2005 reconhecia o Presidente George W Bush ldquo[o]ur Bankruptcy laws are

an important part of the safety net of Americardquo Neste contexto o Bankruptcy Abuse

Prevention and Consumer Protection Act of 2005 foi apontado como uma medida de reduccedilatildeo

da ldquorede de seguranccedila socialrdquo (cfr ROBERT M LAWLESS ELIZABETH WARREN ldquoLos cambios

de la normativa concursal estadounidense en 2005 reduciendo parte da la red de seguridadrdquo

Revista de Derecho Concursal y Paraconcursal 2007 6 pp 405 e ss) Sobre as causas da

conformaccedilatildeo da mentalidade norte-americana neste sentido cfr TERESA A SULLIVAN

ELIZABETH WARREN JAY LAWRENCE WESTBROOK ldquoLess Stigma or More Financial Distress

An Empirical Analysis of the Extraordinary Increase in Bankruptcy Filingsrdquo 2006 (disponiacutevel

em httpssrncomabstract=903355 ou httpdxdoiorg102139ssrn903355) e RAFAEL

EFRAT ldquoBankruptcy stigma plausible causes for shifting normsrdquo Emory Bankruptcy

Developments Journal 2006 2 pp 481 e s

141

Gradualmente contudo os comerciantes deram lugar aos

consumidores na posiccedilatildeo de beneficiaacuterios da protecccedilatildeo da lei da

insolvecircncia319 320

Alega-se depois que quando o devedor estaacute insolvente a perda eacute

repartida entre os credores e natildeo se repercute apenas em um ou alguns deles

Em teoria apesar de opostas as duas abordagens natildeo satildeo

inconciliaacuteveis O Direito dos contratos natildeo pode permanecer agrave margem dos

interesses da comunidade nem tatildeo-pouco o Direito da insolvecircncia pode

desconsiderar completamente as legiacutetimas expectativas dos credores

(HILLMAN)321 322

Cumpre contudo fazer uma pergunta essencial Satildeo os argumentos

que suportam esta segunda visatildeo argumentos irrestritamente vaacutelidos

Em primeiro lugar que ganho social eacute esse que alegadamente

compensa os danos decorrentes do natildeo cumprimento das obrigaccedilotildees

Diga-se desde jaacute que tudo indica tratar-se de uma mera convicccedilatildeo de

ganho social ndash a convicccedilatildeo de que eacute melhor para a sociedade reintegrar o

319 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law

Review 19901991 43 pp 110-112 320 Diga-se de passagem que a limitaccedilatildeo da responsabilidade dos comerciantes haacute-de ter

contribuiacutedo para que eles tivessem deixado de estar no centro das atenccedilotildees 321 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law

Review 19901991 43 pp 101-102 e pp 129-136 Para uma anaacutelise da tese (proacutexima) do

Direito da insolvecircncia como legislaccedilatildeo social (social legislation) cfr TODD J ZYWICKI

ldquoBankruptcy Law as Social Legislationrdquo Texas Review of Law and Politics 2000-2001 5 pp

395 e ss 322 Segundo alguns a funccedilatildeo do Direito da insolvecircncia eacute precisamente a de compensar as

limitaccedilotildees do Direito dos contratos [cfr UDO REIFNER ldquoResponsible bankruptucyrdquo in LUCA

NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life Time contracts ndash Social Long-term Contracts in Labour

Tenancy and Consumer Credit Law cit p 553] O autor pergunta-se no entanto se o Direito

da insolvecircncia pode cumprir esta funccedilatildeo Conclui que o Direito da insolvecircncia soacute perderaacute a

sua carga destrutiva e poderaacute contribuir eficazmente para o desenvolvimento econoacutemico geral

quando o Direito privado e o Direito puacuteblico se aproximarem e o Direito da insolvecircncia se

fundir com o Direito do creacutedito (a liquidaccedilatildeo e a recuperaccedilatildeo devem ser princiacutepios separados

e este uacuteltimo deve ser integrado no Direito do creacutedito) e for definido por um novo

entendimento de relaccedilotildees creditiacutecias responsaacuteveis e de longo-prazo (ob cit p 555 e pp 570-

571)

142

devedor na sua posiccedilatildeo produtiva do que deixaacute-lo acorrentado a diacutevidas que

ele natildeo tem a possibilidade de pagar323

O argumento do ldquoganho socialrdquo padece depois de um problema

quanto aos pressupostos Pressupondo a irrelevacircncia dos credores o

argumento deveraacute ser pelo menos restringido eacute melhor para a sociedade se

dela se excluiacuterem os credores nomeadamente as instituiccedilotildees de creacutedito que

fazem da concessatildeo de creacutedito profissatildeo

Concede-se no entanto que as vantagens da exoneraccedilatildeo do passivo

natildeo se esgotam no favor debitoris Haacute outras vantagens de alcance mais geral

Entre elas incluem-se por exemplo na possibilidade de a exoneraccedilatildeo

funcionar como um estiacutemulo agrave diligecircncia processual do devedor324 e um

mecanismo para a uniformizaccedilatildeo dos efeitos do encerramento do processo de

insolvecircncia325

Mais importante do que isto eacute o facto de a exoneraccedilatildeo (ou a

possibilidade de recurso a ela) ter um impacto positivo na economia Ela

provoca uma contracccedilatildeo no creacutedito e por causa dela reduzem-se os casos de

insolvecircncia Quanto mais restrito eacute o acesso ao creacutedito (por ser mais ldquoexigenterdquo

quem o concede e por isso ser mais ldquoresponsaacutevelrdquo quem o pede) menos seratildeo

os riscos de insolvecircncia (MICHELOTTI)326

Quanto ao segundo argumento ele tatildeo-pouco eacute isento de reservas

Eacute verdade que no processo de insolvecircncia haacute uma preocupaccedilatildeo

essencial de justiccedila distributiva A aplicaccedilatildeo do princiacutepio par conditio

creditorum visa precisamente assegurar a justa distribuiccedilatildeo do sacrifiacutecio isto

eacute que se constitui entre os credores uma ldquocomunhatildeo nas perdasrdquo

323 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law

Review 19901991 43 p 100 324 Cfr ALESSANDRO NIGRO ldquolsquoPrivatizzazionersquo delle procedure concorsuali sie ruolo delle

bancherdquo Banca Borsa e Titoli di Credito 2006 p 365 e VALERIO SANGIOVANNI ldquoLa

domanda di apertura del procedimento dinsolvenza nel diritto tedescordquo Il Fallimento 2006

5 p 504 325 Estaacute agora mais diluiacuteda por exemplo a substancial diferenccedila entre a insolvecircncia de uma

sociedade comercial (de qualquer pessoa juriacutedica) e a insolvecircncia de um comerciante (de

qualquer pessoa humana) Se com a sujeiccedilatildeo ao processo de insolvecircncia se extinguia (se

extingue) a sociedade e consequentemente se tornava (se torna) inviaacutevel a satisfaccedilatildeo dos

creacuteditos remanescentes agora eacute possiacutevel suceder coisa idecircntica ndash atraveacutes da exoneraccedilatildeo ndash no

caso do comerciante em nome individual [cfr FRANCO MICHELOTTI ldquoLrsquoesdebitazione ex artt

142 143 144 L Fallrdquo p 3 (disponiacutevel em httpwwwdottcommroit)] 326 Cfr FRANCO MICHELOTTI ldquoLrsquoesdebitazione ex artt 142 143 144 L Fallrdquo p 8

(disponiacutevel em httpwwwdottcommroit)

143

(Verlustgemeinschaft)327 ou uma ldquocomunhatildeo no riscordquo

(Risikogemeinschaft)328

Eacute verdade tambeacutem por outro lado que o princiacutepio par conditio

creditorum deve ser entendido em sentido material se o justo eacute o igual e o

injusto o desigual quando as pessoas natildeo satildeo iguais natildeo devem receber partes

iguais (ARISTOacuteTELES329)

Atentando todavia na disciplina da exoneraccedilatildeo e em particular nos

seus efeitos percebe-se que haacute creacuteditos que natildeo satildeo atingidos ou que satildeo

ressalvados do efeito exoneratoacuterio (na lei portuguesa por exemplo os creacuteditos

tributaacuterios) Em relaccedilatildeo a eles existe de facto o risco de eles se transmutarem

em ldquocontratos vitaliacuteciosrdquo pesando como se disse sobre o sujeito ldquopara o resto

da vidardquo

Eacute duvidoso que esta soluccedilatildeo possa ser imputada agrave (ou justificada com

base na) dimensatildeo material do princiacutepio da igualdade e nessa medida

considerada compatiacutevel com a ideia acima referida de justa distribuiccedilatildeo das

perdas330 Ela eacute ateacute susceptiacutevel de comprometer na praacutetica a utilidade da

exoneraccedilatildeo uma vez que reduz consideravelmente o alcance da exoneraccedilatildeo

327 Cfr OTHMAR JAUERNIG Zwangsvollstreckungs- und Insolvenzrecht Muumlnchen Verlag

CH Beck 1996 p 172 Diz o A que o ponto de saiacuteda do direito da falecircncia eacute a ruiacutena

econoacutemica do devedor a ordem juriacutedica reage determinando que todos os credores quando

natildeo possam obter plena satisfaccedilatildeo devem ser satisfeitos de forma paritaacuteria enfim concebe

uma espeacutecie de comunhatildeo de destino e de perdas (Schicksals-und Verlustgemeinschaft)

nenhum credor por se antecipar tem direito a receber mais do que os outros 328 Cfr HANS HEILMANN STEFAN SMID Grundzuumlge des Insolvenzrechts Eine Einfuumlhrung in

die Grundfragen des Insolvenzrechts und die Probleme seiner Reform Muumlnchen Verlag CH

Beck 1994 p 16 329 Cfr ARISTOacuteTELES Moral a Nicoacutemaco (traduccioacuten del griego por Patricio Azcaacuterate

introduccioacuten de Luis Castro Nogueira) Madrid Espasa Calpe 1993 pp 209-210 330 Se a subtracccedilatildeo ao efeito exoneratoacuterio dos creacuteditos por alimentos das indemnizaccedilotildees

devidas por factos iliacutecitos dolosos praticados pelo devedor que hajam sido reclamados nessa

qualidade e dos creacuteditos por multas coimas e outras sanccedilotildees pecuniaacuterias por crimes ou contra-

ordenaccedilotildees ndash que nem sempre existem e quando existem satildeo pouco significativos na

totalidade dos creacuteditos ndash ainda se pode considerar justificada natildeo obstante em grau variaacutevel

com base nos interesses que estatildeo na base da sua constituiccedilatildeo (presumivelmente o caraacutecter

alimentar das obrigaccedilotildees de alimentos a especial censurabilidade das condutas geradoras de

obrigaccedilotildees de indemnizaccedilatildeo e a especial natureza dos interesses em jogo nos casos de sanccedilotildees

pecuniaacuterias por violaccedilatildeo do Direito Penal ou do Direito de mera ordenaccedilatildeo social) jaacute a dos

creacuteditos tributaacuterios (que satildeo aleacutem do mais muito frequentes e tecircm na praacutetica uma grande

extensatildeo) pode discutir-se se natildeo seraacute uma generosidade excessiva da lei para com o Estado e

conduziraacute a uma discriminaccedilatildeo injustificada no universo dos credores

144

como instrumento de extinccedilatildeo da generalidade das diacutevidas do devedor

(MENEZES LEITAtildeO)331

d OS ABUSOS DE EXONERACcedilAtildeO DO PASSIVO RESTANTE

Na generalidade dos ordenamentos europeus a exoneraccedilatildeo estaacute ainda

circunscrita ao devedor que a mereccedila ndash ao ldquodevedor honesto e

desafortunadordquo332 pressupondo a inexistecircncia de causas de censurabilidade da

conduta do devedor anterior e posteriormente agrave declaraccedilatildeo de insolvecircncia333 334

O periacuteodo de cessatildeo aparece de facto uma espeacutecie de ldquoperiacuteodo

experimentalrdquo335 e a exoneraccedilatildeo como uma espeacutecie de ldquoliberdade condicional

por bom comportamentordquo336 Diz-se aliaacutes por isso que natildeo eacute rigorosamente

331 Cfr LUIacuteS DE MENEZES LEITAtildeO Coacutedigo da Insolvecircncia e da Recuperaccedilatildeo de Empresas

Anotado Coimbra Almedina 2009 (5ordf ed) p 246 332 A categoria tem origem na expressatildeo francesa ldquodeacutebiteur malheureux et de bonne foirdquo usada

na codificaccedilatildeo napoleoacutenica para qualificar o devedor (natildeo comerciante) admitido agrave cessatildeo de

bens prevista no Code Civil (cfr ALAIN BEacuteNABENT ldquoLa question de la bonne foi dans les

proceacutedures collectivesrdquo Gazette du Palais 2003 nordms 57-58 p 37) Tambeacutem foi amplamente

acolhida nos paiacuteses anglo-saxoacutenicos sob a foacutermula ldquohonest but unfortunate debtorrdquo (cfr por

exemplo BRIAN ROTHSCHILD ldquoThe illogic of no limits on bankruptcyrdquo Emory Bankruptcy

Developments Journal 2007 2 pp 483 e 502) 333 Neste ponto divergem como se sabe originariamente os ordenamentos europeus e o norte-

americano Para a histoacuteria da discharge no Direito norte-americano cfr CHARLES JORDAN

TABB ldquoThe historical evolution of the bankruptcy dischargerdquo American Bankruptcy Law

Journal 1991 65 pp 325 e ss e TERESA A SULLIVAN ELIZABETH WARREN JAY

LAWRENCE WESTBROOK ldquoLimiting access to bankruptcy discharge an analysis of the

creditorsrsquo datardquo Wisconsin Law Review 1983 pp 1098-1101 Para um confronto entre os

dois sistemas cfr JACOB ZIEGEL ldquoFacts on the Ground and Reconciliation of Divergent

Consumer Insolvency Philosophiesrdquo Theoretical Enquiries on Law 2006 7(2) pp 299 e ss 334 Ilustram-no bem na lei portuguesa as normas das als b) d) e f) e g) do nordm 1 do art 238ordm

das als a) e b) do nordm 1 do art 243ordm do nordm 2 do art 244ordm e do nordm 1 do art 246ordm do CIRE A

maioria refere-se expressa ou implicitamente (por remissatildeo) agrave culpa grave e ou ao dolo do

devedor na praacutetica de certos actos uma erige em causa de indeferimento liminar a condenaccedilatildeo

do devedor num dos crimes previstos e punidos nos arts 227ordm a 229ordm do Coacutedigo Penal 335 Usa-se esta expressatildeo no Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 20 de novembro de

2008 (Relator TELES DE MENEZES) (disponiacutevel em httpwwwdgsipt) 336 Natildeo se pode esquecer que o despacho de exoneraccedilatildeo pode ser revogado designadamente

a pedido de qualquer credor ateacute ao termo do ano subsequente ao seu tracircnsito em julgado (cfr

art 246ordm nordm 2 2ordf parte do CIRE) A revogaccedilatildeo importa a reconstituiccedilatildeo de todos os creacuteditos

extintos (cfr art 246ordm nordm 4 do CIRE)

145

possiacutevel falar de ldquofresh startrdquo sendo mais apropriado falar de ldquoearned

startrdquo337

Eacute portanto desejaacutevel que natildeo ocorram comportamentos abusivos Mas

o sistema natildeo eacute ainda perfeito

Pode acontecer que um sujeito se apresente agrave insolvecircncia com o

exclusivo propoacutesito de obter a exoneraccedilatildeo do passivo restante e para que o

pedido de declaraccedilatildeo de insolvecircncia proceda colocar-se intencionalmente

numa situaccedilatildeo de insolvecircncia ou ateacute de aparecircncia de insolvecircncia (transmitindo

a pessoas proacuteximas atraveacutes de actos fraudulentos todos os seus bens) O

processo de insolvecircncia seraacute aberto mas imediatamente declarado findo por

insuficiecircncia de bens Poderaacute deveraacute o processo de insolvecircncia prosseguir

nestes casos para a avaliaccedilatildeo dos pressupostos do pedido de exoneraccedilatildeo

Eacute comum admitir-se que o processo prossiga para avaliaccedilatildeo da

oportunidade do pedido de exoneraccedilatildeo338 339 Nem sempre seraacute uma boa

decisatildeo

A continuaccedilatildeo do processo nestes termos natildeo eacute compatiacutevel com o uso

dos instrumentos preordenados a reagir contra os actos prejudiciais agrave massa

337 Cfr UDO REIFNER JOHANNA NIEMI-KIESILAumlINEN NIK HULS HELGA SPRINGENEER

Overindebtedness in European Consumer Law Principles from 15 European States

Nordesstedt Books on Demand 2010 p 166 338 Cfr por exemplo os Acoacuterdatildeos do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 5 de novembro de 2007

(Relator PINTO FERREIRA) e de 12 de maio de 2009 (Relator HENRIQUE ARAUacuteJO)

(disponiacuteveis em httpwwwdgsipt) Eacute de facto como se diz no primeiro Acoacuterdatildeo uma

decisatildeo possiacutevel ndash o texto do nordm 8 do art 39ordm do CIRE reforccedila este entendimento 339 No quadro da insuficiecircncia do patrimoacutenio do devedor haacute que distinguir duas hipoacuteteses A

hipoacutetese regulada no art 39ordm do CIRE diz respeito agrave situaccedilatildeo em que o juiz antes de declarar

a insolvecircncia se apercebe de factos que lhe permitem presumir que o patrimoacutenio do devedor

eacute insuficiente para a satisfaccedilatildeo das custas do processo e das diacutevidas previsiacuteveis da massa

insolvente Quando assim eacute a declaraccedilatildeo de insolvecircncia eacute uma declaraccedilatildeo limitada [aos

elementos constantes das aliacuteneas a) a d) e h) do art 36ordm do CIRE] pois o fim do processo estaacute

iminente [cfr art 39ordm nordm 7 al b) do CIRE] mas aquele facto (a insuficiecircncia da massa) natildeo

pode deixar de ser mencionado na sentenccedila (cfr art 39ordm nordm 1 do CIRE) Distinta desta eacute a

hipoacutetese regulada no art 232ordm nordm 1 do CIRE em que o juiz de nada se tendo apercebido no

momento da declaraccedilatildeo de insolvecircncia vem a ser alertado pelo administrador da insolvecircncia

de que a massa insolvente eacute insuficiente para a satisfaccedilatildeo das custas do processo e das restantes

diacutevidas da massa Uma vez ouvidos o devedor a assembleia de credores e os credores da

massa insolvente o juiz declara o encerramento do processo (cfr art 232ordm nordm 2 do CIRE)

O art 230ordm nordm 1 al d) do CIRE eacute claro sobre o momento em que a hipoacutetese tem lugar

incluindo-a nos casos em que o processo prossegue ldquoapoacutes a declaraccedilatildeo de insolvecircnciardquo

146

insolvente e a recuperar os bens indevidamente subtraiacutedos ao patrimoacutenio do

devedor (a resoluccedilatildeo e a impugnaccedilatildeo pauliana)340

Uma vez admitido o pedido de exoneraccedilatildeo bastaraacute ao devedor

encontrar um posto de trabalho natildeo excessivamente bem remunerado e

permanecer ldquona sombrardquo adoptando um modo de vida modesto durante os

cinco anos que dura o periacuteodo de cessatildeo Findo este periacuteodo ele estaraacute pronto

para reaver os bens ldquopostos a salvordquo nos patrimoacutenios alheios e ldquoembarcar em

novas aventurasrdquo

Acresce que existindo embora em todas as leis um limite temporal

entre exoneraccedilotildees ou seja um ldquoperiacuteodo de quarentenardquo341 natildeo existe um

limite maacuteximo de exoneraccedilotildees Nada impede portanto que o sujeito beneficie

de mais do que uma exoneraccedilatildeo podendo em uacuteltima anaacutelise passar parte da

vida a contrair diacutevidas e outra a desembaraccedilar-se delas

O perigo de ocorrecircncia destes casos eacute percebido por FINNIS Tomando

o regime da insolvecircncia como exemplo da justiccedila diz o autor

ldquo() the law of bankruptcy can itself be made the instrument of

injustice above all by the bankrupt himself For it is certainly

possible and in some places not uncommon that someone who could

pay his just debts if he were so minded may choose instead to have

them cancelled by bankruptcy submitting himself to temporary

inconvenience for the sake of a future freedom from financial

difficultyrdquo342

e SUGESTOtildeES DE AJUSTAMENTOS AO REGIME DA

EXONERACcedilAtildeO DO PASSIVO RESTANTE

Em siacutentese embora se reconheccedila a sua ldquobondade intriacutensecardquo (as razotildees

ldquohumanitaacuteriasrdquo subjacentes) talvez natildeo fosse desadequado reequacionar a

disciplina da exoneraccedilatildeo do passivo restante

Uma possiacutevel alteraccedilatildeo seria quanto agrave duraccedilatildeo do periacuteodo de cessatildeo

Este periacuteodo deveria ter a duraccedilatildeo adequada a possibilitar ao devedor em cada

340 Natildeo obstante os mecanismos de controlo da conduta do devedor compreendidos nos

(mencionados) arts 238ordm 243ordm 244ordm e 246ordm do CIRE Sobrevaloriza-os em certa medida

JOSEacute GONCcedilALVES FERREIRA (A exoneraccedilatildeo do passivo restante Coimbra Coimbra Editora

2013 p 155) 341 Na lei portuguesa o periacuteodo de quarentena eacute de dez anos (cfr al c) do nordm 1 do art 238ordm

do CIRE) sendo o pedido de exoneraccedilatildeo liminarmente indeferido quando o devedor tiver

beneficiado da exoneraccedilatildeo nos dez anos anteriores agrave data do iniacutecio do processo de insolvecircncia 342 Cfr JONH FINNIS Natural Law and natural rights Oxford Clarendon Press 1980 p 191

147

caso tentar ldquoliquidarrdquo o essencial do seu passivo restante e ldquolimparrdquo o seu

nome A exoneraccedilatildeo produzir-se-ia entatildeo na medida em que houvesse pelo

menos um esforccedilo ldquobem-intencionadordquo por parte do devedor isto eacute orientado

para cumprir e tendo em vista recuperar o seu bom nome

A hipoacutetese contraacuteria aparentemente a Recomendaccedilatildeo da Comissatildeo de

12 de marccedilo de 2014 segundo a qual a exoneraccedilatildeo dos empresaacuterios

insolventes deve ter lugar no fim de um periacuteodo natildeo superior a trecircs anos (cfr

recomendaccedilatildeo 30)343

Mas em primeiro lugar a duraccedilatildeo deste periacuteodo ainda varia muito de

ordenamento para ordenamento e em alguns casos eacute superior ao

recomendado344

Em segundo lugar a soluccedilatildeo proposta natildeo implicaria um

prolongamento generalizado do periacuteodo de cessatildeo mas apenas a possibilidade

do seu ajustamento em concreto agraves perspectivas de uma situaccedilatildeo financeira

compatiacutevel com o pagamento aos credores podendo ateacute ser eliminado (e a

exoneraccedilatildeo ser imediata) nos casos em que se tivesse alcanccedilado no processo

de insolvecircncia um pagamento significativo (qualificado) das diacutevidas

Uma segunda alteraccedilatildeo seria a determinaccedilatildeo expressa de que as

obrigaccedilotildees em vez de se extinguirem se converteriam em obrigaccedilotildees naturais

As obrigaccedilotildees sobreviveriam podendo o devedor se assim quisesse cumpri-

las a qualquer momento (e o credor reter a coisa prestada)

Esta eacute uma alteraccedilatildeo mais consensual uma vez que mesmo na inexistecircncia de

norma expressa alguns jaacute entendem que eacute isso que se passa345

Em ambos os casos tratar-se-ia de funcionalizar o processo de

insolvecircncia agrave realizaccedilatildeo natildeo de um direito ao cumprimento ndash que jaacute se disse

natildeo se acredita que exista ndash mas de direitos de outra natureza relacionados

com o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa humana e tendentes

343 Recomendaccedilatildeo C(2014) 1500 final sobre uma nova abordagem em mateacuteria de falecircncia e

de insolvecircncia das empresas [disponiacutevel (em portuguecircs) em

httpeceuropaeujusticecivilfilesc_2014_1500_ptpdf e (em inglecircs) em

httpeceuropaeujusticecivilfilesc_2014_1500_enpdf] Sublinhe-se contudo a

circunscriccedilatildeo da Recomendaccedilatildeo aos empresaacuterios ou seja agraves pessoas singulares titulares de

empresa 344 Em Portugal dura actualmente cinco anos Na Alemanha comeccedilou por durar sete anos mas

fixou-se posteriormente em seis podendo excepcionalmente (nos casos em que determinada

percentagem dos creacuteditos tenha sido satisfeita) durar apenas trecircs Em Inglaterra dura

geralmente doze meses 345 Assim em Portugal em face do art 245ordm nordm 1 do CIRE JOSEacute GONCcedilALVES FERREIRA A

exoneraccedilatildeo do passivo restante Coimbra Coimbra Editora 2013 pp 119-127

148

a garantir um miacutenimo de participaccedilatildeo na vida econoacutemica (miacutenimo de

existecircncia) (securing livelihood) e um miacutenimo de participaccedilatildeo na vida social

[(preventing) exclusion]346 347

Tratar-se-ia de garantir por outro lado que os institutos satildeo usados

para as suas finalidades proacuteprias ou por outras palavras de reforccedilar a ligaccedilatildeo

devida entre o uso dos direitos e as ldquoboas intenccedilotildeesrdquo dos sujeitos

Por fim seria compreensiacutevel que a ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo dos

empresaacuterios operasse em termos diferentes das pessoas singulares natildeo titulares

de empresa Apesar da ldquodemocratizaccedilatildeordquo do acesso ao creacutedito o primeiro estaacute

teoricamente (ainda) exposto a maiores riscos do que o segundo e por outro

346 Cfr ldquoPrinciples of Life Time Contractsrdquo in LUCA NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life

Time contracts ndash Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law

cit xvii-xxx (traduccedilatildeo preliminar de Nuno Manuel Pinto Oliveira)] 347 Propondo um enquadramento da exoneraccedilatildeo nos direitos humanos CHRYSTIN ONDERSMA

[ldquoA human rights framework for debt reliefrdquo (disponiacutevel em

httpssrncomabstract=2390788)] sustenta que o tratamento da insolvecircncia das pessoas

singulares deveraacute ter em conta os seguintes direitos niacutevel de vida adequado (adequate

standard of living) direito agrave sauacutede (right to healthcare) direito ao trabalho e a uma

remuneraccedilatildeo justa (right to work and ldquofavorablerdquo remuneration) proibiccedilatildeo da prisatildeo por

diacutevidas (prohibition on incarceration for failure to pay debt) proibiccedilatildeo de escravatura por

diacutevidas (prohibition to debt peonage) discriminaccedilatildeo (discrimination) confidencialidade

(privacy) e dignidade humana (human dignity)

149

lado eacute-lhe exigiacutevel uma maior responsabilidade348 349 Eacute compreensiacutevel

portanto que o empresaacuterio honesto seja qualificado como tal por aplicaccedilatildeo de

criteacuterios distintos daqueles por que se afere a honestidade ou o meacuterito de outros

devedores350

348 Em princiacutepio o exerciacutecio do comeacutercio pressupotildee uma preparaccedilatildeo especial e cuidados

particulares Por forccedila da funccedilatildeo econoacutemica e social que desempenham os comerciantes

devem actuar com maior responsabilidade natildeo sendo livres de perseguir o seu interesse

pessoal ou de agir conforme lhes parece e tendo de avaliar (e saber avaliar) a situaccedilatildeo da sua

empresa e conduzir-se de forma a evitar a produccedilatildeo de danos para os interesses particulares e

geral Acresce que no caso de insolvecircncia ndash risco muito comum na actividade comercial

(ldquomercatores sunt semper in proximo periculo decoquendirdquo) ndash se produzem em regra

perturbaccedilotildees mais graves do que quando se trata de sujeitos comuns se um credor natildeo recebe

com pontualidade natildeo pode por sua vez pagar pontualmente aos seus credores a crise de um

repercute-se nos outros e pode muito bem espoletar uma crise colectiva ou geral Eacute

essencialmente isso que o legislador se propotildee evitar por exemplo quando constitui o devedor

titular de empresa na obrigaccedilatildeo de reagir em prazo uacutetil agrave sua crise individual (cfr art 18ordm nordm

1 do CIRE) No que respeita aos particulares o seu recurso ao creacutedito tem vindo a crescer

mas a verdade eacute que por maior que ele seja a situaccedilatildeo dos particulares e a dos comerciantes

nunca se identificaratildeo sempre seratildeo diversas a motivaccedilatildeo para o recurso ao creacutedito e a funccedilatildeo

que o creacutedito desempenha no creacutedito ao consumo existem particularidades que satildeo

completamente estranhas ao creacutedito comercial como por exemplo as ofertas de creacutedito

(solicitations to take credit) enfim satildeo distintos os grupos de interesses econoacutemicos

envolvidos e merecedores de tutela numa e noutra situaccedilatildeo 349 Por algum motivo a insolvecircncia (a falecircncia) foi durante tanto tempo um regime (quase)

exclusivo dos comerciantes Havendo embora tambeacutem um regime concursual para os

particulares os regimes divergiam ao niacutevel dos efeitos e tambeacutem dos pressupostos No giro

comercial ldquoa insuficiecircncia do activo em face do passivo natildeo constitui de per si uma

perturbaccedilatildeo do mecanismo econoacutemico Haacute a somar ao activo o creacutedito pessoal tantas vezes

de um valor igual ou superior ao activo patrimonial consequecircncia como eacute do saber do

trabalho e da honestidade do indiviacuteduordquo [cfr ponto 4 do Relatoacuterio do Diploma Preambular do

Coacutedigo de Falecircncias de 1935 (DL nordm 25 981 de 26 de outubro de 1935)] 350 Natildeo exige contudo que o comerciante honesto seja o (e preencha os respectivos requisitos

do) ehrlicher Kaufmann de que falava Kant Segundo Kant o comerciante devia agir com

honestidade por convicccedilatildeo e natildeo para daiacute retirar vantagens se o comerciante natildeo engana os

seus clientes porque receia perdecirc-los a sua conduta natildeo tem valor moral pois resulta de um

desejo ou inclinaccedilatildeo egoiacutesta se em vez disso o comerciante procede assim apenas porque

julga ter o dever de ser honesto entatildeo a sua conduta tem valor moral Cfr Immanuel Kant

Grundlegung zur Mataphysic der Sitten 1785 disponiacutevel em httpvirt052zimuni-duisburg-

essendekantaa04385html

150

151

A vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos

fundamentais e os contratos de longa duraccedilatildeo

Benedita Mac Crorie

1 Para esta comunicaccedilatildeo partimos de um caso concreto que natildeo eacute um

caso muito recente (a decisatildeo data de 1993) mas que apesar disso eacute um caso

que coloca questotildees de uma grande actualidade e que eacute muito relevante para a

problemaacutetica da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentais tema

que nos propomos tratar e que por isso seraacute o ponto de partida para toda a

reflexatildeo que faremos

O caso eacute o chamado caso das fianccedilas ou o Buumlrgschaftsurteil351 e eacute

uma decisatildeo do Tribunal Constitucional Federal Alematildeo Neste caso um

banco concedeu a um comerciante um empreacutestimo de 100000 DM (marcos

alematildees) na condiccedilatildeo de que a filha deste uacuteltimo fosse a fiadora Quatro anos

mais tarde e perante a incapacidade do pai em pagar o empreacutestimo o banco

veio pedir-lhe este montante acrescido de 60000 DM (marcos alematildees) de

juros

Na altura em que o caso chegou ao Tribunal Constitucional Federal

Alematildeo a fiadora era matildee solteira e natildeo tinha rendimentos Nas diferentes

instacircncias a sua pretensatildeo de se escusar a pagar essa quantia foi obtendo

respostas diferentes O Tribunal Regional (Landesgericht) considerou que o

contrato era vaacutelido e que consequentemente a quantia teria de ser paga por

seu lado o Tribunal de Recurso (Oberlandesgericht) considerou que o

funcionaacuterio do banco tinha violado o seu dever de informaccedilatildeo uma vez que

antes da assinatura se tinha limitado a pedir-lhe para assinar dizendo-lhe

apenas que necessitava da assinatura para os ficheiros Esta decisatildeo foi

revogada pelo Tribunal Federal de Justiccedila (Bundesgerichtshof) que natildeo

considerou que houvesse tal dever entendendo que qualquer pessoa maior de

idade sabe que assinar um contrato de fianccedila envolve um risco O pai era

solvente na altura em que o contrato foi assinado pelo que a informaccedilatildeo

prestada pelo banco foi considerada suficiente

A filha recorreu entatildeo desta decisatildeo para o Tribunal Constitucional

Federal Alematildeo (Bundesverfassungsgericht) invocando que o Tribunal

Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho 351 BVerfGE 89 214 ss httpwwwservatunibechdfrbv089214html (28012016)

152

Federal de Justiccedila atraveacutes da sua decisatildeo violou o seu direito agrave dignidade (art

1ordm da Constituiccedilatildeo Federal) e a sua autonomia privada (que derivaria do

paraacutegrafo 1 do art 2ordm da Constituiccedilatildeo Federal conjugada com o princiacutepio do

Estado Social (paraacutegrafo 1 do art 20ordm e paraacutegrafo 1 do art 28ordm da

Constituiccedilatildeo Federal)

A sua queixa constitucional foi bem sucedida Na sua fundamentaccedilatildeo

o Tribunal Constitucional Federal alematildeo considerou que em circunstacircncias

normais os contratos devem ser assumidos pelos Tribunais como uma

expressatildeo por ambas as partes do seu direito fundamental agrave autonomia privada

No entanto entendeu tambeacutem que nos casos em que o desequiliacutebrio estrutural

de poderes negociais leva agrave celebraccedilatildeo de um contrato excessivamente oneroso

para a parte mais fraacutegil os tribunais ciacuteveis tecircm a obrigaccedilatildeo de intervir de modo

a garantir a posiccedilatildeo da parte mais fraca No caso em anaacutelise o desequiliacutebrio

negocial existiu porque o banco natildeo informou devidamente a filha dos riscos

de ser fiadora ainda que o risco fosse bastante elevado atendendo ao seu

rendimento

Entendeu o Tribunal que esta obrigaccedilatildeo dos tribunais deriva do seu

dever de garantir um direito constitucionalmente protegido agrave autonomia

privada conjugado com o princiacutepio do Estado social Desta argumentaccedilatildeo

resulta que ambas as partes ndash a forte e a fraca ndash gozam de um direito

constitucional agrave autonomia privada O caso foi configurado como se tratando

de um conflito de direitos fundamentais Consequentemente o Tribunal

Constitucional Federal entendeu que o Tribunal Federal de Justiccedila violou o

direito ao livre desenvolvimento da personalidade da requerente (do qual

entende que deriva o direito agrave autonomia privada) na decisatildeo que tomou352

2 Este caso eacute um dos exemplos mais conhecidos a propoacutesito dos

efeitos dos direitos fundamentais no direito privado e nesta decisatildeo haacute dois

352 OLHA CHEREDNYCHENKO Fundamental Rights Contract Law and the Protection of

the Weaker Party 2007 disponiacutevel em

httpdspacelibraryuunlbitstreamhandle187420945full pdfsequence=6 pp 208 ss

OLHA CHEREDNYCHENKO ldquoThe constitutionalization of contract law Something New

under the Sunrdquo in EJCL Vol 81 2004 pp 4 ndash 5 CLAUS DIETER CLASSEN ldquoDie

Drittwirkung der Grundrechte in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgericht in AoumlR

122 1997 p 77 CLAUS-WILHELM CANARIS ldquoA influecircncia dos direitos fundamentais

sobre o direito privado na Alemanhardquo in INGO WOLFGANG SARLET (org) Constituiccedilatildeo

Direitos Fundamentais e Direito Privado Livraria do Advogado Editora Porto Alegre 2003

pp 228 ndash 229 e IDEM ldquoGrundrechtswirkungen und Verhaltnismassigkeitsprinzip in der

richterlichten Anwendung und Fortbildung des Privatrechtsrdquo in JuS Heft 3 1989 p 168

153

aspectos essenciais que relevam para o tema que estaacute hoje a ser discutido neste

coloacutequio

Por um lado o facto de o Tribunal assumir que derivam das normas de

direitos fundamentais deveres de protecccedilatildeo do Estado seja do Estado

legislador seja do Estado juiacutez que implicam que este tenha de garantir que os

direitos fundamentais dos particulares natildeo satildeo violados por outros particulares

neste caso o direito ao livre desenvolvimento da personalidade

Assim num primeiro momento vou aprofundar um pouco mais a

questatildeo da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentais de modo a

procurar perceber como eacute que essa vinculaccedilatildeo pode eventualmente vir a

ter um ldquoefeito correctorrdquo do conteuacutedo de determinados contratos

Por outro lado e intimamente ligada com a questatildeo anterior o facto de

o juiacutez constitucional ter considerado que este contrato natildeo deveria ser feito

valer invocando para isso o direito agrave autonomia privada da proacutepria pessoa que

se vinculou parece que poderaacute consubstanciar-se numa defesa da pessoa

contra si mesma libertando-a de um viacutenculo juriacutedico que pelo menos

pretensamente voluntariamente assumiu Perante isto seraacute relevante discutir

a questatildeo de saber se eacute legiacutetimo em Estado de Direito democraacutetico que o

Estado assuma uma posiccedilatildeo paternalista de defesa da pessoa contra si proacutepria

ou pelo menos em que situaccedilotildees eacute que poderaacute ser de admitir essa defesa

Ora sendo os contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa

como eacute por exemplo o caso dos contratos de creacutedito a que nos estamos a referir

parece que ainda se colocaraacute neste domiacutenio com maior premecircncia a questatildeo

da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentais Alguns dos

princiacutepios aplicaacuteveis aos contratos duradouros parecem precisamente traduzir

a influecircncia dos direitos fundamentais nas relaccedilotildees juriacutedicas privadas Eacute o caso

do reconhecimento da dimensatildeo humana envolvida nestes contratos o

reconhecimento de dimensotildees colectivas e eacuteticas o salientar de um dever de

informaccedilatildeo e transparecircncia a preocupaccedilatildeo com o respeito pelo princiacutepio da

igualdade a garantia de um miacutenimo de existecircncia a chamada de atenccedilatildeo para

o risco de exclusatildeo da vida social e a proacutepria remissatildeo para as regras e

princiacutepios de direito puacuteblico

De facto o acesso a serviccedilos financeiros tornou-se crucial para a

possibilidade de os consumidores poderem participar natildeo apenas no mercado

mas tambeacutem na proacutepria vida social353 pelo que a questatildeo da

353 OLHA CHEREDNYCHENKO ldquoFundamental Rights European Private Law and

Financial Servicesrdquo 09092013 disponiacutevel em httpssrncom abstract=2475762

(12012016) p 186

154

constitucionalizaccedilatildeo do direito privado parece ser particularmente relevante

nestas aacutereas

3 Vamos entatildeo comeccedilar por tratar a questatildeo da vinculaccedilatildeo dos

particulares aos direitos fundamentais e vamos fazecirc-lo tendo em consideraccedilatildeo

o ordenamento juriacutedico portuguecircs Apesar de a nossa Constituiccedilatildeo referir

expressamente a vinculaccedilatildeo das entidades privadas no nordm 1 do artigo 18ordm tem-

se entendido que esta norma natildeo eacute inteiramente conclusiva

Quanto a esta problemaacutetica as teorias tradicionalmente defendidas satildeo

as teorias monistas as dualistas e a teoria dos deveres de protecccedilatildeo Em termos

sucintos354 as teorias monistas defendem que os direitos fundamentais satildeo

directamente aplicaacuteveis nas relaccedilotildees juriacutedicas privadas ou seja natildeo carecem

da mediaccedilatildeo de disposiccedilotildees de direito privado para que possam ser opostas a

particulares Esta doutrina foi formulada pela primeira vez por Nipperdey na

altura presidente do Bundesarbeitsgericht (BAG) De facto a geacutenese e o

desenvolvimento mais fecundo da teoria da vinculaccedilatildeo dos particulares aos

direitos fundamentais teve como cenaacuterio o campo das relaccedilotildees laborais o que

bem se compreende atendendo ao desequiliacutebrio de forccedilas que caracteriza esse

tipo de relaccedilotildees355

Jaacute as teorias da eficaacutecia mediata desenvolveram-se a partir da

formulaccedilatildeo de Duumlrig e defendem que a influecircncia dos direitos fundamentais eacute

apenas indirecta e deveraacute levar-se a cabo principalmente atraveacutes da

densificaccedilatildeo de claacuteusulas gerais e conceitos indeterminados do direito

privado356

Para a teoria dos deveres de protecccedilatildeo os direitos fundamentais

vinculam apenas os entes puacuteblicos mas estes para aleacutem do dever de os

respeitar e concretizar tecircm ainda a responsabilidade de os proteger contra

quaisquer ameaccedilas ainda que essas ameaccedilas resultem da actividade de outros

particulares Parte-se aqui da distinccedilatildeo entre direitos fundamentais enquanto

354 Mais desenvolvidamente ver BENEDITA MAC CRORIE A Vinculaccedilatildeo dos Particulares

aos Direitos Fundamentais Almedina Coimbra 2005 IDEM Os limites da renuacutencia a

direitos fundamentais nas relaccedilotildees entre particulares Almedina Coimbra 2013 355 JUAN MARIacuteA BILBAO UBILLOS ldquoEn queacute medida vinculan a los particulares los

derechos fundamentalesrdquo in INGO WOLFGANG SARLET (org) Constituiccedilatildeo Direitos

Fundamentais e Direito Privado cit pp 302 ndash 305 356 GUumlNTER DUumlRIG ldquoGrundrechte und Zivilrechtsprechungrdquo in THEODOR MAUNZ

(org) Vom Bonner Grundgesetz zur gesamtdeutschen Verfassung Festschrift zum 75

Geburtstag von Hans Nawiasky Isar Verlag Muumlnchen 1956 pp 176 ndash 177 IDEM ldquoArt 1rdquo

in THEODOR MAUNZ ndash GUumlNTER DUumlRIG Grundgesetz Kommentar Verlag C H Beck

Muumlnchen 1997 pp 66 - 68 tambeacutem ROBERT ALEXY Teoria de los derechos

fundamentales Centro de Estudios Constitucionales Madrid 1993 pp 511 ndash 512

155

direitos de defesa em relaccedilatildeo ao Estado e direitos fundamentais enquanto

deveres de protecccedilatildeo357 Canaris eacute um dos principais defensores desta teoria

na sua aplicaccedilatildeo agraves relaccedilotildees juriacutedicas privadas Segundo ele o destinataacuterio

deste dever de protecccedilatildeo nas relaccedilotildees entre particulares eacute o legislador de

Direito Civil e particularmente o julgador do Direito Civil358

No caso que estivemos a analisar a decisatildeo do Tribunal Constitucional

Federal alematildeo seguiu precisamente esta perpectiva de Canaris quanto agrave

problemaacutetica da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentais

partindo de uma ideia de deveres de protecccedilatildeo do Estado Natildeo eacute esta a

perspectiva que seguimos quanto agrave problemaacutetica da vinculaccedilatildeo dos

particulares aos direitos fundamentais uma vez que entendemos que do art

18ordm da CRP decorre uma ldquovinculaccedilatildeo directa prima facierdquo na linha do que

tem vindo a ser defendido por Ingo Wolfgang Sarlet359 dos particulares aos

direitos fundamentais

Mas independentemente da posiccedilatildeo adoptada hoje a existecircncia de uma

vinculaccedilatildeo dos particulares seja qual for a sua forma e o seu alcance eacute

inquestionaacutevel E apesar das divergecircncias entre as teorias referidas na praacutetica

estas conduzem muitas vezes ao mesmo resultado360 ainda que possa haver

alguma diferenccedila no que se refere ao alcance do papel do juiz na ausecircncia de

lei ordinaacuteria Neste uacuteltimo caso enquanto a teoria da eficaacutecia imediata aplicaraacute

o direito fundamental constitucionalmente consagrado em quaisquer

357 JOAtildeO JOSEacute NUNES ABRANTES A vinculaccedilatildeo das entidades privadas aos direitos

fundamentais Associaccedilatildeo Acadeacutemica da Faculdade de Direito de Lisboa 1990 pp 96 e 97

JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 4ordf Ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2009 p 248 358 CLAUS-WILHELM CANARIS Direitos Fundamentais e Direito Privado Almedina

Coimbra 2003 pp 39 ndash 43 359 INGO WOLFGANG SARLET ldquoDireitos Fundamentais e Direito Privado algumas

consideraccedilotildees em torno da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentaisrdquo in INGO

WOLFGANG SARLET (org) A Constituiccedilatildeo concretizada Livraria do Advogado Editora

Porto Alegre 2000 p 157 Considerando tambeacutem que nas relaccedilotildees entre particulares a

vinculaccedilatildeo dos particulares sem deixar de ser directa eacute neste acircmbito e dimensatildeo menos

absoluta ver JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO O problema do contrato As claacuteusulas

contratuais gerais e o princiacutepio da liberdade contratual Almedina Coimbra 1999 p 137 360 JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 cit p 246 JORGE MIRANDA Manual de Direito Constitucional

Tomo IV 4ordf Ediccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra p 303

156

circunstacircncias a teoria dos deveres de protecccedilatildeo apenas o faraacute quando esteja

em causa um deacutefice de protecccedilatildeo (Untermassverbot)361

Para a reflexatildeo de hoje natildeo eacute muito relevante a posiccedilatildeo que se adopte

seja a teoria dos deveres de protecccedilatildeo ou da vinculaccedilatildeo directa dos particulares

aos direitos fundamentais na medida em que a ideia central a reter eacute a de que

os direitos fundamentais podem assumir um papel no controlo que se faz aos

contratos celebrados entre particulares e particularmente nos contratos de

longa duraccedilatildeo

Ainda assim em defesa da vinculaccedilatildeo directa dos particulares aos

direitos fundamentais apenas dizer que esta natildeo implica ldquonegar ou subestimar

o efeito de irradiaccedilatildeo desses direitos atraveacutes da leirdquo Eacute de facto o legislador

quem em primeira linha deve resolver as situaccedilotildees de conflito de direitos

fundamentais que possam surgir362 Eacute muito diferente ldquoafirmar que as normas

de direitos fundamentais tecircm eficaacutecia normativa no acircmbito das relaccedilotildees entre

particulares sendo os cidadatildeos titulares de tais direitos reconhecidos na

Constituiccedilatildeo tambeacutem nas suas relaccedilotildees juriacutedico-privadasrdquo ou considerar ldquoque

a Constituiccedilatildeo eacute por si soacute o instrumento adequado e auto-suficiente para

regular a vigecircncia dos direitos fundamentais no seio de tais relaccedilotildeesrdquo363

Esta perspectiva tambeacutem natildeo infirma a existecircncia de um dever de

protecccedilatildeo do Estado que o vincula a proteger os particulares de ofensas ou

ameaccedilas aos seus direitos fundamentais cometidas por terceiros uma vez que

este dever natildeo eacute incompatiacutevel ou contraditoacuterio com a ideia de vinculaccedilatildeo

imediata O que nos parece eacute que para aleacutem disso poderaacute ainda existir uma

vinculaccedilatildeo imediata dos particulares a estes direitos364 Trata-se de ldquouma

inequiacutevoca zona de confluecircncia entre a vinculaccedilatildeo do poder puacuteblico (hellip) e a

vinculaccedilatildeo - directa - dos particularesrdquo365

361 JORGE REIS NOVAIS ldquoOs direitos fundamentais nas relaccedilotildees juriacutedicas entre

particularesrdquo in JORGE REIS NOVAIS Direitos Fundamentais Trunfos contra a Maioria

Almedina Coimbra 2006 pp 74 e 75 362 JUAN MARIacuteA BILBAO UBILLOS ldquoEn queacute medida vinculan a los particulares los

derechos fundamentalesrdquo cit p 317 363 RAFAEL SARAZAacute JIMENEZ Jueces Derechos Fundamentales y Relaciones entre

Particulares Universidad de La Rioja Logrontildeo 2008 disponiacutevel in dialnetuniriojaes p

691 364 DANIEL SARMENTO Direitos Fundamentais e Relaccedilotildees Privadas Editora Luacutemen Juris

Rio de Janeiro 2004 p 287 365 INGO WOLFGANG SARLET ldquoDireitos Fundamentais e Direito Privado algumas

consideraccedilotildees em torno da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentaisrdquo cit p 147

JOSEacute JOAQUIM GOMES CANOTILHO ndash VITAL MOREIRA Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica

Portuguesa Anotada Vol I Coimbra Editora Coimbra 2007 p 387 entendem que ldquonatildeo eacute a

157

Por outro lado o facto de se admitir uma vinculaccedilatildeo dos particulares

aos direitos fundamentais natildeo significa que estes natildeo devam poder dispor das

posiccedilotildees juriacutedicas subjectivas protegidas pelas normas de direitos

fundamentais Admitir-se a vinculaccedilatildeo directa tem como consequecircncia apenas

que se teraacute de analisar a relaccedilatildeo juriacutedico-privada atraveacutes dos direitos

fundamentais

Assim a autonomia privada deve ser de facto interpretada no sentido

de se permitir que as pessoas se vinculem nos termos em que em consciecircncia

pretendam fazecirc-lo Mas tendo em conta a importacircncia dos contratos de longa

duraccedilatildeo para a proacutepria existecircncia da pessoa pensamos que eacute fundamental que

haja uma preocupaccedilatildeo acrescida quanto agrave influecircncia que os direitos

fundamentais devem ter nesta mateacuteria particularmente para garantir que as

pessoas fazem as suas opccedilotildees efectivamente em condiccedilotildees de plena liberdade

e que mantecircm a liberdade depois de terem feito essas mesmas opccedilotildees

Vimos que no caso que analisaacutemos o Tribunal Constitucional Federal

alematildeo considerou que a sede da protecccedilatildeo constitucional da autonomia

privada reside no direito ao livre desenvolvimento da personalidade Entre noacutes

natildeo haacute consenso quanto agrave norma ou normas constitucionais das quais deriva a

garantia da autonomia individual (poderaacute eventualmente ser de distinguir entre

liberdade geral de acccedilatildeo e liberdade contratual considerando que a liberdade

contratual natildeo decorre directamente de um direito ao desenvolvimento da

personalidade ainda que possa estar impliacutecita em diversas disposiccedilotildees

constitucionais como eacute o caso da garantia do direito de propriedade privada

a garantia da existecircncia de um sector privado dos meios de produccedilatildeo e da

iniciativa econoacutemica privada a liberdade de exerciacutecio de profissatildeo e a

liberdade de constituir famiacutelia)366 Independentemente disso a autonomia

privada eacute protegida a niacutevel constitucional e a partir do momento em que

mesma coisa falar-se em vinculaccedilatildeo imediata de entidades privadas (hellip) ou em dever de

protecccedilatildeo (hellip) dos direitos liberdades e garantias dos privados contra privados atraveacutes do

Estadordquo 366 Quanto agrave questatildeo de saber de que forma a autonomia privada eacute protegida pela Constituiccedilatildeo

ver ANA PRATA A tutela constitucional da autonomia privada Almedina Coimbra 1982

pp 75 e 214 - 216 Tambeacutem JOAtildeO CAUPERS Os direitos fundamentais dos trabalhadores

e a Constituiccedilatildeo Lisboa 1985 pp 168 - 169 JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO O problema

do contrato As claacuteusulas contratuais gerais e o princiacutepio da liberdade contratual cit pp

147 - 148 GUILHERME MACHADO DRAY O princiacutepio da igualdade no Direito do

Trabalho Almedina Coimbra 1999 pp 177 e 178 JORGE MIRANDA Manual de Direito

Constitucional cit pp 74 e 326 PAULO MOTA PINTO ldquoO direito ao livre

desenvolvimento da personalidaderdquo in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de

Coimbra Coimbra Editora 1999 pp 199 ndash 206

158

consideramos que a autonomia privada goza de protecccedilatildeo jusfundamental os

particulares estatildeo tambeacutem vinculados ao seu respeito ou o Estado tem um

dever de proteger esta autonomia seja o Estado legislador seja o Estado Juiz

O facto de entendermos que haacute uma vinculaccedilatildeo dos particulares aos

direitos fundamentais natildeo implica que deva haver uma equiparaccedilatildeo total entre

pessoas puacuteblicas e privadas Sendo ambas as partes do conflito titulares de

direitos fundamentais a sua soluccedilatildeo dependeraacute sempre das circunstacircncias do

caso concreto e dos direitos fundamentais em causa tendo de se levar a cabo

uma ponderaccedilatildeo de bens ou valores367 que foi exactamente o que fez o

Tribunal Constitucional Federal alematildeo

Ora um dos criteacuterios fundamentais a ter em conta nessa ponderaccedilatildeo eacute

o grau de desigualdade faacutectica entre as partes368 Quanto mais uma das partes

da relaccedilatildeo se encontre numa posiccedilatildeo de supremacia maior seraacute a sua

vinculaccedilatildeo ao respeito do direito fundamental em causa e maior seraacute o dever

do Estado de garantir que efectivamente o que estaacute em causa eacute ainda um

exercicio de autonomia e natildeo uma conduta heterodeterminada Entre iguais a

regra deve ser o princiacutepio da liberdade natildeo sendo em princiacutepio de aplicar neste

domiacutenio criteacuterios de proporcionalidade369

No caso Buumlrgschaft o Tribunal Constitucional Federal alematildeo diz

expressamente que ldquose o conteuacutedo do contrato for excessivamente oneroso

para a parte mais fraca e desproporcionado natildeo devem os juiacutezes ater-se agrave ideia

de que contrato eacute contratordquo A desigualdade das partes foi neste caso

considerada decisiva para o Tribunal no reconhecimento de uma violaccedilatildeo ao

direito ao livre desenvolvimento da personalidade

4 Passando agora para a segunda questatildeo que eacute a de saber se eacute

legiacutetimo em Estado de Direito democraacutetico que o Estado assuma uma posiccedilatildeo

367 INGO WOLFGANG SARLET ldquoDireitos Fundamentais e Direito Privado algumas

consideraccedilotildees em torno da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentaisrdquo cit p 157 368 DANIEL SARMENTO Direitos Fundamentais e Relaccedilotildees Privadas cit pp 302 e 375 369 Nesse sentido JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO O Problema do Contrato As Claacuteusulas

Contratuais Gerais e o Princiacutepio da Liberdade Contratual cit p 138 JOSEacute CARLOS

VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo Portuguesa de 1976

cit p 314 PAULO MOTA PINTO ldquoO direito ao livre desenvolvimento da personalidaderdquo

cit p 234 entende que ldquoo acordo dos particulares eacute no domiacutenio juriacutedico-privado

considerado determinante para a ponderaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo do peso relativo de certos bens

sobretudo no domiacutenio patrimonialrdquo Obviamente desde que respeitados os ldquolimites positivos

e negativosrdquo da liberdade contratual

159

paternalista de defesa da pessoa contra si proacutepria ou pelo menos em que

situaccedilotildees eacute que poderaacute ser de admitir essa defesa370

Um dos problemas fundamentais com que o Direito tem

inelutavelmente de se confrontar eacute o de estabelecer um compromisso entre os

valores em que uma dada comunidade se revecirc e visa prosseguir e a liberdade

dos indiviacuteduos de poderem escolher o modo de vida que pretendem levar371

Admitir-se a defesa da pessoa contra si proacutepria implica que se entenda que eacute

legiacutetimo o Estado proteger os direitos fundamentais do indiviacuteduo para o seu

proacuteprio bem e contra a sua vontade quando natildeo se lesam quaisquer bens de

terceiros ou da comunidade Haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre a defesa da pessoa

contra si mesma e o paternalismo estadual372 na medida em que se considera

paternalista um comportamento do Estado que visa impor protecccedilatildeo

independentemente da questatildeo de saber se essa protecccedilatildeo eacute ou natildeo desejada

pela pessoa protegida

Ora se se restringe a autonomia privada para o bem dos proacuteprios

cidadatildeos por se considerar que estes poderatildeo natildeo ter em devida conta as

consequecircncias desse acto de disposiccedilatildeo estamos perante uma medida

paternalista

Haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre a defesa de um mais ou menos abrangente

dever de protecccedilatildeo do Estado e a interpretaccedilatildeo do princiacutepio da dignidade da

pessoa humana previsto na CRP que se preconiza Na base da protecccedilatildeo da

pessoa contra si mesma encontra-se uma concepccedilatildeo de dignidade enquanto

princiacutepio que natildeo soacute envolve o reconhecimento da liberdade individual mas

370 Sobre esta questatildeo ver mais desenvolvidamente Benedita Mac Crorie Os limites da

renuacutencia a direitos fundamentais nas relaccedilotildees entre particulares cit e tambeacutem Benedita Mac

Crorie ldquoO paternalismo estadual e a legitimidade da defesa da pessoa contra si proacutepriardquo in

AAVV Anuaacuterio Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho Tomo I - Ano de

2012 ndash Responsabilidade e Cidadania Escola de Direito da Universidade do Minho

Departamento de Ciecircncias Juriacutedicas Puacuteblicas Braga 2012 pp 33 ndash 45 (e-book ISBN 978-

989-97970-0-0 disponiacutevel in httpsissuucomeduminhodocsfinal_

responsabilidade_e_cidadania106) 371 MARIA CELINA BODIN DE MORAES ldquoO conceito de dignidade humana substrato

axioloacutegico e conteuacutedo normativordquo in INGO WOLFGANG SARLET (org) Constituiccedilatildeo

Direitos Fundamentais e Direito Privado Livraria do Advogado Editora Porto Alegre 2003

pp 108 e 109 372 Quando o Estado age de modo paternalista em relaccedilatildeo aos seus cidadatildeos podemos falar de

paternalismo estadual ou seguindo a expressatildeo inglesa legal paternalism de paternalismo

juriacutedico KAI MOumlLLER Paternalismus und Persoumlnlichkeitsrecht Duncker amp Humblot

Berlin 2005 pp 11

160

que tambeacutem pode justificar restriccedilotildees ao exerciacutecio das liberdades

individuais373

Pensamos que a dignidade natildeo deve ser entendida como um valor

objectivo que se pode inclusivamente opor agrave proacutepria vontade do indiviacuteduo

De facto justificar a defesa da pessoa contra si proacutepria invocando o princiacutepio

da dignidade corresponderia a aplicar este princiacutepio contra a finalidade da sua

consagraccedilatildeo pois a dignidade traduz-se precisamente na possibilidade de o

indiviacuteduo escolher em liberdade o rumo que pretende seguir na sua vida374 Se

o princiacutepio da dignidade for entendido neste sentido soacute em casos extremos

poderaacute justificar restriccedilotildees da liberdade seja quando estamos a falar de

pessoas que natildeo tecircm capacidade de autodeterminaccedilatildeo seja quando possa estar

em causa a possibilidade de ldquoautodeterminaccedilatildeo futurardquo375

Talvez natildeo seja no entanto de excluir que nas situaccedilotildees em que seja

particularmente difiacutecil avaliar a existecircncia ou ausecircncia de autodeterminaccedilatildeo e

haja uma forte presunccedilatildeo de natildeo-voluntariedade se equacione a possibilidade

de pressupor essa ausecircncia376 Poderatildeo pois excepcionalmente admitir-se

restriccedilotildees graccedilas ao custo associado com a determinaccedilatildeo de autonomia caso a

caso377 embora este tipo de soluccedilotildees mais gerais possam conduzir a situaccedilotildees

injustas

373 JEAN-PHILIPPE FELDMAN ldquoFaut-il proteacuteger lrsquohomme contre lui-mecircme La digniteacute

lrsquoindividu et la personne humainerdquo in Droits nordm 48 2009 pp 88 e 89 374 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoInconstitucionalidade do Artigo 6ordm da Lei sobre

a Colheita e Transplante de Oacutergatildeos e Tecidos de Origem Humanardquo in Scientia Iuridica nordms

286288 2000 pp 260 e 261 375 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo ldquoRenuacutencia a direitos

fundamentaisrdquo in JORGE MIRANDA (org) Perspectivas Constitucionais ndash Nos 20 anos da

Constituiccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra 1996 pp 327 e 330 Considerando tambeacutem que soacute

em situaccedilotildees limite eacute que a dignidade pode servir para restringir a liberdade ver ANSGAR

OHLY ldquoVolenti non fit iniuriardquo ndash die Einwilligung im Privatrecht Mohr Siebeck Tuumlbingen

2002 p 104 376 JESSICA WILEN BERG ldquoUnderstanding waiverrdquo in Houston Law Review Vol 40 nordm

281 2003 httppapersssrncomsol3paperscfmAbstract_id=614522 (28012016) p 299

sustenta que uma das razotildees para limitar a possibilidade de renuacutencia eacute precisamente o grau de

dificuldade que pode implicar a prova de que a renuacutencia preenche ldquoo grau de autonomia

exigido em cada casordquo MARGARET JANE RADIN ldquoMarket Inalienabilityrdquo in Harvard

Law Review Vol 100 nordm 8 19861987 pp 1909 e 1910 entende que algumas restriccedilotildees

impostas agrave possibilidade de venda de certos bens no mercado decorrem das grandes

dificuldades que implica avaliar todas as transacccedilotildees de modo a aferir se o consentimento eacute

verdadeiramente livre 377 JESSICA WILEN BERG ldquoUnderstanding waiverrdquo cit p 325

161

Assim entende-se que a opccedilatildeo por correr determinados riscos se insere

no ldquoprojeto de vidardquo do proacuteprio indiviacuteduo projecto que deve ser escolhido

livremente de acordo com as suas convicccedilotildees pessoais porquanto em

ldquosociedades pluraisrdquo natildeo eacute ldquodesejaacutevel uma absoluta uniformizaccedilatildeo dos

comportamentos individuaisrdquo378 Assim quando o sujeito se coloca em perigo

ou mesmo quando provoca uma lesatildeo no seu direito sendo ele capaz e estando

em causa um comportamento autodeterminado trata-se ainda do gozo de

liberdade jusfundamentalmente protegida Numa sociedade democraacutetica e

pluralista deve haver ldquoum direito a errar a tomar maacutes decisotildees e a correr

riscosrdquo sem o qual ldquotoda a ideia de autodeterminaccedilatildeo perderia sentidordquo379

Natildeo se coaduna por isso com a imagem de Homem pressuposta na

Constituiccedilatildeo uma concepccedilatildeo que partindo de uma ideia de deveres de

protecccedilatildeo do Estado considera que este tem legitimidade para proteger o

indiviacuteduo de si proacuteprio380

Parece-nos relevante e aplicaacutevel agrave concepccedilatildeo de dignidade que aqui

defendemos a perspectiva de Martha Nussbaum no seu livro ldquoCreating

capabilities the Human Development Approachrdquo Neste livro a autora defende

que o grau de desenvolvimento de uma sociedade e o respeito pela dignidade

dos seus cidadatildeos natildeo se deve medir pelo seu PIB mas antes pela resposta agrave

seguinte questatildeo o que eacute capaz de fazer e ser cada pessoa Esta eacute uma

perspectiva pluralista quanto a valores porque tem como objectivo criar

capacidades mas natildeo impor que as pessoas as utilizem de facto e a ideia baacutesica

que defende eacute a de que certas condiccedilotildees de vida proporcionam agraves pessoas uma

vida que eacute merecedora da dignidade que elas possuem Assim a dignidade eacute

inerente agrave pessoa o que implica uma ideia de que todos somos dotados de

378 HELENA PEREIRA DE MELO ldquoA Igualdade de Oportunidades para Quem Opta pela

ldquoEstrada do Tabacordquo in RUI NUNES ndash MIGUEL RICOU ndash CRISTINA NUNES (orgs)

Dependecircncias Individuais e Valores Sociais Graacutefica de Coimbra Coimbra 2004 p 163 379 JOEL FEINBERG Harm to Self The Moral Limits of the Criminal Law Oxford University

Press New York Oxford 1986 p 62 380 Nesse sentido referindo-se agrave Constituiccedilatildeo alematilde MARTINA DOROTHEE EPPELT

Grundrechtsverzicht und Humangenetik GCA-Verlag Herdecke 1999 pp 203 e 204

tambeacutem CHRISTIAN HILLGRUBER Der Schutz des Menschen vor sich selbst Verlag Franz

Vahlen Muumlnchen 1992 p 147 JOSEF ISENSEE ldquoDas Grundrecht als Abwehrrecht und als

staatliche Schutzpflichtrdquo in JOSEF ISENSEE ndash PAUL KIRCHHOF (orgs) Handbuch des

Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland Vol V 2ordf Ediccedilatildeo C F Muumlller Verlag

Heidelberg 2000 pp 203 KAI MOumlLLER Paternalismus und Persoumlnlichkeitsrecht Duncker

amp Humblot Berlin 2005 p 115

162

igual dignidade mas para aleacutem disso carece de ser desenvolvida atraveacutes da

criaccedilatildeo de capacidades381

Em conclusatildeo num Estado natildeo-paternalista que se funda na dignidade

da pessoa humana e no livre desenvolvimento da personalidade individual a

defesa da pessoa contra si mesma natildeo deve consequentemente justificar a

restriccedilatildeo de direitos fundamentais neste caso do direito agrave autonomia privada

Tal dever existe apenas em situaccedilotildees extremas ou quando a pessoa em causa

natildeo esteja em posiccedilatildeo de cuidar de si Sendo a autonomia um valor central na

nossa ordem juriacutedica e cabendo ao Estado criar condiccedilotildees de autonomia o

titular do direito natildeo deve poder consentir numa intervenccedilatildeo que lhe retire a

possibilidade de se autodeterminar livremente no futuro Parece-nos que o

caso analisado tambeacutem poderia ser visto sob esta perspectiva

Para aleacutem destas situaccedilotildees natildeo eacute de admitir uma ldquoprotecccedilatildeo impostardquo

que restrinja as possibilidades de actuaccedilatildeo do visado382 jaacute que tal protecccedilatildeo

implica uma violaccedilatildeo grave ldquoda presunccedilatildeo de liberdade que deriva do princiacutepio

da dignidade da pessoa humanardquo383 O que natildeo invalida evidentemente que

natildeo decorra da proacutepria norma ou normas constitucionais da qual ou das quais

deriva a protecccedilatildeo da autonomia privada deveres do estado de proteger essa

mesma autonomia legislando no sentido de garantir que esta seja

efectivamente exercida em condiccedilotildees de liberdade Tal pressupotildee por

exemplo que os contraentes sejam devidamente informados de todos os riscos

inerentes agrave celebraccedilatildeo de determinados contratos isto eacute haacute um dever de

protecccedilatildeo do legislador que se deve reflectir no estabelecimento de garantias

quanto agrave obtenccedilatildeo de um consentimento que seja verdadeiramente livre e

esclarecido

381 MARTHA NUSSBAUM Creating capabilities the Human Development Approach

Harvard University Press 2011 pp 18 ss 382 WERNER FROTSCHER ldquorsquoBig Brotherrsquo und das deutsche Rundfunkrechtrdquo in

Schriftenreihe der LPR Hessen nordm 12 2000 p 43 Considerando que a defesa da pessoa

contra a autolesatildeo natildeo estaacute incluiacuteda no dever de protecccedilatildeo estadual ver JOSEF ISENSEE

ldquoDas Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflichtrdquo cit p 190 383 CARLA AMADO GOMES ldquoEstado Social e concretizaccedilatildeo de direitos fundamentais na

era tecnoloacutegica algumas verdades inconvenientesrdquo in Scientia Iuridica Tomo LXLL nordm 315

2008 p 423

163

Os princiacutepios gerais sobre os contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa (life time contracts)

Alguns toacutepicos

Joseacute Joatildeo Abrantes

1 INTRODUCcedilAtildeO

A oportunidade de um coloacutequio sobre life time contracts contratos

laquoexistenciaisraquo contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa life

time contracts a ignorada dimensatildeo social do direito europeu dos contratos

por exemplo no DCFR criacutetica

2 JUSTICcedilA SOCIAL E CONTRATO

De Fouilleacute (laquoqui dit contractuel dit justeraquo) agrave actualidade - i eacute da

autonomia da vontade e da liberdade contratual sem limites a um novo

conceito de contrato marcado pelo cercear crescente daquela autonomia e

daquela liberdade Da liberdade abstracta agrave liberdade concreta A

funcionalizaccedilatildeo dos direitos e do contrato Um contrato laquomenos contratualraquo

(Josserand)

Da afirmaccedilatildeo da igualdade juriacutedico-formal dos contraentes ao

reconhecimento da sua desigualdade real Dos coacutedigos civis oitocentistas agrave

criacutetica do liberalismo (vg com Otto von Gierke Philipp Lotmar e Anton

Menger entre outros) e agrave laquocrise do contratoraquo A entrada em cena da justiccedila

social

3 A PROTECCcedilAtildeO DO CONTRAENTE DEacuteBIL

Momentos diferenciados dessa protecccedilatildeo mdash numa primeira fase a

debilidade contratual encarada apenas como caracteriacutestica individual do

contraente daiacute a resposta para o problema aparecer centrada sobretudo nas

teorias das incapacidades e dos viacutecios da vontade no regime dos negoacutecios

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

164

usuraacuterios (lesatildeo) nos institutos da imprevisatildeo e do abuso de direito etc mdash

mais tarde eacute que se passa a encarar essa debilidade como caracteriacutestica de

certas categorias de contraentes como o trabalhador o inquilino o comprador

a creacutedito ou a prestaccedilotildees o mutuaacuterio etc a tutela do aderente nas claacuteusulas

contratuais gerais (contratos de adesatildeo) garantia constitucional da autonomia

privada

4 JUSTICcedilA CONTRATUAL NOS CONTRATOS laquoEXISTENCIAISraquo VG NO

CONTRATO DE TRABALHO

Constitucionalizaccedilatildeo materializaccedilatildeo e socializaccedilatildeo do direito privado

A Constituiccedilatildeo como objektive Wertordnung e a eficaacutecia horizontal dos

direitos fundamentais (artordm 18ordm1 da CRP) Justiccedila social no direito dos

contratos breve referecircncia ao DCFR e agrave invalidade dos contracts infringing

fundamental principles (art II-7301) O caso do contrato de trabalho foi sob

a eacutegide da ideia de protecccedilatildeo do contraente deacutebil que o juslaboralismo ganhou

foros de cidadania em relaccedilatildeo ao direito civil Referecircncia aos artigos 14ordm e

seguintes do Coacutedigo do Trabalho algumas questotildees

165

Os contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos

essenciais como life time contracts

Jorge Morais Carvalho

1 ENQUADRAMENTO E SEQUEcircNCIA

O convite formulado pelo Prof Doutor Nuno Manuel Pinto Oliveira

para participar em coloacutequio sobre o tema em Braga no dia 15 de maio de

2015 foi o meu primeiro contacto com os Life Time Contracts384 que podem

ser designados em portuguecircs como contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa385

Pensei de imediato em estudar a aplicaccedilatildeo dos princiacutepios gerais sobre

Life Time Contracts aos contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos essenciais

suspeitando da sua relevacircncia neste acircmbito

Tal como na apresentaccedilatildeo feita no coloacutequio tambeacutem neste texto

depois de indicar quais satildeo face agrave lei portuguesa os contratos de prestaccedilatildeo de

serviccedilos puacuteblicos essenciais ocupar-me-ei da questatildeo de saber se estes podem

ser qualificados como Life Time Contracts Nos pontos subsequentes tratarei

de dois problemas especiacuteficos que se colocam nos contratos de prestaccedilatildeo de

serviccedilos puacuteblicos essenciais ambos ligados agrave cessaccedilatildeo do contrato e que

podem e devem ser analisados agrave luz dos princiacutepios gerais sobre Life Time

Contracts Satildeo eles a cessaccedilatildeo do contrato pelo utente durante o denominado

periacuteodo de fidelizaccedilatildeo e a suspensatildeo e posterior cessaccedilatildeo do contrato pelo

prestador do serviccedilo

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Investigador do CEDIS

ndash Centro de Investigaccedilatildeo amp Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade 384 AAVV (coordenaccedilatildeo de Luca Nogler e Udo Reifner) Life Time Contracts Eleven

International Publishing The Hague 2014 385 Segundo a traduccedilatildeo feita pelo Prof Doutor Nuno Manuel Pinto Oliveira que seraacute seguida

ao longo do texto nas citaccedilotildees dos princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts

166

2 CONTRATOS DE PRESTACcedilAtildeO DE SERVICcedilOS PUacuteBLICOS ESSENCIAIS

Nos termos do artigo 9ordm-8 da Lei de Defesa do Consumidor386

ldquoincumbe ao Governo adotar medidas adequadas a assegurar o equiliacutebrio das

relaccedilotildees juriacutedicas que tenham por objeto bens e serviccedilos essenciais

designadamente aacutegua energia eleacutetrica gaacutes telecomunicaccedilotildees e transportes

puacuteblicosrdquo

A Lei nordm 2396387 regula certos aspetos dos contratos relativos a

serviccedilos puacuteblicos essenciais natildeo se aplicando apenas aos contratos de

consumo O regime tem um acircmbito subjetivo de aplicaccedilatildeo mais alargado Com

efeito o artigo 1ordm-1 refere-se ldquoagrave proteccedilatildeo do utenterdquo e o nordm 3 considera

ldquoutente para os efeitos previstos nesta lei a pessoa singular ou coletiva a quem

o prestador do serviccedilo se obriga a prestaacute-lordquo Assim o diploma aplica-se a

todos os contratos em que se verifique a prestaccedilatildeo de um serviccedilo puacuteblico

essencial independentemente da natureza juriacutedica ou da dimensatildeo do

utente388 Soacute no caso de o utente ser simultaneamente um consumidor nos

termos da Lei de Defesa do Consumidor389 por exemplo eacute que se trata de uma

relaccedilatildeo de consumo390 mas em todas as situaccedilotildees o objeto das normas tem

386 Lei nordm 2496 de 31 de julho (retificada pela Declaraccedilatildeo de Retificaccedilatildeo nordm 1696 de 13 de

novembro) alterada pela Lei nordm 8598 de 16 de dezembro pelo Decreto-Lei nordm 672003 de

8 de abril e pelas Leis nos 102013 de 28 de janeiro e 472014 de 28 de julho 387 Lei nordm 2396 de 26 de julho alterada pelas Leis nos 52004 de 10 de fevereiro 122008

de 26 de fevereiro 242008 de 2 de junho 62011 de 10 de marccedilo 442011 de 22 de junho

e 102013 de 28 de janeiro 388 ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO ldquoO Anteprojecto de Coacutedigo do Consumidorrdquo in O Direito

Ano 138ordm IV 2006 p 706 389 Segundo o artigo 2ordm-1 da Lei de Defesa do Consumidor ldquoconsidera-se consumidor todo

aquele a quem sejam fornecidos bens prestados serviccedilos ou transmitidos quaisquer direitos

destinados a uso natildeo profissional por pessoa que exerccedila com caraacuteter profissional uma

atividade econoacutemica que vise a obtenccedilatildeo de benefiacuteciosrdquo O conceito de consumidor pode ser

analisado com referecircncia a quatro elementos (embora alguns deles possam em determinadas

normas ficar vazios) elemento subjetivo elemento objetivo elemento teleoloacutegico e elemento

relacional (CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA Direito do Consumo Almedina Coimbra 2005

p 29 JORGE MORAIS CARVALHO Manual de Direito do Consumo 2ordf ediccedilatildeo Almedina

Coimbra 2014 p 15)Note-se que o elemento teleoloacutegico exclui do conceito todas as pessoas

fiacutesicas ou juriacutedicas que atuam no acircmbito de uma atividade profissional independentemente

de terem ou natildeo conhecimentos especiacuteficos no que respeita ao negoacutecio em causa Distinguem-

se neste elemento de forma clara os conceitos de consumidor e de utente 390 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Contratos Privadosrdquo in Estudos em

Homenagem agrave Professora Doutora Isabel de Magalhatildees Collaccedilo Vol II Almedina Coimbra

2002 p 123

167

uma grande afinidade com o direito do consumo consistindo tambeacutem na

proteccedilatildeo de uma das partes do contrato precisamente aquela que no contrato

em concreto natildeo tem conhecimentos especiacuteficos na aacuterea do serviccedilo em causa

Neste sentido justifica-se que esta mateacuteria seja normalmente incluiacuteda no

estudo do direito do consumo391

Apesar da referecircncia a serviccedilos puacuteblicos os contratos a que a Lei nordm

2396 se refere satildeo contratos de direito privado392 independentemente de o

prestador de serviccedilo ser uma entidade puacuteblica ou privada sendo competentes

para a resoluccedilatildeo dos litiacutegios os tribunais comuns e natildeo os tribunais

administrativos393 Estes contratos satildeo atualmente celebrados na maioria dos

casos com exceccedilatildeo dos serviccedilos de fornecimento de aacutegua de gestatildeo de

resiacuteduos soacutelidos urbanos e de recolha e tratamento de aacuteguas residuais geridos

em regra pelos municiacutepios entre os utentes e as empresas privadas que prestam

os serviccedilos previstos no diploma ainda que no acircmbito de um contrato de

concessatildeo394 O artigo 1ordm-4 aditado pela Lei nordm 122008 esclarece que se

considera prestador de serviccedilo ldquotoda a entidade puacuteblica ou privada que preste

ao utente qualquer dos serviccedilos [hellip] independentemente da sua natureza

juriacutedica do tiacutetulo a que o faccedila ou da existecircncia ou natildeo de contrato de

concessatildeordquo

O caraacuteter puacuteblico dos serviccedilos estaacute essencialmente relacionado com o

interesse geral nestes serviccedilos que devem estar acessiacuteveis ao puacuteblico na sua

391 ANTOacuteNIO PINTO MONTEIRO ldquoA Protecccedilatildeo do Consumidor de Serviccedilos de

Telecomunicaccedilotildeesrdquo in As Telecomunicaccedilotildees e o Direito na Sociedade da Informaccedilatildeo

Instituto Juriacutedico da Comunicaccedilatildeo Coimbra 1999 p 141 MAFALDA MIRANDA BARBOSA

ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais Taxatividade ou Caraacutecter

Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de 26 de julhordquo in Estudos de Direito

do Consumidor nordm 6 2004 p 407 392 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Contratos Privadosrdquo in Estudos em

Homenagem agrave Professora Doutora Isabel de Magalhatildees Collaccedilo Vol II Almedina Coimbra

2002 p 124 Contra ALEXANDRA LEITAtildeO ldquoA Protecccedilatildeo dos Consumidores no Sector das

Telecomunicaccedilotildeesrdquo in Estudos do Instituto de Direito do Consumo Vol I 2002 p 147 393 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 29 de maio de 2014 Processo nordm

167178120IYPRT-AP1 (Judite Pires) 394 ANTOacuteNIO PINTO MONTEIRO ldquoA Protecccedilatildeo do Consumidor de Serviccedilos Puacuteblicos

Essenciaisrdquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 2 2000 p 340 MAFALDA MIRANDA

BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais Taxatividade ou

Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de 26 de julhordquo in Estudos de

Direito do Consumidor nordm 6 2004 p 422

168

globalidade Neste sentido seria porventura preferiacutevel a referecircncia a serviccedilos

de interesse geral em detrimento de serviccedilos puacuteblicos essenciais395

O requisito da essencialidade remete principalmente para a sua

relevacircncia na vida dos cidadatildeos embora possa ser objeto de criacuteticas396

No que respeita aos serviccedilos abrangidos deve atender-se agrave lista do

artigo 1ordm-2 da Lei nordm 2396 Apesar de se debater acerca do caraacuteter taxativo

ou meramente exemplificativo da lista397 eacute muito duvidoso que face agrave letra

do preceito (ldquosatildeo os seguintes os serviccedilos puacuteblicos abrangidosrdquo) possam ser

acrescentados serviccedilos na sequecircncia de simples determinaccedilatildeo por via

interpretativa da sua natureza de serviccedilo puacuteblico essencial398

Na redaccedilatildeo originaacuteria o diploma aplicava-se aos serviccedilos de

fornecimento de aacutegua de energia eleacutetrica de gaacutes e de telefone estabelecendo

o artigo 13ordm-2 que ldquoa extensatildeo das regras [hellip] aos serviccedilos de

telecomunicaccedilotildees avanccediladas bem como aos serviccedilos postais ter[ia] lugar no

prazo de 120 dias mediante Decreto-Lei ouvidas as entidades representativas

dos respetivos sectoresrdquo o que soacute veio a suceder em 2008

O artigo 127ordm-2 da Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas399 excluiu o

serviccedilo de telefone do acircmbito de aplicaccedilatildeo da Lei nordm 2396 Esta situaccedilatildeo foi

retificada pela Lei nordm 122008 que alterou o artigo 1ordm-2 alargando a lista dos

395 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Contratos Privadosrdquo in Estudos em

Homenagem agrave Professora Doutora Isabel de Magalhatildees Collaccedilo Vol II Almedina Coimbra

2002 p 139 ELIONORA CARDOSO Os Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais ndash A Sua Problemaacutetica no

Ordenamento Juriacutedico Portuguecircs Coimbra Editora Coimbra 2010 p 137 396 ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO ldquoO Anteprojecto de Coacutedigo do Consumidorrdquo in O Direito

Ano 138ordm IV 2006 p 707 397 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Contratos Privadosrdquo in Estudos em

Homenagem agrave Professora Doutora Isabel de Magalhatildees Collaccedilo Vol II Almedina Coimbra

2002 pp 140 e 141 MAFALDA MIRANDA BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos

Puacuteblicos Essenciais Taxatividade ou Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm

2396 de 26 de julhordquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 6 2004 p 423 398 ANTOacuteNIO PINTO MONTEIRO ldquoA Protecccedilatildeo do Consumidor de Serviccedilos Puacuteblicos

Essenciaisrdquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 2 2000 p 339 MAFALDA MIRANDA

BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais Taxatividade ou

Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de 26 de julhordquo in Estudos de

Direito do Consumidor nordm 6 2004 p 414 399 Lei nordm 52004 de 10 de fevereiro (retificada pela Declaraccedilatildeo de Retificaccedilatildeo nordm 32-A2004

de 10 de abril) alterada pelo Decreto-Lei nordm 1762007 de 8 de maio pela Lei nordm 352008 de

28 de julho pelos Decretos-Leis nos 1232009 de 21 de maio e 2582009 de 25 de setembro

e pelas Leis nos 462011 de 24 de junho 512011 de 13 de setembro 102013 de 28 de

janeiro e 422013 de 3 de julho

169

serviccedilos puacuteblicos essenciais a que o diploma se aplica Aleacutem de o serviccedilo de

telefone se encontrar novamente abrangido pelo regime400 incluindo

naturalmente todos os serviccedilos ligados a telefone fixo ou moacutevel como as

mensagens escritas401 este acolhe ainda todos os outros serviccedilos relativos a

comunicaccedilotildees eletroacutenicas (em especial Internet e televisatildeo por cabo402) e os

serviccedilos postais de recolha e tratamento de aacuteguas residuais e de gestatildeo de

resiacuteduos soacutelidos urbanos

Em relaccedilatildeo ao telefone discutia-se face agrave redaccedilatildeo originaacuteria se os

serviccedilos relativos aos telemoacuteveis se encontravam abrangidos pelo regime

questatildeo que se encontra atualmente resolvida em sentido afirmativo pela

referecircncia a comunicaccedilotildees eletroacutenicas403

Quanto agrave compatibilizaccedilatildeo do regime da Lei nordm 2396 com o da Lei

das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas natildeo parecem levantar-se problemas teoacutericos

complexos uma vez que natildeo se verifica uma contradiccedilatildeo entre as normas dos

dois diplomas Os princiacutepios gerais previstos no regime dos serviccedilos puacuteblicos

essenciais constituem uma boa base para a interpretaccedilatildeo das normas

especiacuteficas sobre proteccedilatildeo dos utentes de serviccedilos relativos a comunicaccedilotildees

eletroacutenicas consagradas na Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas A grande

vantagem para o utente que resulta da aplicaccedilatildeo da Lei nordm 2396 a estes

contratos consiste na sujeiccedilatildeo dos prestadores de serviccedilos a normas que natildeo

encontram paralelo na Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas como a proibiccedilatildeo

de imposiccedilatildeo de consumos miacutenimos (artigo 8ordm) e em especial o

estabelecimento de um prazo de prescriccedilatildeo relativamente curto do direito de

exigir o pagamento do preccedilo do serviccedilo (artigo 10ordm)404

No que respeita agrave aacutegua agrave eletricidade e ao gaacutes note-se que o contrato

em causa natildeo consiste num simples fornecimento de uma quantidade

determinada caso em que se trataria de simples contratos de compra e venda

mas na disponibilizaccedilatildeo de um sistema de abastecimento que permite ao utente

400 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 4 de junho de 2013 Processo nordm

122618087YIPRTL1 (Rosa Maria Ribeiro Coelho) 401 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 20 de fevereiro de 2014 Processo nordm

155374124 YIPRTL1-8 (Luiacutes Correia de Mendonccedila) 402 ELIONORA CARDOSO Os Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais ndash A Sua Problemaacutetica no

Ordenamento Juriacutedico Portuguecircs Coimbra Editora Coimbra 2010 p 103 403 JOAtildeO CALVAtildeO DA SILVA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Essenciais Alteraccedilotildees agrave Lei nordm 2396 pelas

Leis nos 122008 e 242008rdquo in Revista de Legislaccedilatildeo e de Jurisprudecircncia Ano 137ordm nordm

3948 2008 p 168 404 MAFALDA MIRANDA BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos

Essenciais Taxatividade ou Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de

26 de julhordquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 6 2004 pp 414 e 415

170

a utilizaccedilatildeo de bem com as carateriacutesticas acordadas sempre que entenda

adequado sendo no entanto devida a quantidade efetivamente consumida405

Assim por exemplo o contrato que tem por objeto uma garrafa de aacutegua natildeo

pode ser qualificado como relativo a um serviccedilo puacuteblico essencial pois neste

caso o bem eacute vendido isoladamente fora de um sistema contiacutenuo de

fornecimento de aacutegua

3 OS CONTRATOS DE PRESTACcedilAtildeO DE SERVICcedilOS PUacuteBLICOS ESSENCIAIS

COMO LIFE TIME CONTRACTS

Os contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos essenciais satildeo sem

duacutevida contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa

Assim por um lado trata-se de contratos de execuccedilatildeo duradoura

Todos os serviccedilos atualmente consagrados na lista do artigo 1ordm-2 da

Lei 2396 pressupotildeem uma prestaccedilatildeo contiacutenua incluindo os serviccedilos postais

na parte que respeita agrave deslocaccedilatildeo diaacuteria do carteiro para entrega de

correspondecircncia

Esta eacute aliaacutes uma carateriacutestica essencial dos serviccedilos puacuteblicos

essenciais

Nos casos da aacutegua da eletricidade do gaacutes da televisatildeo por cabo e

parcialmente do telefone e da Internet o fornecimento resulta em regra de

contratos de execuccedilatildeo duradoura que tecircm por objeto uma prestaccedilatildeo de

execuccedilatildeo continuada a cargo do prestador do serviccedilo (fornecimento

permanente do bem ou do serviccedilo) e uma prestaccedilatildeo de execuccedilatildeo perioacutedica a

cargo do utente (pagamento do preccedilo)406

Estes contratos envolvem mais do que o simples fornecimento do bem

implicando um serviccedilo correspondente ao acesso a uma determinada rede pelo

que existe uma relaccedilatildeo duradoura unitaacuteria determinando-se as prestaccedilotildees

concretas em conformidade com o contrato e em regra consoante as

necessidades e os acessos do utente ao bem atraveacutes de atos materiais como

abrir a torneira acender a luz ou realizar uma chamada telefoacutenica Estes atos

405 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 28 de novembro de 2013 Processo nordm

35729119YIPRTL1-2 (Vaz Gomes) 406 MAFALDA MIRANDA BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos

Essenciais Taxatividade ou Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de

26 de julhordquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 6 2004 p 423 ANTUNES VARELA

Das Obrigaccedilotildees em Geral Vol I 10ordf ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2003 (reimpressatildeo da

ediccedilatildeo de 2000) pp 92 e 93

171

natildeo correspondem agrave aceitaccedilatildeo taacutecita de uma proposta de contrato resultante de

um contrato quadro anterior mas a um pedido (tambeacutem taacutecito) do utente do

qual deve resultar nos termos do contrato previamente celebrado o seu

cumprimento imediato e automaacutetico

A satisfaccedilatildeo do interesse das partes eacute permanente o que tambeacutem eacute

carateriacutestico dos Life Time Contracts

Por outro lado estes contratos satildeo ainda essenciais agrave existecircncia da

pessoa

Podem natildeo ter a mesma relevacircncia em termos da ponderaccedilatildeo do que

um contrato de creacutedito de arrendamento ou de trabalho que podem ter efeitos

mais prolongados no tempo mas os bens ou serviccedilos em causa satildeo

fundamentais para o nosso modo de vida

Considerando-se que ldquoos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia

da pessoa satildeo relaccedilotildees sociais que tecircm por objeto proporcionar ao indiviacuteduo

os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos necessaacuterios para a sua

autorrealizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialrdquo (ponto 11 dos

princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts) natildeo subsistem duacutevidas de que

numa primeira linha a aacutegua a eletricidade e o gaacutes satildeo bens sem os quais natildeo

podemos sentir-nos minimamente realizados e em segunda linha o mesmo se

pode concluir dos serviccedilos relativos a comunicaccedilotildees eletroacutenicas Com efeito

a autorrealizaccedilatildeo e a participaccedilatildeo na vida social passam em grande parte

atualmente pela comunicaccedilatildeo Sem meios para estabelecer comunicaccedilotildees

(telefone Internet televisatildeo etc) perde-se parte da forma como a existecircncia

eacute entendida na nossa sociedade

4 APLICACcedilAtildeO DOS PRINCIacutePIOS GERAIS SOBRE LIFE TIME CONTRACTS

A ALGUNS PROBLEMAS RELACIONADOS COM A CESSACcedilAtildeO DO

CONTRATO

Neste ponto o objetivo passa por testar os princiacutepios gerais sobre Life

Time Contracts a questotildees concretas relacionadas com a cessaccedilatildeo dos

contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos essenciais

Seratildeo abordados dois problemas muito distintos (a) cessaccedilatildeo do

contrato pelo utente durante o periacuteodo de fidelizaccedilatildeo e (b) suspensatildeo e

cessaccedilatildeo do contrato pelo prestador do serviccedilo em caso de incumprimento por

parte do cliente

172

a CESSACcedilAtildeO DO CONTRATO DURANTE O PERIacuteODO DE

FIDELIZACcedilAtildeO

O periacuteodo de fidelizaccedilatildeo eacute o periacuteodo miacutenimo de vigecircncia de um

contrato de execuccedilatildeo duradoura sem termo final durante o qual os contraentes

natildeo lhe podem pocircr fim por via de denuacutencia O contrato com termo final em

que por definiccedilatildeo natildeo existe a possibilidade de denuacutencia deve ser cumprido

integralmente Os contratos sem e com termo final distinguem-se em funccedilatildeo

de o contrato continuar ou natildeo a produzir efeitos apoacutes o final do periacuteodo em

causa sendo irrelevante a qualificaccedilatildeo dada pelas partes

O periacuteodo de fidelizaccedilatildeo tem fonte contratual (e natildeo legal) Produz

efeitos se estiver inserido numa claacuteusula de um contrato tratando-se em regra

de uma claacuteusula contratual geral que natildeo pode ser negociada pelo aderente

A fidelizaccedilatildeo incide sobre as condiccedilotildees definidas no contrato em que

a claacuteusula se encontra inserida As partes vinculam-se assim a no periacuteodo

miacutenimo de vigecircncia do contrato cumprir pontualmente as condiccedilotildees que

foram por si previamente definidas

Aleacutem de definir o periacuteodo de duraccedilatildeo miacutenima do contrato (elemento

relativo ao tempo) a claacuteusula relativa ao periacuteodo de fidelizaccedilatildeo pressupotildee a

determinaccedilatildeo do valor a pagar em caso de incumprimento desse periacuteodo

miacutenimo Poder-se-aacute discutir a qualificaccedilatildeo desse valor como preccedilo

(contrapartida da prestaccedilatildeo do serviccedilo relativamente ao conjunto do periacuteodo

de duraccedilatildeo miacutenima do contrato descontando o que jaacute tiver sido pago pelo

consumidor) ou como indemnizaccedilatildeo (claacuteusula penal que fixa

antecipadamente o valor da indemnizaccedilatildeo a pagar em caso de incumprimento)

A natureza da claacuteusula soacute pode ser avaliada em concreto dependendo

da interpretaccedilatildeo das declaraccedilotildees das partes (artigos 236ordm a 238ordm do Coacutedigo

Civil e 1ordm e 11ordm do Decreto-Lei nordm 44685407) Nos casos em que o valor a

pagar equivale agrave soma do montante das mensalidades acordadas como

contrapartida da prestaccedilatildeo do serviccedilo ateacute ao termo do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo

esse valor deveraacute ser em princiacutepio qualificado como preccedilo Se o valor for

inferior o mais provaacutevel seraacute tratar-se de uma claacuteusula penal O valor nunca

pode ser superior

A jurisprudecircncia aponta no sentido de que a validade da claacuteusula que

impotildee um periacuteodo de fidelizaccedilatildeo depende da existecircncia de contrapartidas para

407 O Decreto-Lei nordm 44685 de 25 de outubro foi alterado pelos Decretos-Leis nos 22095

de 31 de agosto (retificado pela Declaraccedilatildeo de Retificaccedilatildeo nordm 114-B95 de 31 de agosto)

24999 de 7 de julho e 3232001 de 17 de dezembro

173

o consumidor408 efetivamente compensadas ndash apenas ndash pela manutenccedilatildeo do

contrato por um periacuteodo miacutenimo409 Invoca-se o artigo 22ordm-1-a) do Decreto-

Lei nordm 44685 que visa proteger o aderente de uma vinculaccedilatildeo excessiva

irrefletida410 evitando que veja a sua liberdade contratual limitada411

Neste sentido nota-se que o ponto 32 dos princiacutepios gerais sobre Life

Time Contracts apesar de proibir em regra a cessaccedilatildeo antecipada do contrato

por ato unilateral de uma das partes excetua ldquoos casos em que a cessaccedilatildeo

antecipada eacute necessaacuteria para garantir um miacutenimo de liberdade de accedilatildeo e de

decisatildeordquo Articulando este princiacutepio com o constante do ponto 51 (ldquoo facto de

algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem bens ou serviccedilos necessaacuterios agrave

satisfaccedilatildeo as necessidades essenciais relacionadas com o consumo [hellip]

implica um dever de proteccedilatildeo da pessoa do consumidor [hellip] como parte[hellip]

mais fraca[hellip] da relaccedilatildeordquo) protege-se a posiccedilatildeo do utenteconsumidor por se

tratar de um Life Time Contract

O artigo 19ordm-c) do Decreto-Lei nordm 44685 tambeacutem eacute relevante neste

contexto No Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 7 de maio de

2015412 considera-se que ldquoa claacuteusula contratual geral inserida num contrato

de prestaccedilatildeo de serviccedilos de comunicaccedilotildees electroacutenicas vaacutelido por dois anos

que estabeleccedila que em caso de denuacutencia antecipada pelo cliente a operadora

teraacute direito a uma indemnizaccedilatildeo no valor da totalidade das prestaccedilotildees do preccedilo

previstas ateacute ao termo do prazo contratado impotildee consequecircncias patrimoniais

injustificadas e gravosas ao aderente e consequentemente eacute uma claacuteusula penal

desproporcionada aos danos a ressarcirrdquo

Considera-se portanto excessiva uma claacuteusula que preveja o

pagamento de um valor correspondente ao preccedilo contratado para a globalidade

408 Cfr Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 6 de dezembro de 2011 Processo nordm

2881080YXLSBL1-7 (Luiacutes Espiacuterito Santo) Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de

5 de junho de 2012 Processo nordm 3095085YXLSBL1-7 (Maria da Conceiccedilatildeo Saavedra)

anotado por JOAtildeO PEDRO PINTO-FERREIRA e JORGE MORAIS CARVALHO ldquoContrato para a

Utilizaccedilatildeo de Instalaccedilotildees e Equipamentos Desportivos ndash Anotaccedilatildeo ao Acoacuterdatildeo do Tribunal da

Relaccedilatildeo de Lisboa de 5 de junho de 2012rdquo in Desporto amp Direito ndash Revista Juriacutedica de

Direito do Desporto Ano X nordm 28 2012 e Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 5

de julho de 2012 Processo nordm 7855109TBOERL (Teresa Prazeres Pais) 409 JORGE MORAIS CARVALHO ldquoContratos Civis e Proacuteprios do Fenoacutemeno Desportivordquo in O

Desporto que os Tribunais Praticam Coimbra Editora Coimbra 2014 pp 69-90 p 89 410 JOSEacute MANUEL DE ARAUacuteJO BARROS Claacuteusulas Contratuais Gerais Coimbra Editora

Coimbra 2010 p 343 411 ANA PRATA Contratos de Adesatildeo e Claacuteusulas Contratuais Gerais Almedina Coimbra

2010 p 520 412 Processo nordm 134839123YIPRTP1 (Leonel Serocircdio)

174

do periacuteodo contratual miacutenimo Natildeo parece ser assim admissiacutevel a estipulaccedilatildeo

de uma compensaccedilatildeo por incumprimento do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo

equivalente ao valor correspondente agraves mensalidades em falta

O incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo por parte do consumidor

soacute pode resultar da cessaccedilatildeo do contrato por causa natildeo imputaacutevel ao

profissional antes do termo do periacuteodo miacutenimo de vigecircncia do contrato

definido pelas partes

Este ocorre em duas situaccedilotildees denuacutencia do contrato pelo consumidor

dentro do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo resoluccedilatildeo do contrato pela empresa com

fundamento em incumprimento por parte do cliente413

Natildeo haacute incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo se o cliente declarar

agrave outra parte a resoluccedilatildeo do contrato mas natildeo tiver fundamento para exercer

o direito Neste caso natildeo haacute direito de resoluccedilatildeo pelo que a declaraccedilatildeo natildeo

produz efeitos O contrato manteacutem-se portanto nos termos anteriores agrave

declaraccedilatildeo do consumidor

Tambeacutem natildeo haacute incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo no caso de

o consumidor manifestar intenccedilatildeo de natildeo exercer o seu direito de creacutedito em

relaccedilatildeo ao profissional mas natildeo de pocircr em causa a manutenccedilatildeo do contrato

Por exemplo num contrato relativo a comunicaccedilotildees eletroacutenicas o pedido de

portabilidade ou a alteraccedilatildeo da residecircncia do consumidor nos casos em que

impeccedilam a prestaccedilatildeo do serviccedilo pelo profissional natildeo satildeo incompatiacuteveis com

a manutenccedilatildeo do contrato pelo que o consumidor natildeo incumpre a claacuteusula de

fidelizaccedilatildeo podendo (e devendo) continuar a cumprir periodicamente a sua

prestaccedilatildeo

Quanto agraves consequecircncias do incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo

ndash quando esta seja vaacutelida ndash pelo consumidor o valor a pagar por este nunca

poderaacute exceder o das prestaccedilotildees em falta ateacute ao final do periacuteodo definido no

contrato Assim por exemplo caso o consumidor resolva o contrato 6 meses

antes do final do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo e o valor da mensalidade seja de euro 40

o valor maacuteximo que lhe poderaacute ser exigido eacute determinado tendo em conta os

meses em falta (6 meses) e o valor da mensalidade (euro 40) pelo que natildeo poderaacute

ser superior a euro 240

413 Cfr Acoacuterdatildeos do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 27 de maio de 2010 Processo nordm

4294060YXLSBL1-2 (Neto Neves) e de 30 de junho de 2011 Processo nordm

1410080TJLSBL1-7 (Luiacutes Lameiras) Natildeo havendo incumprimento definitivo natildeo haacute

fundamento de resoluccedilatildeo pelo que a claacuteusula de fidelizaccedilatildeo natildeo pode ser acionada Neste

sentido v Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 25 de fevereiro de 2010 Processo

nordm 1591083TVLSBL1-6 (Maacutercia Portela)

175

Em mateacuteria de contratos relativos a comunicaccedilotildees eletroacutenicas o

Decreto-Lei nordm 562010 consagra um regime especial que se aplica a qualquer

utente ndash conceito definido no artigo 1ordm-3 da Lei nordm 2396 ndash e natildeo apenas a

consumidores

O artigo 2ordm-3 do Decreto-Lei nordm 562010 estabelece que ldquoeacute proibida a

cobranccedila de qualquer contrapartida aleacutem das referidas no nuacutemero anterior a

tiacutetulo indemnizatoacuterio ou compensatoacuterio pela resoluccedilatildeo do contrato durante o

periacuteodo de fidelizaccedilatildeordquo

O artigo 2ordm-2 do Decreto-Lei nordm 562010 pressupotildee ndash interpretado

extensivamente parcialmente em linha com o artigo 48ordm-2 da Lei das

Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas ndash que o periacuteodo de fidelizaccedilatildeo tem de estar

associado a determinada vantagem

Essa vantagem pode consistir (i) num desconto abatimento ou

subsidiaccedilatildeo na aquisiccedilatildeo ou posse de equipamento que permite o acesso ao

serviccedilo de comunicaccedilotildees eletroacutenicas hipoacuteteses constantes da letra do artigo

2ordm-2 do Decreto-Lei nordm 562010 ou (ii) em outros aspetos desde que previstos

de forma expressa (e clara no que respeita aos valores) no contrato nos termos

do artigo 48ordm-2 da Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas na redaccedilatildeo dada pela

Lei nordm 512011 de 13 de setembro

O jaacute referido Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 1 de abril

de 2014 restringe no entanto a aplicaccedilatildeo do Decreto-Lei nordm 562010 aos

casos em que eacute fornecido um equipamento414

Em sentido diametralmente oposto ao desta decisatildeo natildeo

correspondendo assim agrave posiccedilatildeo intermeacutedia que defendemos neste texto pode

ler-se no Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 26 de junho de 2014415

que ldquose natildeo tiver sido vendido ou de outra forma fornecido qualquer

equipamento pelo operador da rede puacuteblica de comunicaccedilotildees electroacutenicas ao

utente das comunicaccedilotildees electroacutenicas aquelas normas do corpo do artigo 2ordm-

2 e do artigo 2ordm-3 impedem que o operador cobre o que quer que seja pela

resoluccedilatildeo do contrato resoluccedilatildeo essa operada pelo utente durante o periacuteodo de

fidelizaccedilatildeordquo Portanto segundo esta decisatildeo que parte do pressuposto de que

ldquoa disciplina do Decreto-Lei nordm 562010 natildeo foi alterada ou derrogada pela

414 Esta orientaccedilatildeo teve grande sucesso no Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto v Acoacuterdatildeos de 13

de maio de 2014 Processo nordm 203179122YIPRTP1 (Rodrigues Pires) de 16 de setembro

de 2014 Processo nordm 27076138YIPRTP1 (Henrique Arauacutejo) de 20 de maio de 2014 de 28

de abril de 2015 Processo nordm 95926130YIPRTP1 (Vieira e Cunha) e embora de forma

bastante atenuada quanto agraves consequecircncias Acoacuterdatildeo de 7 de maio de 2015 415 Processo nordm 28496120YIPRTP1 (Pedro Lima Costa)

176

entrada em vigor da Lei nordm 512011rdquo416 a vantagem tem de estar relacionada

com um equipamento sob pena de o prestador de serviccedilos de comunicaccedilotildees

eletroacutenicas natildeo poder impor ao utente o pagamento de qualquer valor pelo

incumprimento do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo

Parece-nos que a interpretaccedilatildeo mais adequada por corresponder quer

agrave letra quer ao espiacuterito dos dois diplomas eacute aquela que permite a sua

compatibilizaccedilatildeo aplicando-se o Decreto-Lei nordm 562010 independentemente

de ter sido fornecido um equipamento No caso de natildeo ter sido fornecido um

equipamento a vantagem para o utente afere-se com base em outros elementos

(artigo 48ordm-2 da Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas) desde que previstos no

contrato

Quanto ao valor a pagar em caso de incumprimento da claacuteusula o

artigo 2ordm-2 do Decreto-Lei nordm 562010 prevecirc que nos primeiros 6 meses a

contar do iniacutecio do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo o consumidor deve pagar no

maacuteximo 100 do valor da vantagem concedida em contrapartida da

fidelizaccedilatildeo apoacutes os primeiros 6 meses (e antes de se chegar ao uacuteltimo ano) o

consumidor deve pagar no maacuteximo 80 no uacuteltimo ano do periacuteodo de

fidelizaccedilatildeo o consumidor deve pagar no maacuteximo 50 Estas satildeo as

percentagens maacuteximas podendo ser inferiores uma vez que ao valor da

vantagem concedida em contrapartida da fidelizaccedilatildeo eacute subtraiacutedo nos termos

da norma o valor das mensalidades entretanto pagas417 A soluccedilatildeo que permite

indexar o valor a pagar ao valor da vantagem tem o meacuterito de colocar em

relevo o nexo quase sinalagmaacutetico418 que existe entre o periacuteodo de fidelizaccedilatildeo

e a vantagem

O que acontece se durante o periacuteodo de fidelizaccedilatildeo o utente fica

desempregado tem de emigrar muda de residecircncia ou por qualquer motivo

passa a estar sobreendividado

A resposta dada pelo direito portuguecircs eacute claramente inadequada natildeo

existindo um mecanismo que salvaguarde de forma equilibrada a posiccedilatildeo do

utente O regime da alteraccedilatildeo de circunstacircncias a que se poderia

eventualmente recorrer nestes casos tem pressupostos de aplicaccedilatildeo que o

416 Parece-nos correta a ideia de que o Decreto-Lei nordm 562010 natildeo foi alterado ou derrogado

pela entrada em vigor da Lei nordm 512011 Com efeito sendo a Lei das Comunicaccedilotildees

Eletroacutenicas (alterada pela Lei nordm 512011) lei geral em relaccedilatildeo ao Decreto-Lei nordm 562010

parece-nos que a interpretaccedilatildeo em sentido contraacuterio feita na jurisprudecircncia citada na nota 29

natildeo eacute adequada 417 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 13 de maio de 2014 418 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 21 de outubro de 2014 Processo nordm

83857138YIPRTP1 (Henrique Arauacutejo)

177

tornam dificilmente aplicaacutevel Com efeito tem-se entendido que estas

situaccedilotildees diretamente ligadas ao utente se encontram cobertas ldquopelos riscos

proacuteprios do contratordquo

Relativamente agrave emigraccedilatildeo e agrave mudanccedila de residecircncia trata-se de

decisotildees dos utentes que devem ter em conta na sua atuaccedilatildeo a vinculaccedilatildeo

contratual com terceiros O desemprego e o sobreendividamento (quando

motivado no todo ou em parte por razatildeo exterior ao sobreendividado) natildeo

resultam em regra de decisotildees dos utentes podendo mais facilmente ser

invocados no sentido da adaptaccedilatildeo ou modificaccedilatildeo do contrato

O princiacutepio 10 dos princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts parece

menos exigente do que o artigo 437ordm do Coacutedigo Civil Com efeito o ponto

101 estabelece que ldquose as circunstacircncias socioeconoacutemicas pressupostas pelas

partes como fundamento da conclusatildeo do contrato natildeo se verificarem havendo

uma grave divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo de que as partes

partiram o conteuacutedo dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da

pessoa deve ser adaptado ou modificadordquo

A celebraccedilatildeo de um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos

essenciais com uma claacuteusula de fidelizaccedilatildeo pressupotildee em regra uma

situaccedilatildeo econoacutemica estaacutevel por parte do utente que lhe permita cumprir o

contrato ao longo da sua vigecircncia

O ponto 102 prevecirc que ldquoa divergecircncia pode referir-se agraves circunstacircncias

presentes ou agraves circunstacircncias futuras e deve ser tatildeo grave que se as partes

tivessem uma representaccedilatildeo exata da realidade natildeo teriam concluiacutedo nenhum

contrato ou teriam concluiacutedo um contrato de tipo ou de conteuacutedo diferenterdquo

Neste caso estatildeo em causa circunstacircncias futuras relativas agrave

estabilidade da situaccedilatildeo socioeconoacutemica do utente que eram essenciais para a

celebraccedilatildeo do contrato Se as partes soubessem que o utente iria emigrar

passado seis meses (com um periacuteodo de fidelizaccedilatildeo de vinte e quatro meses)

natildeo teriam certamente celebrado o contrato

O ponto 103 determina que ldquoao apreciar-se a gravidade da

divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo deve atender-se ao fim do

contrato agrave distribuiccedilatildeo legal ou contratual do risco e ao significado social da

relaccedilatildeordquo

Se for dada especial relevacircncia ao fim do contrato e agrave distribuiccedilatildeo

contratual do risco podemos aproximar este princiacutepio ao artigo 437ordm do

Coacutedigo Civil enfraquecendo-o significativamente Prevecirc-se no entanto que

tenha igualmente em conta o significado social da relaccedilatildeo Este elemento

parece decisivo para concluir que agrave partida este princiacutepio poderaacute ser aplicaacutevel

aos casos de desemprego emigraccedilatildeo ou sobreendividamento Quanto agrave

mudanccedila de residecircncia a resposta teraacute de ser menos taxativa uma vez que

178

depende de circunstacircncias concretas relativas ao caso Se o utente decidir

simplesmente mudar de residecircncia sem que nada na sua situaccedilatildeo

socioeconoacutemica o imponha ou aconselhe natildeo deve ser protegido por este

princiacutepio Jaacute se tiver que mudar de residecircncia devido a uma deslocalizaccedilatildeo do

seu posto de trabalho provavelmente jaacute deveraacute ser protegido natildeo tendo de

cumprir a claacuteusula de fidelizaccedilatildeo A anaacutelise soacute poderaacute ser feita em qualquer

caso em concreto

O princiacutepio 103 deve ser lido em articulaccedilatildeo com o princiacutepio 153 do

qual resulta que ldquono momento da conformaccedilatildeo como no momento da

interpretaccedilatildeo do contrato deve considerar-se designadamente os riscos de

falta de emprego de falta de habitaccedilatildeo ou de sobreendividamento

relacionando-os com as suas causas socioeconoacutemicasrdquo

Os princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts estatildeo essencialmente

construiacutedos a pensar na proteccedilatildeo da pessoa no sentido da manutenccedilatildeo do

contrato419 e natildeo no da sua resoluccedilatildeo Do ponto 31 dos princiacutepios gerais sobre

Life Time Contracts resulta que ldquoa confianccedila de ambas as partes na

continuidade da relaccedilatildeo contratual deve ser protegidardquo Num contrato de

creacutedito de arrendamento ou de trabalho o devedor o inquilino ou o

trabalhador tem de ser protegido em regra com vista agrave manutenccedilatildeo do

contrato Num contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos essenciais o utente

tem de ser protegido nos dois sentidos Jaacute analisamos a questatildeo no que respeita

agrave possibilidade de o utente pocircr termo ao contrato Veremos agora as regras e

os princiacutepios aplicaacuteveis agrave situaccedilatildeo inversa em que eacute o prestador de serviccedilos a

pocircr termo ao contrato

b SUSPENSAtildeO E CESSACcedilAtildeO DO CONTRATO PELO PRESTADOR DE

SERVICcedilO

A questatildeo a que se procura dar resposta neste ponto diz respeito agrave

consequecircncia da mora do utente relativamente agrave obrigaccedilatildeo de pagar o preccedilo

sendo necessaacuterio perceber se e quando a prestaccedilatildeo do serviccedilo pode ser

suspensa e o contrato resolvido

O ponto 11 dos princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts ocupa-se

da cessaccedilatildeo antecipada do contrato O ponto 111 determina que ldquoa cessaccedilatildeo

antecipada dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa deve ser

feita de uma forma transparente controlaacutevel e socialmente aceitaacutevelrdquo

acrescentando-se que ldquocaso seja feita contra a vontade do consumidor [hellip]

419 LUCA NOGLER e UDO REIFNER ldquoIntroduction The New Dimension of Life Time in the

Law of Contracts and Obligationsrdquo in Life Time Contracts Eleven International Publishing

The Hague 2014 p 43

179

deve representar-se como uma medida extrema (ultima ratio)rdquo A

responsabilidade social impotildee por exemplo que o fornecimento de aacutegua natildeo

possa ser suspenso salvo em situaccedilotildees-limite natildeo se devendo considerar

como tal a simples mora do consumidor sem analisar as circunstacircncias em que

esta ocorreu420

O ponto 112 impotildee que o ato pelo qual se faz cessar o contrato seja

fundamentado sendo as razotildees comunicadas ldquoverdadeiras adequadas e justas

natildeo podendo em caso algum ser razotildees discriminatoacuterias ou ter resultados

discriminatoacuteriosrdquo As razotildees tecircm de estar relacionadas neste caso com o

comportamento do consumidor que deve ser ldquotatildeo grave ou significativo que

justifique uma ruturardquo (1121) Assim por exemplo num contrato de

fornecimento de eletricidade a falta de pagamento de uma ou mais faturas

numa situaccedilatildeo em que o consumidor se encontre impossibilitado de o fazer

por algum evento da sua vida natildeo deve permitir a suspensatildeo e a cessaccedilatildeo do

contrato uma vez que o comportamento do consumidor natildeo eacute suficientemente

censuraacutevel a ponto de justificar a rutura

A lei portuguesa apesar de proteger o utente de serviccedilos puacuteblicos

essenciais no que respeita agrave suspensatildeo do fornecimento natildeo vai ainda tatildeo

longe como o que parece resultar dos princiacutepios gerais sobre Life Time

Contracts

Nos termos do artigo 5ordm-1 da Lei nordm 2396 ldquoa prestaccedilatildeo do serviccedilo

natildeo pode ser suspensa sem preacute-aviso adequado salvo caso fortuito ou de forccedila

maiorrdquo Impotildee-se assim que o prestador de serviccedilo avise previamente o utente

de que o fornecimento do serviccedilo poderaacute ser suspenso Esta regra protege o

utente contra uma suspensatildeo inesperada

O artigo 5ordm-2 regula especificamente os casos de mora do utente

estabelecendo que sempre que se ldquojustifique a suspensatildeo do serviccedilo esta soacute

pode ocorrer apoacutes o utente ter sido advertido por escrito com a antecedecircncia

miacutenima de vinte dias relativamente agrave data em que ela venha a ter lugarrdquo Esta

advertecircncia ldquoaleacutem de justificar o motivo da suspensatildeo deve informar o utente

dos meios que tem ao seu dispor para evitar a suspensatildeo do serviccedilo e bem

assim para a retoma do mesmo sem prejuiacutezo de poder fazer valer os direitos

que lhe assistam nos termos geraisrdquo (artigo 5ordm-3) O utente tem assim de ser

informado da possibilidade de suspensatildeo com uma antecedecircncia bastante

razoaacutevel e dos passos que deve dar se pretender evitar a suspensatildeo ou jaacute

420 Nota-se que o ponto 142 dos princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts refere que os

contratos que tirem o acesso a rendimento do consumidor ldquoentregando-o ao fornecedor de

bens ou ao prestador de serviccedilos devem proporcionar agrave pessoa humana o miacutenimo necessaacuterio

para a sua subsistecircnciardquo

180

depois de esta ter tido lugar se quiser voltar a beneficiar da prestaccedilatildeo do

serviccedilo

O artigo 5ordm-4 reforccedila a posiccedilatildeo do utente ao prever que ldquoa prestaccedilatildeo

do serviccedilo puacuteblico natildeo pode ser suspensa em consequecircncia de falta de

pagamento de qualquer outro serviccedilo ainda que incluiacutedo na mesma fatura

salvo se forem funcionalmente indissociaacuteveisrdquo Sendo dissociaacuteveis os

serviccedilos natildeo pode ser suspensa a prestaccedilatildeo de um na sequecircncia da falta de

pagamento de outro Por exemplo se o utente tiver celebrado um contrato de

fornecimento de energia eleacutetrica e de gaacutes mas natildeo pagar a parte da fatura

relativa ao gaacutes o fornecimento de energia eleacutetrica natildeo pode ser interrompido

No que respeita aos serviccedilos de comunicaccedilotildees eletroacutenicas se estiver

em causa uma relaccedilatildeo de consumo o regime eacute consideravelmente menos

favoraacutevel para o consumidor sendo mesmo incompreensiacutevel no que respeita

aos seus objetivos Aplica-se neste caso o artigo 52ordm-A da Lei das

Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas

O nordm 1 deste artigo alarga o prazo do preacute-aviso para trinta dias

O nordm 2 determina que o preacute-aviso seja comunicado por escrito ao

consumidor impondo o prazo (ldquodez dias apoacutes a data de vencimento da faturardquo)

e o conteuacutedo (indicaccedilatildeo especiacutefica da ldquoconsequecircncia do natildeo pagamento

nomeadamente a suspensatildeo do serviccedilo e a resoluccedilatildeo automaacutetica do contrato e

informaacute-lo dos meios ao seu dispor para as evitarrdquo) Isto significa que mesmo

que natildeo o queira fazer o prestador do serviccedilo de comunicaccedilotildees eletroacutenicas

tem o dever de desencadear o mecanismo que conduziraacute agrave suspensatildeo do

serviccedilo e posteriormente agrave resoluccedilatildeo do contrato no prazo de dez dias apoacutes

a data do vencimento da fatura Natildeo se admite aparentemente sequer que as

partes acordem numa dilaccedilatildeo do prazo para pagamento da fatura interpretaccedilatildeo

do preceito que me parece de afastar por ser inaceitaacutevel

Comunicada ao consumidor a possibilidade de suspensatildeo este tem

trinta dias para pagar Se natildeo o fizer o prestador de serviccedilo deve

ldquoobrigatoriamente no prazo de dez dias apoacutes o fim do prazo [hellip] suspender o

serviccedilo por um periacuteodo de trinta diasrdquo (nordm 3) A suspensatildeo soacute pode ser evitada

pelas partes se tiverem celebrado um acordo de pagamento por escrito com

vista agrave regularizaccedilatildeo dos valores em diacutevida

A suspensatildeo tambeacutem natildeo tem lugar nos termos do nordm 4 nos casos em

que ldquoos valores da fatura sejam objeto de reclamaccedilatildeo por escrito junto da

empresa com fundamento na inexistecircncia ou na inexigibilidade da diacutevida ateacute

agrave data em que deveraacute ter iniacutecio a suspensatildeordquo

Se o consumidor pagar os valores em diacutevida ou se as partes tiverem

celebrado um acordo de pagamento por escrito cessa a suspensatildeo do serviccedilo

devendo este ser resposto no prazo maacuteximo de cinco dias uacuteteis (nordm 6)

181

O nordm 7 estatui que ldquofindo o periacuteodo de 30 dias de suspensatildeo sem que

o consumidor tenha procedido ao pagamento da totalidade dos valores em

diacutevida ou sem que tenha sido celebrado um acordo de pagamento por escrito

o contrato considera-se automaticamente resolvidordquo Ou seja mais uma vez

independentemente da sua vontade o prestador de serviccedilo tem o dever de

resolver o contrato

Este regime parece ter tido como objetivo por um lado resolver o

problema das pendecircncias nos tribunais portugueses tendo como pressuposto

que estes litiacutegios entopem os tribunais e por outro lado combater o

sobreendividamento dos consumidores evitando a acumulaccedilatildeo de diacutevidas

Natildeo se evita contudo a propositura de accedilotildees em tribunal uma vez que seraacute

sempre devido pelo menos o valor relativo ao mecircs que desencadeou este

procedimento mais o correspondente agrave prestaccedilatildeo do serviccedilo nos quarenta dias

seguintes Teremos portanto sempre uma diacutevida correspondente a um periacuteodo

superior a dois meses Se o regime ficasse por aqui ainda se poderia considerar

cumprida uma parte dos seus objetivos pois conter-se-ia a acumulaccedilatildeo de

diacutevidas pelo consumidor

No entanto o nordm 8 de preceito em anaacutelise estabelece que a resoluccedilatildeo

ldquonatildeo prejudica a cobranccedila de uma contrapartida a tiacutetulo indemnizatoacuterio ou

compensatoacuterio pela resoluccedilatildeo do contrato durante o periacuteodo de fidelizaccedilatildeordquo

Ou seja aleacutem dos valores relativos aos dois meses em que o serviccedilo natildeo esteve

suspenso o prestador do serviccedilo pode ainda exigir a contrapartida relativa ao

incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo Eacute a proacutepria lei que impotildee que se

mantecircm os efeitos do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo mas apenas para o utente Resulta

deste regime portanto que o prestador de serviccedilo estaacute obrigado a resolver o

contrato deixando de prestar o serviccedilo mas manteacutem o direito a exigir os

valores previstos na claacuteusula de fidelizaccedilatildeo Esta norma nada resolve assim

como se vecirc quer o problema das pendecircncias nos nossos tribunais quer o

problema da acumulaccedilatildeo de diacutevidas pelos consumidores acentuando o

desequiliacutebrio da relaccedilatildeo

Se a empresa decidir continuar a prestar o serviccedilo depois de

ultrapassados os prazos aqui referidos deixa de poder exigir o seu pagamento

sendo tambeacutem responsaacutevel pelo pagamento das custas processuais devidas

pela cobranccedila do creacutedito (nordm 10) A consequecircncia eacute bastante gravosa para o

prestador de serviccedilo que por esta via se vecirc compelido a suspender o serviccedilo e

a resolver o contrato sempre que se verifiquem as situaccedilotildees aqui indicadas

independentemente das circunstacircncias concretas do caso

Uma leitura deste regime agrave luz dos jaacute referidos princiacutepios gerais sobre

Life Time Contracts permitiria corrigir algumas soluccedilotildees inadequadas no

sentido da sua aceitabilidade social Trata-se assim de um oacutetimo exemplo da

182

importacircncia que a consideraccedilatildeo da existecircncia de uma categoria de contratos

duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa e da sua regulaccedilatildeo especiacutefica

pode ter

183

O contrato de creacutedito para aquisiccedilatildeo de habitaccedilatildeo

permanente garantido por hipoteca agrave luz dos

princiacutepios de life time contracts

Ana Taveira da Fonseca

1 QUALIFICACcedilAtildeO DO CONTRATO DE CREacuteDITO PARA AQUISICcedilAtildeO DE

HABITACcedilAtildeO PERMANENTE GARANTIDO POR HIPOTECA COMO LIFE

TIME CONTRACT

O contrato de muacutetuo para aquisiccedilatildeo de habitaccedilatildeo proacutepria e permanente

pode ser qualificado como um life time contract porque se trata um contrato

duradouro essencial agrave existecircncia da pessoa atraveacutes do qual ainda que

indiretamente se proporciona a fruiccedilatildeo de um bem fundamental a habitaccedilatildeo

Constitui por isso um contrato essencial agrave realizaccedilatildeo e integraccedilatildeo do

indiviacuteduo em sociedade

Noutra perspetiva o contrato de muacutetuo para aquisiccedilatildeo de habitaccedilatildeo

proacutepria e permanente eacute um contrato de creacutedito ao consumo com

especificidades proacuteprias que decorrem da importacircncia dos montantes

envolvidos da duraccedilatildeo do contrato e da finalidade do creacutedito Um creacutedito que

se destina a facultar ao mutuaacuterio habitaccedilatildeo permanente tem para este uma

importacircncia diversa de qualquer outro contrato de financiamento

Ao contraacuterio do que sucede noutros paiacuteses em que o acesso agrave habitaccedilatildeo

eacute garantido primordialmente pelo arrendamento em Portugal em virtude dos

incentivos que foram criados para aquisiccedilatildeo de casa proacutepria e das taxas de juro

historicamente baixas o modelo passou a ser o da aquisiccedilatildeo da propriedade

atraveacutes do recurso ao creacutedito de longa duraccedilatildeo

Tatildeo importante quanto indagar se o regime juriacutedico do contrato de

arrendamento para habitaccedilatildeo estaacute em conformidade com os princiacutepios de life

time contracts eacute averiguar se o contrato de creacutedito agrave habitaccedilatildeo garantido por

hipoteca protege eficaz e efetivamente o consumidor Essa proteccedilatildeo vinha

sendo fundamentalmente assegurada pela imposiccedilatildeo de fornecimento

detalhado de informaccedilatildeo ao mutuaacuterio antes da celebraccedilatildeo do contrato Ora o

que a crise econoacutemico-financeira que vem assolando a Europa desde 2008

demonstrou eacute que essa proteccedilatildeo eacute insuficiente para atingir os objetivos a que

Professora da Faculdade de Direito da Universidade Catoacutelica Portuguesa

184

se propotildee O paradigma de que o consumidor informado saberaacute tomar as

melhores decisotildees vem sendo pouco a pouco substituiacutedo por um modelo de

responsable lending em que o mutuante tambeacutem se responsabiliza pelos riscos

da concessatildeo de creacutedito ao longo de toda a execuccedilatildeo do contrato Por esta via

pretende-se assegurar na medida do possiacutevel que o mutuaacuterio iraacute contrair um

creacutedito com montantes e condiccedilotildees de reembolso que teraacute capacidade de

cumprir natildeo obstante tratar-se de um financiamento de muito longo prazo e

por isso estar sujeito a um conjunto de vicissitudes imprevisiacuteveis e natildeo

controlaacuteveis no momento da concessatildeo do creacutedito umas que podem afetar

diretamente a pessoa do mutuaacuterio como por exemplo a diminuiccedilatildeo da

capacidade financeira provocada por doenccedila ou desemprego involuntaacuterio ou a

ocorrecircncia de uma qualquer patologia na relaccedilatildeo matrimonial e outras

decorrentes da imprevista alteraccedilatildeo da conjuntura financeira que conduza por

exemplo a um aumento das taxas de juros passiacutevel de tornar incomportaacutevel o

serviccedilo da diacutevida421

O que nos propomos analisar eacute em que medida os princiacutepios de life

time contracts se encontram refletidos na nossa legislaccedilatildeo especialmente

depois das alteraccedilotildees introduzidas pelas Leis nos 57 58 59 e 602012 de 9 de

Novembro e que modificaccedilotildees se vislumbram venham a ser efetuadas

421 Para UDO REIPFNER ldquoo modelo paternalistardquo da informaccedilatildeo enquanto meio preferencial

de proteccedilatildeo do consumidor falhou em virtude da incapacidade de os consumidores jogarem

corretamente as regras do mercado para daiacute concluir que a ldquoconsumer credit protection needs

a safe haven in the form of the loan contract as a life time contractrdquo Cfr UDO REIPFNER

ldquoDarlehensvertrag als Kapitalmiete (Locatio conduction specialis)rdquo Life Time Contracts

Social Long-Term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law (org Luca

Nogler amp Udo Reifner) Eleven International Publishing The Hague 2014 p 420 Ainda

segundo o mesmo autor o princiacutepio de responsible lending natildeo se pode concretizar

simplesmente na disponibilizaccedilatildeo de informaccedilatildeo ao consumidor porque desta forma se

acautela o momento da formaccedilatildeo do contrato mas natildeo o periacuteodo da sua execuccedilatildeo Segundo

REIFNER eacute esta concepccedilatildeo de responsible lending que estaacute refletida na proposta que veio a

dar origem agrave Diretiva 201417UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de fevereiro

de 2014 relativa aos contratos de creacutedito aos consumidores para imoacuteveis de habitaccedilatildeo Cfr

UDO REIPFNER ldquoResponsible Bankruptcyrdquo Life Time Contracts Social Long-Term Contracts

in Labour Tenancy and Consumer Credit Law (org Luca Nogler amp Udo Reifner) Eleven

International Publishing The Hague 2014 p 570 Sobre a importacircncia da manutenccedilatildeo de

obrigaccedilotildees de informaccedilatildeo durante o periacuteodo de execuccedilatildeo do contrato de creacutedito ao consumo

no direito do Reino Unido GERAINT HOWELLS ldquoChange of Circumstances in Consumer

Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call for the Maintenance of Sector

Specific Rulesrdquo Life Time Contracts Social Long-Term Contracts in Labour Tenancy and

Consumer Credit Law (org Luca Nogler amp Udo Reifner) Eleven International Publishing

The Hague 2014 pp 454 e ss

185

aquando da transposiccedilatildeo da Diretiva 201417UE do Parlamento Europeu e

do Conselho de 24 de fevereiro de 2014 relativa aos contratos de creacutedito agrave

habitaccedilatildeo garantidos por hipoteca

2 DIMENSAtildeO HUMANA DO DIREITO

O princiacutepio primeiro sobre que o qual deve assentar a regulaccedilatildeo de um

life time contract eacute o da dimensatildeo humana422 O regime juriacutedico aplicaacutevel a

estes contratos deve por isso acautelar o desenvolvimento dos indiviacuteduos que

a eles recorrem para assegurar a sua existecircncia Essa dimensatildeo humana eacute

concretizada em mais princiacutepios nomeadamente o da exigecircncia de adaptaccedilatildeo

dos contratos em caso de alteraccedilatildeo das circunstacircncias e o da cessaccedilatildeo do

contrato como uacuteltimo remeacutedio em caso de incumprimento Aquilo que de mais

interessante encontramos nestes princiacutepios eacute exatamente a dimensatildeo

humanista do Direito que neles se encontra refletida mais concretamente o

facto de atraveacutes deles se recolocar o indiviacuteduo no centro das preocupaccedilotildees do

Direito e natildeo se relativizar a proteccedilatildeo do Homem em nome de outros

interesses mormente os econoacutemico-financeiros

21 AS EXIGEcircNCIAS DE ADAPTACcedilAtildeO IMPOSTAS PELOS PRINCIacutePIOS DE

LIFE TIME CONTRACTS E A SUA COMPATIBILIDADE COM O

REGIME DE REPARTICcedilAtildeO DO RISCO

211 A dimensatildeo social deste contrato e a sua importacircncia vital para

aqueles a quem um bem essencial eacute por esta via proporcionado exigem que

este possa ser adaptadomodificado se as circunstacircncias econoacutemicas e sociais

presentes e futuras pressupostas pelas partes como fundamento da conclusatildeo

do contrato natildeo se verificarem desde que se possa razoavelmente concluir que

as partes natildeo teriam celebrado o contrato ou soacute o teriam feitos em condiccedilotildees

diferentes423

422 Tomamos por base a traduccedilatildeo apresentada por Nuno Pinto de Oliveira em 1 de maio de

2015 423 De acordo com o princiacutepio 10 de Life Time Contractsldquoif the social and economic

circumstances upon which a life time contract is based have changed significantly since the

contract was entered into or if material circumstances from which the parties derived have

arisen that are found to be at variance with its original situation to such an extent that the social

nature of the contract is jeopardised and if the parties would not have entered into the contract

or would have entered into it on different terms had they foreseen this change adaptation of

the contract may be required if taking into account all the circumstances of the specific case

and in particular the contractual or statutory allocation of risk and the fundamental obligation

of a human being one of the parties cannot reasonably be expected to continue to comply with

186

O que cabe perguntar eacute se uma diminuiccedilatildeo abrupta da solvabilidade do

mutuaacuterio deve permitir agrave luz do princiacutepio enunciado lanccedilar matildeo dos

mecanismos de adaptaccedilatildeo do contrato Eacute preciso contudo assinalar que

mesmo de acordo com este princiacutepio para que o contrato possa ser modificado

eacute necessaacuterio que decorra de todas as circunstacircncias do caso concreto e em

particular da distribuiccedilatildeo legal e contratual do risco do fim cooperativo do

contrato e de eventuais obrigaccedilotildees fundamentais das partes que natildeo seja

exigiacutevel que uma delas se mantenha vinculada ao contrato com o conteuacutedo

imodificado

Segundo JUANA PULGAR a funccedilatildeo deste princiacutepio eacute alargar o acircmbito

de aplicaccedilatildeo da claacuteusula rebus sic standibus prevista no sect 313 do BGB para

ldquolife time circumstances and the social environmentrdquo424 Mais concretamente

segundo a autora quando o devedor fica desempregado sofre um aumento da

taxa de juro aplicaacutevel ao seu contrato de financiamento ou eacute afetado por uma

crise econoacutemica global como a atual ldquothe ldquostatus quordquo of the contract has

been breached (hellip) The rdquorebus sic standibusrdquo clause therefore would allow

the ex post or retrospective amendment of the terms and conditions initially

agreed upon in the contract in order to rebalance the consideration resulting

from itrdquo425

A primeira questatildeo que importa equacionar eacute se eacute possiacutevel recorrer ao

regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias no caso de ocorrer uma deterioraccedilatildeo da

situaccedilatildeo patrimonial do devedor que o impeccedila de cumprir a obrigaccedilatildeo a que se

vinculou e em segundo lugar se esse regime geral deve sofrer alguma inflexatildeo

se se estiver perante um life time contract

Uma vez que mesmo de acordo com o princiacutepio enunciado ao

apreciar-se a divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo se deve atender agrave

distribuiccedilatildeo legal e contratual do risco impotildee-se antes de tudo que se proceda

a uma definiccedilatildeo dos riscos associados a estes contratos e por conta de quem

na falta de convenccedilatildeo em contraacuterio eacute que os mesmos devem correr

Satildeo conhecidas as reservas que na nossa ordem juriacutedica assim como

noutras satildeo colocadas ao risco enquanto pressuposto negativo de aplicaccedilatildeo do

the contract without variation of its terms Collective regulation shall take precedence over

individual adaptationrdquo 424 Cfr JUANA PULGAR ldquoA Contractual Approach to Overindebtedness Rebus Sic Standibus

Instead of Bankruptcyrdquo Life Time Contracts Social Long-Term Contracts in Labour Tenancy

and Consumer Credit Law (org Luca Nogler amp Udo Reifner) Eleven International

Publishing The Hague 2014 p 533 425 JUANA PULGAR ldquoA Contractual Approach to Overindebtedness Rebus Sic Standibus

Instead of Bankruptcyrdquo cit p 534

187

regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias Somos contudo de opiniatildeo que uma

limitaccedilatildeo ao princiacutepio da forccedila vinculativa do contrato soacute se justifica nas

hipoacuteteses em que o problema natildeo possa resolver-se por apelo a uma regra

razoaacutevel de reparticcedilatildeo do risco De outra forma pocircr-se-ia em causa a confianccedila

legiacutetima da parte no cumprimento das obrigaccedilotildees assumidas pela contraparte

De facto quem se vincula atraveacutes de um contrato ao cumprimento de uma

obrigaccedilatildeo faacute-lo-aacute na perspetiva de obtenccedilatildeo direta ou indireta de um ganho

Tal implica necessariamente a assunccedilatildeo de um risco Ora natildeo deve legitimar-

se a alteraccedilatildeo de um contrato sempre que se verifique existir uma modificaccedilatildeo

indesejada para um dos contraentes das condiccedilotildees de cumprimento das

obrigaccedilotildees por si contraiacutedas mas que ainda assim esteja a coberto dos riscos

que aquele assumiu no momento em que decidiu contratar426

Tudo passa quanto a noacutes por determinar quais satildeo os riscos proacuteprios

do contrato em anaacutelise427 Estando em causa um life time contract eacute natural

que as regras de reparticcedilatildeo do risco sejam diferentes do regime geral aplicaacutevel

aos demais contratos de muacutetuo

212 O risco de desvalorizaccedilatildeo do imoacutevel deve em princiacutepio correr

por conta do proprietaacuterio porque tambeacutem seraacute ele o primeiro beneficiado pela

sua valorizaccedilatildeo428 Se o imoacutevel desvalorizar depois de a propriedade se ter

426 Entendimento diverso eacute preconizado por HENRIQUE SOUSA ANTUNES ldquoA alteraccedilatildeo das

circunstacircncias no direito europeu dos contratosrdquo Cadernos de Direito Privado nordm 47

julhosetembro 2014 pp 15 e 16 Segundo o autor soacute quando ldquoa lei o preveja o contrato

tenha natureza aleatoacuteria ou as partes tenham disposto de modo expresso sobre o temardquo eacute que

se justificaria um afastamento do regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias por aplicaccedilatildeo das

regras do risco ldquoSoluccedilatildeo diversa prejudicaria a adequaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre as partes ao que a

boa feacute dispotildee legitimaria um grave desequiliacutebrio que afecta o proacuteprio sentido da justiccedila

contratual Noutra perspectiva pressuporia a inversatildeo da primazia do requisito da afectaccedilatildeo

grave dos princiacutepios da boa feacuterdquo 427 Sobre a questatildeo v FERREIRA DE ALMEIDA ldquoErro sobre a base do negoacuteciordquo Cadernos de

Direito Privado nordm 43 julhosetembro 2013 pp 8 e ss Para FERREIRA DE ALMEIDA a

reparticcedilatildeo do risco resultaraacute em primeiro lugar da interpretaccedilatildeo do contrato Sendo este

omisso a reparticcedilatildeo do risco far-se-aacute por apelo a um conjunto de cacircnones em sistema moacutevel

ldquo2ordm Incidecircncia tendencial do risco sobre a parte que controla (ou que estaacute mais ldquoproacuteximardquo de)

o fator errado ou alterado 3ordm (que pode coincidir com a anterior) Incidecircncia tendencial do

risco sobre a parte a quem compete a prestaccedilatildeo caracteriacutestica (hellip) 4ordf Incidecircncia tendencial

do risco sobre a parte que atua com motivaccedilatildeo especulativa 5ordm Incidecircncia tendencial do risco

sobre a parte mais forte (hellip) 6ordm Reparticcedilatildeo equitativa sempre que possiacutevel atraveacutes da

modificaccedilatildeo soluccedilatildeo que precede a resoluccedilatildeordquo 428 A questatildeo natildeo eacute muito diferente daquela que no iniacutecio dos anos 80 foi amplamente

debatida pela doutrina e jurisprudecircncia portuguesas Em agosto de 1973 as accedilotildees de uma

determinada sociedade anoacutenima foram vendidas As accedilotildees foram entregues e foi acordado que

188

transmitido o risco corre por conta do seu titular quer este recorra a fundos

proacuteprios quer recorra a um financiamento de terceiro para o adquirir Ubi

commoda ibi incommoda Se o imoacutevel passar a valer o dobro apesar de por

essa via a hipoteca enquanto garantia ficar reforccedilada o beneficiaacuterio direto eacute

o proprietaacuterio Essa eacute aliaacutes uma das vantagens de aceder agrave habitaccedilatildeo atraveacutes

da aquisiccedilatildeo da titularidade do direito de propriedade com recurso a um

financiamento em alternativa agrave celebraccedilatildeo de um contrato de arrendamento O

mesmo resulta do regime geral aplicaacutevel agrave hipoteca Se existir uma diminuiccedilatildeo

do valor da coisa hipotecada por facto natildeo imputaacutevel ao devedor o credor

pode ainda assim exigir que o primeiro a substitua ou reforce (art 701ordm nordm1

o preccedilo seria pago em prestaccedilotildees Na praacutetica o vendedor concedeu por esta via um creacutedito

aos compradores Antes de essas prestaccedilotildees terem sido integralmente pagas o Estado

portuguecircs nacionalizou a sociedade vendida em 1973 Os compradores a creacutedito vieram pedir

a modificaccedilatildeo do contrato com fundamento na alteraccedilatildeo das circunstacircncias em que basearam

a decisatildeo de contratar VASCO LOBO XAVIER defendeu em Parecer que ldquodepois de transmitida

por efeito do contrato a propriedade da coisa alienada o risco do perecimento ou deterioraccedilatildeo

desta passa a correr por conta do adquirente Isto significa que natildeo obstante este perecimento

ou deterioraccedilatildeo o adquirente continuaraacute vinculado ao pagamento integral do preccedilo ainda em

diacutevida Em face disto o comprador natildeo pode valer-se do art 437ordm nos casos em que alteraccedilatildeo

das circunstacircncias invocada consista na perda ou deterioraccedilatildeo da coisa adquirida e em que

essa perda ou deterioraccedilatildeo se tenha verificado depois da transferecircncia do riscordquo Cf VASCO

LOBO XAVIER ldquoAlteraccedilatildeo das Circunstacircncias e Risco (art 437ordm e 796ordm do Coacutedigo Civil)rdquo

CJ 1982 T II p 21 Acolhendo soluccedilatildeo idecircntica v CALVAtildeO DA SILVA ldquoSwap de taxa de

juro inaplicabilidade do regime da alteraccedilatildeo das circunstacircnciasrdquo Revista de Legislaccedilatildeo e

Jurisprudecircncia ano 143 maio-junho de 2014 pp 368 e 369 Tambeacutem nos parece que em

casos como os descritos o contrato natildeo pode ser alterado por modificaccedilatildeo das circunstacircncias

De outra forma teriacuteamos de admitir que o contrato de compra e venda tambeacutem poderia ser

resolvido ou modificado a requerimento do vendedor na hipoacutetese de a sociedade no lugar de

ter sido nacionalizada ter passado a valer o dobro por circunstacircncias excecionais com as quais

as partes natildeo podiam contar no momento da conclusatildeo do contrato Contra esta soluccedilatildeo

tinham-se pronunciado ANTUNES VARELA e HENRIQUE MESQUITA para quem as regras do

risco natildeo podem paralisar o funcionamento do instituto da alteraccedilatildeo das circunstacircncias

Segundo os referidos autores o art 437ordm destina-se ldquoa corrigir certas injusticcedilas surgidas no

desenvolvimento das relaccedilotildees contratuais e que nesse plano se sobrepotildee agrave disciplina estrita

estabelecida em planos diferentes para as vaacuterias espeacutecies de contratordquo Assim as regras do

risco soacute impediriam a aplicaccedilatildeo do instituto da alteraccedilatildeo das circunstacircncias quando em causa

estivesse um risco normal mas jaacute natildeo nas situaccedilotildees de risco anormal como seria o caso de

uma nacionalizaccedilatildeo Cf ANTUNES VARELA (com colaboraccedilatildeo de HENRIQUE MESQUITA)

ldquoResoluccedilatildeo ou Modificaccedilatildeo do Contrato por Alteraccedilatildeo das Circunstacircnciasrdquo CJ 1982 T II

pp 14 e 15 Em sentido idecircntico v GUILHERME DE OLIVEIRA ldquoAlteraccedilatildeo das Circunstacircncias

Risco e Abuso de Direito a propoacutesito de um Creacutedito de Tornasrdquo Colectacircnea de

Jurisprudecircncia 1989 t V pp 20 e ss

189

do CC) mutatis mutandis se a coisa se valorizar em mais de um terccedilo do seu

valor agrave data da constituiccedilatildeo da hipoteca pode o devedor requerer a reduccedilatildeo

judicial da hipoteca (art 720ordm nordm2 al b) do CC)

213 No que concerne aos riscos do creacutedito mais concretamente ao

incumprimento das prestaccedilotildees devidas pelo mutuaacuterio em consequecircncia de uma

alteraccedilatildeo da sua situaccedilatildeo patrimonial o risco deve ser do mutuaacuterio embora

num contexto de crise nos pareccedilam positivas todas as alteraccedilotildees introduzidas

em 2012 quer atraveacutes do procedimento extrajudicial de regularizaccedilatildeo de

situaccedilotildees de incumprimento (PERSI) criado pelo Decreto-Lei nordm 2272012 de

25 de outubro quer atraveacutes do regime extraordinaacuterio de proteccedilatildeo dos

devedores de creacutedito agrave habitaccedilatildeo que se encontrem numa situaccedilatildeo econoacutemica

muito difiacutecil instituiacutedo pela Lei nordm 582012429 de 9 de novembro430 com as

alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm 582014 25 de agosto De acordo com este

uacuteltimo diploma os mutuaacuterios e os fiadores chamados a assumir as obrigaccedilotildees

dos primeiros que reuacutenam os pressupostos aiacute previstos podem beneficiar a

requerimento de um plano de reestruturaccedilatildeo da diacutevida e medidas

complementares a esse plano (arts 8ordm 10ordm e 19ordm da Lei nordm 582012 de 9 de

novembro com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm 582014 25 de agosto)

Natildeo existindo acordo relativamente agrave restruturaccedilatildeo da diacutevida pode o devedor

solicitar a aplicaccedilatildeo de medidas substitutivas da execuccedilatildeo da hipoteca como a

daccedilatildeo em cumprimento do imoacutevel hipotecado a alienaccedilatildeo do imoacutevel a um

fundo de investimento imobiliaacuterio de arrendamento habitacional com opccedilatildeo

de compra (sale and lease back) ou permuta por imoacutevel propriedade do

mutuante ou de um terceiro de valor inferior com revisatildeo do contrato de

creacutedito (art 20ordm da Lei nordm 582012 de 9 de novembro com as alteraccedilotildees

introduzidas pela Lei nordm 582014 25 de agosto)

O financiador passou a estar obrigado a renegociar o contrato por se

entender que nestes casos se ultrapassou a linha do limite de sacrifiacutecio que

com base numa ideia de justa reparticcedilatildeo do risco pode ser imposto a uma parte

para a manter vinculada a um contrato sem o modificar

429 NOTA DE ATUALIZACcedilAtildeO 1 Uma vez que o regime instituiacutedo pela Lei nordm 582012 tinha

um periacuteodo de vigecircncia inicial que terminou no dia 31 de dezembro de 2015 e natildeo foi

prorrogado afigura-se que o mesmo jaacute natildeo estaraacute em vigor 430 Sobre a proteccedilatildeo alcanccedilada no Reino Unido para os devedores sobreendividados em caso

de incumprimento do contrato de creacutedito agrave habitaccedilatildeo garantido por hipoteca pela Pre-Action

Protocol for Possession Claims based on Mortgage or Home Purchase Plan Arreas in Respect

of Residential Property v GERAINT HOWELLS ldquoChange of Circumstances in Consumer

Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call for the Maintenance of Sector

Specific Rulesrdquo cit p 462

190

A aplicaccedilatildeo deste regime tem contudo sido diminuta em virtude dos

requisitos que a lei exige estarem reunidos para que o devedor possa recorrer

a estes mecanismos de flexibilizaccedilatildeo e atenuaccedilatildeo das suas obrigaccedilotildees

contratuais O devedor tem de pertencer a um agregado familiar que se

encontre numa situaccedilatildeo econoacutemica difiacutecil431 e o valor patrimonial do imoacutevel

natildeo pode ultrapassar os euro100000 euro115000 ou euro130000 consoante o imoacutevel

hipotecado tenha respetivamente um coeficiente de localizaccedilatildeo ateacute 14 entre

15 e 25 e entre 25 e 35 (art 4ordm da Lei nordm 582012 de 9 de novembro com

as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm 582014 25 de agosto) O alargamento

dos potenciais beneficiaacuterios deste regime estaria em conformidade com os

princiacutepios de life time contracts de acordo com os quais os riscos de doenccedila

ou desemprego do mutuaacuterio podemdevem em certa medida ser transferidos

para os mutuantes Somos contudo de opiniatildeo que esse objetivo deve ser

preferencialmente alcanccedilado atraveacutes de um alargamento dos beneficiaacuterios do

regime instituiacutedo pela Lei nordm 582012 e natildeo pelo recurso agrave aplicaccedilatildeo do regime

geral da alteraccedilatildeo das circunstacircncias432 De iure condendo dever-se-aacute

nomeadamente equacionar a extensatildeo deste regime especial a agregados

431 Considera-se de acordo com o art 5ordm do referido diploma em situaccedilatildeo econoacutemica muito

difiacutecil o agregado familiar que reuacutena cumulativamente os seguintes requisitos

a) Pelo menos um dos mutuaacuterios o seu cocircnjuge ou unido de facto se encontre em situaccedilatildeo de

desemprego ou o agregado familiar tenha sofrido uma reduccedilatildeo do rendimento anual bruto

igual ou superior a 35

b) Aumento da taxa de esforccedilo para valor igual ou superior a 45 50 ou 40 consoante

respetivamente o agregado familiar integre ou natildeo dependentes ou seja considerado uma

famiacutelia numerosa

c) O valor total do patrimoacutenio financeiro de todos os elementos do agregado familiar seja

inferior a metade do rendimento anual bruto do agregado familiar

d) O patrimoacutenio imobiliaacuterio do agregado familiar seja constituiacutedo unicamente pela habitaccedilatildeo

proacutepria e permanente e por garagem e imoacuteveis natildeo edificaacuteveis ateacute ao valor total de euro 20000

e) O rendimento anual bruto do agregado familiar calculado em funccedilatildeo do seu nuacutemero de

membros natildeo exceda em 14 vezes os valores correspondente agrave soma de 100 ou 120 do

valor do salaacuterio miacutenimo nacional pelo mutuaacuterio consoante o agregado seja ou natildeo constituiacutedo

por mais de uma pessoa 70 por cada membro maior e 50 por cada membro menor 432 Esta parece ser tambeacutem a posiccedilatildeo perfilhada por GERAINT HOWELLS ldquoChange of

Circumstances in Consumer Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call

for the Maintenance of Sector Specific Rulesrdquo cit pp 463 quando refere que ldquosome

protection around the enforcement of credit contracts may be provided by general provision

on good faith and fair dealing but the consumer credit context seems best served by specific

rules (hellip) one might be sceptical about the ability of a general rule law to provide meaningful

rules that fit each and every life time contractrdquo

191

familiares com rendimentos superiores e a imoacuteveis com valores patrimoniais

mais elevados

214 Apesar de o risco da desvalorizaccedilatildeo do imoacutevel e do

incumprimento do contrato ser primariamente do mutuaacuterio o mutuante tem a

possibilidade de antes de o creacutedito ser concedido proceder a uma avaliaccedilatildeo

mais rigorosa desse risco do que o mutuaacuterioconsumidor Eacute neste contexto

que devem ser entendidas as obrigaccedilotildees de avaliaccedilatildeo da solvabilidade do

mutuaacuterioconsumidor e dos imoacuteveis criadas pela Diretiva 201417UE Aiacute se

estabelece que ldquoos Estados-Membros asseguram que antes da celebraccedilatildeo do

contrato de creacutedito o mutuante proceda a uma rigorosa avaliaccedilatildeo da

solvabilidade do consumidorrdquo atraveacutes da qual se deve apurar a probabilidade

de o mutuaacuterio cumprir o contrato de creacutedito sendo que essa avaliaccedilatildeo natildeo deve

basear-se predominantemente na circunstacircncia de o valor do imoacutevel ser

superior ao valor do creacutedito nem no pressuposto de que o imoacutevel se vai

valorizar salvo se o creacutedito se destinar agrave construccedilatildeo ou agrave realizaccedilatildeo de obras

nesse mesmo imoacutevel (art 18ordm nos 1 e 3 da Diretiva 201417UE) No que

respeita agrave avaliaccedilatildeo dos imoacuteveis cumpre assinalar que a preocupaccedilatildeo que

ressalta do art 19ordm nordm2 da Diretiva 201417UE eacute a de que esta seja realizada

por profissionais ldquoindependentes em relaccedilatildeo ao processo de negociaccedilatildeo e

contrataccedilatildeo do creacuteditordquo A soluccedilatildeo indicia que o legislador comunitaacuterio

entende que em regra a responsabilidade do devedor natildeo estaacute limitada ao

valor do imoacutevel hipotecado e que o risco de desvalorizaccedilatildeo deste assim como

as alteraccedilotildees da sua situaccedilatildeo patrimonial correm pelo mutuaacuterioconsumidor

mas que a incorreta avaliaccedilatildeo da solvabilidade deste uacuteltimo e do valor do

imoacutevel hipotecado eacute um risco do mutuante Conclusatildeo que se retira da

circunstacircncia de no art 18ordm nordm4 da Diretiva 201417UE se estabelecer que

os mutuantes natildeo poderatildeo resolver ou alterar o contrato em prejuiacutezo do

consumidor com base na incorreta avaliaccedilatildeo da solvabilidade deste uacuteltimo

salvo se esta se tiver baseado em informaccedilatildeo falsificada por ele

Interrogamo-nos contudo se na transposiccedilatildeo da Diretiva natildeo se pode

- ou deve - ir mais longe visto que aiacute tambeacutem se prevecirc que o mutuante soacute pode

disponibilizar creacutedito ao consumidor se a avaliaccedilatildeo de solvabilidade indicar

que eacute provaacutevel o cumprimento do contrato de muacutetuo (art 18ordm nordm 5 al a) da

Diretiva 201417UE) Nas hipoacuteteses em que esse juiacutezo de probabilidade

assentou numa incorreta avaliaccedilatildeo da solvabilidade do devedor e do imoacutevel

dado em garantia sem que tenha havido dolo do mutuaacuterio e essa avaliaccedilatildeo

gerou no mutuante e no mutuaacuterio a expectativa de que o imoacutevel hipotecado

seria suficiente em caso de incumprimento para solver o creacutedito em diacutevida

parece-nos que a hipoacutetese pode configurar uma situaccedilatildeo de erro sobre a base

ou de alteraccedilatildeo das circunstacircncias consoante o caso concreto que exigiraacute uma

anulaccedilatildeoresoluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo do contrato Neste caso natildeo eacute possiacutevel

afastar o regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias por apelo agraves regras do risco

192

215 Jaacute todavia no que respeita agrave alteraccedilatildeo dos custos do creacutedito o

risco deve correr por conta do mutuante O certo eacute que as mais das vezes esse

risco eacute transferido para o mutuaacuterio atraveacutes de claacuteusulas que permitem ao

mutuante alterar unilateralmente o spread Estas claacuteusulas ndash ditas de ius

variandi ndash parecem estar legitimadas pelo regime juriacutedico aplicaacutevel agraves

claacuteusulas contratuais gerais433 De acordo com o art 22ordm nordm1 al c) da LCCG

satildeo proibidas as claacuteusulas contratuais gerais que atribuam a quem as

predisponha o direito de alterar livremente o contrato exceto se existir razatildeo

atendiacutevel que as partes tenham convencionado Poreacutem tal proibiccedilatildeo natildeo se

aplica a claacuteusulas contratuais gerais que concedam ao fornecedor de serviccedilos

financeiros o direito de alterar a taxa de juro ou o montante de quaisquer outros

encargos aplicaacuteveis desde que correspondam a variaccedilotildees do mercado e sejam

comunicadas de imediato por escrito agrave contraparte podendo esta resolver o

contrato com fundamento na mencionada alteraccedilatildeo ndash cfr art 22ordm nordm 2 al

a) da LCCG434 A resoluccedilatildeo implica contudo a obrigaccedilatildeo de restituiccedilatildeo do

capital mutuado de que o mutuaacuterio pode natildeo dispor Ainda que em abstrato

433 Partindo do pressuposto que as claacuteusulas de ius variandi satildeo vaacutelidas e que por isso as

alteraccedilotildees ao contrato satildeo legiacutetimas desde que o credor as comunique atempadamente ao

devedor os Tribunais no Reino Unido tecircm discutido quais os limites que devem ser impostos

a este poder de modificaccedilatildeo unilateral dos contratos de creacutedito A jurisprudecircncia tem sido a

este propoacutesito bastante permissiva Desde que a alteraccedilatildeo da taxa de juro natildeo tenha um fim

iliacutecito ou natildeo seja desonesta caprichosa arbitraacuteria ou discriminatoacuteria a liberdade de comeacutercio

imporaacute aos tribunais que natildeo controlem estas alteraccedilotildees Para um resumo de diversas decisotildees

judiciais que versam sobre a problemaacutetica enunciada v GERAINT HOWELLS ldquoChange of

Circumstances in Consumer Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call

for the Maintenance of Sector Specific Rulesrdquo cit pp 456 e ss Para GERAINT HOWELLS

ldquoone suspects that the courts will continue to allow a large measure of commercial freedom

(hellip) Variation is not an issue covered by Consumer Credit Directive beyond the requirement

that the borrower be informed of changes in the rate interest However controls on the power

to vary it are one aspect of the ongoing relationship that could possibly be formulated as a

general rule and included in the CFR (hellip) However even if there is a power to control

variation of interest rates the scope of any such rule will have to be worked out in the context

of credit contracts that is whether it is only arbitrary controls that are restricted or whether

any charge must be reasonable thus interfering with commercial judgmentsrdquo 434 De acordo com aquele que eacute o entendimento do Banco de Portugal expresso na Carta-

Circular nordm 322011DSC os factos que fundamentam a alteraccedilatildeo devem ser especificados

pela instituiccedilatildeo de creacutedito Por outro lado esses factos devem ser externos ou alheios a esta e

ser relevantes excecionais e ter subjacente um motivo ponderoso fundado em juiacutezo ou criteacuterio

objetivo Cfr ANDREacute FIGUEIREDO ldquoO Poder de Alteraccedilatildeo Unilateral nos Contratos Bancaacuterios

Celebrados com Consumidoresrdquo Subjudice nordm 39 junho de 2007 p 17

193

o mutuaacuterio possa junto de outra instituiccedilatildeo contratar um novo financiamento

para amortizar o antigo natildeo significa que em concreto tal seja possiacutevel

Segundo ANDREacute FIGUEIREDO ldquoao contraacuterio do que sucede ao abrigo

da regra geral natildeo se exige aqui que os fundamentos objectivos para o

exerciacutecio do poder de alteraccedilatildeo unilateral do contrato se encontrem elencados

na claacuteusula geral Se a claacuteusula especificasse os eventos que legitimariam o

exerciacutecio do ius variandi estariacuteamos natildeo no acircmbito de aplicaccedilatildeo desta norma

especial mas no contexto da proacutepria regra geralrdquo435 Somos de opiniatildeo que

deveratildeo ser consideradas nulas por indeterminabilidade do seu objeto (art

280ordm do CC) as claacuteusulas contratuais que se limitem a permitir a modificaccedilatildeo

unilateral do contrato no caso de existir uma variaccedilatildeo dos mercados Quem

contrai uma obrigaccedilatildeo por 30 ou 40 anos tem de poder determinar a medida

da sua responsabilidade o que natildeo eacute possiacutevel se a uma taxa de juro variaacutevel

como a EURIBOR adicionarmos a possibilidade de alteraccedilatildeo ilimitada dos

spreads em virtude de variaccedilotildees dos mercados a definir unilateral e

exclusivamente no futuro pelo credor Natildeo nos parece que a vaguidade das

claacuteusulas contratuais que legitimam este ius variandi seja colmatada por

segundo a Carta-Circular do Banco Portugal nordm 322011DSC a alteraccedilatildeo da

taxa de juro ou outros encargos de contratos dever obedecer ao princiacutepio da

proporcionalidade e assentar numa relaccedilatildeo de causalidade entre por um lado

o evento invocado e por outro o teor e alcance da alteraccedilatildeo contratual que a

instituiccedilatildeo de creacutedito pretende introduzir Embora a invocaccedilatildeo do princiacutepio da

proporcionalidade permita excluir as alteraccedilotildees que conduzam a um

desequiliacutebrio injustificado das prestaccedilotildees ainda natildeo assim natildeo faculta ao

devedor um criteacuterio que lhe permita objetivamente mensurar a medida da sua

responsabilidade no momento em que o contrato eacute concluiacutedo

O artigo art 28ordm-A aditado ao Decreto-Lei nordm 34998 de 11 de

novembro pela Lei nordm 592009 de 9 de novembro apesar de ter limitado as

alteraccedilotildees de spread em caso de renegociaccedilatildeo do contrato436 ficou aqueacutem do

que seria exigiacutevel numa loacutegica de imputaccedilatildeo do risco de aumento dos custos

do creacutedito a quem o concede mormente quando este se funda numa variaccedilatildeo

dos mercados visto que neste ponto o regime ficou intocado

435 Cfr ANDREacute FIGUEIREDO ldquoO Poder de Alteraccedilatildeo Unilateral nos Contratos Bancaacuterios

Celebrados com Consumidoresrdquo cit pp 17 e 18 436 O que aiacute se proiacutebe eacute simplesmente o aumento dos spreads por o mutuaacuterio ter arrendado o

imoacutevel a um terceiro em virtude de uma alteraccedilatildeo do local de trabalho ou de uma situaccedilatildeo de

desemprego ou em caso de divoacutercio separaccedilatildeo judicial de pessoas e bens dissoluccedilatildeo da uniatildeo

de facto ou falecimento de um dos cocircnjuges quando se prove que o agregado familiar tem

rendimentos que proporcionam uma taxa de esforccedilo inferior a 55 ou 60 consoante este

uacuteltimo seja composto por dois ou mais dependentes

194

22 A RESOLUCcedilAtildeO E CONSEQUENTE EXECUCcedilAtildeO FORCcedilADA DA

DIacuteVIDA COMO UacuteLTIMA MEDIDAREMEacuteDIO EM CASO DE

INCUMPRIMENTO DO CREacuteDITO Agrave HABITACcedilAtildeO GARANTIDO POR

HIPOTECA E SUA CONFORMIDADE COM A DIMENSAtildeO HUMANISTA

QUE OS PRINCIacutePIOS DE LIFE TIME CONTRACTS IMPOtildeEM Agrave

REGULACcedilAtildeO DESTES CONTRATOS

De acordo com o deacutecimo primeiro princiacutepio de life time contracts a

cessaccedilatildeo antecipada do contrato deve ser feita de forma transparente

controlaacutevel e socialmente aceitaacutevel e caso seja feita contra a vontade do

consumidor deve representar-se como uma medida extrema (ultima ratio)

Em primeiro lugar cumpre assinalar que na nossa legislaccedilatildeo jaacute

encontramos refletido o princiacutepio enunciado Em caso de incumprimento jaacute

se estabelece uma proibiccedilatildeo de imediata resoluccedilatildeo do contrato de muacutetuo De

acordo com o art 7ordm-B - aditado pela Lei nordm 592012 ao Decreto-Lei nordm

34998 que regula a concessatildeo de creacutedito agrave habitaccedilatildeo - eacute necessaacuterio o

incumprimento de pelo menos trecircs prestaccedilotildees vencidas para que o contrato

possa ser resolvido

Preocupaccedilatildeo aliaacutes reiterada pelo legislador comunitaacuterio quando na

Diretiva 201417UE prevecirc que os Estados-Membros obriguem os mutuantes

ldquoa agirem com ponderaccedilatildeo adequadardquo antes de iniciarem um processo de

execuccedilatildeo (art 28ordm nordm1) Num contexto geral de crise natildeo eacute qualquer

incumprimento que deve fazer despoletar a responsabilidade patrimonial

Conforme resulta do preacircmbulo da referida Diretiva ldquodadas as importantes

consequecircncias que a execuccedilatildeo da hipoteca tem para os mutuantes os

consumidores e eventualmente para a estabilidade financeira conveacutem

incentivar os mutuantes a tratarem de forma proactiva o risco de creacutedito logo

de iniacutecio e instituir as medidas necessaacuterias para assegurar que os mutuantes

ajam com razoaacutevel toleracircncia e envidem diligecircncias razoaacuteveis para resolver a

situaccedilatildeo por outros meios antes de intentarem um processo de execuccedilatildeo

hipotecaacuteriardquo

Desde que proceda ao pagamento de todas as prestaccedilotildees vencidas e natildeo

pagas juros de mora e demais despesas incorridas pelo mutuante o mutuaacuterio

tem a possibilidade de no prazo de oposiccedilatildeo agrave execuccedilatildeo requerer a retoma do

creacutedito A lei permite assim uma purgaccedilatildeo do incumprimento com efeitos

retroativos Eacute que apesar de a mora se ter convertido em incumprimento

definitivo os efeitos retroativos da purgaccedilatildeo do incumprimento permitem a

195

revivescecircncia de um contrato que cessou (art 23ordm-B aditado pela Lei nordm 59

2012 ao Decreto-Lei nordm 34998)437

23 NAtildeO LIMITACcedilAtildeO DA RESPONSABILIDADE DO MUTUAacuteRIO AO BEM

DADO EM GARANTIA E SUA CONFORMIDADE COM OS PRINCIacutePIOS

DA NAtildeO EXCLUSAtildeO SOCIAL DO DEVEDOR EM CASO DE

INCUMPRIMENTO

Outro dos traccedilos caracteriacutesticos do nosso regime eacute a natildeo limitaccedilatildeo da

responsabilidade do mutuaacuterio ao bem dado em garantia salvo nas hipoacuteteses

em que tal foi convencionado por mutuante e mutuaacuterio (art 602ordm do CC)

Soluccedilatildeo que natildeo foi alterada pelo art 23ordm-A nordm1 do Decreto-Lei nordm 34998

aditado pela Lei nordm 592012 quando determina que por acordo podem as

partes estabelecer que a venda executiva ou a daccedilatildeo em cumprimento extingue

integralmente a diacutevida Disposiccedilatildeo desnecessaacuteria porquanto esta possibilidade

de limitaccedilatildeo da responsabilidade sempre existiu

Mesmo quando o mutuaacuterio se encontra numa situaccedilatildeo econoacutemica

difiacutecil para efeitos de aplicaccedilatildeo do regime instituiacutedo pelo art 23ordm nordm1 da Lei

nordm 582012 e vem requerer a daccedilatildeo em cumprimento do imoacutevel a daccedilatildeo soacute

extingue totalmente a diacutevida quando a soma do valor da avaliaccedilatildeo atual do

imoacutevel e das quantias entregues a tiacutetulo de reembolso do capital for pelo

menos igual ao valor do capital inicialmente mutuado acrescido das

capitalizaccedilotildees que possam ter ocorrido ou quando o valor da avaliaccedilatildeo atual

do imoacutevel para efeito de daccedilatildeo for igual ou superior agrave quantia em diacutevida Nos

outros casos a diacutevida manteacutem-se relativamente ao capital remanescente Soacute

natildeo eacute possiacutevel ao mutuante aplicar condiccedilotildees de creacutedito piores e beneficiar de

novas garantias pessoais ou reais (art 23ordm n os 2 e 3)

Soluccedilatildeo que nos parece conforme ao art 28ordm nordm 4 da Diretiva quando

estabelece que ldquoos Estados-Membros natildeo podem impedir as partes num

contrato de creacutedito de acordarem expressamente que a devoluccedilatildeo ou a

transferecircncia para o mutuante da garantia ou do produto da respetiva venda eacute

suficiente para reembolsar o creacuteditordquo

Ao contraacuterio do sustentado pelo Tribunal Judicial de Portalegre438 na

sequecircncia de algumas decisotildees proferidas por tribunais espanhoacuteis no mesmo

sentido natildeo entendemos que exista abuso de direito quando o mutuante requer

a continuaccedilatildeo da execuccedilatildeo sobre outros bens do mutuaacuterio apoacutes a adjudicaccedilatildeo

437 A revivescecircncia tambeacutem se encontra prevista no art 1084ordm nos 3 e 4 do CC para o contrato

de arrendamento que foi resolvido por falta de pagamento de rendas 438 Cf Sentenccedila de 14 de janeiro de 2012 do Tribunal Judicial de Portalegre in

httpwwwinverbispt2012ficheirosdoctribunalportalegre_creditohipotecariopdf

196

do imoacutevel hipotecado por um valor inferior ao da avaliaccedilatildeo feita no momento

da concessatildeo do creacutedito439 Segundo o Tribunal a ldquoobrigaccedilatildeo de pagamento

do simples remanescente da diacutevida apoacutes valor da adjudicaccedilatildeo configuraria

uma situaccedilatildeo de abuso de direito na modalidade de desequiliacutebrio no exerciacutecio

de direito porquanto sendo titular de um direito de creacutedito formal e

aparentemente exigiacutevel por incumprimento contratual a sua executoriedade e

reconhecimento judicial desencadearia resultados totalmente alheios ao que o

sistema poderia admitir (hellip) em consequecircncia do seu normal e regular

exerciacuteciordquo O que o Tribunal parece defender eacute que o Banco ao conceder um

creacutedito na sequecircncia de uma avaliaccedilatildeo que ele proacuteprio certificou cria uma

situaccedilatildeo de confianccedila de que o valor do imoacutevel chegaraacute para pagar o

empreacutestimo e por isso eacute abusivo vir pedir a diferenccedila entre o valor da

avaliaccedilatildeo e o valor da adjudicaccedilatildeo

Natildeo nos parece que em regra e em abstrato o exerciacutecio do direito a

requerer a adjudicaccedilatildeo pelo valor miacutenimo fixado na lei seja ilegiacutetimo por o seu

titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa feacute quando esse

valor for inferior ao da avaliaccedilatildeo feita no momento da concessatildeo do creacutedito

muito menos que haja um investimento de confianccedila merecedor de tutela que

conduza ao mesmo resultado Tudo depende do que se venha a provar ter

ocorrido no caso concreto O mutuaacuterio sabe que a sua responsabilidade natildeo se

encontra circunscrita ao bem hipotecado e que o risco de desvalorizaccedilatildeo do

imoacutevel corre por sua conta uma vez que seraacute ele tambeacutem o primeiro

beneficiado se este se valorizar

Desde que na avaliaccedilatildeo para efeitos de venda ou de adjudicaccedilatildeo se

tenha dado cumprimento aos criteacuterios legalmente estabelecidos o facto de a

adjudicaccedilatildeo ser feita por um valor inferior ao da avaliaccedilatildeo e o credor exigir a

quantia remanescente que esteja em diacutevida natildeo eacute de per si abusivo A garantia

de que goza o devedor nesses casos eacute a de que a adjudicaccedilatildeo natildeo pode ser feita

por um valor inferior a 85 do valor de base dos bens (na data do Acoacuterdatildeo o

valor era de 70) e que esse valor de base eacute o maior dos seguintes valores o

valor patrimonial tributaacuterio com menos de seis anos ou o valor de mercado

(art 816ordm nordm2 do CPC) A posiccedilatildeo do devedor natildeo eacute diferente quando o

credor requer a adjudicaccedilatildeo daquela em que estaria na hipoacutetese de o bem ser

439 No mesmo sentido v ISABEL MENEacuteRES CAMPOS ldquoComentaacuterio agrave (muito falada) sentenccedila

do Tribunal Judicial de Portalegre de 4 de janeiro de 2012rdquo Cadernos de Direito Privado nordm

38 abriljunho de 2012 pp 4 a 9 Sustentando posiccedilatildeo contraacuteria MENEZES LEITAtildeO ldquoO

impacto da crise financeira no regime do creacutedito agrave habitaccedilatildeordquo in I Congresso de Direito

Bancaacuterio Almedina Coimbra 2015 p 16 considera que este comportamento do Banco

representa um exerciacutecio manifestamente abusivo do direito de creacutedito mais concretamente

um verdadeiro venire contra factum proprium

197

vendido a um terceiro atraveacutes de apresentaccedilatildeo de proposta em carta fechada

pois o valor miacutenimo da adjudicaccedilatildeo (art 799ordm nordm3 do CPC) eacute igual ao valor

miacutenimo de venda (art 821ordm nordm3 do CPC)

O Tribunal entendeu tambeacutem que haveria aqui um enriquecimento sem

causa na modalidade de condictio ob rem quando o Banco ficou com o imoacutevel

por 70 do seu valor de base O argumento foi o de que tendo o contrato de

muacutetuo um fim especiacutefico mais concretamente a aquisiccedilatildeo de um imoacutevel o

mutuante soacute teria direito agrave diferenccedila entre o valor da diacutevida e o valor do imoacutevel

agrave data da concessatildeo do creacutedito440

Cabe perguntar se de iure condendo natildeo estaria em conformidade aos

princiacutepios de life time contracts limitar a responsabilidade do mutuaacuterio ao

valor do bem hipotecado Temos duacutevidas que essa limitaccedilatildeo seja defensaacutevel

Em primeiro lugar esta soluccedilatildeo nunca protegeria a casa de morada de famiacutelia

Sendo o uacutenico bem que responderia pela diacutevida mais facilmente seria

executado Em segundo lugar apesar de proteger o restante patrimoacutenio do

mutuaacuterio a soluccedilatildeo natildeo tem em conta que o risco de natildeo ser possiacutevel uma

daccedilatildeo em cumprimento uma adjudicaccedilatildeo ou uma venda judicial pelo valor do

creacutedito deve correr por conta do mutuaacuterio porque eacute sobre ele que recai o risco

de desvalorizaccedilatildeo do imoacutevel

Embora natildeo nos pareccedila imperativo agrave luz dos princiacutepios de life time

contracts restringir a garantia agrave hipoteca somos de opiniatildeo que devem criar-

se condiccedilotildees e incentivos para que os consumidores para aleacutem do seguro de

vida e do imoacutevel possam tambeacutem fazer seguros para garantia de situaccedilotildees de

desemprego ou de alteraccedilatildeo do niacutevel de rendimentos por motivos de sauacutede

Apesar de os custos decorrentes da subscriccedilatildeo deste tipo de coberturas serem

elevados as vantagens para o consumidor e para a solvabilidade do sistema

bancaacuterio em geral associadas agrave socializaccedilatildeo destes riscos seratildeo certamente

superiores E isto sobretudo se os seguros natildeo forem contratados com

companhias pertencentes ao mesmo grupo (juriacutedico ou econoacutemico) do

mutuante

O que se prevecirc na Diretiva eacute que os ldquoEstados-Membros devem instituir

procedimentos ou tomar medidas que permitam a obtenccedilatildeo do melhor preccedilo

pelo imoacutevel objeto de execuccedilatildeo hipotecaacuteriardquo Se depois de executada a

hipoteca subsistirem montantes em diacutevida os Estados-Membros asseguram a

440 MENEZES LEITAtildeO em comentaacuterio agrave referida decisatildeo considera que natildeo haveraacute aqui um

enriquecimento sem causa posto que ldquoa aplicaccedilatildeo da condictio ob rem natildeo tem lugar sempre

que esteja em causa um contrato como eacute neste caso o creacutedito agrave habitaccedilatildeordquo Cfr MENEZES

LEITAtildeO ldquoO impacto da crise financeira no regime do creacutedito agrave habitaccedilatildeordquo cit p 16

198

adoccedilatildeo de medidas que facilitem o reembolso a fim de proteger os

consumidores (cfr art 28ordm nordm5 da Diretiva 201417UE)

A este propoacutesito eacute necessaacuterio registar que desde 2012 o valor miacutenimo

de venda judicial ou pelo qual pode ser requerida a adjudicaccedilatildeo passou de 70

do valor de base dos bens para 85 Eacute desejaacutevel que o legislador aumente

ainda este valor

Pode tambeacutem pensar-se na criaccedilatildeo de incentivos de natureza fiscal a

quem adquira imoacuteveis atraveacutes de vendas judiciais a fim de estimular e alargar

a procura e deste modo potenciar que o produto da liquidaccedilatildeo do bem seja o

da avaliaccedilatildeo Mais concretamente propotildee-se que as isenccedilotildees previstas no art

8ordm do CIMT para as instituiccedilotildees de creacutedito ou para as sociedades comerciais

cujo capital seja direta ou indiretamente dominado pelas primeiras sejam

alargadas a todos os adquirentes de imoacuteveis em processo execuccedilatildeo ou de

insolvecircncia

Apesar de o Acoacuterdatildeo Uniformizador de Jurisprudecircncia nordm 399 e de o

art 5ordm nordm4 que subsequentemente foi introduzido no Coacutedigo de Registo

Predial terem aparentemente excluiacutedo do conceito de terceiros para efeitos de

registo as aquisiccedilotildees de direitos sobre imoacuteveis que natildeo derivem de um ato

voluntaacuterio do seu titular subsiste na jurisprudecircncia alguma incerteza

relativamente agrave oponibilidade ao comprador de boa feacute - que adquiriu um

determinado imoacutevel atraveacutes de venda judicial e registou a sua aquisiccedilatildeo - de

um direito anterior incompatiacutevel mas natildeo registado antes da penhora441 No

seguimento do que jaacute defendemos anteriormente entendemos que em face do

disposto no art 824ordm nordm2 do CC com a venda executiva caducam todos os

direitos constituiacutedos antes da penhora mas natildeo registados ateacute essa data442

No que respeita agrave garantia do reembolso do remanescente o que o

legislador nacional teraacute de equacionar no momento da transposiccedilatildeo da Diretiva

441 Sobre o tema v Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de 7 de fevereiro de 2013 (LOPES

DO REGO) processo nordm 3326094TBVFRP1S1 in wwwdgsipt De acordo com o referido

aresto o Acoacuterdatildeo Uniformizador de Jurisprudecircncia nordm 399 ldquonatildeo decidiu nem tinha que

decidir a questatildeo da natureza juriacutedica da venda judicial em termos de apurar se o Estado nela

actua em nome proacuteprio no exerciacutecio de um poder coercitivo autoacutenomo ou se pelo contraacuterio

o transmitente do bem vendido judicialmente continua ainda a ser o devedor executado

actuando o Estado em verdadeira sub-rogaccedilatildeo deste ndash e dependendo decisivamente desta

configuraccedilatildeo normativa da venda judicial a qualificaccedilatildeo do adquirente do bem como terceiro

por ter adquirido a propriedade de um mesmo transmitente comumrdquo 442 Cfr ANA TAVEIRA DA FONSECA ldquoPublicidade espontacircnea e publicidade provocada de

direitos reais sobre imoacuteveisrdquo Cadernos de Direito Privado nordm 20 outubrodezembro de 2007

pp 16 e ss

199

eacute se o regime vigente eacute suficiente para acautelar as situaccedilotildees de exclusatildeo social

do devedor sobreendividado que perde a habitaccedilatildeo Seraacute nomeadamente

necessaacuterio determinar se o regime das impenhorabilidades e da exoneraccedilatildeo do

passivo restante (arts 235ordm e ss do CIRE) eacute suficiente para acautelar esse

perigo ou se depois de executada a hipoteca seraacute necessaacuterio assegurar por via

legal uma modificaccedilatildeo do contrato de creacutedito que permita ao devedor solver o

remanescente em diacutevida e ao mesmo tempo reorganizar a sua vida O

incumprimento e a insolvecircncia natildeo podem determinar ldquoa morte do devedorrdquo

quando este eacute uma pessoa individual

24 EXECUCcedilAtildeO DA HIPOTECA E PROTECcedilAtildeO DA CASA DE MORADA DE

FAMIacuteLIA

A garantia do miacutenimo de subsistecircncia do executado outra das

preocupaccedilotildees refletida nos princiacutepios de life time contracts natildeo vai ao ponto

de impedir a penhoravenda da casa de morada de famiacutelia443

Importa por isso refletir se agrave luz deste princiacutepio tem sentido que a

execuccedilatildeo comece obrigatoriamente pelo bem hipotecado como parece resultar

do disposto no art 752ordm do CPC De facto o agente de execuccedilatildeo parece estar

obrigado a comeccedilar a penhora pelo imoacutevel hipotecado para garantia do creacutedito

exequendo mesmo que esta natildeo possa ser considerada adequada (art 751ordm

nordm3 do CPC) e proporcional ao valor da quantia exequenda (art 735ordm nordm3

do CPC) Afigura-se-nos que embora a penhora deva comeccedilar pelo bem

onerado para garantia da obrigaccedilatildeo exequenda (art 752ordm do CPC) nada

impede o executado de requerer a sua substituiccedilatildeo por outro bem que

permitindo ao exequente receber a prestaccedilatildeo a que tem direito seja menos

onerosa para o executado devendo o juiz em caso de oposiccedilatildeo do exequente

agrave substituiccedilatildeo tomar em devida consideraccedilatildeo a importacircncia do bem para o

executado (art 751ordm nordm4 al a) e nordm5 do CPC) O que resulta do regime

substantivo eacute que o devedor que for dono da coisa hipotecada tem o direito de

se opor agrave penhora de outros bens enquanto natildeo for reconhecida a insuficiecircncia

daquela para solver o creacutedito exequendo (art 697ordm do CC) Muito embora a

ratio da disposiccedilatildeo seja a de evitar que o patrimoacutenio do devedor continue

onerado enquanto outros bens do devedor estatildeo a ser penhorados e vendidos

por tal ser em geral contraacuterio ao interesse do devedor tal poderaacute natildeo suceder

443 NOTA DE ATUALIZACcedilAtildeO 2 Com a entrada em vigor da Lei nordm 132016 de 23 de maio

deixou de ser possiacutevel a venda em sede de execuccedilatildeo dos imoacuteveis destinados exclusivamente

a habitaccedilatildeo proacutepria e permanente do devedor que tenham sido penhorados por diacutevidas fiscais

Nestes casos depois da penhora a venda fica suspensa o que natildeo significa que o imoacutevel natildeo

possa ser vendido se vier a ser novamente penhorado no acircmbito por exemplo de uma

execuccedilatildeo por incumprimento de um contrato de creacutedito para aquisiccedilatildeo de habitaccedilatildeo proacutepria e

permanente garantido por hipoteca

200

quando o que estaacute em causa eacute a casa de morada de famiacutelia Devia por isso

pensar-se na possibilidade de o regime previsto no art 752ordm do CPC natildeo se

aplicar quando o bem onerado fosse a habitaccedilatildeo do executado

Eacute verdade que o regime da accedilatildeo executiva para pagamento de quantia

certa contempla vaacuterias formas de proteccedilatildeo da casa de habitaccedilatildeo efetiva do

executado especialmente desde 2013 Aiacute se prevecirc que recaindo a penhora

sobre a casa de habitaccedilatildeo efetiva do embargante a requerimento deste pode

por decisatildeo judicial sem necessidade de prestaccedilatildeo de cauccedilatildeo a venda ficar

suspensa ateacute agrave prolaccedilatildeo da decisatildeo em primeira instacircncia sobre os embargos

deduzidos pelo executado quando tal venda seja suscetiacutevel de causar prejuiacutezo

grave e dificilmente reparaacutevel (art 733ordm nordm5 do CPC) O mesmo sucede

com as necessaacuterias adaptaccedilotildees se houver deduccedilatildeo de oposiccedilatildeo agrave penhora do

imoacutevel que seja a habitaccedilatildeo efetiva do executado (art 785ordm nordm4 do CPC) ou

se a sentenccedila que estiver a servir de base agrave execuccedilatildeo estiver pendente de

recurso (art 704ordm nordm4 do CPC)

Contudo ao contraacuterio do previsto no art 864ordm do CPC e no art15ordm-N

do NRAU para o despejo do arrendataacuterio natildeo estaacute prevista a possibilidade de

se requerer a suspensatildeo provisoacuteria da entrega do imoacutevel por motivos de razatildeo

social imperiosa apoacutes a venda judicial do mesmo Eacute certo que nestes casos o

executado eacute constituiacutedo depositaacuterio depois da penhora (art 756ordm nordm1 al a)

do CPC) mas depois da venda pode necessitar de algum tempo para encontrar

outra habitaccedilatildeo e a lei natildeo contempla essa possibilidade A lei somente

estabelece que o agente de execuccedilatildeo deve comunicar antecipadamente o

despejo agrave cacircmara municipal e agraves entidades assistenciais competentes se

existirem dificuldades seacuterias de realojamento do executado e permite que a

execuccedilatildeo se suspenda quando a entrega do imoacutevel puser em risco de vida a

pessoa que aiacute habita por razotildees de doenccedila aguda (arts 828ordm 861ordm e 863ordm

nordm3 do CPC)

201

Proporcionalidade e adaptabilidade a jurisprudecircncia

do TEDH no equiliacutebrio da relaccedilatildeo entre senhorio e

inquilino

Sandra Passinhas

1 INTRODUCcedilAtildeO A RELACcedilAtildeO DE ARRENDAMENTO

Satildeo elementos essenciais do contrato de arrendamento a cedecircncia

temporaacuteria do gozo de uma coisa e o pagamento de uma retribuiccedilatildeo por esse

mesmo gozo Consideraccedilotildees de poliacutetica social mas tambeacutem de equidade ou

justiccedila social levaram os legisladores dos vaacuterios paiacuteses europeus a

implementarem normas que afectam cada um destes elementos em especial

no arrendamento para habitaccedilatildeo medidas relativas a limitaccedilotildees ao montante

inicial da renda ou congelamento dos aumentos posteriores limitaccedilotildees na

escolha da pessoa do arrendataacuterio impossibilidade de extinccedilatildeo do contrato por

vontade do senhorio natildeo caducidade do contrato de arrendamento pelo

decurso do prazo ou ainda diferimento da desocupaccedilatildeo do imoacutevel apoacutes o termo

do contrato

A protecccedilatildeo do arrendataacuterio e do seu direito agrave habitaccedilatildeo foi sendo

desenhada como uma limitaccedilatildeo aos poderes do senhorio444 em regra

proprietaacuterio do imoacutevel a favor do contraente mais fraco e vulneraacutevel o

arrendataacuterio Esta circunstacircncia natildeo pode obliterar contudo que a intervenccedilatildeo

material no contrato eacute uma opccedilatildeo do legislador na conformaccedilatildeo da poliacutetica

puacuteblica de acesso agrave habitaccedilatildeo

O direito agrave habitaccedilatildeo em Portugal eacute um direito constitucionalmente

garantido no artigo 65ordm da CRP Na sua vertente positiva445 aquela que estaacute

Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 444 No acoacuterdatildeo R amp L SRO e outros c Repuacuteblica Checa (Queixas nordms 3792605 2578409

3600209 4441009 e 6554609) de 3 de julho de 2014 pode ler-se no sect102 que uma das

dimensotildees de um direito real eacute precisamente a determinaccedilatildeo das condiccedilotildees em que um terceiro

pode usar a coisa 445 Na vertente negativa o direito agrave habitaccedilatildeo consiste no direito de natildeo ser arbitrariamente

privado da habitaccedilatildeo ou de natildeo ser impedido de conseguir uma revestindo entatildeo a forma de

direito de defesa determinando um dever de abstenccedilatildeo do Estado e de terceiros e

apresentando-se nessa medida como um direito anaacutelogo aos direitos liberdades e garantias

A chamada dimensatildeo negativa do direito agrave habitaccedilatildeo traduz-se num mero dever de abstenccedilatildeo

202

aqui em causa o direito agrave habitaccedilatildeo consiste no direito de a obter traduzindo-

se na exigecircncia das medidas e prestaccedilotildees estaduais adequadas a realizar tal

objectivo Neste sentido constitui um verdadeiro e proacuteprio lsquodireito socialrsquo que

justifica e legitima a pretensatildeo do cidadatildeo a determinadas prestaccedilotildees446

implicando determinadas obrigaccedilotildees positivas do Estado O conteuacutedo do

direito agrave habitaccedilatildeo natildeo estaacute preacute-determinado ao niacutevel das opccedilotildees

constitucionais mas antes pressupotildee uma tarefa de concretizaccedilatildeo e de

mediaccedilatildeo do legislador ordinaacuterio e cuja efectividade estaacute dependente da

chamada ldquoreserva do possiacutevelrdquo (Vorbehalt des Moumlglichen) em termos

poliacuteticos econoacutemicos e sociais447 A intervenccedilatildeo do Estado pode incindir

sobre aspectos tatildeo variados como a requalificaccedilatildeo urbana o financiamento da

aquisiccedilatildeo proacutepria a promoccedilatildeo da construccedilatildeo imobiliaacuteria o incentivo ao

arrendamento etc448 Esta intervenccedilatildeo pode ser directa atraveacutes o

do Estado e de terceiros em ordem a natildeo praticarem actos que possam prejudicar a efectiva

realizaccedilatildeo daquele direito Cfr por todos J GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA

Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa Anotada 1ordm vol 2ordf ed pp 345 e 346 446 J J GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa

Anotada 1ordm vol 2ordf ed pp 345 e 346 Na jurisprudecircncia vide o Acoacuterdatildeo TC nordm 10192 de

17 de marccedilo onde se lecirc ldquoCom efeito a vertente mais significativa do direito agrave habitaccedilatildeo

enquanto lsquodireito econoacutemico social e culturalrsquo conteacutem-se na sua dimensatildeo positiva isto eacute

no direito dos cidadatildeos agraves medidas e prestaccedilotildees estaduais adequadas agrave concretizaccedilatildeo do

objectivo ali enunciado ndash o direito a obter uma habitaccedilatildeo adequada e condigna agrave realizaccedilatildeo

da condiccedilatildeo humana em termos de preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiarrdquo

e o Acoacuterdatildeo TC nordm 13192 de 1 de abril ldquoO lsquodireito agrave habitaccedilatildeorsquo ou seja o direito a ter uma

morada condigna como direito fundamental de natureza social situado no Capiacutetulo II

(direitos e deveres sociais) do Tiacutetulo III (direitos e deveres econoacutemicos sociais e culturais)

da Constituiccedilatildeo eacute um direito a prestaccedilotildeesrdquo Considera este aresto que o direito agrave habitaccedilatildeo

como direito social que eacute quer seja entendido como um direito a uma prestaccedilatildeo natildeo vinculada

recondutiacutevel a uma mera pretensatildeo juriacutedica (na senda de Vieira de Andrade) ou antes como

um autecircntico direito subjectivo inerente ao espaccedilo existencial do cidadatildeo (na opiniatildeo de

Gomes Canotilho) natildeo lhe confere um direito imediato a uma prestaccedilatildeo efectiva jaacute que natildeo

eacute directamente aplicaacutevel nem exequiacutevel por si mesmo 447 Por todos J C VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 5ordf ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2012 pp 162 e ss 448 Da parte do particular o acesso agrave habitaccedilatildeo passa em geral pela escolha entre dois meios

privilegiados a compra e o arrendamento A opccedilatildeo por este uacuteltimo convoca razotildees tatildeo diversas

como o facto de a compra natildeo ser viaacutevel (natildeo ter meios para custear a compra de uma casa ou

natildeo ter credibilidade bancaacuteria) natildeo ser adequada agraves necessidades habitacionais (mudanccedila

frequente do local de trabalho vida familiar instaacutevel) ou existir uma opccedilatildeo expressa do

particular nesse sentido

203

fornecimento de habitaccedilatildeo ou indirecta atraveacutes de regulaccedilatildeo subsiacutedios e

incentivos449

No acircmbito da poliacutetica de acesso agrave habitaccedilatildeo450 alternativas como a

construccedilatildeo de habitaccedilatildeo puacuteblica e o desenvolvimento do arrendamento social

tecircm tido no nosso paiacutes um caraacutecter marcadamente residual A intervenccedilatildeo

sobre o arrendamento habitacional tem sido sobretudo realizado de forma

indirecta atraveacutes da regulaccedilatildeo do regime do arrendamento urbano Da

intervenccedilatildeo legislativa resulta todavia a oneraccedilatildeo do senhorioproprietaacuterio

com os custos dessas poliacuteticas nomeadamente inscrevendo-os na funccedilatildeo

social da propriedade

Numa altura em que se assiste a uma certa revitalizaccedilatildeo do mercado do

arrendamento cabe reflectir sobre os vectores essenciais de uma poliacutetica de

habitaccedilatildeo a longo prazo indagar da necessidade de uma mudanccedila das atitudes

e vontade poliacuteticas e propor a superaccedilatildeo de eventuais barreiras regulatoacuterias

O que pretendemos destacar neste texto eacute a relevante inversatildeo do

caminho decisoacuterio no TEDH de uma poliacutetica proacute-inquilino baseada num

primeiro momento de reconhecimento de uma ampla margem de apreciaccedilatildeo

aos Estados Contratantes o TEDH passou a uma anaacutelise mais profunda da

proporcionalidade das restriccedilotildees impostas aos proprietaacuterios vindo a

considerar que as poliacuteticas de habitaccedilatildeo de enorme importacircncia econoacutemica e

social natildeo podem violar os paracircmetros de protecccedilatildeo da CEDH451

449 Cfr DAVID MULLINS e ALAN MURIE ldquoIntroductionrdquo Housing Policy in the UK Public

Policy and Politics 2005 p 1 450 Note-se que a habitaccedilatildeo tem caracteriacutesticas que determinam a poliacutetica puacuteblica e que a

distinguem de outras poliacuteticas puacuteblicas para aleacutem de ter tem um custo alto por referecircncia ao

rendimento corrente reflecte padrotildees de investimento de 60-100 anos anteriores Cfr DAVID

MULLINS e ALAN MURIE ldquoIntroductionrdquo Housing Policy in the UK Public Policy and

Politics 2005 p 1 451 Jaacute analisaacutemos a protecccedilatildeo da propriedade pela Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos

no nosso ldquoThe protection of Property under European Law Fundamental Rights Consumer

Protection and Intellectual Property Bridging Conceptsrdquo Florenccedila 2010 pp 134 e ss

disponiacutevel em httpswwwgoogleptsearchq=sandra+passinhas+cadmusampie=utf-

8ampoe=utf-8ampgws_rd=crampei=zYKvVoD-LMj5aIaIlegO Mais recentemente vide o nosso

ldquoFundamental rights in actions to protect immovablerdquo in SONIA MARTIN SANTISTEBAN e

PETER SPARKES Protection of Immovables in European Legal Systems CUP 2015 pp 31-

62

204

2 A PROTECCcedilAtildeO DA PROPRIEDADE NO TEDH

Como no decurso dos trabalhos preparatoacuterios da CEDH natildeo foi

possiacutevel chegar a acordo quanto agrave oportunidade de inserir a tutela da

propriedade numa Convenccedilatildeo os Estados Contratantes acordaram que esta

protecccedilatildeo seria reenviada para a adopccedilatildeo de um protocolo posterior Eacute neste

contexto que vem a surgir o Protocolo 1 cujo artigo 1ordm eacute a uacutenica disposiccedilatildeo

da Convenccedilatildeo que tem como objecto expresso um direito patrimonial A

norma vem a ser aceita452 com o objectivo limitado de evitar os actos de

confisco arbitraacuterio da propriedade privada sem excluir o poder conformador

dos Estados sobre a propriedade a fim de garantir a realizaccedilatildeo da sua funccedilatildeo

social

O artigo 1ordm do Protocolo 1 estabelece que

ldquoQualquer pessoa singular ou colectiva tem o direito ao respeito dos

seus bens Ningueacutem pode ser privado do que eacute a sua propriedade a

natildeo ser por utilidade puacuteblica e nas condiccedilotildees previstas na lei e pelos

princiacutepios gerais do direito internacional

As condiccedilotildees precedentes entendem-se sem prejuiacutezo do direito que os

Estados possuem de pocircr em vigor as leis que julguem necessaacuterias

para a regulamentaccedilatildeo do uso dos bens de acordo com o interesse

geral ou para assegurar o pagamento de impostos ou outras

contribuiccedilotildees ou de multasrdquo

Esta norma garante o direito de propriedade453 e tem sido

entendida454 como compreendendo trecircs regras distintas455 a primeira

expressa na primeira frase do primeiro paraacutegrafo consagra o princiacutepio do gozo

paciacutefico dos bens como uma norma de natureza geral a segunda na segunda

frase do mesmo paraacutegrafo abrange a privaccedilatildeo da propriedade e sujeita-a a

determinadas condiccedilotildees a terceira contida no segundo paraacutegrafo reconhece

que os estados podem entre outras coisas controlar o uso da propriedade para

452 Sobre a origem da norma vide MARIA LUISA PADELLETTI La tutela della proprietagrave nella

Convenzione dei Diritti dellrsquoUomo Giuffregrave Milatildeo 2003 pp 1 e ss 453 Acoacuterdatildeo Marckx c Beacutelgica (Queixa nordm 683374) de 13 de junho de 1979 sect63 454 Sobre os princiacutepios que regem a interpretaccedilatildeo da Convenccedilatildeo MARIE-BEacuteNEacuteDICTE

DEMBOUR Who Believes in Human Rights ndash Reflecions on the European Convention CUP

2006 pp 21 e ss 455 Veja-se o Acoacuterdatildeo Sporrong e Loumlnnroth c Sueacutecia (Queixas nordm 715175 715275) de 23

de setembro de 1982 sect 61

205

a realizaccedilatildeo do interesse geral atraveacutes de leis456 que considerem necessaacuterias

para esse fim O Tribunal cabe controlar a conformidade do exerciacutecio deste

poder de regulamentaccedilatildeo do uso dos bens com os princiacutepios da legalidade e da

proporcionalidade surgindo assim o direito de propriedade como uma

garantia negativa perante a acccedilatildeo do poder estatal

As regras enunciadas contudo estatildeo interrelacionadas a segunda e a

terceira regras constituem instacircncias de interferecircncia com o gozo paciacutefico da

propriedade e portanto devem ser concretizadas em funccedilatildeo do princiacutepio geral

enunciado na primeira regra457

A problemaacutetica do arrendamento tem sido tratada pelo TEDH no

acircmbito especiacutefico da terceira regra (segundo paraacutegrafo) ou seja no poder dos

Estados de regulamentarem o uso dos bens458 Ainda que os senhorios

houvessem ficado privados do uso e fruiccedilatildeo do imoacutevel natildeo o pudessem

alienar etc em nenhum dos casos analisados houve medidas que implicassem

a transferecircncia do tiacutetulo de propriedade O Tribunal parece assim atribuir

relevacircncia agrave finalidade uacuteltima do regime considerando como uma simples

regulamentaccedilatildeo do uso dos bens qualquer medida que embora restringindo ndash

temporaacuteria ou definitivamente ndash alguns dos poderes do proprietaacuterio natildeo

aparece finalizada numa privaccedilatildeo da propriedade

456 No que respeita ao seu conteuacutedo o respeito pelo princiacutepio da legalidade pressupotildee uma

dupla determinaccedilatildeo relativa agrave existecircncia das normas de direito interno e agrave conformidade das

medidas concretas com essas normas Cfr MARIA LUISA PADELLETTI La tutela della

proprietagrave nella Convenzione dei Diritti dellrsquoUomo Giuffregrave Milatildeo 2003 p 182 O Acoacuterdatildeo

R amp L SRO e outros c Repuacuteblica Checa (Queixas nordm 3792605 2578409 3600209

4441009 e 6554609) de 3 de julho de 2014 versou sobre um esquema de controlo de rendas

que natildeo cobria os custos de reparaccedilatildeo reconstruccedilatildeo e manutenccedilatildeo dos apartamentos em causa

As normas em causa haviam sido declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional

pelo que a interferecircncia com os direitos do titular natildeo tinha base legal 457 Inter alia ver o Acoacuterdatildeo Lithgow e Outros c Reino Unido (Queixas nordm 900680 926281

926381 926581 926681 931381 940581) de 8 de julho de 1986 sect 106 Sobre o

fundamento filosoacutefico destas normas ver Ali Riza Ccediloban Protection of Property Rights

within the European Convention on Human Rights Ashgate 2004 pp137-138 458 Na verdade nunca o TEDH considerou que a legislaccedilatildeo do arrendamento conduzisse a uma

expropriaccedilatildeo de direito ou de facto Cfr Mellacher e outros contra Aacuteustria (Queixas nordm

1052283 1101184 1107084) de 19 de dezembro de 1989 Scollo contra Itaacutelia (Queixa nordm

1913391) de 28 de setembro de 1995 sect 27 Ghigo c Malta (Queixa nordm 3112205) de 26 de

setembro de 2006 sect49 Immobiliare Saffi contra Itaacutelia (Queixa nordm 2277493) de 28 de julho

de 1999 sect 46 Spadea and Scalabrino contra Itaacutelia (Queixa nordm 1286887) de 28 de setembro

de 1995 sect 28

206

Especificamente no que respeita ao poder de regulamentaccedilatildeo do uso dos bens

para a realizaccedilatildeo do interesse geral satildeo de referir duas notas

(1) O TEDH reconhece uma ampla margem de apreciaccedilatildeo aos Estados para

definir o que eacute o lsquointeresse geralrsquo (isto eacute quanto agrave anaacutelise e

reconhecimento do problema e quanto agrave escolha concreta das medidas

adequadas para a soluccedilatildeo do problema)

Segundo a jurisprudecircncia europeia a margem de apreciaccedilatildeo atribuiacuteda

aos Estados varia em funccedilatildeo do contexto459 entre os elementos que o TEDH

toma em consideraccedilatildeo figuram a natureza e a importacircncia do direito protegido

e o tipo de comportamento no caso concreto460 Os oacutergatildeos de controlo natildeo

podem exercer um controlo de meacuterito quanto a tal avaliaccedilatildeo no pressuposto

de que os Estados gozam de um amplo espaccedilo de avaliaccedilatildeo em funccedilatildeo dos

objectivos de poliacutetica econoacutemica e social a realizar A natildeo ser que seja

desprovida de uma base razoaacutevel ou seja se revele manifestamente infundada

o Tribunal natildeo pode substituir-se461 agrave avaliaccedilatildeo da autoridade nacional Assim

sendo o limite constituiacutedo pelo interesse geral assume significado enquanto

se consubstancie numa garantia de racionalidade (coerecircncia loacutegica e

racionalidade) mais do que numa garantia de conteuacutedo462

(1) O princiacutepio da proporcionalidade

O princiacutepio do justo equiliacutebrio ou da proporcionalidade natildeo tem

nenhuma referecircncia textual e eacute de origem exclusivamente jurisprudencial No

acircmbito do artigo 1ordm do Protocolo 1 este princiacutepio aplica-se quer a medidas de

desapossamento (segunda regra) quer nas hipoacuteteses de meras interferecircncias

com o direito de propriedade (terceira regra)463

ldquoo segundo paraacutegrafo do Artigo 1 do Protocolo 1 (P1-1) deve ser

construiacuteda agrave luz do princiacutepio da primeira frase desse artigo Assim

a interferecircncia deve respeitar um equiliacutebrio justo entre as exigecircncias

do interesse geral e os requisitos da protecccedilatildeo dos direitos

fundamentais dos indiviacuteduosrdquo

459 Sobre a margem de apreciaccedilatildeo em geral vide FRANCSCO BILANCIA I diritti fondamentale

como conquiste sovrastatali de civiltagrave Il diritto de proprietagrave nella Convenzione europea

Giappichelli Turim 2002 pp 113 e ss 460 Acoacuterdatildeo Buckley c Reino Unido (Queixa nordm 2034892) de 29 de setembro de 1996 sect 74 461 James e outros c Reino Unido (Queixa nordm 879379) de 21 de fevereiro de 1986 sect46 462 Em Mellacher et al c Aacuteustria sect 45 463 Cfr Sporrong e Loumlnnroth c Sweden sect69 e Mellacher et al c Aacuteustria sect48 James e Outros

c Reino Unido sect50

207

O princiacutepio do justo equiliacutebrio exige que cada medida de privaccedilatildeo ou

de regulamentaccedilatildeo do direito individual (no nosso caso a propriedade)

obedeccedila a uma razoaacutevel relaccedilatildeo de proporcionalidade entre os meios utilizados

e o objectivo da medida464 Este criteacuterio - que tem um alcance mais amplo do

que o da exigecircncia do pagamento de um montante indemnizatoacuterio465 - permite

equilibrar em concreto os direitos individuais protegidos pela Convenccedilatildeo com

os interesses da colectividade que justificam a sua compressatildeo

Dito de outro modo a avaliaccedilatildeo da proporcionalidade constitui o

instrumento que permite coordenar o respeito pelas obrigaccedilotildees resultantes da

Convenccedilatildeo com o exerciacutecio dos poderes soberanos de que os Estados satildeo

titulares Neste sentido a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da proporcionalidade acaba

por desenvolver uma funccedilatildeo complementar466 agrave da doutrina da margem de

apreciaccedilatildeo estadual enquanto o recurso a esta uacuteltima permite atribuir ao

Estado uma certa esfera de discricionariedade na determinaccedilatildeo dos

pressupostos que permitem a tomada de medidas limitativas ou de

regulamentaccedilatildeo dos direitos individuais a avaliaccedilatildeo da proporcionalidade diz

respeito agrave congruecircncia das medidas concretas relativamente ao fim a atingir

permitindo controlar que as medidas adoptadas pelo Estado no exerciacutecio do

poder discricionaacuterio natildeo comprimam excessivamente a posiccedilatildeo juriacutedica do

indiviacuteduo467

Assim entendido o princiacutepio da proporcionalidade constitui natildeo

apenas um princiacutepio substancial ou informador mas tambeacutem um esquema

compoacutesito de valoraccedilatildeo que permite equilibrar interesses e valores de

natureza heterogeacutenea assumindo eventualmente conteuacutedos distintos em

funccedilatildeo do tipo de interferecircncia bem como da importacircncia do direito individual

e do interesse colectivo que justificam a restriccedilatildeo

Eacute quanto a este uacuteltimo aspecto que o controlo do tribunal se mostra

mais incisivo transformando-se num controlo de meacuterito que tem em conta

todas as circunstacircncias do caso concreto O criteacuterio do justo equiliacutebrio e o da

464 Acoacuterdatildeo Beyeler c Itaacutelia (Queixa nordm 3320296) de 5 de janeiro de 2000 sect114 465 Vide MARIA LUISA PADELLETTI La tutela della proprietagrave nella Convenzione dei Diritti

dellrsquoUomo Giuffregrave Milatildeo 2003 pp 212 e ss 466 Cfr MARIA LUISA PADELLETTI La tutela della proprietagrave nella Convenzione dei Diritti

dellrsquoUomo Giuffregrave Milatildeo 2003 p 233 Fala em funccedilatildeo correctiva ALI RIZA CcedilOBAN

Protection of Property Rights within the European Convention on Human Rights Ashgate

2004 p 204 467 O controlo da proporcionalidade incinde sobre os efeitos que a medida concreta de

interferecircncia ou regulamentaccedilatildeo comporta em relaccedilatildeo ao caso concreto permite verificar se o

indiviacuteduo (o senhorio) sofre um sacrifiacutecio excessivo e exorbitante Cfr Hakansson e Sturesson

c Sueacutecia (Queixa nordm 1185585) sect 51

208

proporcionalidade tornam-se nas matildeos do tribunal um instrumento de poliacutetica

judiciaacuteria extremamente duacutectil que permite a este uacuteltimo alcanccedilar as soluccedilotildees

mais variadas

3 AS POLIacuteTICAS NACIONAIS DE ARRENDAMENTO SUJEITAS A

ESCRUTIacuteNIO O RECONHECIMENTO DE UMA AMPLA MARGEM DE

APRECIACcedilAtildeO AOS ESTADOS CONTRATANTES

Vamos comeccedilar por analisar a jurisprudecircncia do TEDH no caso

Mellacher em que o Tribunal escrutinou medidas austriacuteacas de controlo de

rendas

I CASO MELLACHER ET AL C AacuteUSTRIA DE 19 DE DEZEMBRO DE

1989 RENDAS CONTROLADAS

Este eacute um caso paradigmaacutetico na jurisprudecircncia do TEDH cujas linhas

orientadoras estiveram na base da posterior evoluccedilatildeo jurisprudencial

Discutiam-se no caso concreto determinadas medidas legislativas - com base

na Lei do Arrendamento Austriacuteaca de 1981 (Mietrechtsgesetz) em especial o

sect 44 - atraveacutes das quais o Estado havia transformado contratos de

arrendamento de duraccedilatildeo limitada com rendas livremente negociadas entre as

partes em contratos de duraccedilatildeo indeterminada e com renda limitada que em

alguns casos dificilmente permitia cobrir os custos de manutenccedilatildeo dos

imoacuteveis468

Mr Mellacher e os outros requerentes que eram proprietaacuterios de um

preacutedio relativamente ao qual haviam celebrado contratos de arrendamento

queixaram-se de que as autoridades austriacuteacas interferiram com a sua liberdade

contratual e privaram-nos do percebimento das rendas A Lei do

Arrendamento alegaram tornara-os meros administradores das suas

propriedades a troco de uma retribuiccedilatildeo controlada pelas autoridades puacuteblicas

Natildeo se colocaram no caso concreto duacutevidas quanto agrave base legal da

intervenccedilatildeo e na medida em que o Estado Austriacuteaco alegou que a Lei visava

reduzir a disparidade de rendas para apartamentos equivalentes e combater a

especulaccedilatildeo imobiliaacuteria tornar mais faacutecil o alojamento a preccedilos razoaacuteveis para

468 Para a fixaccedilatildeo do montante de renda por metro quadrado a Lei do Arrendamento dividia

os arrendamentos em quatro classes de acordo com o seu niacutevel de conforto e

independentemente da sua localizaccedilatildeo geograacutefica Esta divisatildeo era muito desvantajosa para os

senhorios de casas com menos condiccedilotildees criando situaccedilotildees de desigualdade

209

uma populaccedilatildeo menos afluente e ao mesmo tempo incentivar melhoramentos

nos imoacuteveis o Tribunal considerou que a medida visava prosseguir um

objectivo de interesse geral469

Restava470 entatildeo a questatildeo da proporcionalidade saber se a intervenccedilatildeo

em causa respeitava o equiliacutebrio (fair balance) entre as necessidades de

interesse geral da comunidade e a protecccedilatildeo dos direitos fundamentais dos

indiviacuteduos equiliacutebrio esse que se manifesta numa adequada proporcionalidade

entre os meios empregues e o objectivo perseguido O juiacutezo do Tribunal foi

positivo apesar do montante avultado das reduccedilotildees estas natildeo constituem um

oacutenus desproporcionado e o facto de as rendas terem sido acordadas

previamente de acordo com os valores de mercado natildeo impede que o legislador

as considere inaceitaacuteveis do ponto de vista da justiccedila social

Se esta decisatildeo respeita integralmente a margem de apreciaccedilatildeo do

Estado Contratante no que respeita agrave intervenccedilatildeo no equiliacutebrio das prestaccedilotildees

contratuais vamos agora ver as especificidades dos casos em que estava em

causa a legislaccedilatildeo italiana no acircmbito do arrendamento

II CASOS CONTRA ITAacuteLIA

Desde 1947 que o legislador italiano intervinha no arrendamento

urbano quer atraveacutes do controlo e congelamento das rendas quer pela

prorrogaccedilatildeo legal dos arrendamentos em vigor e pelo adiamento suspensatildeo

ou escalonamento da execuccedilatildeo das ordens de despejodesapossamento

Diploma nuclear deste regime foi a Lei 392 de 27 de julho de 1978

que estabelecia um limite da prorrogaccedilatildeo legal dos arrendamentos ateacute 31 de

dezembro de 1982 30 de junho de 1983 ou 31 de dezembro de 1983 consoante

as circunstacircncias Este diploma estabelecia na Secccedilatildeo 56 que o magistrado

fixava a data para a execuccedilatildeo da ordem de desapossamento tendo em

consideraccedilatildeo as circunstacircncias particulares do inquilino e do senhorio e a

causa de extinccedilatildeo do arrendamento A execuccedilatildeo natildeo poderia ser diferida por

mais de seis meses ou de doze em casos excepcionais

469 Cfr sect 47 470 O Tribunal reconheceu no sect 51 que na legislaccedilatildeo social sobre o controlo de rendas o

legislador pode tomar medidas que afectem a execuccedilatildeo de contratos celebrados em data

anterior de modo a prosseguir o objectivo pretendido Tambeacutem natildeo ajuizou a possibilidade de

medidas alternativas Na medida em que o Estado aja nos limites da sua margem de

apreciaccedilatildeo natildeo cabe ao Tribunal avaliar em que medida a legislaccedilatildeo em causa representa a

melhor soluccedilatildeo para lidar com o problema ou em que medida a discricionariedade legislativa

deveria ter sido exercida noutra maneira

210

Desde 1983 todavia vaacuterias normas vieram prorrogar a suspensatildeo

dessas ordens de reapossamento (ordinanze di sfratto)471 A Lei 118 de 5 de

abril de 1985 na sua Secccedilatildeo 1(3) viria a determinar que as suspensotildees natildeo

seriam aplicaacuteveis se a repossessatildeo houvesse sido ordenada por incumprimento

do pagamento das rendas Tambeacutem natildeo poderia ser ordenada a prorrogaccedilatildeo da

suspensatildeo do despejo se (a) apoacutes a conclusatildeo do contrato o senhorio

requeresse o imoacutevel para uso (residencial comercial ou profissional) proacuteprio

do cocircnjuge filhos ou netos e se oferecesse ao inquilino acomodaccedilatildeo similar

com uma renda comportaacutevel e que natildeo ultrapassasse os 20 da renda inicial

pagando ainda os custos da mudanccedila do inquilino (b) quando o senhorio

tivesse necessidade urgente do imoacutevel para seu alojamento dos seus filhos ou

dos seus ascendentes

Estas medidas foram sancionadas pelo Tribunal no Acoacuterdatildeo Spadea e

Scalabrino c Itaacutelia472 No que respeita ao objectivo da interferecircncia o Tribunal

considerou que as medidas legislativas que suspendiam os despejos durante o

periacuteodo 1984 a 1988 eram adequadas para lidar com o elevado nuacutemero de

extinccedilatildeo de contratos de arrendamento entre 1982 e 1983 previsto devido ao

levantamento das suspensotildees de execuccedilatildeo pela Lei 3921978 e justificava-se

pela necessidade de permitir que os inquilinos afectados encontrassem novo

alojamento ou obtivessem habitaccedilatildeo social A execuccedilatildeo simultacircnea de todas

as ordens de despejo considerou-se originaria uma consideraacutevel tensatildeo social

e poria em causa a ordem puacuteblica473

Quanto agrave proporcionalidade da interferecircncia face ao propoacutesito da

intervenccedilatildeo ndash proteger os inquilinos com baixos rendimentos e evitar o risco

de perturbaccedilatildeo da ordem puacuteblica ndash o Tribunal avaliou em que medida foi

respeitado o equiliacutebrio entre o interesse dos requerentes e o interesse puacuteblico

Considerando que na situaccedilatildeo concreta a uacutenica causa para o desapossamento

471 Mais concretamente o Decreto Legislativo 795 de 1 de dezembro de 1984 cujas normas

foram incorporadas no Decreto Legislativo 12 de 7 de fevereiro de 1985 que mais tarde se

tornou Lei 118 de 5 de abril de 1985 e que cobria o periacuteodo de 1 de dezembro de 1984 a 30

de junho de 1985 Uma segunda suspensatildeo resultou do Decreto Legislativo 708 de 29 de

outubro de 1986 que veio a tornar-se a Lei 899 de 23 de dezembro de 1986 e que cobria o

periacuteodo entre 29 de dutubro de 1986 e 31 de marccedilo de 1987 Uma terceira suspensatildeo foi

introduzida pelo Decreto Legislativo 26 de 8 de fevereiro de 1988 que se tornou a Lei 108

de 8 de abril de 1988 e que cobria inicialmente o periacuteodo de 8 de fevereiro de 1988 a 30 de

setembro mas depois foi prorrogado ateacute 31 de dezembro de 1988 Finalmente uma uacuteltima

suspensatildeo foi introduzida pelo Decreto Legislativo 551 de 30 de dezembro de 1988 que se

tornou Lei 61 de 21 de fevereiro de 1989 e que cobria o periacuteodo ateacute 30 de abril de 1989 472 Acoacuterdatildeo Spadea e Scalabrino c Itaacutelia (Queixa nordm 1286887) de 28 de setembro de 1995 473 Para 31

211

era a caducidade do contrato de arrendamento e que natildeo se verificava

nenhuma situaccedilatildeo de excepccedilatildeo agrave suspensatildeo do despejo ndash apesar de os

requerentes terem sido obrigados a comprar um novo apartamento e natildeo terem

recuperado o imoacutevel senatildeo apoacutes a morte de uma arrendataacuteria e apoacutes a saiacuteda

voluntaacuteria da outra ndash o Tribunal considerou que as medidas natildeo eram

desproporcionadas mas antes cabiam na margem de apreciaccedilatildeo reconhecida

ao Estado italiano pelo segundo paraacutegrafo do artigo 1 do Protocolo 1

No Acoacuterdatildeo Scollo c Itaacutelia de 28 de setembro de 1995474 o requerente

tinha uma ordem judicial para a desocupaccedilatildeo do imoacutevel pelo inquilino em 30

de junho de 1984 A pedido do inquilino o magistrado deferiu ao abrigo da

Lei 94 de 25 de marccedilo de 1982 a desocupaccedilatildeo para 31 de outubro de 1984

Como o inquilino permaneceu no imoacutevel o requerente iniciou o procedimento

de despejo Entretanto o Decreto de 17 de fevereiro de 1985 (que viria a ser a

Lei nordm 118 de 5 de abril de 1985) entrou em vigor suspendendo os despejos

ateacute 30 de junho de 1985 Entre 1 de julho de 1985 e a entrada em vigor do

Decreto Legislativo 708 de 29 de outubro de 1986 que suspendeu os despejos

ateacute 31 de marccedilo de 1987 o requerente fez nove tentativas para despejar o

inquilino Entre 1 de abril de 1987 e 8 de fevereiro de 1988 data em que uma

nova seacuterie de diplomas veio suspender os despejos ateacute 30 de abril de 1989 o

senhorio fez nove tentativas para despejar o inquilino Entre 1 de maio de 1989

e 15 de outubro de 1991 o senhorio (diabeacutetico com 71 de incapacidade e

desempregado) fez dezoito tentativas infrutiacuteferas para despejar o inquilino Em

1 de dezembro de 1989 o senhorio inicia um processo judicial contra o

inquilino invocando que a suspensatildeo do despejo natildeo era aplicaacutevel ao caso

concreto pois o inquilino desde Novembro de 1987 natildeo pagava parte da

renda O inquilino regularizou a situaccedilatildeo e o processo foi arquivado Scollo

viria a recuperar o imoacutevel a 15 de janeiro de 1995

A respeito do propoacutesito da interferecircncia o Tribunal repetiu o raciociacutenio

jaacute referido no Acoacuterdatildeo Spadea e Scalabrino v Itaacutelia e considerou que a

execuccedilatildeo simultacircnea de todas as ordens de despejo originaria uma

consideraacutevel tensatildeo social e poria em causa a ordem puacuteblica

Quanto agrave proporcionalidade o Tribunal comeccedilou por aceitar que a

necessidade urgente de Scollo em recuperar o seu imoacutevel natildeo se verificou

durante todo o periacuteodo em causa mas natildeo aceitou as conclusotildees que o

Governo retirou desse facto Apesar da declaraccedilatildeo solene do requerente da

necessidade da casa proferida a 30 de novembro de 1987 que lhe daria

prioridade na assistecircncia policial para executar o despejo nunca houve uma

ordem administrativa nesse sentido Igualmente apesar de o seu advogado ter

contactado duas vezes o Comiteacute da Prefeitura em setembro de 1994 -

474 Acoacuterdatildeo Scollo c Itaacutelia (Queixa nordm 1913391) de 28 de setembro de 1995

212

sublinhando que o caso do seu cliente deveria ser resolvido rapidamente jaacute

que ele precisava do apartamento natildeo tinha emprego e tinha uma incapacidade

de 71 para aleacutem de o inquilino natildeo pagar a renda desde 30 de novembro de

1987 - as autoridades administrativas competentes natildeo agiram de forma a

responder a estes pedidos

Ainda que no caso concreto as condiccedilotildees legais para a execuccedilatildeo do

despejo estivessem verificadas o requerente natildeo recuperou a propriedade ateacute

15 de janeiro de 1995 e apenas porque o inquilino deixou o apartamento de

livre vontade Nesse periacuteodo o requerente natildeo soacute foi obrigado a comprar outro

apartamento como ainda teve de propor uma acccedilatildeo judicial para resolver o

problema do natildeo pagamento das rendas

Concluiu o Tribunal que475 ao adoptar as medidas de emergecircncia e ao

estabelecer determinadas excepccedilotildees agrave sua aplicaccedilatildeo o legislador italiano

poderia razoavelmente considerar que de acordo com a necessidade de

encontrar um justo equiliacutebrio entre os interesses da comunidade e o direito dos

senhorios e do requerente em particular que os meios escolhidos eram

apropriados para alcanccedilar o objectivo pretendido No entanto a restriccedilatildeo ao

uso do apartamento por parte do requerente resultante da natildeo aplicaccedilatildeo pelas

autoridades competentes dessas normas foi contraacuteria aos requisitos do

segundo paraacutegrafo do Artigo 1 do Protocolo 1 Consequentemente houve uma

violaccedilatildeo dessa norma

O Tribunal apreciou ainda a existecircncia de uma violaccedilatildeo do artigo 6ordm476

sect1 que estabelece

Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada

equitativa e publicamente num prazo razoaacutevel por um tribunal

independente e imparcial estabelecido pela lei o qual decidiraacute quer

sobre a determinaccedilatildeo dos seus direitos e obrigaccedilotildees de caraacutecter civil

quer sobre o fundamento de qualquer acusaccedilatildeo em mateacuteria penal

dirigida contra ela O julgamento deve ser puacuteblico mas o acesso agrave

sala de audiecircncias pode ser proibido agrave imprensa ou ao puacuteblico

durante a totalidade ou parte do processo quando a bem da

moralidade da ordem puacuteblica ou da seguranccedila nacional numa

sociedade democraacutetica quando os interesses de menores ou a

protecccedilatildeo da vida privada das partes no processo o exigirem ou na

medida julgada estritamente necessaacuteria pelo tribunal quando em

475 Para 40 476 Sobre as relaccedilotildees entre o artigo 1ordm do Protocolo 1 e o artigo 6ccedil Ali Riza Ccediloban Protection

of Property Rights within the European Convention on Human Rights Ashgate 2004 pp 244

e ss

213

circunstacircncias especiais a publicidade pudesse ser prejudicial para

os interesses da justiccedila

O Tribunal considerou em primeiro lugar que a norma era aplicaacutevel

o objectivo dos procedimentos era resolver um litiacutegio entre o requerente e o

inquilino Em segundo lugar o Tribunal sublinhou que entre a notificaccedilatildeo do

inquilino para o despejo e a desocupaccedilatildeo (voluntaacuteria) do imoacutevel decorreram

onze anos e dez meses Ao natildeo ultrapassar as dificuldades praacuteticas criadas com

a execuccedilatildeo de um elevado nuacutemero de despejos considerou o Tribunal que a

ineacutercia das autoridades administrativas competentes gerou responsabilidade

do Estado italiano nos termos do artigo 6ordm nordm 1

No Acoacuterdatildeo Immobiliare Saffi v Itaacutelia477 um caso entre muitos

julgados pelo Tribunal478 relativos agrave jaacute referida Lei 61 de 21 de fevereiro de

1989 que entrou em vigor no mecircs de marccedilo desse mesmo ano ndash estava em

causa a distinccedilatildeo entre os despejos prioritaacuterios e os natildeo prioritaacuterios Esta Lei

estabelecia que a partir de 1 de maio de 1989 o pedido de assistecircncia policial

para os despejos seria tratado segundo uma ordem de prioridade estabelecida

de acordo com criteacuterios fixados pelo prefeito Entre os casos com prioridade

contavam-se aqueles em que natildeo era legalmente possiacutevel suspender a

execuccedilatildeo especialmente os casos em que os senhorios precisavam de

alojamento para si proacuteprios para os cocircnjuges descendentes e ascendentes

Para todos os outros casos a assistecircncia policial deveria ser providenciada no

maacuteximo ateacute quarenta e oitos meses contados a partir de 1 de janeiro de 1990

ou seja ateacute dezembro de 1993 Na sequecircncia desta lei e relevante para o caso

entraram na Perfettura de Livorno 1186 casos de pedido de assistecircncia policial

para despejos (354 casos de atrasos no pagamento da renda 58 denuacutencias para

habitaccedilatildeo 722 porque terminou o contrato 55 outras)

Se os casos natildeo prioritaacuterios deveriam ter lugar num periacuteodo maacuteximo

de 4 anos a contar de 1990 ou seja ateacute dezembro de 1993 na praacutetica todavia

ateacute os despejos urgentes se tornaram muito difiacuteceis e o pedido de assistecircncia

policial tornou-se um momento autoacutenomo no despejo com a possibilidade de

o prefeito poder suspender a ordem dada pelo magistrado Em dezembro de

1993 o prazo foi prorrogado ateacute 31 de dezembro de 1995 depois ateacute 26 de

fevereiro de 1996 e finalmente ateacute 26 de abril de 1996 De 31 de dezembro de

1993 ateacute 31 dezembro de 1995 (Decreto Legislativo nordm 33093) de 31 de

dezembro de 1995 ateacute 29 de fevereiro de 1996 (Decreto Legislativo nordm 54695

477 Acoacuterdatildeo Immobiliare Saffi c Itaacutelia (Queixa nordm 2277493) de 28 de julho de 1999 478 Stornelli e Sacchi c Itaacutelia 28 de outubro de 2005 Lunari c Itaacutelia 11 de abril de 2001

Edoardo Palumbo c Itaacutelia 1 de marccedilo de 2001 Molteni e Ghisi c Itaacutelia 28 de outubro de

2005

214

de 29 de fevereiro de 1996 ateacute 26 de abril de 1996 (Decreto-Legislativo nordm

8196) de 26 abril 1996 ateacute 25 de junho de 1996 (Decreto Legislativo nordm

21796 e desde essa altura ateacute 31 de dezembro de 1996 (Decreto Legislativo

nordm 33596) Satildeo ainda de referir as posteriores Lei 566 de 4 de novembro de

1996 os Decretos Legislativos 1721997 71998 e 3751998 e a Lei 431 de

9 de dezembro de 1998

No caso concreto depois de ter sido dada notiacutecia de despejo em 1983

e de entre 15 de dezembro de 1988 e janeiro de 1996 terem sido feitas onze

tentativas de recuperar o imoacutevel sem sucesso por o requerente natildeo ter direito

a assistecircncia policial o reapossamento acabou por ter lugar apenas em abril de

1996 na sequecircncia da morte do inquilino

O Tribunal considerou que o escopo desta legislaccedilatildeo que se

enquadrava no segundo paraacutegrafo do Artigo 1ordm do Protocolo 1 era liacutecito jaacute

que a legislaccedilatildeo impugnada tinha um objectivo de interesse geral como

requerido pelo segundo paraacutegrafo do Artigo 1ordm (o jaacute mencionado objectivo de

evitar a tensatildeo social e o perigo para a ordem puacuteblica eventualmente resultante

da extinccedilatildeo de um elevado nuacutemero de contratos entre 1982 e 1983 devido ao

levantamento das suspensotildees de execuccedilatildeo das ordens de despejo e o de

permitir que os inquilinos afectados encontrassem novo alojamento ou

obtivessem habitaccedilatildeo social)479

No que agrave proporcionalidade da medida dizia respeito o tribunal reiterou

que esta deve respeitar o justo equiliacutebrio (fair balance) entre as necessidades do

interesse geral e a protecccedilatildeo dos direitos dos indiviacuteduos reconhecendo ao

Estado uma ampla margem de apreciaccedilatildeo quer na escolha dos meios de

concretizaccedilatildeo desse fim quer na questatildeo de saber se as consequecircncias dessa

concretizaccedilatildeo satildeo justificadas pelo objectivo da lei em questatildeo480 Nesse

sentido reiterou que um sistema de suspensatildeo temporaacuteria ou escalonamento de

execuccedilatildeo de ordens judiciais seguidas da reinstalaccedilatildeo do senhorio na sua

propriedade natildeo eacute soacute por si susceptiacutevel de criacutetica tendo em consideraccedilatildeo a

margem de apreciaccedilatildeo permitida pelo segundo paraacutegrafo do artigo 1481

Todavia este sistema comporta o risco de impor aos senhorios um oacutenus

excessivo em termos de disposiccedilatildeo da sua propriedade e deve dar garantias

procedimentais que salvaguardem a operatividade do sistema e que o impacto

nos direitos do proprietaacuterio natildeo seja arbitraacuterio nem imprevisiacutevel O Tribunal

considerou que o sistema italiano era inflexiacutevel ao estabelecer que os casos em

que o arrendamento havia cessado com fundamento na necessidade urgente do

479 sect 47 480 sect 49 481 sect 54

215

imoacutevel do senhorio tinham prioridade tornou a execuccedilatildeo das ordens natildeo-

urgentes dependentes da inexistecircncia de ordens prioritaacuterias Na medida em que

existia sempre um largo nuacutemero de pedidos prioritaacuterios as ordens natildeo

prioritaacuterias praticamente natildeo foram executadas mesmo apoacutes Janeiro de 1990

Dito de outro modo o fornecimento de assistecircncia policial ficava sempre

dependente do nuacutemero de pedidos prioritaacuterios e do nuacutemero de agentes policiais

disponiacuteveis O Tribunal sublinhou ainda que na fase administrativa nenhum

tribunal tinha jurisdiccedilatildeo para apreciar o impacto que os atrasos causados pelo

sistema tinham nos casos concretos a actividade do perfeito era autorizada e

cabia no acircmbito da legislaccedilatildeo em vigor O Tribunal considerou em uacuteltimo lugar

que as medidas de emergecircncia adoptadas natildeo tinham nenhum limite temporal

findo o qual fosse assegurado o reaposssamento do senhorio

No caso concreto o juiz ordenou ao inquilino que restituiacutesse o imoacutevel

ao senhorio ateacute 30 de setembro de 1984 Nos seis anos seguintes a execuccedilatildeo

das ordens de despejo natildeo urgentes foi sendo sucessivamente suspensa Em

1989 Immobiliare Saffi obteve o direito a assistecircncia policial entre 1 de janeiro

de 1990 e o final de 1993 Mas este prazo foi sendo prorrogado e o requerente

soacute recuperou o imoacutevel a 11 de abril de 1996 apoacutes a morte do inquilino

O tribunal considerou que durante onze anos a situaccedilatildeo causou um

estado de incerteza juriacutedica quanto ao momento da restituiccedilatildeo do apartamento

O requerente natildeo poderia requerer tutela judicial ao juiz que tratou do processo

de execuccedilatildeo que considerou ser de admitir uma prorrogaccedilatildeo nem ao tribunal

administrativo que natildeo poderia afastar a decisatildeo do prefeito de dar prioridade a

casos urgentes jaacute que a decisatildeo era legiacutetima O requerente natildeo tinha modo de

compelir o governo a tomar em consideraccedilatildeo as dificuldades surgidas em

virtude da prorrogaccedilatildeo Do mesmo a empresa natildeo tinha perspectivas de obter

uma indemnizaccedilatildeo do Governo italiano pelo periacuteodo da prorrogaccedilatildeo durante o

qual esteve incapaz de vender ou arrendar o seu apartamento a valor de mercado

Consequentemente o Tribunal concluiu que as medidas tomadas pelo legislador

italiano impuseram um oacutenus excessivo agrave empresa requerente e afectaram o

equiliacutebrio entre a protecccedilatildeo do direito de propriedade e as exigecircncias do

interesse geral consubstanciando uma violaccedilatildeo do artigo 1 do Protocolo 1

Os requerentes tambeacutem invocaram a violaccedilatildeo do artigo 6ordm nordm 1 da

CEDH A este respeito o Tribunal tomou em consideraccedilatildeo que a requerente

pediu ao magistrado de Livorno uma ordem confirmando a extinccedilatildeo do

arrendamento e requerendo que o inquilino restituiacutesse o imoacutevel Como o

inquilino natildeo contestou o despejo a uacutenica questatildeo era verdadeiramente a

restituiccedilatildeo do imoacutevel a recusa em restituir o imoacutevel consubstanciava uma

extensatildeo de facto do arrendamento e uma limitaccedilatildeo do direito de propriedade

do requerente o que constituiacutea um ldquolitiacutegiordquo para efeitos do artigo 6ordm O

Tribunal considerou ainda que o direito a um tribunal seria ilusoacuterio se uma

216

decisatildeo domeacutestica pudesse manter-se inoperativa em detrimento de uma das

partes Seria inconcebiacutevel que o artigo 6ordm previsse garantias processuais dos

litigantes ndash processos justos puacuteblicos e ceacuteleres ndash sem proteger a execuccedilatildeo das

decisotildees construir o artigo 6ordm como dizendo respeito apenas ao acesso aos

tribunais e com o decurso do processo seria uma violaccedilatildeo do Estado de Direito

A execuccedilatildeo de uma decisatildeo judicial cabe ainda no conceito de ldquocausardquo do

artigo 6ordm como eacute jurisprudecircncia constante e antiga do Tribunal482

Relativamente ao caso concreto o Tribunal sublinhou em primeiro

lugar que a decisatildeo administrativa relativa agrave concessatildeo de assistecircncia policial

se baseava nos mesmos factores jaacute tomados em consideraccedilatildeo pelo magistrado

ao abrigo da Lei 39278 Em segundo lugar o Tribunal observou que a decisatildeo

administrativa natildeo estava sujeita a controlo judicial Por uacuteltimo o Tribunal

considerou que a prestaccedilatildeo de assistecircncia policial foi sendo adiada por

periacuteodos de seis meses ao longo de quase nove anos fazendo pressupor que

as autoridades italianas natildeo procuraram soluccedilotildees alternativas para as questotildees

de ordem puacuteblica na aacuterea da habitaccedilatildeo Consequentemente o Tribunal

declarou uma violaccedilatildeo do artigo 6ordm da Convenccedilatildeo

4 A VIRAGEM NA JURISPRUDEcircNCIA DO TEDH DA INSUFICIEcircNCIA

ADJECTIVA OU PROCEDIMENTAL Agrave INTERFEREcircNCIA SUBSTANTIVA

Se nos casos contra Itaacutelia o Tribunal declarou a violaccedilatildeo do artigo 1ordm

do Protocolo 1 com base em razotildees objectivas ou procedimentais483 vamos

agora analisar a viragem jurisprudencial do Tribunal em casos em que estava

em causa o equiliacutebrio substancial484 da relaccedilatildeo entre senhorio e inquilino485

482 Acoacuterdatildeo Hornsby c Greece (Queixa nordm 1835791) de 19 de marccedilo de 1997 sect 40 483 Assim como no Acoacuterdatildeo Schirmer c Poloacutenia (Queixa nordm 6888001) de 21 de setembro de

2004 sobre a oferta de residecircncia alternativa como requisito de execuccedilatildeo de uma decisatildeo de

despejo 484 Em sentido divergente quanto agrave natureza desta viragem mas quanto a noacutes sem razatildeo como

resulta do que vimos de dizer David Magalhatildees ldquoPropriedade privada e cessaccedilatildeo do

arrendamento urbano uma compatibilizaccedilatildeo possiacutevelrdquo BFD 86 (2010) p 690 Afirma o

autor que o acompanhamos num texto que havia escrito anteriormente em 2005 - ldquoAs

restriccedilotildees ao direito de propriedade decorrentes do vinculismo arrendatiacutecio uma perspectiva

jusfundamentalrdquo BFD 81 (2005) pp 967-1007 - o que natildeo eacute verdade como claramente

resulta da presente exposiccedilatildeo 485 Sobre o que consideram o abandono da autocontenccedilatildeo judicial do Tribunal ver CHRISTOPH

SCHMID JASON R DINSE e MARTA SANTOS SILVA ldquoRumo a um nuacutecleo comum do

arrendamento urbano para fins habitacionais da Europardquo BFD 89 (2013) pp 422 e ss

217

I OS ACOacuteRDAtildeOS HUTTEN-CZAPSKA V POLOacuteNIA 3501497 DE 22

DE FEVEREIRO DE 2005 E 19 DE JUNHO DE 2006 (GRAND

CHAMBRE)

Comecemos por algumas notas sobre o contexto polaco O Decreto de

21 de dezembro de 1945 sobre Gestatildeo Puacuteblica da Habitaccedilatildeo e Controlo do

Arrendamento486 que entrou em vigor a 13 de fevereiro de 1946 introduziu a

Poliacutetica de Gestatildeo Puacuteblica da Habitaccedilatildeo que se aplicava aos arrendamentos

para habitaccedilatildeo e para comeacutercio de imoacuteveis privados O Decreto sobre o

Arrendamento (Dekret o najmie lokali)487 de 28 de julho de 1948 que entrou

em vigor em 1 de setembro de 1948 estabelecia a competecircncia das autoridades

estaduais para administrar o arrendamento quer no sector puacuteblico quer no

sector privado Para o efeito foi-lhes concedido poder para atribuir a um

particular um apartamento num imoacutevel privado A afectaccedilatildeo de uma habitaccedilatildeo

(przydział lokalu) equivalia para todos os efeitos praacuteticos a lsquoconcederrsquo o

direito a arrendar uma habitaccedilatildeo (ou uma instalaccedilatildeo comercial) Estes

diplomas tambeacutem continham normas sobre controlo de rendas

A Lei da Habitaccedilatildeo (Prawo lokalowe) de 10 de abril de 1974488 entrou

em vigor em 1 de agosto e substituiu o Decreto 1945 sobre a Gestatildeo Puacuteblica

da Habitaccedilatildeo e do Controlo do Arrendamento pelo Regime Especial do

Arrendamento (Ocupaccedilatildeo e Uso das Instalaccedilotildees e Edifiacutecios) Todavia natildeo

modificou substancialmente os princiacutepios em que se baseava a poliacutetica de

arrendamento em particular o direito de arrendar um apartamento (para

habitaccedilatildeo ou para fins comerciais) num edifiacutecio sujeito a lsquogestatildeo puacuteblicarsquo natildeo

tinha origem num contrato privado mas era conferido ao inquilino atraveacutes de

uma decisatildeo administrativa O dono do edifiacutecio continuava a natildeo ter uma

palavra a dizer sobre quem podia viver na sua casa nem por quanto tempo

Manteve-se ainda o regime das rendas controladas Estas normas que

restringiam drasticamente o montante de renda cobraacutevel tiveram origem numa

distribuiccedilatildeo de recursos habitacionais excepcionalmente riacutegida que

caracterizou os primeiros trinta anos do regime comunista na Poloacutenia As

486 Dekret z 21 grudnia 1945 r o publicznej gospodarce lokalami i kontroli najmu -

httpwwwlegeoplprawodekret-z-dnia-21-grudnia-1945-r-o-publicznej-gospodarce-

lokalami-i-kontroli-najmuon=26081950) 487httpwwwlegeoplprawodekret-z-dnia-28-lipca-1948-r-o-najmie-lokalion=16081958 488httpwwwlegeoplprawoustawa-z-dnia-10-kwietnia-1974-r-prawo-

lokaloweon=12101987

218

circunstacircncias todavia natildeo se modificaram substancialmente depois de 1989

No iniacutecio de 1990 a situaccedilatildeo habitacional na Poloacutenia apresentava-se

particularmente difiacutecil em resultado de uma diminuiccedilatildeo do alojamento

disponiacutevel e do elevado custo de adquisiccedilatildeo de um apartamento O montante

da renda controlada pelo Estado que tambeacutem era aplicada a edifiacutecios privados

cobria apenas 30 do custo de conservaccedilatildeo dos edifiacutecios

A Lei de 2 de julho de 1994 sobre o Arrendamento Residencial e

Subsiacutedios agrave Habitaccedilatildeo que entrou em vigor em 12 de novembro do mesmo

ano pretendia estabelecer uma nova regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees entre

inquilinos e senhorios e por isso aboliu o Regime Especial do Arrendamento

e introduziu um novo regime de controlo de rendaTodavia embora tivesse

abolido o regime de renda controlada e viesse a permitir que as rendas fossem

livremente negociadas este regime mantinha a renda controlada para os

arrendamentos residenciais que houvessem tido na sua origem decisatildeo

administrativa Por outro lado introduziu o regime da renda regulada (czynsz

regulowany) e regulamentou pormenorizadamente o caacutelculo da renda para

arrendamentos residenciais que tivessem estado sujeitas ao Regime Especial

do Arrendamento Estabeleceu ainda um conjunto de normas que visavam

proteger inquilinos em situaccedilatildeo difiacutecil durante a transiccedilatildeo de um sistema de

controlo estadual para um sistema de mercado e que se permaneceriam em

vigor ateacute 31 de dezembro de 2004 Relativamente a esses contratos criados

administrativamente manteve-se o direito de sucessatildeo no arrendamento e

com ligeiras modificaccedilotildees as normas que protegiam os inquilinos (mesmo os

inadimplentes) contra a extinccedilatildeo dos arrendamentos

Em geral a relaccedilatildeo de arrendamento sob a Lei 1994 continuava a ser

constituiacuteda atraveacutes de uma decisatildeo unilateral do estado A renda a receber era

estabelecida em valores muito baixos que natildeo cobriam os custos meacutedios de

manutenccedilatildeo da propriedade Por outro lado os proprietaacuterios estavam

obrigados a levar a cabo dispendiosos trabalhos de manutenccedilatildeo e o senhorio

enfrentava fortes limitaccedilotildees na extinccedilatildeo dos arrendamentos

De acordo com um relatoacuterio de 1998 quatro anos depois da introduccedilatildeo

do regime da renda regulada a renda meacutedia cobria apenas 60 dos custos de

manutenccedilatildeo dos edifiacutecios residenciais A diferenccedila era suportada pelos

senhorios A escala do problema era grande jaacute que nessa altura 2960000

residecircncias (255 de todos os recursos habitacionais do paiacutes) estavam

submetidas a este regime de renda controladas (600 000 eram propriedade

privada) Sendo que o nuacutemero de apartamentos na Poloacutenia era de 11600000

os apartamentos privados sujeitos ao regime de controlo de renda constituiacuteam

52 dos recursos habitacionais do paiacutes

A Lei de 2 de julho de 1994 veio a ser apreciada pelo Tribunal

Constitucional Polaco nos Acoacuterdatildeos de 12 de janeiro e de 10 de outubro de

219

2000 que considerou que a Secccedilatildeo 9 - estabelecendo os deveres dos senhorios

- era incompatiacutevel com os princiacutepios constitucionais da protecccedilatildeo da

propriedade e da justiccedila social jaacute que os onerava excessivamente um encargo

que de modo nenhum era proporcional ao proveito resultante da renda

controlada O Tribunal decidiu ainda que a Lei deveria ser revogada ateacute 11 de

julho de 2001

Em 21 de junho de 2001 o parlamento adoptou uma nova Lei da

Protecccedilatildeo dos Direitos dos Inquilinos Recursos Habitacionais dos Municiacutepios

e Alteraccedilotildees ao Coacutedigo Civil (Ustawa o ochronie praw lokatoroacutew

mieszkaniowym zasobie gminy i o zmianie Kodeksu cywilnego)489 que entrou

em vigor a 10 de julho Esta Lei revogou o anterior regime da renda controlada

e substituiu-o por um outro regime legal de controlo de renda mas que

restringia a possibilidade de o senhorio aumentar as rendas De resto esta Lei

natildeo modificou substancialmente o regime do arrendamento manteve quase

todas as restriccedilotildees na extinccedilatildeo dos arrendamentos e as obrigaccedilotildees quanto agrave

conservaccedilatildeo da propriedade agravaram a situaccedilatildeo dos senhorios em parte

devido ao congelamento das rendas a niacuteveis considerados inaceitaacuteveis (3 do

valor de reconstruccedilatildeo do edifiacutecio)

A Lei de 2001 foi sucessivamente alterada A alteraccedilatildeo mais

importante foi a adoptada pelo Parlamento em 17 e 22 de dezembro de 2004

que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2005 Em virtude das alteraccedilotildees de

2004 as autoridades prolongaram a aplicaccedilatildeo das regras impondo restriccedilotildees

no montante das rendas para aleacutem do final de 2004 ndash o que veio a ser

considerado pelo Tribunal Constitucional Polaco como uma seacuteria violaccedilatildeo do

Estado de Direito

No caso concreto a casa da condessa Maria Hutten-Czapska

construiacuteda em 1936 como uma moradia familiar com reacutes-do-chatildeo e primeiro

andar foi usada durante a Segunda Guerra Mundial pelos oficiais do Exercito

Alematildeo e em 1945 foi ocupada por oficiais do Exeacutercito Vermelho Em maio

de 1945 o Director do Departamento da Habitaccedilatildeo de Cacircmara de Gdynia

(Kierownik Wydzialu Mieszkaniowego Magistratu Miasta Gdynia) emitiu uma

ordem atribuindo o primeiro andar a A Z que se mudou definitivamente em

outubro do mesmo ano Por ordem cronoloacutegica satildeo de destacar os seguintes

factos

- A 13 de fevereiro de 1946 a casa ficou sujeita ao regime da lsquoGestatildeo

Puacuteblica da Habitaccedilatildeorsquo e em 1 de agosto de 1974 ao Regime Especial do

Arrendamento

489 httpisapsejmgovplDetailsServletid=WDU20010710733

220

- A 8 de julho de 1975 o Mayor da Gdynia autorizou WP a mudar o

apartamento de que era arrendataacuterio sob o Regime Especial do Arrendamento

pelo reacutes-do-chatildeo da casa da requerente por um periacuteodo de tempo

indeterminado

- A 24 de outubro de 1975 o Director do Gabinete da Cacircmara de

Gnynia para a Administraccedilatildeo Local e o Ambiente (Kierownik Wydziału

Gospodarki Terenowej i Ochrony Środowiska Urzędu Miejskiego w Gdyni)

ordenou que a casa ficasse sujeita a gestatildeo estadual (przejęcie w zarząd

państwowy) a partir de 2 de janeiro de 1976

- A 3 de agosto de 1988 o Tribunal Judicial da Gdynia (Sąd Rejonowy)

julgou que em virtude da morte de A Z os seus herdeiros sucederiam no

direito de arrendar o 1ordm andar

- Em outubro de 1990 o Mayor da Gnydia restituiu a gestatildeo da casa agrave

requerente que desde entatildeo procura recuperar a casa para aiacute instalar a sede da

Amber Trail Foundation (Fundacja Bursztynowego Szlaku)

A requerente queixou-se ao TEDH de que o Estado Polaco tinha

violado o artigo 1ordm do Protocolo 1 da CEDH A situaccedilatildeo criada pela aplicaccedilatildeo

de leis que lhe impunham relaccedilotildees de arrendamento e estabeleciam um

inadequado niacutevel de renda constituiacutea uma violaccedilatildeo contiacutenua do direito ao

lsquorespeito dos seus bensrsquo O seu direito de propriedade foi substancialmente

afectado jaacute que ela natildeo soacute natildeo retirava nenhum proveito da sua propriedade

como tambeacutem em virtude das restriccedilotildees agrave extinccedilatildeo do arrendamento natildeo

readquiria a posse ou o uso da sua propriedade (as condiccedilotildees legais para

recuperar a casa por exemplo providenciar habitaccedilatildeo substituta para o

inquilino) Era dona soacute no papel Natildeo tinha possibilidade de decidir quem e

por quanto tempo habitaria a casa E por uacuteltimo o facto de a renda fixada natildeo

ter razoavelmente adequada aos custos para manter a propriedade em bom

estado resultou numa significativa descida do valor e estado de conservaccedilatildeo

da sua casa490

Reunido em secccedilatildeo o Tribunal considerou que em anaacutelise estava uma

medida que regulamentava o uso da propriedade e natildeo uma expropriaccedilatildeo

apesar de a requerente natildeo ter a detenccedilatildeo material da casa e de os seus direitos

relativos ao arrendamento da casa incluindo o seu direito a receber as rendas

e a extinguir os arrendamentos estarem sujeitos a uma seacuterie de limitaccedilotildees

490 O funcionamento do regime da renda controlada jaacute afectou 100 000 senhorios cuja

propriedade esteve sujeita agraves mesmas limitaccedilotildees que constam do presente caso Entre 600 000

a 900 000 inquilinos na Poloacutenia beneficiaram destas regras especiais sobre o montante da

renda e a extinccedilatildeo dos contratos A decisatildeo do caso presente teve pois consequecircncias nos

direitos de um grande nuacutemero de indiviacuteduos

221

Assim a decisatildeo deste caso foi colocada no acircmbito do segundo paraacutegrafo do

Artigo 1ordm

Quanto agrave prossecuccedilatildeo do interesse geral o Tribunal reiterou que satildeo as

autoridades nacionais que estatildeo melhor posicionadas para apreciar o que eacute o

interesse geral Satildeo elas que fazem a avaliaccedilatildeo inicial quanto agrave existecircncia de

um problema puacuteblico que requer a adopccedilatildeo de medidas que afectem o direito

de propriedade491 Decisotildees sobre se e quando o arrendamento deve ser

controlado pelo Estado ou deixado agraves regras do mercado bem como a escolha

das medidas para assegurarem as necessidades habitacionais da comunidade e

o momento para a sua implementaccedilatildeo envolvem a consideraccedilatildeo de aspectos

sociais econoacutemicos e poliacuteticos necessariamente complexos O Tribunal

relembramos aceita por princiacutepio a decisatildeo do legislador nacional sobre o

que eacute do interesse geral a natildeo ser que ela no caso concreto se mostre

totalmente desprovida de fundamento

O controlo das rendas teve origem numa escassez contiacutenua de

habitaccedilatildeo devido agrave diminuiccedilatildeo de casas para arrendar e aos altos custos de

aquisiccedilatildeo de um apartamento Foi implementado para assegurar a protecccedilatildeo

social dos inquilinos e assegurar especialmente relativamente a inquilinos em

difiacutecil situaccedilatildeo financeira uma transiccedilatildeo gradual de rendas controladas pelo

estado para um arrendamento plenamente negociado durante a reforma do

paiacutes a seguir ao colapso do regime comunista O Tribunal aceitou pois que

naquele contexto econoacutemico e social a legislaccedilatildeo impugnada servia um

interesse geral

Quanto agrave proporcionalidade ainda que na discricionariedade dos

Estados Contratantes caiba o poder de tomar medidas sobre o controlo das

rendas (sancionadas em Mellacher) o Tribunal sublinhou que esta

discricionariedade natildeo eacute ilimitada no seu exerciacutecio mesmo no contexto da

mais complexa reforma do Estado e natildeo pode afrontar os paracircmetros da

Convenccedilatildeo Em particular nada justifica que natildeo se assegurasse ao requerente

durante todo o periacuteodo em anaacutelise pelo menos as quantias necessaacuterias para

cobrir os custos de manutenccedilatildeo

O Tribunal relembrou as palavras do Tribunal Constitucional Polaco

no Acoacuterdatildeo de 12 de maio de 2004492 segundo o qual ldquoo regime da renda

controlada baseada em normas que necessaacuteria e inevitavelmente

acarretavam prejuiacutezos para os senhorios resultou numa distribuiccedilatildeo

491 Para 149 492 httpisapsejmgovplDetailsServletid=WDU20041221289ampmin=1

222

desproporcionada injustificada e arbitraacuteria do oacutenus social envolvido na

reforma habitacional e essa reforma foi feita principalmente agrave custa dos

senhoriosrdquo O Tribunal Constitucional havia considerado que as medidas

adoptadas consubstanciavam uma violaccedilatildeo contiacutenua do direito de propriedade

porquanto a maneira como as rendas eram calculadas tornava impossiacutevel que

os senhorios tivessem algum proveito com as rendas ou que ao menos

conseguissem recuperar os custos de conservaccedilatildeo dos imoacuteveis

Nessas circunstacircncias considerou o TEDH e na linha das decisotildees do

tribunal constitucional as autoridades polacas tinham o dever de eliminar ou

ao menos remediar com prontidatildeo a situaccedilatildeo que foi considerada incompatiacutevel

com os requisitos do direito fundamental da propriedade Acresce que o

princiacutepio da legalidade do Artigo 1ordm do Protocolo 1 e a previsibilidade do

direito resultante dessa norma exigiria do Estado que tivesse revogado o

regime do controlo de renda o que natildeo era incompatiacutevel com a adopccedilatildeo de

medidas para protecccedilatildeo do inquilino Em suma o Tribunal considerou que as

autoridades impuseram agrave requerente um encargo desproporcionado e

excessivo que natildeo era susceptiacutevel de justificaccedilatildeo pelo interesse geral

Foi a primeira vez que o TEDH declarou uma determinada restriccedilatildeo

dos direitos dos proprietaacuterios operada atraveacutes da interferecircncia no contrato de

arrendamento como inadmissiacutevel As reacccedilotildees natildeo se fizeram esperar

marcadas pela tentativa de reduzir o impacto do Acoacuterdatildeo ao estabelecimento

de um montante das rendas que constituiacutesse uma lsquorestriccedilatildeo injustificadarsquo ao

direito de propriedade

O acoacuterdatildeo da Grand Chamber de 19 de junho de 2006 veio confirmar

esta decisatildeo Mas acrescentou que a violaccedilatildeo do direito de propriedade no caso

em questatildeo natildeo resultava exclusivamente da questatildeo do montante da renda

pelo contraacuterio consistia no efeito combinado de normas de determinaccedilatildeo da

renda e de vaacuterias restriccedilotildees quanto aos direitos dos senhorios a respeito da

extinccedilatildeo dos arrendamentos dos encargos financeiros que lhes foram

impostos e da ausecircncia de meios legais para tornar possiacutevel compensar ou

mitigar os prejuiacutezos em que incorriam com a conservaccedilatildeo da propriedade ou

de terem obras subsidiadas pelo Estado em casos justificados493

493 O Tribunal considerou que a situaccedilatildeo polaca natildeo era semelhante a outros casos julgados

anteriormente Em Mellacher and Others a legislaccedilatildeo domeacutestica restringia a renda cobraacutevel

mas nunca abaixo dos niacuteveis de conservaccedilatildeo da propriedade e os senhorios podiam aumentar

a renda de modo a cobrir as necessaacuterias despesas de conservaccedilatildeo Esta norma permitiu aos

senhorios austriacuteacos manter a sua propriedade em boa condiccedilatildeo ao passo que o regime polaco

natildeo o permitiu nem fornecia nenhum outro procedimento para obter contribuiccedilotildees para a

conservaccedilatildeo ou subsiacutedios estaduais causando inevitaacutevel deterioraccedilotildees na propriedade por

223

O Tribunal sublinhou que se se era verdade que o Estado polaco

herdou do regime comunista uma escassez grave de alojamentos disponiacuteveis

com rendas comportaacuteveis sempre teria de equilibrar as questotildees

particularmente difiacuteceis e socialmente sensiacuteveis com a resoluccedilatildeo do conflito

entre inquilinos e senhorios Cabia-lhe assegurar a protecccedilatildeo dos direitos de

propriedade dos senhorios e o respeito pelos direitos sociais dos inquilinos

frequentemente vulneraacuteveis o que requeria uma distribuiccedilatildeo justa dos

encargos sociais e financeiros envolvidos na transformaccedilatildeo e reforma da

poliacutetica de habitaccedilatildeo Este encargo contudo natildeo poderia ser imputado apenas

a um grupo social especiacutefico independentemente dos interesses especiacuteficos do

outro grupo ou da comunidade como um todo

II A CONSOLIDACcedilAtildeO OS CASOS CONTRA MALTA

Ao abrigo da Lei da Habitaccedilatildeo as casas eram requisitadas pelo

Governo de Malta atraveacutes do Director da Habitaccedilatildeo Social Passado algum

tempo era dado conhecimento aos proprietaacuterios de que a casa teria sido dada

de arrendamento a um inquilino Por exemplo no caso Ghigo c Malta494 a

detenccedilatildeo prolongou-se por vinte e dois anos no caso Fleri Soler e Camilleri

c Malta495 por sessenta e cinco anos e no caso Edwards c Malta496 por mais

de trinta 30 anos Vejamos os dois primeiros casos497

No Acoacuterdatildeo Ghigo v Malta quanto ao objectivo da interferecircncia o

TEDH considerou que as medidas de requisiccedilatildeo e de controlo de rendas

visavam assegurar uma distribuiccedilatildeo justa e um igualmente justo uso de

recursos habitacionais num paiacutes em que o solo disponiacutevel para habitaccedilatildeo natildeo

chegava para responder agrave procura498

falta dos adequados investimento e modernizaccedilatildeo Em Spadea and Scalabrino embora o

Estado tivesse suspendido temporariamente os despejos de apartamentos privados os

senhorios mantinham o direito de extinguir os arrendamentos No caso em anaacutelise pelo

contraacuterio o legislador polaco condicionou a extinccedilatildeo dos arrendamentos limitando

seriamente os direitos dos senhorios a esse respeito 494 Acoacuterdatildeo Ghigo v Malta (Queixa nordm 3112205) de 26 de setembro de 2006 495 Acoacuterdatildeo Fleri Soler e Camilleri c Malta (Queixa nordm 3534905) de 26 de setembro de

2006 496 Edwards c Malta (Queixa nordm 1764704) de 24 de outubro de 2006 497 Sem esquecer outros Acoacuterdatildeos como Amato Gauci c Malta (Queixa nordm 4704506) de 15

de setembro de 2009 Gera de Petri Testaferrata Bonici Ghaxaq c Malta (Queixa nordm

2677107) de 5 de abril de 2011 (90 anos) Saliba et al c Malta (queixa nordm 2028710) de 22

de novembro de 2011 498 sect 58

224

Quanto agrave proporcionalidade o Tribunal reiterou que ao apreciar o

respeito pelo Artigo 1ordm era necessaacuterio um exame global dos vaacuterios interesses

em causa considerando que a Convenccedilatildeo visa salvaguardar a efectividade dos

direitos Esse exame quando se trata da legislaccedilatildeo relativa agrave habitaccedilatildeo

envolve natildeo apenas as condiccedilotildees de reduccedilatildeo da renda recebida pelos

senhorios e a extensatildeo da interferecircncia estatal na liberdade contratual e nas

condiccedilotildees do mercado de arrendamento mas tambeacutem a existecircncia de garantias

procedimentais de que o sistema e o seu impacto nos direitos do senhorio natildeo

satildeo arbitraacuterios nem imprevisiacuteveis A incerteza - legislativa administrativa ou

resultante das praacuteticas das autoridades - eacute um factor a ter em conta na avaliaccedilatildeo

da conduta do estado499

No caso concreto a casa havia sido requisitada sem aviso preacutevio pelo

Governo em 31 de marccedilo de 1984 e soacute quase cinco meses depois em 23 de

agosto do mesmo ano o requerente foi informado de que a casa tinha sido

atribuiacuteda a um determinado inquilino Os senhorios natildeo tinham nenhuma

influecircncia na escolha do inquilino ou nos elementos essenciais do

arrendamento O senhorio tambeacutem natildeo podia impedir o arrendamento com

base na necessidade da casa para habitaccedilatildeo proacutepria Por uacuteltimo o requerente

nunca recebeu nenhuma compensaccedilatildeo pela perda de controlo sobre a sua

propriedade O valor da renda estabelecido pelo Gabinete de Avaliaccedilatildeo de

Imoacuteveis era de MTL 23 anuais (mais ou menos 55 Euros) o que

reconhecidamente natildeo reflectia o valor de mercado dos imoacuteveis afectados O

Tribunal considerou que a restriccedilatildeo ao proprietaacuterio que apenas lhe permitia

receber menos de 5 euros por mecircs pela sua propriedade natildeo salvaguardava o

seu direito a fruir a sua propriedade

O Tribunal reiterou que nas esferas como a poliacutetica de habitaccedilatildeo os

Estados necessariamente gozam de uma ampla margem de apreciaccedilatildeo natildeo

apenas quanto ao reconhecimento da existecircncia de um problema mas tambeacutem

quanto agrave escolha de medidas e da sua forma de implementaccedilatildeo O controlo do

Estado sobre as rendas eacute uma dessas medidas e da sua aplicaccedilatildeo normalmente

resulta reduccedilotildees significativas no montante da renda a receber Mesmo em

situaccedilotildees onde o controlo de renda pelo legislador envolve consequecircncias tatildeo

vastas para numerosos proprietaacuterios e tem consequecircncias econoacutemicas e sociais

para o paiacutes como um todo as autoridades dispotildeem de uma discricionariedade

consideraacutevel natildeo apenas na escolha da forma e na decisatildeo da extensatildeo do

controlo sobre o uso da propriedade mas tambeacutem em decidir sobre o momento

apropriado para a execuccedilatildeo das leis necessaacuterias Todavia a discricionariedade

do estado ainda que consideraacutevel natildeo eacute ilimitada e o seu exerciacutecio natildeo pode

levar a consequecircncias contra os paracircmetros da Convenccedilatildeo

499 Cfr sect 62

225

O Tribunal considerou que considerando o extremamente baixo valor

da renda fixada o facto de o imoacutevel do requerente ter sido requisitado por

mais de vinte e dois anos o facto de o proprietaacuterio natildeo participar na escolha

do arrendataacuterio nem poder influenciar os termos do contrato fora imposto

um oacutenus excessivo e desproporcionado ao requerente que havia suportado os

custos sociais e financeiros do alojamento do inquilino e nessa medida

declarou uma violaccedilatildeo do Artigo 1 do Protocolo1

No caso Fleri Soler e Camilleri c Malta500 o imoacutevel dos requerentes

foi requisitado a 4 de setembro de 1941 e afectado primeiro ao Departamento

de Educaccedilatildeo e posteriormente ao Ministeacuterio da Induacutestria e Agricultura O

edifiacutecio foi usado como reparticcedilatildeo puacuteblica durante 65 anos A renda devida

era de 89 Libras Maltesas (aproximadamente 213 Euros) anuais tendo sido

aumentada em 1989 para 34053 libras maltesas (aproximadamente 817

Euros) por ano

O TEDH considerou que a interferecircncia era legal e cumpria um

objectivo de interesse geral jaacute que os imoacuteveis foram afectados a entidades

puacuteblicas que prosseguiam interesses da comunidade como um todo O

Tribunal considerou todavia que as rendas eram extremamente baixas e natildeo

poderiam compensar o uso de um imoacutevel grande o suficiente para alojar

reparticcedilotildees puacuteblicas A ponderaccedilatildeo das consequecircncias da limitaccedilatildeo das rendas

sempre seria diferente pelo facto de o imoacutevel visar a instalaccedilatildeo de reparticcedilotildees

puacuteblicas e natildeo assegurar o bem-estar social dos inquilinos o que impotildee um

escrutiacutenio mais apertado por parte do TEDH

Considerando o baixo montante da renda paga o proveito miacutenimo que

o proprietaacuterio poderia tirar do imoacutevel o facto de a propriedade ter sido

ocupada por mais de sessenta e cinco anos a restriccedilatildeo na escolha do

arrendataacuterio e nas estipulaccedilatildeo das condiccedilotildees do contrato a inexistecircncia de

garantias procedimentais o Tribunal declarou a existecircncia de um encargo

desproporcionado e excessivo sobre o requerente que natildeo respeitava o

equiliacutebrio entre o interesse geral da comunidade e a protecccedilatildeo dos seus direitos

fundamentais

Em face da jurisprudecircncia analisada que reforccedila a posiccedilatildeo do senhorio

no acircmbito do contrato de arrendamento cabe indagar do respeito pelos

princiacutepios gerais sobre contratos duradouros essenciais agrave existecircncia das

pessoas Eacute o que veremos no proacuteximo ponto

500 Acoacuterdatildeo Fleri Soler e Camilleri c Malta (Queixa nordm 3534905) de 26 de setembro de

2006

226

5 OS PRINCIacutePIOS GERAIS SOBRE CONTRATOS DURADOUROS501

O arrendamento eacute um contrato duradouro502 essencial agrave existecircncia da

pessoa503 porquanto tem por objecto proporcionar ao indiviacuteduo (na sua

concreta realidade material e moral) um bem alojamento necessaacuterio para a

sua auto-realizaccedilatildeo e participaccedilatildeo na vida social O objecto dos contratos

duradouros satildeo as circunstacircncias da vida real sendo que o papel das normas

que regulam estes contratos consistiraacute sempre em enquadrar as relaccedilotildees de

poder resultantes destes contratos em termos de desenvolvimento humano de

modo a que seja a contiacutenua cooperaccedilatildeo mais do que a formaccedilatildeo do contrato

a estar no centro da relaccedilatildeo contratual

O fim do contrato impede que aquele que coloca agrave disposiccedilatildeo de

outrem bens necessaacuterios agrave satisfaccedilatildeo de necessidades materiais aja de modo a

pocircr em perigo a sua fruiccedilatildeo ou o proacuteprio significado social da relaccedilatildeo A

dimensatildeo temporal do contrato de arrendamento e a protecccedilatildeo da confianccedila

das partes na continuidade da relaccedilatildeo contratual requer que a natildeo ser que

exista uma necessidade de garantir um miacutenimo de liberdade de acccedilatildeo e

decisatildeo a cessatildeo antecipada de um contrato por acto unilateral natildeo deve ser

permitida A dimensatildeo colectiva destes contratos requer da sua parte a

aplicaccedilatildeo do sistema colectivo de valores a todas as fases da realccedilatildeo contratual

desde o acesso aos bens e serviccedilos agrave conformaccedilatildeo do contrato agrave sua

modificaccedilatildeo e extinccedilatildeo Se por um lado o acesso mediante o contrato aos

bens e serviccedilos essenciais agrave existecircncia da pessoa eacute assegurado por uma poliacutetica

de natildeo discriminaccedilatildeo destacamos por outro lado que a prestaccedilatildeo e a

contraprestaccedilatildeo natildeo devem ser gravemente desproporcionadas o preccedilo deve

ser acessiacutevel natildeo discriminatoacuterio e proporcionado aos custos

Aleacutem de aspectos procedimentais relativos agrave comunicaccedilatildeo entre as

partes e da consagraccedilatildeo de direitos agrave informaccedilatildeo transparecircncia e

501 Dispensamo-nos neste momento de aprofundar a temaacutetica dos princiacutepios gerais sobre

contratos duradouros necessaacuterios agrave existecircncia humana e agrave Declaraccedilatildeo EuSoCo por jaacute ter sido

tratado noutra sede 502 Vide LUCA NOGLER e UDO REIFER ldquoIntroductionrdquo em Life Time Contracts Social Long-

term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law Eleven International

Publishing 2014 p 1 e ss sobre as diferentes dimensotildees do tempo e correspondente

importacircncia nas relaccedilotildees contratuais 503 Sobre a eacutetica do contrato nesta sede vide ANDREA NICOLUSSI ldquoEtica del contrato e

lsquoContratti ldquodi duratardquo per lrsquoesistenza della personarsquordquo e HELENA KLINGER ldquoLebenszeitvertrage

ndash Natur und Ethikrdquo em LUCA NOGLER e UDO REIFER Life Time Contracts Social Long-term

Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law cit pp 123 e ss e 189 e ss

respectivamente

227

confidencialidade os princiacutepios versam ainda sobre os miacutenimos de

participaccedilatildeo quer na vida econoacutemica (os contratos que atingirem os

rendimentos do consumidor por lhe tirarem o acesso a tal rendimento

entregando-o ao fornecedor de bens ou prestador de serviccedilos devem

proporcionar agrave pessoa humana o miacutenimo necessaacuterio para a sua subsistecircncia)

quer na vida social (no momento da conformaccedilatildeo e no momento da

interpretaccedilatildeo do contrato deve considerar-se os riscos da falta de emprego de

falta de habitaccedilatildeo ou de sobreendividamento relacionando-os com as suas

causas soacutecio-econoacutemicas)

Face a este quadro necessariamente breve a jurisprudecircncia do TEDH

pode surgir como contraditoacuteria com estes princiacutepios porquanto a viragem

recente que descrevemos se deu no sentido de tutelar a posiccedilatildeo do senhorio

proprietaacuterio que em virtude de medidas puacuteblicas viram a sua posiccedilatildeo

individual intoleravelmente afectada em funccedilatildeo do interesse social do

contrato Em nossa opiniatildeo contudo tal contradiccedilatildeo eacute meramente aparente

Na verdade a jurisprudecircncia do TEDH ndash partindo do pressuposto de que

habitaccedilatildeo eacute essencial para a auto-realizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e para a sua

participaccedilatildeo social em vaacuterias fases da vida e que o inquilino eacute normalmente

uma parte vulneraacutevel - estaacute alinhada com os princiacutepios gerais sobre contratos

duradouros Vejamos

O princiacutepio da remuneraccedilatildeo exige em primeiro lugar que as

obrigaccedilotildees muacutetuas dos contratos duradouros natildeo devam ser

desproporcionadas Os preccedilos devem ser claros e natildeo discriminatoacuterios e os

encargos devem ser comportaacuteveis e alinhados com os custos a suportar com o

bem Ora a jurisprudecircncia recente do TEDH condenou os Estados por

imporem legislativamente limites de renda extraordinariamente baixos que

natildeo permitiam aos seus proprietaacuterios suportarem os custos com a manutenccedilatildeo

e a conservaccedilatildeo dos imoacuteveis504

O princiacutepio da adaptaccedilatildeo sugere que se as circunstacircncias em que um

contrato duradouro foi celebrado se alterarem significativamente ou se as

circunstacircncias materiais em que as partes fundaram a sua vontade variaram de

tal maneira que a natureza social do contrato eacute posta em causa e se as partes

natildeo teriam contratado agora ou natildeo teriam contratado em termos diferentes se

tivessem previsto a mudanccedila a adaptaccedilatildeo do contrato pode ser necessaacuteria se

tendo em conta as circunstacircncias do caso concreto e em particular a afectaccedilatildeo

do risco natildeo se pode razoavelmente esperar de uma das partes que continue a

cumprir o contrato nos mesmos termos Igualmente na jurisprudecircncia do

TEDH encontramos o sancionamento de medidas estatais que impedem esta

adaptaccedilatildeo natildeo soacute quanto agrave actualizaccedilatildeo das rendas mas quanto agrave

504 Relembremos os casos contra a Poloacutenia e contra Malta

228

impossibilidade de obter a restituiccedilatildeo do imoacutevel ainda que houvesse

necessidade dele para habitaccedilatildeo proacutepria ou que entretanto tivesse mudado o

contexto soacutecio-poliacutetico do paiacutes505

Analisemos ainda um outro aspecto agora relativo agrave extinccedilatildeo do

contrato a cessaccedilatildeo antecipada deve ser transparente controlaacutevel e

socialmente responsaacutevel Tambeacutem aqui o TEDH veio declarar como contraacuterias

agrave CEDH medidas que impediam a cessaccedilatildeo do contrato de arrendamento quer

criando dificuldades procedimentais (Itaacutelia e Malta) quer desconhecendo as

necessidades habitacionais do proprietaacuterio do imoacutevel (Itaacutelia Poloacutenia e Malta)

Na verdade o fim social dos contratos duradouros necessaacuterios agrave

existecircncia da pessoa exigem um apurado equiliacutebrio entre as prestaccedilotildees das

partes numa valoraccedilatildeo especiacutefica de proporcionalidade A ideia de

proporcionalidade lato sensu representa hoje uma importante limitaccedilatildeo ao

exerciacutecio do poder puacuteblico servindo a garantia dos direitos e liberdades

individuais506 Consagrada no artigo 18ordm nordm 2 da CRP no que agraves restriccedilotildees a

direitos liberdades e garantias diz respeito a exigecircncia de proporcionalidade

enquanto princiacutepio geral de limitaccedilatildeo do poder puacuteblico pode ancorar-se no

princiacutepio geral do Estado de Direito e impotildee os limites resultantes da avaliaccedilatildeo

da relaccedilatildeo entre os fins e as medidas puacuteblicas devendo o Estado (legislador

505 Em especial nos casos contra a Itaacutelia e a Poloacutenia 506 Na jurisprudecircncia o Tribunal Constitucional tem reconhecido e aplicado em vaacuterias

decisotildees o princiacutepio da proporcionalidade Veja-se o Acoacuterdatildeo TC nordm 63493 [Relator LUIacuteS

NUNES DE ALMEIDA] (inconstitucionalidade do artigo 132ordm do Coacutedigo Penal e Disciplinar da

Marinha Mercante aprovado pelo Decreto-Lei nordm 33252 de 20 de novembro de 1943 na

parte em que estabelece a puniccedilatildeo como desertor daquele que sendo tripulante de um navio e

sem motivo justificado o deixe partir para o mar sem embarcar quando tal tripulante natildeo

desempenhe funccedilotildees directamente relacionadas com a manutenccedilatildeo seguranccedila e equipagem

do mesmo navio) de 4 de novembro o Acoacuterdatildeo TC nordm 27498 [Relator ARMINDO RIBEIRO

MENDES] de 9 de marccedilo (natildeo inconstitucionalidade de norma que pune o natildeo acatamento de

ordem de demoliccedilatildeo) o Acoacuterdatildeo TC nordm 45195 [Relator GUILHERME DA FONSECA] de 6 de

julho (inconstitucionalidade de norma que estabelece a impenhorabilidade total de bens

anteriormente penhorados pelas reparticcedilotildees de financcedilas em execuccedilotildees fiscais) Acoacuterdatildeo TC

nordm 75895 [Relator LUIacuteS NUNES DE ALMEIDA] de 20 de dezembro (inconstitucionalidade de

norma que impede a participaccedilatildeo pessoal na assembleia geral dos bancos e em certas

condiccedilotildees de accionistas que natildeo disponham de 1300 da soma dos votos possiacuteveis) Acoacuterdatildeo

TC nordm 118296 [Relator SOUSA BRITO] de 20 de novembro (inconstitucionalidade de normas

sobre custas nos tribunais tributaacuterios) Acoacuterdatildeos TC nordm 17600 [Relator BRAVO SERRA] de

22 de marccedilo e Acoacuterdatildeo TC nordm 20200 [Relator PAULO MOTA PINTO] de 4 de abril (sobre a

perda dos instrumentos do crime)o Acoacuterdatildeo TC nordm 48400 [Relator PAULO MOTA PINTO]

de 22 de novembro (indeferimento taacutecito do pedido de legalizaccedilatildeo de obras)

229

ou administrador) adequar a sua acccedilatildeo aos fins pretendidos natildeo tomando

medidas desnecessaacuterias ou excessivamente restritivas

Satildeo subprinciacutepios constitutivos do princiacutepio da proporcionalidade o

princiacutepio da conformidade ou adequaccedilatildeo de meios o princiacutepio da

exigibilidade ou da necessidade (Erforderlichkeit) e o princiacutepio da

proporcionalidade em sentido restrito (Verhaumlltnismaumlssigkeit) entendido como

princiacutepio da justa medida507 O primeiro destes princiacutepios requer que a medida

adoptada para a realizaccedilatildeo do interesse puacuteblico a proteger deva ser apropriada

agrave prossecuccedilatildeo do fim ou fins a ele subjacentes508 A exigecircncia de conformaccedilatildeo

pressupotildee que o acto do poder puacuteblico seja apto para e conforme aos fins

justificativos da sua adopccedilatildeo (Zielkonformitaumlt Zwecktauglichkeit) Pressuposta

a legitimidade do fim consignado na norma a idoneidade traduz-se na

existecircncia de um meio adequado agrave sua prossecuccedilatildeo Perante um bem

juridicamente protegido a intervenccedilatildeo ou a providecircncia a adoptar pelo oacutergatildeo

competente teria de estar em correspondecircncia com ele A liberdade de

conformaccedilatildeo do legislador recorde-se eacute muito ampla neste campo e deve ser

tomada em consideraccedilatildeo ao estabelecer a relaccedilatildeo de adequaccedilatildeo meio-fim Por

uacuteltimo o princiacutepio da exigibilidade ou da necessidade impotildee que o cidadatildeo

cujo direito esteja a ser restringido tenha direito agrave menor desvantagem

possiacutevel Destaca-se como elemento operativo a ideia de exigibilidade

material pois o meio deve ser o mais poupado possiacutevel quanto agrave limitaccedilatildeo dos

direitos fundamentais A necessidade do meio significa que eacute aquele entre

todos os que poderiam ser escolhidos in abstracto que melhor satisfaz em

concreto com menos custos a realizaccedilatildeo do fim e assim eacute essa providecircncia

essa decisatildeo que deve ser tomada Como decidiu o Tribunal Constitucional509

ldquoessas medidas restritivas tecircm de ser exigidas para alcanccedilar os fins em vista

por o legislador natildeo dispor de outros meios menos restritivos para alcanccedilar

o mesmo desideratordquo

Os tribunais nacionais e referimo-nos especificamente aos tribunais

constitucionais natildeo podem ignorar estes princiacutepios O cerne do debate ao niacutevel

constitucional estaacute na relaccedilatildeo a estabelecer entre o direito agrave habitaccedilatildeo e o

direito de propriedade a que subjaz uma opccedilatildeo legislativa de raiz a quem cabe

507 SEGUIMOS GOMES CANOTILHO Direito constitucional e teoria da constituiccedilatildeo 7ordf ediccedilatildeo

Almedina Coimbra 2003 paacuteg 270 Em formulaccedilatildeo semelhante para JORGE MIRANDA

Manual de Direito Constitucional IV 5ordf ediccedilatildeo Coimbra Editora 2012 paacuteg 308 o princiacutepio

da proporcionalidade decompotildee-se nos trecircs subprinciacutepios da idoneidade ou adequaccedilatildeo da

necessidade e da racionalidade ou proporcionalidade stricto sensu 508 Cfr por todos o Acoacuterdatildeo TC nordm 118296 [Relator SOUSA BRITO] de 20 de novembro

(inconstitucionalidade de normas sobre custas nos tribunais tributaacuterios) 509 Acoacuterdatildeo TC nordm 63493 [Relator LUIacuteS NUNES DE ALMEIDA] de 4 de novembro

230

suportar os custos de uma poliacutetica de habitaccedilatildeo baseada no arrendamento510

Como JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS511 acentuam o direito agrave habitaccedilatildeo

tem fundamentalmente como sujeito passivo o Estado em sentido amplo e

natildeo ao menos em princiacutepio os proprietaacuterios ou senhorios O direito agrave

habitaccedilatildeo ldquonatildeo se move agrave partida no ciacuterculo das relaccedilotildees entre particulares

antes tem como alvo o Estado no sentido de que cabe a este a

responsabilidade poliacutetica de planear adoptar e executar providecircncias

tendentes a criar as condiccedilotildees necessaacuterias para todos poderem ter habitaccedilatildeo

condignardquo Por isso os destinataacuterios do direito a habitaccedilatildeo satildeo o Estado as

regiotildees autoacutenomas e as autarquias locais e natildeo ao menos em princiacutepios os

proprietaacuterios de habitaccedilotildees ou os senhorios Tambeacutem JOSE CASALTA

NABAIS512 nos ensina que os deveres de direitos fundamentais recaem

predominantemente ou exclusivamente sobre o Estado consoante se trate de

direitos liberdades ou garantias ou de deveres de direitos sociais

Relativamente a estes uacuteltimos os deveres do estado satildeo o dever de

concretizaccedilatildeo legal dos direitos sociais o dever de natildeo retroceder no

respeitante agravequele niacutevel de concretizaccedilatildeo legal jaacute sedimentado na consciecircncia

comunitaacuteria e o dever de prestar nos termos da concretizaccedilatildeo constitucional

(se e na medida em que a houver) e da concretizaccedilatildeo legal respectiva Na

opiniatildeo do autor os particulares natildeo satildeo sujeitos passivos de direitos sociais

natildeo podendo a lei impor-lhes a realizaccedilatildeo dos mesmos como se

desencadeassem uma Drittwirkung ldquoPor isso quando a lei obriga os

particulares agrave realizaccedilatildeo de prestaccedilotildees sociais como de algum modo sucede

entre noacutes com as tradicionais leis do arrendamento urbano para a habitaccedilatildeo

por forccedila da conjugaccedilatildeo do congelamento das rendas com a inflaccedilatildeo

verificada nas uacuteltimas deacutecadas ela estaacute a infringir a Constituiccedilatildeo eacute que a

realizaccedilatildeo do direito social agrave habitaccedilatildeo implica para o estado e natildeo para os

particulares a tiacutetulo de propriedade de arrendamento ou de qualquer outro

de uma habitaccedilatildeo para cada famiacutelia a custos adequadamente suportaacuteveis

pelos respectivos agregados familiares atendendo aos respectivos

rendimentos e encargos Numa outra perspectivaccedilatildeo isto quer dizer que os

direitos sociais numa sociedade que pretende manter-se aberta devem ser

realizados atraveacutes do estado fiscal (atraveacutes do sistema de impostos) e natildeo por

510 Sobre a histoacuterica permeabilidade da disciplina do arrendamento urbano a factores de

poliacutetica econoacutemico-social vide MARIA OLINDA GARCIA Arrendamento plural Quadro

normativo e natureza juriacutedica Coimbra Editora Coimbra 2009 pp 51 e ss 511 JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS Constituiccedilatildeo Portuguesa Anotada I Coimbra Editora

Coimbra 2005 anot ao artigo 65ordm paacutegs 669-670 III 512 JOSEacute CASALTA NABAIS O dever fundamental de pagar impostos Almedina Coimbra

1998 (3ordf reimpressatildeo de 2012) paacutegs 66-67 nota 140

231

via do estado dirigista como foi a soluccedilatildeo concretizada nas ceacutelebres leis do

inquilinatordquo

O Tribunal Constitucional portuguecircs que comeccedilou por apresentar uma

orientaccedilatildeo mais luacutecida veio posteriormente a sancionar decisotildees poliacuteticas que

oneravam o proprietaacuteriosenhorio fundamentando as suas decisotildees na

ldquohipoteca social que onera a propriedaderdquo Vejamos

I ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 10192 DE 17 DE MARCcedilO

ldquoOra no plano desta vertente do direito agrave habitaccedilatildeo natildeo pode

aceitar-se como constitucionalmente exigiacutevel que a realizaccedilatildeo

daquele direito esteja dependente de limitaccedilotildees intoleraacuteveis e

desproporcionadas de direitos de terceiros (que natildeo o Estado)

direitos esses porventura tambeacutem constitucionalmente consagrados

como sucede aliaacutes com o direito de propriedade privada elencado

no tiacutetulo constitucional correspondente aos direitos econoacutemicos

sociais e culturais

Escreveu-se a este propoacutesito no acoacuterdatildeo recorrido que laquoo facto

de a Constituiccedilatildeo reconhecer a todos o direito agrave habitaccedilatildeo natildeo implica

que os proprietaacuterios de casas tenham de entregaacute-las a quem as natildeo

tem e muito menos que o tenham de fazer para todo o sempre como

se os seus verdadeiros donos fossem os respectivos arrendataacuterios e

seus sucessores (hellip)rdquo

Na verdade natildeo existe qualquer exigecircncia constitucional

impondo agrave lei ordinaacuteria o dever de consagrar uma transmissatildeo

sucessiva e ilimitada da posiccedilatildeo juriacutedica de arrendataacuterio mortis causa

sendo manifesto que a norma do artigo 65ordm da Constituiccedilatildeo natildeo

obriga a semelhante entendimento mesmo quando se entenda que o

direito agrave habitaccedilatildeo deve prevalecer sobre o direito de uso e disposiccedilatildeo

da propriedade privada

A isto acresce que a soluccedilatildeo consagrada na norma sob

controveacutersia garante um quadro de transmissatildeo do arrendamento no

qual se contempla e protege suficientemente a dimensatildeo social mais

premente do direito agrave habitaccedilatildeo acautelando os interesses do cocircnjuge

sobrevivo e dos parentes ou afins na linha recta do de cujus os quais

aliaacutes beneficiam em certos casos do regime de rendas subsidiadas

instituiacutedo pela Lei nordm 4685

Haacute-de dizer-se que neste domiacutenio de particular sensibilidade

social uma dialeacutectica fundada nos interesses conflituantes que aqui

se colocam (os do inquilino e do direito agrave habitaccedilatildeo e os do senhorio

232

e do direito de uso e disposiccedilatildeo da propriedade privada) pode

conduzir a opccedilotildees de poliacutetica legislativa diversas daquela que hoje se

contecircm na norma do artigo 1111ordm do Coacutedigo Civil Simplesmente

deve reconhecer-se que a soluccedilatildeo vigente poderaacute sofrer contestaccedilatildeo

neste domiacutenio mas natildeo jaacute seguramente por viacutecio de violaccedilatildeo do artigo

65ordm da Constituiccedilatildeordquo

II ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 13192 DE 1 DE ABRIL

ldquoO direito agrave habitaccedilatildeo tem assim o Estado ndash e igualmente as

regiotildees autoacutenomas e os municiacutepios ndash como uacutenico sujeito passivo ndash e

nunca ao menos em princiacutepio os proprietaacuterios de habitaccedilotildees ou os

senhorios Aleacutem disso ele soacute surge depois de uma interpositio do

legislador destinada a concretizar o seu conteuacutedo o que significa que

o cidadatildeo soacute poderaacute exigir o seu cumprimento nas condiccedilotildees e nos

termos definidos pela lei Em suma o direito fundamental agrave

habitaccedilatildeo considerando a sua natureza natildeo eacute susceptiacutevel de conferir

por si mesmo ao arrendataacuterio um direito jurisdicionalmente

exercitaacutevel de impedir que o senhorio denuncie o contrato de

arrendamento quando necessitar do preacutedio para sua habitaccedilatildeo

Estas consideraccedilotildees satildeo suficientes para demonstrar que a

norma da primeira parte da aliacutenea a) do nordm 1 do artigo 1096ordm bem

como as dos artigos 1097ordm e 1098ordm todos do Coacutedigo Civil nunca

poderatildeo infringir o disposto no artigo 65ordm da Constituiccedilatildeordquo

III ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 15192 DE 8 DE ABRIL

A concretizaccedilatildeo do direito agrave habitaccedilatildeo - o facultar a cada

pessoa uma morada condigna - eacute pois uma tarefa cuja realizaccedilatildeo -

gradual como se disse - a Constituiccedilatildeo comete ao Estado

Mas fundando-se o direito agrave habitaccedilatildeo na dignidade da pessoa

humana (ou seja naquilo que a pessoa realmente eacute - um ser livre com

direito a viver dignamente) existe aiacute um miacutenimo que o Estado

sempre deve satisfazer E para isso pode ateacute se tal for necessaacuterio

impor restriccedilotildees aos direitos do proprietaacuterio privado Nesta medida

tambeacutem o direito agrave habitaccedilatildeo vincula os particulares chamados a

serem solidaacuterios com o seu semelhante (princiacutepio de solidariedade

social) vincula designadamente a propriedade privada que tem

uma funccedilatildeo social a cumprir

Eacute a esta luz que hatildeo-de ser avaliadas normas como aquelas que

como jaacute atraacutes se referiu subtraem o contrato de arrendamento para

habitaccedilatildeo agrave regra da liberdade contratual e o submetem agrave regra da

233

renovaccedilatildeo automaacutetica e obrigatoacuteria Nelas o legislador conhecendo

como conhece a falta de casas para habitaccedilatildeo sacrifica um direito do

senhorio a favor do direito do locataacuterio a dispor de uma casa para sua

habitaccedilatildeo De facto retira agravequele o direito que em princiacutepio lhe

assistiria de denunciar livremente o contrato de arrendamento

celebrado - direito este que estaacute compreendido seja no direito de

iniciativa econoacutemica privada (artigo 61ordm nordm 1 da Constituiccedilatildeo) seja

no direito de propriedade privada (artigo 62ordm nordm 1 da Constituiccedilatildeo)

A legislaccedilatildeo sobre arrendamento para habitaccedilatildeo eacute fortemente

vinculiacutestica sendo um domiacutenio onde a hipoteca social que recai sobre

a propriedade eacute talvez mais forte

IV ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 2632000 DE 3 DE MAIO

ldquoEm face desta parametrizaccedilatildeo ponderando que jaacute se concluiu

que o lsquonuacutecleorsquo ou dimensatildeo essencial do direito de propriedade do

senhorio natildeo eacute posto em crise pelos normativos sub specie que aos

interesses dos cidadatildeos em verem garantido o seu direito agrave habitaccedilatildeo

natildeo eacute alheia a vinculaccedilatildeo dos particulares chamados com o seu

direito de propriedade a cumprir a funccedilatildeo social decorrente daquele

direito agrave habitaccedilatildeo a par com as incumbecircncias que o Estado deve

prosseguir e que a escassez do mercado habitacional reclama a

adopccedilatildeo de medidas tendentes a conseguir a preservaccedilatildeo do direito

de habitaccedilatildeo como um valor indubitavelmente protegido pela Lei

Fundamental igualmente se haveraacute de concluir que as normas em

apreccedilo ao conferir caracteriacutesticas vinculiacutesticas ao contrato de

arrendamento para habitaccedilatildeo designadamente no que se reporta agrave sua

livre revogaccedilatildeo por banda do senhorio e agraves limitaccedilotildees quanto agrave

actualizaccedilatildeo da contrapartida pelo desfrute do arrendado se natildeo

configuram como ultrapassando um modo adequado e proporcionado

de resoluccedilatildeo do conflito que agrave partida se postaria entre um e outro

daqueles direitos

E justamente por isso natildeo violam elas designadamente os

artigos 62ordm 13ordm e 18ordm da Lei Fundamental

Natildeo cabe a este Tribunal indicar se de entre as vaacuterias formas

virtualmente possiacuteveis de hipotisar e tendentes a tal resoluccedilatildeo outro

deveria ser o trilho a seguir pelo legislador Cabe-lhe isso sim aferir

se a soluccedilatildeo normativa adoptada na oacuteptica do quadro unitaacuterio da

Constituiccedilatildeo e da prossecuccedilatildeo do desiderato da menor compressatildeo

dos direitos ou valores em jogo eacute adequada e proporcionada questatildeo

agrave qual como se viu jaacute se deu resposta afirmativa

234

Natildeo satildeo pois inconstitucionais as normas colocadas agrave

sindicacircncia deste Tribunal no presente recurso

V ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 4202000 DE 11 DE OUTUBRO

Como atraacutes se referiu ndash apenas com a excepccedilatildeo dos contratos

de duraccedilatildeo limitada - o legislador subtraiu o contrato de

arrendamento para habitaccedilatildeo agrave regra da liberdade contratual e

submeteu-o agrave da renovaccedilatildeo obrigatoacuteria e automaacutetica Fecirc-lo porque

conhecendo como conhece a falta de casas para habitaccedilatildeo decidiu

sacrificar um direito do senhorio ndash o direito de denunciar livremente

o contrato que se compreende seja no direito de iniciativa econoacutemica

privada seja no direito de propriedade - a favor do direito agrave habitaccedilatildeo

do locataacuterio ou seja do direito que este tem de dispor de uma casa

para nela habitar

Eacute que o direito agrave habitaccedilatildeo embora seja um direito cuja

realizaccedilatildeo ndash uma realizaccedilatildeo gradual pois eacute um direito colocado sob

reserva do possiacutevel ndash constitui essencialmente tarefa do Estado (cf

artigo 65ordm nordm 2 da Constituiccedilatildeo) funda-se na dignidade da pessoa

humana E por isso como haacute um miacutenimo incomprimiacutevel desse

direito cuja concretizaccedilatildeo o Estado deve assegurar o legislador com

esse objectivo impotildee restriccedilotildees ao proprietaacuterio privado que desse

modo eacute chamado a ser solidaacuterio com o seu semelhante em nome

desde logo da funccedilatildeo social da propriedade sobre a qual recai uma

verdadeira hipoteca social a qual numa certa visatildeo das coisas se

funda no destino universal dos bens

VI ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 1962010

Tem sido entendido que os preceitos que desde o princiacutepio do

seacuteculo XX estabelecem as regras do arrendamento de preacutedios

urbanos vecircm consagrando um regime de severas limitaccedilotildees agrave

liberdade contratual impondo importantes restriccedilotildees e viacutenculos agrave

autonomia da vontade privada de modo a assegurar uma poliacutetica de

justiccedila social Neste domiacutenio as partes natildeo satildeo encaradas pela lei

como contraentes mas enquanto membros de uma determinado

grupo social (inquilinos e senhorios) cujos interesses pela sua

relevacircncia na dinacircmica da sociedade importa reger em abstracto

independentemente do acto que deu origem agrave situaccedilatildeo em concreto

Eacute este caraacutecter puacuteblico e de forte incidecircncia poliacutetico-social da

legislaccedilatildeo sobre o contrato de arrendamento que exige que tambeacutem

ele seja encarado ao lado de institutos onde a vontade das partes cede

235

perante os interesses comunitaacuterios sendo por isso a lei nova de

aplicaccedilatildeo imediata aos contratos preacute-existentes

6 CONCLUSAtildeO

Seria desejaacutevel que o Tribunal Constitucional numa perspectiva

necessariamente dialoacutegica repensasse a sua metodologia decisoacuteria agrave luz dos

desafios lanccedilados pela recente jurisprudecircncia do Tribunal Europeu Mais do

que encarar a tutela do inquilino como um encargo do proprietaacuteriosenhorio

configurada esta como um limite inerente agrave funccedilatildeo social da propriedade

sugere-se uma metoacutedica centrada na valorizaccedilatildeo das duas posiccedilotildees em

confronto na situaccedilatildeo concreta a do inquilino (quer se enquadre a sua

pretensatildeo no acircmbito do direito social agrave habitaccedilatildeo quer se qualifique a sua

posiccedilatildeo como ldquopropriedaderdquo [property] em termos de tutela internacional) e

a do senhorio (no acircmbito da permissatildeo normativa que lhe confere o seu direito

real) A soluccedilatildeo da antinomia pragmaacutetica entre os direitos do senhorio e do

inquilino513 tem de ser pensada atraveacutes de um processo ponderativo de

concordacircncia praacutetica em que a cada um dos direitos seja reconhecido o seu

espaccedilo proacuteprio de operatividade segundo o princiacutepio da proporcionalidade

enquanto princiacutepio juriacutedico fundamental objectivamente conformador de toda

a actividade do Estado incluindo a actividade judicial E sempre note-se no

respeito pela reparticcedilatildeo de competecircncias constitucionalmente estabelecida

Seraacute assim ainda que aparentemente repetimos soacute aparentemente o contrato

de arrendamento se torne menos social

513 Que ainda vai deixando vestiacutegios no nosso ordenamento sobretudo nos regimes

transitoacuterios Para uma anaacutelise geral vide MARIA OLINDA GARCIA Arrendamento Urbano

Anotado 3ordf ediccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra 2014

236

237

Breves reflexotildees sobre o exerciacutecio (extrajudicial) do

direito de resoluccedilatildeo do contrato bilateral

sinalagmaacutetico em particular sobre as exceccedilotildees ao

ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo

O caso particular das relaccedilotildees contratuais duradouras

Maria Joatildeo Sarmento Pestana de Vasconcelos

INTRODUCcedilAtildeO

Nas uacuteltimas deacutecadas temos vindo a assistir a uma importacircncia

crescente das relaccedilotildees contratuais duradouras e complexas assentes numa

relaccedilatildeo de confianccedila reciacuteproca e de colaboraccedilatildeo muacutetua entre as partes nas

quais as qualidades pessoais dos contratantes e porventura tambeacutem a sua

solidez financeira se afiguram essenciais514

Natildeo obstante as vaacuterias legislaccedilotildees nacionais e os vaacuterios diplomas

normativos de fonte comunitaacuteria que constituem o alicerce do denominado

ldquoDireito Europeu dos Contratosrdquo continuam a assentar no paradigma do

contrato de compra e venda ndash contrato de execuccedilatildeo instantacircnea por excelecircncia

- consagrando assim uma regulamentaccedilatildeo que nem sempre reflete as

peculiaridades das relaccedilotildees contratuais duradouras Refira-se a tiacutetulo de

exemplo a Diretiva 199944CE sobre a venda de bens de consumo e das

garantias a ela relativas bem como o a opccedilatildeo seguida pelo legislador alematildeo

que aproveitou a necessidade de transposiccedilatildeo do referido diploma comunitaacuterio

para reformar o Coacutedigo Civil estendendo o regime nele consagrado para a

venda de bens de consumo a todo o direito da compra e venda e ainda ao

regime geral das perturbaccedilotildees da prestaccedilatildeo Aliaacutes uma das criacuteticas que tem

sido apontada agrave reforma do BGB de 20012002515 eacute justamente o facto de o

Assistente da Escola de Direito da Universidade do Minho 514 Cfr JOAtildeO BAPTISTA MACHADO ldquoPressupostos da Resoluccedilatildeo por Incumprimentordquo in

Estudos em Homenagem ao Prof J J Teixeira Ribeiro pp 343 a 411 p 356 515 Cfr STEFAN GRUNDMANN ldquoRegulating Breach of Contract ndash The Right to Reject

Performance by the Party in Breachrdquo in ERCL 2207 pp 121 a 149 O Autor critica o facto

de o legislador alematildeo natildeo ter aproveitado a Reforma de 20012002 para tomar em

238

legislador alematildeo ter tomado como paradigma de todo o direito contratual o

contrato de compra e venda

A nossa intervenccedilatildeo neste Coloacutequio subordinado ao tema ldquoLife Time

Contractsrdquo pretende ser uma breve reflexatildeo sobre o exerciacutecio extrajudicial do

direito de resoluccedilatildeo do contrato bilateral sinalagmaacutetico em particular sobre

as exceccedilotildees ao chamado ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo no acircmbito das

relaccedilotildees contratuais duradouras

Numa primeira fase procuraremos responder agrave seguinte questatildeo

sendo o cumprimento ainda possiacutevel em que circunstacircncias poderaacute o credor

exercer imediatamente o direito potestativo de resoluccedilatildeo do contrato bilateral

sinalagmaacutetico sem ter de dar ao devedor inadimplente uma segunda

oportunidade para cumprir Posteriormente procuraremos refletir sobre esta

questatildeo no acircmbito das relaccedilotildees contratuais duradouras e complexas a fim de

averiguar em que medida eacute que a ponderaccedilatildeo de interesses subjacente ao

referido ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo se adapta agraves peculiaridades destas

relaccedilotildees

1 O ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS OPORTUNIDADESrdquo COMO REQUISITO DO

VAacuteLIDO EXERCIacuteCIO DO DIREITO POTESTATIVO DE RESOLUCcedilAtildeO

Na eventualidade de o devedor natildeo realizar a prestaccedilatildeo a que estaacute

adstrito sendo o cumprimento ainda possiacutevel o credor soacute poderaacute em

princiacutepio exercer o direito subjetivo propriamente dito ao cumprimento

atraveacutes do qual obteacutem o mesmo resultado praacutetico que teria conseguido atraveacutes

do cumprimento pontual e voluntaacuterio516 A razatildeo pela qual o credor natildeo pode

neste caso escolher se quer ficar vinculado ou desvincular-se do contrato

prende-se com o facto de o princiacutepio da prioridade do cumprimento visar

simultaneamente a proteccedilatildeo do credor e do devedor517

consideraccedilatildeo os contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos e os contratos duradouros de uma forma

mais substancial como um segundo paradigma ao lado da compra e venda e dos contratos de

execuccedilatildeo instantacircnea 516 Neste sentido v JOAtildeO CALVAtildeO DA SILVA ldquoCumprimento e sanccedilatildeo pecuniaacuteria

compulsoacuteriardquo Almedina Coimbra 2002 p 141 Como observa o Autor atraveacutes do

cumprimento e execuccedilatildeo in natura ldquosatisfaz-se de forma especiacutefica e in natura o interesse

primaacuterio do credor proporcionando-lhe natildeo uma qualquer vantagem mas a vantagem bem

determinada e por si esperada finalidade e razatildeo de ser da proacutepria obrigaccedilatildeordquo 517 Neste sentido v NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo

Coimbra Editora Coimbra 2011 p 810 O Autor defende que por esta razatildeo a relaccedilatildeo entre

o cumprimento e a resoluccedilatildeo do contrato natildeo eacute uma relaccedilatildeo de alternatividade mas de

239

O ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo surge como uma soluccedilatildeo de

compromisso entre a proteccedilatildeo dos interesses de cada um dos sujeitos da

relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional Em termos gerais podemos afirmar que de

acordo com este princiacutepio o devedor que natildeo cumpre agrave primeira (no tempo

devido) deve ter a oportunidade de cumprir agrave segunda ndash dentro de um prazo

razoaacutevel depois do tempo devido518 Isto significa que sendo o cumprimento

ainda possiacutevel o credor soacute poderaacute desvincular-se do contrato exercendo o

direito potestativo de resoluccedilatildeo se decorrido o referido prazo o devedor natildeo

tiver realizado a prestaccedilatildeo devida

O ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo ainda que com contornos

diversos eacute comum a muitos ordenamentos juriacutedicos nacionais sistemas de

Direito uniforme ndash como eacute o caso da Convenccedilatildeo de Viena de 1980 sobre a

compra e venda internacional de mercadorias ndash tendo sido ainda

reaproveitado pelo legislador comunitaacuterio

11 O ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS OPORTUNIDADESrdquo NA DIRETIVA

199944CE DE 25 DE MAIO DE 1999

Na Diretiva 199944CE de 25 de maio de 1999 relativa a certos

aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas o

legislador comunitaacuterio regula o natildeo cumprimento da obrigaccedilatildeo de entrega de

bens em conformidade com o contrato individualizando no artigo 3ordm os

quatro direitos que o consumidor pode exercer e estabelecendo entre eles uma

hierarquia519 Embora caiba ao consumidor o direito de escolha esta escolha

deve respeitar a ordem hieraacuterquica estabelecida pelo legislador comunitaacuterio

na qual podemos distinguir dois niacuteveis com dois direitos cada Num primeiro

niacutevel encontramos os direitos primaacuterios (que o consumidor pode e deve

exercer preferencialmente) que satildeo os direitos orientados para o

cumprimento o direito agrave reparaccedilatildeo e o direito agrave substituiccedilatildeo da coisa num

segundo niacutevel encontramos os direitos secundaacuterios o direito agrave reduccedilatildeo

adequada do preccedilo e o direito agrave rescisatildeo do contrato

A transiccedilatildeo de um niacutevel para o outro eacute regulada pelos nordms 5 e 6 do

artigo 3ordm do referido diploma comunitaacuterio Aquilo que resulta destas normas

eacute que sendo a reparaccedilatildeo ou a substituiccedilatildeo ainda possiacuteveis sem grave

subsidiariedade Isto significa que sendo o cumprimento ainda possiacutevel o credor natildeo poderaacute

escolher se quer ficar vinculado ou desvincular-se 518 V NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 810 519 Sobre a Diretiva 199944CE de 25 de maio de 1999 v por todos PAULO MOTA PINTO

ldquoConformidade e garantias na venda de bens de consumordquo in Estudos de Direito do

Consumidor Coimbra 2000 pp 197 e ss e ldquoReflexotildees sobre a transposiccedilatildeo da Directiva

199944CE para o direito portuguecircsrdquo in Themis ano II nordm 4 2001 pp 195 a 218

240

inconveniente para o consumidor os direitos agrave reduccedilatildeo adequada do preccedilo ou

agrave rescisatildeo do contrato soacute podem ser exercidos depois de ter expirado um

adicional e razoaacutevel periacuteodo de tempo destinado a dar ao vendedor uma

segunda oportunidade para cumprir isto eacute para repor os bens em

conformidade com o contrato atraveacutes da reparaccedilatildeo ou da substituiccedilatildeo Neste

sentido podemos afirmar que o princiacutepio das duas oportunidades constitui a

peccedila central da ordem hieraacuterquica estabelecida pela Diretiva

12 O ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS OPORTUNIDADESrdquo NA LEI ALEMAtilde

A Diretiva sobre a venda de bens de consumo esteve como jaacute

referimos na geacutenese da reforma do BGB de 20012002520

Esta reforma incidiu de forma particular no regime das perturbaccedilotildees

da prestaccedilatildeo

No que toca agrave questatildeo que nos ocupa o (atual) nordm 1 do sect 323 BGB

passou a estabelecer como ponto de partida em caso de natildeo cumprimento a

necessidade de conceder ao devedor um prazo adicional para cumprir antes

de o credor poder exercer o direito subjetivo propriamente dito a uma

indemnizaccedilatildeo substitutiva da prestaccedilatildeo - sect 282 ndash ou o direito potestativo de

resoluccedilatildeo do contrato bilateral - sect 324

No entanto enquanto que na Diretiva 199944CE este prazo comeccedila

a correr automaticamente o BGB exige que este prazo seja fixado pelo credor

embora jaacute natildeo se exija ao contraacuterio do que resultava do sect 326 (versatildeo anterior

do BGB) que a fixaccedilatildeo do referido prazo seja acompanhada de uma

advertecircncia de que natildeo aceitaraacute a prestaccedilatildeo fora de prazo

(Ablehnungsandrohung)521 Consequentemente perante a versatildeo reformada

do BGB decorrido o prazo adicional sem que o devedor tenha realizado a

prestaccedilatildeo em falta o credor manteacutem a faculdade de optar pelo cumprimento

pela indemnizaccedilatildeo ou pela resoluccedilatildeo do contrato

520 Sobre a Reforma do Coacutedigo Civil alematildeo v ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO ldquoDa

Modernizaccedilatildeo do Direito Civilrdquo I Aspectos Gerais 2004 Almedina Coimbra 2004 em

especial pp 70 e ss 521 Uma importante consequecircncia da supressatildeo deste requisito que se encontrava

expressamente previsto no sect 326 BGB v ant eacute que decorrido o prazo adicional sem que o

devedor tenha realizado a prestaccedilatildeo em falta o credor manteacutem a faculdade de optar pela accedilatildeo

de cumprimento pela indemnizaccedilatildeo ou pela resoluccedilatildeo do contrato Sobre este ponto v NUNO

MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoEstudos sobre o natildeo cumprimento das obrigaccedilotildeesrdquo III

Contributo para a interpretaccedilatildeo do artigo 808ordm do Coacutedigo Civil Almedina Coimbra 2009

p 61

241

O sect 323 do BGB contempla ainda determinados casos em que o

credor pode resolver imediatamente o contrato Entre eles contam-se (1) a

recusa definitiva e seacuteria de cumprimento feita pelo devedor ao credor (sect 323

nordm 2 al 1)) (2) os casos em que a prestaccedilatildeo de torna inuacutetil por perda de

interesse do credor na prestaccedilatildeo o que acontece nos casos em que a prestaccedilatildeo

natildeo seja realizada dentro do prazo ou termo essencial (3) os casos em que

atendendo agraves circunstacircncias concretas e agrave ponderaccedilatildeo dos interesses de ambas

as partes se justifique a resoluccedilatildeo imediata Nestes casos o requisito da

concessatildeo de um prazo adicional ao devedor para que este cumpra eacute

substituiacutedo por um aviso preacutevio (Abmahnung)

A possibilidade dada ao credor de resolver imediatamente o contrato

nos casos em que ldquoatendendo agraves circunstacircncias concretas e agrave ponderaccedilatildeo dos

interesses de ambas as partes se justifique a resoluccedilatildeo imediatardquo afigura-se

especialmente importante no acircmbito das relaccedilotildees contratuais duradouras e

complexas e abrange casos que entre noacutes soacute poderiam caber numa claacuteusula

geral de resoluccedilatildeo do contrato por inexigibilidade de subsistecircncia da relaccedilatildeo

contratual

13 O ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS OPORTUNIDADESrdquo NO DIREITO

PORTUGUEcircS

Ao contraacuterio do BGB o Coacutedigo Civil portuguecircs natildeo consagra (ainda)

uma noccedilatildeo ampla de incumprimento O natildeo cumprimento eacute regulado num

enquadramento sistemaacutetico que tem como polos de referecircncia a

impossibilidade (total ou parcial) e a mora522 Consequentemente tambeacutem o

regime da resoluccedilatildeo do contrato bilateral sinalagmaacutetico se encontra construiacutedo

em torno desta dicotomia

No que respeita agrave questatildeo que nos ocupa o ponto de partida do direito

portuguecircs eacute diferente do ponto de partida do direito alematildeo Enquanto que o

direito alematildeo parte como jaacute vimos do requisito da concessatildeo ao devedor de

um prazo adicional para cumprir antes de o credor poder exercer o direito agrave

resoluccedilatildeo do contrato os artigos 801ordm nordm 2 e 802ordm do Coacutedigo Civil portuguecircs

consideram explicitamente a impossibilidade como causa (a causa) da

resoluccedilatildeo imediata do contrato bilateral sinalagmaacutetico523 No entanto

tambeacutem de acordo com o direito portuguecircs nos casos em que o

incumprimento natildeo revista a forma de impossibilidade (casos de mora em que

o cumprimento posterior ainda eacute possiacutevel) o credor natildeo goza de um direito de

resoluccedilatildeo imediata teraacute de dar ao devedor (em mora) nos termos do artigo

522 JOAtildeO BAPTISTA MACHADO ldquoPressupostos da Resoluccedilatildeo por Incumprimentordquo cit p 344 523 O artigo 801ordm contempla os casos de impossibilidade (definitiva) total o artigo 802ordm

contempla os casos de impossibilidade (definitiva) parcial

242

808ordm nordm 1 do Coacutedigo Civil uma segunda oportunidade para cumprir O

ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo consubstancia-se pois na necessidade de

o credor fixar ao devedor (em mora) um prazo razoaacutevel para que este cumpra

Antes de o credor fixar este prazo e de ele terminar o credor continua

vinculado ao conteuacutedo originaacuterio da relaccedilatildeo contratual o que significa que soacute

poderaacute atuar o direito subjetivo propriamente dito ao cumprimento Depois de

o prazo terminar sem que o devedor tenha realizado uma prestaccedilatildeo conforme

ao contrato o credor adquire o direito potestativo de resoluccedilatildeo do contrato

podendo escolher se quer ficar vinculado ao contrato ou desvincular-se

exercendo o direito potestativo de resoluccedilatildeo do contrato Neste sentido o

direito potestativo de resoluccedilatildeo do contrato bilateral sinalagmaacutetico previsto

nos artigos 801ordm nordm 2 e 802ordm do Coacutedigo Civil soacute pode em princiacutepio ser

exercido desde que o devedor desaproveite duas oportunidades para

cumprir524

O artigo 808ordm nordm 1 2ordf alternativa consagra poreacutem uma exceccedilatildeo ao

princiacutepio das duas oportunidades Trata-se do caso em que a prestaccedilatildeo se torna

inuacutetil por perda (objectiva) do interesse do credor na prestaccedilatildeo ldquose o credor

em consequecircncia da mora perder o interesse que tinha na prestaccedilatildeordquo O nordm 2

do artigo 808ordm por sua vez acrescenta que ldquoa perda do interesse do credor na

prestaccedilatildeo eacute apreciada objectivamenterdquo Isto significa que o artigo 808ordm do

Coacutedigo Civil se deve aplicar aos casos em que o credor natildeo possa realizar os

fins da prestaccedilatildeo por causa do natildeo cumprimento temporaacuterio ou transitoacuterio

imputaacutevel ao devedor525

Em segundo lugar embora natildeo resulte expressamente da lei o credor

pode ainda desvincular-se do contrato sem necessidade de conceder ao

devedor um prazo adicional para cumprir quando o devedor recuse de forma

categoacuterica clara e definitiva o cumprimento da obrigaccedilatildeo526 Neste caso seria

inuacutetil intimar para cumprir dentro de um prazo adicional ou suplementar um

devedor que jaacute declarou definitivamente que natildeo cumpriraacute Por outro lado por

parte do devedor a alegaccedilatildeo de que o credor natildeo lhe deu uma segunda

oportunidade para cumprir consubstanciaria um abuso do direito na

modalidade de venire contra factum proprium

524 V NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 810 525 V NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 863 526 V NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 827

243

2 A RESOLUCcedilAtildeO DO CONTRATO NO AcircMBITO DAS RELACcedilOtildeES

CONTRATUAIS DURADOURAS

Diferentemente dos contratos de execuccedilatildeo instantacircnea os contratos

duradouros (nomeadamente os contratos de execuccedilatildeo continuada ou

perioacutedica) criam uma relaccedilatildeo contratual mais complexa que apresenta

aspectos particulares e que poderaacute reclamar a adopccedilatildeo de um criteacuterio especial

para avaliar a gravidade do inadimplemento susceptiacutevel de justificar a

resoluccedilatildeo do contrato

A particular natureza dos contratos duradouros527 faz com que cada

prestaccedilatildeo ou cada inadimplemento natildeo devam ser tomados e valorados

isoladamente mas antes com referecircncia agrave relaccedilatildeo contratual no seu todo

Assim por um lado em regra natildeo bastaraacute o inadimplemento de uma soacute

prestaccedilatildeo para fazer desaparecer o interesse do credor na subsistecircncia da

relaccedilatildeo e para legitimar a resoluccedilatildeo O credor teraacute normalmente interesse nas

prestaccedilotildees subsequentes

Mas por outro lado um inadimplemento ainda que de menor

importacircncia jaacute poderaacute legitimar a resoluccedilatildeo se pela sua natureza e pelas

circunstacircncias de que se rodeou (p ex desordem nos negoacutecios do devedor

desorganizaccedilatildeo da empresa fornecedora) for de molde a fazer desaparecer a

confianccedila do credor no exato cumprimento das prestaccedilotildees subsequentes ou

das obrigaccedilotildees contratuais em geral para o futuro Esta perda de confianccedila natildeo

deve ser valorada tendo em vista a gravidade do inadimplemento do ponto de

vista do prejuiacutezo que dele advenha para o credor528 Aqui o que se pergunta eacute

se ao inadimplemento de uma soacute prestaccedilatildeo se pode (ou natildeo) atribuir este valor

sintomaacutetico529

O problema do incumprimento sintomaacutetico ainda no acircmbito dos

contratos de execuccedilatildeo duradoura pode estar relacionado com o natildeo

cumprimento de deveres de prestaccedilatildeo ou com o natildeo cumprimento de deveres

acessoacuterios de conduta Assim por exemplo nos contratos de execuccedilatildeo

continuada que pressuponham uma relaccedilatildeo de confianccedila muacutetua e de

527 Cfr BAPTISTA MACHADO ldquoPressupostos da Resoluccedilatildeo por Incumprimentordquo cit p 356 528 Isto natildeo significa que numa relaccedilatildeo nascida de um contrato de execuccedilatildeo continuada ou

perioacutedica natildeo possam surgir inadimplementos cuja valoraccedilatildeo deve ser feita tendo em vista o

prejuiacutezo que desses inadimplementos advenha para o credor ou que o criteacuterio especial do

desaparecimento da confianccedila possa valer como criteacuterio concorrente ou subsidiaacuterio 529 Por exemplo um atraso na realizaccedilatildeo de uma soacute prestaccedilatildeo pode natildeo ser suficientemente

grave mas o conjunto de atrasos sim O cumprimento defeituoso ou imperfeito pode natildeo ser

suficientemente grave mas o conjunto de cumprimentos imperfeitos sim

244

colaboraccedilatildeo estreita entre as partes530 deve entender-se como ensina Baptista

Machado que todo o comportamento que afecte gravemente essa relaccedilatildeo potildee

em perigo o proacuteprio fim do contrato abala o fundamento deste e pode

justificar por isso a resoluccedilatildeo531

A possibilidade conferida ao credor de resolver imediatamente o

contrato bilateral sinalagmaacutetico sem ter de dar ao devedor uma segunda

oportunidade para cumprir com fundamento na inexigibilidade de

subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual afigura-se pois especialmente relevante no

acircmbito das relaccedilotildees contratuais duradouras e complexas O nosso Coacutedigo

Civil porque toma como paradigma o contrato de execuccedilatildeo instantacircnea e

porque regula a resoluccedilatildeo com base na dicotomia impossibilidademora natildeo

prevecirc no regime geral do natildeo cumprimento a resoluccedilatildeo do contrato por

inexigibilidade Contudo acolhe esta ideia de inexigibilidade da subsistecircncia

da relaccedilatildeo contratual no regime especiacutefico de alguns contratos tiacutepicos ndash de

execuccedilatildeo duradoura ndash por exemplo do contrato de arrendamento do contrato

de sociedade do contrato de trabalho ou do contrato de agecircncia Em todos

estes contratos a inexigibilidade surge associada agrave noccedilatildeo de ldquojusta causardquo (cfr

art 1003ordm al a) e 1083ordm nordm 2 do Coacutedigo Civil art 351ordm nordm 1 do Coacutedigo

do Trabalho e no art 30ordm do Decreto-Lei nordm 17686 de 3 de julho)

Nuno Pinto Oliveira na esteira da posiccedilatildeo defendida entre noacutes por

Baptista Machado interpreta estas normas como afloramentos de um princiacutepio

geral aplicaacutevel natildeo apenas agraves relaccedilotildees contratuais duradouras mas a todas as

relaccedilotildees contratuais de acordo com o qual o credor deveraacute dispor de um direito

potestativo de resoluccedilatildeo do contrato bilateral sinalagmaacutetico sempre que se decirc

ldquoqualquer circunstacircncia facto ou situaccedilatildeo em face da qual e segundo a boa feacute

natildeo seja exigiacutevel a uma das partes a continuaccedilatildeo da relaccedilatildeo contratualrdquo Ao

esquecer-se de consagrar este princiacutepio o legislador portuguecircs teria causado

uma lacuna que deveria pois ser integrada atraveacutes de uma analogia geral

(analogia juris)532

O BGB reformado afigura-se no que toca a este ponto mais ajustado

agraves peculiaridades das relaccedilotildees contratuais duradouras O sect 323 3 BGB admite

a resoluccedilatildeo do contrato nos casos em que haja circunstacircncias especiais

(besondere Umstaumlnde) e em que a resoluccedilatildeo imediata do contrato se

expliquese justifique atendendo ao balanceamento ou ponderaccedilatildeo dos

interesses contrapostos de cada uma das partes (unter Abwaumlgung der

beiderseitigen Interessen) O sect 324 BGB por sua vez admite a resoluccedilatildeo do

530 Poderaacute tratar-se de contratos celebrados intuito personae mas natildeo necessariamente 531 BAPTISTA MACHADO ldquoPressupostos da Resoluccedilatildeo por Incumprimentordquo cit p 359 532 Cfr NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 870

245

contrato sempre que a inobservacircncia de deveres acessoacuterios de conduta torne

inexigiacutevel a subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual

Estas normas embora sejam aplicaacuteveis a todas as relaccedilotildees contratuais

introduzem uma abertura e uma flexibilidade que se afiguram especialmente

relevantes no acircmbito das relaccedilotildees contratuais duradouras533 Para aleacutem disso

funcionado como exceccedilotildees ao ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo estas

normas poderatildeo tambeacutem contribuir para disciplinar o devedor de uma forma

mais eficiente jaacute que lhe retiram em parte a seguranccedila juriacutedica que o

princiacutepio das duas oportunidades lhe outorga o devedor sabe que natildeo teraacute uma

segunda oportunidade de cumprir se o seu comportamento abalar a relaccedilatildeo de

confianccedila muacutetua na qual assenta a relaccedilatildeo contratual tornando assim

inexigiacutevel a sua subsistecircncia

3 O MODELO CONSAGRADO NA CONVENCcedilAtildeO DE VIENA DE 1980 SOBRE

A COMPRA E VENDA INTERNACIONAL DE MERCADORIAS

31 A NOCcedilAtildeO DE VIOLACcedilAtildeO FUNDAMENTAL DO CONTRATO

Nos termos da Convenccedilatildeo de Viena de 1980 sobre a compra e venda

internacional de mercadorias o direito de rescisatildeo do contrato eacute concedido ao

comprador em duas hipoacuteteses previstas no artigo 49ordm nordm 1 da Convenccedilatildeo

quando a falta de cumprimento de qualquer obrigaccedilatildeo pelo vendedor constituir

uma violaccedilatildeo fundamental do contrato ou quando o vendedor natildeo faccedila a

entrega das mercadorias findo o prazo suplementar que foi fixado pelo

comprador nos termos do artigo 47ordm (ou ainda no decurso deste se o vendedor

declarar categoricamente que natildeo faraacute a entrega dentro de tal prazo) Deste

modo excetuado o caso em que haja falta de entrega o direito de rescisatildeo que

o comprador pode exercer nos termos da Convenccedilatildeo repousa na noccedilatildeo de

ldquoviolaccedilatildeo fundamentalrdquo do contrato ou fundamental breach utilizando a

expressatildeo anglo-saxoacutenica534 Esta noccedilatildeo serve para traccedilar a fronteira entre as

533 Defendendo que ldquo[e]ntre a flexibilidade do Coacutedigo Civil alematildeo e a inflexibilidade do

Coacutedigo Civil portuguecircs deve preferir-se a primeirardquo v NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA

ldquoEstudos sobre o natildeo cumprimento das obrigaccedilotildeesrdquo cit p 69 534 A consagraccedilatildeo da noccedilatildeo de ldquoviolaccedilatildeo fundamentalrdquo do contrato pode ser vista como uma

aproximaccedilatildeo aos sistemas do Common Law em que a faculdade de resoluccedilatildeo eacute limitada aos

casos em que haacute uma violaccedilatildeo grave do contrato O legislador internacional teraacute entendido

que a soluccedilatildeo do Common Law representa o melhor equiliacutebrio entre o interesse da parte faltosa

em natildeo sofrer as consequecircncias da rescisatildeo em caso de uma violaccedilatildeo de gravidade menor e o

interesse da parte lesada em natildeo se ver obrigada a aceitar uma prestaccedilatildeo em que natildeo tem (ou

246

formas de incumprimento menos graves que natildeo potildeem em causa a

subsistecircncia do contrato e situaccedilotildees mais graves que permitem agrave parte lesada

a rescisatildeo do contrato

O artigo 25ordm da convenccedilatildeo determina que uma violaccedilatildeo do contrato

cometida por uma das partes eacute fundamental quando causa agrave outra parte um

prejuiacutezo tal que a prevecirc substancialmente daquilo que lhe era legiacutetimo esperar

do contrato salvo se a parte faltosa natildeo previu esse resultado e se uma pessoa

razoaacutevel com idecircntica qualificaccedilatildeo e colocada na mesma situaccedilatildeo natildeo o

tivesse igualmente previsto

A expressatildeo ldquoprejuiacutezordquo natildeo eacute aqui utilizada no seu sentido teacutecnico mas

como desvantagem resultante do incumprimento agrave luz do interesse do credor

Assim jaacute se entendeu que natildeo constitui uma violaccedilatildeo fundamental a existecircncia

de defeitos de conformidade numa pequena parte da mercadoria ou que natildeo

excluam uma utilizaccedilatildeo alternativa sem fazer incorrer o comprador em

despesas elevadas Por outro lado natildeo soacute o incumprimento da obrigaccedilatildeo

principal mas tambeacutem o incumprimento de obrigaccedilotildees acessoacuterias pode ser

considerado uma violaccedilatildeo fundamental se tiver suficiente importacircncia para a

outra parte Assim por exemplo o desrespeito pelo vendedor de um direito de

exclusividade reconhecido ao comprador pode dependendo do conteuacutedo do

contrato e das circunstacircncias concretas do caso consubstanciar uma ldquoviolaccedilatildeo

fundamentalrdquo do contrato535

Natildeo basta poreacutem a existecircncia de um prejuiacutezo substancial Eacute

necessaacuterio que a parte faltosa tenha previsto a produccedilatildeo desse prejuiacutezo ou que

ele fosse previsiacutevel por uma pessoa razoaacutevel com idecircntica qualificaccedilatildeo e

colocada na mesma situaccedilatildeo Incumbe agrave parte faltosa provar que o prejuiacutezo

substancial causado agrave outra parte natildeo foi previsto nem seria previsiacutevel Assim

por exemplo o atraso na entrega da mercadoria soacute constituiraacute uma violaccedilatildeo

fundamental se causar um prejuiacutezo substancial ao comprador e se o vendedor

puder aperceber-se da sua gravidade Nesta hipoacutetese poreacutem o comprador

pode nos termos do artigo 49ordm nordm 1 aliacutenea b) fixar um prazo suplementar ao

vendedor e resolver o contrato se a entrega natildeo tiver lugar dentro desse prazo

sem necessidade de demonstrar que o atraso na entrega da mercadoria constitui

uma violaccedilatildeo fundamental do contrato

jaacute natildeo tem) interesse V LUIacuteS DE LIMA PINHEIRO Direito Comercial Internacional Almedina

Coimbra 2005 p 278 535 V LUIacuteS DE LIMA PINHEIRO Direito Comercial Internacional cit p 279

247

32 O DIREITO DE DECLARAR A RESOLUCcedilAtildeO NOS CONTRATOS COM

PRESTACcedilOtildeES SUCESSIVAS

O artigo 73ordm da Convenccedilatildeo consagra um regime especial aplicaacutevel agrave

resoluccedilatildeo do contrato por inexecuccedilatildeo de alguma das obrigaccedilotildees quando a

prestaccedilatildeo de qualquer das partes se protele no tempo Tal regime comtempla

as consequecircncias que resultam de uma tal inexecuccedilatildeo quer no que diz respeito

agrave entrega natildeo efectivada quer no que concerne agrave sua repercussatildeo sobre os

demais atos de entrega futuros ou jaacute efetuados536 No caso de contratos em

que as prestaccedilotildees se achem fracionadas como eacute o caso de contratos de compra

e venda com entregas sucessivas o princiacutepio geral eacute o de que se o

incumprimento de uma obrigaccedilatildeo referente a uma entrega constituir uma

violaccedilatildeo fundamental do contrato a outra parte pode resolvecirc-lo no acircmbito

correspondente a esta entrega (artigo 73ordm nordm 1) Neste caso o direito de

resoluccedilatildeo eacute limitado agrave prestaccedilatildeo em causa e soacute existe nos termos gerais

quando se verifique uma violaccedilatildeo fundamental do contrato

O nordm 2 do artigo 73ordm da Convenccedilatildeo prevecirc a hipoacutetese em que o

incumprimento de uma das prestaccedilotildees singulares de entrega daacute agrave outra parte

seacuterias razotildees para pensar que ocorreraacute uma violaccedilatildeo fundamental na parte

correspondente agraves futuras entregas Assim autoriza-se a parte lesada a num

prazo razoaacutevel declarar a resoluccedilatildeo de toda a relaccedilatildeo duradoura para o futuro

Neste caso prescinde-se do caraacuteter fundamental da violaccedilatildeo ocorrida para se

exigir apenas que ela funde o receio justificado de outras violaccedilotildees futuras

que possam revestir aquele caraacuteter

Embora natildeo exista na nossa lei uma norma semelhante poderemos

admitir como defende Baptista Machado que o inadimplemento de uma

prestaccedilatildeo neste tipo de contratos pode ter valor sintomaacutetico legitimando

entatildeo a resoluccedilatildeo do contrato se tal inadimplemento ldquofor de molde a fazer

desaparecer a confianccedila do credor no exato e fiel cumprimento das prestaccedilotildees

subsequentesrdquo

O nordm 3 do artigo 73ordm prevecirc a hipoacutetese em que tendo o comprador

resolvido o contrato em relaccedilatildeo a uma das entregas as demais (passadas ou

futuras) natildeo poderem mais ser utilizadas para os fins tidos em vista pelas partes

no momento da celebraccedilatildeo do contrato em virtude da sua iacutentima conexatildeo com

a prestaccedilatildeo em falta

Haacute aqui uma analogia com o regime especial dos efeitos da resoluccedilatildeo

do contrato previsto na nossa lei para as chamadas obrigaccedilotildees de execuccedilatildeo

536 Cfr os nuacutemeros 2 e 3 do artigo 73ordm da Convenccedilatildeo de Viena de 1980

248

continuada ou perioacutedica no que diz respeito agraves prestaccedilotildees jaacute efetuadas (v

artigo 434ordm nordm 2 do Coacutedigo Civil)

CONCLUSOtildeES

A anaacutelise que empreendemos permite-nos concluir que quer na

Diretiva 199944CE de 25 de maio de 1999 quer nos Coacutedigos Civis

portuguecircs e alematildeo quer na Convenccedilatildeo de Viena de 1980 sobre a venda

internacional de mercadorias existe uma diferenciaccedilatildeo entre incumprimentos

essenciais (em que a prestaccedilatildeo jaacute natildeo eacute possiacutevel ou eacute inuacutetil do ponto de vista

da satisfaccedilatildeo do interesse do credor) e incumprimentos natildeo essenciais (em

que a prestaccedilatildeo ainda eacute possiacutevel e uacutetil)

A razatildeo de ser desta diferenciaccedilatildeo eacute a seguinte sendo a prestaccedilatildeo ainda

possiacutevel e uacutetil importa encontrar um equiliacutebrio entre o interesse do devedor

em cumprir e o interesse do credor em desvincular-se do contrato exercendo

o direito potestativo de resoluccedilatildeo O equiliacutebrio entre estes dois interesses

alcanccedila-se atraveacutes do ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo ou seja do requisito

da fixaccedilatildeo ao devedor de um prazo adicional para cumprir e assim impedir a

resoluccedilatildeo do contrato

O ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo tem vantagens para ambas as

partes para o credor porque lhe permite exercer o direito potestativo de

resoluccedilatildeo do contrato mesmo nos casos em que o cumprimento posterior

ainda eacute possiacutevel para o devedor pela certeza e pela seguranccedila que lhe

proporciona ele sabe que se natildeo cumprir agrave primeira poderaacute ainda cumprir agrave

segunda e tem ainda a garantia de que enquanto aquele prazo adicional natildeo

terminar o credor natildeo poderaacute exercer o direito de resoluccedilatildeo do contrato (a natildeo

ser que no decurso desse prazo o devedor declare de forma definitiva e

categoacuterica que natildeo cumpriraacute)

Nos casos em que a prestaccedilatildeo jaacute natildeo eacute possiacutevel ou eacute inuacutetil ndash o interesse

do credor em desvincular-se do contrato exercendo o direito potestativo de

resoluccedilatildeo eacute claramente preponderante razatildeo pela qual faz sentido admitir que

este possa resolver imediatamente o contrato sem ter que dar ao devedor uma

segunda oportunidade para cumprir537

537 O artigo 9301 (1) PECL determina que uma das partes pode resolver o contrato se o

incumprimento da outra parte constituir um incumprimento essencial Assim nos casos de

incumprimento essencial existe um direito de resoluccedilatildeo imediata Natildeo existindo um

incumprimento essencial o credor soacute poderaacute resolver o contrato se previamente tiver

concedido ao devedor um prazo adicional para este cumprir e o respectivo prazo terminar sem

que o devedor tenha realizado a sua prestaccedilatildeo O artigo 9301 (2) PECL estabelece que em

249

A ponderaccedilatildeo de interesses subjacente ao princiacutepio das duas

oportunidades nem sempre se afigura adequada agraves peculiaridades das relaccedilotildees

contratuais duradouras e complexas as quais reclamam uma maior

flexibilidade afigurando-se pois preferiacutevel o regime consagrado no Coacutedigo

Civil alematildeo o qual permite abranger todos os casos em que o princiacutepio da

ponderaccedilatildeo de interesses justifique a resoluccedilatildeo do contrato ou ainda o regime

consagrado na Convenccedilatildeo de Viena de 1980 sobre a venda internacional de

mercadorias o qual para aleacutem de permitir a resoluccedilatildeo imediata sempre que

haja uma violaccedilatildeo fundamental do contrato conteacutem regras proacuteprias aplicaacuteveis

apenas a relaccedilotildees contratuais duradouras e como tal particularmente

ajustadas agraves suas peculiaridades

caso de mora o credor pode resolver o contrato em virtude do 8 106 (3) PECL Esta norma

determina que se o atraso no cumprimento natildeo constituir um natildeo cumprimento essencial e se

o credor tiver concedido ao devedor um prazo adicional para este cumprir poderaacute resolver o

contrato se esse prazo decorrer de forma infrutuosa

250

Coloacutequio ldquoO princiacutepio da dignidade da

pessoa humana e o direito privado

Repensar os direitos de personalidaderdquo

Braga 14 de dezembro de 2015

252

253

Os direitos de personalidade como direitos

fundamentais

Joaquim de Sousa Ribeiro

1 A Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa (CRP) confere plena

centralidade valorativa agrave pessoa como objeto de proteccedilatildeo

O primado desse conceito como conceito de valor a preservar e a

promover fica logo expresso com evidecircncia no artigo 1ordm ao reconhecer a

dignidade da pessoa humana como uma das bases da Repuacuteblica Portuguesa

Esta ideia regulativa baacutesica preacute-enuncia em si mesma todo um programa

normativo natildeo soacute de fixaccedilatildeo de limites de atuaccedilatildeo aos poderes puacuteblicos mas

tambeacutem de imposiccedilatildeo de tarefas e de incumbecircncias prestacionais

teleologicamente direcionadas a conformar a vivecircncia em sociedade como

ldquolivre justa e solidaacuteriardquo de acordo com o segmento final daquele preceito

Esse programa eacute desenvolvidamente explicitado por toda a

Constituiccedilatildeo com destaque naturalmente para os ldquoprinciacutepios fundamentaisrdquo

e para a parte I atinente aos direitos fundamentais O valor matricial da

dignidade da pessoa humana funda e daacute unidade de sentido a todas as previsotildees

de direitos da pessoa que aiacute se contecircm cobrindo as diversificadas situaccedilotildees

existenciais em que a sua personalidade se constroacutei e se exprime O imperativo

de respeito pelo modo de ser concreto de cada indiviacuteduo sem sujeiccedilatildeo a um

modelo ideal predeterminado em abstrato alimenta um conceito de liberdade

de cunho substancialista como autodeterminaccedilatildeo efetiva em todos os

domiacutenios da existecircncia O que por sua vez e em conexatildeo postula uma

dimensatildeo essencial da igualdade como direito agrave diferenccedila Na verdade como

jaacute noutra sede escrevemos laquoa autodeterminaccedilatildeo como direito ao ldquolivre

desenvolvimento da personalidaderdquo eacute indissociaacutevel do tratamento como igual

daquele que faz opccedilotildees de vida divergentes dos padrotildees dominantes Digna de

igual reconhecimento e respeito eacute a pessoa como ser uacutenico e diferenciado

portadora de necessidades aspiraccedilotildees desejos e atributos que a

individualizam na circunstacircncia histoacuterica do seu viverraquo (A tutela de bens da

personalidade na Constituiccedilatildeo e na jurisprudecircncia constitucional

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Presidente do Tribunal

Constitucional

254

portuguesasrdquo Estudos em homenagem ao Prof Doutor Joseacute Joaquim Gomes

Canotilho III paacuteg 852)

A pessoa eacute protegida natildeo apenas enquanto tal mas tambeacutem como

cidadatildeo e como trabalhador formando-se assim a trilogia de categorias de

direitos liberdades e garantias que no seu conjunto disponibilizam uma tutela

global agrave pessoa direitos liberdades e garantias pessoais de participaccedilatildeo

poliacutetica e dos trabalhadores

A estrutura da proteccedilatildeo constitucional da pessoa completa-se com a

fixaccedilatildeo aos poderes puacuteblicos de incumbecircncias concretas de atuaccedilatildeo prestativa

no acircmbito da efetivaccedilatildeo de direitos fundamentais sociais econoacutemicos e

culturais Para aleacutem do seu significado especiacutefico atinente a cada um dos bens

objeto de tutela esses direitos no seu conjunto datildeo substacircncia aos valores

cimeiros da liberdade e da igualdade procurando assegurar a todos condiccedilotildees

reais minimamente igualitaacuterias de integraccedilatildeo e de participaccedilatildeo autoacutenoma na

vida social Funccedilatildeo essencial neste domiacutenio cumpre o direito a um miacutenimo

de subsistecircncia condigna natildeo expressamente consagrado mas que o Acoacuterdatildeo

nordm 5092002 do Tribunal Constitucional fez diretamente entroncar no

princiacutepio do respeito da dignidade humana

Partindo da pessoa a Constituiccedilatildeo natildeo abandona esse eixo nuclear na

proacutepria modelaccedilatildeo da organizaccedilatildeo econoacutemica Ela foi constitucionalmente

concebida como instrumental ao objetivo de promoccedilatildeo do bem-estar e da

qualidade de vida do povo e da igualdade real entre os portugueses ndash uma das

tarefas fundamentais do Estado assim expressa na aliacutenea d) do artigo 9ordm da

CRP Reforccedilando esse ponto de vista valorativo a aliacutenea a) do artigo 81ordm

estabelece como incumbecircncia prioritaacuteria do Estado no acircmbito econoacutemico e

social laquopromover o aumento de bem-estar social e econoacutemico e da qualidade

de vida das pessoas em especial das mais desfavorecidas (hellip)raquo

2 Esta densa malha protetiva a niacutevel da Lei Fundamental eleva a um

novo patamar o reconhecimento normativo dos direitos da pessoa no

ordenamento portuguecircs sendo de lhe atribuir um profundo significado

sisteacutemico

A tutela dos bens da personalidade jaacute tivera um anterior momento

marcante com a consagraccedilatildeo no Coacutedigo Civil de 1966 de ldquodireitos de

personalidaderdquo Compondo toda uma secccedilatildeo integrada no tiacutetulo III da Parte

Geral dedicado agraves ldquorelaccedilotildees juriacutedicasrdquo (artigos 70ordm a 81ordm) aiacute encontra

expressatildeo forte a visatildeo ldquopersonalistardquo de que cada indiviacuteduo vale como pessoa

o que implica a disponibilizaccedilatildeo pela ordem juriacutedica de instrumentos de

proteccedilatildeo dos modos de ser por que se manifesta a sua irredutiacutevel identidade e

individualidade Proteccedilatildeo que nesse plano do direito civil lhe foi

255

extensamente concedida atraveacutes de uma claacuteusula geral muito aberta (artigo

70ordm nordm 1) de tutela ldquocontra qualquer ofensa iliacutecita ou ameaccedila de ofensa agrave sua

personalidade fiacutesica ou moralrdquo articulada com algumas previsotildees especiacuteficas

em salvaguarda de concretos bens da personalidade

Mas e natildeo obstante todo o realce e encoacutemios que a consagraccedilatildeo

legislativa de direitos de personalidade no nosso Coacutedigo Civil

indiscutivelmente merece natildeo pode ignorar-se que deles transparece uma

compreensatildeo estritamente individualista e abstratizante da pessoa como ldquoente

centrado sobre si proacutepriordquo sem ter em conta as posiccedilotildees relacionais e os papeacuteis

que ela assume na esfera da convivecircncia social

Este ldquoisolamentordquo dos direitos de personalidade foi muito favorecido

pela sistemaacutetica germacircnica que o Coacutedigo adotou com a compartimentaccedilatildeo da

mateacuteria civiliacutestica em blocos normativos separados (em ldquolivrosrdquo) por criteacuterios

estruturais e funcionais que nada tecircm a ver com o percurso vivencial da pessoa

Colocados dentro do regime geral da relaccedilatildeo juriacutedica os direitos de

personalidade revelam-se aiacute quase como um ldquocorpo estranhordquo pois nesse

contexto a personalidade eacute dominantemente equiparada agrave subjetividade sendo

a pessoa encarada como mero elemento da relaccedilatildeo juriacutedica como centro de

imputaccedilatildeo dos efeitos juriacutedicos que ela comporta

Em resultado de tudo isto e ainda que o reconhecimento de direitos de

personalidade seja uma componente da parte ldquogeralrdquo do Coacutedigo eles natildeo

tiveram qualquer projeccedilatildeo valorativa nos outros sectores da regulaccedilatildeo

civiliacutestica

Pense-se por exemplo no regime da ldquoemissatildeo de fumo produccedilatildeo de

ruiacutedos e factos semelhantesrdquo (artigo 1346ordm) O proprietaacuterio de um imoacutevel pode

opor-se a esses factos provenientes de preacutedio vizinho laquosempre que tais factos

importem um prejuiacutezo substancial para o uso do imoacutevel ou natildeo resultem da

utilizaccedilatildeo normal do preacutedio de que emanamraquo Eacute notoacuterio que a ponderaccedilatildeo

legislativa incidiu exclusivamente sobre a relaccedilatildeo entre imoacuteveis entre o preacutedio

gerador daqueles factos e o preacutedio por eles afetado Numa oacutetica

exclusivamente patrimonialista contrapocircs-se as utilidades propiciadas pelo

primeiro aos prejuiacutezos sofridos pelo segundo com alheamento absoluto das

ofensas ao direito ao repouso ou agrave integridade pessoal do titular deste agrave perda

da qualidade de vida por accedilatildeo lesiva sobre o meio circundante e ambiental da

pessoa Sobressai neste criteacuterio de soluccedilatildeo a salvaguarda sem qualquer

ressalva da ldquoutilizaccedilatildeo normalrdquo do preacutedio de onde proveem os factos lesivos

Se um interpretaccedilatildeo sistemaacutetica que entre em linha de conta com o

disposto no artigo 70ordm ainda pode contrariar esta conclusatildeo ndash e a nossa

jurisprudecircncia natildeo hesitou em seguir essa via minus o mesmo jaacute natildeo acontece com

as autecircnticas antinomias valorativas criadas por opccedilotildees tomadas no acircmbito do

256

direito da famiacutelia Na redaccedilatildeo originaacuteria do Coacutedigo anteriormente agraves

alteraccedilotildees introduzidas pelo Decreto-Lei nordm 49677 de 25 de novembro a

mateacuteria foi tratada numa perspetiva puramente institucionalista como se o

casamento e a famiacutelia nada tivessem a ver com a autodeterminaccedilatildeo e a

realizaccedilatildeo da pessoa minus os valores determinantes da garantia do livre

desenvolvimento da personalidade contida na tutela geral reconhecida no

artigo 70ordm Daiacute entre outros aspetos a indissolubilidade por divoacutercio dos

casamentos catoacutelicos celebrados desde 1 de agosto de 1940 (artigo 1790ordm) e

em muacuteltiplos pontos o estatuto inferiorizado da mulher submetida ao ldquopoder

maritalrdquo do marido como ldquochefe de famiacuteliardquo (artigo 1674ordm) com as restriccedilotildees

e as condicionantes decorrentes

Por isso mesmo a nova ordem constitucional implicou nesta aacuterea uma

radical reconfiguraccedilatildeo normativa do direito ordinaacuterio Soacute entatildeo o regime

juriacutedico-civil do casamento da famiacutelia e dentro dela da filiaccedilatildeo passou a estar

ajustado agraves ideias de valor da autodeterminaccedilatildeo de integridade e de igual

dignidade das pessoas ndash ideias que dando conteuacutedo a princiacutepios

constitucionais e a direitos fundamentais satildeo tambeacutem fundantes da

consagraccedilatildeo de direitos de personalidade E a forma consequente como foi

levada a cabo essa tarefa de ajustamento do direito ordinaacuterio aos paracircmetros

constitucionais manifesta-se bem no tratamento dos filhos menores de acordo

com o grau de maturidade destes os pais ldquodevem ter em conta a sua opiniatildeo

nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na

organizaccedilatildeo da proacutepria vidardquo (artigo 1878ordm nordm 2)

3 Este o primeiro e grande apport da consagraccedilatildeo constitucional dos

direitos da pessoa como direitos fundamentais situados no veacutertice do sistema

juriacutedico Nessa qualidade beneficiam da forccedila juriacutedica que o artigo 18ordm da

CRP atribui aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos liberdades

e garantias Vinculando as entidades puacuteblicas e privadas impotildeem-se ao

proacuteprio legislador como padrotildees de referecircncia normativa a respeitar em todas

as aacutereas de intervenccedilatildeo legislativa As conformaccedilotildees de cunho restritivo soacute satildeo

admissiacuteveis dentro dos paracircmetros fixados nos nordms 2 e 3 daquela disposiccedilatildeo

devendo em particular ldquolimitar-se ao necessaacuterio para salvaguardar outros

direitos e interesses constitucionalmente protegidosrdquo e natildeo afetar o ldquonuacutecleo

essencialrdquo dos direitos liberdades e garantias

Com o reconhecimento constitucional os direitos da pessoa natildeo soacute

estendem a sua esfera de proteccedilatildeo ndash na medida em que satildeo tambeacutem e em

primeira linha direitos de defesa contra intromissotildees lesivas do Estado minus

como ganham uma eficaacutecia vinculativa irradiante para todo o sistema juriacutedico

Natildeo haacute campo normativo que se lhes possa subtrair natildeo haacute razotildees especiacuteficas

de nenhum setor de regulaccedilatildeo infraconstitucional que se possam sobrepor aos

257

imperativos que os direitos fundamentais incorporam em termos de validarem

soluccedilotildees que os contrariem Natildeo mais satildeo possiacuteveis visotildees parcelares

desconectadas da unidade de sentido tutelador que a Constituiccedilatildeo confere aos

direitos da pessoa nos vaacuterios ldquopalcosrdquo em que esta desenvolve a sua atividade

Os criteacuterios material-valorativos modeladores do estatuto juriacutedico-

constitucional da pessoa tecircm projeccedilatildeo universal em todo o ordenamento pela

posiccedilatildeo supraordenada que nele ocupam sem prejuiacutezo das especiacuteficas

dimensotildees protetivas que no plano do direito ordinaacuterio satildeo concretizadas nos

vaacuterios sectores da ordem juriacutedica de forma ajustada agrave iacutendole proacutepria das

esferas existenciais neles reguladas Aqueles criteacuterios constitucionais

permeiam a conformaccedilatildeo normativa tambeacutem das relaccedilotildees juriacutedico-privadas

servindo simultaneamente de padratildeo de controlo da validade das estatuiccedilotildees

infraconstitucionais

Ganha-se assim uma visatildeo integrada sistemicamente coerente do

conjunto multifacetado da estrutura de proteccedilatildeo da pessoa sem

compartimentaccedilotildees estanques entre si em total correspondecircncia com a

natureza una e indivisiacutevel da personalidade humana

Dessa visatildeo natildeo podem ser excluiacutedos pelo menos alguns dos direitos

econoacutemicos e sociais Tendo eacute certo o seu nuacutecleo mais caracterizador nas

relaccedilotildees com o Estado como direito a prestaccedilotildees alguns desses direitos

desempenham tambeacutem uma funccedilatildeo de defesa e de proteccedilatildeo contra agressotildees

nas relaccedilotildees juriacutedico-privadas Nessa vertente defensiva complementam os

claacutessicos direitos pessoais ndash eacute o caso por exemplo do direito econoacutemico-social

agrave habitaccedilatildeo (artigo 65ordm da CRP) com relevantes projeccedilotildees valorativas bem

patentes na jurisprudecircncia constitucional sobre a disciplina do arrendamento

minus ou tecircm mesmo incidecircncia sobre o acircmbito de proteccedilatildeo destes direitos

enriquecendo-o e alargando-o Exemplo expressivo desta interconexatildeo

horizontal de sentido tutelador eacute-nos dado pela associaccedilatildeo do direito agrave

integridade pessoal (artigo 25ordm da CRP) ao direito agrave sauacutede (artigo 64ordm) bem

como ao direito a um ambiente sadio e a qualidade de vida (artigo 66ordm) Essa

associaccedilatildeo contribuiu para potenciar uma compreensatildeo mais exigente mesmo

na esfera juriacutedico-privada como direito da personalidade do direito agrave

integridade fiacutesica e psiacutequica ampliando o bem protegido de forma a abarcar

natildeo apenas os atentados diretos ao ser da pessoa mas tambeacutem as accedilotildees que

inquinam o seu meio vivencial afetando o seu bem-estar Uma rica e

diversificada jurisprudecircncia civiliacutestica documenta bem essa extensatildeo do

acircmbito de tutela

4 A proteccedilatildeo constitucional integrada e unificada de todos os atributos

que garantem ao indiviacuteduo ldquovaler como pessoardquo comunica-se assim a todo o

258

sistema juriacutedico funcionando como poacutelo agregador dos regimes sectorizados

que tecircm esse objeto de tutela e impulsionador da sua efetiva aplicaccedilatildeo de

modo conforme aos valores constitucionais

Fica patente que mecanismos de proteccedilatildeo diacutespares entre si por

obedecerem ao ethos normativo proacuteprio da aacuterea do juriacutedico onde se situam

apresentam um eacutetimo comum por todos serem expressatildeo dos imperativos de

tutela que por forccedila da ordenaccedilatildeo axioloacutegica jusfundamental sobre o Estado

recai Na verdade de acordo na estrutura complexa dos direitos fundamentais

neles natildeo cabem apenas deveres de respeito limites agrave intrusatildeo na esfera

protegida ndash deveres que no que se refere ao Estado ganham particular

evidecircncia quando este eacute o uacutenico potencial agressor como sucede em todo o

vasto campo do exerciacutecio do direito de punir Cabem tambeacutem deveres de

proteccedilatildeo bem expressos no segmento da caracterizaccedilatildeo geneacuterica da Repuacuteblica

Portuguesa como ldquoEstado de direito democraacuteticordquo (artigo 2ordm) que nele

integra como sua componente essencial a ldquogarantia de efectivaccedilatildeo dos

direitos e liberdades fundamentaisrdquo e em previsotildees especiacuteficas dispersas por

vaacuterios preceitos (cfr por exemplo a parte final do nordm 1 e os nordms 2 e 3 do artigo

26ordm)

Com respeito pelo princiacutepio da proporcionalidade o legislador goza de

ampla liberdade na escolha do meio de proteccedilatildeo mais adequado A proteccedilatildeo

mais intensa (mas tambeacutem a mais exposta ao risco de excesso e daiacute a sua

sujeiccedilatildeo estrita ao criteacuterio da necessidade naquele princiacutepio contido) eacute dada

pelas incriminaccedilotildees de direito penal com a criminalizaccedilatildeo de condutas lesivas

de bens da personalidade Os ldquocrimes contra as pessoasrdquo eacute uma tipificaccedilatildeo que

todos os coacutedigos penais contecircm e natildeo podem deixar de conter como parte

destacada do seu cataacutelogo de accedilotildees puniacuteveis Mas se esse eacute um locus

obbligatus desses complexos normativos a moderna compreensatildeo do direito

penal que seleciona como bens dotados de dignidade penal ldquosoacute bens juriacutedicos

de niacutevel constitucionalrdquo os ldquobens juriacutedicos essenciais agrave realizaccedilatildeo mais livre

possiacutevel do homem na comunidaderdquo (nesse sentido Figueiredo Dias Direito

penal Parte Geral t I 2ordf ed Coimbra 2007 paacutegs 117-123) veio inocular-

lhe uma nova carga valorativa como componente imprescindiacutevel de um

sistema protetor na iacutentegra e em todas as dimensotildees da personalidade

humana

No Coacutedigo Penal portuguecircs esta mateacuteria ocupa todo o tiacutetulo I da Parte

Especial estendendo-se do artigo 131ordm ao artigo 201ordm A ldquocorrespondecircncia de

sentidordquo com a ordem constitucional de tutela da pessoa manifesta-se desde

logo em certas previsotildees com direta atinecircncia a garantias constitucionais

designadamente as do capiacutetulo respeitante aos ldquocrimes contra a reserva da vida

privadardquo (artigos 190ordm a 198ordm) e agrave tipificaccedilatildeo do crime de ldquogravaccedilotildees e

fotografias iliacutecitasrdquo (artigo 199ordm)

259

Mas manifesta-se tambeacutem e com especial valor sintomaacutetico na

reconfiguraccedilatildeo dos crimes sexuais no fundamento material-valorativo

conteuacutedo e lugar sistemaacutetico das incriminaccedilotildees que a eles respeitam Na versatildeo

inicial do Coacutedigo Penal de 1982 estes crimes ainda figuravam no Tiacutetulo III

(ldquoDos crimes contra interesses e valores da vida em sociedaderdquo) e dentro dele

no Capiacutetulo I sob a epiacutegrafe ldquoDos crimes contra os fundamentos eacutetico-sociais

da vida em sociedaderdquo Com a revisatildeo de 1995 tais crimes passaram a ser

perspetivados como ldquocrimes contra a liberdade e autodeterminaccedilatildeo sexualrdquo

das viacutetimas como consta da designaccedilatildeo do Capiacutetulo V do Tiacutetulo respeitante

aos crimes contra as pessoas A mudanccedila natildeo eacute apenas de nome mas de toda

a axiologia imanente na identificaccedilatildeo dos bens protegidos a tutela eacute recentrada

na pessoa tendo como objeto os bens constitutivos e expressivos da sua

personalidade na aacuterea do comportamento sexual em vez de estar direcionada

como ateacute aiacute para valores de ordenaccedilatildeo social de acordo com o padratildeo dos

ldquobons costumesrdquo

5 No setor que especialmente diz respeito ao tema em anaacutelise ndash o das

relaccedilotildees interprivadas pois eacute este o campo de exerciacutecio dos direitos de

personalidade em sentido proacuteprio teacutecnico-juriacutedico minus tambeacutem aiacute teve sensiacutevel

impacto e influxo conformador a previsatildeo constitucional de direitos

liberdades e garantias pessoais como direitos fundamentais Para aleacutem de fator

de aglutinaccedilatildeo sisteacutemica ndash como jaacute acima se explanou ndash dessas previsotildees

resultou uma tutela mais extensa e mais intensa dos bens da personalidade

Mais extensa porque a niacutevel constitucional haacute uma maior e mais

atualizada especificaccedilatildeo dos bens de personalidade garantidos A enumeraccedilatildeo

que o Coacutedigo Civil conteacutem dos concretos modos de ser em que a personalidade

se projeta eacute parca e algo desatualizada Basta atentar em que dos dez preceitos

atinentes a particulares objetos de tutela (artigos 72ordm a 81ordm) quatro referem-

se a cartas e outros escritos Haacute de convir-se que num juiacutezo atual este acircmbito

normativo de proteccedilatildeo incide sobre uma dimensatildeo da personalidade em

progressiva perda de significado pessoal e social natildeo se justificando este

detalhe regulador Em contrapartida satildeo silenciadas dimensotildees hoje expostas

a riscos seacuterios de accedilatildeo lesiva como por exemplo em toda a aacuterea de utilizaccedilatildeo

de meios informaacuteticos e das tecnologias de informaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo

Eacute certo que esta maior extensatildeo das previsotildees constitucionais natildeo deve

ser sobrevalorizada pois natildeo nos podemos esquecer que o Coacutedigo Civil

conteacutem uma claacuteusula geral de tutela (artigo 70ordm) que funcionando como

ldquonorma de recolhardquo (Anfangsvorschrift) permite ldquocaptarrdquo normativamente

como objeto de proteccedilatildeo aspetos da personalidade natildeo especificamente

regulados

260

Mas justamente a consagraccedilatildeo na Constituiccedilatildeo de um cataacutelogo de

direitos pessoais que vai para aleacutem do cataacutelogo dos direitos de personalidade

constante da legislaccedilatildeo civil deu um impulso concretizador agravequela claacuteusula

geral contribuindo para uma densificaccedilatildeo consistente do seu alcance E a

progressiva interiorizaccedilatildeo pela generalidade dos operadores judiciaacuterios de

uma ldquocultura de constitucionalidaderdquo de que fazem destacadamente parte as

opccedilotildees de valor expressivamente manifestadas nesses direitos fundamentais

estimulou a efetiva aplicaccedilatildeo de todos os instrumentos de tutela da pessoa O

notoacuterio enriquecimento da jurisprudecircncia civiliacutestica nesta mateacuteria a partir da

deacutecada de oitenta do seacuteculo passado eacute testemunho disso mesmo

Satildeo expressamente consagrados para aleacutem do direito agrave vida e do

direito agrave integridade pessoal sob a epiacutegrafe ldquooutros direitos pessoaisrdquo (artigo

26ordm) e para referir apenas os que tecircm expressatildeo dominante na esfera privada

os direitos agrave identidade pessoal ao desenvolvimento da personalidade

(introduzido na revisatildeo de 1997) agrave capacidade civil (resultante da 1ordf revisatildeo

de 1982) ao bom nome e reputaccedilatildeo agrave imagem (introduzido igualmente na 1ordf

revisatildeo) agrave palavra (introduzido pela 2ordf revisatildeo de 1989) e agrave reserva da

intimidade da vida privada e familiar Neste quadrante normativo se insere

tambeacutem a tutela dos bens da pessoa que podem ser afetados pela utilizaccedilatildeo da

informaacutetica (artigo 35ordm) Em graus variados avulta neste bloco a defesa da

integridade dos bens inerentes agrave pessoa perante a potencial accedilatildeo agressiva dos

outros

Estamos aqui na aacuterea normativa de correspondecircncia direta entre os

objetos de direitos fundamentais e de direitos de personalidade Parcialmente

no caso dos direitos tambeacutem consagrados especificamente na esfera civiliacutestica

ndash o direito ao bom nome e reputaccedilatildeo (indiretamente pelo artigo 484ordm do

Coacutedigo Civil) agrave reserva da intimidade da vida privada e agrave imagem minus haacute uma

sobreposiccedilatildeo normativa praticamente total sem prejuiacutezo naturalmente de

enquanto direitos fundamentais estes direitos valerem tambeacutem contra o

Estado assim se fechando o ciacuterculo em todas as direccedilotildees de proteccedilatildeo da

pessoa De acircmbito muito heterogeacuteneo os direitos reconhecidos no artigo 26ordm

tecircm de comum o integrarem (com exclusatildeo do direito agrave cidadania) o nuacutecleo

ldquomais pessoalrdquo da personalidade se assim se pode dizer Estatildeo em causa

atributos pessoais em si mesmos em que tal como nos direitos de

personalidade haacute uma conexatildeo direta e exclusiva entre o ser da pessoa como

sujeito e a sua personalidade individual como objeto

Entre estes direitos tem lugar destacado o direito ao desenvolvimento

da personalidade ou como mais expressivamente o nomeia o artigo 2ordm da

Grundgesetz ao livre desenvolvimento da personalidade Pela amplitude e

indeterminaccedilatildeo do seu acircmbito de proteccedilatildeo este direito desempenha no plano

constitucional uma funccedilatildeo tuteladora de alcance geral idecircntica agrave que cabe agrave

261

previsatildeo do artigo 70ordm do Coacutedigo Civil Recolhendo a ideia baacutesica e fundante

de que a pessoa goza de autonomia na conformaccedilatildeo identitaacuteria da sua

personalidade (liberdade de formaccedilatildeo da personalidade) e de liberdade de

exteriorizaccedilatildeo dos seus modos de ser este direito eacute verdadeiramente um

ldquodireito matrizrdquo onde de forma mais ou menos direta vatildeo entroncar todas as

ramificaccedilotildees descentralizadas de tutela de concretos atributos da pessoa Nessa

medida o direito ao desenvolvimento da personalidade pode albergar os

direitos pessoais que natildeo obstante o detalhe regulador do capiacutetulo a eles

respeitante permaneccedilam inominados (por exemplo os direitos agrave

autodeterminaccedilatildeo corporal e agrave autodeterminaccedilatildeo sexual) E assim com a

constitucionalizaccedilatildeo do direito ao desenvolvimento da personalidade se

reforccedila no acircmbito dos direitos pessoais a abertura do sistema de direitos

fundamentais mesmo em face do disposto no artigo 16ordm nordm 1 pois por essa

via o reconhecimento de direitos de tal natureza natildeo tem que se cingir como

estabelece esta norma aos direitos ldquoconstantes das leis e das regras aplicaacuteveis

em direito internacionalrdquo

Mas a Constituiccedilatildeo natildeo se limitou a consagrar o direito ao

desenvolvimento da personalidade contendo tambeacutem a especiacutefica tutela de

muacuteltiplas formas de comportamento que o concretizam Para aleacutem do direito

de constituir famiacutelia e contrair matrimoacutenio (artigo 36ordm) estatildeo consagradas

liberdades em distintos campos de atuaccedilatildeo da pessoa liberdade de expressatildeo

e informaccedilatildeo (artigo 37ordm) de imprensa e meios de comunicaccedilatildeo social (artigo

38ordm) de consciecircncia de religiatildeo e de culto (artigo 41ordm) de criaccedilatildeo cultural

(artigo 42ordm) de aprender e ensinar (artigo 43ordm) de associaccedilatildeo (artigo 46ordm) de

escolha de profissatildeo e acesso agrave funccedilatildeo puacuteblica (artigo 47ordm)

Coenvolvendo nalguns casos dimensotildees institucionais em todas estas

previsotildees transparece a perspetiva de que a tutela da pessoa natildeo fica completa

sem a conformaccedilatildeo desse ponto de vista valorativo das esferas relacionais

onde a sua identidade se constroacutei e se afirma Estaacute em causa a liberdade de

cada um conduzir a sua existecircncia de acordo com aquilo que eacute (ou quer ser)

perseguindo os fins que almeja pelo modo que elegeu assim se realizando

como pessoa Protegido eacute o ser com os outros o agir humano no meio social

A maior abrangecircncia e intensidade da tutela resultante da transposiccedilatildeo

para a esfera das relaccedilotildees interprivadas dos direitos liberdades e garantias

pessoais revela-se com particular evidecircncia nos casos em que o objeto do

direito de personalidade soacute parcialmente cobre uma aacuterea de interesse relevante

para a tutela da pessoa O direito ao nome (artigo 72ordm da Coacutedigo Civil) fornece

um bom exemplo Assim identificado o objeto do direito com ele soacute se garante

a natildeo confundibilidade pessoal Mas abarcando essa componente o direito agrave

identidade pessoal (artigo 26ordm da CRP) eacute de conteuacutedo mais rico e

multifacetado garantindo que o titular possa conhecer e fazer valer a verdade

262

de todos os traccedilos da sua individualidade proacutepria incluindo das suas raiacutezes

geneacuteticas sociais e culturais Dele se extrai o direito ao conhecimento da

progenitura de que eacute instrumento qualificado a accedilatildeo de investigaccedilatildeo da

paternidade O paracircmetro valorativo deste direito incidiu sobre o regime desta

accedilatildeo em particular sobre o prazo-regra de propositura da accedilatildeo o qual na

redaccedilatildeo inicial do artigo 1817ordm nordm 1 do Coacutedigo Civil era de dois anos a

partir da maioridade Foi decidido que esse prazo representava uma restriccedilatildeo

inadmissiacutevel do conteuacutedo essencial dos direitos fundamentais agrave identidade

pessoal e a constituir famiacutelia o que levou a uma declaraccedilatildeo de

inconstitucionalidade com forccedila obrigatoacuteria geral pelo Acoacuterdatildeo nordm 232006

Na sequecircncia a Lei nordm 142009 alargou o referido prazo para dez anos

6 Concluiremos reiterando e reforccedilando uma ideia-forccedila de toda esta

comunicaccedilatildeo Olhar para os direitos da pessoa a partir da Constituiccedilatildeo faculta

uma compreensatildeo integrada e global do conjunto diversificado de

instrumentos de tutela Sendo certo que algumas previsotildees constitucionais

quanto aos direitos liberdades e garantias pessoais ultrapassam a aacuterea estrita

dos direitos de personalidade todas elas nos datildeo a niacutevel supraordenado o

enquadramento e a envolvecircncia normativa da proteccedilatildeo da pessoa integrada

comunitariamente em todas as aacutereas do seu viver multidimensional Para aleacutem

do enriquecimento da estrutura protetiva assim se ganha unidade de sentido e

coerecircncia valorativa que devem estar presentes nas muacuteltiplas especificaccedilotildees

sectorizadas ndash com tendecircncia a expandir-se do que eacute relevante manifestaccedilatildeo

a consagraccedilatildeo de direitos de personalidade no Coacutedigo de Trabalho desde a

versatildeo originaacuteria de 2003

263

A (ir)renunciabilidade dos direitos de personalidade

Benedita Mac Crorie

1 INTRODUCcedilAtildeO

O tema que hoje pretendemos tratar prende-se com uma das

caracteriacutesticas que eacute normalmente associada aos direitos de personalidade a

sua irrenunciabilidade

Os direitos de personalidade satildeo um conjunto de direitos subjectivos

que incidem sobre a proacutepria pessoa ou nas palavras de Carlos Alberto da Mota

Pinto sobre ldquoos vaacuterios modos de ser fiacutesicos ou moraisrdquo dessa

personalidade538 Trata-se de direitos gerais isto eacute de direitos de que satildeo

titulares todos os seres humanos e de direitos absolutos porque se lhes

contrapotildee uma obrigaccedilatildeo universal Eacute ainda entendimento dominante na

doutrina que estes direitos natildeo satildeo alienaacuteveis nem renunciaacuteveisrdquo podendo o

titular no entanto consentir em alguma medida na sua limitaccedilatildeo539

Vamos num primeiro momento tentar distinguir os dois conceitos em

anaacutelise a renuacutencia e a limitaccedilatildeo voluntaacuteria dos direitos de personalidade para

num segundo momento procurar dar uma resposta quanto ao papel que

desempenha ou que achamos que deve desempenhar o princiacutepio da dignidade

Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho 538 CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO Teoria Geral do Direito Civil 4ordf Ediccedilatildeo (por

ANTOacuteNIO PINTO MONTEIRO ndash PAULO MOTA PINTO) Coimbra Editora Coimbra

2005 p 208 539 Estes direitos exprimem o ldquorsquominimumrsquo necessaacuterio e imprescindiacutevelrdquo do conteuacutedo da

personalidade sendo por isso essenciais Nesse sentido ADRIANO DE CUPIS Os Direitos

de Personalidade Morais Editora Lisboa 1961 p 17 Ver mais desenvolvidamente

CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO Teoria Geral do Direito Civil cit pp 207 ss

JOSEacute CASTAN TOBENtildeAS Los Derechos de la Personalidad Instituto Editorial Reus

Madrid 1952 p 23 ORLANDO DE CARVALHO Teoria Geral do Direito Civil Sumaacuterios

Desenvolvidos Centelha Coimbra 1981 p 89 PAULO MOTA PINTO ldquoO direito agrave reserva

sobre a intimidade da vida privadardquo in Boletim da Faculdade de Direito Volume LXIX

Coimbra 1993 pp 482 e 483 RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA ldquoA Constituiccedilatildeo e

os direitos de personalidaderdquo ldquoA Constituiccedilatildeo e os direitos de personalidaderdquo in JORGE

MIRANDA (coor) Estudos sobre a Constituiccedilatildeo Livraria Petrony Lisboa 1978 pp 94 ndash

98 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA Direito das Pessoas Sumaacuterios Desenvolvidos das

Liccedilotildees ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito Associaccedilatildeo de Estudantes de

Direito da Universidade do Minho Braga 2008 pp 10 ndash 15

264

da pessoa humana na determinaccedilatildeo do alcance do poder de dispor sobre

direitos de personalidade e que eacute a questatildeo central da nossa intervenccedilatildeo

Finalmente vamos dedicar-nos agrave questatildeo da eventual necessidade de admitir

alguns desvios agraves regras civiliacutesticas relativas agrave declaraccedilatildeo negocial no que

concerne agrave declaraccedilatildeo de limitaccedilatildeo voluntaacuteria

A admissibilidade da renuacutencia aos direitos de personalidade natildeo pode

ser analisada agrave margem da problemaacutetica da renuacutencia a direitos fundamentais

uma vez que as normas de direito privado natildeo podem hoje estar desligadas da

sua relaccedilatildeo com a Constituiccedilatildeo tendo de se conformar com os princiacutepios

constitucionais e particularmente com os direitos fundamentais sem que com

isso queiramos evidentemente retirar autonomia ao direito privado Na

verdade nas palavras de Jorge Reis Novais as ldquonormas positivas que no

Direito ordinaacuterio admitem ou excluem a renuacutencia a direitos sobre bens

protegidos por normas de direitos fundamentais satildeo elas proacuteprias sindicaacuteveis

agrave luz da sua conformidade aos princiacutepios constitucionaisrdquo relativos a esta

mateacuteria540 Ora como vimos nas intervenccedilotildees anteriores haacute de facto uma

grande coincidecircncia entre as normas de direitos fundamentais e os direitos de

personalidade

2 OS CONCEITOS DE RENUacuteNCIA E DE LIMITACcedilAtildeO VOLUNTAacuteRIA

A distinccedilatildeo que se estabelece entre renuacutencia e limitaccedilatildeo voluntaacuteria

parece assentar na ideia de que a figura da renuacutencia implica a extinccedilatildeo de um

direito541 enquanto na limitaccedilatildeo voluntaacuteria estaraacute apenas em causa um

compromisso do indiviacuteduo de natildeo invocar temporariamente uma determinada

posiccedilatildeo juriacutedica tutelada por um direito de personalidade A questatildeo

terminoloacutegica tem relevacircncia precisamente porque tem consequecircncias quanto

agrave extensatildeo do poder de disposiccedilatildeo sendo que a propoacutesito da renuacutencia a direitos

fundamentais tambeacutem se discute se o termo renuacutencia eacute o mais adequado

540 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo in JORGE MIRANDA (org)

Perspectivas Constitucionais ndash Nos 20 anos da Constituiccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra

1996 p 264 541 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo cit p 270 LUIacuteSA NETO

O Direito Fundamental agrave Disposiccedilatildeo sobre o Proacuteprio Corpo Coimbra Editora Coimbra

2004 p 371 Sobre a renuacutencia abdicativa e o seu efeito extintivo do direito ver mais

desenvolvidamente FRANCISCO MANUEL PEREIRA COELHO A Renuacutencia Abdicativa

no Direito Civil Coimbra Editora Coimbra 1995 ANA PRATA Dicionaacuterio Juriacutedico

Almedina Coimbra 1995 p 848

265

Gomes Canotilho considera por exemplo que natildeo pode haver

renuacutencia a direitos fundamentais mas apenas ldquolimitaccedilatildeo voluntaacuteria ao

exerciacutecio de alguns direitosrdquo542

Jorge Miranda por seu lado considera que por princiacutepio ningueacutem

pode renunciar a direitos fundamentais apenas se concebendo que o proacuteprio

titular deste ou daquele direito venha a estabelecer uma ldquoauto-restriccedilatildeordquo ou

ldquoauto-suspensatildeordquo para fins natildeo contraacuterios aos princiacutepios do Estado de Direito

democraacutetico543

A este propoacutesito tivemos jaacute oportunidade de nos pronunciar noutra

sede544 e consideraacutemos ser de seguir a perspectiva de Jorge Reis Novais que

defende a manutenccedilatildeo do conceito de renuacutencia para designar o poder de dispor

sobre posiccedilotildees juriacutedicas de direitos fundamentais Se delimitarmos agrave partida

este poder considerando que natildeo pode haver uma renuacutencia total a um direito

fundamental como um todo estamos a restringir esse poder que eacute tambeacutem

jusfundamentalmente protegido antes sequer de atentarmos nos limites dessa

mesma renuacutencia

Consequentemente estamos de acordo com o Autor na medida em que

considera que o conceito de renuacutencia deve tambeacutem abarcar pelo menos agrave

partida as situaccedilotildees de renuacutencia que impliquem a extinccedilatildeo do direito natildeo

fazendo sentido adoptar uma concepccedilatildeo restritiva a priori do conceito o que

implica que natildeo se devem excluir agrave partida situaccedilotildees de renuacutencia que

impliquem a extinccedilatildeo do direito545

Sendo esta a posiccedilatildeo que defendemos a propoacutesito da renuacutencia a direitos

fundamentais a primeira questatildeo que colocamos eacute a de saber se assumir de

uma forma absoluta a irrenunciabilidade dos direitos de personalidade natildeo seraacute

uma soluccedilatildeo demasiado restritiva e que natildeo se coaduna com a resposta que

nos parece ser de retirar do texto constitucional quanto agrave possibilidade de o

indiviacuteduo voluntariamente dispor das suas posiccedilotildees subjectivas de direitos

fundamentais perante terceiros

Apesar disso e pondo de parte a questatildeo terminoloacutegica tem-se

defendido que a irrenunciabilidade dos direitos de personalidade natildeo impede

542 JOSEacute JOAQUIM GOMES CANOTILHO Direito Constitucional e Teoria da

Constituiccedilatildeo 7ordf Ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2003 p 464 543 JORGE MIRANDA Manual de Direito Constitucional Tomo IV 4ordf Ediccedilatildeo Coimbra

Editora Coimbra 2008 pp 384 e 385 544 BENEDITA MAC CRORIE Os limites da renuacutencia a direitos fundamentais nas relaccedilotildees

entre particulares Almedina Coimbra 2013 545 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo cit pp 270 ndash 272

266

a relevacircncia do consentimento do lesado546 isto eacute admite-se a limitaccedilatildeo

voluntaacuteria destes direitos partindo da ideia de que os direitos de

personalidade enquanto direitos subjectivos se traduzem em ldquoposiccedilotildees de

liberdaderdquo reconhecidas ao seu beneficiaacuterio pelo que se devem considerar

disponiacuteveis547

Vamos entatildeo agora olhar para a segunda questatildeo que nos propusemos

tratar que eacute a de saber ateacute onde pode ir a limitaccedilatildeo voluntaacuteria a direitos de

personalidade particularmente atendendo ao papel a desempenhar pelo

princiacutepio da dignidade da pessoa humana nesta mateacuteria

No que diz respeito agrave limitaccedilatildeo voluntaacuteria ao exerciacutecio de direitos de

personalidade o nordm 1 do art 81ordm do CC determina que esta eacute nula quando

contrarie os princiacutepios da ordem puacuteblica548 pelo que antes do mais conveacutem

concretizar o conceito de ordem puacuteblica

Tem-se entendido por ordem puacuteblica mais uma vez nas palavras de

Carlos Alberto da Mota Pinto ldquoo conjunto de princiacutepios basilares de uma dada

ordem juriacutedica (hellip) que regulam interesses gerais e fundamentais da

colectividaderdquo549 e que pela importacircncia que assumem ldquodevem prevalecer

sobre as convenccedilotildees privadasrdquo550 Esta compreende nas palavras de Luiacutesa

Neto ldquoas normas que servem agrave realizaccedilatildeo e agrave protecccedilatildeo dos valores e bens

fundamentais para a vida em comunidade e que encontramos nomeadamente

546 ADRIANO DE CUPIS Os Direitos de Personalidade cit p 53 547 ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil Portuguecircs Vol I Parte

Geral Tomo III Almedina Coimbra 2004 p 107 548 HEINRICH EWALD HOumlRSTER A Parte Geral do Coacutedigo Civil Portuguecircs Teoria Geral

do Direito Civil Almedina Coimbra 2005 p 268 Considerando que no Direito Civil a

declaraccedilatildeo de limitaccedilatildeo voluntaacuteria pode ldquoser anulada ou objecto de uma declaraccedilatildeo de

nulidade quer com fundamento nas regras sobre incapacidade (hellip) quer (hellip) com fundamento

na sua ilicitude ou contrariedade agrave ordem puacuteblica ou aos bons costumes ver PAULO MOTA

PINTO ldquoA limitaccedilatildeo voluntaacuteria do direito agrave reserva sobre a intimidade da vida privadardquo in

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS ndash IRINEU CABRAL BARRETO ndash TERESA PIZARRO

BELEZA ndash EDUARDO PAZ FERREIRA (orgs) Estudos em Homenagem a Cunha

Rodrigues Coimbra Editora 2001 p 54 ORLANDO CARVALHO Teoria Geral do Direito

Civil Sumaacuterios Desenvolvidos cit p 91 0 PIRES DE LIMA ndash ANTUNES VARELA

Coacutedigo Civil Anotado Vol I Coimbra Editora Coimbra 1987 pp 110 e 304 549 ANA PRATA Dicionaacuterio Juriacutedico cit p 707 550 CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO Teoria Geral do Direito Civil cit pp 557 e

558

267

na Constituiccedilatildeordquo551 Consequentemente o consentimento deve considerar-se

contraacuterio agrave ordem puacuteblica sempre que ofenda ldquoprinciacutepios constitucionaisrdquo552

Verifica-se de facto a tendecircncia de densificar os conceitos

indeterminados do direito civil como sejam os conceitos de ordem puacuteblica ou

bons costumes atraveacutes das disposiccedilotildees constitucionais Sendo que a

concretizaccedilatildeo dos bons costumes e da ordem puacuteblica se tem vindo a fazer

atraveacutes do recurso aos direitos fundamentais553 no fundo do que se trata eacute de

avaliar se a limitaccedilatildeo voluntaacuteria eacute conforme aos princiacutepios e regras

constitucionais Nesse sentido a ordem puacuteblica e os bons costumes podem

inclusivamente ser ldquofundamento para a disponibilidaderdquo554

Paulo Mota Pinto a propoacutesito da limitaccedilatildeo voluntaacuteria ao direito agrave

reserva da intimidade da vida privada defendeu que a invocaccedilatildeo dos bons

costumes e da ordem puacuteblica como limites ao consentimento natildeo poderaacute servir

551 LUIacuteSA NETO O Direito Fundamental agrave Disposiccedilatildeo sobre o Proacuteprio Corpo cit p 478

Ver tambeacutem PEDRO PAIS DE VASCONCELOS Teoria Geral de Direito Civil 5ordf Ediccedilatildeo

Almedina Coimbra 2008 p 591 552 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA Direito das Pessoas Sumaacuterios Desenvolvidos das

Liccedilotildees ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito cit p 61 HEINRICH EWALD

HOumlRSTER A Parte Geral do Coacutedigo Civil Portuguecircs Teoria Geral do Direito Civil cit p

523 553 Considerando que seguindo ldquouma perspectiva liberal-democraacutetica satildeo precisamente os

direitos fundamentais que constituem a essecircncia da proacutepria ideia de ordem puacuteblicardquo ver LUIS

MARIacuteA DIacuteEZ-PICAZO ldquoNota sobre la renuncia a los derechos fundamentalesrdquo in Persona

y Derecho nordm 45 2001 pp 133 e 134 FRANZ JUumlRGEN SAumlCKER Muumlnchener Kommentar

zum Buumlrgerlichen Gesetzbuch Vol I 3ordf Ediccedilatildeo Verlag C H Beck Muumlnchen 1993 p 1139

entende por sua vez que ldquoos direitos fundamentais satildeo um elemento especialmente

importante para a concretizaccedilatildeo dos bons costumes atraveacutes do ordenamento internordquo DIETER

MEDICUS Allgemeiner Teil des BGB 8ordf Ediccedilatildeo C F Muumlller Verlag Heidelberg 2002 p

269 defende que ldquoos valores da Constituiccedilatildeo sobretudo os direitos fundamentais tecircm efeitos

na validade de negoacutecios juriacutedicosrdquo ldquoatraveacutes da claacuteusula geral de bons costumesrdquo Tambeacutem

MANUEL ANTOacuteNIO CARNEIRO DA FRADA Teoria da Confianccedila e Responsabilidade

Civil Almedina Coimbra 2004 p 846 nota 940 faz referecircncia a um preenchimento da

claacuteusula dos bons costumesrdquo agrave luz da protecccedilatildeo constitucional dos direitos fundamentaisrdquo e

ao facto de que vaacuterios princiacutepios juriacutedicos fundamentais obtecircm realizaccedilatildeo atraveacutes dela

Finalmente ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil Portuguecircs cit

pp 508 em relaccedilatildeo ao conceito de ordem puacuteblica entende que ldquosatildeo contraacuterios agrave ordem puacuteblica

negoacutecios que atinjam valores constitucionais importantesrdquo 554 LUIacuteSA NETO O Direito Fundamental agrave Disposiccedilatildeo sobre o Proacuteprio Corpo cit p 475

268

para uma pretensa protecccedilatildeo da pessoa contra si proacutepria ou para impor um

determinado ldquoconceito objectivo de lsquodignidade humanarsquordquo555

Ora estamos completamente de acordo com esta posiccedilatildeo que nos

remete para o grande tema deste coloacutequio o princiacutepio da dignidade da pessoa

humana e a sua relaccedilatildeo com o direito privado

3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E LIMITACcedilAtildeO VOLUNTAacuteRIA DE

DIREITOS DE PERSONALIDADE

Quanto agrave dignidade da pessoa humana enquanto limite agrave renuacutencia a

direitos fundamentais a questatildeo que em grande medida se discute eacute a de saber

se a definiccedilatildeo da dignidade depende essencialmente do entendimento que o

proacuteprio tem acerca do que eacute para si mais ou menos digno ou se o Estado pode

impor limites a essa autodefiniccedilatildeo Por conseguinte natildeo estaacute tanto em causa

apurar se o indiviacuteduo pode renunciar agrave dignidade mas antes ateacute que ponto lhe

cabe decidir o que eacute ou natildeo atentatoacuterio da sua dignidade556 Em virtude disso

os principais problemas quanto agrave determinaccedilatildeo deste princiacutepio levantam-se

ldquoquando a dignidade e o direito agrave autodeterminaccedilatildeo se confrontamrdquo557 Estas

consideraccedilotildees parecem-me aplicaacuteveis tambeacutem agrave limitaccedilatildeo voluntaacuteria de

direitos de personalidade

Entendemos que a dignidade eacute atribuiacuteda ao Homem porque este deve

ser concebido como um ldquoser autoacutenomo capaz de autodeterminaccedilatildeordquo558 Desse

555 Nesse sentido PAULO MOTA PINTO ldquoA limitaccedilatildeo voluntaacuteria do direito agrave reserva sobre

a intimidade da vida privadardquo cit p 547 JORGE MIRANDA Manual de Direito

Constitucional cit pp 173 e 174 tambeacutem nota 1 considera que ldquonatildeo raro na experiecircncia

histoacuterica a invocaccedilatildeo da lsquoordem puacuteblicarsquo tem sido feita como conceito (hellip) beligerante contra

a liberdade No entanto a ordem puacuteblica ldquosoacute vale enquanto permite a realizaccedilatildeo do bem

comum aferido pelo equiliacutebrio entre liberdade e autoridaderdquo 556 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo cit p 329 557 GERHARD SPIESS Der Grundrechtsverzicht Peter Lang Frankfurt am Main 1997 p

92 558 MARTIN NETTESHEIM ldquoDie Garantie der Menschenwurde zwischen metaphysicher

Uumlberhoumlhung und blossem Abwaumlgungstoposrdquo in AoumlR nordm 130 2005 pp 93 e 100 ss Este

Autor entende que aquilo que Duumlrig pretendia no seu comentaacuterio agrave Constituiccedilatildeo era a

ldquoformulaccedilatildeo de um princiacutepio fundamental eacutetico-estadualrdquo Ao dizer que o princiacutepio da

dignidade proiacutebe que se transforme a pessoa em objecto Durig ldquoformula uma regra eacutetico-

estadualrdquo que deve apenas vincular os titulares de poder puacuteblico A confusatildeo que se gerou a

partir daiacute deve-se ao facto de se ter transposto esta interpretaccedilatildeo do princiacutepio da dignidade

para as relaccedilotildees entre privados ou seja ter-se considerado que tambeacutem decorre do princiacutepio

da dignidade o dever do Estado de evitar que os indiviacuteduos nas suas relaccedilotildees privadas se

269

modo a dignidade ldquoeacute apenas algo indisponiacutevel para o Estado e natildeo jaacute para o

indiviacuteduordquo pelo que o dever de protecccedilatildeo que incumbe aos poderes puacuteblicos

vincula-os a ldquorespeitar e proteger a dignidaderdquo mas jaacute natildeo os obriga ldquoa forccedilar

comportamentos conformes agrave dignidaderdquo Uma tal obrigaccedilatildeo transformaria o

sentido deste princiacutepio no seu oposto559

Como jaacute tivemos oportunidade de referir noutros escritos560

defendemos que a dignidade deve servir essencialmente como fundamento da

liberdade e soacute excepcionalmente como fundamento de restriccedilotildees agrave liberdade

Para a concretizaccedilatildeo do princiacutepio da dignidade parece-nos relevante a

consagraccedilatildeo de um direito ao desenvolvimento da personalidade na CRP que

em situaccedilotildees de duacutevida deve ser entendido como estabelecendo ldquouma

presunccedilatildeo a favor da liberdaderdquo mais uma vez nas palavras de Paulo Mota

Pinto561

Assim o princiacutepio da dignidade deve ser interpretado em

conformidade com as normas constitucionais que conferem ao indiviacuteduo a

transformem em objectos Por outro lado este Autor defende que o conteuacutedo juriacutedico-

constitucional do princiacutepio da dignidade ldquonatildeo se esgota na fundamentaccedilatildeo de obrigaccedilotildees eacutetico-

estaduais fundamentaisrdquo A par com ldquouma dimensatildeo eacutetico-estadualrdquo existe tambeacutem ldquouma

dimensatildeo liberal e jusfundamental cujo objectivo eacute a defesa de lesotildees concretas da dignidade

humanardquo Na sua ldquodimensatildeo liberalrdquo o princiacutepio da dignidade garante a liberdade individual

bem como a capacidade do sujeito para realizar a sua personalidade Nesta dimensatildeo jaacute natildeo

seraacute no entanto de aplicar a foacutermula do objecto 559 DETLEF MERTEN ldquoDer Grundrechtsverzichtrdquo in HANS-DETLEF HORN Recht Im

Pluralismus Festschrift fuumlr Walter Schmitt Glaeser zum 70 Geburtstag Duncker und

Humblot Berlin 2003 p 64 560 BENEDITA MAC CRORIE ldquoO recurso ao princiacutepio da dignidade da pessoa humana na

jurisprudecircncia do Tribunal Constitucionalrdquo cit p 168 Considerando tambeacutem que ldquoa partir

do texto constitucional e da doutrina se pode dizer que a dignidade da pessoa humana (hellip)

aponta para o livre desenvolvimento da personalidaderdquo ver ISABEL MOREIRA A Soluccedilatildeo

dos Direitos Liberdades e Garantias e dos Direitos Econoacutemicos Sociais e Culturais na

Constituiccedilatildeo Portuguesa Almedina Coimbra 2007 p 128 Tambeacutem JOSEacute DE OLIVEIRA

ASCENSAtildeO ldquoA dignidade da pessoa humana e o fundamento dos direitos humanosrdquo in ROA

Ano 68 Vol I 2008 p 117 sustenta que a dignidade do homem se funda na ldquocapacidaderdquo e

no ldquoencargo de auto-construccedilatildeordquo em que se traduz o direito ao desenvolvimento da

personalidade 561 PAULO MOTA PINTO ldquoO direito ao livre desenvolvimento da personalidaderdquo cit pp

157 - 161

270

possibilidade de eleger o seu modo de vida com autodeterminaccedilatildeo e sem a

ingerecircncia estadual562

Tal natildeo significa no entanto que natildeo haja situaccedilotildees em que a vontade

individual tenha de ceder sem que tal origine necessariamente uma lesatildeo da

dignidade563 O princiacutepio da dignidade natildeo eacute forccedilosamente violado atraveacutes de

qualquer medida ou regulamentaccedilatildeo estatal que restrinja a liberdade

individual564 O que se retira entatildeo do princiacutepio da dignidade da pessoa

humana eacute que apenas se poderaacute limitar a autonomia individual quando haja

fins de interesse colectivo que o justifiquem565

Eacute entatildeo legiacutetima a protecccedilatildeo de terceiros ou da comunidade mas jaacute

natildeo o seratildeo em princiacutepio as restriccedilotildees da liberdade que visem proteger a

pessoa de si proacutepria ou que pretendam fazer face a uma concepccedilatildeo duvidosa

de dignidade uma vez que natildeo eacute funccedilatildeo do Estado corrigir os cidadatildeos566 Se

o princiacutepio da dignidade for entendido neste sentido soacute em casos extremos

poderaacute justificar restriccedilotildees da liberdade seja quando estamos a falar de

pessoas que natildeo tecircm capacidade de autodeterminaccedilatildeo ou quando possa estar

em causa a possibilidade de ldquoautodeterminaccedilatildeo futuraldquo567

562 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA Direito das Pessoas Sumaacuterios Desenvolvidos das

Liccedilotildees ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito cit pp 64 e 65 563 INGO WOLFGANG SARLET Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na

Constituiccedilatildeo Federal de 1988 4ordf ediccedilatildeo Livraria do Advogado Editora Porto Alegre 2006

p 135 entende que ldquopartindo-se de um conceito mais restrito de dignidaderdquo segundo o qual

ldquoapenas uma grave violaccedilatildeo da condiccedilatildeo da pessoardquo se traduz em violaccedilatildeo da dignidade todas

as outras condutas restritivas deixariam de ser reconhecidas ldquocomo verdadeiras restriccedilotildees agrave

dignidaderdquo passando a ser encaradas como ldquoofensas a outros direitos fundamentais

especiacuteficosrdquo

564 HANS HOFMANN ldquoArtikel 1rdquo in BRUNO SCHMIDT-BLEIBTREU ndash HANS

HOFMANN ndash AXEL HOPFAUF Kommentar zum Grundgesetz 11ordf Ediccedilatildeo Carl Heymanns

Verlag 2008 p 110 565 CARLA AMADO GOMES Defesa da sauacutede puacuteblica vs Liberdade individual Associaccedilatildeo

Acadeacutemica da Faculdade de Direito Lisboa 1999 p 21 566 ERNST BERNA ldquoDignidad humana y derechos de la personalidadrdquo cit p 144 567 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo cit pp 327 e 330 Segundo

o Autor soacute se verificaraacute uma violaccedilatildeo da dignidade quando o indiviacuteduo ldquoanua na destruiccedilatildeo

ou anulaccedilatildeo das condiccedilotildees da sua autodeterminaccedilatildeo futura ou aceite colocar-se numa situaccedilatildeo

que iniba a possibilidade de continuar a conformar a sua vida de acordo com planos pessoais

livremente concebidos Considerando tambeacutem que soacute em situaccedilotildees limite eacute que a dignidade

pode servir para restringir a liberdade ver ANSGAR OHLY ldquoVolenti non fit iniuriardquo ndash die

Einwilligung im Privatrecht Mohr Siebeck Tuumlbingen 2002 p 104

271

Por tudo o que vimos parece-nos que o princiacutepio da dignidade nas

palavras de Nuno Pinto Oliveira ldquonatildeo eacute e natildeo deve ser a foacutermula por que se

dificulta a institucionalizaccedilatildeo da liberdade natildeo eacute nem deve ser a foacutermula por

que se facilita a institucionalizaccedilatildeo das restriccedilotildees agrave liberdaderdquo pelo que ldquoo

oacutenus da argumentaccedilatildeo recai sempre ou deve recair sempre sobre quem propotildee

a restriccedilatildeo da liberdaderdquo568 Entende-se que ldquoa liberdade [se] justifica (hellip) a si

proacutepriardquo ao contraacuterio das restriccedilotildees agrave liberdade que apenas podem ter lugar

quando haja interesses puacuteblicos ou de terceiros que o justifiquem569

Assim na limitaccedilatildeo voluntaacuteria aos direitos de personalidade soacute

excepcionalmente o princiacutepio da dignidade da pessoa deveraacute servir para limitar

o poder de dispor sobre direitos de personalidade

Como jaacute referimos pensamos que a dignidade natildeo deve ser entendida

como um valor objectivo que se pode opor agrave proacutepria vontade do indiviacuteduo

De facto justificar a defesa da pessoa contra si proacutepria invocando o princiacutepio

da dignidade corresponderia a aplicar este princiacutepio contra a finalidade da sua

consagraccedilatildeo pois a dignidade traduz-se precisamente na possibilidade de o

indiviacuteduo escolher em liberdade o rumo que pretende seguir na sua vida

Nas situaccedilotildees em que o proacuteprio consente deveraacute entatildeo prevalecer a

sua vontade ressalvados os limites que jaacute referimos Eacute em primeira linha o

indiviacuteduo que deve determinar o que eacute ou natildeo violador da sua dignidade o que

leva a uma ldquonecessaacuteria relativizaccedilatildeo do alcance deste princiacutepio tambeacutem como

base para a limitaccedilatildeo do poder de disposiccedilatildeordquo570 sobre direitos de

personalidade

4 APLICABILIDADE DAS REGRAS CIVILIacuteSTICAS SOBRE A DECLARACcedilAtildeO

NEGOCIAL Aacute DECLARACcedilAtildeO DE LIMITACcedilAtildeO VOLUNTAacuteRIA

Finalmente gostariacuteamos ainda de terminar colocando algumas

questotildees a propoacutesito das regras que valem no direito civil quanto agrave declaraccedilatildeo

negocial em que se expressa o consentimento para a limitaccedilatildeo voluntaacuteria571

568 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoO princiacutepio da dignidade da pessoa humana e a

regulaccedilatildeo juriacutedica da bioeacuteticardquo in Lex Medicinae nordm15 2011 pp 32 e 33 569 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA Direito das Pessoas Sumaacuterios Desenvolvidos das

Liccedilotildees ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito cit p 65 570 JOSEacute DE MELO ALEXANDRINO A Estruturaccedilatildeo do Sistema dos Direitos Liberdades

e Garantias na Constituiccedilatildeo Portuguesa Vol II Almedina Coimbra 2006 p 321 571 Agradecemos ao Doutor Nuno Pinto Oliveira a chamada de atenccedilatildeo para estas questotildees

bem como todos os ensinamentos e sugestotildees de leitura

272

Este consentimento estaacute sujeito ao regime geral previsto no Coacutedigo

Civil (CC) Assim sendo defende-se que ldquosatildeo aplicaacuteveis quer o princiacutepio da

liberdade declarativa (hellip) quer o princiacutepio da liberdade de formardquo Para aleacutem

disso a declaraccedilatildeo de consentimento para a limitaccedilatildeo voluntaacuteria pode ser

expressa ou taacutecita impondo-se ldquoque se preste especial atenccedilatildeo agrave verificaccedilatildeo

da integridade do consentimentordquo atendendo agrave ldquonatureza pessoal dos

interesses em causardquo572 Ainda que o consentimento seja vaacutelido ldquonatildeo poderaacute

ter lugar uma execuccedilatildeo em forma especiacuteficardquo e este pode sempre ldquoser

revogado com indemnizaccedilatildeo dos prejuiacutezos causados agraves expectativas legiacutetimas

da outra parterdquo573

De facto tem-se entendido que no consentimento para a limitaccedilatildeo

voluntaacuteria ldquoa tutela dos interesses do comeacutercio juriacutedico ou da contraparte natildeo

merece (hellip) a protecccedilatildeo que se daacute no domiacutenio dos negoacutecios juriacutedicos em geral

admitindo-se (hellip) a livre revogabilidade do consentimento a todo o tempo574

Finalmente tambeacutem se considera que a declaraccedilatildeo de limitaccedilatildeo voluntaacuteria

pode ldquoser anulada ou objecto de uma declaraccedilatildeo de nulidade (hellip) com

fundamento nas regras sobre (hellip) falta ou viacutecio de vontaderdquo575

Parece-nos que na limitaccedilatildeo voluntaacuteria se justificariam alguns desvios

agraves regras civilistas relativas agrave declaraccedilatildeo negocial uma vez que parece natildeo

dever bastar a aparecircncia da vontade para que se considere vaacutelida essa

declaraccedilatildeo

Tambeacutem quanto agrave interpretaccedilatildeo da declaraccedilatildeo negocial ldquoo objectivo

da soluccedilatildeo aceite na lei civil eacute [precisamente] o de proteger o declarataacuterio

conferindo agrave declaraccedilatildeo o sentido que seria razoaacutevel presumir em face do

comportamento do declarante e natildeo o sentido que este lhe quis efectivamente

572 PAULO MOTA PINTO ldquoA limitaccedilatildeo voluntaacuteria do direito agrave reserva sobre a intimidade da

vida privadardquo cit p 539 573 CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO Teoria Geral do Direito Civil cit p 216

PAULO MOTA PINTO ldquoA limitaccedilatildeo voluntaacuteria do direito agrave reserva sobre a intimidade da

vida privadardquo cit pp 552 ndash 554 FERNANDO PIRES DE LIMA ndash JOAtildeO ANTUNES

VARELA Coacutedigo Civil Anotado cit p 110 574 ANDREacute GONCcedilALO DIAS PEREIRA O Consentimento Informado na Relaccedilatildeo Meacutedico-

Paciente Estudo de Direito Civil Coimbra Editora Coimbra 2004 p 154 ANDREacute

GONCcedilALO DIAS PEREIRA ldquoA capacidade para consentir um novo ramo da capacidade

juriacutedicardquo in Comemoraccedilotildees dos 35 anos do Coacutedigo Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977

Vol II Coimbra Editora Coimbra 2006 pp 208 e 209 575 PAULO MOTA PINTO ldquoA limitaccedilatildeo voluntaacuteria do direito agrave reserva sobre a intimidade da

vida privadardquo cit p 540 FERNANDO PIRES DE LIMA ndash JOAtildeO ANTUNES VARELA

Coacutedigo Civil Anotado cit pp 110 e 304

273

atribuirrdquo consagrando-se uma doutrina tendencialmente ldquoobjectivistardquo576

Colocamos no entanto a questatildeo de saber se na interpretaccedilatildeo da declaraccedilatildeo de

limitaccedilatildeo voluntaacuteria natildeo faria sentido aplicar-se uma regra de interpretaccedilatildeo

mais subjectivista577

A especificidade da limitaccedilatildeo voluntaacuteria tambeacutem tem consequecircncias

no regime da falta e dos viacutecios da vontade o que talvez devesse acarretar

alguns desvios em relaccedilatildeo ao regime de Direito Civil no sentido de alargar as

possibilidades de invocaccedilatildeo da invalidade da declaraccedilatildeo578

576 FERNANDO PIRES DE LIMA ndash JOAtildeO ANTUNES VARELA Coacutedigo Civil Anotado

cit p 223 O art 236ordm do CC estabelece que ldquoo sentido decisivo da declaraccedilatildeo negocial eacute

aquele que seria apreendido por um destinataacuterio normal (hellip) Exceptuam-se apenas os casos

de natildeo poder ser imputaacutevel ao declarante razoavelmente aquele sentido (hellip) ou de o

declarataacuterio conhecer a vontade real do declaranterdquo 577 LETIacuteCIA DE CAMPOS VELHO MARTEL Direitos Fundamentais Indisponiacuteveis limites

e padrotildees do consentimento para a autolimitaccedilatildeo do direito agrave vida disponiacutevel in

httpworksbepresscomleticia_martel5 pp 254 ss seguindo a perspectiva de Deryck

Beyleveld e Roger Brownsword considera que a tendecircncia para uma tese subjectivista se

baseia na necessidade de evitar o risco de se utilizar a manifestaccedilatildeo de quem consente ldquocomo

uma maacutescara que impede a visualizaccedilatildeo da sua intenccedilatildeo (subjectiva)rdquo Para a Autora a

ldquotendecircnciardquo para o subjectivismo justifica-se particularmente na disposiccedilatildeo de posiccedilotildees

subjectivas de direitos fundamentais pessoais dada a delicadeza das relaccedilotildees em causa 578 Ilustrando essa diferenccedila por exemplo nos casos de erro na declaraccedilatildeo (art 247ordm CC) a

exigecircncia da essencialidade do erro para a anulabilidade da declaraccedilatildeo parece ser questionaacutevel

nas declaraccedilotildees de vontade de renuacutencia O mesmo se deveraacute aplicar aos casos de erro na

transmissatildeo (art 250ordm CC) e erro sobre a pessoa ou objecto do negoacutecio (art 251ordm CC) na

medida em que estas disposiccedilotildees remetem para o regime do erro obstaacuteculo ou seja erro na

declaraccedilatildeo Por outro lado quanto ao erro sobre os motivos (art 252ordm CC) este soacute eacute relevante

se as partes tiverem reconhecido por acordo a essencialidade do motivo Ora temos tambeacutem

duacutevidas que esse regime deva ser extensiacutevel agrave declaraccedilatildeo de renuacutencia MARTINA

DOROTHEE EPPELT Grundrechtsverzicht und Humangenetik cit p 47 considera no

entanto que por razotildees de seguranccedila juriacutedica um erro que se refira apenas a questotildees laterais

natildeo deve excluir a voluntariedade da renuacutencia Tambeacutem nos casos de dolo (art 253ordm CC)

temos duacutevidas que a distinccedilatildeo estabelecida nesta disposiccedilatildeo entre dolus bonus e dolus malus

seja relevante para a declaraccedilatildeo de renuacutencia Ainda nas situaccedilotildees de dolo de terceiro (art 254ordm

nordm 2) parece natildeo haver razotildees para proteger expectativas do destinataacuterio assim como quanto

agrave coacccedilatildeo moral (art 255ordm CC) deveraacute eventualmente considerar-se que qualquer das

situaccedilotildees enunciadas no artigo poderaacute influenciar a formaccedilatildeo da vontade Finalmente as

exigecircncias de gravidade do mal e fundamento do receio nos casos de coacccedilatildeo de terceiros

parecem natildeo fazer sentido para as situaccedilotildees de renuacutencia Sobre a falta e viacutecios da vontade ver

mais desenvolvidamente ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil

Portuguecircs Vol I Parte Geral Tomo I cit pp 575 ss PEDRO PAIS DE VASCONCELOS

274

Haacute aqui claramente uma preocupaccedilatildeo com exigecircncias de certeza e

seguranccedila juriacutedicas que natildeo devem ter a mesma relevacircncia numa limitaccedilatildeo

voluntaacuteria579 pelo que a protecccedilatildeo plena do bem juriacutedico autonomia

subjacente a essa limitaccedilatildeo talvez devesse implicar o afastamento das regras

de Direito Civil dirigidas agrave protecccedilatildeo das expectativas da contraparte580

Para aleacutem disso quanto agrave capacidade de exerciacutecio de direitos tem sido

defendido particularmente por Andreacute Dias Pereira que deve ser de erigir

ldquoparalelamente agraves regras gerais do negoacutecio juriacutedicordquo um ldquoregime especiacutefico

para a limitaccedilatildeo de direitos de personalidaderdquo Tal perspectiva natildeo se coaduna

com a letra do art 123ordm do CC uma vez que esta norma consagra para

menores e interditos ldquouma incapacidade geral de exerciacuteciordquo que se aplica

quer a ldquodireitos patrimoniaisrdquo quer a ldquodireitos pessoaisrdquo Apesar disso a

proacutepria lei prevecirc excepccedilotildees em mateacuteria de casamento perfilhaccedilatildeo ou

testamento parecendo estabelecer uma distinccedilatildeo entre ldquoactos juriacutedicos

patrimoniaisrdquo e ldquoactos juriacutedicos pessoaisrdquo581 Assim coloca-se a questatildeo de

saber se essa diferenciaccedilatildeo natildeo deveria reflectir-se em termos mais gerais nas

regras vigentes quanto agrave capacidade para consentir

Teoria Geral de Direito Civil 5ordf Ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2008 pp 653 ss CARLOS

ALBERTO DA MOTA PINTO Teoria Geral do Direito Civil cit pp 457 ss 579 ANDREacute GONCcedilALO DIAS PEREIRA O Consentimento Informado na Relaccedilatildeo Meacutedico-

Paciente Estudo de Direito Civil cit p 139 por exemplo no que se refere ao consentimento

para a praacutetica de actos meacutedicos considera que este se consubstancia num ldquosimples acto

juriacutedicordquo e nessa medida natildeo lhe satildeo aplicaacuteveis as normas da doutrina geral do negoacutecio

juriacutedico que ldquosatildeo inspiradas pela tutela da confianccedila dos declarataacuterios e dos interesses gerais

do traacuteficordquo 580 PAULO MOTA PINTO Declaraccedilatildeo Taacutecita e Comportamento Concludente no Negoacutecio

Juriacutedico cit pp 426 e 427 entende que ldquoa tutela das expectativasrdquo estaacute presente ldquona

dogmaacutetica juriacutedico-negocialrdquo Ainda que o regime do negoacutecio juriacutedico se inspire na ideia de

autodeterminaccedilatildeo eacute evidente a preocupaccedilatildeo do legislador com a ldquotutela da confianccedila

especificamente negocialrdquo 581 ANDREacute GONCcedilALO DIAS PEREIRA O Consentimento Informado na Relaccedilatildeo Meacutedico-

Paciente Estudo de Direito Civil cit pp 163 ndash 166 ANDREacute GONCcedilALO DIAS PEREIRA

ldquoA capacidade para consentir um novo ramo da capacidade juriacutedicardquo cit pp 216 ndash 218

275

Direitos (fundamentais) de personalidade

Luiacutesa Neto

A comunicaccedilatildeo apresentada correspondeu a sinopse de trabalho de

anotaccedilatildeo dos artigos relativos aos direitos de personalidade do Coacutedigo Civil

(anotaccedilotildees em projecto integrado na linha de investigaccedilatildeo Dimensatildeo

Econoacutemica e Social do Direito Privado do CEDIS da Faculdade de Direito da

Universidade Nova de Lisboa no prelo e a publicar ateacute final de 2016 e que

por razotildees editoriais aqui natildeo se apresentam em forma completa) O iter das

referidas anotaccedilotildees pretende realccedilar o distinguo entre direitos fundamentais

com locus constitucional e os direitos de personalidade A previsatildeo destes

uacuteltimos ndash sem alteraccedilotildees desde 1966 ndash reclama hoje uma interpretaccedilatildeo

actualista que integre os desafios de acomodaccedilatildeo dogmaacutetica mais recentes dos

direitos fundamentais

Assim e nestes termos foram os seguintes os passos salientados aqui

apenas apresentados de forma toacutepica

1 Se a teoria geral dos direitos fundamentais eacute uma teoria dos direitos

fundamentais positivados na Constituiccedilatildeo tais princiacutepios constitucionais satildeo

imperativos de otimizaccedilatildeo Ora se eacute verdade que eacute a lei que se deve mover no

acircmbito dos direitos fundamentais e natildeo o inverso mesmo sem afirmar que o

coacutedigo civil seja nesta parte substancialmente constitucional satildeo os direitos

fundamentais que fornecem um padratildeo de afericcedilatildeo para a lei ordinaacuteria e natildeo o

contraacuterio A lei ordinaacuteria haacute de mover-se no quadro e no acircmbito dos direitos

fundamentais previamente previstos na constituiccedilatildeo dirigente

2 Assim a irradiaccedilatildeo das normas constitucionais de 1976 impotildee

porventura repensar os direitos de personalidade jaacute antes reconhecidos no

Coacutedigo Civil atendendo aliaacutes agrave declarada eficaacutecia vertical e horizontal e

aplicabilidade direta ditada pelo nordm1 do artigo 18ordm da Constituiccedilatildeo para os

direitos liberdades e garantias ndash e para os direitos fundamentais se adotarmos

a teoria da dogmaacutetica unitaacuteria

3 Pensamos que se justifica uma maior articulaccedilatildeo entre esta mateacuteria

e os direitos fundamentais Por um lado protegem-se no Coacutedigo Civil direitos

como cartas missivas confidenciais eou pseudoacutenimo e minimizam-se (ou

remetem-se para o direito geral da personalidade) aspetos muito mais

Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade do Porto

276

relevantes dessa mesma personalidade Por outro lado bem mais relevante

para a equaccedilatildeo social atual e como se acentuaraacute vg quanto agrave previsatildeo dos

artigos 69ordm e 80ordm e 81ordm a correta destrinccedila entre renuacutencia autolimitaccedilatildeo e

consentimento deve ser trazida agrave luz da discussatildeo especialmente a propoacutesito

das denominadas vagas de consentimento em que a permissatildeo de lesatildeo eacute dada

genericamente por determinado circunstancialismo histoacuterico e social

4 Uma das mateacuterias em que mais releva convocar os indirizzos

constitucionais aplicaacuteveis diz respeito agrave das situaccedilotildees de colisatildeo ndash confronto

entre um direito e um bem da sociedade ou do Estado ndash ou conflito ndash em que

se embatem duas posiccedilotildees juriacutedicas subjetivas de titulares diversos Recorde-

se que haacute muito jaacute se abandonou um criteacuterio hieraacuterquico de soluccedilatildeo de

conflitos e colisotildees o referido criteacuterio da concordacircncia praacutetica incide sobre o

tipo e intensidade da lesatildeo em causa que pode muitas vezes ser miacutenima

ancorado fortemente no princiacutepio da proporcionalidade nas suas trecircs vertentes

necessidade adequaccedilatildeo e proibiccedilatildeo do excesso Acresce que as restriccedilotildees natildeo

satildeo um fim em si mesmo ndash servem um propoacutesito que eacute a resoluccedilatildeo de um

conflito ou a resoluccedilatildeo de uma colisatildeo Assim ante o proacuteprio conflito de

direitos ndash tambeacutem previsto no artigo 335ordm do Coacutedigo Civil - deve ter-se em

conta o conteuacutedo essencial de cada um deles e tratar de buscar a sua

coordenaccedilatildeo evitando que um elimine o outro porque a congruecircncia e a

completude satildeo elementos essenciais do ordenamento juriacutedico haveraacute entatildeo

prevalecircncia mas de iacutendole casuiacutestica e concreta de uns direitos sobre os outros

e que atenda ainda ao tipo da lesatildeo

277

Tomando a seacuterio o personalismo eacutetico

Nuno Manuel Pinto Oliveira

I

1 Larenz colocou o termo personalismo eacutetico no centro do discurso

sobre o direito privado e em particular sobre o direito civil

laquoPor traacutes do Coacutedigo civil [alematildeo] por traacutes dos seus conceitos

fundamentais dos seus princiacutepios e das suas valoraccedilotildees est[aria] o

personalismo eacuteticoraquo582

Enquanto princiacutepio filosoacutefico ele estaria (ainda) por traacutes do sistema de

direito civil enquanto princiacutepio juriacutedico estaria (jaacute) por cima do sistema de

direito civil O personalismo eacutetico positivar-se-ia atraveacutes do princiacutepio

(constitucional) da dignidade da pessoa humana Larenz diz p ex que ldquo[o]

personalismo eacutetico com o reconhecimento da pessoa e da sua dignidade eacute

hoje atraveacutes do art 1ordm da Constituiccedilatildeo alematilde o princiacutepio mais alto (oberstes

Prinzip) do sistema juriacutedico considerado no seu conjuntordquo583 O personalismo

eacutetico seria a face filosoacutefica do princiacutepio de dignidade da pessoa humana e o

princiacutepio de dignidade da pessoa humana seria a face juriacutedica do personalismo

eacutetico

O presente texto actualiza e em alguns aspectos desenvolve os argumentos deduzidos em

Nuno Manuel Pinto Oliveira ldquoOs princiacutepios de um lsquopersonalismo eacuteticorsquo como projecto de

lsquomaterializaccedilatildeorsquo do direito privadordquo in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Joseacute

Lebre de Freitas Coimbra Editora Coimbra 2013 Professor da Escola de Direito da Universidade do Minho 582 Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts 9ordf ed C H Beck

Munchen 2004 paacuteg 21 ldquoHinter dem BGB seiner Grundbegriffen und seinen grundlegenden

Wertungen steht der ethische Personalismus als Menschenbild den seine Verfasser ohne es

ausdruumlcklich auszusprechen als selbstverstaumlndlich vorausgesetzt habenrdquo 583 Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts cit paacuteg 22

278

II

2 Os contributos para a (re)construccedilatildeo do conceito de personalismo

eacutetico compreenderiam designadamente a filosofia de Kant584 e de Hegel585

Larenz sugere que o princiacutepio fundamental da filosofia do direito de Kant mdash

ldquocada ser humano tem um direito subjectivo a que todos os outros o respeitem

e correspondentemente tem um dever [juriacutedico] de respeito por todos os

outrosrdquo mdash corresponde a um princiacutepio fundamental da filosofia do direito de

584 Sobre a filosofia de Kant em geral vide p ex Alexandre Fradique Morujatildeo ldquoKantrdquo in

Logos Enciclopeacutedia luso-brasileira de filosofia vol 3 Verbo Lisboa 1991 cols 110-144

Simon Blackburn ldquoKantrdquo e ldquoImperativo categoacuterico hipoteacuteticordquo in Dicionaacuterio de filosofia

Gradiva Lisboa 1997 paacutegs 241-243 e 223-24 respectivamente Bertrand Russell History

of Western Philosophy and Its Connection with Political and Social Circumstances from the

Earliest Times to the Present Day George Allen and Son London 1946 paacutegs 728-745

Anthony Kenny Histoacuteria concisa da filosofia ocidental Temas amp Debates Lisboa 1999

paacutegs 325-348 sobre a filosofia do direito de Kant em particular vide Giorgio del Vecchio

Liccedilotildees de filosofia do direito 5ordf ed Armeacutenio Amado Coimbra 1979 paacutegs 126-142 Luiacutes

Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica 2ordf ed

Coimbra Editora Coimbra 1955 paacutegs 249-270 Arthur Ripstein ldquoKantrsquos Legal Philosophyrdquo

in IVR Encyclopaedia of Jurisprudence Legal Theory and Philosophy of Law in WWW

lthttpivr-encinfoindexphptitle=Kant27s_Legal_Philosophygt e com maior

desenvolvimento Ernest J Weinrib ldquoLaw as a Kantian Idea of Reasonrdquo in Columbia Law

Review vol 87 (1987) paacutegs 472-508 e Winfried Brugger ldquoGrundlinien der kantischen

Rechtsphilosophierdquo in Liberalismus Pluralismus Kommunitarismus mdash Studien zur

Legitimation des Grundgesetzes Nomos Baden-Baden 1999 paacutegs 143-161 585 Sobre a filosofia de Hegel em geral vide p ex Michel Renard ldquoHegelrdquo in Logos

Enciclopeacutedia luso-brasileira de filosofia vol 2 Verbo Lisboa 1990 cols 1026-1046 Simon

Blackburn ldquoHegelrdquo in Dicionaacuterio de filosofia cit paacutegs 199-200 Bertrand Russell History

of Western Philosophy cit paacutegs 758-773 Anthony Kenny Histoacuteria concisa da filosofia

ocidental cit paacutegs 350-355 Edward Caird Hegel J B Lippicott Company Philadelphia

1883 Raymond Plant Hegel George Allen amp Unwin 1973 Charles Taylor Hegel

Cambridge University Press Cambridge 1975 Peter Singer Hegel A Very Short

Introduction Oxford University Press Oxford 1983 sobre a filosofia do direito de Hegel em

particular vide Giorgio del Vecchio Liccedilotildees de filosofia do direito cit paacutegs 151-157 Luiacutes

Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica cit paacutegs 279-

301 Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of Right Routledge London New York

2002 Thom Brooks Hegelrsquos Political Philosophy A Systematic Reading of the Philosophy

of Right Edinburgh University Press Edinburgh 2007 Robert Pippin Otfried Houmlffe

(coord) Hegel on Ethics and Politics Cambridge University Press Cambridge 2004 Benno

Zabel ldquoHegel Georg Wilhelm Friedrichrdquo in EZR mdash Enzyklopaumldie zur Rechtsphilosophie

in lthttpwwwenzyklopaedie-

rechtsphilosophienetJoomlaindexphpoption=com_joomlawikiampItemid=98gt

279

Hegel mdash ldquosecirc uma pessoa e respeita os outros como pessoasrdquo586 Entre as duas

foacutermulas haveria soacute uma diferenccedila de palavras587 a foacutermula de Kant seria

mais analiacutetica e a foacutermula de Hegel seria mais sinteacutetica588 589

3 Interpretando-se a filosofia do direito de Hegel como um

personalismo (eacutetico) disse-se p ex que os conceitos de ldquopessoardquo e de

ldquopersonalidaderdquo de Hegel podem e porventura devem considerar-se como um

indiacutecio do desenvolvimento cultural da Europa590 mdash que ldquo[a] siacutentese pessoa

ser humano susceptiacutevel de acompanhar o desenvolvimento liberal obteve uma

foacutermula de excelecircncia em Hegelrdquo591 que todo o sistema juriacutedico pode e

porventura deve considerar-se um desenvolvimento do imperativo do

ldquopressupostordquo ou do ldquopostuladordquo de Hegel592 ou que atraveacutes da ldquofoacutermula de

586 Georg Wilhelm Friedrich Hegel Princiacutepios de filosofia do direito (traduccedilatildeo portuguesa de

Grundlinien der Philosophie des Rechts) Martins Fontes Satildeo Paulo 1997 paacuteg 40 (sect 36) 587 Na Allgemeiner Teil Larenz daacute aparentemente (alguma) prioridade agrave foacutermula de Kant o

pensamento de Kant eacute tratado com maior e o pensamento de Hegel com menor

desenvolvimento no Richtiges Recht natildeo lhe daacute prioridade alguma as foacutermulas de Kant e de

Hegel seriam ldquouma traduccedilatildeo para a linguagem da sua eacutetica ou da sua moral de umas

consideraccedilotildees genuinamente cristatildes e das consequecircncias que daiacute decorrem para o direitordquo natildeo

devendo dar-se prioridade a nenhuma [cf Derecho justo Fundamento de eacutetica juriacutedica

(traduccedilatildeo espanhola de Richtiges Recht Grundzuumlge einer Rechtsethik) Civitas Madrid

1985 paacuteg 58) 588 Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts cit paacuteg 22 sendo

mais sinteacutetica a foacutermula de Hegel seria mais impressiva 589 Sobre o significado das filosofias de Kant e de Hegel no contexto da histoacuteria da filosofia

do seacuteculo XIX (e do seacuteculo XX) vide p ex Louis Millet ldquoLrsquoeacutevolution de la philosophie mdash

La philosophie en Europerdquo in Histoire [du deacuteveloppement culturel et scientifique] de

lrsquoHumaniteacute Robert Laffont UNESCO Paris 1969 paacutegs 583-620 590 Horst Ehmann ldquoDer Begriff des Allgemeinen Persoumlnlichkeitsrechts als Grundrecht und als

absolut-subjektives Rechtrdquo in Festschift fuumlr Georgiades 2006 paacutegs 113 ss consultado

atraveacutes de WWW lt httpwwwjusmeumdeuploadsdocumentsapr-georgpdf gt ldquoDieser

Persoumlnlichkeitsbegriff Hegels kann als eine aus der Wesensschau unserer europaumlischen

Kulturentwicklung gewonnene Vorstellung des Wertes der Persoumlnlichkeit und als Grundlage

von Art 1 und 2 GG und der gesamten sonstigen Rechtsordnung verstanden werden ist aber

weder identisch mit dem APR [allgemeinen Persoumllichkeitsrecht]-Grundrecht noch mit dem

buumlrgerlich-rechtlichen APR [allgemeinen Persoumllichkeitsrecht]rdquo 591 Antoacutenio Menezes Cordeiro Tratado de direito civil portuguecircs vol I mdash Parte geral tomo

III mdash Pessoas Livraria Almedina Coimbra 2004 paacuteg 19 592 Horst Ehmann ldquoDas Allgemeine Persoumlnlichkeitsrecht mdash Zur Transformation

unmoralischer in unerlaubte Handlungenrdquo in 50 Jahre Bundesgerichtshof - Festgabe aus der

Wissensschaft vol I C H Beck Muumlnchen 2000 paacutegs 613 ss consultado atraveacutes de

280

excelecircnciardquo obtida em Hegel a ldquosiacutentese pessoa ser humanordquo se assumiu

ldquocomo fonte da proacutepria juridicidaderdquo593 Ora concorde-se ou natildeo com as

criacuteticas de um Russell594 ou de um Popper595 agrave filosofia de Hegel596 a

aproximaccedilatildeo entre Kant e Hegel eacute pelo menos duvidosa

4 O princiacutepio ldquosecirc uma pessoa e respeita os outros como pessoasrdquo deve

contextualizar-se Os Princiacutepios de filosofia do direito relacionam-no

exclusivamente com o direito abstracto e por conseguinte formal

ldquoEacute a personalidade que principalmente conteacutem a capacidade do

direito e constitui o fundamento (ele mesmo abstrato) do direito

abstrato por conseguinte formal O imperativo do direito eacute portanto

secirc uma pessoa e respeita os outros como pessoasrdquo597

Ora o sistema de Hegel distingue trecircs momentos na ldquorealizaccedilatildeo efectiva

da liberdaderdquo598 o direito abstracto a moralidade subjectiva e a moralidade

objectiva599 O direito abstracto seria o primeiro momento a moralidade

subjectiva o segundo e a moralidade objectiva o terceiro mdash como primeiro

momento o direito abstracto seria a tese como segundo momento a

moralidade subjectiva seria a antiacutetese e como terceiro momento a moralidade

WWW lthttpwwwjusmeumdeuploadsdocumentsfg-50bghpdfgt ldquoDie gesamte

Rechtsordnung kann freilich verstanden werden als eine Entwicke- lung dieses Hegelrsquoschen

Postulatsrdquo 593 Antoacutenio Menezes Cordeiro tratado de direito civil portuguecircs vol I mdash Parte geral tomo

III mdash Pessoas cit paacuteg 19 594 Bertrand Russell History of Western Philosophy cit paacutegs 769-773 mdash concluindo com a

afirmaccedilatildeo de que a filosofia de Hegel ilustra uma ldquoimportante verdaderdquo ldquothe worse your logic

the more interesting the consequences to which it gives riserdquo 595 Karl R Popper A sociedade aberta e os seus inimigos vol II cit esp paacutegs 33-80 596 Contestando a interpretaccedilatildeo de Russell e sobretudo de Popper Plant escreve nem mais

nem menos que o seguinte ldquoConceived in ignorance of Hegels philosophical achievements

Poppers discusons of Hegel is a conjecture which has bad in the past and also receives in

the present work a firm rcfatation The refutation supplied in this book is however implicitmdash

to have explicitly challenged Popper at each point in his interpretation would have credited

bis work with more importance than it deservesrdquo (Raymond Plant Hegel George Allen amp

Unwin 1973 paacutegs 9-10) 597 Georg Wilhelm Friedrich Hegel Princiacutepios de filosofia do direito cit paacuteg 40 (sect 36) 598 Jean Hyppolite prefaacutecio a Georg Wilhelm Friedrich Hegel Principes de la philosophie du

droit cit paacuteg 9 599 Expondo sucintamente os trecircs momentos da (auto-)realizaccedilatildeo da liberdade vide Luiacutes

Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica cit paacutegs 287-

293

281

objectiva a siacutentese O processo de realizaccedilatildeo efectiva da liberdade implicaria

a supressatildeo do direito abstracto para que superando-o se realizasse a

moralidade subjectiva e sobretudo a moralidade objectiva mdash Se Hegel fala

do direito abstracto (do direito da ldquopessoardquo e da ldquopropriedaderdquo) eacute soacute para o

superar600

ldquoEm face do direito mais formal e portanto mais abstrato e mais

limitado o domiacutenio e a fase do espiacuterito em que os ulteriores

elementos contidos na ideia de liberdade [ou seja a ldquomoralidade

subjectivardquo e a ldquomoralidade objectivardquo] alcanccedilam a realidade

possuem um direito mais elevado porque mais concreto mais rico e

mais verdadeiramente universalrdquo601

O indiviacuteduo soacute poderia realizar-se integrando-se na sociedade e no

Estado Hegel diz que ldquo[o] direito que os indiviacuteduos tecircm de estar

subjetivamente destinados agrave liberdade satisfaz-se quando eles pertencem a

uma realidade moral objetivardquo602 e em particular quando eles pertencem agrave

ldquorealidade moral objectivardquo Estado ldquoeacute numa tal objetividaderdquo e soacute numa tal

objectividade ldquoque reside a verdade da certeza [sic] da sua liberdade e na

realidade moral possuem eles realmente a sua essecircncia proacutepria a sua iacutentima

universalidaderdquo603

5 Entre o personalismo de Kant e o (pseudo-)personalismo de Hegel

haacute uma diferenccedila fundamental O personalismo eacutetico de Kant eacute um

personalismo final ou intransitivo o valor da pessoa humana por ser um valor

absoluto e incondicionado natildeo depende em nada da sua integraccedilatildeo na

sociedade (civil) ou no Estado o (pseudo-) personalismo eacutetico de Hegel eacute um

personalismo instrumental ou transitivo o valor da pessoa humana por ser

(soacute) um valor condicionado depende da sua integraccedilatildeo na sociedade (civil) e

no Estado

ldquoQuando se confunde o Estado com a sociedade civil destinando-o

agrave seguranccedila e proteccedilatildeo da propriedade e da liberdade pessoais o

interesse dos indiviacuteduos enquanto tais eacute o fim supremo para que se

reuacutenem do que resulta ser facultativo ser membro de um Estado

Orardquo diz Hegel ldquoeacute muito diferente a sua relaccedilatildeo com o indiviacuteduo

600 Cf Jean Hyppolite prefaacutecio a Georg Wilhelm Friedrich Hegel Principes de la philosophie

du droit cit paacuteg 20 ldquoIl a voulu en parler pour le deacutepasser comme une abstractionrdquo 601 Georg Wilhelm Friedrich Hegel Princiacutepios de filosofia do direito cit paacuteg 32 (sect 30) 602 Georg Wilhelm Friedrich Hegel Princiacutepios de filosofia do direito cit paacuteg 148 (sect 153) 603 Georg Wilhelm Friedrich Hegel Princiacutepios de filosofia do direito cit paacuteg 148 (sect 153)

282

Se o Estado eacute o espiacuterito objetivo entatildeo soacute como membro eacute que o

indiviacuteduo tem objetividade verdade e moralidaderdquo604

Os textos de Hegel quase sempre tatildeo obscuros satildeo agora

absolutamente claros605 O indiviacuteduo livre soacute poderia realizar-se ou pelo

menos soacute poderia realizar-se como indiviacuteduo livre dentro de uma

colectividade (de um Estado)606 Em cada um dos dois poacutelos no poacutelo do

indiviacuteduo e no poacutelo da colectividade (do Estado) o desenvolvimento completo

da liberdade faria com que se representassem a si proacuteprios como instrumentos

da razatildeo universal607 Entre a liberdade particular subjectiva de cada

indiviacuteduo e a liberdade universal objectiva da colectividade (do Estado)

haveria uma relaccedilatildeo de complementaridade a liberdade particular subjectiva

soacute poderia actualizar-se dentro de uma colectividade mdash dentro de um

Estadomdash por que se realizasse a liberdade universal objectiva (= dentro de

um Estado racional)

Hegel representa a colectividade institucionalizada no Estado como a

forma de vida colectiva por que se concretiza a liberdade608 sem o Estado o

indiviacuteduo natildeo poderia actualizar-se como pessoa sem o Estado a liberdade

particular ou subjectiva de cada indiviacuteduo natildeo poderia desenvolver-se com o

Estado e soacute como membro do Estado poderia o indiviacuteduo realizar-se como

604 Georg Wilhelm Friedrich Hegel Princiacutepios de filosofia do direito cit paacuteg 217 (sect 258) 605 Cf contudo Raymond Plant Hegel cit paacuteg 182 mdash ldquoCertainly the point is not

unambiguousrdquo mdash concordando com uma interpretaccedilatildeo do sect 258 em termos compatiacuteveis com

os princiacutepios estruturantes de um Estado constitucional democraacutetico e pluralista vide Michael

Quante ldquolsquoThe Personality of the Willrsquo as the Principle of Abstract Right An Analysis of sectsect

34-40 of Hegelrsquos Philosophy of Right in Terms of the Logical Structure of the Conceptrdquo in

Robert Pippin Otfried Houmlffe (coord) Hegel on Ethics and Politics Cambridge University

Press Cambridge 2004 paacutegs 81-100 e sobretudo Ludwig Siep ldquoConstitution Fundamental

Rights and Social Welfare in Hegelrsquos Philosophy of Rightrdquo in Robert Pippin Otfried Houmlffe

(coord) Hegel on Ethics and Politics Cambridge University Press Cambridge 2004 paacutegs

268-290 esp nas paacutegs 283-287 Siep reconhece em todo o caso que Hegel daacute um tratamento

desequilibrado ao perigo dos poderes puacuteblicos e dos poderes privados a protecccedilatildeo do

indiviacuteduo contra os poderes privados dos indiviacuteduos e dos grupos seria algo de essencial a

protecccedilatildeo do indiviacuteduo contra os poderes puacuteblicos e em particular contra o poder do Estado

natildeo o seria (paacuteg 287) 606 Charles Taylor Hegel cit paacuteg 120 ldquothe free individual cannor realize himself as free

outside the staterdquo 607 Taylor escreve ldquoas the vehicle of universal reasonrdquo (Hegel cit paacuteg 120) 608 Cf Charles Taylor Hegel cit paacuteg 120 ldquoFreedom is only real (wirklich) when expressed

in a form of life and since man cannot live on his own this must be a collectiva form of life

but the state is the collective form of life which is backed by the power of the community and

thus freedom must be embodied in the staterdquo

283

pessoa com o Estado e soacute como membro do Estado poderia a liberdade

particular ou subjectiva de cada indiviacuteduo desenvolver-se de forma a alcanccedilar

a sua objectividade ou universalidade reconciliando-se com a liberdade

universal do Estado

O conceito abstracto e formal de pessoa designando as ldquopessoas-

nuacutemerosrdquo609 deveria ser superado610 O direito abstracto e formal da pessoa

disciplinando ldquo[as] relaccedilotildees entre [hellip] pessoas-nuacutemeros com iguais

direitosrdquo611 deveria ser superado pelo direito (concreto e material) do

Estado612 mdash e por isso o princiacutepio fundamental do direito abstracto e formal

da pessoa consignado na foacutermula ldquosecirc uma pessoa e respeita os outros como

pessoasrdquo deveria ser superado pelos princiacutepios fundamentais do direito

(concreto e material) do Estado

Ou seja O aparente personalismo eacutetico de Hegel eacute em substacircncia um

supra-personalismo ou um trans-personalismo em que o valor particular e

transitivo de cada pessoa se realiza e soacute se realiza atraveacutes do valor geral e

intransitivo do Estado Em que o Estado e soacute o Estado eacute absolutamente fim-

de-si-mesmo (Selbstzweck)613

III

6 Em alguns textos mais antigos e mais recentes tem sido sugerida

uma re-leitura da filosofia do direito e do Estado de Hegel Em lugar de um

inimigo da liberdade mdash ou pelo menos um inimigo da liberdade particular e

subjectiva mdash Hegel seria um amigo da liberdade de toda a liberdade

609 Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica cit

paacuteg 289 610 Cf Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica

cit paacuteg 289 (nota nordm 1) ldquo[o] conceito juriacutedico puramente abstracto de pessoa sobre o qual

os romanos construiacuteram o direito privado eacute para Hegel algo de vazio e de despresiacutevelrdquo 611 Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica cit

paacuteg 289 612 Cf Jean Hyppolite prefaacutecio a Georg Wilhelm Friedrich Hegel Principes de la philosophie

du droit cit paacuteg 9 ldquoO direito da famiacutelia e o direito do Estado elevam-se muito por cima

deste direito abstracto que se formulou pela primeira vez mdash e sob uma forma imperfeita [hellip]

mdash no mundo romanordquo 613 Cf Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica

cit paacuteg 292 ldquoO Estado eacute [hellip] uma unidade eacutetica substancial e como tal absolutamente fim-

de-si mesmo (Selbstzweck) Aiacute a liberdade atingue a sua realizaccedilatildeo maacutexima cabendo-lhe por

isso o mais sagrado direito sobre todos os seus membros bem como a estes o mais sagrado

dever de neles se integraremrdquo

284

objectiva ou subjectiva particular ou universal A filosofia do direito de Hegel

seria em uacuteltima anaacutelise a filosofia do direito de uma sociedade livre de um

Estado democraacutetico mdash em uacuteltima anaacutelise a filosofia de um Estado de direito

liberal614 mdash Knowles chega a defender que deveriacuteamos representar Hegel

como o maior e o mais sofisticado dos filoacutesofos da liberdade (ldquoas the greatest

and most sophisticated of philosophers of freedomrdquo)615

O traccedilo mais original do pensamento de Hegel relacionar-se-ia

precisamente com a superaccedilatildeo de uma certa imagem do ser humano

Contestando a representaccedilatildeo do ser humano como um ser isolado Hegel

reconhececirc-lo-ia como ser social (como ser em relaccedilatildeo)

Cada ser humano representar-se-ia e deveria representar-se a si

proacuteprio simultaneamente na sua particularidade e na sua universalidade

Representar-se-ia a si proacuteprio por um lado na sua particularidade Cada ser

humano pensar-se-ia como indiviacuteduo mdash representar-se-ia como um ser

essencialmente diferente dos demais Representar-se-ia a si proacuteprio por outro

lado na sua universidalidade Cada ser humano pensar-se-ia como membro

de uma colectividade de uma comunidade mdash de uma sociedade Knowles fala

de uma ldquosociedade organicamente unificadardquo616

O sentido da teoria da integraccedilatildeo ou da teoria do reconhecimento por

integraccedilatildeo propugnada por Hegel aproximar-se-ia substancialmente do

sentido da teoria do reconhecimento preconizada por Fichte Knowles refere-

se agrave ideia central subjacente agrave teoria do reconhecimento como sendo a

seguinte a actualizaccedilatildeo da pessoa de que decorre o seu reconhecimento

como pessoa depende de um ldquoprocesso de socializaccedilatildeo ideal em que valores

como a autonomia ou a liberdade individuais tecircm um lugar importanterdquo617 Ora

Hegel refere-se explicitamente ao problema do reconhecimento

ldquoO ser humano procura o reconhecimentordquo mdash escreve Kojegraveve mdash

ldquoNatildeo se satisfaz em atribuir a si proacuteprio um valor Quer que esse

particular valor lhe seja atribuiacutedo por todos Quer que esse

614 Robert Pippin ldquoIntroductionrdquo in Robert Pippin Otfried Houmlffe (coord) Hegel on Ethics

and Politics Cambridge University Press Cambridge 2004 paacutegs 1-18 (2) ldquoultimate defense

of liberal democratic society itselfrdquo 615 Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of Right cit paacuteg 27 616 Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of Right cit paacuteg 79 617 Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of Right cit paacuteg 93

285

particular valor que o seu proacuteprio particular valor lhe seja

reconhecido por todos os seres humanos universalmenterdquo618

Como cada ser humano quer que o seu valor particular seja

reconhecido por todos os seres humanos universalmente o problema do

reconhecimento eacute um problema poliacutetico Os adeptos de uma interpretaccedilatildeo

democraacutetica ou quase democraacutetica da filosofia hegeliana alegam que a

racionalidade exige duas coisas ao Estado que se subordine ao direito 619 e

que subordinando-se ao direito trate cada ser humano como um sujeito (=

como um fim em si mesmo)620

7 Se a construccedilatildeo de Plant de Taylor ou de Knowles estivesse

correcta mdash se o Estado ideal racional de Hegel fosse (tivesse de ser) um

Estado capaz de proporcionar a cada um dos indiviacuteduos uma ldquoesfera externa

de liberdaderdquo621 mdash a integraccedilatildeo ou o reconhecimento por integraccedilatildeo deveria

representar-se como algo de condicionado

Em primeiro lugar o indiviacuteduo soacute teria de se integrar no Estado desde

que o Estado fosse um Estado constitucional democraacutetico e pluralista e em

segundo lugar o indiviacuteduo ainda que se integrasse no Estado teria direitos

contra o Estado teria direitos contra o direito mdash teria direitos contra o direito

do Estado622 Em tal contexto e soacute em tal contexto poderia falar-se com

propriedade de ldquoreivindicaccedilotildees formuladas ao direito pela personalidade

humanardquo623

618 Alexandre Kojegraveve Introduction to the Reading of Hegel Lectures on the Phenomenology

of Spirit Cornell University Press Ithaca London 1969 paacuteg 58 619 Charles Taylor Hegel cit paacuteg 375 ldquorationality [hellip] requires that the state be ruled by

lawrdquo 620 Charles Taylor Hegel cit paacuteg 375 ldquorationality requires that man be treated as a rational

subject as in Kantrsquos formulation an end and not only as meansrdquo 621 Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of Right cit paacuteg 112 622 Cf designamente Robert Pippin ldquoIntroductionrdquo cit paacuteg 8 mdash ao fazer uma siacutentese do

texto de Quante mdash ldquoHegel defends the normative claim that human beings are owed

treatment as lsquopersonsrsquo rights-bearing human beings just qua individuals (or lsquoabstractlyrsquo no

matter a personrsquos status background talents and so forth even while he presents the issue

so as to argue that there are numerous questions that the claim to lsquopersonrsquo status raises that

cannot be answered lsquoabstractlyrsquo but only by consideration of such person within a legal

systemrdquo 623 Expressatildeo de Orlando de Carvalho Teoria geral do direito civil Sumaacuterios desenvolvidos

para uso dos alunos do 2ordm ano (1ordf turma) do Curso Juriacutedico de 198081 Centelha Coimbra

1981 paacutegs 160-167 e 185

286

A relaccedilatildeo de reconhecimento entre o indiviacuteduo e o Estado seria uma

relaccedilatildeo de reconhecimento reciacuteproca O indiviacuteduo teria de reconhecer o

Estado mdash representando a sua autoridade como uma autoridade legiacutetima mdash

e o Estado teria de reconhecer o indiviacuteduo

O caso eacute que o conceito de direitos do ser humano contra o direito

contra o Estado ou contra o direito-do-Estado mdash o caso eacute que que o conceito

de reivindicaccedilotildees do ser humano contra o direito ou contra o Estado mdash eacute de

todo em todo estranho ao pensamento de Hegel

O movimento filosoacutefico de que Hegel faz parte (com Fichte ou

Schelling p ex) foi sobretudo um movimento uma tentativa de superaccedilatildeo

dos princiacutepios da autonomia e da liberdade subjectivas624 Knowles reconhece-

o

laquoa root-and-branch examination of the credentials of the authority

claimed by the state is not possible given our nature as citizensraquo625

Em Hegel a integraccedilatildeo ou o reconhecimento por integraccedilatildeo deve

representa-se como algo de incondicionado O indiacuteviacuteduo deve integrar-se no

Estado ainda que o Estado natildeo seja um Estado racional mdash ainda que natildeo seja

nem um Estado de direito nem um Estado constitucional nem tatildeo-pouco um

Estado democraacutetico

O indiviacuteduo tem de reconhecer o Estado mdash Se a histoacuteria do mundo eacute

simplesmente a histoacuteria do progresso da ideia de liberdade a ideia de

liberdade concretizar-se-ia na instituiccedilatildeo do Estado626 mdash O Estado natildeo tem

de forma nenhuma de reconhecer o indiviacuteduo

Em lugar de uma interpretaccedilatildeo do pensamento de Hegel Plant ou

Taylor como Quante Siep ou Knowles propotildeem uma correcccedilatildeo por via

interpretativa do pensamento de Hegel pode discutir-se se a correcccedilatildeo eacute ou

natildeo eacute necessaacuteria pode afirmar-se que sim que eacute necessaacuteria627 ou pode negar-

624 Cf designadamente Edward Caird Hegel J B Lippicott Company Philadelphia 1883

paacuteg 3 ldquo[Hegelrsquos movement] was above all an attempt to find a way through the modern

principles of subjective freedom [hellip] to a reconstruction of the intellectual and moral order on

which manrsquos life had been been based in the pastrdquo 625 Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of Right cit paacuteg 112 626 Cf designadamente Peter Singer Hegel A Very Short Introduction Oxford University

Press Oxford 1983 paacuteg 53 ldquothe universal law is embodied in the concrete institutions of the

staterdquo 627 Como admite Knowles ldquoHegel does not give sufficient recognition to the possibility that

the law might be an ass or worse a tyrantrdquo (Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of

Right cit paacuteg 282)

287

se que o seja natildeo pode poreacutem discutir-se e sobretudo natildeo pode poreacutem negar-

se que eacute uma correcccedilatildeo628

IV

8 Larenz ao sugerir que o princiacutepio fundamental da filosofia do direito

de Kant ldquocada ser humano tem um direito subjectivo a que todos os outros o

respeitem e correspondentemente tem um dever [juriacutedico] de respeito por

todos os outrosrdquo corresponde a um princiacutepio fundamental da filosofia do

direito de Hegel mdash ldquosecirc uma pessoa e respeita os outros como pessoasrdquo mdash

pode estar a sugerir uma de trecircs coisas

- pode estar a sugerir por um lado que o personalismo eacutetico de Kant

deve ser suprimido para que possa ser superado

- pode estar a sugerir por outro lado que o supra-personalismo ou

trans-personalismo eacutetico de Hegel deve suprimido

- pode estar a sugerir por uacuteltimo que a alternativa Kant Hegel eacute uma

falsa alternativa629

O primeiro termo da alternativa significaria que o direito abstracto

orientado pelo princiacutepio do respeito pela pessoa pode e deve ldquoser

ultrapassado[] superado[] para desembocar[] numa realidade mais plenardquo630

o segundo que o direito abstracto natildeo deve ser ultrapassado e natildeo pode ser

superado ldquopara desembocar[] numa realidade mais plenardquo o terceiro que a

628 O Estado ideal racional de Hegel estaacute ainda demasiado proacuteximo de um Estado real pode

discutir-se se haacute ou natildeo diferenccedilas fundamentais entre a ideia de Estado de Hegel e a

realidade do Estado em que Hegel vivia [criticando a afirmaccedilatildeo de Popper de que a ideia de

Estado racional de Hegel era tatildeo-soacute uma abstracccedilatildeo da realidade do Estado natildeo-democraacutetico

e natildeo-racional emm que Hegel vivia mdash e criticando a afirmaccedilatildeo de Popper com a explicitaccedilatildeo

das diferenccedilas entre os dois Estados vide Peter Singer Hegel A Very Short Introduction cit

paacutegs 58-59] natildeo pode poreacutem discutir-se que ainda que haja diferenccedilas fundamentais entre

a ideia e a realidade Hegel natildeo era um dos liberais nem um precursor dos liberais no sentido

que hoje damos agrave palavra [cf designadamente Peter Singer Hegel A Very Short Introduction

cit paacuteg 59 ldquo[These differences] do not however make Hegel any kind of liberal in the modern

senserdquo] 629 Cf Karl-Otto Appel ldquoKant Hegel and the Contemporary Question Concerning the

Normative Foundation of Morality and Rightrdquo in Robert Pippin Otfried Houmlffe (coord)

Hegel on Ethics and Politics Cambridge University Press Cambridge 2004 paacutegs 49-77 630 Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica cit

paacutegs 295-296

288

relaccedilatildeo entre o direito abstracto da pessoa e o direito (concreto) do Estado

deve representar-se como uma relaccedilatildeo de reconhecimento reciacuteproco

ldquoO homem soacute pode[ria] ser autenticamente satisfeito e a histoacuteria soacute

pode[ria] terminar pela formaccedilatildeo de uma Sociedade de um Estado

em que o valor estritamente particular pessoal individual de cada

um [fosse] reconhecido como tal na sua particularidade por todos

pela universalidade concretizada no Estado como tal e em que o

valor universal do estado [fosse] reconhecido e realizado pelo

particular como tal por todos os particularesrdquo631

O primeiro termo da alternativa a supressatildeo do personalismo de Kant

deve excluir-se Se o ldquoregresso a Hegelrdquo632 significasse a supressatildeo do

personalismo final e intransitivo de Kant teria de dar-se razatildeo (teria de dar-se

toda a razatildeo) a Popper mdash um renovado ldquoregresso a Hegelrdquo significaria

simplesmente uma renovada ldquoperversatildeordquo dos ideais de liberdade e de

igualdade entre todas as pessoas633

Excluiacutedo o primeiro termo da alternativa por ser insustentaacutevel Larenz

inclinar-se-ia seguramente para sustentar que a alternativa entre Kant e Hegel

eacute uma falsa alternativa634 O princiacutepio kantiano do respeito pelo ser humano

como fim em si mesmo soacute se actualizaria desde que as instituiccedilotildees da sociedade

e do Estado dessem a cada ser humano uma concreta capacidade e uma

concreta liberdade

Os termos de Larenz devem em todo o caso criticar-se ao

desvalorizarem como desvalorizam a diferenccedila entre os contributos de Kant

e de Hegel para a determinaccedilatildeo dos princiacutepios de um personalismo eacutetico Kant

propotildee-nos que a autoridade do Estado seja uma autoridade condicionada O

Estado fundar-se-ia na liberdade particular e subjectiva mdash na liberdade de

cada ser humano Entre o personalismo eacutetico e a filosofia praacutetica de Kant haacute

631 Alexandre Kojegraveve Introduction to the Reading of Hegel Lectures on the Phenomenology

of Spirit cit paacuteg 58 632 Cf Joseacute Lamego ldquoNoacutetula do tradutorrdquo cit paacutegs 701-707 mdash sobre as tendecircncias da

filosofia do direito e do Estado alematildes dos anos 20 e 30 633 Karl R Popper A sociedade aberta e os seus inimigos vol II cit esp paacuteg 52 mdash Popper

descreve a filosofia de Hegel como ldquoperversatildeo mesquinha de tudo quanto eacute decenterdquo e em

particular ldquoda razatildeo da liberdade da igualdade e das outras ideias da sociedade abertardquo 634 Cf Joseacute Lamego ldquoNoacutetula do tradutorrdquo cit paacuteg 712 ldquoA continuidade de uma atitude de

rejeiccedilatildeo de um pensamento formalista abstracto ao longo das mais distintas conjunturas

econoacutemicas e poliacuteticas [hellip] e a sua defesa de um pensamento metodoloacutegico lsquocompreensivorsquo e

orientado a valores permitiram a Larenz uma transiccedilatildeo do compromisso totalitaacuterio a um

personalismo eacutetico de pendor lsquoinstitucionalistarsquordquo

289

uma convergecircncia (quase) total Hegel propotildee-nos que a autoridade do Estado

seja uma autoridade incondicionada O Estado fundar-se-ia na liberdade

universal e objectiva Entre o personalismo eacutetico contemporatildeneo e a filosofia

do direito de Hegel haacute por isso uma convergecircncia parcial mdash haacute uma relaccedilatildeo

de semelhanccedila entre palavras natildeo entre ideias635 636

V

9 Larenz prossegue sugerindo expliacutecita ou implicitamente que haacute

uma relaccedilatildeo de continuidade entre o personalismo dos seacuteculos XVIII e XIX e

o personalismo do seacuteculo XX O personalismo eacutetico seria simultaneamente a

ldquoimagem de homemrdquo que os redactores do coacutedigo civil alematildeo pressupunham

que se adquirira mdash considerando-a como algo de ldquoevidenterdquo637 mdash e a ldquoimagem

do homemrdquo que os redactores da constituiccedilatildeo alematilde propunham que se

(re)adquirisse ao afirmarem que o princiacutepio da dignidade da pessoa humana eacute

o ldquoprinciacutepio mais alto (oberstes Prinzip) do sistema juriacutedico considerado no

seu conjuntordquo638

ldquoa imagem de homem [desenvolvida pelo personalismo eacutetico]

arranca do ser humano como uma pessoa determinada eacutetica e

racionalmente a qual segundo a sua natureza eacute colocada em

posiccedilatildeo de conformar livre e responsavelmente o seu ser e o seu

mundo no quadro das possibilidades que lhe satildeo dadas de pocircr a si

proacutepria os seus fins e de impor a si proacutepria os seus limitesrdquo639

635 Riley fala de uma relaccedilatildeo de tensatildeo entre o ldquoliberalismo kantianordquo e o ldquocomunitarismo

hegelianordquo mdash vide Stephan Riley ldquoHuman dignity comparative and conceptual debatesrdquo in

International Journal of Law in Context vol 6 (2010) paacutegs 117ndash138 (127) 636 Cf Karl-Otto Appel ldquoKant Hegel and the Contemporary Question Concerning the

Normative Foundation of Morality and Rightrdquo in Robert Pippin Otfried Houmlffe (coord)

Hegel on Ethics and Politics Cambridge University Press Cambridge 2004 paacutegs 49-77

(50) ldquoThe considerations that motivated the constantly repeated return from Hegel to Kant

were [hellip] justified in themselvesrdquo 637 Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts cit paacuteg 21

ldquoHinter dem BGB [hellip] steht der ethische Personalismus als Menschenbild der seine

Verfasser ohne es ausdruumlcklich auszusprechen als selbstverstaumlndlich vorausgesetzt habenrdquo 638 Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts cit paacuteg 22 639 Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts cit paacuteg 21

ldquoDieser Menschenbild geht vom Menschen als ethisch un vernunftmaumlssig bestimmte Person

aus die ihrer Natur und Bestimmung nach darauf angelegt ist ihr Dasein und ihre Umwelt

im Rahmen der ihr jeweils gegeben Moumlglichkeiten frei und verantwortlich zu gestalten sich

Ziele zu setzen und selbst Schranken des Handelns aufzuerlegenrdquo

290

O texto esquece a relatividade histoacuterico-cultural dos conceitos de

dignidade e de liberdade Entre os dois personalismos haacute relaccedilotildees de

continuidade e relaccedilotildees de descontinuidade O personalismo dos seacuteculos

XVIII e XIX concretizado p ex na(s) filosofia(s) do direito de Kant

pressupotildee ldquoo recalcamento ou subestimaccedilatildeo do indiviacuteduo empiacuterico em

benefiacutecio de um eu racional e transcendental identificado com a Razatildeordquo640

afirmando o valor de uma liberdade racional nega o valor da liberdade

empiacuterica afirmando o valor de uma liberdade abstracta nega o valor da

liberdade concreta641 afirmando o valor de um sujeito racional nega o valor

do sujeito empiacuterico ou seja afirmando o valor de uma pessoa abstracta nega

o valor da pessoa concreta642 O personalismo dos seacuteculos XX e XXI esse

propotildee-se precisamente re-afirmar o valor da concreta e empiacuterica liberdade de

uma concreta e empiacuterica pessoa

10 O seacuteculo XX teraacute dado nas sugestivas palavras de Cabral de

Moncada ldquoum golpe de timatildeo no sentido da vida da vida real e concreta

profunda e rica de conteuacutedos voltando-se para uma existecircncia concreta

imediata e total e afastando-se daquilo a que podemos chamar o lsquoabstractismorsquo

dos seacuteculos XIX e XVIIIrdquo643

O paradigma de um homem abstracto racional foi aprofundado644

com a ldquodescida ao realrdquo mdash ao paradigma de um homem concreto ldquoem

situaccedilatildeordquo645 Entre os fundamentos histoacuterios e ideoloacutegicos mdash entre os

fundamentos eacuteticos e morais mdash dos sistemas de direito privado dos seacuteculos

640 Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do direito e do Estado vol I mdash Parte histoacutericacit

paacuteg 267 641 Russell ao apresentar a filosoacutefia do direito e do Estado de Hegel acentua ldquothe very odd

sense in which Hegel uses the word lsquofreedomrsquordquo dizendo que ldquorsquofreedomrsquo for him means little

more than lsquothe right to obbey the lawrsquordquo mdash History of Western Philosophy cit paacuteg 764 642 Como diz p ex Margaret Jane Radin ldquoHegels person is the same as Kants-simply an

abstract autonomous entity capable of holding rights a device for abstracting universal

principles and hence by definition devoid of individuating characteristicsrdquo [cf ldquoProperty and

Personhoodrdquo in Stanford Law Review vol 34 (1982) paacutegs 957-1015 (972)] 643 Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do direito e do Estado vol I mdash Parte histoacutericacit

paacuteg 367 mdash itaacutelico no original 644 Orlando de Carvalho A teoria geral da relaccedilatildeo juriacutedica Seu sentido e limites Centelha

Coimbra 1981 paacuteg 71 ldquoO que urgia ante o homem abstracto do jusnaturalismo racionalista

era um aprofundamento ou uma densificaccedilatildeo mdash natildeo um esvaziamento ou uma formalizaccedilatildeordquo 645 Orlando de Carvalho A teoria geral da relaccedilatildeo juriacutedica Seu sentido e limites cit paacuteg 72

ldquoO que se exigia era em suma uma descida ao real ao homem em situaccedilatildeo mdash natildeo uma fuga

para foacutermulas geomeacutetricas ainda mais ocas e impunemente alienantesrdquo

291

XVIII e XIX e os fundamentos ideoloacutegicos dos sistemas de direito privado dos

seacuteculos XX e XXI haacute diferenccedilas absolutamente decisivas Se o(s)

personalismo(s) dos seacuteculos XVIII e XIX mdash entre os quais o personalismo de

Kant mdash representava(m) a dignidade como valor intriacutenseco de um ser humano

abstracto (como o valor intriacutenseco da humanidade) o(s) personalismo(s) dos

seacuteculos XX e XXI representa(m)-na como valor intriacutenseco de um ser humano

concreto

O confronto entre os discursos de Kant e de Duumlrig sobre o conceito de

dignidade da pessoa humana eacute elucidativo Kant afirmava um dever moral de

nunca tratar a humanidade somente como um meio Duumlrig ao reconstruir o

dever moral como um dever juriacutedico convola o dever de nunca tratar a

humanidade como um meio no dever de nunca tratar a pessoa humana

concreta somente como um meio ldquoa dignidade da pessoa humana [seria]

atingida se a pessoa humana concreta [fosse] reduzida agrave condiccedilatildeo de objecto

de simples meio de elemento substituiacutevelrdquo mdash Kant como os filoacutesofos do

seacuteculo XVIII e do seacuteculo XIX dizia-nos que a dignidade da pessoa humana

era algo que pertencia agrave humanidade como abstracccedilatildeo646 Duumlrig como os

filoacutesofos do seacuteculo XX e do seacuteculo XXI diz-nos mdash que a dignidade da

pessoa eacute algo que pertence a cada pessoa humana concreta

11 O problems estaacute em que o paradigma de um homem concreto ldquoem

situaccedilatildeordquo convoca simultaneamente os aspectos ou momentos de verdade647

das duas filosofias da de Kant e da de Hegel mdash convoca o aspecto ou

momento de verdade da filosofia de Kant por referir sempre a autoridade do

Estado ao reconhecimento e ao respeito da dignidade de cada indiviacuteduo e

convoca o aspecto ou momento de verdade da filosofia de Hegel por referir

sempre a autoridade do Estado agrave conformaccedilatildeo das instituiccedilotildees como a famiacutelia

ou a sociedade em que a dignidade de cada indiviacuteduo haacute-de realizar-se

O(s) personalismo(s) dos seacuteculos XVIII e XIX representava(m) a

dignidade e a liberdade (racional) de cada ser humano como algo que lhe foi

646 Dietmar von der Pfordten ldquoZur Wurde des Menschen bei Kantrdquo cit paacutegs 1-2 a dignidade

da pessoa humana (Menschenwuumlrde) seria simplesmente ldquodignidade da humanidaderdquo (Wuumlrde

des Menscheit) mdash e como a essecircncia da humanidade seria a racionalidade a ldquodignidade da

pessoa humanardquo seria a ldquodignidade de uma essecircncia racionalrdquo (Wuumlrde eines vernuumlnftigen

Wesens) 647 Expressatildeo de Benedetto Croce Ciograve che egrave vivo e ciograve che egrave morto della filosofia di Hegel

Laterza Bari 1907 paacutegs 207-208 ldquoogni pensatore e ogni movimento storico di pensiero

non puograve esser passato senza frutto senza deporre un elemento di veritaacute che fa parte

consapevole o no del pensiero vivo e modernordquo

292

dado pela ldquonaturezardquo o(s) personalismo(s) dos seacuteculos XX e XXI

representa(m) a dignidade e a liberdade (empiacuterica) como algo que pode ou

natildeo ser-lhe dado pela civilizaccedilatildeo ou pela cultura ao representar(em) a

dignidade e a liberdade (racional) de cada ser humano como algo que lhe foi

dado pela natureza o(s) personalismo(s) eacutetico(s) dos seacuteculos XVIII e XIX

cometia ao direito em geral e ao direito civil em particular uma funccedilatildeo

essencialmente negativa mdash o direito deveria simplesmente admitir ou

reconhecer a liberdade mdash ao representar(em) a dignidade e a liberdade

(empiacuterica) de cada ser humano como algo que pode ou natildeo ser-lhe dado pela

civilizaccedilatildeo ou pela cultura o(s) personalismo(s) eacutetico(s) dos seacuteculos XX e

XXI comete(m) ao direito uma funccedilatildeo essencialmente positiva mdash de tornar

possiacutevel a actualizaccedilatildeo da liberdade e atraveacutes da liberdade de tornar possiacutevel

a actualizaatildeo da dignidade de cada pessoa648

12 O personalismo eacutetico soacute poderaacute ser plenamente tomado a seacuterio

desde que as confusotildees conceptuais sejam desfeitas

Em primeiro lugar deve afastar-se toda a confusatildeo entre a filosofia de

Kant e a filosofia de Hegel O personalismo eacutetico relaciona-se com toda a

filosofia do direito de Kant e com uma parte soacute com uma parte da filosofia

do direito de Hegel mdash a filosofia do direito abstracto O personalismo de Kant

pode ser o fundamento histoacuterico e filosoacutefico do sistema de direito civil o

supra-personalismo ou trans-personalismo de Hegel natildeo pode poreacutem secirc-lo

Em segundo lugar deve afastar-se toda a confusatildeo entre o personalismo das

filosofias dos seacuteculos XVIII e XIX e o(s) personalismo(s) das filosofias dos

seacuteculos XX e XXI O personalismo de Kant soacute pode ser o fundamento histoacuterico

e filosoacutefico do sistema de direito civil desde que se adapte corrigindo-se a sua

tendacircncia para o abstractismo Em terceiro lugar ao adaptar-se o aspecto ou

momento de verdade do pensamento de Kant deve atender-se ao aspecto ou ao

momento de verdade do pensamento de Hegel O ser humano pode actualizar-

se ou realizar-se de uma forma mais completa mais plena desde que tenha

648 Vide p ex Martha Nussbaum ldquoThe Supreme Court 2006 Term mdash Foreword

lsquoConstitutionsrsquo and Capabilities lsquoPerceptionrsquo Against Lofty Formalismrdquo cit paacuteg 7 ldquoThis

normative approach the ldquoCapabilities Approachrdquo (CA) holds that a key task of a nationrsquos

constitution and the legal tradition that interprets it is to secure for all citizens the

prerequisites of a life worthy of human dignity mdash a core group of ldquocapabilitiesrdquo mdash in areas

of central importance to human liferdquo

293

uma relaccedilatildeo harmoniosa com a totalidade social mdash com as instituiccedilotildees sociais

e poliacuteticas649

649 Como explica Bertrand Russell ldquoa totalidade social eacute uma totalidade em que o indiviacuteduo

natildeo desaparece antes adquire uma mais plena realidade e a adquire atraveacutes de uma relaccedilatildeo

harmoniosa com um organismo maior que si proacutepriordquo (History of Western Philosophy cit

paacuteg 769)

294

295

Austeridade e dignidade da pessoa humana

Joaquim Freitas da Rocha

1 A abordagem de duas coordenadas materiais distintas e

aparentemente distanciadas dificilmente poderaacute ser efetuada sem a delimitaccedilatildeo

dos respetivos pressupostos terminoloacutegicos metodoloacutegicos e axioloacutegicos por

forma a eliminar espaccedilos discursivos de ambiguidade e a minorar a exposiccedilatildeo

a conclusotildees impulsivas e precipitadas No quadro de tais pressupostos

impotildee-se enfatizar que a abordagem aqui empreendida revestiraacute natureza

eminentemente juriacutedico-normativa no sentido em que teraacute por objeto e

referecircncia normas juriacutedicas (princiacutepios regras) vaacutelidas e operativas no

concreto ordenamento juriacutedico portuguecircs

2 A dignidade da pessoa humana constitui o pinaacuteculo de qualquer

ordenamento e ateacute de qualquer outro modelo de existecircncia que se queira

reputar de aceitaacutevel Em termos juriacutedicos e em referecircncia ao Estado de Direito

trata-se de um postulado inafastaacutevel mdash sendo por tal motivo erigido agrave

categoria de princiacutepio juriacutedico fundamental mdash que num enfoque material natildeo

eacute facilmente definiacutevel mas que convoca algumas coordenadas

axiologicamente insubstituiacuteveis (i) a pessoa humana eacute insuscetiacutevel de

valoraccedilatildeo (preccedilo) (ii) eacute inviolaacutevel e (iii) eacute sujeito do Direito e natildeo o seu

objeto Aleacutem disso na estruturaccedilatildeo de qualquer arranjo juriacutedico-organizatoacuterio

sobrelevam as consideraccedilotildees a si atinentes e apenas depois se consideram as

referecircncias aos termos de organizaccedilatildeo e competecircncia Como princiacutepio juriacutedico

fundamental que eacute invalida qualquer soluccedilatildeo que a coloque em crise

Importa enfatizar que a consideraccedilatildeo dessa fundamentalidade arrasta

uma exigecircncia - a sobriedade Vale isto por dizer que a sua invocaccedilatildeo deve ser

reservada para situaccedilotildees absolutamente excecionais nas quais a pessoa

humana esteja realmente em causa e nas quais o restante arsenal

principioloacutegico densificador (eg princiacutepios da proporcionalidade da

igualdade da seguranccedila juriacutedica da proteccedilatildeo da reserva da vida privada) natildeo

seja suficiente ou adequado Caso contraacuterio enfrenta-se o perigo da

O presente texto pretende apenas materializar em forma escrita a intervenccedilatildeo proferida no

acircmbito do evento ao qual a presente obra se refere assumindo por isso uma estrutura

eminentemente coloquial Professor na Escola de Direito da Universidade do Minho

296

banalizaccedilatildeo pois a contiacutenua mdash e por vezes exageradamente repetida mdash alusatildeo

agrave sua importacircncia introduz o risco da desvalorizaccedilatildeo axioloacutegica e juriacutedica

3 A austeridade tambeacutem natildeo eacute uma realidade faacutecil de identificar e

menos ainda de concetualizar atendendo a que quando se convoca tal termo

se alude frequentemente a uma pluralidade heterogeacutenea de estados factos atos

ou situaccedilotildees que podem natildeo ter entre si elementos unificadores bastantes Em

todo o caso eacute possiacutevel dizer que a austeridade pode ser vista como um periacuteodo

(temporal) como uma concreta medida mdash de natureza restritiva e ablativa mdash

ou como uma poliacutetica650 Neste uacuteltimo sentido mdash que seraacute aquele que mais

relevaraacute no contexto das presentes consideraccedilotildees mdash a austeridade pode ser

perspetivada como o conjunto de medidas de poliacutetica orccedilamental de natureza

restritiva que tecircm por objetivo a disciplina econoacutemico-financeira natildeo sendo

difiacutecil de extrair de tal conceito os seguintes elementos constitutivos

i) Um elemento quantitativo - a poliacutetica de austeridade materializar-se-aacute

sempre numa realidade plural e natildeo numa uacutenica medida isoladamente

considerada

ii) Um elemento loacutegico-sistemaacutetico - as diversas medidas da poliacutetica de

austeridade deveratildeo elas proacuteprias enquadrar-se num conjunto de

opccedilotildees integradas e consistentes de feiccedilatildeo financeira e orccedilamental

(poliacutetica orccedilamental) e natildeo ser encaradas como esparsas avulsas ou

isoladas sem qualquer fator de reductio ad unum

iii) Um elemento material - as medidas referidas deveratildeo ter natureza

restritiva e limitadora de direitos designadamente mdash embora natildeo

apenas mdash de direitos de feiccedilatildeo patrimonial (eg direito de propriedade

privada direito ao trabalho direito a prestaccedilotildees sociais)

iv) Um elemento teleoloacutegico - toda a poliacutetica de austeridade deve ser

pensada delineada e posteriormente executada tendo em vista um fim

mais amplo que a direcione (por exemplo a prevenccedilatildeo de estados de

insolvabilidade puacuteblica ou o cumprimento de determinada meta fixada

ao niacutevel de compromissos internacionais como o cumprimento dos

criteacuterios estabelecidos no pacto de estabilidade e crescimento da zona

euro)

650 Para maiores desenvolvimentos sugerimos o nosso ldquoA Austeridade de um ponto de vista

juriacutedico-constitucionalrdquo in A austeridade cura A austeridade mata (coord Eduardo Paz

Ferreira) AAFDL Lisboa 2013 pp 649 e ss

297

4 Como se referiu a austeridade materializa-se num conjunto de

medidas financeiras e orccedilamentais restritivas Essas medidas irrompem quase

sempre em estados de crise econoacutemica ao ponto de com ela se confundirem

De um ponto de vista tipoloacutegico pode dizer-se que existem medidas de

austeridade respeitantes agrave receita puacuteblica e medidas de austeridade respeitantes

agrave despesa puacuteblica

i) Do lado da receita puacuteblica assumem particular destaque os aumentos

diretos da imposiccedilatildeo tributaacuteria (eg aumento das taxas de imposto e

outros tributos) a revogaccedilatildeo limitaccedilatildeo ou suspensatildeo de benefiacutecios

fiscais (como isenccedilotildees reduccedilotildees deduccedilotildees ou abatimentos) a maior

facilidade (permissividade) no acesso por parte da administraccedilatildeo

tributaacuteria a dados protegidos por sigilo (como os sujeitos a sigilo

bancaacuterio) o incremento das accedilotildees de fiscalizaccedilatildeo e de inspeccedilatildeo

tributaacuteria ou o aumento das execuccedilotildees fiscais e das penhoras por

diacutevidas tributaacuterias Em todos os casos transparece mdash ou pode

transparecer mdash uma conceccedilatildeo autoritaacuteria e inquisitoacuteria do Direito

tributaacuterio que encara o contribuinte como o objeto de um

procedimento e natildeo tanto como o sujeito de uma relaccedilatildeo juriacutedica em

condiccedilotildees de tendencial paridade com o Estado

ii) Do lado da despesa puacuteblica ganham relevo desde logo os despedimentos

na funccedilatildeo puacuteblica bem assim como os denominados cortes nas

prestaccedilotildees salariais e pensionistas puacuteblicas (lato sensu) e a restriccedilatildeo

de prestaccedilotildees materiais nos domiacutenios da educaccedilatildeo sauacutede e assistecircncia

social (por exemplo subsiacutedios abonos comparticipaccedilotildees

fornecimento de bens moacuteveis ou imoacuteveis)

Como se pode ver e como jaacute supra se adiantou ao contraacuterio do que

uma visatildeo meramente intuitiva poderia sugerir a austeridade amplamente

considerada estaacute longe de se materializar somente em medidas restritivas de

feiccedilatildeo patrimonial e particularmente de restriccedilatildeo ao direito de propriedade

Seraacute verdade que na maior parte das situaccedilotildees seraacute isso o que acontece

(aumentos de impostos cortes nas pensotildees etc) e ateacute seratildeo estas situaccedilotildees

aquelas que teratildeo maior visibilidade e relativamente agraves quais os destinataacuterios

mais se insurgiratildeo Poreacutem casos existem (como por exemplo o alargamento

das possibilidades de derrogaccedilatildeo do sigilo bancaacuterio por parte do fisco ou o

maior nuacutemero de inspeccedilotildees) em que o que estaacute em causa seratildeo outras

dimensotildees constitucionais relevantes (como a proteccedilatildeo dos dados que

integram a reserva da vida privada ou a inviolabilidade do domiciacutelio ou da

correspondecircncia) as quais ainda que menos visiacuteveis natildeo prescindem de

atenccedilatildeo e de afericcedilatildeo da correspondente validade juriacutedica e juriacutedico-

constitucional

298

5 A colocaccedilatildeo temaacutetica das duas coordenadas em conjunto (dignidade

da pessoa humana e austeridade) convoca um conjunto de questotildees agraves quais a

ciecircncia juriacutedica natildeo pode ficar indiferente atenta a inerente relevacircncia

juriacutedico-axioloacutegica juriacutedico-constitucional e juriacutedico-financeira Entre tais

questotildees pode salientar-se as que seguem

i) A austeridade eacute compatiacutevel com o postulado da dignidade da pessoa

humana

ii) Seraacute possiacutevel assegurar a todos uma existecircncia digna sem a execuccedilatildeo

preacutevia de medidas de austeridade que possibilite a captaccedilatildeo de receitas

puacuteblicas e a efetivaccedilatildeo de despesas puacuteblicas

iii) Seraacute legiacutetimo retirar direitos agraves pessoas (cidadatildeos famiacutelias e empresas)

para por vias da austeridade resolver problemas do Estado (diacutevida

puacuteblica deacutefice puacuteblico desequiliacutebrios orccedilamentais)

iv) A aceitaccedilatildeo da austeridade natildeo significaraacute um primado do Direito

orccedilamental sobre o Direito Constitucional

Ora sem prejuiacutezo da indiscutiacutevel valia problemaacutetica destas e de vaacuterias

outras questotildees que no mesmo alinhamento temaacutetico poder ser colocadas a

verdade eacute que uma anaacutelise racional e pragmaacutetica destes toacutepicos resultaraacute numa

conclusatildeo no miacutenimo dececionante trata-se de questotildees que natildeo satildeo novas e

agraves quais bem vistas as coisas a Teoria geral do Direito (e em particular o

Direito constitucional e o Direito financeiro) jaacute tecircm conseguido dar resposta

Esta uacuteltima passaraacute pelas ideias de compatibilizaccedilatildeo de normas e de

concordacircncia praacutetica de pretensotildees juriacutedicas em termos de se considerar que

natildeo apenas merecem tutela e proteccedilatildeo os Interesses puacuteblicos inerentes agraves

medidas de austeridade (estabilidade das financcedilas puacuteblicas cumprimentos de

compromissos assumidos internacionalmente) como os direitos adquiridos

com base em expectativas legiacutetimas por parte dos vaacuterios sujeitos O que natildeo

se poderaacute fazer seraacute absolutizar qualquer uma das coordenadas em confronto

pretendendo fazer crer que a mesma constitui um direito sem restriccedilatildeo

O uacutenico direito absoluto e intangiacutevel aqui em causa eacute precisamente a

dignidade da pessoa humana a qual em muitas das situaccedilotildees referidas natildeo

chegaraacute a estar colocada em crise Daiacute que se diga que se alguma novidade

haveraacute resultante das recentes retoacutericas de austeridade ela limitar-se-aacute agrave

reafirmaccedilatildeo de algo que natildeo sofre contestaccedilatildeo a austeridade natildeo pode privar

ningueacutem de prestaccedilotildees relativas agrave existecircncia condigna mdash o que natildeo significa

que natildeo possa privar de nada em absoluto mdash e natildeo pode significar a renuacutencia

agrave exigecircncia das mesmas

De resto vecirc-se com reservas a referecircncia a tal postulado em mateacuteria

de Direito financeiro puacuteblico muito por causa da banalizaccedilatildeo que daiacute pode

decorrer

299

A grande ldquoconclusatildeordquo que se pretende apresentar com a presente

intervenccedilatildeo eacute tatildeo-somente esta as respostas agraves questotildees colocadas natildeo

emergem de qualquer paradigma novo que deva ser inventado ou reinventado

por causa da(s) crise(s) mas antes resulta da consideraccedilatildeo de uma adequada

metoacutedica juriacutedica nos aspetos subjetivo (posiccedilotildees juriacutedicas subjetivas direitos

fundamentais) e objetivo (bens juriacutedicos valores juridicamente protegidos)

Desde logo porque novos tambeacutem natildeo parecem ser os problemas agora

suscitados embora se possa convir que os mesmos aparecem eventualmente

com uma roupagem renovada Em qualquer caso nada haacute de novo a

acrescentar ao jaacute ensinado classicamente pela postura da concordacircncia praacutetica

e da harmonizaccedilatildeo Aqui a concordacircncia estabelecer-se-aacute estaacute bom de ver

entre as medidas restritivas preconizadas e que materializam a poliacutetica de

austeridade ndash medidas essas que devem passar pelo crivo da absoluta

necessidade adequaccedilatildeo e proporcionalidade ndash e as exigecircncias decorrentes da

dignidade da pessoa humana

Enfim no modo toacutepico e sumaacuterio a que nos propusemos refletir estas

satildeo as consideraccedilotildees que apraz verter em discurso Naturalmente que muito

mais haveria a problematizar ponderar e expressar mas os desenvolvimentos

que aqui rareiam poderatildeo ser objeto de futuras revisitaccedilotildees destes acircmbitos

temaacuteticos

300

301

Dignidade humana e contrato

Joseacute Joatildeo Abrantes

1 DOS TEMPOS DO ldquoQUI DIT CONTRACTUEL DIT JUSTErdquo AOS TEMPOS DE

UM CONTRATO ldquoMENOS CONTRATUALrdquo

O liberalismo partia de uma separaccedilatildeo radical entre o Estado e a

sociedade civil entre o direito puacuteblico e o direito privado vendo a

Constituiccedilatildeo reduzida agrave garantia da liberdade individual perante o Estado

encarado como o uacutenico poder capaz de a ameaccedilar Tal como resulta da Magna

Carta do liberalismo a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo de

26 de Agosto de 1789 (artordm 16) a Constituiccedilatildeo aparece entatildeo como

instrumento de protecccedilatildeo dos direitos individuais naturais anteriores e

superiores agrave sociedade poliacutetica e ao Estado que natildeo os conferem natildeo os criam

antes se limitam a reconhececirc-los a declaraacute-los Existindo em todos os homens

em todos os tempos e lugares (artordm 1) esses direitos natildeo satildeo funcionalizaacuteveis

soacute tendo por limites os iguais direitos de todos os outros homens (artordm 4) Satildeo

direitos de defesa contra o Estado a uacutenica forccedila capaz de ameaccedilar a liberdade

individual

O direito privado por sua vez precisamente porque era o reino das

relaccedilotildees entre iguais aparece amplamente dominado pelos princiacutepios da

autonomia da vontade e liberdade contratual A intervenccedilatildeo do legislador era

aiacute proscrita dado que soacute as partes livres e actuando em igualdade podiam

auto-regulamentar os seus interesses de uma forma justa

Com o Estado Social de Direito que jaacute natildeo eacute o Estado neutro da

tradiccedilatildeo liberal antes se reconhece ldquoo direito e o dever de intervir nas relaccedilotildees

econoacutemicas entre os cidadatildeosrdquo existindo esse dever ainda que tal intervenccedilatildeo

sacrifique a liberdade individual e as suas projecccedilotildees na liberdade contratual e

na propriedade privada tambeacutem se modifica o anterior entendimento dos

princiacutepios da autonomia da vontade e liberdade contratual expressotildees do

Professor Catedraacutetico da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Toacutepicos da comunicaccedilatildeo apresentada em 14 de dezembro de 2015 num Coloacutequio

organizado pelo Centro de Investigaccedilatildeo Interdisciplinar em Direitos Humanos da Escola de

Direito do Minho sob a coordenaccedilatildeo cientiacutefica dos Professores Nuno Manuel Pinto Oliveira

e Benedita Mac Crorie a quem o autor agradece o honroso convite para a sua participaccedilatildeo

Em termos de referecircncias bibliograacuteficas remete-se para os textos anteriores que temos

dedicado a esta temaacutetica designadamente para a nossa tese de doutoramento Contrato de

trabalho e direitos fundamentais Coimbra 2005

302

liberalismo econoacutemico a que praticamente natildeo eram postas restriccedilotildees Da

autonomia da vontade e da liberdade contratual sem limites passa-se para um

novo conceito de contrato marcado pelo cercear crescente daquela autonomia

e daquela liberdade ndash o que leva por exemplo Josserand a perguntar se natildeo

se estaraacute face a um contrato laquomenos contratualraquo

No fundo o que ocorre eacute a passagem de um conceito de liberdade

abstracta para a liberdade concreta da afirmaccedilatildeo da igualdade juriacutedico-formal

dos contraentes para o reconhecimento da sua desigualdade real Dos coacutedigos

civis oitocentistas passa-se agrave criacutetica do liberalismo e agrave (impropriamente

chamada) laquocrise do contratoraquo com a entrada em cena da justiccedila social e a

funcionalizaccedilatildeo dos direitos e do contrato

2 A JUSTICcedilA SOCIAL E A PROTECCcedilAtildeO DO CONTRAENTE DEacuteBIL

Um dos valores que aparece entatildeo eacute a protecccedilatildeo do contraente deacutebil

que tem momentos diferenciados

Se numa primeira fase a debilidade contratual eacute encarada apenas

como caracteriacutestica individual do contraente [e daiacute a resposta para o problema

aparecer centrada sobretudo nas teorias das incapacidades e dos viacutecios da

vontade no regime dos negoacutecios usuraacuterios (lesatildeo) nos institutos da

imprevisatildeo e do abuso de direito etc] mais tarde ela passa a ser vista como

caracteriacutestica de certas categorias de contraentes (como o trabalhador o

inquilino o comprador a creacutedito ou a prestaccedilotildees o mutuaacuterio etc sem

esquecer o aderente nas claacuteusulas contratuais gerais ou contratos de adesatildeo)

chegando-se por uacuteltimo agrave garantia constitucional da autonomia privada

Daacute-se a materializaccedilatildeo a socializaccedilatildeo e a constitucionalizaccedilatildeo do

direito privado

Como escreve Ana Prata ldquonatildeo soacute natildeo pode pois pensar-se a

autonomia privada como um dado inerente agrave tutela constitucional da liberdade

como antes haacute que desta tutela retirar importantes elementos num sentido ou

restritivo da liberdade negocial ou reordenador desta em tais termos que o seu

significado claacutessico surge completamente alteradordquo

Apenas a actuaccedilatildeo dos direitos fundamentais configura para o

legislador constituinte a autecircntica liberdade que por natildeo ser diferente

consoante se situe no domiacutenio puacuteblico ou privado deve valer erga omnes

contra os poderes puacuteblicos e tambeacutem contra entidades privadas ndash de forma a

garantir sempre contra quem quer que seja aquilo que a Constituiccedilatildeo

considera intangiacutevel isto eacute a dignidade da pessoa humana

A Constituiccedilatildeo constitui uma objektive Wertordnung e daiacute deriva a

eficaacutecia horizontal dos direitos fundamentais (artordm 18ordm1 da CRP)

303

3 A EFICAacuteCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A ideia de que os direitos fundamentais se impotildeem aos cidadatildeos nas

suas relaccedilotildees interprivadas constituindo um limite agrave autonomia negocial eacute

originaacuteria da Alemanha paiacutes onde veio mesmo a transformar-se num ldquotema-

paradigmardquo do Direito Constitucional e do Direito do Trabalho nos anos 50 e

60

Assenta na concepccedilatildeo dos direitos fundamentais como princiacutepios

objectivos da ordem juriacutedica civil ou seja no reconhecimento a esses direitos

de uma dimensatildeo objectiva deixando de ser apenas direitos subjectivos de

defesa perante os poderes do Estado

Os direitos que a Constituiccedilatildeo reconhece aos cidadatildeos constituem

princiacutepios objectivos princiacutepios ordenadores da vida social vaacutelidos para

todas as relaccedilotildees sociais estabelecidas no interior da ordem juriacutedica estadual

puacuteblica ou privada

A Constituiccedilatildeo natildeo eacute ldquouma ordem axiologicamente neutrardquo mas sim

uma ldquoordem objectiva de valoresrdquo um ldquosistema de valoresrdquo (ldquoWertsystemrdquo)

no contexto de uma ordem juriacutedico-poliacutetica que se afasta do modelo

pretensamente neutral e abstencionista do Estado liberal

Esta construccedilatildeo influenciou a jurisprudecircncia dos tribunais alematildees e viria a

encontrar a sua mais completa expressatildeo no ceacutelebre acoacuterdatildeo do caso Luumlth

proferido pelo Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht)

em 15011958

Os direitos fundamentais representam a expressatildeo maacutexima dessa

ordem axioloacutegica desse sistema de valores em que assenta a unidade do

ordenamento (Rechtseinheit) e cujo valor fundamental eacute em uacuteltima

instacircncia a dignidade da pessoa humana (ldquoMenschenwuumlrderdquo) (artordm 1ordm

Grundgesetz) de que todos os outros direitos fundamentais - e

designadamente a faculdade que qualquer indiviacuteduo tem de se autodeterminar

e desenvolver livremente (artordm 2ordm Grundgesetz) - natildeo passam de

concretizaccedilotildees Esses direitos deveratildeo por isso valer do ponto de vista da

comunidade em geral como valores que esta se propotildee prosseguir Tecircm pois

uma funccedilatildeo social e uma dimensatildeo objectiva de que resulta a sua eficaacutecia erga

omnes a obrigaccedilatildeo geral de respeito desses direitos (tambeacutem) nas proacuteprias

relaccedilotildees que os particulares estabelecem entre si

Para o Tribunal Constitucional ldquoa imagem que a Lei Fundamental nos

daacute do homem natildeo eacute a de um indiviacuteduo isolado na relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e

a comunidade a Constituiccedilatildeo daacute precedecircncia agrave integraccedilatildeo do indiviacuteduo no

todo e agraves suas obrigaccedilotildees para com elerdquo

304

Eacute fundamentalmente a partir deste entendimento do homem natildeo como

mero indiviacuteduo isolado mas sim como pessoa integrado na sociedade que a

doutrina e na sua esteira a jurisprudecircncia vieram afirmar a impossibilidade

de manter o domiacutenio das relaccedilotildees privadas fechado aos valores

constitucionais com o aparecimento de vaacuterias teorias

a A FORMULACcedilAtildeO ORIGINAacuteRIA DA TEORIA DA DRITTWIRKUNG

A primeira dessas teorias cujos principais defensores foram Hans Carl

Nipperdey e Walter Leisner defende a eficaacutecia directa ou imediata

(ldquounmittelbare Drittwirkungrdquo) dos direitos fundamentais nas relaccedilotildees de

direito privado

Para a tese em questatildeo a primeira das necessidades de que

objectivamente nasce a Drittwirkung eacute a de manter a coerecircncia interna do

ordenamento ligada agrave dimensatildeo objectiva e natildeo meramente subjectiva hoje

reconhecida aos direitos fundamentais sendo que a segunda dessas

necessidades corresponde ao reconhecimento da presenccedila na sociedade civil

de fortes poderes econoacutemicos e sociais

Por outro lado a autonomia privada e a liberdade contratual supotildeem

uma situaccedilatildeo mais ou menos equivalente dos contraentes quer do ponto de

vista juriacutedico quer real sem ela toda a autodeterminaccedilatildeo dos sujeitos de

direito seria excluiacuteda a priori Eacute essa autodeterminaccedilatildeo que pode faltar quando

um indiviacuteduo eacute confrontado com uma situaccedilatildeo de superioridade social ou

econoacutemica de outras pessoas Diz-se entatildeo que a protecccedilatildeo daqueles direitos

natildeo pode ser dirigida apenas contra os poderes estaduais mas igualmente

contra as entidades privadas detentores de um cada vez maior poder social e

econoacutemico e por isso capazes de afectar intensamente aspectos relevantes da

vida e da personalidade dos indiviacuteduos

Sem pretender pocircr em causa os valores especiacuteficos da ordem juriacutedica

privada a aplicaccedilatildeo directa tem como sua maior (natildeo uacutenica) preocupaccedilatildeo a

protecccedilatildeo da liberdade individual contra os poderes sociais

Natildeo surpreende pois que a teoria tenha sido inicialmente colocada no

acircmbito laboral

Mas a Drittwirkung rege tambeacutem as relaccedilotildees entre iguais de direito

e de facto A sua imposiccedilatildeo sempre resulta da dimensatildeo objectiva reconhecida

aos direitos fundamentais que devem considerar-se vaacutelidos para toda a ordem

juriacutedica soacute que aiacute a aplicaccedilatildeo dos preceitos constitucionais cederia em favor

da autonomia privada na medida em que o conteuacutedo essencial dos direitos

garantidos por tais preceitos natildeo fosse atingido

A teoria da eficaacutecia directa veio a ter a sua maior repercussatildeo junto do

Tribunal Federal do Trabalho (Bundesarbeitsgericht) que jaacute numa decisatildeo de

305

31254 escrevia que uma seacuterie de importantes direitos fundamentais natildeo

garantem apenas a liberdade individual contra o poder do Estado eles satildeo

acima de tudo princiacutepios da vida social pelo que satildeo tambeacutem directamente

aplicaacuteveis nas relaccedilotildees entre os cidadatildeos A principal razatildeo da aceitaccedilatildeo

desta doutrina pelo BAG prende-se obviamente com o desequiliacutebrio existente

nas relaccedilotildees laborais

Mas tambeacutem por exemplo no BVerfG eacute possiacutevel encontrarmos

exemplos desta teoria Eacute o que acontece no caso Blinkfuumler (BVerfGE 25 256

boicote pela editora Springer agrave Blinkfuumler uma pequena revista que apoacutes a

construccedilatildeo do Muro de Berlim continuava a dar publicidade aos programas

da raacutedio e da televisatildeo leste-alematildes) em que o BVerfG numa decisatildeo de 26

de fevereiro de 1969 anulou o julgamento anterior considerando ilegal o

boicote promovido pela editora visto ter esta utilizado a forte pressatildeo social

resultante da sua posiccedilatildeo dominante no mercado contra a liberdade de

expressatildeo e imprensa direito fundamental garantido no artordm 5I da Lei

Fundamental entendendo que o boicote natildeo feria o sect 823 (1) do BGB (ldquobons

costumesrdquo) decidiu o tribunal que contra ele e face agrave inoperacircncia de uma

mera eficaacutecia mediata dos princiacutepios constitucionais (a partir daquela claacuteusula

geral de direito privado) poderia a Blinkfuumler valer-se desses princiacutepios

entendidos como directamente aplicaacuteveis

b DESENVOLVIMENTOS DOGMAacuteTICOS POSTERIORES

A admissibilidade da Drittwirkung deparou contudo com obstaacuteculos

Contra ela invocou-se sobretudo a perversatildeo do direito civil da autonomia

privada e do livre desenvolvimento da personalidade a que tal teoria

conduziria Invocou-se que a eficaacutecia imediata daqueles direitos iria restringir

de uma forma intoleraacutevel a autonomia privada e o poder de autodeterminaccedilatildeo

individual que satildeo as bases de toda a ordem juriacutedica privada Tal eficaacutecia

ldquocoagiriardquo os cidadatildeos e representaria uma ameaccedila agrave sua liberdade uma vez

que lhes traria vinculaccedilotildees injustificadas invertendo-se assim o sentido dos

direitos fundamentais ao aniquilar tal liberdade em nome dela proacutepria

Para Guumlnter Duumlrig sem duacutevida o nome mais representativo desta

corrente aqueles direitos natildeo valem em princiacutepio para as relaccedilotildees entre

particulares sob pena de ser prejudicado o princiacutepio do livre desenvolvimento

da personalidade (ldquofreie Entfaltung der Persoumlnlichkeitrdquo) do artordm 2 da GG

base em que assenta toda a ordem juriacutedica privada Desse alargamento do seu

acircmbito de validade resultaria um aumento excessivo do poder do Estado que

para fiscalizar os ldquodeveresrdquo dos indiviacuteduos invadiria toda a esfera da

autonomia pessoal dos mesmos O reconhecimento de uma eficaacutecia imediata

aos direitos fundamentais teria como resultado inverter o sentido desses

306

mesmos direitos aniquilando-se ndash ou pelo menos reduzindo-se ao miacutenimo -

a liberdade que eles em princiacutepio visariam garantir

Para Duumlrig o Estado seria pois o uacutenico sujeito passivo dos referidos

direitos aparecendo tal ideia como expressatildeo da autonomia do direito privado

valor que entendia estar sacrificado na teoria da eficaacutecia imediata

Reconhecendo-se-lhes uma eficaacutecia deste tipo estar-se-ia diz a atingir

precisamente o resultado inverso (a reduccedilatildeo da liberdade ao miacutenimo) daquilo

que esses direitos devem assegurar Ao contraacuterio a decisatildeo constitucional em

favor da liberdade (Grundentscheidung des Grundgesetzes fuumlr die Freiheitrdquo)

tem por corolaacuterio a faculdade reconhecida aos particulares no quadro do

traacutefico juriacutedico privado de se desviar de normas e princiacutepios que satildeo

inultrapassaacuteveis pela actuaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos sendo por isso em

princiacutepio perfeitamente legiacutetimos os negoacutecios privados feitos agrave margem

dessas regras que pelo contraacuterio vinculam os poderes puacuteblicos

Mas essa autonomia do direito privado natildeo pode levar a que se esqueccedila

a necessidade de ser simultaneamente garantida a unidade da ordem juriacutedica

(Einheit der Gesamtrechtsordnung) Ela natildeo significa pois independecircncia

face aos direitos fundamentais precisamente porque enquanto sujeito passivo

destes direitos o Estado tem o dever de protegecirc-los em todas as relaccedilotildees que

se estabeleccedilam no seio da ordem juriacutedica e naturalmente tambeacutem contra

entidades privadas

Soacute que essa protecccedilatildeo apenas se afirmaria de uma forma indirecta ou

mediata atraveacutes dos princiacutepios e regras proacuteprios do direito privado Neste

ramo do direito os valores constitucionais seriam garantidos por normas

imperativas e na eventual falta ou insuficiecircncia dessas normas atraveacutes do

recurso agraves claacuteusulas gerais ou conceitos indeterminados de direito privado

(ordem puacuteblica principalmente) de que os preceitos da Constituiccedilatildeo

serviriam como princiacutepios de interpretaccedilatildeo sempre dentro do espiacuterito do

direito privado

Esta eacute a soluccedilatildeo que de acordo com o autor assegurava tanto a unidade

da ordem juriacutedica como a autonomia do direito privado

Tambeacutem esta teoria da eficaacutecia directa ou imediata (ldquomittelbare

Drittwirkungrdquo) encontrou eco junto dos tribunais alematildees sobretudo do

Tribunal Constitucional ao qual a problemaacutetica chegou precisamente atraveacutes

do jaacute referido caso Luumlth cuja sentenccedila natildeo soacute conteacutem a mais completa

expressatildeo da concepccedilatildeo dos direitos fundamentais enquanto sistema de

valores como tambeacutem ilustra muitiacutessimo bem o modelo de anaacutelise fornecido

pela teoria da eficaacutecia indirecta O tribunal de 1ordf instacircncia considerando que

se estava face a um incitamento ao boicote contraacuterio aos bons costumes (eine

sittenwidrige Aufforderung zum Boycott) violador pois do sect 826 do BGB

307

condenou o jornalista que interpocircs um recurso de apelaccedilatildeo para o Tribunal do

Land bem como um recurso de constitucionalidade invocando a violaccedilatildeo do

seu direito agrave liberdade de expressatildeo que no seu entender incluiria a

possibilidade de influenciar outros mediante a palavra Por decisatildeo de

15011958 veio o Tribunal Constitucional a dar-lhe razatildeo com o fundamento

de que o apelo ao boicote natildeo atentava dadas as circunstacircncias concretas do

caso contra a referida claacuteusula dos bons costumes (ldquoguten Sittenrdquo) do sect 826

BGB considerando que a liberdade de expressatildeo (artordm 5I1 da GG) natildeo era

aplicaacutevel de forma directa agraves relaccedilotildees privadas entendeu que o tribunal a quo

decidira incorrectamente ao natildeo ter anteposto o princiacutepio objectivo subjacente

a tal liberdade ndash que seria vaacutelido (tambeacutem) para o Direito Civil devendo por

conseguinte ser levado em conta no proacuteprio entendimento da claacuteusula de

bons costumes - aos interesses privados da companhia produtora de filmes

Tambeacutem o ceacutelebre caso Grundgens-Mephisto (BVerfGE 30 173)

configura uma aplicaccedilatildeo da teoria da eficaacutecia indirecta a sentenccedila incidiu aiacute

sobre uma queixa apresentada por uma editora em recurso contra uma

sentenccedila ciacutevel que havia proibido por razotildees de moralidade ligadas agrave defesa

do bom nome de um conhecido actor alematildeo Gustaf Grundgens a distribuiccedilatildeo

de uma novela (Mephisto - Roman einer Karriere) da autoria de um tambeacutem

muito conhecido escritor Klaus Mann Agrave queixa foi negada procedecircncia por

sentenccedila de 24011971 mantendo-se pois a proibiccedilatildeo decretada pelo tribunal

a quo por ter considerado que a liberdade de criaccedilatildeo artiacutestica deveria ceder

perante os direitos de personalidade decorrentes dos artordms 1 e 2 da

Grundgesetz

Referecircncia autoacutenoma tratando-se aliaacutes de uma teoria que de certa

maneira aparece como um desenvolvimento e uma precisatildeo da mittelbare

Drittwirkung merece a Schutzauftragslehre (ou Schutzpflichtslehre) que

radica na concepccedilatildeo dos direitos fundamentais como mandatos de protecccedilatildeo

(Schutzgebote) invocando-se desde logo o artordm 1I2 da GG que diz que os

poderes estaduais natildeo apenas devem respeitar (achten) a dignidade da

pessoa humana mas tambeacutem protegecirc-la (schuumltzen) O Estado tem o dever

de proteger os direitos fundamentais o que implica nomeadamente proteger

a parte mais fraca de uma relaccedilatildeo contratual de poder-sujeiccedilatildeo para a qual no

fundo a autonomia da vontade e o direito ao livre desenvolvimento da

personalidade natildeo satildeo por vezes mais do que uma mera ficccedilatildeo aquele deve

pois estabelecer mecanismos de correcccedilatildeo de uma tal situaccedilatildeo porque a

protecccedilatildeo da liberdade significa a garantia de um verdadeiro poder de decisatildeo

livre e autoacutenomo

De facto a autonomia privada eacute ameaccedilada por situaccedilotildees de

inferioridade negocial natildeo sendo os mecanismos civis suficientes para

assegurar a autodeterminaccedilatildeo do contraente que natildeo tem condiccedilotildees de

308

autotutela dos seus interesses constitucionalmente protegidos e havendo pois

que limitar a autodeterminaccedilatildeo formal em nome da autodeterminaccedilatildeo

substancial Trata-se de uma ideia particularmente importante por exemplo

para o direito do trabalho do qual se pode dizer que laquoo desequiliacutebrio de forccedilas

entre as partes do contrato de trabalho eacute a sua razatildeo de ser e a compensaccedilatildeo

desse desequiliacutebrio a sua finalidaderaquo

O que se passa eacute que a eficaacutecia dos preceitos constitucionais nas

relaccedilotildees de Direito Privado - considere-se a mesma imposta por uma

Drittwirkung desses preceitos ou por um mandato de protecccedilatildeo

(Schutzauftrag) dirigido ao Estado - deveraacute sempre ser realizada atraveacutes de

uma ponderaccedilatildeo de interesses

Hoje assiste-se ao reconhecimento generalizado da eficaacutecia dos

direitos fundamentais nas relaccedilotildees juriacutedicas privadas com recurso agraves regras

dos conflitos de direitos nomeadamente com aplicaccedilatildeo do princiacutepio da

proporcionalidade entenda-se essa aplicaccedilatildeo imposta directamente pelos

proacuteprios preceitos constitucionais ou pelas claacuteusulas gerais de direito privado

(vg a boa feacute) Esse princiacutepio com origem no direito puacuteblico enquanto

instrumento de controlo do poder derivado da intervenccedilatildeo puacuteblica com reflexo

na esfera dos privados expandiu-se para o direito privado maxime para as

situaccedilotildees contratuais de poder-sujeiccedilatildeo em que uma das partes estaacute em

posiccedilatildeo de poder exercer sobre a outra uma espeacutecie de (quase)-poderes de

autoridade ndash ou seja para os casos em que atentas as circunstacircncias o

desequiliacutebrio entre as partes potildee em crise o exerciacutecio de uma efectiva liberdade

contratual ficando esta facticamente derrogada Trata-se de situaccedilotildees em que

a estrutura do direito privado se aproxima do direito puacuteblico sendo o princiacutepio

entatildeo convocado com o objectivo de estabelecer limites agrave prevalecircncia de uma

parte sobre a outra e transformar assim essas situaccedilotildees de poder em situaccedilotildees

de equiliacutebrio ou pelo menos de desequiliacutebrio toleraacutevel

O exemplo mais significativo de actuaccedilatildeo do princiacutepio no domiacutenio

privado encontra-se no direito do trabalho por ser um domiacutenio em que eacute

particularmente intenso o conflito entre interesses de sinal contraacuterio tendo

sido sob a eacutegide da protecccedilatildeo do contraente deacutebil que o juslaboralismo ganhou

foros de cidadania em relaccedilatildeo ao direito civil

Em Portugal a eficaacutecia horizontal e a sua projecccedilatildeo laboral chegaram

com a Constituiccedilatildeo de 1976 onde se deu a aceitaccedilatildeo dessa eficaacutecia horizontal

consagrada expressamente pelo artordm 18ordm1 da CRP como uma eficaacutecia

ldquodirectardquo

309

4 A JUSTICcedilA CONTRATUAL NO CONTRATO DE TRABALHO

Eacute agrave luz dessa eficaacutecia que os direitos fundamentais actuam podem

actuar como limites dos poderes empresariais Estaacute-se face a uma questatildeo de

conflito de direitos e de concordacircncia praacutetica que reclama a aplicaccedilatildeo da ideia

de proporcionalidade nas suas vertentes de necessidade ou indispensabilidade

de idoneidade ou adequaccedilatildeo e de menor restriccedilatildeo possiacutevel O que se exige eacute

uma ponderaccedilatildeo de interesses entre por um lado os direitos fundamentais da

pessoa humana no trabalho e por outro a honra e a intimidade do empregador

e dos outros trabalhadores o direito agrave sauacutede e agrave integridade fiacutesica e moral e

outros direitos e interesses legiacutetimos do empregador nomeadamente a

liberdade de empresa (e a propriedade privada) o seu direito de gerir

eficazmente a empresa e sobretudo o seu direito de se proteger da

responsabilidade ou do prejuiacutezo que as acccedilotildees dos trabalhadores podem

suscitar A questatildeo eacute de equiliacutebrio entre a salvaguarda dos direitos dos

trabalhadores e a correcta execuccedilatildeo dos seus compromissos contratuais

Hoje o Coacutedigo do Trabalho nos seus artigos 14ordm e seguintes

reconhece expressamente alguns direitos fundamentais da pessoa humana no

trabalho entre os quais se inclui a intimidade da vida privada Os trabalhadores

tecircm com efeito o direito de esperar um certo grau de respeito pela sua vida

privada no seu lugar de trabalho pois eacute aiacute que desenvolvem uma parte

importante das suas relaccedilotildees com outras pessoas Mas tal direito deve ser

equilibrado com outros direitos e interesses legiacutetimos do empregador e de

terceiros motivos legiacutetimos que podem justificar limitaccedilotildees ao direito agrave vida

privada dos trabalhadores

O artordm 16ordm do CT refere esse direito agrave reserva da intimidade da vida

privada que se analisa na proibiccedilatildeo tanto do acesso de estranhos a informaccedilotildees

sobre a vida privada como da divulgaccedilatildeo de informaccedilotildees que algueacutem tenha

sobre ela eacute o que diz o seu nordm 2 cujo elenco natildeo eacute exaustivo abrangendo a

proibiccedilatildeo quaisquer factos natildeo relevantes para efeitos de valoraccedilatildeo da atitude

profissional do trabalhador ateacute mesmo por exemplo os seus gostos pessoais

e haacutebitos de vida situaccedilatildeo familiar estado de sauacutede etc

Os artigos seguintes tecircm tambeacutem a ver com a vida privada neles se

definindo por ex os termos em que se pode ldquoexigir ao candidato a emprego

ou ao trabalhador que preste informaccedilotildees relativas agrave sua vida privadardquo ldquoagrave sua

sauacutede ou estado de gravidezrdquo (artordm 17ordm) tratar dados biomeacutetricos do

trabalhador (artordm 18ordm) exigir-lhe ldquoa realizaccedilatildeo ou apresentaccedilatildeo de testes ou

exames meacutedicosrdquo (artordm 19ordm) utilizar ldquomeios de vigilacircncia agrave distacircncia no local

de trabalhordquo (artordms 20ordm e 21ordm) ou ldquoestabelecer regras de utilizaccedilatildeo dos meios

de comunicaccedilatildeo na empresa nomeadamente do correio electroacutenicordquo (artordm

22ordm)

310

O direito agrave intimidade soacute pode ser limitado se interesses relevantes o

justificarem natildeo podendo pocircr-se em causa os princiacutepios constitucionais da

necessidade adequaccedilatildeo e proibiccedilatildeo do excesso

Eacute assim que nos termos do nordm 1 do artordm 17ordm do CT os princiacutepios que

devem nortear a recolha de dados para efeitos de contrataccedilatildeo de pessoal satildeo a

necessidade e a proporcionalidade soacute podendo o empregador solicitar dados

sobre a vida privada que ldquosejam estritamente necessaacuterios e relevantesrdquo para

avaliar da aptidatildeo para a execuccedilatildeo do contrato (trata-se de uma regra idecircntica

agraves constantes por exemplo do SL italiano ou do Code du Travail francecircs (cfr

respectivos artigos L 121-6 e L 122-45) e natildeo podendo as limitaccedilotildees agrave

intimidade dos trabalhadores revelar-se desnecessaacuterias ou excessivas sob

pena de contrariedade aos artordms 26ordm e 18ordm2 da CRP

Por sua vez o artordm 19ordm1 fixa algumas situaccedilotildees em que pode ser

solicitada a realizaccedilatildeo ou apresentaccedilatildeo de testes e exames meacutedicos a

candidatos a emprego ou trabalhadores se tiverem ldquopor finalidade a protecccedilatildeo

e seguranccedila do trabalhador ou de terceirosrdquo e ldquoquando particulares exigecircncias

inerentes agrave actividade o justifiquemrdquo resulta do nordm 3 que esses exames

meacutedicos soacute podem ser feitos por ordem e sob a direcccedilatildeo de um meacutedico e o

resultado dos mesmos deveraacute ser inacessiacutevel agrave entidade empregadora

Tambeacutem os tribunais tecircm entendido que interesses dignos de protecccedilatildeo

social vg a seguranccedila rodoviaacuteria ou a prevenccedilatildeo de acidentes laborais

podem justificar a realizaccedilatildeo de testes de alcoolemia ou de exames para

detecccedilatildeo de drogas O direito agrave privacidade natildeo eacute absoluto pode ser limitado

se estiver em causa a protecccedilatildeo da sauacutede puacuteblica ou a seguranccedila do proacuteprio ou

de terceiros Existem pois actividades em que estes exames se justificam

condutores em transporte ferroviaacuterio rodoviaacuterio mariacutetimo pilotos

controladores de traacutefego aeacutereo condutores de maacutequinas Assim por

exemplo referindo-se ao domiacutenio rodoviaacuterio o Tribunal Constitucional jaacute

considerou que ldquoa submissatildeo do condutor ao teste de detecccedilatildeo de aacutelcool natildeo

viola o dever de respeito pela dignidade da pessoa do condutor nem o seu

direito ao bom nome e agrave reputaccedilatildeo nem o direito que ele tem agrave reserva da

intimidade da vida privadardquo Tambeacutem o STJ natildeo soacute considerou legiacutetima uma

ordem do empregador para que o trabalhador se sujeitasse a um teste de

alcoolemia como acrescentou que a imposiccedilatildeo da obrigatoriedade desse teste

atraveacutes de regulamento interno se encontra abrangida pelo poder directivo (e

regulamentar) do empregador violando o dever de obediecircncia o trabalhador

que se recuse a fazecirc-lo

Tomando agora um outro exemplo o da videovigilacircncia igualmente

aiacute se poderaacute dizer que a mesma se deve traduzir numa vigilacircncia geneacuterica

destinada a detectar factos situaccedilotildees ou acontecimentos incidentais e natildeo

numa vigilacircncia directamente dirigida aos postos de trabalho ou ao campo de

311

acccedilatildeo dos trabalhadores que configuraria uma tiacutepica medida de poliacutecia

transformando os trabalhadores indefinidamente em suspeitos de praacutetica de

iliacutecitos criminais com clara violaccedilatildeo dos seus direitos de personalidade A

protecccedilatildeo dos bens natildeo eacute um argumento sem mais Deve ter-se em conta

aspectos como o valor dos bens o facto de serem facilmente acessiacuteveis a

terceiros e de se tratar de infracccedilotildees graves Por outro lado a videovigilacircncia

oculta viola o artigo 20ordm nordms 1 e 3 do CT e o dever de lealdade e boa feacute nas

relaccedilotildees laborais

Quanto agrave admissibilidade da videovigilacircncia como meio de prova

entendemos ser legiacutetima a utilizaccedilatildeo no exerciacutecio do poder disciplinar de

dados conhecidos de forma acidental atraveacutes do controlo destinado a

satisfazer as necessidades previstas na lei por ex por razotildees de seguranccedila ou

de gestatildeo empresarial A videovigilacircncia pode servir para provar infracccedilotildees

disciplinares se estiver justificada por uma finalidade legiacutetima o

conhecimento acidental for o uacutenico meio de prova e a conduta em questatildeo

comprometa bens de relevacircncia constitucional

Se passarmos para o correio electroacutenico tambeacutem aiacute mais uma vez o

princiacutepio eacute o de que a actividade do trabalhador na empresa natildeo implica a

perda do direito agrave intimidade devendo o empregador escolher as formas de

controlo que tenham menor impacto sobre os direitos fundamentais dos

trabalhadores O empregador deve privilegiar metodologias geneacutericas de

controlo evitando a consulta individualizada de dados pessoais O empregador

natildeo deve fazer um controlo permanente e sistemaacutetico do e-mail dos

trabalhadores Esse controlo deve ser pontual e direccionado para as aacutereas e

actividades que apresentem um maior ldquoriscordquo para a empresa

O controlo dos e-mails ndash a realizar de forma aleatoacuteria ndash deve ter em

vista essencialmente garantir a seguranccedila do sistema e a sua performance Para

assegurar estes objectivos o empregador pode adoptar os procedimentos

necessaacuterios para ndash sempre com o conhecimento dos trabalhadores ndash fazer uma

ldquofiltragemrdquo de certos ficheiros que pela natureza da actividade desenvolvida

pelo trabalhador podem indiciar claramente natildeo se tratar de e-mails de

serviccedilo (vg ficheiros de imagens exe ou mp3)

O acesso ao e-mail deveraacute ser o uacuteltimo recurso a utilizar pelo

empregador devendo ser feito na presenccedila do trabalhador visado e limitar-se

agrave visualizaccedilatildeo dos endereccedilos dos destinataacuterios o assunto a data e hora do

envio (podendo o trabalhador se for o caso especificar a existecircncia de alguns

e-mails de natureza privada que natildeo pretende que sejam lidos pela entidade

empregadora)

312

Ateacute mesmo o facto de o empregador proibir o e-mail para fins privados

natildeo lhe daacute o direito de abrir automaticamente qualquer e-mail dirigido ao

trabalhador

313

A visatildeo personalista da famiacutelia e a afirmaccedilatildeo de

direitos individuais no seio do grupo familiar ndash a

emergecircncia de um novo paradigma decorrente do

processo de constitucionalizaccedilatildeo do direito da famiacutelia

Rute Teixeira Pedro

SUMAacuteRIO

I Consideraccedilotildees introdutoacuterias II A transformaccedilatildeo da famiacutelia e a

mudanccedila de modelo subjetivo em que a mesma se estrutura ndash do paradigma

institucional ao paradigma personalista III A constitucionalizaccedilatildeo do direito

da famiacutelia e a emergecircncia de conflitos entre direitos (fundamentais)

individuais dos familiares IV As repercussotildees da irrupccedilatildeo da individualidade

e da alteridade no acircmbito familiar 1) A promoccedilatildeo da autonomia privada nas

relaccedilotildees familiares 2) A afirmaccedilatildeo crescente do funcionamento da

responsabilidade civil no contexto familiar V Observaccedilotildees conclusivas

I CONSIDERACcedilOtildeES INTRODUTOacuteRIAS

I No contexto temporal da celebraccedilatildeo do quadrageacutesimo aniversaacuterio da

Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa importa refletir sobre a transformaccedilatildeo

que vem ocorrendo nas uacuteltimas quatro deacutecadas na perspetivaccedilatildeo juriacutedica da

famiacutelia sob o influxo do texto constitucional portuguecircs de 1976 O recuar da

importacircncia da dimensatildeo comunitaacuteria em favor do acentuar do relevo da

dimensatildeo individualista na configuraccedilatildeo do tratamento juriacutedico da entidade

familiar eacute um movimento que se vem paulatinamente produzindo no direito

portuguecircs agrave luz das novas diretrizes constitucionais Na verdade o

protagonismo dado agrave pessoa ndash a cada pessoa em si e por si apesar da sua

inserccedilatildeo na famiacutelia ndash reflete-se na definiccedilatildeo do recorte subjetivo das posiccedilotildees

juriacutedicas que emergem e se desenvolvem no interior do contexto familiar com

ineludiacuteveis consequecircncias na perspetivaccedilatildeo juriacutedica dos direitos dos

Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e Investigadora do

CIJE ndash Centro de Investigaccedilatildeo Juriacutedico-Econoacutemica da mesma Faculdade

314

familiares qua tale no espaccedilo intrafamiliar e tambeacutem com ecos que se

repercutem na relevacircncia de tais direitos fora daquele espaccedilo

II Propomo-nos entatildeo neste trabalho refletir sobre o assunto

considerando de seguida a mudanccedila de paradigma juriacutedico-familiar

decorrente do processo de constitucionalizaccedilatildeo do direito da famiacutelia que

importou uma promoccedilatildeo da visatildeo personalista da entidade familiar (parte II)

e uma consequente revoluccedilatildeo subjetivista no seu seio (parte III) Depois (parte

IV) daremos conta das repercussotildees de tal metamorfose concentrando a nossa

atenccedilatildeo por um lado na promoccedilatildeo da autonomia privada nas relaccedilotildees

familiares (1) e por outro lado na afirmaccedilatildeo crescente do funcionamento da

responsabilidade civil no contexto familiar (2) Finalizaremos com

breviacutessimas notas conclusivas sobre as profundas transformaccedilotildees que se vecircm

produzindo na intervenccedilatildeo do direito no arquipeacutelago familiar651

II A TRANSFORMACcedilAtildeO DA FAMIacuteLIA E A MUDANCcedilA DE MODELO

SUBJETIVO EM QUE A MESMA SE ESTRUTURA ndash DO PARADIGMA

INSTITUCIONAL AO PARADIGMA PERSONALISTA

I A estruturaccedilatildeo juriacutedica da subjetividade desenvolveu-se num

primeiro momento a partir da ideia de ldquostatusrdquo cunhada no Direito Romano

Aiacute se distinguiam trecircs estados652 ndash o status libertatis o status civitatis e o status

familiae653 ndash a que se associavam diferenccedilas naquilo que mais recentemente

mereceu a qualificaccedilatildeo conceptual como ldquocapacidade juriacutedicardquo654 na medida

651 Utilizamos aqui uma expressatildeo inspirada em imagens insulares frequentemente usadas

no acircmbito familiar Pensamos por um lado na muito conhecida frase de ARTURO CARLO

JEMOLO em que o insigne Autor se refere agrave famiacutelia como uma ilha tocada pelo mar juriacutedico

(La famiglia e il diritto in Pagine sparse di diritto e storiografia scelte e ordinate da L Scavo

Lombardo Milano Giuffregrave 1957 p 241) e por outro lado no tiacutetulo de um artigo da autoria

de FRANCESCO DONATO BUSNELLI em que o Autor se refere agrave transformaccedilatildeo

morfoloacutegica da famiacutelia (ldquoLa famiglia e lrsquoarcipelago familiarerdquo in Rivista di Diritto Civile

Ano XLVIII nordm 4 julho a agosto 2002 pp 509 e ss) 652 Vamos usar neste trabalho a palavra ldquoestadordquo como sinoacutenima de ldquostatusrdquo ainda que o

termo latino encerrasse um significado mais rico que em portuguecircs natildeo se conteacutem naquele

vocaacutebulo 653 Sobre esta divisatildeo tripartida vide CARLO FADDA Diritto delle Persone e della famiglia

Napoli Lorenzo Alvano Libraio Editore 1923 pp 42 a 166 e em particular sobre o ldquostatus

familiaerdquo sectsect 106 a 118 ie a partir da p 146 654 O conceito de capacidade juriacutedica ndash assim como o de personalidade juriacutedica com que

inicialmente se confundia ndash eacute muito recente remontando ao iniacutecio do seacuteculo XIX Para uma

315

em que o conhecimento do ldquostatusrdquo de uma pessoa permitia a identificaccedilatildeo da

maior ou menor extensatildeo da sua idoneidade para a titularidade eou para o

exerciacutecio de direitos655

No cruzamento dos seacuteculos XVIII e XIX por influecircncia do iluminismo

e do jusnaturalismo a construccedilatildeo do conceito universal e abstrato de

personalidade juriacutedica desferiu um duro golpe neste modelo de

subjetividade656 que havia marcado ateacute entatildeo a evoluccedilatildeo do pensamento

juriacutedico Apesar da sua derrocada na ciecircncia juriacutedica geral ele continuou a

projetar-se na famiacutelia refletindo-se na manutenccedilatildeo no acircmbito familiar ateacute

bem dentro do seacuteculo XX de um modelo institucional de sabor estatutaacuterio em

que os membros da famiacutelia se perspetivavam em funccedilatildeo da sua inserccedilatildeo no

grupo familiar em vez de serem perspetivados de acordo com as suas

caracteriacutesticas individuais657

II A posiccedilatildeo juriacutedica de cada sujeito recortava-se a partir do papel que

cada um era chamado a desempenhar no seio da famiacutelia agrave luz de uma ideia de

breve referecircncia agrave sua histoacuteria vide DIOGO COSTA GONCcedilALVES Personalidade vs Capacidade

Juriacutedica ndash um regresso ao monismo conceptual in Revista da Ordem dos Advogados Ano 75

janeiro-junho de 2015 pp 121 e ss 655 O ldquostatusrdquo associava-se assim quer ao conceito de capacidade de gozo quer ao de

capacidade de exerciacutecio Ademais por vezes fazia-se ateacute uma associaccedilatildeo agrave ideia de

personalidade que apresentava no Direito Romano vaacuterios graus Aiacute se admitiam trecircs espeacutecies

de penalidades que constituiacuteam trecircs situaccedilotildees de ldquodiminuiccedilatildeo da personalidade (juriacutedica)rdquo

Assim SEBASTIAtildeO CRUZ Direito Romano (Ius Romanum) I Introduccedilatildeo Fontes 4ordf Ediccedilatildeo

Revista e Actualizada Coimbra Dislivro 1984 p197 Note-se que a distinccedilatildeo entre

capacidade e personalidade juriacutedica data de haacute cerca de dois seacuteculos DIOGO COSTA

GONCcedilALVES Personalidade vs Capacidade Juriacutedica ndash um regresso ao monismo conceptual

cit 656 Anteriores ataques agrave ideia de ldquostatusrdquo haviam-se produzido por um lado com a aboliccedilatildeo

da escravatura que esvaziou a relevacircncia do status libertatis e por outro lado com a lenta

eliminaccedilatildeo da diversidade de tratamento juriacutedico entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos de um Estado

com a consequente degradaccedilatildeo a partir do seacuteculo XIX do relevo do status civitatis Para

maiores desenvolvimentos sobre o significado histoacuterico de ldquostatusrdquo e da sua influecircncia na

conformaccedilatildeo do modelo tradicional de subjetividade familiar vide o nosso Convenccedilotildees

matrimoniais A autonomia na conformaccedilatildeo dos efeitos patrimoniais do casamento

Dissertaccedilatildeo apresentada na Faculdade de Direito da Universidade do Porto em 2016 ainda

ineacutedito pp 57 e ss 657 Num modelo estatutaacuterio a diferenciaccedilatildeo dos sujeitos faz-se em funccedilatildeo do estatuto que a

cada um se reconhece no interior de um determinado agrupamento social sem se atender agraves

caracteriacutesticas particulares que sustentavam ou atenuavam a respetiva idoneidade para uma

atuaccedilatildeo produtora de efeitos juriacutedicos

316

especializaccedilatildeo de funccedilotildees e de complementaridade das mesmas em prol do

bem comunitaacuterio

Na verdade de forma persistente ateacute ao seacuteculo passado a famiacutelia658

apresentava-se como uma entidade corporativa orientada segundo um modelo

orgacircnico para um fim unitaacuterio o sujeito inseria-se entatildeo nesta formaccedilatildeo

social como um elemento de um organismo659 em que as partes cooperavam

para o funcionamento do todo Nesta perspetiva colaborativa o fim unitaacuterio ndash

por isso comunitaacuterio ndash sobrepunha-se aos fins individuais de cada um dos

sujeitos que a compunham prevalecendo consequentemente sobre a vontade

dos sujeitos da relaccedilatildeo familiar A famiacutelia aparecia assim como uma entidade

unificadora de fim (ldquoZweckzusammenhangrdquo660) cujo bom funcionamento

demandava uma estrutura hierarquizada com a consequente afirmaccedilatildeo da

superioridade da posiccedilatildeo juriacutedica de um dos seus membros aquele que como

marido e pai era o ldquochefe de famiacuteliardquo Como exemplo paradigmaacutetico deste

modelo familiar aparece entatildeo o do casamento frequentemente denominado

atraveacutes da expressatildeo de origem inglesa ldquobreadwinner-housewife marriagerdquo

acolhido ainda entre noacutes na versatildeo original do Coacutedigo Civil de 1966661 que

se caracterizava pela outorga do poder marital e paternal ao cocircnjuge do sexo

masculino e pela atribuiccedilatildeo do governo domeacutestico ao cocircnjuge do sexo

feminino

III A estrutura intersubjetiva desnivelada que caracterizava

matricialmente as relaccedilotildees juriacutedico-familiares e a funcionalizaccedilatildeo do

exerciacutecio das posiccedilotildees juriacutedicas encabeccediladas por cada sujeito agrave satisfaccedilatildeo de

um interesse que natildeo concernia apenas nem necessariamente em primeira

658 O paradigma institucional que descrevemos em texto manifestava-se em particular na

famiacutelia matrimonial que se apresentava historicamente como o modelo legiacutetimo de formaccedilatildeo

da unidade familiar e que por isso tradicionalmente ocupou uma posiccedilatildeo nuclear no

tratamento juriacutedico da famiacutelia 659 A integraccedilatildeo comunitaacuteria de que falamos em texto natildeo importou no entanto a

personificaccedilatildeo da entidade familiar nem a perspetivaccedilatildeo dos membros da famiacutelia como

oacutergatildeos em sentido teacutecnico da mesma 660 As posiccedilotildees juriacutedico-familiares apareciam fundamentalmente como deveres morais

(ldquosittliche Pflichtenrdquo) entretecendo-se entre eles uma teia de ligaccedilotildees (ldquoZusammenhangrdquo)

finalisticamente orientada (ldquoZweckzusammenhangrdquo) ENNECCERUSNIPPERDEY

Lehrbuch des Buumlrgerlichen Rechts Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts Erster Band

15ordf ediccedilatildeo Tuumlbingen JCB Mohr 1959 p 455 661 Segundo o artordm 1674ordm do Coacutedigo Civil na versatildeo originaacuteria (constante do Decreto-lei nordm

47344 de 25 de novembro de 1966) o marido era erigido agrave categoria de chefe de famiacutelia e

nessa qualidade eram-lhe acometidas as funccedilotildees de representaccedilatildeo da famiacutelia e de decisatildeo em

todos os atos da vida conjugal em comum Nos termos do 1677ordm nordm 1 da mesma versatildeo agrave

mulher era atribuiacutedo o governo domeacutestico

317

linha ao respetivo titular insuflava aquelas posiccedilotildees de uma forte carga

deveral e revestia-as de um caraacuteter indisponiacutevel

As posiccedilotildees juriacutedicas familiares apresentavam-se por isso ndash e natildeo

apenas no domiacutenio da filiaccedilatildeo ndash como poderes-deveres ou como ldquodireitos de

fim altruiacutesticordquo662 cujo exerciacutecio devia ser iluminado mais pelo bem da

famiacutelia do que pelo respeito da vontade do correspondente titular Para tal

contribuiacutea decisivamente a especial natureza eacutetica do fim por elas servido

(ldquobesonderer sittlicher Zweckrdquo663) e a que o direito procurava emprestar nem

sempre com sucesso forccedila de vinculaccedilatildeo

IV A manutenccedilatildeo desta perspetiva acarretou repercussotildees vaacuterias no

plano juriacutedico quer quanto agrave natureza e forma de intervenccedilatildeo do direito na

regulaccedilatildeo da famiacutelia quer quanto agrave conformaccedilatildeo da condiccedilatildeo juriacutedica dos seus

membros

Assim por um lado naquele modelo organizativo da famiacutelia que

ditava uma aproximaccedilatildeo das relaccedilotildees familiares agraves relaccedilotildees disciplinadas pelo

direito puacuteblico se ancorava a natureza especial reconhecida secularmente ao

direito da famiacutelia dificultando a sua qualificaccedilatildeo no mare magnum do

direito664

Por outro lado o direito subjetivo como expressatildeo maacutexima da

soberana autodeterminaccedilatildeo da pessoa e como instrumento idoacuteneo agrave

prossecuccedilatildeo dos interesses do respetivo titular natildeo traduzia adequadamente a

natureza das posiccedilotildees juriacutedicas exercidas pelos sujeitos agrave luz deste modelo

familiar

V Este deacutefice de individualizaccedilatildeo subjetiva na atuaccedilatildeo dos membros

da famiacutelia concorria a par de outros fatores665 para a edificaccedilatildeo de um

enquadramento familiar desfavoraacutevel agrave autoconformaccedilatildeo dos efeitos juriacutedicos

das relaccedilotildees familiares mesmo que ela concernisse apenas agrave sua componente

patrimonial Ademais faltava um dos pressupostos necessaacuterios ao

662 LUIZ DA CUNHA GONCcedilALVES Tratado de Direito Civil em comentaacuterio ao Coacutedigo

Civil Portuguecircs Vol I Coimbra Coimbra Editora 1929 p 277 663 ENNECCERUSNIPPERDEY op cit p 454 664 A sua inclusatildeo no hemisfeacuterio do direito privado ou do direito puacuteblico foi objeto de um

prolongado debate ANTONIO CICU jurista italiano escrevendo no iniacutecio do seacuteculo XX fez

um estudo aprofundado sobre esta questatildeo pondo a nu que existia ldquouma afinidade entre direito

puacuteblico e direito da famiacutelia fundada sobre uma estrutura anaacuteloga das respetivas relaccedilotildees

juriacutedicasrdquo Il diritto di Famiglia Teoria Generale Roma Cittagrave di Castello coi tipi della Societagrave

laquoLeonardo da Vinciraquo 1914 p 315 665 Para mais desenvolvimentos veja-se o nosso Convenccedilotildees matrimoniais A autonomia na

conformaccedilatildeo dos efeitos patrimoniais do casamento cit pp 98 e ss

318

florescimento da atividade negocial que era o da afirmaccedilatildeo da igualdade das

pessoas que se perfilam como partes contratantes e que atraveacutes de acordo

configuram os efeitos juriacutedicos da relaccedilatildeo juriacutedica de que satildeo titulares Note-

se que natildeo se tratava de uma situaccedilatildeo ndash constatada noutros domiacutenios do direito

civil ndash de agrave igualdade formal natildeo corresponder uma igualdade material no

acircmbito familiar inexistia o reconhecimento ainda que meramente formal da

igualdade jaacute que a estrutura desnivelada caracterizava por natureza as

relaccedilotildees familiares A hostilidade ao fenoacutemeno negocial neste domiacutenio

manifestava-se em particular a partir do momento em que a relaccedilatildeo familiar

se constituiacutea assim se fazendo jus agrave imutabilidade e indisponibilidade dos

estados pessoais que a mesma originava

Acrescia que tambeacutem por causa do assinalado deacutefice666 se arredava a

possibilidade de demandar o cumprimento coercitivo do que era devido no

acircmbito de relaccedilotildees familiares afastando-se igualmente em muitas situaccedilotildees

o funcionamento da responsabilidade civil e consequentemente a

possibilidade de ressarcimento dos danos que desse incumprimento pudessem

advir

A uma famiacutelia institucional correspondia pois uma intervenccedilatildeo do

direito que se caracterizava pela especialidade das reaccedilotildees juriacutedicas que no

seu acircmbito podiam funcionar em muitos casos reaccedilotildees inexistentes ou pouco

mais que platoacutenicas proacuteximas das das ordens normativas que natildeo beneficiam

da imposiccedilatildeo coativa (muitas normas se apresentavam como proclamaccedilotildees de

modelos de conduta sem sanccedilatildeo) ou noutros casos quando elas existiam eram

reaccedilotildees especiais que passavam mais pela inibiccedilatildeo do exerciacutecio ou pela

extinccedilatildeo da titularidade de uma posiccedilatildeo familiar ndash como acontecia667

respetivamente com as inibiccedilotildees do exerciacutecio das responsabilidades parentais

para a violaccedilatildeo dos deveres paternais ou com o decretamento da separaccedilatildeo de

pessoas e bens ou divoacutercio para os incumprimentos dos deveres conjugais

666 A que se juntava a forte componente pessoal que tambeacutem afastava a suscetibilidade de

execuccedilatildeo especiacutefica 667 E ainda acontece (respetivamente nos termos dos arts 1913ordm e ss do Coacutedigo Civil ie

CC para a inibiccedilatildeo do exerciacutecio das responsabilidades parentais e nos termos do art 1781ordm

d) do mesmo Coacutedigo ainda que hoje no acircmbito do divoacutercio baseado na rutura do casamento

e sem emissatildeo de declaraccedilatildeo de culpa resultante da reforma introduzida pela Lei nordm 612008

de 31 de outubro) Mas agora a mudanccedila de perspetivaccedilatildeo da realidade familiar consente o

recurso a um arsenal de instrumentos juriacutedicos que natildeo satildeo exclusivos do direito da famiacutelia

319

III A CONSTITUCIONALIZACcedilAtildeO DO DIREITO DA FAMIacuteLIA E A

EMERGEcircNCIA DE CONFLITOS ENTRE DIREITOS (FUNDAMENTAIS)

INDIVIDUAIS DOS FAMILIARES

I O quadro juriacutedico que acabamos de descrever viria a sofrer uma

profunda alteraccedilatildeo na segunda metade do seacuteculo XX Para esse movimento

transformador muito contribuiu a produccedilatildeo de uma mudanccedila no plano faacutectico

que se tornou particularmente visiacutevel nesse periacuteodo A diversificaccedilatildeo das

formaccedilotildees familiares ndash resultante da conjugaccedilatildeo das tendecircncias de reduccedilatildeo do

nuacutemero de casamentos de multiplicaccedilatildeo das ruturas matrimonias de aumento

das uniotildees natildeo matrimonializadas e de dissociaccedilatildeo entre a filiaccedilatildeo e o

casamento ndash produziu um fenoacutemeno que se pode denominar como ldquoprimeira

desinstitucionalizaccedilatildeordquo da famiacutelia A esta transformaccedilatildeo seguiu-se depois

uma metamorfose no plano juriacutedico do dever ser concretizada em particular

no uacuteltimo terccedilo do seacuteculo passado com importantes reformas legislativas

incidentes sobre o direito da famiacutelia em vaacuterios ordenamentos entre eles no

ordenamento portuguecircs com as alteraccedilotildees introduzidas no plano da lei

ordinaacuteria na segunda metade da deacutecada de 70 sinteticamente referidas pelo

epiacuteteto ldquoreforma de 1977rdquo668 A este segundo movimento impulsionado pelo

primeiro e simultaneamente legitimador e ateacute impulsionador da multiplicaccedilatildeo

dos efeitos faacutecticos que o primeiro jaacute produzira se pode dar o nome de

ldquosegunda desinstitucionalizaccedilatildeordquo da famiacutelia669

II Ora o epicentro do abalo siacutesmico que provoca a derrocada no plano

juriacutedico do modelo familiar do periacuteodo anterior localiza-se no plano

constitucional670 Por consequecircncia a causa do processo que conduziu agraves

transformaccedilotildees em que se desdobra esta segunda desinstitucionalizaccedilatildeo de

natureza juriacutedica merece justamente tambeacutem o epiacuteteto de

ldquoconstitucionalizaccedilatildeo do direito da famiacuteliardquo traduzindo a influecircncia que na

668 A designaccedilatildeo fica a dever-se agrave magnitude das transformaccedilotildees operadas pelo Decreto-lei

49677 de 25 de novembro A transformaccedilatildeo do direito constituiacutedo comeccedilou antes no plano

legal com vaacuterios diplomas que foram emanados mesmo antes da entrada em vigor da

Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa nomeadamente quanto ao regime juriacutedico do divoacutercio

e da separaccedilatildeo de pessoas e bens (nomeadamente com o Decreto-lei 26175 de 27 de maio e

com o Decreto-lei 56176 de 17 de julho) 669 Inspiramo-nos aqui na ideia de ldquodouble deacutesinstitutionnalisationrdquo de que fala Louis

Roussel em La famille incertaine Paris Editions Odile Jacob 1989 pp 90 e ss 670 Para um estudo da conexatildeo entre a Constituiccedilatildeo e a Famiacutelia no seacuteculo XX com

consideraccedilotildees sobre a Constituiccedilatildeo de 1933 e a de 1976 vide JORGE MIRANDA Sobre a

relevacircncia constitucional da Famiacutelia in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do

Porto Vol XI ano 2014 pp 78 e ss

320

conformaccedilatildeo das soluccedilotildees de direito (ordinaacuterio) da famiacutelia exerceram as

normas e princiacutepios constitucionalmente consagrados entre noacutes na

Constituiccedilatildeo de 1976 A referida influecircncia manifestou-se natildeo soacute ao niacutevel do

processo de reformulaccedilatildeo legislativa do direito positivo mas tambeacutem ao niacutevel

da aplicaccedilatildeo do direito anteriormente constituiacutedo que atraveacutes da operaccedilatildeo de

interpretaccedilatildeo671 no quadro da nova moldura constitucional passou a merecer

uma leitura renovada

Cumpre aliaacutes recordar que a marca que o direito constitucional

imprimiu na evoluccedilatildeo do direito da famiacutelia nas uacuteltimas deacutecadas natildeo eacute

resultado de um fenoacutemeno que se tenha produzido exclusivamente nesse

ramo do direito tendo o mesmo ocorrido em todo o hemisfeacuterio do direito civil

Na verdade tem sido assinalada a transversalidade do processo de

ldquoconstitucionalizaccedilatildeo do direito civilrdquo672 dadas as implicaccedilotildees decorrentes da

aplicaccedilatildeo no acircmbito das relaccedilotildees juriacutedico-privadas de normas e princiacutepios

constitucionais673 A esse propoacutesito avulta a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da

igualdade nas suas vertentes formal e material por forccedila da sua proclamaccedilatildeo

geral no art 13ordm e da consagraccedilatildeo dos seus vaacuterios corolaacuterios de que o art 36ordm

671 Em que para aleacutem do recurso a outros instrumentos da hermenecircutica juriacutedica avulta o

princiacutepio da interpretaccedilatildeo conforme agrave Constituiccedilatildeo Sobre a interpretaccedilatildeo conforme agrave

Constituiccedilatildeo vide GOMES CANOTILHO Direito constitucional e teoria da constituiccedilatildeo

Reimpressatildeo da 7ordf ed Coimbra Almedina 2013 pp 1226 e ss Referindo-se agrave importacircncia

da aplicaccedilatildeo na aacuterea do direito da famiacutelia da doutrina da ldquointerpretaccedilatildeo conforme agrave

Constituiccedilatildeordquo a propoacutesito do novo texto constitucional de 1976 PEREIRA COELHO in

Casamento e famiacutelia no Direito Portuguecircs in Temas de Direito da Famiacutelia Ciclo de

Conferecircncias no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados Coimbra Livraria

Almedina 1986 pp 6 e 7 672 A expressatildeo eacute usada por J J GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA Constituiccedilatildeo

da Repuacuteblica Portuguesa Anotada Vol I artordm 1ordm a 107ordm 4ordf ediccedilatildeo revista Coimbra

Coimbra Editora 2007 e reimpressatildeo em 2014 anotaccedilatildeo ao artordm 13ordm p 349 Para um estudo

de uma manifestaccedilatildeo da constitucionalizaccedilatildeo no direito civil veja-se NUNO PINTO DE

OLIVEIRA O direito geral de personalidade e a ldquosoluccedilatildeo do dissentimentordquo Ensaio sobre um

caso de ldquoconstitucionalizaccedilatildeordquo do direito civil Centro de Direito Biomeacutedico da Faculdade de

Direito da Universidade de Coimbra Coimbra Coimbra Editora 2002 673 Na concretizaccedilatildeo deste processo de constitucionalizaccedilatildeo assumiram protagonismo os

mecanismos da ldquoeficaacutecia externa dos direitos fundamentaisrdquo e da sua aplicaccedilatildeo horizontal

direta nas relaccedilotildees juriacutedicas entre particulares com traduccedilatildeo no regime previsto entre noacutes no

artordm 18ordm da CRP Sobre esta problemaacutetica vide CLAUS-WILHELM CANARIS

Grundrechte und Privatrecht in AcP 1984 Heft 3 pp 201 e ss e ldquoDireitos fundamentais e

Direito Privadordquo traduccedilatildeo de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto Almedina 2012 e

entre noacutes Joseacute Carlos VIEIRA DE ANDRADE Os direitos fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 5ordf ediccedilatildeo Coimbra Almedina 2012 pp 229 e ss

321

nordm 3 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa (doravante CRP) quanto ao

acircmbito conjugal eacute um dos vaacuterios exemplos

Note-se que as repercussotildees do assinalado movimento de

constitucionalizaccedilatildeo em geral e da irradiaccedilatildeo do princiacutepio da igualdade para

as relaccedilotildees entre particulares em especial natildeo foram idecircnticas em todos os

setores do direito civil Na verdade enquanto nos outros ramos desse domiacutenio

do direito privado a interferecircncia das diretrizes constitucionais acarretou uma

limitaccedilatildeo do poder de autodeterminaccedilatildeo dos particulares ndash ainda que

justificada pela finalidade uacuteltima de se servir a proacutepria autonomia674 ndash no

acircmbito do direito da famiacutelia como veremos aquela influecircncia importou um

alargamento desse poder com a (decorrente e causante) erosatildeo do caraacuteter

institucional da realidade familiar de que falaacutemos na secccedilatildeo anterior

imprimindo uma nova marca estruturante a todo direito da famiacutelia e dentro

dele em especial ao direito matrimonial

III No acircmbito familiar a assinalada ldquoconstitucionalizaccedilatildeordquo adveacutem

tambeacutem em especial de uma particular transformaccedilatildeo ocorrida no plano

constitucional e que vai importar a deslocaccedilatildeo do ponto de equiliacutebrio entre os

interesses individuais e os interesses comunitaacuterios presentes no referido

domiacutenio Na verdade o texto constitucional de 1976 acolhe uma ldquoconceccedilatildeo

personalista da famiacutelia e do casamentordquo como decorrecircncia aliaacutes da

proclamaccedilatildeo dos princiacutepios basilares da dignidade da pessoa humana no artordm

1 e do ldquorespeitordquo e ldquogarantia da efetivaccedilatildeo dos direitos e liberdade

fundamentaisrdquo previstos no artordm 2ordm da CRP675

Natildeo obstante a persistecircncia da tutela da dimensatildeo institucional da

famiacutelia enquanto ldquoelemento fundamental da sociedaderdquo como se lecirc no artordm 67ordm

674 Explicando ateacute a autonomizaccedilatildeo de certos ramos de feiccedilatildeo finalista e protecionista de

grupos delimitados de pessoas carecidas de tutela especial como aconteceu com o direito do

trabalho e com o direito do consumo Sobre a autonomizaccedilatildeo e a evoluccedilatildeo do direito do

trabalho ldquosob o desiacutegniordquo da ldquoprotecccedilatildeo do trabalhadorrdquo vide MARIA DO ROSAacuteRIO

PALMA RAMALHO Tratado de Direito do Trabalho Parte I ndash Dogmaacutetica Geral 3ordf ediccedilatildeo

Coimbra Almedina 2012 pp 52 a 61 Sobre o processo de autonomizaccedilatildeo do direito do

consumo em Portugal sobre a pertinecircncia dessa autonomizaccedilatildeo e as razotildees que lhe subjazem

vide Antoacutenio PINTO MONTEIRO Sobre o direito do consumidor em Portugal in Estudos de

Direito do Consumidor nordm 4 Coimbra 2002 675 JORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS Constituiccedilatildeo Portuguesa Anotada Tomo I

Introduccedilatildeo Geral Preacircmbulo Artigos 1ordm a 79ordm 2ordf ediccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2010

anotaccedilatildeo ao artordm 36ordm p 807

322

da CRP676 o acolhimento de uma tal conceccedilatildeo677 importa como veremos a

acentuaccedilatildeo da importacircncia reconhecida agrave dimensatildeo individual-subjectiva da

famiacutelia e consequentemente dos direitos de que satildeo titulares as pessoas que a

compotildeem Na verdade a famiacutelia e o casamento passam a ser entendidos como

um meio de concretizaccedilatildeo do desenvolvimento pessoal dos cocircnjuges como eacute

reconhecido aliaacutes no referido preceito constitucional678

Este novo enquadramento constitucional consente ndash promovendo ateacute

ndash uma perspetivaccedilatildeo mais individualista da famiacutelia como passou a estar

evidenciado na jurisprudecircncia do Tribunal Constitucional A tiacutetulo meramente

ilustrativo do que acaba de ser dito pode considerar-se o teor do Acoacuterdatildeo

desse Tribunal nordm 69098 de 15 de dezembro de 1998679 Nesta decisatildeo

Tribunal Constitucional destaca que agrave luz dos dados fornecidos pelo novo

texto constitucional a ordem juriacutedica natildeo pode desatender a transformaccedilatildeo da

conceccedilatildeo da relaccedilatildeo familiar matrimonial operada na sociedade e

constitucionalmente autorizada Nesse sentido na operaccedilatildeo de apreciaccedilatildeo do

direito ordinaacuterio reformado680 o referido Tribunal afirma que tem que se ter

676 A famiacutelia e o casamento continuam a merecer proteccedilatildeo constitucional sob a forma de

garantias institucionais GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica Portuguesa Anotada Vol I cit anotaccedilatildeo ao artordm 36ordm p 561 e ao artordm 67ordm p 856

No mesmo sentido apesar das ldquodisposiccedilotildees algo nebulosas da Constituiccedilatildeordquo PEREIRA

COELHO in Casamento e famiacutelia no Direito Portuguecircs cit pp 3 e 5 a 7 677 A conceccedilatildeo de famiacutelia acolhida no texto constitucional de 1976 eacute muito distinta da que

resultava da Constituiccedilatildeo de 1933 em que se enfatizava a dimensatildeo objetiva ao optar-se por

no corpo do artigo em que se acolhia a tutela constitucional da realidade familiar (artordm 13ordm)

se pocircr a toacutenica nos modos (taxativos) de constituiccedilatildeo da famiacutelia (ldquoa constituiccedilatildeo da famiacutelia

assenta no casamento e filiaccedilatildeo legiacutetimahelliprdquo) sem traccedilo revelador da correspondente

imputaccedilatildeo subjetiva dos mesmos na esfera juriacutedica das pessoas a que aquela constituiccedilatildeo [da

famiacutelia] respeitava e em que se perspetivava a famiacutelia tal como as freguesias os concelhos e

as corporaccedilotildees como ldquoorganismos componentes da Naccedilatildeordquo 678 GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa

Anotada Vol I cit anotaccedilatildeo ao artordm 36ordm e ao artordm 67ordm 679 In httpwwwtribunalconstitucionalpttcacordaos19980690html acedido pela uacuteltima

vez no dia 15 de outubro de 2016 como aliaacutes todos os documentos consultados na internet

referidos neste trabalho 680 A citaccedilatildeo feita em texto integra a linha argumentativa apresentada pelo Tribunal

Constitucional no Acoacuterdatildeo referido para defender a necessidade decorrente da CRP de no

plano de direito ordinaacuterio ser dada relevacircncia agrave mera separaccedilatildeo de facto na definiccedilatildeo das

pessoas com direito a constituiacuterem-se como assistentes em processo penal O Tribunal

Constitucional julgou por isso inconstitucional por violaccedilatildeo do disposto no artigo 20ordm nordm 1

conjugado com o artigo 67ordm nordm 1 a norma constante do artigo 68ordm nordm 1 aliacutenea c) do Coacutedigo

de Processo Penal na interpretaccedilatildeo que dava acolhimento no exerciacutecio daquele direito agrave

323

em atenccedilatildeo que casamento deixou ldquode ser encarado como uma instituiccedilatildeo

acima dos proacuteprios cocircnjuges para assumir as caracteriacutesticas de uma instituiccedilatildeo

que apenas permanece enquanto ambos de forma livre a reconhecerem como

fonte de afeto e realizaccedilatildeo pessoalrdquo Sintomaticamente o direito ao divoacutercio

merecedor de tutela constitucional passa a ser protegido no plano ordinaacuterio de

forma universal para todos os cocircnjuges em todos os casamentos embora

sujeito naturalmente a certos requisitos que vecircm diminuindo em nuacutemero e

densidade ao longo do tempo681

Ora no difiacutecil jogo de articulaccedilatildeo entre o interesse comunitaacuterio da

famiacutelia e o interesse individual de cada um dos seus membros daacute-se entatildeo

uma oscilaccedilatildeo nos pontos de equiliacutebrio para que o ordenamento juriacutedico

aponta Se no passado eles se situavam numa localizaccedilatildeo mais proacutexima do

polo comunitaacuterio com a Constituiccedilatildeo de 1976 deslocam-se para um ponto com

mais proximidade do polo individualista Natildeo eacute um movimento de uma

inversatildeo absoluta em termos de polarizaccedilatildeo Eacute no entanto uma mudanccedila

acentuada que vai produzir alteraccedilotildees nas soluccedilotildees de direito da famiacutelia

IV Acresce que a tutela da pessoa reclama como imperativo ocircntico a

tutela da liberdade nas suas muacuteltiplas expressotildees nomeadamente a liberdade

de atuaccedilatildeo como liberdade de realizaccedilatildeo da personalidade ndash necessariamente

individual e uacutenica Nesse sentido o direito ao desenvolvimento da

personalidade consagrado no artordm 26ordm eacute aliaacutes particularmente fecundo de

significado para tutela da esfera nuclear das pessoas Estas como seres

dotados de poder de autodeterminaccedilatildeo gozam de liberdade de definiccedilatildeo do

projeto biograacutefico que pretendem adotar de liberdade de accedilatildeo para

concretizaccedilatildeo das decisotildees em que esse projeto se desdobre e

consequentemente de liberdade de realizaccedilatildeo da sua personalidade682 sendo

prevalecircncia absoluta do cocircnjuge natildeo separado judicialmente de pessoas e bens ainda que

separado de facto com a consequente exclusatildeo da possibilidade do exerciacutecio desse direito por

outras pessoas (os ascendentes do ofendido falecido) 681 Para uma exposiccedilatildeo da evoluccedilatildeo do regime juriacutedico do divoacutercio em Portugal vide PEREIRA

COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA Curso de direito da famiacutelia Vol I - Introduccedilatildeo direito

matrimonial 5ordf ed Coimbra com a colaboraccedilatildeo de Rui Moura Ramos Coimbra Ediccedilotildees da

Universidade de Coimbra 2016 pp 684 a 690 682 Na esteira da doutrina e da jurisprudecircncia alematilde desenvolvida por referecircncia ao artordm 2ordm

nordm 1 da Lei Fundamental alematilde aceita-se que tambeacutem entre noacutes e apesar das diferenccedilas em

relaccedilatildeo agrave previsatildeo do mesmo direito no nosso artordm 26ordm a tutela do direito ao desenvolvimento

da personalidade abrange a proteccedilatildeo quer de um direito geral de personalidade quer de uma

da liberdade geral de accedilatildeo Assim agrave luz desse entendimento servindo-nos das palavras de

GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA a tutela constitucional daquele direito inclui a

proteccedilatildeo da ldquoformaccedilatildeo livre da personalidade sem planificaccedilatildeo ou imposiccedilatildeo estatal de

modelos de personalidaderdquo (i) a proteccedilatildeo da ldquoliberdade de acccedilatildeo de acordo com o projecto de

324

a famiacutelia um espaccedilo privilegiado para tal concretizaccedilatildeo Esta liberdade revela-

se nesse acircmbito logo a propoacutesito da constituiccedilatildeo da famiacutelia683 manifestando-

se tambeacutem na vigecircncia das relaccedilotildees familiares e mesmo tendo por referecircncia

o cenaacuterio da sua extinccedilatildeo684

V A visatildeo personalista da famiacutelia eacute aliaacutes uma expressatildeo especial de

uma preocupaccedilatildeo maior ndash no sentido de mais ampla porque geral e nessa

medida transversal a todo o ordenamento juriacutedico685 ndash direcionada a niacutevel

constitucional para a tutela da pessoa e dos muacuteltiplos bens (de personalidade)

em que ela se desdobra como concretizaccedilatildeo do princiacutepio fundamental de

vida e a vocaccedilatildeo e capacidades proacutepriasrdquo (ii) e ainda a proteccedilatildeo da ldquointegridade da pessoardquo

visando fundamentalmente ldquoa garantia da esfera juriacutedico-pessoal no processo de

desenvolvimentordquo (iii) Como os mesmos Autores evidenciam esta proteccedilatildeo natildeo se esgota

numa conceccedilatildeo estaacutetica da personalidade antes contendo uma vertente dinacircmica

correspondendo a uma ldquolaquopessoa em devirraquordquo com as potencialidade de enriquecimento da ldquosua

dignidade em termos de capacidade de prestaccedilatildeo no plano pessoal social e culturalrdquo

Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa Anotada Vol I cit anotaccedilatildeo ao artordm 26ordm pp 463 e

464 (o itaacutelico encontra-se no original) 683 Destacando-se a abertura constitucional ao reconhecimento juriacutedico (ainda que

diferenciado) de novas opccedilotildees (manifestaccedilotildees) de vida de natureza familiar (ou parafamiliar)

consentida pela inexistecircncia no texto constitucional de um elenco fechado de fontes de

relaccedilotildees familiares (e de relaccedilotildees parafamiliares) A questatildeo tem sido discutida sobretudo a

propoacutesito da abertura constitucional de uma tutela direta agrave uniatildeo de facto Abertura que alguns

Autores extraem precisamente da previsatildeo do direito a constituir famiacutelia incluiacutedo no nordm 1 do

artordm 36ordm e outros entendem dever encontrar-se contida no acircmbito normativo do direito ao

desenvolvimento da personalidade consagrado no artordm 26ordm ambos da Constituiccedilatildeo A este

propoacutesito vide PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA Curso de direito da famiacutelia cit

pp 60 a 64 684 Pensamos aqui em particular na extinccedilatildeo da relaccedilatildeo matrimonial jaacute que a possibilidade

de pocircr fim agrave relaccedilatildeo juriacutedico-familiar por vontade de um ou de ambos os sujeitos da relaccedilatildeo

natildeo eacute um atributo comum agrave generalidade das relaccedilotildees dessa espeacutecie Assim o parentesco natildeo

cessa em princiacutepio salvo o decretamento da adoccedilatildeo que produz os efeitos previstos no artordm

1986ordm nordm 1 do CC nomeadamente a extinccedilatildeo dos viacutenculos familiares com a famiacutelia

bioloacutegica (parentesco) A afinidade insuscetiacutevel de cessaccedilatildeo ateacute agrave entrada em vigor da Lei nordm

612008 de 31 de outubro hoje pode cessar ainda que apenas por dissoluccedilatildeo por divoacutercio do

casamento que lhe serviu de base Ressalvadas as hipoacuteteses de revisatildeo de sentenccedila previstas

no art 1990ordm do CC e a impugnaccedilatildeo da sentenccedila atraveacutes de recurso extraordinaacuterio de revisatildeo

previsto na lei processual civil o viacutenculo adotivo uma vez constituiacutedo tambeacutem natildeo se

extinguiraacute sendo irrevogaacutevel ainda que adotante e adotado acordassem nesse sentido (art

1989ordm do CC) 685 A evoluccedilatildeo ocorrida no acircmbito do regime da responsabilidade civil e a intervenccedilatildeo pro

damnato que assim vem verificando eacute um dos exemplos desta preocupaccedilatildeo crescente do

direito com a tutela da pessoa

325

respeito pela dignidade da pessoa (artordm 1 da CRP) Tambeacutem na aacuterea familiar

a pessoa ndash cada uma das pessoas que integram a famiacutelia ndash conquista relevacircncia

Eacute que pela inserccedilatildeo numa relaccedilatildeo juriacutedico-familiar aos respetivos sujeitos e

no caso da famiacutelia matrimonializada aos cocircnjuges natildeo deixa de ser

reconhecida a titularidade de direitos e nomeadamente de direitos

fundamentais e direitos de personalidade Naturalmente que do teor do

conteuacutedo deveral a que os familiares ficam vinculados ndash vertido por exemplo

no acircmbito do casamento nos deveres conjugais emergentes da assunccedilatildeo do

compromisso matrimonial (art 1672ordm do Coacutedigo Civil doravante CC686) ndash

podem derivar limitaccedilotildees especiacuteficas ao exerciacutecio desses direitos e ao acircmbito

de concretizaccedilatildeo da sua liberdade individual O exemplo paradigmaacutetico eacute

constituiacutedo pelas restriccedilotildees agrave liberdade sexual de cada um dos cocircnjuges

decorrentes da assunccedilatildeo por eles do dever de coabitaccedilatildeo ndash em virtude do

deacutebito conjugal que nele se compreende ndash e do dever de fidelidade687 Natildeo

obstante isso o princiacutepio fundamental que deve iluminar esta mateacuteria passou

a ser o da incolumidade da esfera juriacutedica dos sujeitos apesar de se

encontrarem no acircmbito de uma relaccedilatildeo familiar

VI Ora como decorrecircncia da ldquoconstitucionalizaccedilatildeo do direito da

famiacuteliardquo e da conceccedilatildeo personalista de teor individualista da famiacutelia acolhida

no texto constitucional o contexto familiar surge nas uacuteltimas deacutecadas como

um espaccedilo de exerciacutecio de liberdade e de afirmaccedilatildeo e concretizaccedilatildeo de direitos

dos seus membros ndash sejam direitos fundamentais sejam direitos de

personalidade688

A referecircncia agrave ldquoecircnfase nos direitos individuaisrdquo689 agrave promoccedilatildeo de uma

ldquocultura dos direitosrdquo690 ndash muitas vezes divorciados de deveres ndash satildeo

686 Sobre o conteuacutedo dos deveres conjugais vide PEREIRA COELHO e GUILHERME DE

OLIVEIRA Curso de direito da famiacutelia cit pp 406 a 425 687 Quanto aos deveres conjugais sexuais vide JORGE DUARTE PINHEIRO O Nuacutecleo Intangiacutevel

da Comunhatildeo Conjugal ndash Os deveres conjugais sexuais Coimbra Almedina 2004 688 Muitos deles simultaneamente direitos fundamentais e direitos de personalidade Sobre a

distinccedilatildeo destes dois conceitos vide PAULO MOTA PINTO O Direito ao livre

desenvolvimento da personalidade in Portugal - Brasil Ano 2000 tema direito Congresso

Portugal-Brasil Ano 2000 Studia Iuridica 40 Colloquia 2 Coimbra Coimbra Editora 1999

pp 225 e ss 689 SANFORD N KATZ autor americano identifica ldquothe emphasis on individual rightsrdquo

como a linha orientadora que descreve a evoluccedilatildeo do direito matrimonial contemporacircneo

Family Law in America 2ordf ed Oxford Oxford University Press 2015 p 84 690 Referindo-se a esta ldquoculture of rightsrdquo no direito da famiacutelia ALISON DIDUCK In What

is family law for in Current Law Problems Volume 64 2011 pp 293 e ss

326

expressotildees usadas pela doutrina portuguesa691 e estrangeira para explicar a

transformaccedilatildeo do direito da famiacutelia contemporacircneo

VII Como consequecircncia deste movimento de afirmaccedilatildeo subjetiva as

relaccedilotildees familiares aparecem perspetivadas com frequecircncia no plano

juriacutedico como um campo de tensatildeo de direitos nomeadamente de direitos

fundamentais de que os seus membros satildeo titulares (ldquoSpannungsfeld der

Grundrechterdquo)692

A jurisprudecircncia portuguesa eacute rica em exemplos ilustrativos deste

combate travado no contexto das relaccedilotildees familiares ou a propoacutesito da sua

constituiccedilatildeo Pensemos por um lado na discussatildeo a propoacutesito da fixaccedilatildeo de

prazos para a propositura de accedilotildees de filiaccedilatildeo693 ou ainda a querela suscitada

pelas consequecircncias que devem ser associadas agrave recusa da realizaccedilatildeo de

exames cientiacuteficos por parte dos investigados no acircmbito de accedilotildees relativas agrave

filiaccedilatildeo694 Em qualquer dos casos em abono do direito a conhecer a

identidade do pai e da matildee e do direito a constituir os correspondentes laccedilos

juriacutedicos de paternidade e maternidade convocam-se o direito a constituir

famiacutelia (artordm 36ordm nordm 1) o direito agrave identidade pessoal e direito agrave integridade

pessoal (artsordm 25ordm e 26ordm) e o direito ao desenvolvimento da personalidade

(plasmado tambeacutem no artordm 26ordm) ndash direitos que no seu exerciacutecio colidem com

o direito do investigado agrave reserva de intimidade da vida privada e familiar (artordm

26ordm nordm 1) (na primeira questatildeo) e tambeacutem com os seus direitos agrave integridade

691 Nesse sentido veja-se entre noacutes o DIOGO LEITE CAMPOS afirmando que a introduccedilatildeo

dos direitos da pessoa no acircmbito familiar como marco desencadeador da transformaccedilatildeo do

direito da famiacutelia atual In As relaccedilotildees de Associaccedilatildeo O Direto sem direitos Coimbra

Almedina 2011 pp 29 e 41-42 692 Empregamos aqui uma expressatildeo usada na doutrina alematilde no acircmbito do direito da

famiacutelia por exemplo por JOACHIM GERNHUBER e DAGMAR COESTER-WALTJEN

Familienrecht fortgefuumlhrt von Dagmar Coester-Waltjen 6 voumlllig neu bearb Aufl Muumlnchen

CH Beck 2010 p 31 693 A tiacutetulo meramente ilustrativo da abundante jurisprudecircncia sobre a mateacuteria considerem-

se quanto ao Tribunal Constitucional o Acoacuterdatildeo nordm 3022015 de 2 de junho o Acoacuterdatildeo nordm

7042014 de 28 de outubro o Acoacuterdatildeo nordm 5472014 de 15 de julho o Acoacuterdatildeo nordm 4412013

15 de julho e o Acoacuterdatildeo 4012011 de 22 de setembro (todos disponiacuteveis no endereccedilo

wwwtribunalconstitucionalpt) e quanto ao Supremo Tribunal de Justiccedila o Acoacuterdatildeo de 17 de

marccedilo de 2016 o Acoacuterdatildeo de 17 de novembro de 2015 o Acoacuterdatildeo de 22 de outubro de 2015

o Acoacuterdatildeo de 28 de maio de 2015 e o Acoacuterdatildeo de 14 de janeiro de 2014 (todos disponiacuteveis no

endereccedilo wwwdgsipt) 694 Quanto a esta problemaacutetica vejam-se os Acoacuterdatildeo dos Supremo Tribunal de Justiccedila de 24

de maio de 2012 e de 21 de fevereiro de 2008 e os Acoacuterdatildeos da Relaccedilatildeo do Porto de 24 de

fevereiro de 2015 de 2 de julho de 2013 de 27 de novembro de 2012 de 15 de marccedilo de 2012

(todos disponiacuteveis no endereccedilo wwwdgsipt)

327

fiacutesica e moral (art 25ordm) e agrave liberdade (art 27ordm todos da CRP) nas duas

questotildees assinaladas695

VIII A afirmaccedilatildeo subjetiva no seio familiar propicia um movimento

de aproximaccedilatildeo das posiccedilotildees juriacutedicas familiares ao modelo do direito

(subjetivo) que no entanto natildeo se produz com idecircntica intensidade nas vaacuterias

espeacutecies das relaccedilotildees familiares Na verdade importa operar a distinccedilatildeo entre

relaccedilotildees em que predomina a igualdade e a liberdade em que se daraacute um

funcionamento amplo da autonomia privada atraveacutes do exerciacutecio de direito

subjetivo e do funcionamento da liberdade negocial e por outro lado as

relaccedilotildees em que a igualdade se encontra limitada e em que por isso ainda

pontificam as posiccedilotildees juriacutedicas funcionalizadas (os poderes-deveres)

695 A perspetivaccedilatildeo das relaccedilotildees familiares (constituiacutedas e a constituir) como um espaccedilo de

colisatildeo de direitos Estaacute presente na decisatildeo 1 BvR 330913 de 19 de abril de 2016 do Tribunal

Constitucional alematildeo (Bundesverfassungsgericht) Nesta decisatildeo o primeiro Senado do

referido Tribunal foi chamado a pronunciar-se sobre a eventual inconstitucionalidade da

decisatildeo do Oberlandesgericht de Hamm no sentido de natildeo aplicar o sect 1598a do BGB relativo

agrave recusa de realizaccedilatildeo de exames cientiacuteficos no acircmbito de uma accedilatildeo de impugnaccedilatildeo de

paternidade a uma accedilatildeo de investigaccedilatildeo da paternidade A questatildeo a responder era se da

interpretaccedilatildeo da natildeo extensatildeo da norma a uma hipoacutetese desta uacuteltima espeacutecie natildeo resultava uma

desconformidade agrave Lei Fundamental alematilde por natildeo se estar a proteger o direito

constitucionalmente tutelado ao direito de uma pessoa ao conhecimento das suas origens

geneacuteticas (Recht auf Kenntnis der eigenen Abstammung) O Tribunal Constitucional alematildeo

entendeu que natildeo considerando que esse direito natildeo eacute absoluto e natildeo pode ser atendido

isoladamente antes devendo ser ponderado em articulaccedilatildeo com os direitos de outras pessoas

Para o sentido da decisatildeo foi determinante a diversidade de pessoas titulares de direitos que

eram atingidos pela aplicaccedilatildeo da soluccedilatildeo normativa ao caso nela natildeo previsto como o Tribunal

teve ocasiatildeo de elencar (ldquoIm Falle einer gegen den Willen des vermeintlich leiblichen Vaters

durchgefuumlhrten Abstammungsklaumlrung sind mehrere Grundrechtstraumlger in unterschiedlichem

Maszlige betroffenrdquo) Essa diversidade impedia que se entendesse que a falta de aplicaccedilatildeo da

norma prevista para outra situaccedilatildeo no sect1598a do BGB consubstanciava uma

inconstitucionalidade O Tribunal natildeo nega que se possa adotar uma soluccedilatildeo semelhante para

o caso natildeo regulado mas entende que caberaacute ao legislador fazer a apreciaccedilatildeo dos interesses

envolvidos e decidir (ou natildeo) introduzir uma alteraccedilatildeo no direito positivo (ldquoBei der

Ausgestaltung privater Rechtsbeziehungen kommen dem Gesetzgeber jedoch grundsaumltzlich

weite Einschaumltzungs- Wertungs- und Gestaltungsspielraumlume zurdquo) A decisatildeo pode ser

consultada no endereccedilo

httpswwwbundesverfassungsgerichtdeSharedDocsEntscheidungenDE201604rs20160

419_1bvr330913html

328

Podemos socorrer-nos das expressotildees siacutentese que denominam aquelas

relaccedilotildees respetivamente como relaccedilotildees horizontais e relaccedilotildees verticais696

De qualquer modo tambeacutem no acircmbito das uacuteltimas se operam

transformaccedilotildees ao reconhecer-se um espaccedilo crescente para o exerciacutecio da

autonomia dos sujeitos que as encabeccedilam Assim no acircmbito das relaccedilotildees

familiares com crianccedilas e jovens reconhecem-se oportunidades muacuteltiplas para

a autodeterminaccedilatildeo individual seja atraveacutes da atribuiccedilatildeo do direito de audiccedilatildeo

ou participaccedilatildeo no processo de tomada de uma decisatildeo por uma autoridade

puacuteblica697 ou mesmo atraveacutes do reconhecimento em aacutereas mais numerosas

do direito de atuaccedilatildeo juridicamente vinculante por ato pessoal e autoacutenomo

antes do niacutevel etaacuterio em que se atinge a maioridade698 A esse propoacutesito

deram-se passos importantes nas reformas produzidas em setembro de 2015

no direito das crianccedilas e dos jovens reconhecendo-se-lhe importantes

faculdades de atuaccedilatildeo e autodeterminaccedilatildeo699

IX Do mesmo passo e como consequecircncia da emergecircncia do novo

modelo subjetivo no acircmbito familiar constata-se a multiplicaccedilatildeo de direitos

de informaccedilatildeo como marca do direito da famiacutelia atual tambeacutem denominado

696 Estas expressotildees satildeo usadas por ENCARNA ROCA I TRIAS in Libertad y Familia Valencia

Tirant Lo Blanch 2014 p 25 Com uma biparticcedilatildeo idecircntica DIOGO LEITE CAMPOS refere-se

a ldquoduas zonasrdquo no direito da famiacutelia destacando aquela ldquoem que aparecem demasiadamente

visiacuteveis as diferenccedilas de poder entre os sujeitosrdquo e que o Autor exemplifica com o direito da

filiaccedilatildeo e com o direito dos menores In As relaccedilotildees de Associaccedilatildeo cit pp 42 e ss 697 A tiacutetulo exemplificativo veja-se no acircmbito do processo de adoccedilatildeo a previsatildeo do princiacutepio

da participaccedilatildeo (art 3ordm al d)) e a exigecircncia de audiccedilatildeo da crianccedila a adotar mesmo que ela

tenha menos de 12 anos (artordm 54ordm nordm 1 c) ambos do Regime Juriacutedico do Processo de Adoccedilatildeo

aprovado pela Lei nordm 1432015 de 8 de setembro) O princiacutepio da ldquoaudiccedilatildeo obrigatoacuteria e

participaccedilatildeo estaacute tambeacutem consagrado no artordm 4ordm al j) e no art 84ordm da Lei de Proteccedilatildeo de

Crianccedilas e Jovens e Perigo reformada e republicada pela Lei nordm 14799 de 1 de setembro

Em qualquer caso deve aplicar-se o regime previsto nos artordm 4ordm nordm 1 al c) e art 5ordm do

Regime Geral do Processo Tutelar Ciacutevel aprovado pela Lei nordm 1412015 de 8 de setembro 698 Trata-se de um ldquomodelo gradualistardquo que substituiu o anterior modelo de ldquoincapacidade

geneacutericardquo das crianccedilas Vide CLARA SOTTOMAYOR O direito das Crianccedilas ndash um novo ramo de

direito in Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 2014 pp 58 e ss 699 O Regime Geral do Processo Tutelar Ciacutevel aprovado pela Lei nordm 1412015 de 8 de

setembro prevecirc no art 18ordm a obrigatoriedade de nomeaccedilatildeo de advogado agrave crianccedila quando

os seus interesses e os dos seus pais representante legal ou de quem tenha a guarda de facto

sejam conflituantes e ainda quando a crianccedila com maturidade adequada o solicitar ao tribunal

No art 17ordm nordm 1 do mesmo diploma eacute reconhecida iniciativa processual no acircmbito dos

processos tutelares ciacuteveis agrave crianccedila com idade superior a 12 anos a par dos seus ascendentes

aos irmatildeos e ao representante legal da crianccedila

329

poacutes-moderno700 Veja-se no recentemente modificado Regime Juriacutedico do

Processo de Adoccedilatildeo (Lei 1432015 de 8 de setembro) a previsatildeo no seu artordm

6ordm do direito de acesso ao conhecimento de informaccedilatildeo sobre as origens

bioloacutegicas por parte do adotado com idade igual ou superior a 16 anos que

enquanto natildeo for maior careceraacute para o efeito do consentimento dos pais

adotivos ou dos representantes legais701 Estes deveres de informaccedilatildeo tecircm

vindo tambeacutem a ser desentranhados do teor deveral do casamento Para a sua

fundamentaccedilatildeo entre noacutes podem ser chamados entre outros argumentos a

vinculaccedilatildeo dos cocircnjuges aos deveres de respeito e cooperaccedilatildeo Noutros

ordenamentos a busca de um fundamento para a sua afirmaccedilatildeo estaacute na origem

da discussatildeo da introduccedilatildeo de alteraccedilotildees do direito constituiacutedo para nele se

incluir a previsatildeo normativa de especiacuteficos deveres de informaccedilatildeo702

X Por outro lado como consequecircncia da perspetivaccedilatildeo personalista da

famiacutelia autonomizam-se novos direitos de natureza especificamente familiar

como seja a afirmaccedilatildeo do direito de convivecircncia com a crianccedila por parte de

um universo de pessoas que por forccedila da intervenccedilatildeo judicial vai

ultrapassando o acircmbito recortado no artordm 1887ordm- A do CC que se refere

apenas aos avoacutes e aos irmatildeos estando no entanto o seu reconhecimento

condicionado agrave satisfaccedilatildeo do interesse da crianccedila703

700 ERYC JAIME in Poacutes-modernismo e direito da famiacutelia in Boletim da Faculdade de Direito

Vol LXXVIII 2002 pp 209 e ss 701 Veja-se o regime previsto no art 6ordm nordm 1 e nordm 2 do Regime Juriacutedico do Processo de

Adoccedilatildeo aprovado pela Lei nordm 1432015 de 8 de setembro que disciplina o exerciacutecio do

direito ao acesso ao conhecimento das origens Por forccedila do mesmo diploma a consagraccedilatildeo

expressa de tal direito foi vertida no art 1990ordm-A do CC 702 Eacute o caso da proposta de diploma (ldquoEntwurf eines Gesetzes zur Reform des

Scheinvaterregresses zur Ruumlckbenennung und zur Aumlnderung des Internationalen Familien-

rechtsverfahrensgesetzesrdquo conhecida como a lei dos filhos do cuco ldquoKuckuckskindernrdquo) que

estaacute presentemente a ser discutida na Alemanha Pretende alterar-se o Coacutedigo Civil Alematildeo

no sentido de nele incluir previsatildeo do dever informaccedilatildeo (ldquoAuskunftspflichtrdquo) por parte da

mulher em relaccedilatildeo ao ldquopai aparenterdquo (ldquoScheinvaterrdquo) e definir a proteccedilatildeo que lhe eacute devida 703 Apesar de na jurisprudecircncia portuguesa existirem diferentes perspetivas sobre o exato

alcance do direito de convivecircncia previsto no art 1887ordm-A do CC existem jaacute decisotildees que

acolhem um entendimento que alarga para aleacutem dos limites traccedilados na letra do preceito o

ciacuterculo de pessoas a quem eacute reconhecido o referido direito em homenagem agrave proximidade

existencial incluindo mesmo pessoas natildeo ligadas formalmente agrave crianccedila por um viacutenculo

familiar Veja-se nesse sentido o Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Porto de 7 de janeiro

de 2013 (acessiacutevel no endereccedilo wwwdgsipt) Trata-se de um entendimento que se apresenta

em harmonia com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no que

respeita ao direito ao respeito pela vida familiar previsto no art 8ordm da Convenccedilatildeo Europeia

dos Direitos do Homem

330

XI As transformaccedilotildees acabadas de enunciar constituem corolaacuterios de

um fenoacutemeno que jaacute foi denominado como ldquoprivatizaccedilatildeordquo do direito da

Famiacutelia704 ou como ldquocontratualizaccedilatildeordquo da famiacutelia ndash esta uacuteltima expressatildeo

inspira-se na famosa siacutentese de HENRY JAMES SUMNER MAINE A

utilizaccedilatildeo das foacutermulas referidas procura pocircr em destaque a aproximaccedilatildeo da

regulaccedilatildeo juriacutedica familiar ao regime comum do direito privado em que a

figura negocial como manifestaccedilatildeo privilegiada da autonomia privada a par

do direito subjetivo constitui um elemento conceptual de referecircncia

XII Como consequecircncia da revoluccedilatildeo no modelo subjetivo vigente na

famiacutelia opera-se a correccedilatildeo do deacutefice de individualizaccedilatildeo das posiccedilotildees

juriacutedico-familiares de que falaacutevamos na secccedilatildeo anterior e que inibia o

funcionamento de dois importantes institutos do direito civil no quadro

familiar

IV AS REPERCUSSOtildeES DA IRRUPCcedilAtildeO DA INDIVIDUALIDADE E DA

ALTERIDADE NO AcircMBITO FAMILIAR

I Com a substituiccedilatildeo do paradigma institucional pelo paradigma

personalista de famiacutelia daacute-se a emergecircncia no acircmbito familiar das ideias de

individualidade e alteridade em lugar das ideias de comunidade e unidade que

anteriormente pontificavam E a essa substituiccedilatildeo associam-se repercussotildees

muito importantes no plano juriacutedico

Na verdade se a famiacutelia deixa de ser entendida como um organismo

em que a individualidade das partes (dos seus membros) eacute dissolvida em prol

da promoccedilatildeo do fim unitaacuterio705 e se o desniacutevel que tradicionalmente

caracterizava as relaccedilotildees familiares eacute banido com a proclamaccedilatildeo do princiacutepio

da igualdade tambeacutem no domiacutenio familiar os sujeitos da famiacutelia surgem no

seu acircmbito como centros autoacutenomos de autodeterminaccedilatildeo individualista

Consequentemente por um lado podem os mesmos procurar a harmonizaccedilatildeo

das suas posiccedilotildees atraveacutes da configuraccedilatildeo consensualizada de (alguns) efeitos

704 Esta expressatildeo de siacutentese da evoluccedilatildeo de direito da famiacutelia eacute usada com muita frequecircncia

Veja-se a tiacutetulo ilustrativo a utilizaccedilatildeo dessa expressatildeo por FERNANDO SANTOSUOSSO

Il matrimonio Libertagrave e responsabilitagrave nella relazione familiari Torino Utet Giuridica 2011

p 10 705 Sublinhe-se que ldquoo bem da famiacuteliardquo (art 1671ordm nordm 2 do CC) e a ldquounidade da vida

familiarrdquo (art 1673ordm nordm 1 do CC) continuam a relevar nomeadamente quanto ao teor dos

acordos sobre a direccedilatildeo da vida familiar e de escolha da casa de morada de famiacutelia Trata-se

como referimos de uma oscilaccedilatildeo entre dois polos (o individualista e o comunitaacuterio) natildeo

havendo uma eliminaccedilatildeo de nenhum deles

331

juriacutedicos da relaccedilatildeo de que satildeo titulares atraveacutes da aproximaccedilatildeo dos interesses

individuais como acontece na atividade negocial em geral706 Por outro lado agrave

violaccedilatildeo das posiccedilotildees juriacutedicas familiares que se apresente juridicamente

como um ato iliacutecito pode associar-se a aplicaccedilatildeo de reaccedilotildees juriacutedicas que o

ordenamento predispotildee para os comportamentos desvaliosos em ordem ao

ressarcimento das consequecircncias danosas verificadas

II Criam-se entatildeo as condiccedilotildees propiacutecias ao florescimento de dois

fenoacutemenos no seio da famiacutelia o da promoccedilatildeo da autonomia privada nas

relaccedilotildees familiares e o da afirmaccedilatildeo crescente do funcionamento da

responsabilidade civil no contexto familiar A cada um deles dedicaremos

breviacutessimas palavras nas duas proacuteximas aliacuteneas707

1 A PROMOCcedilAtildeO DA AUTONOMIA PRIVADA NAS RELACcedilOtildeES FAMILIARES

I A nova ordem jusfamiliar impregnada pelas diretrizes

constitucionais referidas na secccedilatildeo anterior consente e promove o exerciacutecio da

autonomia privada no seio das relaccedilotildees familiares pelos respetivos sujeitos

em detrimento da imposiccedilatildeo heteroacutenoma de soluccedilotildees cunhadas externamente

A este propoacutesito ganha relevo por um lado o exerciacutecio de direitos subjetivos

no acircmbito familiar de que jaacute falaacutemos na secccedilatildeo anterior mas tambeacutem a

autoconformaccedilatildeo convencional dos efeitos juriacutedicos das relaccedilotildees familiares

nomeadamente a conformaccedilatildeo consensual de tais efeitos atraveacutes da formaccedilatildeo

de acordos sobre essas mateacuterias Os sujeitos num plano de igualdade708

exercem tambeacutem aqui a liberdade que lhes eacute reconhecida recorrendo agrave

atividade negocial

706 Natildeo significa como referiremos infra que se aplique no acircmbito familiar o regime juriacutedico

previsto para a atividade negocial em geral 707 Para observaccedilotildees mais desenvolvidas sobre este fenoacutemeno e com abundantes referecircncias

bibliograacuteficas vide o nosso Convenccedilotildees matrimoniais A autonomia na conformaccedilatildeo dos

efeitos patrimoniais do casamento cit 708 A igualdade entre os cocircnjuges existiraacute pelo menos no plano formal atenta a sua

proclamaccedilatildeo no art 36ordm nordm 3 da CRP e no art 1671ordm do CC Sabemos no entanto que

subsistem importantes diferenccedilas que podem atraiccediloar a concretizaccedilatildeo da igualdade

substancial entre os cocircnjuges Trata-se de um fenoacutemeno que natildeo eacute exclusivo desta aacuterea da

vida ocorrendo com frequecircncia no acircmbito do direito do consumo e do direito laboral para o

que o legislador predispocircs mecanismos protecionistas Tal realidade no domiacutenio matrimonial

natildeo pode ser negligenciada quando se busque o tratamento juriacutedico a dispensar agrave atividade

negocial que nela se desenvolva

332

II O fenoacutemeno eacute particularmente visiacutevel e intenso no acircmbito

matrimonial ndash onde os seus pressupostos (a igualdade e a liberdade) se

manifestam mais fortemente709

A celebraccedilatildeo de acordos juridicamente relevantes sobre efeitos

matrimoniais jaacute natildeo se circunscreve agrave fase preacute-nupcial mesmo num

ordenamento como o nosso em que ainda persiste a vigecircncia do princiacutepio da

imutabilidade das Convenccedilotildees Antenupciais (art 1714ordm do CC) Para aleacutem

dessas espeacutecies negociais em que tradicionalmente se continham claacuteusulas

relacionadas com o regime de bens o acordo aparece como modelo

organizativo da vida familiar durante a vigecircncia do casamento (art 1671ordm nordm

2 do CC) As novas regras da administraccedilatildeo (art 1678ordm do CC) postulam

tambeacutem a formaccedilatildeo de consensos para o que cada um dos cocircnjuges concorre

em plano de igualdade Tambeacutem no acircmbito da dissoluccedilatildeo da relaccedilatildeo

matrimonial o acordo ganha relevacircncia seja para efeito do decretamento da

extinccedilatildeo da relaccedilatildeo (pensamos no divoacutercio por muacutetuo consentimento) seja

para efeito de conformaccedilatildeo dos efeitos associados agrave liquidaccedilatildeo das relaccedilotildees

patrimoniais (consideramos os acordos relativos agrave obrigaccedilatildeo de alimentos ou

agrave utilizaccedilatildeo da casa de morada de famiacutelia no periacuteodo poacutes-conjugal a que se

refere o legislador nos art 1775ordm nordm 1 al c) e d) do CC mas tambeacutem os

acordos de partilha de bens ou os acordos sobre a prestaccedilatildeo compensatoacuteria do

art 1676ordm do mesmo diploma) A ldquonegociabilidaderdquo atinge longitudinalmente

toda a relaccedilatildeo matrimonial e o casamento passa a ser uma entidade sujeita a

um ldquoregime consensuale permanenterdquo710 durante a sua vida e tambeacutem no seu

ocaso711

Eacute aliaacutes por referecircncia agrave eventualidade de extinccedilatildeo da relaccedilatildeo

matrimonial que as manifestaccedilotildees de autonomia privada mais tecircm crescido em

ordenamentos juriacutedicos estrangeiros Com a derrocada dos obstaacuteculos

tradicionais nomeadamente ancorados numa ideia de feacuterrea indisponibilidade

709 Estamos no acircmbito daquilo que como referimos jaacute se chamou ldquodireito de famiacutelia

horizontalrdquo para destacar o nivelamento das posiccedilotildees juriacutedicas dos sujeitos 710 A expressatildeo eacute de ANGELO FALZEA para transmitir a ideia de que o ldquoaccordo dei coniugi

condiziona sia la costituzione sia la conservazione del rapporto consortilerdquo In Famiglia e

aspetti patrimoniali in Ricerche di teoria generale del diritto e di dogmatica giuridica Volume

II Dogmatica giuridica reimpressatildeo da 3ordf ediccedilatildeo Milano Giuffregrave Editore 1997 p 866

Num sentido proacuteximo JOACHIM GERNHUBER apelidou o novo casamento de ldquogeordnete

Eherdquo Die geordnete Ehe in FamRZ Zeitschrift fuumlr das gesamte Familienrecht 1979 26

Jahrgang Heft 3 pp 193 e ss em especial pp 196 e 197 711 Como soacutei referir-se agraves manifestaccedilotildees da autonomia negocial no periacuteodo fisioloacutegico da

relaccedilatildeo matrimonial juntaram-se mais recentemente as expressotildees da autonomia na fase

patoloacutegica da mesma relaccedilatildeo

333

do viacutenculo matrimonial que o regime do divoacutercio deixou de refletir deteta-se

uma aceitaccedilatildeo transversal da possibilidade de regulaccedilatildeo negocial muitas vezes

antecipada das consequecircncias da dissoluccedilatildeo do casamento especialmente por

divoacutercio em consonacircncia com a ideia de clean-break que se procura

promover E este novo entendimento natildeo pressupocircs uma reforma legislativa

que se dirigisse precipuamente agrave regulaccedilatildeo de tal atividade negocial antes

derivando da nova conceccedilatildeo do divoacutercio que importou uma nova conceccedilatildeo do

casamento712 Nessa releitura dos dados normativos agrave luz do novo modelo de

casamento a jurisprudecircncia tem desempenhado um papel motriz713

Abandonando-se a hostilidade de princiacutepio contra expressatildeo da

liberdade (negocial) dos nubentes e dos cocircnjuges em relaccedilatildeo agrave sua relaccedilatildeo

matrimonial a problemaacutetica em discussatildeo deixou de ser a da afirmaccedilatildeo da

autonomia privada dos cocircnjuges no que respeita agrave conformaccedilatildeo da sua relaccedilatildeo

matrimonial para passar a ser a da definiccedilatildeo dos limites agrave mesma714

Mesmo que em Portugal a questatildeo natildeo se tenha ainda colocado com

o vigor que ela jaacute assumiu no estrangeiro os dados do ordenamento juriacutedico

portuguecircs consentem uma evoluccedilatildeo idecircntica agrave detetada noutros ordenamentos

juriacutedicos Nem sequer a manutenccedilatildeo da vigecircncia do princiacutepio da imutabilidade

explica a persistecircncia de uma visatildeo tatildeo radicalmente ostracizante da atividade

negocial dos nubentes e dos cocircnjuges quanto aos efeitos patrimoniais da sua

relaccedilatildeo A nova ordem jusmatrimonial demanda aliaacutes um entendimento que

natildeo negligenciando as especificidades do contexto familiar em que esses

acordos surgem seja mais consentacircneo com os novos eixos axioloacutegico-

712 Na verdade a mudanccedila no plano legislativo natildeo incidiu diretamente sobre o regime juriacutedico

da atividade negocial dos cocircnjuges Antes se deu por alteraccedilatildeo dos eixos axioloacutegico-

normativos (igualdade e liberdade) sobre que ordem matrimonial passou a estruturar-se e por

mutaccedilatildeo quanto agrave disciplina de outras mateacuterias ndash em particular quanto ao divoacutercio e quanto agrave

centralidade do acordo na organizaccedilatildeo familiar ndash o que redundou numa alteraccedilatildeo da conceccedilatildeo

de casamento Sobre esta transformaccedilatildeo vide Convenccedilotildees matrimoniais A autonomia na

conformaccedilatildeo dos efeitos patrimoniais do casamento cit pp 145 e ss 713 Nos ordenamentos alematildeo espanhol italiano e inglecircs foram emanadas importantes

decisotildees judiciais que consubstanciaram marcos tradutores e promotores da viragem de

perspetiva legitimada por alteraccedilotildees constitucionais e legais (a montante a jusante) produzidas

na disciplina juriacutedica da realidade familiar Veja-se a referecircncia bibliograacutefica presente na nota

anterior 714 No decurso da elaboraccedilatildeo de uma obra em que se coligiram relatoacuterios de vaacuterios paiacuteses sob

o mote ldquoThe future of family Property in Europerdquo emergiu ao longo dos trabalhos segundo

os organizadores JO MILES e JENS SCHERPE como problemaacutetica central e transversal agrave

reflexatildeo a de saber ldquohow much autonomy the parties should have to regulate their own

affairsrdquo ldquoThe future of family property in Europerdquo Edited by Katharina Boele-Woelki Jo

Miles and Jens M Scherpe Cambridge-Antwerp-Portland Intersentia 2011 p 429

334

normativos (igualdade e liberdade) sobre que a ordem matrimonial se

encontra hoje715 edificada e uma intervenccedilatildeo cerceadora da autonomia

privada que respeite mais adequadamente o princiacutepio da proporcionalidade

III Apesar de se manifestar mais intensamente no domiacutenio

matrimonial a promoccedilatildeo da autonomia ndash no sentido de ser atribuiacutedo relevo

aos atos de autodeterminaccedilatildeo em que se encontra plasmada a vontade de um

sujeito a que satildeo reconhecidos ateacute certo ponto pelo menos efeitos juriacutedicos

consentacircneos com a vontade manifestada ndash encontra tambeacutem eco noutras

aacutereas do domiacutenio familiar716

No acircmbito da filiaccedilatildeo a manifestaccedilatildeo mais ostensiva da relevacircncia da

autonomia privada atraveacutes da conformaccedilatildeo convencional encontra-se ao

niacutevel da regulaccedilatildeo do exerciacutecio das responsabilidades parentais717 Quando os

progenitores se encontram casados ou vivem em uniatildeo de facto (por forccedila da

remissatildeo constante do nordm 1 do artordm 1911ordm do CC introduzida pela Lei

612008 de 31 de outubro) o exerciacutecio das ldquoresponsabilidades parentaisrdquo

pertence a ambos os progenitores importando a formaccedilatildeo de acordos (artordm

1905ordm do CC) Tambeacutem no contexto de crise das relaccedilotildees entre os

progenitores casados ou unidos de facto (art 1911ordm nordm 2 do CC) o regime

715 Para agregarmos todas as manifestaccedilotildees convencionais de autonomia privada no acircmbito

da relaccedilatildeo matrimonial cunhaacutemos a figura das convenccedilotildees matrimoniais a que procuraacutemos

conhecer os limites de extensatildeo e de homogeneidade As convenccedilotildees matrimoniais aparecem

entatildeo como expressatildeo especiacutefica da autonomia privada daqueles sujeitos na configuraccedilatildeo da

sua relaccedilatildeo matrimonial A este propoacutesito para maiores desenvolvimentos vide o nosso

Convenccedilotildees matrimoniais A autonomia na conformaccedilatildeo dos efeitos patrimoniais do

casamento cit 716 Paralelamente no acircmbito do direito sucessoacuterio intensificam-se as vozes que demandam a

promoccedilatildeo da autonomia privada na conformaccedilatildeo do fenoacutemeno sucessoacuterio nomeadamente

clamando por uma reforma da sucessatildeo legitimaacuteria Trata-se de um movimento que se

manifesta transversalmente como se pode ver na obra ldquoThe law of succession testamentary

freedom European perspectivesrdquo editada por M Anderson and E Amayuelas European

studies in private law (5) Groningen European Law Publishing 2011 Refletindo entre noacutes

sobre esta problemaacutetica vide CRISTINA ARAUacuteJO DIAS A proteccedilatildeo sucessoacuteria da famiacutelia ndash

notas criacuteticas em torno da sucessatildeo legitimaacuteria in ldquoAutonomia e Heteronomia no Direito da

Famiacutelia e no direito das Sucessotildeesrdquo coordenaccedilatildeo de Helena Mota e Maria Raquel Guimaratildees

Almedina 2016 pp 449 e ss 717 Natildeo esqueccedilamos no entanto que haacute neste acircmbito uma forte funcionalizaccedilatildeo agrave satisfaccedilatildeo

do superior interesse da crianccedila que justifica um intenso controlo heteroacutenomo pelo julgador

(art 1778ordm-A e art 1905ordm do CC) ou pelo Ministeacuterio Puacuteblico (art 1776ordm-A do CC) Natildeo

deixa no entanto de ser um espaccedilo em que se promove o acordo dos familiares

335

regra eacute hoje nos termos do art 1905ordm do CC o do exerciacutecio conjunto

daquelas responsabilidades

Tambeacutem no plano da proacutepria constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo de filiaccedilatildeo718

conquistam importacircncia as declaraccedilotildees de vontade daqueles que se

converteratildeo juridicamente em pais Tal acontece desde logo na filiaccedilatildeo

assente na procriaccedilatildeo natural em que a vontade do progenitor relevaraacute

nomeadamente quando o estabelecimento da paternidade se decirc por

reconhecimento voluntaacuterio atraveacutes do ato de perfilhaccedilatildeo719

O relevo juriacutedico reconhecido a expressotildees de vontade relativas agrave

constituiccedilatildeo da filiaccedilatildeo sobe de tom se considerarmos a filiaccedilatildeo decorrente do

recurso a teacutecnicas de procriaccedilatildeo medicamente assistida Nestes casos o

viacutenculo familiar assenta numa realidade volitiva havendo mesmo no que

concerne agraves situaccedilotildees de procriaccedilatildeo totalmente heteroacuteloga720ndash em que haacute

doaccedilatildeo dos dois gacircmetas por terceiros ndash um desprendimento do princiacutepio do

biologismo721 que vinha em especial desde 1977 iluminando o regime da

718 Para uma visatildeo de direito comparado do crescimento da importacircncia da autonomia privada

na constituiccedilatildeo dos viacutenculos juriacutedicos de filiaccedilatildeo (incluindo a filiaccedilatildeo adotiva que soacute num

sentido amplo integra aquele conceito) vide CHRISTINE BUDZIKIEWICZ Contracting on

Parentage in Family Law and Culture in Europe Developments challenges and opportunities

Katharina Boele-Woelki Nina Dethloff e Werner Gephart (eds) Cambridge-Antwerp-

Portland Intersentia 2014 pp 151e ss 719 A perfilhaccedilatildeo consubstancia um ato juriacutedico unilateral cuja natureza como declaraccedilatildeo de

ciecircncia ou declaraccedilatildeo de vontade eacute discutida Vide PEREIRA COELHO e GUILHERME

OLIVEIRA que se pronunciam no sentido de que constituiraacute uma mera declaraccedilatildeo de ciecircncia

agrave semelhanccedila da declaraccedilatildeo de maternidade ndash ldquotanto a maternidade como a paternidade satildeo

factos bioloacutegicos a que o direito pretende dar relevacircncia juriacutedicardquo In Curso de Direito da

Famiacutelia Vol II Direito da Filiaccedilatildeo Tomo I Estabelecimento da Filiaccedilatildeo Adopccedilatildeo Coimbra

Coimbra Editora 2006 pp 149 e ss em especial p 151 Repare-se que a falta de possibilidade

de conformaccedilatildeo dos efeitos juriacutedicos produzidos pela perfilhaccedilatildeo (artordm 1852ordm) conduz a que

se negue a reconduccedilatildeo da perfilhaccedilatildeo agrave figura negocial 720 Como sabemos nesse caso os doadores nunca satildeo havidos como pais da crianccedila que venha

a nascer (ex vi do nordm 2 do artordm 10ordm e artordm 21 da Lei 322006 de 26 de julho que se mantiveram

incoacutelumes agraves alteraccedilotildees introduzidas pela Lei 172016 de 20 de junho e pela Lei 252016 de

22 de agosto) sendo a parentalidade definida nos termos do artordm 20ordm daquele diploma na

redaccedilatildeo que lhe foi dada pela Lei 172016 de junho em relaccedilatildeo aos beneficiaacuterios que

consentiram nos termos do art 14ordm 721 O afastamento do biologismo foi acentuado pelas alteraccedilotildees introduzidas na Lei da

procriaccedilatildeo medicamente assistida atraveacutes da Lei 172016 de 20 de junho agrave luz das quais nos

termos do novo art 6ordm nordm 1 o recurso a teacutecnicas de PMA foi permitido a casais de mulheres

(casadas ou vivendo em uniatildeo de facto) e a mulheres singulares independentemente do estado

civil e da respetiva orientaccedilatildeo sexual Em qualquer caso esta forma de procriaccedilatildeo natildeo replica

336

filiaccedilatildeo Consequentemente a filiaccedilatildeo juriacutedica traduz aqui natildeo uma verdade

bioloacutegica mas uma verdade volitiva vertida no(s) consentimento(s)722 dos

beneficiaacuterios das teacutecnicas de procriaccedilatildeo medicamente assistida723

A acentuaccedilatildeo da relevacircncia reconhecida agrave vontade dos particulares eacute

aliaacutes uma das tendecircncias mais marcadas da evoluccedilatildeo do direito da filiaccedilatildeo na

medida em que tambeacutem aiacute se opera a substituiccedilatildeo do paradigma anterior por

um modelo de definiccedilatildeo da parentalidade com base no ldquocriteacuterio do amor sob a

forma de vontade de cuidar e da assunccedilatildeo voluntaacuteria da responsabilidade pelo

cuidadordquo724 A substituiccedilatildeo daacute-se aliaacutes natildeo soacute no plano do regime da

constituiccedilatildeo do estatuto de pai e de filho Na verdade com as alteraccedilotildees

introduzidas pela Lei nordm 1372015 de 7 de setembro nos arts 1903ordm e 1904ordm

do CC fomenta-se uma intervenccedilatildeo juriacutedica que deixando intocada a filiaccedilatildeo

estabelecida opera no plano do exerciacutecio das responsabilidades parentais o

reconhecimento de realidades faacutecticas tradutoras da assunccedilatildeo voluntaacuteria do

cuidado de quem natildeo eacute seu filho bioloacutegico Trata-se de um movimento de

superaccedilatildeo tambeacutem no domiacutenio da filiaccedilatildeo da centralidade do ldquostatusrdquo com

atribuiccedilatildeo de predomiacutenio ao desempenho efetivo da funccedilatildeo assumida725

a natureza na medida em que as crianccedilas que venham a nascer natildeo teratildeo um progenitor do

sexo masculino sendo filhas de duas matildees no primeiro caso ou de uma matildee no segundo (jaacute

que o art 20ordm nordm 3 prevecirc a situaccedilatildeo de parentalidade singular com afastamento de

averiguaccedilatildeo oficiosa da parentalidade omissa) 722 PEREIRA COELHO e GUILHERME OLIVEIRA apelidam-na de ldquofiliaccedilatildeo assente no

consentimento no contexto da reproduccedilatildeo assistidardquo Curso de Direito da Famiacutelia Vol I cit

pp 111 e ss Eacute uma lsquointentional parentagersquo na expressiva foacutermula usada por INGEBORG

SCHWENZER Tensions between legal biological and social conceptions of parentage

Antwerpen-Oxford Intersentia 2007 p 11 JEAN HAUSER emprega a designaccedilatildeo de

ldquoenfant conventionnelrdquo a propoacutesito da entrada em vigor em Franccedila das Leis de 29 de julho

de 1994 que introduziram no artordm 311-19 do CCF uma norma equivalente agraves normas dos artordm

10 nordm 2 e artordm 21ordm da nossa Lei 322006 de 26 de julho In Un nouveau-neacute l`enfant

conventionnel in Recueil Dalloz Sirey 1996 21e Cahier pp 182 a 184 723 A norma do art 4ordm nordm 3 Lei da procriaccedilatildeo medicamente assistida alterada pela da Lei

172016 de 20 de junho ao permitir o recurso agraves teacutecnicas de procriaccedilatildeo artificial sem

necessidade de um diagnoacutestico de infertilidade importaraacute uma derrogaccedilatildeo ao princiacutepio da

subsidiariedade que ateacute entatildeo vigorava de modo absoluto no que iraacute contida mais uma

concessatildeo agrave filiaccedilatildeo assente na vontade (de ser matildee) 724 Nas palavras de GUILHERME DE OLIVEIRA Criteacuterios Juriacutedicos de parentalidade in Textos

de Direito da Famiacutelia para Francisco Pereira Coelho Coordenaccedilatildeo de Guilherme de Oliveira

Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2016 p 278 Os sublinhados foram

acrescentados por noacutes 725 Para uma reflexatildeo profunda das transformaccedilotildees operadas no direito da filiaccedilatildeo dando conta

da substituiccedilatildeo em 1977 do paradigma da filiaccedilatildeo legiacutetima pelo da filiaccedilatildeo assente num

337

Idecircntica verdade de vontade se encontra desde sempre726 na base da

constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo adotiva Apesar da exigecircncia do ato judicial que nos

termos do art 1973ordm do CC se apresenta como ato constitutivo do viacutenculo

familiar o ato de adoccedilatildeo tem tambeacutem uma componente privatiacutestica em que

pontifica(m) as declaraccedilatildeo(otildees) de vontade do(s) adotante(s) eventualmente

associada(s) ao(s) consentimento(s) requerido(s) pelo artordm 1981ordm do CC de

outra(s) pessoa(s)727

IV Apesar da dilataccedilatildeo da aacuterea em que se daacute o reconhecimento do

exerciacutecio da autonomia privada no acircmbito familiar e nessa medida da

consequente aproximaccedilatildeo ao regime geral do direito civil natildeo haacute ndash nem pode

haver ndash uma assimilaccedilatildeo integral entre o exerciacutecio da autonomia privada

nomeadamente atraveacutes da atividade negocial nos dois domiacutenios

A natureza da mateacuteria (auto)conformada (atendendo agrave conexatildeo do seu

objeto com as relaccedilotildees familiares) por um lado a condiccedilatildeo particular dos

sujeitos e o contexto em que se daacute o exerciacutecio da autonomia privada

nomeadamente a celebraccedilatildeo de acordos (em virtude da proximidade

existencial das partes e das dependecircncias reciacuteprocas que por causa dela se

podem gerar728) por outro lado e a influecircncia do decurso do tempo sobre os

compromissos assumidos (atenta a natureza duradoura que eacute apanaacutegio das

relaccedilotildees familiares) por fim justificam no seu conjunto a necessidade de uma

criteacuterio bioloacutegico e mais recentemente a substituiccedilatildeo desse paradigma pelo que eacute referido

em texto GUILHERME DE OLIVEIRA Criteacuterios Juriacutedicos de parentalidade cit pp 271 a 306 726 Aqui o movimento foi precisamente o oposto do que se manifestou nas outras aacutereas do

direito da famiacutelia Na verdade de uma relaccedilatildeo adotiva eminentemente privatiacutestica e ao serviccedilo

dos interesses do adotante no direito romano evoluiacutemos para uma relaccedilatildeo adotiva que

iluminada pelo superior interesse da crianccedila (art 1974ordm 1) pressupotildee uma forte intervenccedilatildeo

puacuteblica PEREIRA COELHO e GUILHERME OLIVEIRA Curso de Direito da Famiacutelia Vol

II cit pp 262 e ss 727 Por consequecircncia afirma-se a natureza complexa do ato referido resultando a relaccedilatildeo

adotiva da integraccedilatildeo das duas componentes sendo ambas necessaacuterias mas nenhuma delas

suficiente para produzir o efeito constitutivo Reflete-se aqui a satisfaccedilatildeo do interesse geral

e dos interesses dos particulares (cujo consentimento eacute exigido) que a adoccedilatildeo deve

simultaneamente servir Sobre a natureza da adoccedilatildeo vide PEREIRA COELHO e

GUILHERME OLIVEIRA Curso de Direito da Famiacutelia Vol II cit pp 311 a 313 728 Eacute que como jaacute referimos mesmo nos domiacutenios em que haacute proclamaccedilatildeo da igualdade

formal persistem desequiliacutebrios que podem prejudicar o exerciacutecio da autonomia refletida nos

atos convencionais Por outro lado a atuaccedilatildeo de entreajuda caracteriacutestica das relaccedilotildees

familiares eacute promotora da emergecircncia ou acentuaccedilatildeo de dependecircncias reciacuteprocas que natildeo

podem ser negligenciadas

338

intervenccedilatildeo especial que acomode o regime juriacutedico agraves particularidades que o

exerciacutecio da autonomia privada apresenta no contexto familiar

Ademais natildeo se vislumbra possiacutevel um tratamento uniforme aplicaacutevel

em todos domiacutenios do direito da famiacutelia havendo que destacar desde logo as

aacutereas em que haacute uma relaccedilatildeo entre dois sujeitos maiores e iguais em que por

isso a autonomia poderaacute manifestar-se mais amplamente (como no direito

matrimonial ou no direito dos conviventes em uniatildeo de facto) daquelas em

que as relaccedilotildees familiares continuam a desenvolver-se agrave luz de uma

intervenccedilatildeo protecionista e em que por isso pontificam as posiccedilotildees juriacutedicas

funcionalizadas a interesses que se impotildeem ao respetivo titular e que lhe

podem ser alheios (como acontece no direito da filiaccedilatildeo nas posiccedilotildees juriacutedicas

dos pais)

2 A AFIRMACcedilAtildeO CRESCENTE DO FUNCIONAMENTO DA

RESPONSABILIDADE CIVIL NO CONTEXTO FAMILIAR

I A transformaccedilatildeo da ordem jusmatrimonial operada na segunda

metade do seacuteculo XX encontra-se tambeacutem na raiz da afirmaccedilatildeo crescente do

funcionamento da responsabilidade civil no contexto familiar A mudanccedila da

perspetivaccedilatildeo da famiacutelia que supra deixaacutemos descrita veio provocar a

derrocada de um importante obstaacuteculo ao funcionamento da responsabilidade

civil e que radicava na visatildeo institucional da famiacutelia como uma unidade em

que a individualidade dos respetivos membros era dissolvida A entidade

unitaacuteria assim constituiacuteda produzia primeiro de jure729 e depois de facto730 o

efeito da imunidade dos sujeitos dentro do grupo familiar de que eram

membros

Como sabemos a responsabilidade civil pressupotildee uma alienidade do

dano em relaccedilatildeo ao responsaacutevel demandando uma perspetiva autonomizada

do lesante e do lesado o que no passado agrave luz do modelo de famiacutelia preteacuterito

era dificultado pela integraccedilatildeo daqueles sujeitos no mesmo agrupamento

familiar Se em termos juriacutedicos natildeo havia uma unidade em sentido proacuteprio

729 A inibiccedilatildeo do funcionamento da responsabilidade civil no acircmbito familiar constitui um

dos corolaacuterios da teoria da unidade matrimonial (ldquoThe matrimonial alliance made the parties

to it an unit in lawrdquo) e uma manifestaccedilatildeo da ldquocoverturerdquo da ldquocommon lawrdquo Sobre a

ldquointerspousal tort immunityrdquo vide MARSHAL DAVIS EWELL in A Manual of the Law of

the domestic relations Detroit The Collector Publishing 1896 pp 40 e ss 730 Mesmo depois da revoluccedilatildeo igualitaacuteria do uacuteltimo terccedilo do seacuteculo XX sabemos que

subsistem obstaacuteculos (econoacutemicos sociais) ao recurso agrave responsabilidade civil no acircmbito

familiar

339

ndash ie os membros de uma famiacutelia (nem mesmo os cocircnjuges) natildeo constituiam

uma soacute pessoa juriacutedica ndash pensemos nas profundas capiti diminuitiones que ateacute

muito recentemente se afirmavam em relaccedilatildeo ao cocircnjuge mulher (entretanto

desaparecidas) e se continuam a afirmar quanto agraves crianccedilas e jovens (entretanto

atenuadas) com importantes reflexos juriacutedicos na sua capacidade juriacutedica (seja

na capacidade de gozo seja na capacidade de exerciacutecio seja tambeacutem na

capacidade judiciaacuteria) limitando-a

II A aceitaccedilatildeo do funcionamento da responsabilidade civil seraacute pois

um desenvolvimento inevitaacutevel da substituiccedilatildeo de um modelo familiar

orgacircnico e hieraacuterquico por um modelo familiar dito democraacutetico assente em

graus superiores de autonomia dos seus membros Atraveacutes da aplicaccedilatildeo

daquele instituto na aacuterea familiar reforccedila-se a garantia dos direitos tambeacutem

nesse acircmbito onde tradicionalmente se verificava a muito propalada

fragilidade dos mesmos731

III A maior visibilidade e o crescente interesse da doutrina pelo

funcionamento da responsabilidade civil no acircmbito familiar ocorre ao mesmo

tempo que se assiste sobretudo no estrangeiro a um acreacutescimo dos casos que

satildeo levados a juiacutezo sobre a mateacuteria

Entre noacutes a discussatildeo surgiu a propoacutesito do regime introduzido pela

Lei 612008 de 31 de outubro (a denominada Lei do divoacutercio) que alterou a

redaccedilatildeo do artordm 1792ordm do CC e portanto a propoacutesito da responsabilidade

civil surgida no acircmbito da relaccedilatildeo matrimonial Trata-se no entanto de uma

manifestaccedilatildeo singular de uma problemaacutetica mais vasta abrangendo entre

outras tambeacutem as relaccedilotildees da filiaccedilatildeo

IV Por um lado a possibilidade de afirmaccedilatildeo da responsabilidade

quando satildeo afetadas posiccedilotildees delitualmente protegidas ndash ie quando estatildeo em

causa situaccedilotildees que se ocorressem entre terceiros conduziriam agrave

responsabilidade do agressor (por exemplo uma agressatildeo fiacutesica) ndash natildeo eacute

prejudicada pelo facto de lesante e lesado se integrarem na mesma famiacutelia e

731 Vide HEINRICH EWALD HOERSTER relativamente ao regime anterior ao da Lei nordm 612008

de 31 de outubro A respeito da Responsabilidade Civil dos Cocircnjuges entre si (ou A doutrina

da fragilidade da garantia seraacute vaacutelida) in Scientia Iuridica ndash Revista de Direito Comparado

Portuguecircs e Brasileiro T XLIV 1995 nordm 253255 pp 113 e ss Posteriormente agravequela lei o

mesmo Autor conclui que ldquoo princiacutepio da fragilidade da garantia caiurdquo In A responsabilidade

civil entre os cocircnjuges in E foram felizes para sempre hellip Actas do Congresso de 23 24 e 25

de outubro de 2008 Wolters Kluwer Coimbra Coimbra Editora 2010 pp 109 e 110

340

portanto se encontrarem ligados por um viacutenculo familiar que pode no entanto

ter repercussotildees na densificaccedilatildeo dos pressupostos da responsabilidade civil732

Tambeacutem se aceita de forma crescente a responsabilidade por

incumprimento dos deveres particulares que vinculam especificamente entre

si certos membros da famiacutelia (por exemplo quando haacute incumprimento dos

deveres conjugais733) em que pode mesmo ser equacionado o funcionamento

da responsabilidade obrigacional Natildeo eacute no entanto paciacutefico este

entendimento havendo muitas vozes na doutrina portuguesa que remetem o

ressarcimento para o acircmbito delitual ou aquiliano734 destacando para o efeito

a violaccedilatildeo de direitos absolutos (direitos de personalidade fazendo

nomeadamente apelo ao direito geral de personalidade) que por traacutes do

incumprimento dos deveres conjugais se esconderaacute735

V Muitas outras situaccedilotildees em que no acircmbito familiar haacute a afetaccedilatildeo

de direitos fundamentais com projeccedilotildees pessoais poderiam ainda ser

enunciadas Entre noacutes ainda natildeo existe rasto de querelas que tecircm surgido

732 Nomeadamente na afirmaccedilatildeo dos juiacutezos de desvalor objetivo e subjetivo da accedilatildeo A

consideraccedilatildeo do viacutenculo familiar e a violaccedilatildeo simultacircnea do dever de respeito impendente

entre familiares poderaacute levar in casu a uma acentuaccedilatildeo ou a uma atenuaccedilatildeo da

censurabilidade da conduta 733 Fazendo a aplicaccedilatildeo da responsabilidade civil agrave violaccedilatildeo culposa dos deveres conjugais

considere-se a decisatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de 12 de maio de 2016 (acessiacutevel no

endereccedilo wwwdgsipt) 734 Nesse sentido vide PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA in Curso de Direito da

Famiacutelia Vol I cit p 788 735 Ora o recurso agrave tutela delitual permitiraacute fundar a oponibilidade a terceiros de certas

posiccedilotildees juriacutedicas familiares jaacute que possibilitaraacute a afirmaccedilatildeo de responsabilidade civil para

fundar pretensotildees reparatoacuterias quando um ato de terceiro as afete aiacute se concretizando (tambeacutem

assim) a sua ilicitude e a consequente identificaccedilatildeo do dano reparaacutevel A situaccedilatildeo entre noacutes

tem sido discutida em particular nos casos em que um ato iliacutecito de terceiro provoca uma lesatildeo

a um sujeito (lesado direto) de que decorre por sua vez a afetaccedilatildeo de um familiar por forccedila

de deveres familiares que os vinculem Estes lesados ndash reflexa ou diretamente conforme o

entendimento ndash poderatildeo tambeacutem demandar o responsaacutevel pelo ato lesivo para obter o

ressarcimento dos danos que lhes tiverem sido causados Pensamos por exemplo na situaccedilatildeo

mais comummente apresentada para apreciaccedilatildeo dos nossos Tribunais que eacute a de um cocircnjuge

ser viacutetima de um ato de terceiro que lhe causa graves lesotildees fiacutesicas que prejudicam a

convivecircncia marital nomeadamente o cumprimento do denominado deacutebito conjugal Trata-se

de uma constelaccedilatildeo faacutectica que se encontra subjacente ao Acoacuterdatildeo de Uniformizaccedilatildeo de

Jurisprudecircncia 62014 de 9 de janeiro de 2014 Sobre esta problemaacutetica e para referecircncias

bibliograacuteficas sobre o assunto vide o nosso Os danos natildeo patrimoniais (ditos) indiretos ndash uma

reflexatildeo ratione personae sobre a sua ressarcibilidade in Obra comemorativo dos 20 anos da

Faculdade de Direito da Universidade do Porto (no prelo)

341

abundantemente no estrangeiro a propoacutesito do estabelecimento da filiaccedilatildeo a

dos filhos que demandam pais que natildeo reconheceram o viacutenculo da paternidade

apesar de conhecerem informaccedilotildees suficientes para se convencerem da sua

paternidade a dos filhos que demandam as matildees por terem escondido a

verdade bioloacutegica sobre uma paternidade que permaneceu omissa ou que foi

indevidamente estabelecida em relaccedilatildeo a quem natildeo eacute o pai bioloacutegico ou ainda

a dos pais que peticionam agraves mulheres o ressarcimento de danos sofridos por

terem confiado na verdade bioloacutegica da sua paternidade que se encontra

juridicamente estabelecida e que as mulheres poderiam e deveriam ter

esclarecido736

VII Estaremos nos casos descritos ndash em todos os casos descritos ndash

perante bensinteresses merecedoras de tutela juriacutedica nomeadamente

ressarcitoacuteria Deveraacute o instituto da responsabilidade civil funcionar sem

quaisquer adaptaccedilotildees no acircmbito familiar Seratildeo as posiccedilotildees juriacutedico-

familiares reconduziacuteveis ao ldquodireito de outreacutemrdquo a que se refere o art 483ordm nordm

1 do CC Sendo as relaccedilotildees familiares relaccedilotildees que criam viacutenculos entre

pessoas determinadas podem ser assimiladas agraves relaccedilotildees obrigacionais

Poderaacute por consequecircncia aplicar-se a presunccedilatildeo de culpa do art 799ordm do CC

ao incumprimento dos deveres que delas emergem

VIII Muitas perguntas que para serem respondidas e que resultam da

tatildeo recente emergecircncia da visatildeo personalista da famiacutelia e da afirmaccedilatildeo

subjetiva que daiacute resulta Impotildee-se pois num outro momento uma reflexatildeo

profunda de todas estas questotildees que uma ldquoculturardquo de direitos surgidos no

contexto familiar gera

V OBSERVACcedilOtildeES CONCLUSIVAS

I O direito da famiacutelia apresenta-se como um dos continentes do mundo

juriacutedico cuja morfologia sofreu mais profundas alteraccedilotildees nas uacuteltimas

deacutecadas A metamorfose foi provocada em larga medida pela mudanccedila

operada no plano constitucional que ditou que tambeacutem no domiacutenio familiar

as ideias de igualdade e liberdade pontificassem

II A nova perspetivaccedilatildeo juriacutedica da famiacutelia para aleacutem de alteraccedilotildees

legislativas e de uma releitura de previsotildees normativas especiais que se tecircm

mantido formalmente inalteradas vem convocando a aplicaccedilatildeo agrave mateacuteria

familiar de institutos tiacutepicos de outros ramos do direito civil ndash por um lado a

736 Realidade subjacente ao diploma em discussatildeo na Alemanha e de que falaacutemos supra na

nota 699

342

autonomia privada nas suas vaacuterias manifestaccedilotildees nomeadamente as negociais

e por outro lado a responsabilidade civil

III O grande desafio que se coloca ao jurista eacute o de no novo quadro

juriacutedico garantir que na promoccedilatildeo da autonomia e no funcionamento da

responsabilidade natildeo se negligencia a especificidade que apesar daquela

mudanccedila continua a caracterizar a entidade familiar nem se prejudica a

particularidade que por isso devem ainda revestir as soluccedilotildees que para a sua

regulaccedilatildeo se encontrem no plano juriacutedico

Este trabalho eacute financiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT - Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto laquoUIDDIR040362016raquo

Direitos HumanosCentro de Investigaccedilatildeo Interdisciplinar

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  • miolo_v2
  • capa_pessoa_direito_direitos_v4
Page 2: PESSOA, DIREITO E DIREITOS · (Hans Kelsen, «Prefácio», in: Teoria pura do direito, Arménio Amado, Coimbra, 1979). Em 2014, propusemos ao Direitos Humanos ² Centro de Investigação

Pessoa direito e direitos

Coloacutequios 2014 2015

2016

II

Ficha teacutecnica

Tiacutetulo

Pessoa direito e direitos

Coordenadores

Nuno Manuel Pinto Oliveira e Benedita Mac Crorie

Design Graacutefico

Pedro Rito e Ceacutelia Rocha

Data

novembro 2016

Editor

Direitos Humanos ndash Centro de Investigaccedilatildeo Interdisciplinar

Escola de Direito da Universidade do Minho

Campus de Gualtar

ISBN

978-989-97492-2-1

III

Iacutendice

Apresentaccedilatildeo

Coloacutequio Internacional Nos 20 anos de Lifersquos Dominion

LIFErsquoS DOMINIONrsquoS DOMINION DWORKINrsquoS APPROACH AND THE

CURRENT LEGISLATIVE DEBATE ON ASSISTED SUICIDE IN GERMANY

Steffen Augsberg helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip11

DEVE O ESTADO SER NEUTRO AS QUESTOtildeES DIFIacuteCEIS DO ABORTO E

DA EUTANAacuteSIA

Benedita Mac Crorie helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip25

O CONCEITO DE UM PLANO RACIONAL DE VIDA E O SENTIDO DE UMA

MORTE DIGNA

Nuno Manuel Pinto Oliveira helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip35

Coloacutequio Internacional Em torno de Life Time Contracts

PRINCIacutePIOS GERAIS SOBRE OS CONTRATOS DURADOUROS ESSENCIAIS Agrave

EXISTEcircNCIA DA PESSOA

helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip55

LIFE TIME CONTRACTS UM PRIMEIRO BALANCcedilO

Luca Nogler amp Udo Reifner helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip65

UMA INTRODUCcedilAtildeO AOS CONTRATOS EXISTENCIAIS

Nuno Manuel Pinto Oliveira helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip89

IV

SERAacute A NEGOCIACcedilAtildeO COLETIVA DESEJAacuteVEL NO CONTEXTO DOS LIFE

TIME CONTRACTS

Antoacutenio Agostinho Guedes helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip101

A ALTERACcedilAtildeO DAS CIRCUNSTAcircNCIAS E OS LIFE TIME CONTRACTS

Henrique Sousa Antunes helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip119

AS FUNCcedilOtildeES DO DIREITO DA INSOLVEcircNCIA NO AcircMBITO DE LIFE TIME

CONTRACTS (BREVE REFLEXAtildeO)

Catarina Serra helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip133

A VINCULACcedilAtildeO DOS PARTICULARES AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E

OS CONTRATOS DE LONGA DURACcedilAtildeO

Benedita Mac Crorie helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip151

OS PRINCIacutePIOS GERAIS SOBRE OS CONTRATOS DURADOUROS

ESSENCIAIS Agrave EXISTEcircNCIA DA PESSOA (LIFE TIME CONTRACTS)

ALGUNS TOacutePICOS

Joseacute Joatildeo Abrantes helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip helliphelliphelliphelliphelliphellip163

OS CONTRATOS DE PRESTACcedilAtildeO DE SERVICcedilOS PUacuteBLICOS ESSENCIAIS

COMO LIFE TIME CONTRACTS

Jorge Morais Carvalho helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip165

O CONTRATO DE CREacuteDITO PARA AQUISICcedilAtildeO DE HABITACcedilAtildeO

PERMANENTE GARANTIDO POR HIPOTECA Agrave LUZ DOS PRINCIacutePIOS DE

LIFE TIME CONTRACTS

Ana Taveira da Fonseca helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip helliphelliphelliphellip183

V

PROPORCIONALIDADE E ADAPTABILIDADE A JURISPRUDEcircNCIA DO

TEDH NO EQUILIacuteBRIO DA RELACcedilAtildeO ENTRE SENHORIO E INQUILINO

Sandra Passinhas helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip201

BREVES REFLEXOtildeES SOBRE O EXERCIacuteCIO (EXTRAJUDICIAL) DO

DIREITO DE RESOLUCcedilAtildeO DO CONTRATO BILATERAL SINALAGMAacuteTICO

EM PARTICULAR SOBRE AS EXCECcedilOtildeES AO ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS

OPORTUNIDADESrdquo

O CASO PARTICULAR DAS RELACcedilOtildeES CONTRATUAIS DURADOURAS

Maria Joatildeo Sarmento Pestana de Vasconcelos helliphellip237

Coloacutequio ldquoO princiacutepio da dignidade da pessoa humana

e o direito privado Repensar os direitos de

personalidaderdquo

OS DIREITOS DE PERSONALIDADE COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS

Joaquim de Sousa Ribeiro helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip253

A (IR)RENUNCIABILIDADE DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE

Benedita Mac Crorie helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip263

DIREITOS (FUNDAMENTAIS) DE PERSONALIDADE

Luiacutesa Neto helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip275

TOMANDO A SEacuteRIO O PERSONALISMO EacuteTICO

Nuno Manuel Pinto Oliveira helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip277

AUSTERIDADE E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Joaquim Freitas da Rocha helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip295

VI

DIGNIDADE HUMANA E CONTRATO

Joseacute Joatildeo Abrantes helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip301

A VISAtildeO PERSONALISTA DA FAMIacuteLIA E A AFIRMACcedilAtildeO DE DIREITOS

INDIVIDUAIS NO SEIO DO GRUPO FAMILIAR ndash A EMERGEcircNCIA DE UM

NOVO PARADIGMA DECORRENTE DO PROCESSO DE

CONSTITUCIONALIZACcedilAtildeO DO DIREITO DA FAMIacuteLIA

Rute Teixeira Pedro helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip313

Apresentaccedilatildeo

laquoSe [hellip] ouso apresentar nesta altura o resultado do trabalho ateacute

agora realizado faccedilo-o na esperanccedila de que o nuacutemero daqueles que

prezam mais o espiacuterito do que o poder seja maior do que hoje possa

parecer faccedilo-o sobretudo com o desejo de que uma geraccedilatildeo mais

nova natildeo fique no meio do tumulto ruidoso dos nossos dias

completamente destituiacuteda de feacute numa ciecircncia juriacutedica livre faccedilo-o

na firme convicccedilatildeo de que os seus frutos se natildeo perderatildeo para um

futuro distanteraquo

(Hans Kelsen laquoPrefaacutecioraquo in Teoria pura do direito Armeacutenio Amado

Coimbra 1979)

Em 2014 propusemos ao Direitos Humanos mdash Centro de Investigaccedilatildeo

Interdisciplinar a criaccedilatildeo de dois grupos de investigaccedilatildeo em Direitos humanos

e biomedicina e em Direito privado mdash fenoacutemenos de constitucionalizaccedilatildeo de

materializaccedilatildeo e de socializaccedilatildeo

A proposta foi aceite mdash e em cada um dos dois grupos de investigaccedilatildeo

comeccedilaacutemos a desenvolver algumas iniciativas

Comeccedilaacutemos em Dezembro de 2014 com um coloacutequio internacional

sobre os 20 anos do livro de Ronald Dworkin Lifeacutes Dominion

Continuaacutemos em Maio de 2015 com um coloacutequio internacional sobre

o livro de Udo Reifner e Luca Nogler Life Time Contracts e em Dezembro de

2015 com um encontro sobre O princiacutepio da dignidade humana e o direito

privado Repensar os direitos de personalidade

No primeiro contaacutemos com a presenccedila de Joseacute de Sousa e Brito de

Manuel Carneiro da Frada de Steffen Augsberg e de Laura Ferreira dos

Santos

No segundo contaacutemos com a participaccedilatildeo de Udo Reifner e de Luca

Nogler de Agostinho Cardoso Guedes de Henrique Sousa Antunes de

Catarina Serra de Juacutelio Gomes de Joseacute Joatildeo Abrantes de Jorge Morais

Carvalho de Ana Maria Taveira da Fonseca de Sandra Passinhas e de Maria

Joatildeo Vasconcelos

E no terceiro no coloacutequio sobre O princiacutepio da dignidade humana e o

direito privado intervieram Joaquim Sousa Ribeiro entatildeo Presidente do

8

Tribunal Constitucional Maria Luacutecia Amaral Paulo Mota Pinto Luiacutesa Neto

Jorge Pereira da Silva Joaquim Freitas da Rocha Joseacute Joatildeo Abrantes e Rute

Teixeira Pedro

Nenhum acto ou gesto humano se preenche de significado se natildeo for

um acto ou um gesto partilhado Renovamos por isso o nosso agradecimento

a todos por terem aceitado partilhar connosco os seus conhecimentos e as suas

convicccedilotildees renovamos tambeacutem o nosso agradecimento a todos aqueles que se

dispuseram a assistir aos coloacutequios que organizaacutemos participando nos seus

trabalhos

Em tempos como os de hoje em que os recursos disponiacuteveis satildeo tatildeo

escassos tudo ou quase tudo o que podemos fazer depende da generosidade

da disponibilidade e (atrevemo-nos a pensar) de alguma amizade de quem se

dispotildee a aceitar o nosso convite

Estamos convencidos de que nos anima a todos a mesma feacute numa

ciecircncia do direito livre mdash e sobretudo estamos convencidos de que os frutos

do que dissemos se natildeo perderatildeo num futuro mais proacuteximo ou mais distante

Braga novembro de 2016

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Benedita Mac Crorie

Coloacutequio Internacional

Nos 20 anos de Lifersquos Dominion

Braga 12 de Dezembro de 2014

10

11

Lifersquos Dominionrsquos Dominion Dworkinrsquos Approach

and the Current Legislative Debate on Assisted

Suicide in Germany

Steffen Augsberg

A INTRODUCTORY REMARKS

In his seminal book bdquoLifersquos Dominionldquo1 Ronald Dworkin makes the

lucid and helpful distinction between the (objective collective) sanctity of

human life and the (subjective individual) right to life2 He then goes on to

argue that neither of these requires us to try to prolong each and every life at

any cost At this point his discussion is both subtle and convincing More

specifically though according Dworkin this analysis leads to the demand for

specific mechanisms allowing people to choose under certain conditions

whether or not to end their own life Here I find the argumentation too

generalistic and therefore not persuasive In my view Dworkin does not

sufficiently recognise the distinct historical experiences of different countries

and the legal traditions based upon these experiences Furthermore he does

not take into account the possibility that a rigid regulation of euthanasia might

be acceptable or even desirable in order to secure personal autonomy in

precarious circumstances Both of these aspects can be explained in more

detail by a short description of an ongoing debate in the German parliament

the Bundestag It concerns the question whether or not (certain forms of)

assisted suicide ndash which at present is legal due to the fact that suicide itself is

legal and assisting in a legal act cannot according to general criminal law

rules constitute a crime ndash are to be outlawed or even penalised

My argument here is developed in five steps At first it is worth

noticing that the current legislative process is exceptional insofar as it does not

follow the lines of traditional party politics and involves a great deal of

interdisciplinary and comparative work (B) Secondly in order to properly

understand the existing legal regulation of euthanasia and assisted suicide as

1 Dworkin R Lifersquos Dominion An Argument about Abortion and Euthanasia 1993 2 There are noteworthy parallels with Habermasrsquo concept of the sanctity of the human race (as

opposed to each individual human) cf Habermas J Die Zukunft der menschlichen Natur

Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik 2005

12

well as the different approaches to its reform it is important to remind

ourselves of the historical background In general much of what is being said

in German constitutional law has to be understood against the countryrsquos

specific historical experiences primarily the challenge of the fascist regime

At face value this rings especially true with regard to euthanasia although a

further scrutiny of their context creates some doubts as to the validity of the

historical arguments (C) On this basis we can thirdly take a closer look at

the legal framework in which a possible regulatory reform has to operate (D)

thus enabling us to better understand the different legislative proposals being

discussed in the Bundestag today (E) Finally this overview should help

understand why Dworkinrsquos approach regardless of how insightful interesting

and intellectually stimulating it is offers relatively little help with the

legislative task at hand (F)

B MEETING THE NEIGHBOURS THE CURRENT GERMAN DEBATE ON

ASSISTED SUICIDE AS A PARADIGM FOR A DISCUSSION INFLUENCED

BOTH BY INTERDISCIPLINARY INSIGHTS AND COMPARATIVE

PERSPECTIVES

Legal discussions tend to be rather introverted and self-centred and

lawyers are likely to regard legislative action mainly or even solely as a

question of conformity with higher-ranking norms Moreover in the German

parliamentary system at least discussions normally are shortened by means of

parliamentary or more precisely party discipline Although Art 38 of the

Fundamental Law states that members of Parliament bdquoshall be representatives

of the whole people not bound by orders or instructions and responsible only

to their conscienceldquo it is widely recognised that this passage does not stand

in the way of order and organisation within the parliamentary groups and

parliament as a whole Thus even with regard to highly controversial topics

with huge social andor fiscal implications (eg the recent decisions on

extending and expanding the financial support for Greece) the members of the

various parliamentary groups usually vote in accordance with their respective

party leaders This method while being a subject of constant criticism and

calls for reform has by and large been proven successful in the past It enables

parliamentarians to specialise in certain areas of expertise and allows their

colleagues to follow suit where these specific topics are concerned

The current legislative debate in Germany on the necessity to penalise

assisted suicide deviates from these well-trodden paths Its first peculiarity is

the fact that the party leaders have agreed to bdquoopen upldquo the debate ie not to

impose party discipline This is in line with the rather strange tendency in

recent years to allow members of parliament to vote according to their

13

conscience alone where ethical or biopolitical questions are concerned In

these (albeit rather scarce) circumstances parliament abstains from the

common practice of party discipline and adheres more strictly to the letter

(although not necessarily the spirit) of the (Fundamental) Law While it is

highly doubtful that this differentiation is in itself democratically sound3 in

the present context it has had very specific consequences All four legislative

proposals brought before parliament originated within parliament itself ie

none of them was drafted by the government and three out of the four are

based on cooperation of individual MPrsquos across party lines Secondly the

current debate is not limited to the field of law and the profession of lawyers

On the contrary the deliberations have so far included ia religious leaders

moral philosophers medical doctors and representatives of the secular

society4 Furthermore the ongoing discussions also benefit from far-reaching

factual and legal comparisons Specifically in order to support the argument

against stricter regulation regulatory concepts in countries whose approaches

to euthanasia andor (physician) assisted suicide are more liberal or care-free

than Germanyrsquos are being presented as possible role-models5 One might think

that this interdisciplinary and comparative perspective could (and maybe

should) easily link the current parliamentary debate directly to the work of

Dworkin Yet although at its heart lie exactly the problems which are also

pertinent for this conference the sanctity or in Dworkinrsquos terminology

intrinsic value of human life its relation to individual autonomy and freedom

and the ways in which it is to be protected by the legal order as far as I am

aware Dworkinrsquos position on euthanasia as laid out in bdquoLifersquos Dominionldquo is

not expressedly made reference to One might however find traces of his

basic concept and ideas within the details of the various legislative proposals

and their supporting arguments It is these implicit references that I would like

to stress in this short lecture

3 Cf Augsberg S bdquoSternstunden des Parlamentsldquo Ideal und Wirklichkeit biopolitischer

Entscheidungsfindung in der reprasentativen Demokratie forthcoming in Rixen S (Ed) Ist

wahrheitsorientierte Biopolitik moglich Chancen und Grenzen partizipationsfreundlicher

Institutionenarrangements bei politischen Konflikten am Lebensanfang und am Lebensende 4 As a side-note Having been involved in an expertsrsquo hearing held by the largest parliamentary

group (CDUCSU = the Christian Democrats) I was astonished ndash and a bit shocked ndash by the

extent of involvement of religious leaders Their influence is however not tangible in the

final legislative proposals 5 Cf eg the references to Belgium the Netherlands Luxemburg Switzerland and esp the

USA (Oregon Death With Dignity Act of 1997 Washington Death With Dignity Act of 2009

and the [Vermont] Patient Choice and Control at the End of Life Act of 2013) in Borasio G

et al Selbstbestimmung im Sterben ndash Fuumlrsorge zum Leben 2014 pp 41 seq

14

C HISTORICAL BACKGROUND EUTHANASIA AS ANATHEMA FOR

GERMAN SOCIETY

German constitutional thinking is in general highly influenced by the

historical experiences of the 20th century In many ways the Fundamental

Law can be read and interpreted as a normative antidote to the dangers that the

country faced the horror it suffered and the terror it inflicted on other nations

and peoples in the past Some specific sensibilities and peculiarities can be

explained against this background Whereas in other countries the influence of

religion eg catholicism in Southern Europe or Poland may be significantly

higher in Germany the memory oft he Nazi atrocities still shapes the current

legal and political debate Since the Nazi regime made use of the term

bdquoeuthanasialdquo ndash albeit in a completely different and perverted way the idea of

bdquomerciful killingsldquo is traditionally frowned upon in Germany As is the case

with many references to Nazi Germany mentioning these terrible crimes

usually functions as a almost irresistible discussion-stopper This is especially

evident with regard to sect 216 of the German Penal Code (Strafgesetzbuch=

StGB) According to this norm killing a person is a crime even if it is done in

response to and according to the bdquovictimrsquosldquo explicit demands In the political

realm at least this norm is regarded as a taboo that is not to be touched The

one common denominator of the four legislative proposals as well as the

political discussion on assisted suicide in general is the expressed conviction

that sect 216 StGB must not be modified

So on the one hand there can be little doubt that the atrocities of the

past still cast their shadow on the current debate Yet on the other hand there

is a sense there might be some mitigating factors Firstly we have to wonder

whether the importance of the historical experience on the collective psyche

in Germany has been exaggerated Historians have provided us with good

evidence that at least within the medical profession of the post-war period

relatively little attention was paid to past crimes6 Secondly according to

recent polls large parts of the populace do not share the taboo so evidently

dominant in the political sphere Questioned on their preferences with regard

to assisted suicide a solid majority state they would expect and accept bdquohelpldquo

from their respective physicians Obviously the subtle juridical differentiation

6 Cf the various publications of the Giessen university research project bdquoThematisierung der

NS-Medizin in der Nachkriegszeitldquo esp Roelcke VTopp SLepicard E (Eds) Silence

Scapegoats Self-Reflection The Shadow of Nazi Medical Crimes on Medicine and Bioethics

2014 Roelcke VLepicard E (Eds) Medical Narratives on National Socialist Euthanasia

Professional Identity and Ethics between Politics of Memory and Historiography (= Korot ndash

The Israel Journal of the History of Medicine and Science 19 [20072008] 2009 Special

Issue) 2009

15

between (de lege lata legal) assisted suicide and (de lege lata and according

to all relevant political actors de lege ferenda illegal) voluntary killing on

request7 is not only unknown but also irrelevant to the lay man Of course

when reading these polls we have to keep in mind the well-known potential

imprecision of demoscopy More importantly in a representative democracy

legislative reform is not designed directly according to popular demand or

widespread misconceptions of the law And yet the mere fact that there appears

to be such a blatant hiatus between the political class and the general public

merits the question whether and if yes why the criminalisation of the killing

on request is to be upheld Thirdly we have to recognise that the Nazi program

of euthanasia consisted not of voluntary killings but of murders thus

rendering the connection between these crimes and the current legal regulation

frail at best Even more relevant from a legal point of view is the fact that while

historical experiences may influence and explain legislative decisions they do

not in themselves serve as a sufficient legitimatory basis Historia docet but

is does not put forward legally binding demands In other words sect 216 StGB

the criminalisation of voluntary killing on request cannot be explained and

legitimized by objective supra-individualistic arguments This is why modern

criminal lawyers agree that the norm serves to guarantee individual autonomy

by securing that fleeting moments of desperation must not be exploited8 If this

reconstruction of the normrsquos telos is accepted as both legally and morally

convincing it leads pretty straightforwardly to a another conclusion There

may be other equally dangerous inferences on the autonomous decision-

making process These too could (and maybe should) therefore be subjected

to further regulation

D THE NORMATIVE FRAMEWORK FOR EUTHANASIA AND ASSSISTED

SUICIDE DE LEGE LATA

At this point it is necessary to present at least a very short overview oft

he normative framework that such regulatory reform would have operate

within In the given context this means that not only do we need to focus on

the general constitutional law provisions regarding (assisted) suicide (I) but

7 In short The two scenarios can be differentiated by a distinction that although theoretically

persuasive can prove rather difficult in practice we have to impugn whether the final act of

killing is taken by the bdquovictimldquo who is merely assisted by another person or whether this person

is responsible for this act 8 Cf Schneider H Muumlnchener Kommentar zum Strafgesetzbuch Bd 4 Second Edition

2012 sect 216 Rn 2 seq with further references

16

also on the conditions under which the Fundamental Law allows for the use of

criminal law (II)

I A FUNDAMENTAL RIGHTS BASED APPROACH TO THE PROBLEM

Like many modern constitutions the German Fundamental Law does

contain the right to life Its Art 2 subsection 2 does however not not only

concern the physical integrity of the human body Read together with the right

to free development of the individual personality (Art 2 subsec 1 and Art 1

subsec 1) the norm constitutes an encompassing fundamental right to

individual self-determination This dynamic individual right to make decisions

over onersquos own physical and mental integrity is of course especially relevant

in the field of medical attention (be it curative or palliative) Although

naturally patients tend to rely upon the expertise and experience of the medical

professionals involved in their care the constitution guarantees that the latter

have to behave according to the formerrsquos wishes Therefore it is the patient

not the physician who decides which procedure is to be applied This decision

is to be observed even where ndash from a purely medical point of view ndash it appears

bdquowrongldquo oder bdquoirrationalldquo The main goal of the medical treatment is not to

secure or restore the patientrsquos health rather it is his informed consent that

functions as the primary guideline for the medical professionals From a

fundamental rights perspective the hierarchy is very clear indeed Voluntas

non salus aegroti suprema lex9

This right to autonomy does not end where life-threatening decisions

are concerned On the contrary patients are guaranteed the right to decide

whether they agree to a life-saving operation or treatment Just as treatng a

patient is leliant upon his or her informed consent the informed dissent or veto

given by a mentally sound person is binding for the medical professionals

There is no duty of care against the patientrsquos wishes On the contrary

Continuing treatment against his or her wishes means violating his or her

physical integrity ndash from the crimainal law point of view it constitutes assault

As long as the patient is aware of the risks and consequences this is the case

even where non-treatment will lead to the patientrsquos death

About these questions there appears to be a broad maybe even

universal consensus among German constitutional lawyers At this point

Dworkin too would agree For even though he argues in bdquoLifersquos Dominionldquo

that we have to differentiate between the sanctity of life and the right to life

9 Cf Houmlfling W Salus etaut voluntas aegroti suprema lex ndash Verfassungsrechtliche Grenzen

des Selbstbestimmungsrechts in WienkeEberbachKramerJanke (Hrsg) Die Verbesserung

des Menschen 2009 pp 119 seq

17

and that the latter can only be attributed to individuals capable of having and

protecting interests10 thus excluding foetusses and embryos11 this distinction

of course cannot similarly be applied to the problems of suicide and

euthanasia In fact coming back to the German Fundamental Law the only

contentious issue concerns the question whether the constitution does

guranatee the right take onersquos own life meaning there is as it were a

fundamental right to suicide12 Indeed it does sound contradictory to provide

safeguards both for human life as well as the right to end it However any

interpretation that does not recognise the bdquoright to suicideldquo faces highly

problematic consequences Denying the right to end onersquos own life would be

tantamount to establishing a duty to continue living under any circumstances

ndash and that is obviously not acceptable from a fundamental rights perspective13

In stark contrast to religious beliefs this constitutional based approach does not

treat life as sacred or as an intrinsic untouchable value per se but as an

individual right or even as a personal commodity

So in short according to the German Fundamental Law each individual

is entitled to end his or her life Thus a great part of the characteristic problems

with regard to the legality of suicide which are so prominent within the

American legal system (and build the background to Dworkinrsquos analysis in

bdquoLifersquos Dominionldquo) do not exist in Germany Here suicide is not only not a

criminal offense but in principle protected by the law This also means that

assisting a person committing suicide is not punishable either The Penal Code

does however provide in its sect 216 for the criminalisation of euthanasia ie

the active killing of another person even if it happens in strict accordance to

this personrsquos expressed wishes As stated above the logic behind the

criminalisation of killings on request cannot be solely seen in the general taboo

of killing another person Rather the involvement of another person changes

10 Dworkin R Lifersquos Dominion An Argument about Abortion and Euthanasia 1993 p 20

bdquothe scarcely comprehensible idea that an organism that has never had a mental life can still

have interestsldquo 11 It is highly doubtful whether such a position is in accordance with the German Funamental

Law even though the Federal Constitutional Courtrsquos decisions on the criminalisation of

abortion might be interpreted in a similar sense Cf Augsberg S Wuumlrde des Menschen als

Gattungswesen Zur Verrechtlichung des Gattungsargumentes in Dabrock PDenkhaus

RSchaede S (Eds) Gattung Mensch Interdisziplinaumlre Perspektiven 2010 pp 385 seq 12 Cf for the sceptical position eg Di Fabio U MaunzDuumlrig (Eds) Grundgesetz-

Kommentar Art 2 Rn 47 with further references 13 Cf in this sense (among others) the recent recommendation by the German Ethics Council

(Deutscher Ethikrat) bdquoZur Regelung der Suizidbeihilfe in einer offenen Gesellschaft

Deutscher Ethikrat empfiehlt gesetzliche Starkung der Suizidpraventionldquo (18122014) p 3

18

and challenges the basic conception of a conscious and autonomous decision

to end onersquos own life

Moreover accepting the fundamental law basis of the autonomous

decision to end onersquos life is does of course not automatically encompass the

statersquos duty to supply legal mechanisms to successfully complete such an

endeavour Neither the Fundamental Law nor the Europea Convention on

Human Rights nor the European Unionrsquos Charter of Fundamental Rights

contain an entitlement of this sort14 On the other hand it does not proclude

the states from implementing protective measurements either With regard to

the high value the legal system places on human life a specific sensibility is

needed Since both the human autonomous decision-making and the physical

integrity are to be protected it is not only legally acceptable but in principle

necessary to prevent suicides and suicide-attempts The rationale being that

under normal circumstances it is almost impossible to know whether the

suicide (attempt) is grounded in an autonomous conscious and well-thought

out decision and that it is better to err on the side of caution It is not only the

duty to protect other peoplersquos (fundamental) rights ndash the classic example being

traumatized trains conductors ndash but primarily this cognitive insecurity the

unavoidable ignorance whether the decision has really been take

autonomously and without undue influence that legitimizes the statersquos action

against suicide attempts Empirically this approach can be validated by

pointing at statistcs according to which the number of suicide attempts is 10 to

20 times higher than the number of bdquosuccessfulldquo suicides15 Obviously there

exists a massive chasm between the fleeting wish to commit suicide and the

long-time wish for survival

II CRIMINAL LAW PROVISIONS

But is it really necessary to incorporate such provisions in the Penal

Code In a liberal system this question has to be asked and answered In our

case I am however convinced that even if we keep in mind the generally

speaking strict conditions under which criminal sanctions are lawful under the

German constitutional regime (1) the answer is bdquoYesldquo (2)

1 REGULATING PENAL LAW IN GENERAL

Criminalising a behaviour means using the legal systemrsquos most rigid

sanctioning mechanism Penal law provisions therefore must serve (only) to

14 Likewise the legislative proposal BT-Drs 1711126 pp 7 seq BR-Drs 23006 p 1 15 Cf eg Fiedler G Suizide Suizidversuche und Suizidalitat in Deutschland ndash Daten und

Fakten 2005 httpwwwsuicidologydeonline-textdatenpdf

19

enforce basic shared convictions If the law describes a given societyrsquos bdquoethical

minimumldquo16 then the criminal law must be held to an even stricter standard

The severity of the sanctions as well as the stigma that goes along with a

criminal conviction guarantee that trespasses against these norms are reduced

as much as possible Penal law provisions contain bans in the strict sense of

the word and thus form specifically intense infringements of individual

liberties For this reason they must not be used in order to protect mere moral

convictions or where individual rights are not (or not yet) at risk17

Furthermore penal law provisions demand specific legislative care They have

to state their respective aims clearly are to be formulated in a language that is

both precise and easily understandable and and they must avoid unwanted

negative effects In general new provisions should only be incorporated into

the Penal Code when there are no convincing other options

2 CRIMINALISING ASSISTED SUICIDE

However even against this reminder of the general preconditions and

limits of criminal law legislation in the current legislative debate there is no

need to worry that these standards are not met For once in the case of asssisted

suicide ndash as with sect 216 StGB ndash the law aims at protecting the most valuable

assets namely human life and individual autonomy It stipulates that these are

at least abstractly endangered where other persons or organisations are

involved because their involvement casts a doubt over the basic assumption of

self-responsibility that guarantees the legality of suicide (attempts) Clearly

putting life and autonomy at risk warrants a legal reaction and even a change

in the the penal law This ist especially true as other non-criminal law based

measures have been found wanting in the past According to recent experience

neither administrative law norms nor regulations on substance abuse and

(medical) professional behaviour have been able to effectively put a halt to the

attempts to establish assisted suicide as a normal service in Germany18

16 Cf Jellinek G Die socialethische Bedeutung von Recht Unrecht und Strafe 1878 17 Cf Hart HLA Law Liberty and Morality 1963 from a German criminal law perspective

eg Jakobs G Rechtsguumlterschutz Zur Legitimation des Strafrechts 2012 Wohlers W

Deliktstypen des Praumlventionsstrafrechts ndash zur Dogmatik bdquomodernerldquo Gefahrdungsdelikte

2000 18 For example in the case of a Berlin-based physician who claims to have assisted 150

persons with their suicide not only was there no criminal prosecution but an administrative

court even found no reason for a ban on the grounds of professional misbehaviour (VG Berlin

Judgement of March 30th 2012 ndash VG 9 K 6309 = Medizinrecht 2013 pp 58 seq) A spiritual

adviser who admittedly had been assisting with multiple suicides was only found guilty of

illegally importing and distributing narcotics in one instance (BGH Judgement of February

7th 2001 ndash 5 StR 47400 = BGHSt 46 pp 279 seq)

20

Relying on administrative control mechanisms or licensing programs would

also be an insufficient alternative Not only would the enforcement most likely

prove to be very difficult but such an arrangement would even have

counterproductive effects it would help to further strengthen the agenda to

bdquonormaliseldquo assisted suicide since the bdquoSterbehelferorganisationenldquo could

point to the bdquostamp of approvalldquo of being state-policed19

Finally the choice to implement the regulation of assisted suicide

within the Penal Code does have one further advantage In the German federal

system the regulation of professional behaviour is in general a matter of state

law Therefore it has been pointed out that the two legislative proposals that

aim to change just the Civil Code20 are unconstitutional on the grounds that

the competence for the regulation of the medical profession does not lie with

the federal level (bdquoBundldquo) but falls within the sphere of the states (bdquoLanderldquo)21

E ORIGIN AND OUTLINE OF THE ONGOING DEBATE

In the fall of 2015 the Bundestag will discuss and in all likelihood

decide on four legislative proposals Before these proposals can be described

in more detail (II) it is important to have a look at the factual developments

that have brought about this legislative action (I)22

I DEMOGRAPHIC CHANGE AND THE RISE OF

STERBEHELFERORGANISATIONEN (ORGANISATIONS

SPECIALISING IN ASSISTED SUICIDE)

As described above in the given criminal law system assisted suicide

is not a punishable offence This can of course be regarded as an integral and

intentional consequence of the legal systemrsquos approach to suicide in general

It might however also be perceived of as a loop-hole In any case the legality

of assisted suicide has enabled the emergence of a variety of so-called

19 BT-Drs 1711126 p 8 20 BT-Drs 185374 and 185375 21 Cf the expert opinion drafted by the Bundestagrsquos own team of legal advisers (Gutachten

des Wissenschaftlichen Dienstes des Deutschen Bundestags) Gesetzentwurfe zur

Sterbebegleitung Gesetzgebungskompetenz des Bundes und Bestimmtheitsgebot WD 3 ndash

3000 ndash 15515 of August 5th 2015 22 Disclaimer Having previously co-authored a similar proposal as an academic project

(httpstiftung-

patientenschutzdeuploadsfilespdfhibStellungnahmeGesetzentwurfAssistierterSuizid2012

0604pdf) I have been actively involved in drafting the second legislative proposal (Brand et

al)

21

bdquoSterbehelferorganisationenldquo Of course the term in itself is euphemistic as it

appeals to the idea of assisted dying wheras what is really meant is assisted

suicide While the numbers are still quite low they are apparently growing and

the attention and recognition received by these organisations have initiated an

intensive political debate This debate has to understood against the

background of the ndash another euphemism ndash bdquodemographic changeldquo within

German society Not only fort he last cuple of years but for decades the

demographic development ha staken a highly problematic turn As the former

President Koehler infamously put it bdquoWe are getting older and older but we

donrsquot have children anymoreldquo This aging society does affect a whole range of

political topics not the least of which are the ever-growing costs of the

national health service Clearly under these circumstances the idealistic idea

of self-determination regarding end-of-life decisions must be regarded with

even more scrutiny The potential for abuse is evident23

II A SHORT DESCRIPTION OF THE MOST RELEVANT LEGISLATIVE

AGENDAS

In the course of the ongoing debate the Bundestag has already passed

a law that serves to better the conditions for palliative care As stated before

the current debate focuses on the question of whether assisted suicide should

be penalised or whether it should be permissible if certain (mainly procedural)

conditions are met The proposals range from not changing the law at all to

penalising all forms of assisted suicide

1 A first legislative proposal (MP Sensburg et al)24 aims at

incorporating a new provision in the Penal Code that bans any form of assisted

suicide While this obviously serves to produce an easily understandable and

clear-cut solution it is also highly problematic from a constitutional law point

of view Since the new norm does not differentiate between suicides where the

autonomous decision is beyond doubt and suicides where that is not the case

it criminalises assistance even where the suicide itself is protected by the

respective individualrsquos fundamental rights

2 The second legislative proposal (MP Brand et al)25 does also

contain a new criminal law provision (sect 217 StGB) However in this proposal

this norm does not criminalise any form of assisted suicide Rather it penalises

only acts of assistance that are organised and meant to be provided

23 For a humourous yet quite scary take on the subject visit

httpfreakonomicscom20150827are-you-ready-for-a-glorious-sunset-a-new-

freakonomics-radio-episode 24 BT-Drs 185376 25 BT-Drs 185373

22

continuously and in many cases The rationale behind this proposal is that

persons andor organisations providing this kind of assistance are likely to

have interests of their own and develop their own agenda thereby possibly

contravening the wishes of the suicidal person Thus under such circumstances

it can be presumed that there is at least an abstract risk to an autonomous

decision-making process and the human life depending on this process

3 The third proposal (MP Kuumlnast et al)26 does not want to alter the

Penal Code but establishes a separate statute Within this statute however it

too contains a criminal law provision according to which certain forms of

assisted suicide are penalised Where the second proposal looks at continuance

and organisation this proposal relies on the financial aims of the persons

giving assistance The problem with this approach is a) that it can easily be

circumvented and b) that it is quite possible that an undue influence is exerted

even when there no financial interests involved

4 Finally the fourth porposal (MP Hintze et al)27 does not want to

criminalise assisted suicide at all On the contrary the proposal aims to clarify

its legality by integrating norms into the Civil Code that specify the conditions

under which assisted suicide is legal Among these conditions are the fact that

the suicidal person (in the proposalrsquos terminology the bdquopatientldquo) is an adult

and mentally sound yet suffering from a mortal and incurable illness that the

assistance is given by a physician and that certain steps are taken to ensure that

the bdquopatientrsquosldquo decision is sincere final and given voluntarily As with the third

proposal there are good arguments that this proposal is formally

unconstitutuional due to the fact that the Bundestag lacks the necessary

competence to legislate on these matters Furthermore the fact that the

proposal summarily excludes minors as well as persons who are not terminally

ill stands in stark contrast to the fundamental lawrsquos basic concept that no

human life is more or less valuable than another Finally while there is some

appeal in the idea that a procedural mechanism could be used to safeguard an

autonomous decision it is doubtful that this will work Quite obviously even

the drafters of the proposal do not trust their own concept because if they did

there would be no reason not to extend it a) beyond the restricted circle of

persons and b) to instances of killing on request (sect 216 StGB)

5 It remains to be seen how the Bundestag decides As things stand

only the second proposal does not invoke serious legal doubts It is however

quite possible that under these circumstances the Bundestag will vote not to

change the law at all leaving everything at it is

26 BT-Drs 185375 27 BT-Drs 185374

23

F LIFES DOMINIONS DOMINION NATIONAL EXPERIENCES AND

DISCIPLINARY EXPECTATIONS AS BOUNDARIES

As we have seen Dworkinrsquos tentative and balanced yet by tendence

liberal approach is not clearly tangible in the ongoing discussions His concept

of lifersquos intrinsic value can (and maybe must) however be understood against

the background of a nationrsquos specific historical experiences and the legal

traditions built upon those experiences Even if in Germany there is a trend

in recent years to discuss bdquoeuthanasialdquo more frankly and open-mindedly the

past still lingers on in the current debate and shapes recent events Another

aspect that links this discussion to Dworkinrsquos work concerns the use of

paternalistic legislation In the traditional liberal view attempts by the state to

educate and direct its citizens according to a specific idea of an accomplished

life are to be frowned upon To put it simply in a liberal society the individual

is free to do as he or she pleases and as long as this does not put others at risk

it is no one elsersquos especially not the statersquos business With regard to the case

at hand however we must also acknowledge that criticising state action as

paternalistic might often be oversimplistic For as we have seen the concept of

human autonomy and autonomous decision-making is indeed very

complicated and complex sometimes even dubious Even if it is not dicarded

as a myth altogether it is highly context-sensitive and worthy of both close

scientific (juridical) attention and maybe even legal protection In my view

that is one of the lasting lessons we can take from the debate on the

criminalisation of assisted suicide

24

25

Deve o Estado ser neutro

As questotildees difiacuteceis do aborto e da eutanaacutesia

Benedita Mac Crorie

O tema que nos propomos tratar diz respeito ao papel que o Estado

deve assumir a propoacutesito das ldquoquestotildees difiacuteceisrdquo28 do aborto e da eutanaacutesia

Tratando-se este coloacutequio de um coloacutequio comemorativo da obra de Ronald

Dworkin Lifeacutes Dominion gostariacuteamos de num primeiro momento

enquadrar cada uma das questotildees que nos propomos abordar no pensamento

do Autor para a partir daiacute passar para a nossa proacutepria anaacutelise destas

problemaacuteticas no ordenamento juriacutedico portuguecircs

1 O ABORTO

Em relaccedilatildeo agrave questatildeo do aborto e em traccedilos muito gerais a obra de

Dworkin parte de uma distinccedilatildeo que o Autor considera essencial entre uma

ldquoobjecccedilatildeo derivativardquo ao aborto que parte da consideraccedilatildeo do feto como um

ser com interesses proacuteprios e titular de direitos e uma ldquoobjecccedilatildeo

independenterdquo que se funda no valor intriacutenseco da vida humana29

Para o Autor esta distinccedilatildeo eacute essencial porque a confusatildeo entre estes

dois planos tem ldquoenvenenadordquo a discussatildeo puacuteblica sobre o aborto Segundo

ele os defensores do movimento proacute-vida parecem defender que o feto eacute jaacute

28 Sobre o conceito de hard cases ver RONALD DWORKIN Taking Rights Seriously 2ordf

impressatildeo (com resposta a criacuteticas) Duckworth London 2009 pp 81 ss RONALD

DWORKIN A Matter of Principle Clarendon Press Oxford 1985 pp 119 ss ANABELA

LEAtildeO ldquoEm torno dos conceitos de regra e de princiacutepio A poleacutemica entre Hart e Dworkinrdquo

in Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de

Lisboa Almedina Coimbra 2008 p 66 GUSTAVO ZAGREBELSKY El Derecho Duacutectil

Ley Derechos Justicia (trad MARINA GASCOacuteN) 8ordf Ediccedilatildeo Editorial Trotta Madrid

2008 p 139 utiliza a expressatildeo ldquocasos criacuteticosrdquo e considera que estes satildeo os casos ldquosobre os

quais natildeo existe acordo (hellip) entre os inteacuterpretes acerca do sentido e do valor que se lhes deve

atribuirrdquo O Autor daacute como exemplos as questotildees que se relacionam com os temas da vida (a

concepccedilatildeo o aborto) da morte (a eutanaacutesia) da sauacutede (os transplantes a engenharia geneacutetica)

e da bioeacutetica em geral 29 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom Vintage Books New York 1994 pp 11 e ss

26

uma pessoa com os inerentes direitos desde a concepccedilatildeo mas na verdade

muito poucos realmente acreditam nisso ou levam esta sua posiccedilatildeo ateacute agraves

uacuteltimas consequecircncias Assim sendo defende que o que realmente divide as

pessoas eacute a forma de interpretar uma ideia fundamental e que todos

compartilhamos que eacute a de que a vida humana eacute sagrada30

Nessa medida a questatildeo central que entende que se deve colocar eacute a

seguinte pode o aborto ser considerado ilegal para protecccedilatildeo da santidade ou

da inviolabilidade da vida humana Pode uma comunidade poliacutetica tornar

valores intriacutensecos em questatildeo de decisatildeo colectiva em vez de questatildeo de

escolha individual31

Dworkin considera que a criminalizaccedilatildeo do aborto implica que os

poderes puacuteblicos tomem uma posiccedilatildeo acerca de um assunto que eacute

essencialmente do foro religioso A crenccedila que cada um de noacutes tem a propoacutesito

do valor intriacutenseco da vida eacute tatildeo profunda e espiritual como qualquer outra

crenccedila ainda que possa natildeo estar explicitamente ligada a uma religiatildeo Nesse

sentido faz um apelo agrave tradiccedilatildeo de liberdade de consciecircncia em democracias

modernas plurais considerando que eacute uma terriacutevel forma de tirania destrutiva

da responsabilidade moral a comunidade impor princiacutepios de feacute ou convicccedilotildees

individuais Assim defende que o Estado deve assumir uma posiccedilatildeo de

neutralidade neste domiacutenio32

Aquela que nos parece ser uma das criacuteticas mais pertinentes agrave obra de

Dworkin (natildeo pondo em causa evidentemente a sua importacircncia

extraordinaacuteria) prende-se com a separaccedilatildeo estrita que o Autor estabelece entre

questotildees de direito e questotildees de valor estando estas uacuteltimas arredadas da

esfera puacuteblica particularmente se pretendermos transpor as suas ideias para a

ordem juriacutedico-constitucional portuguesa

Num texto em que comenta a obra de Dworkin Jeremy Waldron faz

uma criacutetica ao seu pensamento que vai precisamente nesse sentido dizendo o

seguinte ldquoNo final Dworkin manteacutem a sua argumentaccedilatildeo apenas insistindo

que a atribuiccedilatildeo de direitos nada tem que ver com questotildees de valor intriacutenseco

(hellip)rdquo Waldron considera no entanto que ldquonatildeo estamos em posiccedilatildeo de dizer

30 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit pp 13 ss 31 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit p 26 32 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit p 15

27

que as nossas controveacutersias sobre valor devem estar fora da tomada de decisatildeo

colectiva acerca da lei (hellip)rdquo33

Dworkin preconiza a neutralidade do Estado liberal e considera que as

decisotildees poliacuteticas devem ser na medida do possiacutevel independentes de

qualquer ldquoconcepccedilatildeo da vida boardquo34 Ora a criacutetica basilar que se tem dirigido

ao liberalismo neutral no qual se insere o pensamento do Autor eacute a de que as

normas de direitos fundamentais natildeo resultam de uma ldquoposiccedilatildeo originalrdquo mas

antes de uma ldquorsquoexperiecircnciarsquo histoacuterico-socialmente situadardquo35 Eacute entatildeo a

constataccedilatildeo de que os homens natildeo existem ldquoem estado purordquo mas ldquosituada e

comprometidamenterdquo que fundamenta a oposiccedilatildeo a esta perspectiva36 Os

preceitos relativos aos direitos fundamentais traduzem o reconhecimento de

ldquobens ou valoresrdquo importantes para uma dada comunidade e que justificam

esses mesmos preceitos37

Haacute entatildeo uma ldquounidade de sentido cultural nos direitos

fundamentaisrdquo o que natildeo significa no entanto a aceitaccedilatildeo de ldquouma

determinada teoria dos valoresrdquo ou ldquoo reconhecimento de uma ordem de

valores hieraacuterquica abstracta e fechadardquo sendo ldquoa ordem constitucional dos

direitos fundamentais uma ordem pluralista e abertardquo38 Eacute o princiacutepio da

dignidade da pessoa humana que confere essa ldquounidade de sentidordquo aos

direitos fundamentais39 Tal implica que devamos partir de uma concepccedilatildeo de

33 JEREMY WALDRON ldquoThe Edges of Liferdquo publicado a 12 de maio de 1994 disponiacutevel

em httpwwwlrbcoukv16n09 jeremy-waldronthe-edges-of-life (11012016) 34 RONALD DWORKIN ldquoLiberalismrdquo in STUART HAMPSHIRE (ed) Public and Private

Morality Cambridge University Press Cambridge 1978 p 127 35 FERNANDO J BRONZE ldquoPessoa Direito e Estadordquo in ANTOacuteNIO MENEZES

CORDEIRO - PEDRO PAIS DE VASCONCELOS ndash PAULA COSTA E SILVA (orgs)

Estudos em Honra do Professor Doutor Joseacute de Oliveira Ascensatildeo Vol I Almedina

Coimbra 2008 p 317 36 LUIacuteS PEDRO PEREIRA COUTINHO A Autoridade Moral da Constituiccedilatildeo Da

Fundamentaccedilatildeo da Validade do Direito Constitucional Coimbra Editora Coimbra 2009 p

51 37 JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 4ordf Ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2009 p 100 38 JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 cit pp 100 e 101 Considerando que ldquoa transformaccedilatildeo da teoria dos

valores numa teoria dos princiacutepios evita a temida lsquotirania dos valoresrsquo sem se cair numa

(impossiacutevel) indiferenccedila aos valoresrdquo ver JOAtildeO LOUREIRO O Procedimento

Administrativo entre a Eficiecircncia e a Garantia dos Particulares Coimbra Editora 1995 p

162 39 JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 cit p 103

28

bem que ldquoinclua de maneira essencial a autonomiardquo40 uma vez que o princiacutepio

da dignidade se consubstancia precisamente na ideia de (igual) autonomia

Assim o Estado deve ser plural mas natildeo tem necessariamente de ser

neutral Nas palavras de Nuno Pinto Oliveira o ldquoprinciacutepio do pluralismordquo

obriga o Estado a assegurar aos seus cidadatildeos ldquopor intermeacutedio da democracia

e dos direitos fundamentais lsquocertos espaccedilos de autodeterminaccedilatildeo em que [os

poderes poliacuteticos e sociais] natildeo podem entrarrsquordquo Por seu lado ldquoo princiacutepio da

neutralidaderdquo impotildee que o Estado ldquoescolha em cada caso concreto soluccedilotildees

inteiramente neutras em relaccedilatildeo agraves autocompreensotildees individuais e

colectivasrdquo Daqui se retira que ldquoo Estado contemporacircneo estaacute subordinado ao

princiacutepio do pluralismo natildeo estaacute no entanto subordinado ao princiacutepio da

neutralidaderdquo41

Tudo isto para dizer que ainda que natildeo se entenda que o feto seja titular

de um direito subjectivo agrave vida tal natildeo deve significar que consequentemente

natildeo deva gozar de nenhuma protecccedilatildeo Natildeo nos parece que esta tenha de ser

uma questatildeo de ldquotudo ou nadardquo O que estaacute em causa natildeo eacute em alternativa

apenas o valor intriacutenseco que cada um de noacutes atribui agrave vida mas antes o valor

que enquanto comunidade decidimos atribuir a este bem erigido em bem

constitucionalmente protegido

Tal tem vindo a ser o caminho trilhado pelo Tribunal Constitucional

Portuguecircs quando afirma por exemplo no Acoacuterdatildeo nordm 617200742 que laquo[d]a

inviolabilidade da vida humana como foacutermula de tutela juriacutedica natildeo deriva

desde logo que a protecccedilatildeo contra agressotildees postule um direito subjectivo do

feto ou que natildeo seja de distinguir um direito subjectivo agrave vida de uma

protecccedilatildeo objectiva da vida intra-uterina como resulta da jurisprudecircncia

constitucional portuguesa e de outros paiacuteses europeus O facto de o feto ser

tutelado em nome da dignidade da vida humana natildeo significa que haja tiacutetulo

idecircntico ao reconhecido a partir do nascimentoraquo

Assim a vida humana eacute um bem juriacutedico-constitucionalmente

protegido e o TC tem entendido que para o Estado mesmo que se considere

que o feto natildeo eacute titular de um direito subjectivo agrave vida decorre um dever de

proteger essa ldquovida em formaccedilatildeordquo Apesar disso na ponderaccedilatildeo que fez entre

o direito ao desenvolvimento da personalidade da mulher de um lado e a

40 CARLOS S NINO ldquoLiberalismo versus Comunitarismordquo in Revista del Centro de Estuacutedios

Constitucionales nordm 1 1988 p 374 41 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA O Direito Geral de Personalidade e a ldquoSoluccedilatildeo do

Dissentimentordquo ndash Ensaio Sobre um Caso de ldquoConstitucionalizaccedilatildeordquo do Direito Civil Coimbra

Editora Coimbra 2002 p 163 42 httpwwwtribunalconstitucionalpttcacordaos20070617html

29

dimensatildeo objectiva do direito agrave vida do outro entendeu que esse dever de

proteger o direito agrave vida natildeo implica necessariamente a criminalizaccedilatildeo do

aborto na medida em que o direito penal eacute a uacuteltima ratio e haveraacute outras

formas de tutelar este bem

Tambeacutem no Acoacuterdatildeo 75201043 o TC foi chamado a pronunciar-se

acerca do modo como foi regulamentada a interrupccedilatildeo voluntaacuteria da gravidez

precisamente no sentido de avaliar se o Estado cumpriu devidamente o dever

de protecccedilatildeo decorrente da norma que consagra o direito agrave vida e se natildeo

poderia estar aqui em causa um deacutefice de protecccedilatildeo ou uma proibiccedilatildeo de

insuficiecircncia Nas palavras do Tribunal ldquoO cumprimento desse dever estaacute

sujeito a uma medida miacutenima sendo violada a proibiccedilatildeo de insuficiecircncia

(ldquoUntermassverbotrdquo) quando as normas de protecccedilatildeo ficarem aqueacutem do

constitucionalmente exigiacutevel44rdquo

Uma das questotildees colocadas no Acoacuterdatildeo prendia-se com saber se a

consulta a que a graacutevida necessariamente tem de comparecer e que eacute uma

consulta meramente informativa eacute ou natildeo idoacutenea e suficiente para o fim a que

se destina ndash a tutela da vida humana intra-uterina

Quanto a essa questatildeo tendemos a concordar com o voto de vencida

da Senhora Conselheira Maria Luacutecia Amaral no qual considera que haacute

efectivamente um deacutefice de protecccedilatildeo particularmente no que se refere agrave

consulta obrigatoacuteria que na sua opiniatildeo ldquodeveria ser o lugar sisteacutemico para

o cumprimento do dever estadual de protecccedilatildeo da vida ndash tornando-se por isso

aberta em relaccedilatildeo ao resultado por dela natildeo dever resultar nenhuma

imposiccedilatildeo da conduta futura da graacutevida mas comprometida quanto aos seus

proacuteprios fins por implicar um reconhecido empenhamento do Estado quanto

agrave desincentivaccedilatildeo do aborto ndash o que natildeo acontece porque vem a ser regulada

pelo legislador como se afinal de um estrito procedimento formal se tratasse

43 httpwwwtribunalconstitucionalpttcacordaos20100075html 44 Sobre o princiacutepio da proibiccedilatildeo do deacutefice ver JORGE PEREIRA DA SILVA rdquoInterdiccedilatildeo de

protecccedilatildeo insuficiente proporcionalidade e conteuacutedo essencialrdquo in Estudos em Homenagem

ao Professor Doutor Jorge Miranda Vol II Coimbra Editora Coimbra 2012 pp 185 ss

JORGE REIS NOVAIS As Restriccedilotildees aos Direitos Fundamentais natildeo Expressamente

Autorizadas pela Constituiccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra 2003 pp 76 e 77 JOSEacute

JOAQUIM GOMES CANOTILHO Direito Constitucional e Teoria da Constituiccedilatildeo 7ordf

Ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2003 p 273 OLIVER KLEIN ldquoDas Untermassverbot ndash Uumlber

die Justiziabilitat grundrechtlicher Schutzpflichterfullungrdquo in JuS nordm 11 2006 p 961

DIETER GRIMM ldquoThe protective function of the staterdquo in GEORG NOLTE European and

US Constitutionalism Cambridge University Press Cambridge 2005 p 151

30

(para aleacutem de nela natildeo poderem estar presentes por proibiccedilatildeo decorrente do

nordm 2 do artigo 6ordm da Lei os meacutedicos objectores de consciecircncia)rdquo

Tendemos a concordar com esta posiccedilatildeo porque pensamos que eacute

importante que se entenda o aborto como uma lesatildeo de um bem juriacutedico

constitucionalmente protegido e natildeo como uma conduta meramente neutra45

No que se refere agrave questatildeo do aborto natildeo nos parece entatildeo que esta

seja uma questatildeo que deva apenas ser remetida agrave consciecircncia individual de

cada um tendo aqui o Estado um papel a cumprir ainda que esse papel natildeo

tenha de passar pela criminalizaccedilatildeo da conduta Ainda assim parece-nos

importante que o Estado leve a cabo poliacuteticas puacuteblicas e legisle no sentido de

evitar a sua banalizaccedilatildeo

Haacute ainda uma questatildeo que consideramos importante discutir a este

propoacutesito e em relaccedilatildeo agrave qual a lei eacute omissa o problema da reincidecircncia

Parece-nos que deve haver por parte do Estado uma atenccedilatildeo especial a estas

situaccedilotildees ainda que nos pareccedila que a soluccedilatildeo do problema natildeo deve passar

por medidas punitivas nomeadamente a imposiccedilatildeo do pagamento de taxas

moderadoras para quem reincida

2 A EUTANAacuteSIA

Voltando novamente agrave obra de Dworkin quanto ao fim da vida a

perspectiva do Autor parte da mesma ideia de que o que estaacute em causa eacute o

valor intriacutenseco que se atribui agrave vida sendo que a escolha do momento da

morte deve ser deixada agrave consciecircncia individual de cada um considerando que

estas questotildees que se colocam nos dois extremos da vida tecircm muito em

comum46 Para Dworkin a escolha da forma de morrer pode ser decisiva para

o proacuteprio sentido que pretendemos atribuir agrave nossa vida Assim a convicccedilatildeo

45 Independentemente de estarmos ou natildeo de acordo com as medidas adoptadas a Lei nordm

1362015 de 7 de Setembro que veio alterar a Lei nordm 162007 de 17 de abril sobre exclusatildeo

da ilicitude nos casos de interrupccedilatildeo voluntaacuteria da gravidez parece ter ido nesse sentido ao

estabelecer a obrigatoriedade de a mulher comparecer a consultas com um psicoacutelogo e um

teacutecnico de serviccedilo social bem como a possibilidade de os meacutedicos objectores de consciecircncia

poderem participar nas vaacuterias fases do processo de aconselhamento Esta lei foi entretanto

revogada 46 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit pp 179 e 218

31

de que a vida humana eacute sagrada pode acabar por se tornar em argumento

decisivo a favor em vez de contra a eutanaacutesia47

Pensamos que a argumentaccedilatildeo do Autor eacute mais convincente no que diz

respeito a esta questatildeo uma vez que aqui natildeo estaacute envolvido um ldquoser em

potecircnciardquo (ou o que lhe queiramos chamar) que eacute externo agrave pessoa que decide

morrer e que ainda que se possa considerar que natildeo eacute titular de um direito

subjectivo agrave vida goza da protecccedilatildeo que decorre deste direito na sua dimensatildeo

objectiva Trata-se da escolha que a proacutepria pessoa faz acerca do modo como

pretende terminar a sua proacutepria vida e na nossa perspectiva esse facto faz com

que natildeo possamos pensar os dois problemas exactamente nos mesmos termos

Haacute diferentes razotildees que podem ser invocadas por quem se opotildee agrave

liberdade de escolha em fim de vida O Autor refere que muitas vezes satildeo

razotildees paternalistas que estatildeo na base dessa oposiccedilatildeo defendendo-se que

mesmo quando as pessoas decidem em consciecircncia morrer ainda assim eacute mau

para elas que o faccedilam pelo que natildeo se deve permitir a eutanaacutesia48

Com o termo paternalismo pretende-se designar a ldquoprivaccedilatildeo ou

reduccedilatildeo da liberdade de escolha do indiviacuteduo operada pelo ordenamento a fim

de assegurar uma particular protecccedilatildeo da pessoa ou de uma categoria de

pessoas de actos contraacuterios ao seu proacuteprio interesserdquo49 O paternalismo

estadual goza de uma caracteriacutestica que o distingue das restantes medidas

restritivas do Estado a ldquofinalidade especiacutefica da restriccedilatildeo da liberdaderdquo Neste

caso o fundamento invocado eacute a protecccedilatildeo da pessoa contra possiacuteveis ldquomaacutes

escolhasrdquo que esta possa fazer e natildeo a defesa de interesses puacuteblicos ou de

terceiros50 Estaacute aqui em causa a protecccedilatildeo da pessoa contra si proacutepria

Ora o paternalismo eacute desde logo suspeito na perspectiva dos direitos

fundamentais porque potildee em causa o conteuacutedo de autonomia neles presente

ao permitir que essa autonomia apenas se exerccedila se se dirigir agrave promoccedilatildeo do

proacuteprio bem51 Na base da protecccedilatildeo da pessoa contra si mesma encontra-se

uma concepccedilatildeo de dignidade da pessoa natildeo apenas enquanto princiacutepio

47 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit p 196 e p 218 48 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit p 192 49 FABRIZIO COSENTINO ldquoIl paternalismo del legislatore nelle norme di limitazione

dellrsquoautonomia dei privatirdquo in Quadrimestre nordm 1 1993 p 120 50 KAI MOumlLLER Paternalismus und Persoumlnlichkeitsrecht Duncker amp Humblot Berlin 2005

pp 11 e 12 51 JOEL FEINBERG Harm to Self The Moral Limits of the Criminal Law Oxford University

Press New York Oxford 1986 p 58

32

fundante da liberdade individual mas que se pode sobrepor a esta uacuteltima

justificando restriccedilotildees ao exerciacutecio das liberdades individuais52 Uma das

razotildees invocadas pelo Estado para obrigar o titular da dignidade a um

comportamento conforme agrave dignidade eacute o facto de este considerar que sabe

melhor do que o proacuteprio titular avaliar os seus interesses53

Natildeo estamos no entanto de acordo com esta interpretaccedilatildeo do princiacutepio

da dignidade da pessoa humana Deve ser o proacuteprio sujeito a determinar o que

eacute para si mais ou menos digno Uma ldquovaloraccedilatildeo paternalistardquo que transfere

para o Estado ldquoa decisatildeo uacuteltima sobre aquilo que as pessoas devem ou natildeo

valorar na sua vidardquo independentemente da sua vontade converte os direitos

em deveres54 Ora natildeo haacute nem deve haver como regra ldquodireitos obrigatoacuteriosrdquo

em Estado de Direito55 Nas palavras de Dworkin ldquoas decisotildees sobre a vida e

a morte satildeo as mais importantes as mais essenciais para a formaccedilatildeo e

expressatildeo da personalidade que algueacutem pode tomar Consideramos que eacute

essencial tomar essas decisotildees correctamente mas tambeacutem entendemos ser

essencial tomaacute-las por noacutes proacutepriosrdquo 56

Pensamos que podem ser legiacutetimas medidas estaduais paternalistas

quando nas palavras de Jorge Reis Novais estejam em causa as possibilidades

de ldquoautodeterminaccedilatildeo futurardquo da pessoa57 Sendo a autonomia um valor central

na nossa ordem juriacutedica e cabendo ao Estado criar condiccedilotildees de autonomia

seraacute legiacutetimo que se tomem medidas no sentido de evitar que o titular do direito

leve a cabo uma intervenccedilatildeo que lhe retire a possibilidade de se autodeterminar

livremente no futuro58

52 JEAN-PHILIPPE FELDMAN ldquoFaut-il proteacuteger lrsquohomme contre lui-mecircme La digniteacute

lrsquoindividu et la personne humainerdquo in Droits nordm 48 2009 pp 88 e 89 53 KAI FISCHER Die Zulaumlssigkeit aufgedraumlngten staatlichen Schutzes vor Selbstschaumldigung

Peter Lang Frankfurt am Main 1997 p 192 54 LUIacuteSA NETO ldquoO Direito Fundamental agrave Disposiccedilatildeo sobre o Proacuteprio Corpordquo Revista da

Faculdade de Direito da Universidade do Porto Ano I 2004 p 226 55 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo rdquo in JORGE MIRANDA

(org) Perspectivas Constitucionais ndash Nos 20 Anos da Constituiccedilatildeo Coimbra Editora 1996

pp 286 e 287 Embora sejam de admitir excepccedilotildees como eacute o caso dos direitos-deveres 56 RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About Abortion Euthanasia And

Individual Freedom cit p 239 57 Eacute tambeacutem essa a posiccedilatildeo de JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentais

cit p 318 58 MARTINA DOROTHEE EPPELT Grundrechtsverzicht und Humangenetik GCA-Verlag

Herdecke 1999 p 124 REINHOLD ZIPPELIUS ndash THOMAS WUumlRTENBERGER

Deutsches Staatsrecht cit p 195

33

Pensamos que este raciociacutenio natildeo deve no entanto ser transponiacutevel

para a escolha de terminar a proacutepria vida Eacute evidente que a decisatildeo deliberada

de pocircr termo agrave vida tem como consequecircncia que a pessoa natildeo pode continuar

a exercer a sua liberdade no futuro Mas mais do que isso essa decisatildeo implica

que deixa de haver futuro A pessoa natildeo continua consequentemente a viver

a sua vida sem uma parcela de liberdade que possa pocircr em causa a sua

autodeterminaccedilatildeo59

Por outro lado ainda ldquona literatura anglo-saxoacutenica tem-se feito a

distinccedilatildeo entre paternalismo forte (hard paternalism) e paternalismo fraco

(soft paternalism)rdquo Os defensores do ldquopaternalismo forterdquo sustentam que se

pode impor proteccedilatildeo a pessoas capazes que decidiram voluntariamente

autocolocar-se em perigo ou lesar-se Para o ldquopaternalismo fracordquo apenas seraacute

de admitir uma interferecircncia para a proteccedilatildeo do proacuteprio quando a sua decisatildeo

natildeo eacute voluntaacuteria60

Justifica-se uma abordagem paternalista quando se trate ldquode direitos ou

interesses de menores de pessoas incapazes de se autodeterminarem ou que se

encontrem numa posiccedilatildeo conjuntural de debilidade ou desfavorrdquo61 Natildeo

podemos no entanto esquecer aquela que poderaacute ter sido a manifestaccedilatildeo de

vontade da pessoa enquanto ainda era capaz por exemplo atraveacutes de um

testamento vital

Mas natildeo eacute apenas por motivaccedilotildees paternalistas que nos podemos opor

agrave liberdade de escolha no fim da vida Tambeacutem a proacutepria dimensatildeo objectiva

do direito agrave vida enquanto valor que a nossa ordem juriacutedica visa prosseguir

pode ser invocada neste domiacutenio Natildeo nos parece no entanto que neste caso

na ponderaccedilatildeo a fazer entre o direito ao desenvolvimento da personalidade ou

o conteuacutedo de liberdade iacutensito no direito agrave vida de quem sobre ela pretende

dispor por um lado e o direito agrave vida na sua dimensatildeo objectiva por outro a

salvaguarda deste uacuteltimo esteja numa relaccedilatildeo razoaacutevel ou proporcional com a

medida e a importacircncia dos efeitos danosos produzidos na esfera do titular do

direito ao natildeo se permitir que este possa optar por pocircr termo agrave sua vida nas

situaccedilotildees extremas a que nos estamos a referir62

59 BENEDITA MAC CRORIE Os limites da renuacutencia a direitos fundamentais nas relaccedilotildees

entre particulares Almedina Coimbra 2013 p 306 60 KAI MOumlLLER Paternalismus und Persoumlnlichkeitsrecht cit pp 16 e 17 61 JORGE REIS NOVAIS As Restriccedilotildees aos Direitos Fundamentais natildeo Expressamente

Autorizadas pela Constituiccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra 2003 p 450 nota 785 62 Nesse sentido BENEDITA MAC CRORIEldquoA doutrina da renuacutencia a direitos fundamentais

ndash os casos da eutanaacutesia e da colheita de oacutergatildeos em vidardquo in Manuel Curado ndash Nuno Pinto

34

Finalmente e no que se refere agraves preocupaccedilotildees contra eventuais abusos

pensamos que a protecccedilatildeo da liberdade da decisatildeo e a salvaguarda dos

indiviacuteduos dos riscos que esta realidade pode acarretar se consegue instituindo

procedimentos por intermeacutedio dos quais se controlam as condiccedilotildees em que

esta liberdade eacute exercida e natildeo pura e simplesmente suprimindo-a63

Gostariacuteamos de terminar a nossa intervenccedilatildeo com uma frase de

Laurence Tribe a propoacutesito da obra que estamos a discutir hoje ldquoDworkin

pode natildeo nos convencer sobre as suas posiccedilotildees acerca do aborto ou da

eutanaacutesia mas natildeo seremos capazes de ler o seu trabalho sem chegar a um

sentido mais completo sobre o que a morte significa para noacutes e como a sua

interpretaccedilatildeo influencia o sentido que atribuiacutemos agrave vida Porque apesar de

todas as suas falhas este livro a obra prima de Dworkin eacute um deleite para a

mente e um baacutelsamo para a almardquo64

Oliveira (org) Pessoas Transparentes Questotildees Actuais da Bioeacutetica Almedina Coimbra

2010 p109 63 BENEDITA MAC CRORIE ldquoA doutrina da renuacutencia a direitos fundamentais ndash os casos da

eutanaacutesia e da colheita de oacutergatildeos em vidardquo cit p 109 Criticando o argumento slippery slope

isto eacute considerar-se que a legalizaccedilatildeo da eutanaacutesia mesmo em casos cuidadosamente

delimitados torna mais provaacutevel que venha tambeacutem a ser legalizada em situaccedilotildees mais

duvidosas podendo o processo terminar em praacuteticas eugeacutenicas como as que tiveram lugar

durante o nazismo ver RONALD DWORKIN Lifeacutes Dominion An Argument About

Abortion Euthanasia And Individual Freedom cit p 197 64 LAURENCE H TRIBE ldquoOn the Edges Of Life And Deathrdquo publicado a 16 de maio de

1993 disponiacutevel em httpwwwnytimescom19930516bookson-the-edges-of-life-and-

deathhtml pagewanted=all (11012016)

35

O conceito de um plano racional de vida e o sentido de

uma morte digna

Nuno Manuel Pinto Oliveira

laquoA temperanccedila eacute uma espeacutecie de ordenaccedilatildeo e ainda o domiacutenio de

certos prazeres e desejos como quando dizem natildeo entendo bem de

que maneira ser lsquosenhor de sirsquo e empregam outras expressotildees do

geacutenero que satildeo como que vestiacutegios desta virtuderaquo65

laquo[hellip] na alma do homem haacute como que uma parte melhor e outra

pior quando a melhor por natureza domina a pior chama-se a isso

ser lsquosenhor de sirsquo mdash o que eacute um elogio sem duacutevida poreacutem quando

devido a uma maacute educaccedilatildeo ou companhia a parte melhor sendo mais

pequena eacute dominada pela superabundacircncia da parte pior a tal

expressatildeo censura o facto como coisa vergonhosa e chama ao

homem que se encontra nessa situaccedilatildeo escravo de si mesmoraquo66

I

Em The Autonomy of Morality67 Charles Larmore critica a

pressuposiccedilatildeo de que cada pessoa deve ter um plano coerente ou um plano

racional de vida Dworkin fala da vida como uma narraccedilatildeo criativa

integrada68 Finnis de um plano coerente de vida69 e Rawls de um plano

racional de vida70 Larmore alega que a ideia de um plano de vida conteacutem um

erro O plano de vida pressupotildee duas coisas Em primeiro lugar pressupotildee que

65 Platatildeo Repuacuteblica 5ordf ed Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1987 paacutegs 204-205

(431a) 66 Platatildeo Repuacuteblica cit paacuteg 182 (431a-b) 67 Charles Larmore The Autonomy of Morality Cambridge University Press Cambridge

2008 paacutegs 246-271 68 Ronald Dworkin Il dominio della vita (tiacutetulo original Lifes Dominion) Edizioni di

Comunitagrave Milano 1994 paacuteg 283 69 John Finnis Natural Law and Natural Rights Oxford University Press Oxford 1980 paacutegs

103-105 laquocoherent plan of liferaquo 70 John Rawls A Theory of Justice Revised Edition Harvard University Press Cambridge

(Massachussetts) 1999 paacutegs 153-160 e sobretudo paacutegs 491-496 laquorational plan of liferaquo

36

cada pessoa tenha o dever de dirigir a sua vida71 Em segundo lugar pressupotildee

que cada pessoa tenha o dever de dirigir a sua vida de acordo com uma

concepccedilatildeo harmoniosa mdash com uma unified conception mdash dos nossos fins e

dos meios adequados para os prosseguir72 O plano em causa deveria atender

designadamente agraves nossas convicccedilotildees sobre aquilo que eacute valioso e desvalioso

agravequilo que sabemos sobre as nossas capacidades e agravequilo que sabemos sobre

as probabilidades de alcanccedilarmos aquilo que consideramos valioso e de

afastarmos aquilo que eacute desvalioso73 Larmore sugere que o conceito de um

plano de vida desvaloriza injustificadamente a circunstacircncia de as

concepccedilotildees do bem de cada pessoa estarem sujeitas agrave mudanccedila

ldquoBeing surprised by a good of which we had no inkling is itself an

invaluable element of what makes life worth living Our lives would

be the poorer if our happiness unfolded perfectly according to

planrdquo74

Os argumentos de Charles Larmore confundem frequentemente duas

coisas O termo plano sugere a afectaccedilatildeo de meios determinados a fins

determinados O plano coerente ou plano racional de vida natildeo

O Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa contemporacircnea define plano como

um laquoprojecto para a organizaccedilatildeo e orientaccedilatildeo de um trabalho ou tarefa que

traccedila o esquema deste especificando as suas diversas partes ou etapas e que

visa a consecuccedilatildeo de um objectivoraquo75 Ora o plano coerente ou plano racional

de vida natildeo eacute (natildeo pode ser) representado como um afectaccedilatildeo de determinados

meios a determinados fins mdash a vida natildeo eacute propriamente um trabalho ou uma

tarefa e um plano coerente ou plano racional de vida natildeo traccedila propriamente

o esquema de um trabalho ou de uma tarefa

71 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 247 laquo The mistake lies at its very

core in the attitude toward life it embodies That attitude is the view that a life is something

we are to lead and not something we should allow to happen to usrdquo 72 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 247 laquo we should indeed seek to live

in accord with some unified conception of our overall purposes and of the path to achieve

themrdquo 73 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 247 laquo To the extent that we develop

our plan in a rational way giving due weight to our beliefs about what is valuable our

knowledge of our own abilities and our sense of the possibilities the world provides we will

have determined the character of our good and the way to achieve itrdquo 74 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 252 75 Academia das Ciecircncias de Lisboa Dicionaacuterio da liacutengua portuguesa contemporacircnea vol

II Verbo Lisboa Satildeo Paulo 2001 paacuteg 2876

37

Entre o sentido geral do termo plano e o sentido especiacutefico do termo

plano coerente ou plano racional de vida na filosofia moral e poliacutetica haacute trecircs

diferenccedilas fundamentais Em primeiro lugar haacute diferenccedilas fundamentais

quanto ao grau de abstracccedilatildeo Em segundo lugar haacute diferenccedilas fundamentais

quanto ao grau de complexidade Em terceiro lugar haacute diferenccedilas

fundamentais quanto ao horizonte temporal dos projectos

mdash Em primeiro lugar haacute diferenccedilas fundamentais quanto ao grau de

abstracccedilatildeo Os fins de um plano podem e devem representar-se em termos

mais concretos Os fins de um plano coerente ou de um plano racional de vida

soacute podem e soacute devem representar-se em termos mais abstractos

mdash Em segundo lugar haacute diferenccedilas fundamentais quanto ao grau de

complexidade Os fins de um plano podem e devem representar-se em termos

mais simples Os fins de um plano coerente ou de um plano racional de vida

soacute podem e soacute devem representar-se em termos mais complexos

i) por um lado por natildeo estarem (por natildeo poderem estar)

determinados desde o iniacutecio76

ii) por outro lado ainda que jaacute estejam determinados (ainda que jaacute

tenham sido determinados) por conflituarem entre si77

mdash Em terceiro lugar haacute diferenccedilas fundamentais quanto ao tempo O

horizonte temporal de um plano eacute (sempre) um horizonte limitado Os planos

laquo acabam raquo ou laquo completam-se raquo com a consecuccedilatildeo do fim prosseguido O

horizonte temporal de um plano coerente ou de um plano racional de vida

esse eacute um horizonte ilimitado O plano coerente ou plano racional de uma vida

natildeo laquo acaba raquo e natildeo se laquo completa raquo78

II

Esclarecidas as diferenccedilas fundamentais entre um plano e um plano de

vida perguntar-se-aacute de que falamos quando falamos de um plano de vida

O problema relaciona-se com uma distinccedilatildeo fundamental em Lifersquos

Dominion Dworkin contrapotildee dois tipos de razotildees para que uma pessoa faccedila

ou natildeo faccedila alguma coisa para que uma pessoa decirc agrave vida uma determinada

76 John Rawls A Theory of Justice paacuteg 492 Os fins de um plano racional de vida

determinam-se gradualmente 77 Cf John Rawls A Theory of Justice cit paacuteg 79 O plano eacute desenhado para permitir uma

satisfaccedilatildeo harmoniosa dos interesses de uma pessoa mdash p ex atraveacutes da planificaccedilatildeo de

actividades laquopara que diferentes desejos natildeo colidam entre siraquo 78 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104

38

direcccedilatildeo79 O primeiro corresponderia aos interesses experienciais80 ou

interesses volicionais81 O segundo corresponderia aos interesses criacuteticos O

facto de todas as pessoas terem terem um plano de vida eacute controverso82 O

facto de os interesses criacuteticos soacute fazerem sentido dentro de um plano coerente

ou de um plano racional de vida esse eacute incontroverso

a) Os interesses criacuteticos exprimem a ambiccedilatildeo abstracta de viver uma

vida boa O termo vida boa eacute (pode ser) um termo um tanto ou quanto

estranho se em inglecircs o termo good life tem um preciso significado eacutetico ou

moral em portuguecircs os termos vida boa ou boa vida natildeo o tecircm O seu

significado eacute perturbado pela conotaccedilatildeo faacutecil com os planos de vida das

pessoas grosseiras ou vulgares que acreditam que o bem eacute o prazer83

O presente texto atribuiraacute ao termo vida boa o sentido que deve ter mdash

a vida boa eacute a vida que procura e prossegue o bem Aristoacuteteles falava de um

bem de um bem supremo laquo que devemos prosseguir em todos os actos da

nossa vida raquo e que Aristoacuteleles identificava com a felicidade84

Independentemente de qual seja o bem supremo mdash independentemente de o

bem supremo ser ou natildeo a felicidade a vida boa seraacute uma vida que o procura

e prossegue

b) Exprimindo a ambiccedilatildeo abstracta de viver uma vida boa os

interesses criacuteticos tecircm duas caracteriacutesticas

Os interesses criacuteticos satildeo razotildees para desejar que o conjunto das

experiecircncias de uma pessoa tenha uma estrutura que exprima escolhas

coerentes O problema estaacute em que o facto de uma vida se fundar sobre uma

soacute convicccedilatildeo natildeo valeraacute de nada se a uacutenica convicccedilatildeo sobre a qual a vida se

funda for uma convicccedilatildeo errada o facto de uma vida exprimir escolhas

coerentes com uma soacute convicccedilatildeo natildeo valeraacute de nada se essas escolhas

coerentes forem escolhas erradas laquonenhum daqueles que considera a sua vida

fundada sobre um erro se consolaraacute de constatar que a sua vida se funda sobre

79 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 277 80 Expressatildeo preferida por Ronald Dworkin em Il dominio della vita cit paacutegs 277 ss 81 Expressatildeo preferida por Ronald Dworkin em ldquoFoundations of Liberal Equalityrdquo in Stephen

L Darwall Equal Freedom Selected Tanner Lectures on Human Values University of

Michigan Press Cambridge (Massachussetts) 1995 paacutegs 190-306 ou em ldquoLiberal

Communityrdquo in California Law Review vol 77 (1989) paacutegs 479-504 82 Dworkin parece pensar que sim mdash que todas as pessoas tecircm um plano de vida laquoas pessoas

cujas vidas natildeo parecem seguir nenhum projecto s[eriam] ainda assim guiadas por um sentido

geral do estilo de vida que consideram apropriadoraquo (Il dominio della vita cit paacuteg 279) 83 Aristoacuteteles Moral a Nicoacutemaco Espasa Calpe Madrid 1978 6ordf reimpressatildeo mdash 1993 paacuteg

67 84 Aristoacuteteles Moral a Nicoacutemaco cit paacuteg 65

39

um soacute erroraquo85 Os interesses criacuteticos satildeo por isso razotildees para desejar que as

escolhas coerentes que o conjunto das experiecircncias exprime sejam escolhas

correctas

III

Em primeiro lugar os interesses criacuteticos satildeo razotildees para desejar que o

conjunto das experiecircncias de uma pessoa tenha uma estrutura mdash e para desejar

que a estrutura das experiecircncias exprima escolhas coerentes

Os interesses experienciais ou volicionais satildeo razotildees para desejar as

experiecircncias agradaacuteveis e para natildeo desejar as experiecircncias desagradeacuteveis86 O

valor das experiecircncias consideradas em si (isoladamente) depende de as

considerarmos agradaacuteveis ou desagradaacuteveis como experiecircncias87 Os

interesses criacuteticos satildeo razotildees para desejar que o conjunto das experiecircncias mdash

agradaacuteveis e desagradaacuteveis mdash tenha uma determinada estrutura88 Dworkin

descreve-a como uma estrutura que exprima escolhas coerentes89

Os termos estrutura ou estrutura que exprima escolhas coerentes

significam (i) que as escolhas de uma pessoa satildeo determinadas por princiacutepios

e por valores (ii) que os princiacutepios e os valores determinantes satildeo em nuacutemero

relativamente restrito e (iii) que os princiacutepios e os valores determinantes em

nuacutemero relativamente resrito satildeo harmonizaacuteveis entre si

Caso as escolhas de uma pessoa sejam coerentes a sua vida exprimiraacute

um compromisso constante constitutivo do laquoeuraquo90 laquono sentido de uma

determinada perspectiva do caraacutecter ou do fim que uma vida entendida como

uma narraccedilatildeo criativa integrada [deve] exprimir ou ilustrarraquo91

O facto de as experiecircncias agradaacuteveis ou desagradaacuteveis de uma

pessoa terem uma determinada estrutura exprimindo escolhas coerentes

corresponderia a um ideal de integridade92 ainda que a integridade natildeo fosse

tudo sempre seria alguma coisa mdash e alguma coisa importante

85 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 284 86 Em Justice for Hedgehogs Dworkin fala em desiderata (paacuteg 118) 87 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 279 88 Em Justice for Hedgehogs Dworkin fala em values (paacuteg 119) 89 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 283 90 Rawls sugere que a unidade do laquoeuraquo depende da coerecircncia do plano de vida seleccionado

ou da coerecircncia das escolhas da pessoa conforme o plano de vida seleccionado (cf John

Rawls A Theory of Justice cit paacuteg 491) 91 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 283 92 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 283

40

laquoa integridaderaquo mdash diz Dworkin mdash laquoreveste-se de grande

importacircncia na vida como na ciecircncia e na arteraquo93

IV

Em segundo lugar os interesses criacuteticos satildeo razotildees para desejar que as

escolhas coerentes que o conjunto das experiecircncias de uma pessoa exprime

ou ilustra correctas mdash tornem a sua vida autenticamente melhor94

O facto de as experiecircncias de uma pessoa terem uma determinada

estrutura exprimindo escolhas coerentes eacute em si insuficiente para que a

estrutura das experiecircncias de uma pessoa seja a estrutura de uma vida boa

Finnis di-lo de uma forma clara O plano coerente ou plano racional

de vida eacute o plano de vida de uma pessoa racional e razoaacutevel Entre os corolaacuterios

da representaccedilatildeo de um plano coerente ou plano racional como plano de vida

de uma pessoa racional e razoaacutevel encontram-se os dois seguintes

O primeiro estaacute em que uma pessoa razoaacutevel natildeo pode conformar-se

com a decisatildeo de viver sem um projecto (= com a decisatildeo de viver de momento

para momento laquoprosseguindo desejos imediatosraquo95) e o segundo em que uma

pessoa razoaacutevel natildeo pode conformar-se com a decisatildeo de viver de projecto

definido para projecto definido O plano de vida de uma pessoa razoaacutevel natildeo

se esgota (natildeo pode esgotar-se) na realizaccedilatildeo de projectos definidos que

podem ser laquoacabadosraquo ou laquocompletadosraquo96

Evitando a irracionalidade de uma vida que decorre sem projectos

definidos ou de uma vida que decorre sem um plano que proporcione uma

estrutura aos projectos definidos que se acabam e se completam o plano de

vida deve representar-se como um compromisso com bens e ou com

valores97

O valor dos interesses experienciais ou volicionais eacute um valor

subjectivo O valor dos interesses criacuteticos eacute um valor objectivo O facto de os

reconhecermos ou de natildeo os reconhecermos natildeo os prejudica

As pessoas que conhecem o valor dos interesses criacuteticos satisfazendo-

os transformam (podem transformar) a sua vida numa vida melhor as pessoas

93 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 284 94 Cf Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 273 Os interesses criacuteticos satildeo

laquointeresses cuja satisfaccedilatildeo torna a vida autenticamente melhorraquo 95 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104 96 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104 97 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104 laquocommitmentraquo

41

que natildeo conhecem o valor dos interesses criacuteticos natildeo os satisfazendo

transformam a sua numa vida pior ldquonatildeo [hellip] reconhecer [=os interesses

criacuteticos] significa cometer um erro tornar pior a proacutepria vidardquo98

O sentido dos termos tornar melhor a proacutepria vida ou tornar pior a

proacutepria vida deve esclarecer-se Tornar melhor a proacutepria vida natildeo significa

de forma nenhuma tornar a vida mais agradaacutevel natildeo significa de forma

nenhuma adoptar um estilo de vida que permita gozaacute-la melhor99 Tornar pior

a proacutepria vida natildeo significa de forma nenhuma tornar a vida menos

agradaacutevel

Os interesses criacuteticos fazem com que tornar a vida de uma pessoa mais

ou menos agradaacutevel fazem com que gozar a vida seja ldquono fim de contas

menos importante do que pareciardquo100 A ambiccedilatildeo abstracta corresponde agrave

ambiccedilatildeo abstracta de participaccedilatildeo em bens humanos fundamentais101 Entre

os quais estariam ou deveriam estar a integridade fiacutesica e psicoloacutegica (life) a

amizade o conhecimento ou a sabedoria (practical reasonableness)102

O termo tornar melhor a proacutepria vida significa fazecirc-la participar dos

bens fundamentais103 significa enchecirc-la com as coisas que satildeo ldquoboas em si

mesmasrdquo104 ou tornaacute-la mais coerente com os princiacutepios e com os valores que

satildeo certos e verdadeiros O termo tornar pior a proacutepria vida esse significa

esvaziaacute-la das coisas que satildeo ldquoboas em si mesmasrdquo tornaacute-la menos coerente

com os bens e com os valores que satildeo certos e verdadeiros

O compromisso com os bens e com os valores que satildeo certos e

verdadeiros estaria laquoacabadoraquo ou laquocompletoraquo desde que os bens ou valores

fossem plenamente realizados O problema estaacute em que os bens e os valores

fundamentais mdash como os bens ou valores da amizade do conhecimento ou da

sabedoria mdash natildeo satildeo nunca plenamente realizados Enquanto compromisso

com os bens e com os valores que satildeo certos e verdadeiros o plano de uma

vida natildeo estaraacute nunca laquocompletoraquo ou laquoacabadoraquo105

98 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 273 99 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 282 100 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 282 101 Expressatildeo de John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 85 102 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacutegs 85-90 103 Expressatildeo de John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacutegs 85-90 104 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 282 105 John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 104 laquodeep commitmentsraquo

42

Enquanto o sentido geral de uma vida boa da participaccedilatildeo no bem da

amizade ou da participaccedilatildeo no bem do conhecimento ou no bem da sabedoria

pode representar-se com facilidade o sentido especiacutefico natildeo

O facto de a foacutermula encontrada por cada pessoa natildeo ser ldquouma foacutermula

eterna universalmente vaacutelidardquo106 soacute significa que as formas de participaccedilatildeo

em princiacutepios e valores universais107 ou de satisfaccedilatildeo dos interesses criacuteticos

estatildeo condicionadas pelas circunstacircncias especiacuteficas de cada um de noacutes108

Estando condicionadas pelas circunstacircncias especiacuteficas de cada um de noacutes as

formas de participaccedilatildeo em princiacutepios e em valores universais atraveacutes de

decisotildees ou de escolhas sobre acccedilotildees sobre omissotildees ou sobre projectos

definidos satildeo formas de participaccedilatildeo ldquopotencialmente inesgotaacuteveisrdquo109

Entre a afirmaccedilatildeo de que uma vida boa eacute uma vida aberta agrave

experiecircncia filha do seu tempo110 e a afirmaccedilatildeo de que uma vida boa eacute uma

vida conforme a um plano coerente ou a um plano racional natildeo haacute

contradiccedilatildeo alguma Os planos de vida como a justiccedila natildeo dizem respeito agrave

laquoactividade externa do homem mas agrave internaraquo os planos de vida como a

justiccedila dizem respeito laquoagravequilo que [o homem] verdadeiramente ele e ao que

lhe pertenceraquo111

Em diferentes palavras todavia insistindo no mesmo pensamento

O plano de vida eacute um compromisso eacute uma determinaccedilatildeo abstracta da

participaccedilatildeo nos bens e valores fundamentais compatiacutevel com a abertura da

determinaccedilatildeo concreta das formas de participaccedilatildeo a vida conforme ao plano

eacute uma vida aberta agrave experiecircncia filha do seu tempo por ser a experiecircncia que

nos revela as formas de participaccedilatildeo nesses bens e nesses valores

106 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 285 107 Expressatildeo de John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 64 laquoparticipation-

in-a-valueraquo 108 Expressatildeo de Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 285 109 Cf John Finnis Natural Law and Natural Rights cit paacuteg 64 110 Charles Larmore The Autonomy of Morality cit paacuteg 271 ldquoThe good life outruns the

reach of planning because its very nature is to be the child of time To recognize this truth is

the beginning of wisdom for it is to understand why wisdom is something more than

prudencerdquo 111 Platatildeo Repuacuteblica cit paacutegs 204-205 (443c)

43

V

Nozick fala de uma laquomaacutequina da experiecircnciaraquo112 desenhada para

proporcionar todas as experiecircncias que uma pessoa quisesse ter mdash entre as

quais estariam p ex a experiecircncia de estar a fazer um amigo ou de estar a

escrever um grande livro ou de estar a ler um grande livro113 Entre uma vida

soacute com experiecircncias agradaacuteveis determinadas por uma qualquer laquomaacutequina da

experiecircnciaraquo e uma vida com experiecircncias agradaacuteveis e desagradaacuteveis

determinadas por escolhas coerentes Nozick sustenta que deve dar-se

preferecircncia ou prioridade agrave segunda por pelo menos trecircs razotildees

Em primeiro lugar a nossa representaccedilatildeo de uma vida boa implica

fazer determinadas coisas queremos fazer determinadas coisas e natildeo soacute ter a

experiecircncia de as fazer ou de as ter feito114 Em segundo lugar a nossa

representaccedilatildeo de uma vida boa implica ser alguma coisa queremos ser uma

determinada pessoa e natildeo soacute ter a experiecircncia de a ser ou de a ter sido115 Em

terceiro lugar ela implica o contacto com a realidade mdash com uma realidade

mais profunda que uma qualquer realidade artificial

laquoplugging into a experience machine limits us to a man-made reality

to a world no deeper or more important than that which people can

constructraquo116

Entre os argumentos deduzidos por Nozick para sustentar por que

devemos recusar uma vida contendo exclusivamente experiecircncias agradaacuteveis

proporcionadas por uma qualquer ldquomaacutequina da experiecircnciardquo e os argumentos

deduzidos por Dworkin para sustentar por que devemos aceitar uma vida

contendo experiecircncias agradaacuteveis e experiecircncias desagradaacuteveis

proporcionadas por escolhas coerentes haacute uma relaccedilatildeo de semelhanccedila117

O interesse em fazer determinadas coisas ou em ser uma determinada

pessoa em contacto com uma realidade mais profunda e consequentemente

mais significativa que qualquer realidade artificial corresponde exacta ou

quase exactamente ao conceito de interesse criacutetico

112 Robert Nozick Anarchy State and Utopia Blackwell Publishers Oxford 1974 paacutegs 42-

45 experience machine 113 Robert Nozick Anarchy State and Utopia cit paacuteg 43 114 Robert Nozick Anarchy State and Utopia cit paacuteg 43 115 Robert Nozick Anarchy State and Utopia cit paacuteg 43 116 Robert Nozick Anarchy State and Utopia cit paacutegs 43-44 117 Em Justice for Hedeghogs Dworkin exprime a sua concordacircncia com o raciociacutenio de

Nozick representando-o como algo de mais ou menos evidente (paacuteg 207 e paacuteg 458 mdash nota

nordm 17)

44

O valor dos interesses experienciais eacute um valor instrumental

(transitivo) As experiecircncias valem se forem agradaacuteveis e natildeo valem se o natildeo

forem O valor dos interesses criacuteticos esse eacute um valor final (intransitivo) Os

interesses criacuteticos orientam-se a coisas que satildeo ldquoboas em si mesmasrdquo118

VI

Dworkin extrai da distinccedilatildeo (teoacuterica) entre os conceitos de interesses

experienciais e de interesses criacuteticos o seguinte princiacutepio praacutetico

Os problemas relacionados com o valor da vida humana no seu estaacutedio

inicial (da vida humana ainda natildeo nascida ou ainda natildeo capaz de consciecircncia)

ou no seu estaacutedio final (da vida humana jaacute natildeo capaz de consciecircncia) satildeo

sempre problemas relacionados com os interesses criacuteticos As opccedilotildees sobre a

vida e a sobre a morte seriam as opccedilotildees laquomais importantes [hellip] para a

formaccedilatildeo e para a expressatildeo da personalidaderaquo119 Estando em causa

problemas relacionados com os nossos interesses criacuteticos cada um de noacutes

deveria ter o direito de os resolver conforme as suas convicccedilotildees

Dworkin alega que cada um de noacutes como pessoa considera importante

duas coisas (i) por um lado laquoconsideramos importante tomar as decisotildees mais

correctasraquo e (ii) por outro lado laquoconsideramos [hellip] importante tomar as

decisotildees mais coerentes com o nosso ideal de vida connosco proacutepriosraquo120

O Estado deveria dar a cada pessoa o direito de decidir o problema do

aborto de acordo com as suas convicccedilotildees sobre o valor da vida humana no seu

estaacutedio inicial e de decidir o problema da eutanaacutesia de acordo com as suas

convicccedilotildees sobre o valor da vida humana no seu estaacutedio final

O estaacutedio inicial da vida humana comeccedilaria num momento certo e

terminaria num momento certo mdash comeccedilaria com a concepccedilatildeo e terminaria

com a viabilidade fetal corresponderia aos seis primeiros meses de

gestaccedilatildeo121 O estaacutedio final da vida humana esse natildeo comeccedilaria num

momento certo e natildeo terminaria num momento certo Dworkin liga-o a uma

pluralidade de capacidades eou a uma pluralidade de valores mdash entre os quais

estatildeo p ex a cessaccedilatildeo da capacidade da pessoa para conformar um plano

coerente ou plano racional de vida122 a cessaccedilatildeo da capacidade da pessoa para

118 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 282 119 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 330 120 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 330 121 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit esp paacutegs 230-245 122 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 301

45

determinar acccedilotildees omissotildees eou laquoprojectos definidosraquo conforme a esse plano

coerente de vida123 e o valor do respeito da pessoa por si proacutepria124

O princiacutepio de que cada pessoa tem o direito de decidir o problema do

aborto de acordo com as suas convicccedilotildees sobre o valor da vida humana no seu

estaacutedio inicial concretizar-se numa regra simples O Estado teria o dever de

afirmar a licitude ou pelo menos teria o dever de negar a ilicitude do aborto

durante os seis primeiros meses de gestaccedilatildeo125 O princiacutepio de que cada pessoa

tem o direito de decidir o problema da eutanaacutesia de acordo com as suas

convicccedilotildees sobre o valor da vida humana no seu estaacutedio final esse natildeo se

concretizaria em nenhuma regra regra simples Dworkin diz simplesmente

que a morte tem laquouma importacircncia especial e simboacutelicaraquo126 Cada pessoa teria

direito a uma morte digna O termo morte digna designaria (soacute) uma morte

adequada agrave vida127 mdash a morte soacute seria digna desde que confirmasse ldquoem

termos muito niacutetidosrdquo ldquoos valores que [as pessoas] reconhecem como os mais

importantes das suas vidasrdquo128

Ora ldquoos valores que [as pessoas] reconhecem como os mais

importantes das suas vidas satildeo os valores prosseguidos por um plano coerente

ou um plano racional de vida Os termos cada pessoa tem direito a uma morte

digna significariam que cada pessoa tem direito a uma morte adequada ao seu

plano coerente de vida ou ao seu plano racional de vida Como o plano

coerente de vida ou plano racional de vida eacute um plano orientado pelos

interesses criacuteticos os termos cada pessoa tem direito a uma morte adequaao

ao seu plano coerente ou plano racional de vida significariam que cada pessoa

tem direito a uma morte adequada aos seus interesses criacuteticos129

VII

Dworkin desvaloriza (injustificadamente) a diferenccedila entre os

problemas do aborto ou da eutanaacutesia o caso do aborto natildeo eacute nem exclusiva

123 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 305 124 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 305 125 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacutegs 230-245 126 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 291 127 Cf Martin Koppernock Das Grundrecht auf bioethische Selbstbestimmung Zur

Rekonstruktion des allgemeinen Persoumlnlichkeitsrechts cit paacuteg 171 128 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacuteg 291 129 Ronald Dworkin Il dominio della vita cit paacutegs 327-332

46

nem essencialmente um problema de autodeterminaccedilatildeo130 o caso da eutanaacutesia

sim

O argumento dos interesses criacuteticos eacute (e deve ser) um argumento mais

fraco no caso do aborto e mais forte no caso da eutanaacutesia Evitando o caso do

aborto perguntar-se-aacute entatildeo mdash O argumento dos interesses criacuteticos seraacute

razatildeo suficiente para sustentar um direito definitivo agrave eutanaacutesia

Em trecircs acoacuterdatildeos absolutamente fundamentais mdash nos acoacuterdatildeos de 29

de Abril de 2002 no caso Pretty vs Reino Unido de 20 de janeiro de 2011

no caso Haas vs Suiacuteccedila e de 19 de julho de 2012 no caso Koch vs Alemanha

mdash o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem adere ao argumento dos

interesses criacuteticos afirmando que cada pessoa tem o direito de conformar o

processo da sua morte Os acoacuterdatildeos de 29 de abril de 2002 e de 19 de Julho de

2012 descrevem-no pela negativa O primeiro descrevo-o como o direito de

evitar uma morte indigna131 e o segundo como o direito de evitar um processo

de morte caracterizado pela degradaccedilatildeo fiacutesica e psiacutequica

ldquoWithout in any way negating the principle of sanctity of life

protected under the Convention the Court considered that in an era

of growing medical sophistication combined with longer life

expectancies many people were concerned that they should not be

forced to linger on in old age or in states of advanced physical or

mental decrepitude which conflicted with strongly held ideas of self

and personal identityrdquo132

O acoacuterdatildeo de 20 de janeiro de 2011 descreve-o pela positiva mdash como

direito de conformar o processo da morte decidindo p ex quando morrer133

130 Rainer Beckmann descreve-o como um problema de heterodeterminaccedilatildeo de uma pessoa

natildeo nascida (ldquorsquoSelbstbestimmungrsquo uber das Leben Ungeborenerrdquo in Bernward Buumlchner

Claudia Kaminski Mechthild Loumlhr (coord) Abtreibung mdash ein neues Menschenrecht Sinus‐

Verlag Krefeld 2012 paacutegs 27-58) 131 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash

paraacutegrafo 67 laquo The applicant in this case [Diane Pretty] is prevented by law from exercising

her choice to avoid what she considers to be and undignified and distressing end to her life

The Court is not prepared to exclude that this constitutes an interference with her right to

respect for private life as guaranteed under Article 8 [paragraph] 1 of the Convention raquo 132 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 19 de julho de 2012 mdash

paraacutegrafo 51 133 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 20 de janeiro de 2011 mdash

paraacutegrafo 51 ldquothe Court considers that an individualrsquos right to decide by what means and at

what point his or her life will end provided he or she is capable of freely reaching a decision

47

O problema estaacute tatildeo-soacute em averiguar se o direito eacute provisoacuterio ou

definitivo

O caso exige a distinccedilatildeo entre pontos de partida e pontos de chegada

Enquanto o ponto de partida deve representar-se como um princiacutepio mdash como

um direito provisoacuterio (prima facie) mdash o ponto de chegada (soacute) pode

representar-se como uma regra mdash (soacute) pode representar-se como um direito

definitivo O argumento dos interesses criacuteticos pode proporcionar uma

fundamentaccedilatildeo adequada e suficiente para o ponto de partida da discussatildeo

(direito provisoacuterio ou prima facie) mdash natildeo pode poreacutem proporcionar uma

fundamentaccedilatildeo suficiente para o ponto de chegada (= direito definitivo)

Em primeiro lugar o Estado tem o dever de limitar o direito agrave eutanaacutesia

exigindo uma adequada justificaccedilatildeo objectiva para a causaccedilatildeo da morte de

uma pessoa O problema da afirmaccedilatildeo da licitude ou da negaccedilatildeo da ilicitude

da eutanaacutesia soacute deve colocar-se desde que haja uma perturbaccedilatildeo grave da

capacidade de uma pessoa para prosseguir os seus interesses criacuteticos

Entre os casos em que haacute uma perturbaccedilatildeo grave da capacidade de

uma pessoa para prosseguir os seus interesses criacuteticos estatildeo sobretudo os

quatro seguintes (i) casos de perda definitiva da autonomia em que a pessoa

fica na absoluta dependecircncia de outrem (ii) casos de perda definitiva de

consciecircncia (iii) casos de diminuiccedilatildeo grave e irreversiacutevel das capacidades

intelectuais e (iv) casos de sofrimento irreversiacutevel e intoleraacutevel134

Em segundo lugar o Estado tem o dever de limitar o direito agrave eutanaacutesia

exigindo uma adequada justificaccedilatildeo subjectiva para a causaccedilatildeo da morte

O conceito de interesses criacuteticos pressupotildee que a pessoa disponha da

capacidade para representar intelectualmente os bens e os valores mais

importantes da sua vida e da liberdade para determinar as suas acccedilotildees as suas

omissotildees e os seus projectos definidos de acordo com os bens e os valores

representados135 Os poderes poliacuteticos e sociais podem e devem entrar nos

on this question and acting in consequence is one of the aspects of the right to respect for

private life within the meaning of Article 8 of the Conventionrdquo 134 Cf designadamente Joseph Raz ldquoDeath in Our Liferdquo in WWW lt

httpssrncomabstract=2069357 gt ldquoTypically at least four conditions are often thought to

justify voluntary euthanasia (a) a life without consciousness known as a vegetative life (b)

life of unremitting great pain (c) a life of total dependence on others (d) a life of greatly

diminished mental capacities (severe loss of memory absence of linguistic capacity

unremitting severe mental distress fear etc)rdquo 135 Construindo os direitos fundamentais como capabilities Martha Nussbaum Women and

Human Development The Capabilities Approach Cambridge University Press Cambridge

2000 paacutegs 70-105 Idem ldquoThe Supreme Court 2006 Term mdash Foreword lsquoConstitutionsrsquo and

48

espaccedilos de autodeterminaccedilatildeo correspondentes aos interesses criacuteticos para

proteger p ex a plena capacidade e a plena liberdade da pessoa contra o

perigo de uma perturbaccedilatildeo importante da possibilidade faacutectica de

autodeterminaccedilatildeo Estando por causa a eutanaacutesia o perigo de uma

perturbaccedilatildeo importante da possibilidade faacutectica de autodeterminaccedilatildeo eacute um

perigo particularmente seacuterio mdash as pessoas no estaacutedio final da sua vida podem

ser como quase sempre satildeo especialmente fraacutegeis e as pressotildees sociais

(designadamente as pressotildees familiares) sobre as pessoas especialmente

fraacutegeis podem ser especialmente intensas136

VIII

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem confirma que o

argumento dos interesses criacuteticos natildeo pode proporcionar uma fundamentaccedilatildeo

adequada para um direito definitivo agrave eutanaacutesia por pelo menos duas razotildees

a) Em primeiro lugar o direito de autodeterminaccedilatildeo sobre o processo

da sua morte137 pode e deve ser conformado O Estado deve (pelo menos)

determinar um procedimento adequado para que a decisatildeo da pessoa

Capabilities lsquoPerceptionrsquo Against Lofty Formalismrdquo in Harvard Law Review vol 121

(2007) paacutegs 4-97 Idem ldquoHuman Dignity and Political Entitlementsrdquo in Human Dignity

and Bioethics Essays Commissioned by the Presidentrsquos Council on Bioethics Washington

2008 paacutegs 351-380 Thom Brooks ldquoCapabilitiesrdquo in WWW lt

httpssrncomabstract=1964924 gt 136 Cf designadamente Martha Nussbaum ldquoHuman Dignity and Political Entitlementsrdquo cit

paacuteg 373 137 Cf acoacuterdatildeos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002

[paraacutegrafo 67 mdash laquoThe applicant in this case [Diane Pretty] is prevented by law from exercising

her choice to avoid what she considers to be and undignified and distressing end to her life

The Court is not prepared to exclude that this constitutes an interference with her right to

respect for private life as guaranteed under Article 8 [paragraph] 1 of the Conventionraquo] de

20 de janeiro de 2011 [paraacutegrafo 51 mdash laquothe Court considers that an individualrsquos right to decide

by what means and at what point his or her life will end provided he or she is capable of freely

reaching a decision on this question and acting in consequence is one of the aspects of the

right to respect for private life within the meaning of Article 8 of the Conventionrdquo] e de 19 de

julho de 2012 [paraacutegrafo 51 mdash ldquoWithout in any way negating the principle of sanctity of life

protected under the Convention the Court considered that in an era of growing medical

sophistication combined with longer life expectancies many people were concerned that they

should not be forced to linger on in old age or in states of advanced physical or mental

decrepitude which conflicted with strongly held ideas of self and personal identityrdquo]

49

corresponda com suficiente probabilidade e em suficiente medida a um

resultado conforme aos bens e aos valores fundamentais138

Dworkin representa o direito de autodeterminaccedilatildeo de acordo com os

interesses criacuteticos como um espaccedilo[] de autodeterminaccedilatildeo em que [os poderes

poliacuteticos e sociais] natildeo podem entrarrdquo139 Os problemas relacionados com o

valor da vida humana estariam laquoreservadosraquo aos indiviacuteduos

Ora o conceito de interesses criacuteticos pressupotildee que a pessoa disponha

da capacidade para assumir uma (= para se comprometer com uma) particular

representaccedilatildeo de valores universais e para determinar as suas acccedilotildees as suas

omissotildees e ou os seus laquoprojectos definidosraquo de acordo com a particular

representaccedilatildeo em causa140 Os poderes poliacuteticos e sociais devem entrar nos

laquoespaccedilos de autodeterminaccedilatildeoraquo determinados pelos interesses criacuteticos p ex

para proporcionar agrave pessoa a capacidade pressuposta

b) Em segundo lugar o direito de autodeterminaccedilatildeo sobre o processo

da sua morte pode ser restringido para a protecccedilatildeo de bens e de valores

conflituantes protegidos pela lei fundamental mdash como o valor da vida141

Estando em causa a eutanaacutesia (= suiciacutedio medicamente assistido) o

Estado deve (pelo menos) determinar um procedimento adequado para que a

decisatildeo da pessoa corresponda com suficiente probabilidade e em suficiente

medida a um resultado conforme aos bens e aos valores fundamentais

O perigo de uma perturbaccedilatildeo importante da possibilidade faacutectica de

autodeterminaccedilatildeo eacute um perigo seacuterio mdash por causa p ex das pressotildees sociais

sobre pessoas em situaccedilatildeo de especial (excepcional) fragilidade

138 Cf Robert Alexy Theorie der Grundrechte 3a ed Suhrkamp Frankfurt-am-Main 1996

paacuteg 431 139 Karl Loewenstein Teoriacutea de la constitucioacuten (tiacutetulo original Verfassungslehre) Editorial

Ariel Barcelona 1976 paacuteg 390 140 Construindo os direitos fundamentais como laquocapabilitiesraquo Martha Nussbaum ldquoThe

Supreme Court 2006 Term mdash Foreword lsquoConstitutionsrsquo and Capabilities lsquoPerceptionrsquo

Against Lofty Formalismrdquo in Harvard Law Review vol 121 (2007) paacutegs 4-97 Idem

ldquoHuman Dignity and Political Entitlementsrdquo in Human Dignity and Bioethics Essays

Commissioned by the Presidentrsquos Council on Bioethics Washington 2008 paacutegs 351-380

Thom Brooks ldquoCapabilitiesrdquo in WWW lt httpssrncomabstract=1964924 gt 141 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash

paraacutegrafo 74 laquoIt does not appear to be arbitrary to the Court for the law to reflect the

importance of the right to life by prohibiting assisted suicide while providing for a system of

enforcement and adjudication which allows due regard to be given in each particular case to

the public interest in bringing a prosecution as well as to the fair and proper requirements of

retribution and deterrenceraquo

50

Ou bem que o Estado consegue conformar um procedimento adequado

para proteger as pessoas em situaccedilatildeo de fragilidade ou bem natildeo o consegue142

conseguindo conformaacute-lo poderaacute (e deveraacute) afirmar a licitude ou negar a

ilicitude da eutanaacutesia natildeo o conseguindo natildeo poderaacute fazecirc-lo143

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem representa como um fim

legiacutetimo da intervenccedilatildeo do Estado a protecccedilatildeo das pessoas em situaccedilatildeo de

especial fragilidade ou de especial vulnerabilidade mdash em especial a protecccedilatildeo

laquodas pessoas que natildeo estatildeo em condiccedilotildees de tomar decisotildees esclarecidas ou

informadas sobre acccedilotildees ou omissotildees susceptiacuteveis de pocircr termo agrave vida ou de

as assistir no processo de potilder termo agrave vidaraquo144

Esclarecida a existecircncia de um fim legiacutetimo potildee-se os problemas da

adequaccedilatildeo e da necessidade

Ora o problema da proibiccedilatildeo da eutanaacutesia ou do suiciacutedio assistido potildee-

se e potildee-se de forma semelhante para as pessoas vulneraacuteveis e para as pessoas

natildeo vulneraacuteveis O Estado deveraacute distinguir as pessoas que se encontram em

situaccedilatildeo de especial fragilidade e as pessoas que natildeo se encontram em situaccedilatildeo

de especial fragilidade) deveraacute distinguir as pessoas vulneraacuteveis e as pessoas

natildeo vulneraacuteveis para o efeito de afirmar a ilicitude do suiciacutedio assistido das

pessoas vulneraacuteveis e a licitude natildeo ilicitude da eutanaacutesia ou do suiciacutedio

assistido das pessoas natildeo vulneraacuteveis deveraacute distinguir as pessoas

vulneraacuteveis e as pessoas natildeo vulneraacuteveis para o efeito de proibir a eutanaacutesia

ou o suiciacutedo assistido das pessoas vulneraacuteveis e de natildeo proibir (= de permitir)

o suiciacutedio assistido das pessoas natildeo vulneraacuteveis

O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem reconstroacutei o problema

representando-o nos seguintes termos a fragilidade tiacutepica da categoria ou

classe seraacute adequada eou suficiente para explicar ou para justificar uma regra

aplicaacutevel a todos os indiviacuteduos da categoria ou classe designada O facto de

as pessoas da categoria ou classe designada estarem tipicamente em situaccedilatildeo

de especial fragilidade explicaraacute justificaraacute a proibiccedilatildeo do suiciacutedio assistido

das pessoas que natildeo estatildeo em situaccedilatildeo de fragilidade

142 Entendendo que o Estado pode sempre e por isso deve sempre conformar um

procedimento adequado Benedita MacCrorie Os limites da renuacutencia a direitos fundamentais

nas relaccedilotildees entre particulares Livraria Almedina 2013 paacutegs 303-307 143 Martha Nussbaum ldquoHuman Dignity and Political Entitlementsrdquo cit paacuteg 373 144 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash

paraacutegrafo 74 laquoThe law in issue in this case section 2 of the 1961 Act was designed to

safeguard life by protecting the weak and vulnerable and especially those who are not in a

condition to take informed decisions against acts intended to end life or to assist in ending

liferaquo

51

Os acoacuterdatildeos de 29 de abril de 2002 e de 20 de janeiro de 2011

respondem-lhe mdash e respondem que sim Os Estados teriam a prerrogativa de

avaliar os riscos da afirmaccedilatildeo da licitude ou da negaccedilatildeo da ilicitude da

eutanaacutesia para o efeito de determinar se conseguiriam ou natildeo conformar um

procedimento adequado para proteger as pessoas em situaccedilatildeo de fragilidade

Caso os Estados concluiacutessem que nenhum procedimento eacute adequado

para proteger as pessoas em situaccedilatildeo de fragilidade o facto de as pessoas da

categoria ou classe designada estarem tipicamente em situaccedilatildeo de fragilidade

explicaria justificaria a proibiccedilatildeo da eutanaacutesia ou do suiciacutedio assistido de

todas as pessoas mdash das pessoas que estatildeo e das pessoas que natildeo estatildeo em

situaccedilatildeo de fragilidade ou de vulnerabilidade Entre os meios adequados e

necessaacuterios para proteger o bem ou valor da vida humana estaria (poderia

estar) a proibiccedilatildeo da eutanaacutesia ou do suiciacutedio assistido145

laquo Clear risks of abuse do exist notwithstanding arguments as to the

possibility of safeguards and protective procedures raquo146

145 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash

paraacutegrafo 76 laquoNonetheless the Court finds in agreement with the House of Lords and the

majority of the Canadian Supreme Court in Rodriguez that States are entitled to regulate

through the operation of the general criminal law activities which are detrimental to the life

and safety of other individuals [hellip] The more serious the harm involved the more heavily will

weigh in the balance considerations of public health and safety against the countervailing

principle of personal autonomyraquo 146 Cf acoacuterdatildeo do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 29 de abril de 2002 mdash

paraacutegrafo 74

52

Coloacutequio Internacional

Em torno de Life Time Contracts

Braga 15 de Maio de 2015

54

55

Princiacutepios gerais sobre os contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa

1 CONTRATOS DURADOUROS ESSENCIAIS Agrave EXISTEcircNCIA DA

PESSOA

Os contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa satildeo relaccedilotildees

sociais que tecircm por objecto proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o

trabalho e os rendimentos necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua

participaccedilatildeo na vida social

2 DIMENSAtildeO HUMANA

(1) O ponto central147 do regime dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa deve ser o indiviacuteduo na sua concreta realidade

material e moral148

(2) O direito deve preocupar-se em disciplinar a conclusatildeo do contrato e as

relaccedilotildees de cooperaccedilatildeo entre as partes conformando-as para proteger

e para promover o desenvolvimento da pessoa humana

(3) Em especial o direito deve preocupar-se em garantir que o

desenvolvimento da pessoa humana natildeo seja nem comprometido nem

sequer deformado por relaccedilotildees de poder149

(4) Ao fazecirc-lo deve ter em conta que o desenvolvimento de cada indiviacuteduo

pressupotildee relaccedilotildees pessoais particularmente significativas150 entre as

quais estatildeo as relaccedilotildees familiares

Traduccedilatildeo para portuguecircs de Nuno Manuel Pinto Oliveira 147 Na versatildeo alematilde fala-se em Mittelpunkt na versatildeo italiana em punto di riferimento 148 Na versatildeo italiana fala-se em realidade cultural O termo realidade moral afigura-se

adequado para abranger todos os elementos da realidade natildeo material mdash designadamente os

elementos construiacutedos pela cultura 149 Na versatildeo inglesa fala-se em relaccedilotildees de poder na versatildeo italiana em relaccedilotildees de forccedila 150 O termo relaccedilotildees pessoais particularmente significativas encontra-se tatildeo-soacute na versatildeo

italiana Embora natildeo conste das versotildees alematilde inglesa francesa ou espanhol afigura-se

especialmente adequado por tornar claro que as relaccedilotildees familiares sotilde soacute um caso especial

56

3 DIMENSAtildeO TEMPORAL (DURACcedilAtildeO)

(1) A confianccedila de ambas as partes na continuidade da relaccedilatildeo contratual

deve ser protegida

(2) Em regra a cessaccedilatildeo antecipada do contrato151 por acto unilateral de

uma das partes natildeo deve ser permitida Exceptua-se os casos em que a

cessaccedilatildeo antecipada eacute necessaacuteria para garantir um miacutenimo de liberdade

de acccedilatildeo e de decisatildeo152

(3) Se a cessaccedilatildeo antecipada do contrato for permitida soacute deveraacute produzir

efeitos para o futuro natildeo abrangendo as prestaccedilotildees jaacute realizadas

4 CONTRATOS COLIGADOS

Os contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa integram-se

em redes de contratos ligados entre si O legislador e o juiz devem apreciar e

resolver os problemas por si suscitados considerando sistematicamente a

ligaccedilatildeo entre todos os contratos integrados na rede153

5 O DEVER DE CONSIDERACcedilAtildeO DA PESSOA DO CONSUMIDOR OU DO

TRABALHADOR154

(1) O facto de algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem bens ou serviccedilos

necessaacuterios agrave satisfaccedilatildeo das necessidades essenciais relacionadas com

das relaccedilotildees particularmente significativas de que depende o desenvolvimento da pessoa

humana Entre tais relaccedilotildees particularmente significativas devem estar p ex as relaccedilotildees de

amizade 151 Prefere-se a expressatildeo cessaccedilatildeo antecipada agrave expressatildeo ruptura (rupture) usada na

traduccedilatildeo francesa por causa da sua neutralidade (comparaacutevel agrave neutralidade do termo alematildeo

Aufloumlsung do termo inglecircs termination ou do termo italiano scioglimento) 152 Na versatildeo italiana fala-se de uma cessaccedilatildeo antecipada necessaacuteria para natildeo mortificar a

liberdade de acccedilatildeo e de decisatildeo da pessoa 153 Em nenhuma das versotildees se fala em legislador ou em juiz Em todo o caso parece adequado

dar aos termos problemas juriacutedicos e ou questotildees juriacutedicas usados em todas as versotildees um

sentido muito amplo abrangendo as questotildees de criaccedilatildeo (legislativa) e as questotildees de

aplicaccedilatildeo (judicial) do direito 154 Nas versotildees alematilde e italiana faz-se sobressair o aspecto da consideraccedilatildeo ou do respeito

A versatildeo italiana eacute particularmente sugestiva por sugerir que o prestador de bens ou de

serviccedilos devem tomar para si proprio o encargo (farsi carico) da situaccedilatildeo de fragilidade do

consumidor ou do trabalhador Nas versotildees inglesa francesa e espanhola faz-se sobressair o

aspecto das necessidades essenciais ou fundamentais do consumidor ou do trabalhador

57

o consumo ou com a habitaccedilatildeo155 ou de algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo

de outrem uma quantia em dinheiro [no quadro de uma relaccedilatildeo de

creacutedito ou de uma relaccedilatildeo de trabalho] implica um dever de

protecccedilatildeo156 da pessoa do consumidor ou da pessoa do trabalhador

como partes mais fracas da relaccedilatildeo contratual

(2) O conteuacutedo do dever depende das concretas circunstacircncias fiacutesicas

psicoloacutegicas e sociais da parte carecida de protecccedilatildeo

(3) Os instrumentos legais e convencionais constituiacutedos em processos de

composiccedilatildeo colectiva de interesses devem conter disposiccedilotildees

imperativas adequadas agrave protecccedilatildeo dos interesses materiais e morais

do consumidor e do trabalhador

(4) Como os contratos podem ter diferentes fins podem ser de diferente

duraccedilatildeo ou de diferente tipo ou podem ter diferente significado para

as relaccedilotildees de vida das pessoas atingidas os instrumentos legais e

convencionais devem enunciar os niacuteveis de protecccedilatildeo e de respeito

necessaacuterios em cada caso

6 O DEVER DE CONSIDERACcedilAtildeO DO FIM DO CONTRATO

Aquele que colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem dinheiro157 bens ou

serviccedilos necessaacuterios agrave satisfaccedilatildeo de necessidades essenciais deve abster-se de

todos os comportamentos que possam pocircr em perigo o fim do contrato158 a

155 Na versatildeo espanhola fala-se em vivienda Em nenhuma das demais versotildees se fala nas

necessidades essenciais relacionadas com a habitaccedilatildeo 156 Na versatildeo italiana liga-se o dever de protecccedilatildeo a um dever de solidaridade laquoa colocaccedilatildeo

agrave disposiccedilatildeo dos bens ou serviccedilos [hellip] pressupotildee a disponibilidade [do prestador de bens ou

serviccedilos] para se encarregar de modo solidaacuterio da protecccedilatildeo da parte mais fraca

considerando a sua integridade fiacutesica e moralraquo 157 Nas versotildees alematilde inglesa francesa e espanhola fala-se em possibilidades ou em

oportunidades de obtenccedilatildeo de rendimento na versatildeo italiana fala-se em possibilidades ou em

oportunidades de acesso ao dinheiro O alcance do texto da versatildeo italiana eacute mais amplo que

o texto das versotildees alematilde inglesa francesa e espanhola As possibilidades de obtenccedilatildeo de

rendimento satildeo soacute as oportunidades proporcionados por um contrato de trabalho as

possibilidades de obtenccedilatildeo de dinheiro podem ser proporcionadas por um contrato de trabalho

ou por um contrato de creacutedito 158 Nas versotildees alematilde inglesa e francesa fala-se em fim social do contrato na versatildeo italiana

em fins cooperativos (scopi cooperativi)

58

fruiccedilatildeo do dinheiro ou dos bens ou dos serviccedilos prestados159 ou o significado

social da relaccedilatildeo160

7 DIMENSAtildeO COLECTIVA ASPECTOS PROCEDIMENTAIS E

SUBSTANTIVOS

(1) [Os contratos duradouros essenciais aacute existecircncia da pessoa tecircm uma

dupla dimensatildeo colectiva]

(2) Os consumidores e os trabalhadores tecircm o direito de exigir do Estado

o reconhecimento de sistemas colectivos de representaccedilatildeo (associaccedilotildees

de consumidores ou associaccedilotildees sindicais)

(3) [Independentemente da representaccedilatildeo dos seus interesses] os

consumidores e os trabalhadores tecircm o direito de exigir do Estado o

reconhecimento e o respeito pelos sistemas de valores colectivos como

aqueles que satildeo designados pelos conceitos de boa feacute e de bons

costumes161

(4) Os sistemas de valores colectivos devem aplicar-se em todas as fases

da relaccedilatildeo contratual desde o acesso aos bens e serviccedilos agrave

conformaccedilatildeo do contrato agrave sua adaptaccedilatildeo modificaccedilatildeo e agrave sua

extinccedilatildeo

8 ACESSO MEDIANTE O CONTRATO AOS BENS E SERVICcedilOS

ESSENCIAIS A EXISTEcircNCIA DA PESSOA

(1) Aquele que propotildee a conclusatildeo de contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa deve abster-se de qualquer discriminaccedilatildeo entre

pessoas ou entre grupos de pessoas em funccedilatildeo das suas caracteriacutesticas

pessoais e sociais

(2) Este dever aplica-se a todas as fases do processo contratual mdash tanto ao

momento em que se anuncia o contrato publicitando a proposta como

ao momento em que o contrato se conclui ou se extingue Aquele que

159 Nas versotildees inglesa e espanhola fala-se em uso produtivo Nas versotildees francesa e

espanhola fala-se simplesmente na utilidade das prestaccedilotildees contratuais 160 Nas versotildees francesa e espanhola fala-se da dimensatildeo social do contrato 161 Prefere-se uma distinccedilatildeo estrita entre o significado procedimental e o significado

substantivo da dimensatildeo colectiva do contrato a dimensatildeo procedimental prende-se com a

representaccedilatildeo colectiva das pessoas interessadas e a dimensatildeo substancial (eacutetica) prende-se

com a aplicaccedilatildeo dos valores colectivos da boa feacute e dos bons costuments

59

propotildee a conclusatildeo do contrato deve designadamente abster-se de

qualquer discriminaccedilatildeo ao definir as categorias de destinataacuterios da

proposta162 dificultando o acesso aos bens e aos serviccedilos prestados no

quadro de uma operaccedilatildeo de consumo ou as possibilidades de obtenccedilatildeo

de rendimento no quadro de uma relaccedilatildeo de trabalho163

(3) Este dever aplica-se ainda a todas as formas de discriminaccedilatildeo mdash tanto

agrave discriminaccedilatildeo relativa a grupos como agrave discriminaccedilatildeo relativa a

membros individuais de um grupo

(4) O significado dos contratos em causa para a satisfaccedilatildeo das necessidades

primaacuterias da pessoa humana como a habitaccedilatildeo o trabalho e a

participaccedilatildeo na vida econoacutemica e na vida social164 exige o

reconhecimento de um direito fundamental ao acesso mediante

contrato165 a tais bens ou agrave prestaccedilatildeo de tais serviccedilos

9 CORRESPECTIVO (PRECcedilO OU REMUNERACcedilAtildeO)

(1) A prestaccedilatildeo e a contraprestaccedilatildeo166 natildeo devem ser gravemente

desproporcionadas natildeo devem encontrar-se entre si numa grosseira

natildeo relaccedilatildeo

(2) O preccedilo dos bens ou serviccedilos prestados deve ser determinado de acordo

com criteacuterios transparentes

(3) [Estando em causa o acesso a bens ou a serviccedilos essenciais agrave satisfaccedilatildeo

das necessidades primaacuterias da pessoa humana] o preccedilo deve ser

162 Na versatildeo italiana fala-se de uma eventual definiccedilatildeo de categorias de destinataacuterios 163 Na versatildeo francesa faz-se uma alusatildeo expressa ao acesso 164 Em nenhuma das versotildees se fala em participaccedilatildeo na vida social Em todo o caso parece

adequado esclarecer que a participaccedilatildeo na vida econoacutemica eacute simultamente uma participaccedilatildeo

na vida social O risco de exclusatildeo econoacutemica eacute sempre um risco de exclusatildeo social 165 A expressatildeo mediante contrato encontra-se tatildeo-soacute na versatildeo italiana 166 Na versatildeo inglesa fala-se de obrigaccedilotildees reciacuteprocas

60

acessiacutevel167 natildeo discriminatoacuterio168 e proporcionado aos custos [de

produccedilatildeo]169

10 ADAPTACcedilAtildeO OU MODIFICACcedilAtildeO DO CONTRATO

(1) Se as circunstacircncias soacutecio-econoacutemicas pressupostas pelas partes como

fundamento da conclusatildeo do contrato natildeo se verificarem havendo

uma grave divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo de que as

partes partiram o conteuacutedo dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa deve ser adaptado ou modificado

(2) A divergecircncia pode referir-se agraves circunstacircncias presentes ou agraves

circunstacircncias futuras (error in futurum) e deve ser tatildeo grave que se

as partes tivessem uma representaccedilatildeo exacta da realidade natildeo teriam

concluiacutedo nenhum contrato ou teriam concluiacutedo um contrato de tipo

ou de conteuacutedo diferente

(3) Ao apreciar-se a gravidade da divergecircncia entre a realidade e a

representaccedilatildeo deve atender-se ao fim do contrato agrave distribuiccedilatildeo legal

ou contratual do risco e ao significado social da relaccedilatildeo170 171

(4) O conteuacutedo do contrato soacute deve ser adaptado ou modificado desde

que a subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual sem qualquer alteraccedilatildeo ou

modificaccedilatildeo seja inexigiacutevel

(5) Ao avaliar-se a exigibilidade ou inexigibilidade da subsistecircncia da

relaccedilatildeo contratual deve atender-se designadamente aos aos deveres

fundamentais de uma pessoa humana172 O consumidor ou o

167 Na versatildeo francesa abordables 168 Nas versotildees alematilde e inglesa fala-se em preccedilos determinados de acordo com criteacuterios natildeo

discriminatoacuterios na versatildeo espanhola em preccedilos natildeo discriminatoacuterios na versatildeo francesa

natildeo se faz referecircncia agrave discriminaccedilatildeo exigindo-se tatildeo-soacute que o preccedilo seja acessiacuteveis e

proporcionado aos custos e na versatildeo italiana natildeo se faz referecircncia nem a uma coisa nem agrave

outra 169 Na versatildeo francesa aligneacutes avec les coucircts 170 Como na traduccedilatildeo do sexto princiacutepio faz-se uma distinccedilatildeo entre o fim do contrato e o

significado social da relaccedilatildeo 171 Prefere-se autonomizar a referecircncia ao fim social do contrato ou ao significado social da

relaccedilatildeo por ser um dos aspectos em que a redacccedilatildeo do deacutecimo princiacutepio se desvia do sect 313

do Coacutedigo Civil alematildeo 172 Prefere-se autonomizar a referecircncia aos deveres fundamentais da pessoa humana por ser

um dos aspectos em que a redacccedilatildeo do deacutecimo princiacutepio se desvia do sect 313 do Coacutedigo Civil

alematildeo

61

trabalhador devem estar em condiccedilotildees de cumprir os seus deveres

fundamentais como por exemplo o dever de assistecircncia aos seus

familiares assegurando-lhes alimento vestuaacuterio e habitaccedilatildeo173

(6) As regulamentaccedilotildees colectivas alcanccediladas atraveacutes dos sistemas de

representaccedilatildeo dos interesses dos consumidores e dos trabalhadores

devem ter prioridade sobre os resultados de uma adaptaccedilatildeo ou de uma

modificaccedilatildeo individual

11 CESSACcedilAtildeO ANTECIPADA DO CONTRATO

(1) A cessaccedilatildeo antecipada dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia

da pessoa [atraveacutes de denuacutencia ou de revogaccedilatildeo por acto unilateral]

deve ser feita de uma forma transparente controlaacutevel174 e socialmente

aceitaacutevel Caso seja feita contra a contra a vontade do consumidor do

locataacuterio ou do trabalhador175 deve representar-se como uma medida

extrema (ultima ratio)

(2) O acto unilateral por que se faz cessar o contrato deve ser

fundamentado e as razotildees comunicadas para fundamentar a cessaccedilatildeo

do contrato devem ser verdadeiras adequadas e justas natildeo podendo

em caso algum ser razotildees discriminatoacuterias ou ter resultados

discriminatoacuterios

(21) O empregador o fornecedor de bens ou o prestador de serviccedilos

soacute pode fazer cessar o contrato contra a vontade do consumidor ou do

trabalhador desde que tenha razotildees relacionadas (i) com as

circunstacircncias pessoais da contraparte mdash designadamente com as suas

condiccedilotildees fiacutesicas176 mdash (ii) com o comportamento do consumidor ou

do trabalhador tatildeo grave ou tatildeo significativo que justifique uma

ruptura ou (iii) com as suas proacuteprias circunstacircncias econoacutemicas e

financeiras

173 Embora nenhuma das versotildees concretize o sentido do termo deveres fundamentais da

pessoa humana ou obrigaccedilotildees fundamentais da pessoa humana parece que deve densificar-

se o sentido da expressatildeo 174 Na versatildeo alematilde nachvollziehbar 175 Embora natildeo esteja nas versotildees alematilde e italiana a restriccedilatildeo encontra-se nas versotildees inglesa

francesa e espanhola 176 Na versatildeo alematilde faz-se referecircncia a circunstacircncias relacionadas com as condiccedilotildees da

pessoa na versatildeo italiana a circunstacircncias relacionadas com as condiccedilotildees fiacutesicas da pessoa

do devedor nas versotildees inglesa e francesa natildeos e faz referecircncia nem a uma coisa nem a outra

62

(22) As circunstacircncias econoacutemicas ou financeiras do empregador do

fornecedor de bens ou do prestador de serviccedilos soacute podem ser invocadas

como fundamento desde que os custos ou os esforccedilos exigidos para que

a relaccedilatildeo contratual continue sejam desproporcionados ou

excessivos177 [colocando em causa sustentabilidade econoacutemica e

financeira da operaccedilatildeo de consumo ou da relaccedilatildeo de trabalho178]

(3) Sempre que o fundamento da cessaccedilatildeo antecipada do contrato sejam as

circunstacircncias econoacutemicas ou financeiras do empregador do

fornecedor de bens ou do prestador de serviccedilos deve procurar-se a

(re)composiccedilatildeo do equiliacutebrio de interesses atraveacutes dos sistemas de

representaccedilatildeo coletiva O procedimento deve dar aos consumidores

aos trabalhadores e aos seus representantes179 uma oportunidade

razoaacutevel para apresentarem as suas razotildees proporcionando-lhes o

tempo suficiente para fazerem propostas que evitem a cessaccedilatildeo

antecipada do contrato ou que natildeo evitando a cessaccedilatildeo atenuem as

suas consequecircncias os seus efeitos

(4) Em todos os casos em que a cessaccedilatildeo antecipada no contrato se decirc no

seu interesse o empregador o fornecedor de bens ou o prestador de

serviccedilos fica adstrito a deveres de protecccedilatildeo para com o consumidor ou

para com o o trabalhador180 deve considerar com toda a diligecircncia181

os direitos e os interesses do consumidor ou do trabalhador Em

particular deve dar-lhe um periacuteodo de tempo adequado para se

preparar para o termo da relaccedilatildeo contratual

12 COMUNICACcedilAtildeO

(1) Em todas as fases da relaccedilatildeo contratual desde que a preparaccedilatildeo do

contrato tem o seu iniacutecio com a entrada em negociaccedilotildees ateacute ao

momento em que a execuccedilatildeo do contrato tem o seu fim devem as

partes comunicar entre si

177 Na versatildeo italiana fala-se de um excesso de custo econoacutemico da cooperaccedilatildeo creditiacutecia 178 Na versatildeo inglesa fala-se da viabilidade do objecto do contrato na versatildeo francesa fala-

se da continuidade do objecto do contrato exigindo-se que fique comprometida para que haja

uma justa causa de ruptura 179 Na versatildeo alematilde p ex diz-se que devem ser ouvidos os indiviacuteduos e os seus

representantes na versatildeo inglesa que devem ser ouvidos os indiviacuteduos ou os seus

representantes 180 O termo deveres de protecccedilatildeo encontra-se tatildeo-soacute na versatildeo italiana 181 Na versatildeo alematilde fala-se soacute em diligecircncia na versatildeo francesa em toda a diligecircncia

63

(2) A comunicaccedilatildeo entre as partes deve ser directa e pessoal e deve ter

lugar designadamente antes de qualquer acto unilateral relativo ao

contrato (com a sua adaptaccedilatildeo a sua modificaccedilatildeo ou a sua resoluccedilatildeo)

(3) O diaacutelogo deve basear-se na igualdade deve ser um diaacutelogo entre

iguais conforme aos princiacutepios da confianccedila e da cooperaccedilatildeo

construtiva orientado objectivamente para a plena realizaccedilatildeo do fim

do contrato

13 INFORMACcedilAtildeO E TRANSPAREcircNCIA

(1) Em todas as fases da relaccedilatildeo contratual desde que a preparaccedilatildeo do

contrato tem o seu iniacutecio com a entrada em negociaccedilotildees ateacute ao

momento em que a execuccedilatildeo do contrato tem o seu fim e mesmo

depois desse momento o empregador o fornecedor de bens ou o

prestador de serviccedilos182 deve dar ao consumidor ou ao trabalhador

informaccedilotildees verdadeiras completas atempadas e compreensiacuteveis

sobre todas as circunstacircncias relevantes para a relaccedilatildeo contratual

(2) O conteuacutedo do dever de informaccedilatildeo deve concretizar-se atendendo aos

interesses do consumidor ou do trabalhador e ao fim de corrigir as

assimetrias informacionais que possam subsistir entre as partes

14 MINIMO DE PARTICIPACcedilAtildeO NA VIDA ECONOacuteMICA [MIacuteNIMO DE

EXISTEcircNCIA]183

(1) [O consumidor ou o trabalhador natildeo pode ser privado de um miacutenimo

de participaccedilatildeo na vida econoacutemica]

(2) Os contratos que atingirem os rendimentos do consumidor ou do

trabalhador seja por lhe darem acesso a um rendimento regular

tornando-o disponiacutevel em determinadas circunstacircncias de tempo e de

lugar seja por lhe tirarem o acesso a tal rendimento entregando-o ao

fornecedor de bens ou ao prestador de serviccedilos devem proporcionar agrave

pessoa humana o miacutenimo necessaacuterio para a sua subsistecircncia

(3) O Estado deve conformar as suas leis de forma a proteger os

consumidores e os trabalhadores contra os riscos de exclusatildeo da vida

182 Na versatildeo italiana fala-se da parte que predisponha e organize o contrato 183 Na versatildeo italiana fala-se de miacutenimo vital

64

econoacutemica designadamente no quadro dos processos de execuccedilatildeo de

preacute-insolvecircncia ou de insolvecircncia

15 MIacuteNIMO DE PARTICIPACcedilAtildeO NA VIDA SOCIAL

(1) [O consumidor ou o trabalhador natildeo pode ser privado de um miacutenimo

de participaccedilatildeo na vida social]

(2) No momento da conformaccedilatildeo individual e colectiva184 como no

momento da sua interpretaccedilatildeo dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa185 deve considerar-se adequadamente os riscos de

exclusatildeo social da pessoa do consumidor ou do trabalhador

(3) No momento da conformaccedilatildeo como no momento da intepretaccedilatildeo do

contrato deve considerar-se designadamente os riscos de falta de

emprego de falta de habitaccedilatildeo ou de sobreendividamento

relacionando-os com as suas causas soacutecio-econoacutemicas186

(4) Os princiacutepios e as regras de direito privado por que se pretende prevenir

o perigo de exclusatildeo social devem ser completados pelos princiacutepios e

pelas regras de direito puacuteblico

16 CONFIDENCIALIDADE

Os dados pessoais facultados187 durante um contrato duradouro

essencial agrave existecircncia da pessoa como os juiacutezos de valor proferidos com base

nos dados pessoais assim facultados devem ser tratados confidencialmente e

soacute podem ser usados no quadro da realizaccedilatildeo do fim do contrato188

184 Nas versotildees alematilde inglesa e francesa fala-se de conformaccedilatildeo individual e colectiva na

versatildeo italiana de estruturaccedilatildeo individual e coletiva 185 Na versatildeo espanhola fala-se soacute da interpretaccedilatildeo 186 Na versatildeo francesa fala-se das origens sociais da pessoa Em todas as demais versotildees

fala-se das causas sociais ou da origens sociais dos fenoacutemenos do desemprego da falta de

habitaccedilatildeo ou do sobreendividamento 187 Na versatildeo francesa fala-se em dados comunicados sem distinguir se satildeo dados pessoais

ou natildeo Em todo caso o deacutecimo sexto princiacutepio soacute faz pleno sentido desde que se aplique

exclusivamente aos dados pessoais 188 Nas versotildees alematilde e inglesa diz-se que soacute podem ser usados para a realizaccedilatildeo do fim do

contrato na versatildeo francesa que soacute podem ser usados no quadro da realizaccedilatildeo do fim do

contrato mdash foacutermula mais ampla e aparentemente mais apropriada

65

Life time contracts um primeiro balanccedilo

Luca Nogler amp Udo Reifner

I INTRODUCcedilAtildeO

Neste artigo propomo-nos fazer um primeiro balanccedilo do diaacutelogo em

torno do nosso livro Life Time Contracts com o subtiacutetulo Social Longterm

Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law189 O livro foi

apresentado em muacuteltiplas ocasiotildees em muacuteltiplos paiacuteses190 e apreciado por

uma seacuterie de recensotildees191 sugerindo que o diaacutelogo em torno dos contratos

duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa pode e deve prosseguir

Professor de Direito do trabalho na Universidade de Trento (Itaacutelia) Professor de Direito comercial nas Universidade de Hamburgo (Alemanha) e de Trento

(Itaacutelia) Traduccedilatildeo para portuguecircs de Nuno Manuel Pinto Oliveira 189 Life Time Contracts Social Longterm Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit

Law Eleven The Hague 2014 190 No dia 4 de dezembro de 2013 foi apresentado na Universidade do Luxemburgo por Hugh

Collins e David Hiez no dia 17 de marccedilo de 2014 foi apresentado na Universidade de Porto

Alegre no Brasil no dia 22 de maio de 2014 na Alemanha na Internationale Konferenz zu

Finanzdienstleistungen por Doris Neuberger e Ulrich Magnus nos dias 26 e 27 de setembro

de 2014 na Universidade McGill em Montreacuteal (Canadaacute) no quadro do coloacutequio Le livre agrave

venir dans les faculteacutes de droit no dia 17 de outubro de 2014 na Universidade de Santiago

de Compostela na Espanha por Javier Arias Varona Fernando Gallardo Francisco

Hernaacutendez Javier Lete e Aacutengel Fernaacutendez Albor no dia 8 de novembro de 2014 na

Universidade de Toacutequio no Japatildeo por Katsutoshi Kezuka e por Yasuo Suwa) no dia 6 de

marccedilo de 2015 na Universidade de Pisa em Itaacutelia por Vincenzo Roppo Marco De Cristofaro

Oronzo Mazzotta e Fabio Padovini no dia 15 de maio de 2015 na Universidade do Minho

em Portugal por Nuno Manuel Pinto Oliveira Agostinho Cardoso Guedes Henrique Sousa

Antunes Catarina Serra Juacutelio Gomes Benedita MacCrorie Jorge Morais Carvalho Ana

Maria Taveira de Fonseca Sandra Passinhas e Maria Joatildeo Vasconcelos nos dias 28 a 31 de

maio de 2015 no Annual Meeting da Law and Society Association em Seattle no dia 29 de

junho a 1 de julho de 2015 no 15ordm Annual Meeting da International Association of Consumer

Law em Amesterdatildeo em que foi apresentada uma comunicaccedilatildeo subordinada ao tema ldquoEarly

termination in Life-Time Contractsrdquo e por uacuteltimo no dia 25 de setembro de 2015 na

Universidade de Trento na Itaacutelia por Roberto Fiori e Gianni Santucci 191 David Hiez ldquoAgrave propos des Life Time Contractsrdquo in Revue trimestrelle de droit civil 2014

(4) paacutegs 817-827 Francisco Javier Arias Varona ldquoRecensioacutenrdquo in RPC 21 2014 paacutegs 389-

393 Marina Tamm ldquoBuchbesprechungrdquo in Verbraucher und Recht 2015 (1) paacutegs 39-40

66

Natildeo nos arrependemos em primeiro lugar de ter adoptado uma

perspectiva multicultural Temos a convicccedilatildeo plena de que a forccedila da Europa

estaacute no pluralismo das suas culturas Que a decisatildeo foi acertada demonstram-

no as traduccedilotildees dos Principles on Life Time Contracts em distintas liacutenguas

O livro publica as traduccedilotildees dos Principles em alematildeo em francecircs em

italiano e em espanhol depois de o livro ter sido publicado foram preparadas

as traduccedilotildees em portuguecircs em japonecircs e em coreano Como cada uma das

traduccedilotildees comprova natildeo se trata soacute de substituir palavras de uma liacutengua por

palavras de outra liacutengua Trata-se sim de integrar um texto numa cultura

juriacutedica diferente de quando em quando trata-se de o integrar numa cultura

juriacutedica muito diferente daquela em que o texto foi redigido

Javier Ariacuteas Varona refere-se a um ldquofortalecimento do caraacutecter

multicultural do trabalhordquo representanto-o como necessaacuterio para que os textos

possam produzir os impulsos que os autores pretendem que produzam

Concordando no essencial com Ariacuteas Varona Ewoud Hondius critica

as contribuiccedilotildees de autores neerlandeses publicadas em inglecircs por natildeo se

preocuparem tanto como deveriam preocupar-se com a compreensatildeo dos

conceitos e das estruturas do direito neerlandecircs pelo puacuteblico

O caso do termo centrale ondermingsraad seria um caso examplar

Hondius lamenta que tenha sido traduzido de forma a sugerir que se tratava de

um puro e simples oacutergatildeo de participaccedilatildeo ou de representaccedilatildeo deformando-se

a realidade ao esquecer-se como natildeo deveria esquecer-se a especificidade

das funccedilotildees desempenhadas e a originalidade do oacutergatildeo Com o exemplo do

termo centrale ondermingsraad Hondius pronuncia-se em favor da tese por

noacutes sustentada de que o uso da liacutengua-matildee dos autores pode ser necessaacuterio

ainda que tal liacutengua natildeo esteja entre as mais conhecidas mdash ainda que natildeo seja

a liacutengua mais faacutecil de falar ou a mais simples de compreender

David Hiez exprime uma apreciaccedilatildeo particular pela nossa preferecircncia

ldquoO grupo EuSoCo decidiu trabalhar em diferentes liacutenguas (inglecircs alematildeo

Pompeyo Gabriel Ortega Lozano ldquoRecensioacutenrdquo in Revista espantildeola de derecho del trabajo

2015 paacutegs 287-291 Ewoud Hondius ldquoReviewrdquo in Nederlands Tijdschrift voor Burgerlijk

Recht vol 37 2014 (8) paacutegs 308-309 Hugh Collins ldquoReviewrdquo in European Review of

Contract Law vol 10 2014 (3) paacutegs 466-472 Hans-Wolfgang Micklitz ldquoBook Notes mdash

Law 12015rdquo in Journal of Consumer Policy (2015) 38 paacuteg 108 Michele Graziadei in

Rivista trimestrale di diritto e procedura civile em curso de publicaccedilatildeo Chantal Mark in

European Journal of Comparative Law and Governance 2015 em curso de publicaccedilatildeo G

Loumlschnigg in Das Recht der Arbeit em curso de publicaccedilatildeo Muriel Fabre-Magnan ldquoCritique

de la notion de contenu du contratrdquo in Revue des contrats 01er Septembre 2015 ndeg 3 paacuteg

639 (II C)

67

francecircs e italiano) e natildeo recorrer a um novo esperanto Os leitores com

competecircncias linguiacutesticas mais limitadas poderatildeo porventura perder alguma

coisa Em todo o caso a decisatildeo foi correcta e deve ser apreciada

favoravelmente Faz parte de uma concepccedilatildeo distinta e proacutepria da construccedilatildeo

de um direito privado europeu Como parte de uma concepccedilatildeo distinta e

proacutepria responde pelo menos em parte agrave criacutetica dos que contestam qualquer

tentativa de aproximaccedilatildeo com o argumento da intraduzibilidade do direitordquo

O juiacutezo de Hiez foi de uma forma geral partilhado pelos comentadores

do livro Marina Tamm sentiu-se impelida a falar de uma ldquoheranccedila comum

europeiardquo (de uma gemeinsames europaumlisches Erbe)

Natildeo nos esquecemos em segundo lugar de que o tiacutetulo Life Time

Contracts natildeo eacute auto-explicativo mdash precisa sempre de um esclarecimento

adicional ou suplementar sobretudo se natildeo foi apresentado em inglecircs

Eacute uma designaccedilatildeo geneacuterica deve ser acompanhada por designaccedilotildees

mais especiacuteficas apropriadas para representar os seus dois desafios de uma

forma mais juriacutedica Em primeiro lugar satildeo contratos de longa duraccedilatildeo e em

segundo lugar satildeo contratos essenciais agrave existecircncia da pessoa mdash essenciais

agraves relaccedilotildees humanas Os esclarecimentos adicionais ou suplementares foram

de alguma forma jaacute feitos em algumas das traduccedilotildees dos princiacutepios publicadas

no livro [ou preparadas depois de o livro ter sido publicado]

Hugh Collins alega que ldquoo criteacuterio colocado no centro da definiccedilatildeo de

life time contracts [hellip] estaacute em ser o contrato mais ou menos essencial para a

realizaccedilatildeo da pessoa em ser o contrato mais ou menos essencial para a sua

participaccedilatildeo como pessoa na sociedaderdquo O problema estaria em que todos

ou quase todos os contratos pelo menos potencialmente satildeo essenciais para a

realizaccedilatildeo da pessoa Collins daacute como exemplo o caso de uma pessoa que

precisa de tomar o autocarro todos os dias para chegar ao local de trabalho O

serviccedilo de transportes puacuteblicos tornar-se-ia essencial para a sua realizaccedilatildeo

pessoal Com o uso diaacuterio de tal serviccedilo constituir-se-ia uma relaccedilatildeo e uma

relaccedilatildeo que pode ser descrita como ldquorelaccedilatildeo social duradourardquo O conceito de

life time contracts falharia por natildeo ter capacidade distintiva Seria

potencialmente capaz de incluir quase todos os contratos concluiacutedos

normalmente pelas pessoas ao longo da sua vida

David Hiez responde que o conceito de life time contract define-se em

extensatildeo por duas notas caracterizadoras mdash por um lado pela duraccedilatildeo e por

outro lado pela destinaccedilatildeo funcional agrave realizaccedilatildeo pessoal e social de um dos

contraentes Natildeo eacute suficiente para que o contrato entre na categoria dos life

time contracts que tenha como destinaccedilatildeo funcional a realizaccedilatildeo pessoal e

social de um dos contraentes Eacute necessaacuterio que o contrato seja duradouro

68

Quando os contratos de execuccedilatildeo instantacircnea simplesmente se repetem

e se sucedem sem que haja nada que os ligue desde o iniacutecio satildeo e devem ser

designados como contratos contingentes recorrentes Agraves relaccedilotildees por si

consituiacutedas pode chamar-se relaccedilotildees obrigacionais recorrentes

(Wiederkehrschuldverhaumlltnisse) Em todo o caso natildeo haacute nos contratos

recorrentes nenhuma relaccedilatildeo complexas como natildeo haacute nehuma relaccedilatildeo

duradoura mdash haacute sim sempre e soacute relaccedilotildees singulares sucessivas

Life time contracts poderaacute porventura ser mais bem lido como Life time

contracts Natildeo haacute de facto nada mdash natildeo haacute rigorosamente nada mdash em comum

entre os life time contracts e os contratos vitaliacutecios

Os contratos vitaliacutecios foram abolidos pelas revoluccedilotildees burguesas

conjuntamente com a escravatura e com a servidatildeo Ainda que as perspectivas

se tenham de alguma forma invertido mdash por haver muitos consumidores

muitos inquilinos e muitos trabalhadores que seguramente apreciariam que

os contratos necessaacuterios agrave sua existecircncia como os contratos de trabalho

durassem toda a vida192 mdash natildeo haacute nenhuma relaccedilatildeo sistemaacutetica entre os dois

conceitos Os consumidores os inquilinos ou os trabalhadores que pretendem

que os contratos necessaacuterios agrave sua existecircncia durem toda a vida natildeo querem

de forma nenhuma ficar-lhes vinculados para toda a vida Aquilo que os

trabalhadores que os inquilinos ou que os consumidores querem eacute soacute uma

protecccedilatildeo adequada contra uma cessaccedilatildeo unilateral das relaccedilotildees contratuais

essenciais agrave sua existecircncia E de facto os contratos vitaliacutecios natildeo satildeo coisa

que uma sociedade livre e responsaacutevel possa desejar ou sequer aceitar

Os Principles on life time contracts ao proibirem uma cessaccedilatildeo

arbitraacuteria procuram simplesmente um compromisso entre a liberdade

individual e a solidariedade social mdash compromisso tornado necessaacuterio pela

circunstacircncia de em causa estar uma relaccedilatildeo social que atinge directamente a

existecircncia de devedores inquilinos e trabalhadores Eacute por isso que a protecccedilatildeo

proporcionada contra a cessaccedilatildeo unilateral dos life time contracts natildeo eacute uma

protecccedilatildeo absoluta ou categoacuterica mdash eacute tatildeo-soacute circunstancial e relativa

O conceito de life time contracts implica uma criacutetica ao modelo ou

paradigma do contrato de compra e venda Em rigor uma criacutetica desdobraacutevel

em duas mdash por um lado contesta-se falta de uma dimensatildeo temporal

(ldquoduraccedilatildeordquo) e por outro lado ainda que a dimensatildeo temporal fosse de alguma

forma tomada em consideraccedilatildeo sempre se contestaria que fosse degradada a

uma dimensatildeo quantitativa mdash cuja funccedilatildeo seria soacute a de contribuir para a

192 [Os Professores Nogler e Reifner propotildeem um jogo de palavras que natildeo pode ou que soacute

com dificuldade poderaacute transpor-se para a liacutengua portuguesa ldquoMany consumers workers or

tenants would appreciate if their life time contracts would hold for lifetimerdquo]

69

determinaccedilatildeo do juro da renda ou do salaacuterio mdash e natildeo fosse representada na

sua dimensatildeo qualitativa como componente essencial de determinados

contratos em que o tempo estaacute ligado agraves vidas humanas

As duas dimensotildees satildeo poreacutem os dois lados de uma e da mesma

moeda mdash o anverso e o reverso de uma e da mesma medalha O princiacutepio

histoacuterico do caveat emptor permitiu o desenvolvimento de uma economia de

mercado em que se constituem contactos entre pessoas que natildeo se conhecem

e que se se conhecessem provavelmente natildeo teriam gostado umas das outras

A cooperaccedilatildeo anoacutenima quase necessaacuteria pressuposta por uma economia de

mercado substitui uma cooperaccedilatildeo voluntaacuteria de que de facto estaacute muito

distante Com a reduccedilatildeo das relaccedilotildees a contratos de execuccedilatildeo instantacircnea [a

spot contracts] o capitalismo realizou algo de extradordinaacuterio na perspectiva

da produtividade ao promover a cooperaccedilatildeo internacional e a reparticcedilatildeo do

trabalho [entre paiacuteses e dentro de um mesmo paiacutes entre diversos grupos

sociais]

Natildeo pode duvidar-se de que a ideia de cooperaccedilatildeo anoacutenima reduzida

a contratos de execuccedilatildeo instantacircnea ainda desempenha um papel importante

no comeacutercio internacional e no processo de globalizaccedilatildeo E natildeo se pretende

negar-lhe esse papel A criacutetica natildeo eacute a de que os contratos de execuccedilatildeo

instantatildenea como o contrato de compra e venda deveriam ser substituiacutedos por

contratos de execuccedilatildeo duradoura Eacute sim a de sublinhar que o modelo ou

paradigma da compra e venda natildeo eacute um paradigma adequado a todos os

contratos Natildeo se trata de negar que a ideia de livre escolha expliacutecita no

paradigma da compra e venda e impliacutecita sob designaccedilotildees distintas em alguns

aspectos do regime dos contratos de arrendamento e de trabalho ou em coisas

como o modelo da informaccedilatildeo nos contratos de consumo seja uma ideia

importante Trata-se sim de negar que seja a uacutenica ideia importante do regime

dos contratos ou de que deva ser a ideia mais importante do regime de alguns

tipos de contrato O sucesso do paradigma da compra e venda na conformaccedilatildeo

dos mercados converter-se-aacute em fundamental insucesso desde que todos os

contratos incluindo aqueles que se ligam ao consumo ou que permitem o

acesso agrave habitaccedilatildeo ou ao trabalho fiquem subordinados agrave sua ideologia desde

que haja uma inclusatildeo de relaccedilotildees essencialmente distintas da compra e venda

na ideologia contratual construiacuteda sobre o paradigma dos contratos de

execuccedilatildeo instantacircnea ou desde que haja uma exclusatildeo de tais relaccedilotildees da

ideologia contratual

Como as razotildees apresentadas para explicar tal exclusatildeo eram cada vez

menos convincentes e por isso cada vez mais difiacuteceis de aceitar houve

muacuteltiplas tentativas para reintegrar o pensamento da relaccedilatildeo no direito dos

contratos

70

O tempo deixa entatildeo de ser representado como uma pura e simples

projecccedilatildeo de agora para depois ou como um puro e simples ponto de

referecircncia para a determinaccedilatildeo dos salaacuterios das rendas ou dos juros e passa a

ser representado como uma realidade inquantificaacutevel mdash como o tempo de que

as pessoas dispotildeem para viver como o tempo-de-vida ou como o tempo-para-

a-vida Certas actividades como dormir trabalhar consumir amar e sofrer

criam o seu proacuteprio tempo Criam um tempo que eacute proacuteprio e que como tempo

proacuteprio natildeo eacute fungiacutevel mdash natildeo pode ser trocado por tempos diferentes de

outras actividades ou de outras coisas O direito deveraacute reconhecer que o

tempo-de-e-para-a-vida (life time) eacute a dimensatildeo mais importante de algumas

relaccedilotildees contratuais Se o fizer como deve ficaraacute aberto o caminho para a

definiccedilatildeo de um novo tipo de contrato Os bens e serviccedilos prestados estariam

ligados aacute duraccedilatildeo da vida de uma das partes Em tais contratos a duraccedilatildeo seraacute

(teraacute de ser) um elemento essencial em termos um tanto ou quanto

semelhantes agravequeles que se aplicavam a alguns contratos de locaccedilatildeo da Idade

Meacutedia193

Se a primeira ideia consistia em definir um novo tipo de contrato a

segunda talvez mais desafiante consiste em indicar um modelo ou paradigma

uniforme de regulaccedilatildeo de alguma forma anaacutelogo ao paradigma do contrato de

compra e venda194

O paradigma em causa deveria desenvolver-se de forma a construir-se

uma estrutura juriacutedica capaz de harmonizar o contrato e a relaccedilatildeo Como

acenturam alguns (muitos) observadores do nosso trabalho preocupamo-nos

sobretudo com a relaccedilatildeo entre o direito dos contratos e as necessidades

humanas Marina Tamm di-lo de uma forma particularmente impressiva mdash na

nossa abordagem ao direito dos contratos vai contida uma decisatildeo eacutetica

Decisatildeo que se exprime na criacutetica agrave tendecircncia para uma recepccedilatildeo automaacutetica

no discurso juriacutedico dos conceitos e das estruturas da economia neoclaacutessica O

193 O livro do Eclesiastes 3 1-22 representa um desvio ao uso moderno da palavra ldquotempordquo

O texto do capiacutetulo 3 comeccedila com o versiacuteculo em que se diz que ldquoTodas as coisas tecircm o seu

tempo e tudo o que existe debaixo dos ceacuteus tem a sua horardquo e continua com a enumeraccedilatildeo de

actividades humanas ligando-as ao seu tempo Cada um dos versiacuteculos comeccedila com as

palavras ldquoHaacute tempo parardquo e o desenvolvimento esclarece que se trata do tempo e natildeo do

momento (do dia ou da hora) Com a afirmaccedilatildeo de que ldquoAquilo que eacute jaacute existia e aquilo que

haacute-de ser jaacute existiu Deus faz voltar de novo aquilo que jaacute passourdquo (3 15) recorda-se-nos a

relatividade social do tempo A relatividade material essa eacute desde haacute deacutecadas reconhecida

pelos fiacutesicos 194 Cf G Oppo ldquoI contratti di duratardquo in Rivista di Diritto Commerciale 1943 I paacutegs 143

ss e paacutegs 227 ss e 1944 I p 17 ss

71

fenoacutemeno eacute particularmente grave por tais conceitos e tais estruturas

contaminarem parte significativa da anaacutelise econoacutemica do direito

Como escreve Michele Graziadei ldquona economia neoclaacutessica as

mercadorias satildeo todas iguais a si proacuteprias todas fungiacuteveisrdquo Graziadei remete

para uma obra recente de Debra Satz195 para sustentar que o mercado em que

as mercadorias satildeo transaccionadas eacute um mercado cujas especificiadades e

implicaccedilotildees morais ningueacutem compreende ou quer compreender ldquoNatildeo eacute um

acasordquo continua Michele Graziadei ldquoque um dos artigos publicados no

presente volume dirija uma criacutetica feroz agrave obra de Ronald Coase apresentado

mdash de forma aliaacutes um pouco caricatural mdash como um mau profeta que semeia

entre os juristas uma atitude de anaacuteloga insensibilidaderdquo

O caso seria poreacutem um pouco mais grave A criacutetica dirigida a Ronald

Coase seria pelo menos em parte uma criacutetica injusta Natildeo haveria tatildeo-soacute uma

contaminaccedilatildeo externa da teoria juriacutedica do contrato pela teoria econoacutemica

neoclaacutessica (e neoliberal) mdash haveria uma contaminaccedilatildeo interna da teoria

juriacutedica pelo formalismo ou pelo neoformalismo Entre os fundamentos da

teoria juriacutedica do contrato estaacute ainda a ideia de uma autonomia da vontade

contra a qual se dirigiram autores como Gierke mdash tatildeo frequentemente citado

ao longo de todo o livro mdash ou em tempos mais recentes pelos adeptos do

(chamado) socialismo juriacutedico ou em tempos ainda mais recentes os juristas

comprometidos com ldquocorrentes socialmente orientadasrdquo

Muriel Fabre-Magnan sublinha que life time contracts natildeo satildeo

necessariamente contratos para a vida natildeo satildeo contratos cuja duraccedilatildeo

coincida ou tenda a coincidir com a duraccedilatildeo da vida satildeo contratos

importantes na vida Satildeo contratos que desempenham uma funccedilatildeo importante

na vida de uma pessoa ldquoParecerdquo conclui Fabre-Magnan ldquoque a ideia

subjacente agrave definiccedilatildeo de tal tipo de contratos consiste na sua importacircncia no

acesso aos meios de subsistecircnciardquo Entre os contratos de creacutedito os contratos

de arrendamento e os contratos de trabalho haveria uma coisa em comum mdash

e na verdade uma coisa fundamental mdash cada um dos trecircs tipos de contrato

seria necessaacuterio para que o devedor o arrendataacuterio ou o trabalhador pudesse

alcanccedilar os meios necessaacuterios para a sua subsistacircncia

Fabre-Magnan sublinha ainda que o argumento da funccedilatildeo econoacutemica

e social do contrato mdash e da sua importacircncia para o acesso a bens e a serviccedilos

fundamentais mdash foi por si invocado para sustentar a tese de que o empregador

estaacute adstrito a um dever especial de fundamentaccedilatildeo dos actos unilaterais por

que promova uma cessaccedilatildeo antecipada dos contratos de trabalho Fabre-

195 D Satz Why Certain Things Should Not Be for Sale Oxford University Press Oxford

2010

72

Magnan refere-se em particular agrave nossa 14ordf tese em que a funccedilatildeo econoacutemica

e social do contrato foi enunciada sob a forma de princiacutepio

Continuando com a apreciaccedilatildeo da nossa proposta a autora sustenta

com bons argumentos que ldquoa ideia de protecccedilatildeo dos mais fracos tem os seus

limites e em todo o caso eacute algo artificial a ideia de uma fragilidade ou de

uma vulnerabilidade tiacutepicas da parte mais fraca eacute-o ainda maisrdquo

A protecccedilatildeo natildeo seria ou natildeo deveria ser justificada pelo tipo de

contrato mdash seria ou deveria ser justificada pela importacircncia que o contrato

tem para uma das partes e para a sua subsistecircncia Seria precisamente a

importacircncia que o contrato tem para uma das partes e para a sua subsistecircncia

que explicaria e que justificaria algumas disposiccedilotildees especiais do direito dos

contratos por que se pretende precisamente estabilizar a relaccedilatildeo mdash

proporcionar alguma estabilidade agrave relaccedilatildeo obrigacional

E na verdade se a razatildeo de ser da protecccedilatildeo proporcionada ao devedor

ao arrendataacuterio ou ao trabalhador pelo direito do creacutedito pelo direito do

arrendamento ou pelo direito do trabalho fosse simplesmente a fragilidade ou

a vulnerabilidade da parte mais fraca natildeo seria necessaacuteria uma particular

forma de contrato Pode haver fragilidades e vulnerabilidades em todas as

relaccedilotildees contratuais O problema soacute se potildee e soacute deve pocircr-se se a fragilidade

e a vulnerabilidade no direito satildeo o resultado de uma inadequada forma das

relaccedilotildees juriacutedicas ou de uma inadequada ideologia subjacente agraves relaccedilotildees

juriacutedicas contratuais em que o princiacutepio da igual liberdade de todos eacute

transformado degradando-se em princiacutepio de legitimaccedilatildeo de relaccedilotildees de

dependecircncia de diacutevida e de subordinaccedilatildeo Se tal suceder como

frequentemente sucederaacute pode porventura valer a pena reflectir sobre a

pergunta seguinte O modelo do contrato de compra e venda natildeo precisaraacute

porventura de ser complementado com um modelo (com um ldquoirmatildeordquo ou uma

ldquoirmatilderdquo) mais adaptado agrave economia moderna mdash mais adaptado agrave economia do

creacutedito e dos serviccedilos mdash Se se pusesse a pergunta e se se reflectisse

seriamente sobre os argumentos relevantes para a resposta poderia porventura

atribuir-se alguma relevacircncia agrave chamada ldquoigualdade de direitordquo evocada por

Anatole France Os modelos do direito da compra e venda poderiam

porventura ser representados como casos paradigmaacuteticos de um direito de

protecccedilatildeo do vendedor mdash e desde que os seus resultados fossem transferidos

como casos paradigmaacuteticos de um direito de protecccedilatildeo do empregador do

senhorio ou do mutuante Ora a protecccedilatildeo de um vendedor como a protecccedilatildeo

de um empregador (de uma entidade patronal) de um senhorio ou de um

mutuante precisaria de uma justificaccedilatildeo especial

Natildeo seria necessaacuterio declarar a desigualdade das partes natildeo seria

necessaacuterio dizer que o comprador que o trabalhador que o inquilino ou que

o mutuaacuterio se encontram em situaccedilatildeo de inferioridade e sobretudo natildeo seria

73

necessaacuterio dizer que se encontram em situaccedilatildeo de inferioridade por causa da

sua (alegada) fragilidade pessoal ou da sua (alegada) vulnerabilidade pessoal

Devemos esclarecer que a nossa perspectiva natildeo eacute uma perspectiva

funcional natildeo mdash a nossa perspectiva eacute uma perspectiva teacutecnica

Se o Manifesto para a Justiccedila Social [no direito europeu dos contratos]

adoptava uma perspectiva funcional mdash alegando que o direito dos contratos

deveria realizar a justiccedila social ainda que natildeo demonstrasse com adequada

precisatildeo e com adequado rigor como poderia alcanccedilar-se um tal fim mdash o

nosso projecto mdash a que chamaacutemos de Projecto para um Contrato social

europeu (EuSoCo) e a que hoje deveriacuteamos porventura chamar de Projecto

para um Contrato social internacional (IsoCo) por causa da presenccedila de

participantes da Ameacuterica e da Aacutesia mdash esse adopta uma perspectiva teacutecnica

Natildeo definimos a funccedilatildeo dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa a partir de fora como sucederia se os trataacutessemos a partir

da perspectiva da justiccedila social e sim a partir de dentro

Partimos dos casos mais significativos de um direito dos contratos

socializado mdash como sejam os casos do direito do trabalho do direito da

protecccedilatildeo do inquilino ou do direito da protecccedilatildeo do consumidor como

devedor (mutuaacuterio) mdash para propor uma generalizaccedilatildeo dos aspectos (uma

generalizaccedilatildeo dos princiacutepios e das regras) que tais contratos tecircm em comum

O nosso ponto de partida estaacute na ideia de que a dimensatildeo social eacute

inerente agrave dimensatildeo temporal mdash estaacute de alguma forma contida na dimensatildeo

temporal O tempo soacute poder ser considerado desde que o contrato seja

duradouro desde que a sua execuccedilatildeo se prolongue por um prazo mais ou

menos longo Quanto mais longa for a duraccedilatildeo tanto mais aspectos

relacionais ligando o contrato e a vida se tornaratildeo evidentes Em uacuteltima

anaacutelise o contrato poderaacute tornar-se numa necessidade existencial O nosso

trabalho continua e desenvolve a criacutetica ao modelo dos contratos de execuccedilatildeo

instantacircnea (dos spot contracts) deduzida desde o iniacutecio do seacuteculo XX Se a

dimensatildeo social pode de alguma forma ser posta entre parecircntesis ao tratar-se

dos contratos de execuccedilatildeo instantacircnea tal natildeo pode de forma nenhuma

suceder nos contratos de execuccedilatildeo duradoura (nos long-term contracts) Os

conceitos de contrato social e de contrato de execuccedilatildeo duradoura satildeo

conceitos entre os quais haacute uma ligaccedilatildeo loacutegica Os contratos de execuccedilatildeo

duradoura (long term contracts) satildeo necessariamente contratos sociais (satildeo

necessariamente social contracts) mdash a duraccedilatildeo implica loacutegica e

necessariamente relaccedilotildees sociais e a ordenaccedilatildeo das relaccedilotildees sociais pelo

contrato implica loacutegica e necessariamente relaccedilotildees juriacutedicas Explicitada a

relaccedilatildeo loacutegica necessaacuteria entre a dimensatildeo temporal e a dimensatildeo social o

74

nosso trabalho desenvolve a discussatildeo interrompida entre os contratos

transaccionais de execuccedilatildeo instantacircnea e os contratos relacionais

Propomo-nos atraveacutes da generalizaccedilatildeo dos aspectos que os contratos

de trabalho de arrendamento e de creacutedito ao consumo tecircm em comum

contribuir para a diferenciaccedilatildeo entre duas partes gerais do direito das

obrigaccedilotildees O modelo dos contratos de execuccedilatildeo instantacircnea desenhado a

partir do paradigma do contrato de compra e venda deve ser completado com

o modelo dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa

desenhado a partir dos paradigmas do creacutedito ao consumo do arrendamento e

do trabalho Construiacuteda de baixo para cima (a partir de uma bottom-up

methodology) a nova parte geral ocupando o cimo da piracircmide poderaacute

adaptar-se a aacutereas distintas do trabalho do arrendamento ou do creacutedito ao

consumo Os contributos relacionados com o direito do trabalho satildeo

particularmente significativos ao afirmarem uma tal possibilidade

II A DEFINICcedilAtildeO DE LIFE TIME CONTRACTS

Chegados aqui deve regressar-se ainda que brevemente agrave anaacutelise dos

elementos essenciais da definiccedilatildeo de Life time contracts

a) A duraccedilatildeo Entre as caracteriacutesticas dos Life time contracts estaacute a de

que ldquoa prestaccedilatildeo na sua integridade depende da duraccedilatildeo do contrato

(Laumlnge)rdquo196

Nos sistemas de Civil law o termo contratos de execuccedilatildeo duradoura

(long term contracts) abrange duas categorias de contratos em primeiro lugar

os contratos de execuccedilatildeo continuada cujo cumprimento se desenvolve

ininterruptamente pelo periacuteodo definido no contrato ou em todo o caso pelo

periacuteodo necessaacuterio para a satisfaccedilatildeo das necessidades do credor e em segundo

lugar os contratos de execuccedilatildeo perioacutedica cujo cumprimento se decompotildee em

actos sucessivos repetidos com intervalos (regulares ou irregulares) A

diferenciaccedilatildeo entre as relaccedilotildees obrigacionais de curto prazo e de longo prazo

relaciona-se com os interesses que a proacutepria obrigaccedilatildeo prossegue ou se propotildee

prosseguir Nos contratos que exigem uma prestaccedilatildeo continuada ou perioacutedica

os interesses do credor satildeo tais que natildeo podem ser satisfeitos por um acto

simples mdash soacute podem secirc-lo por uma prestaccedilatildeo complexa contiacutenua ou

descontiacutenua Nos contratos que natildeo exigem uma prestaccedilatildeo duradoura nem

continuada nem tatildeo-pouco perioacutedica os interesses do credor satildeo tais que

196 Vide por exemplo K Larenz Lehrbuch des Schuldrechts vol I mdash Allgemeiner Teil C

H Beck Muumlnchen 1987) paacuteg 30

75

podem ser satisfeitos por um acto simples A prestaccedilatildeo esgota-se num uacutenico

acto mdash e esse uacutenico acto esgota-se num uacutenico momento

Em termos histoacutericos o desenvolvimento da categoria dos contratos de

duraccedilatildeo mdash e em particular da sub-categoria dos contratos de longa duraccedilatildeo

mdash estaacute relacionada com quatro questotildees com a realizaccedilatildeo dos fins

prosseguidos pelas partes com a conclusatildeo do contrato e em particular com a

plena satisfaccedilatildeo das suas aspiraccedilotildees e dos seus interesses com a adaptaccedilatildeo dos

contratos aos casos de perturbaccedilatildeo do equiliacutebrio econoacutemico subjacente ao

contrato (Geschaumlftsgrundlage clausula rebus sic stantibus) com o direito de

as partes denunciarem discricionariamente ad nutum ou ad libitum os

contratos duradouros desde que a sua duraccedilatildeo seja indeterminada e por

uacuteltimo com os efeitos da resoluccedilatildeo do contrato Independentemente de o

fundamento da resoluccedilatildeo estar no contrato ou estar na lei a resoluccedilatildeo do

contrato natildeo teraacute (natildeo poderaacute em regra ter) efeito retroactivo

O problema estaacute em que a categoria histoacuterica dos contratos de longa

duraccedilatildeo eacute insuficiente natildeo considera ou pelo menos natildeo considera

suficientemente como deveria considerar o aspecto humano as partes de

alguns contrato de longa duraccedilatildeo satildeo seres humanos mdash satildeo pessoas mdash e os

contratos soacute podem compreender-se atendendo agrave sua relaccedilatildeo com um ser

humano (com uma pessoa com o tempo da vida de uma pessoa)

b) O tempo da-e-para a vida de uma pessoa (life time) Foi

precisamente por causa de tal insuficiecircncia que preferimos dar-lhes um nome

diferente mdash o nome de Life time contracts Em portuguecircs o termo poderaacute ser

traduzido ainda que de uma forma tatildeo-soacute aproximada por contratos

duradouros essenciais egrave existecircncia da pessoa

Como diz o nosso Segundo princiacutepio

ldquoO ponto central do regime dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa deve ser o indiviacuteduo na sua concreta realidade

material e moral O direito deve preocupar-se em disciplinar a

conclusatildeo do contrato e as relaccedilotildees de cooperaccedilatildeo entre as partes

conformando-as para proteger e para promover o desenvolvimento

da pessoa humanardquo

Em termos mais geneacutericos dir-se-aacute que os desenvolvimentos recentes

em duas aacutereas especiacuteficas como sejam o direito do arrendamento e o direito

do trabalho introduziram princiacutepios e regras no direito privado por que se

procura realizar o princiacutepio da justiccedila fazendo acepccedilatildeo de pessoas

Hugo Sinzheimer afirmou a propoacutesito dos contratos de trabalho ainda

que em termos todavia extensiacuteveis a todos os Life time contracts que o direito

natildeo deve limitar-se a reconhecer a liberdade formal do cidadatildeo Em vez de

76

tomar a liberdade de cada pessoa como uma formalidade deve projectar-se na

real substacircncia da liberdade para a realizar praticamente referindo-se agraves

necessidades do ser humano na sua natureza de ser em relaccedilatildeo197

Concordando com Sinzheimer decidimos concentrar-nos no aspecto

humano dos contratos sociais de longa duraccedilatildeo O termo Life time contracts

pretende acentuaacute-lo pretende colocaacute-lo em evidecircncia O problema central da

categoria dos Life time contracts mdash da catgoria dos contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa mdash relaciona-se com o ser humano com as

suas necessidades fiacutesicas e morais relacionadas com a pertenccedila com a

seguranccedila com o sucesso ou com a auto-realizaccedilatildeo Em diferentes palavras

relaciona-se com a sua necessidade existencial de gozar de bens e de serviccedilos

de oportunidades de trabalho e de oportunidades de rendimento A satisfaccedilatildeo

das necessidades existenciais do ser humano eacute uma preacute-condiccedilatildeo essencial

para a auto-relizaccedilatildeo para a participaccedilatildeo na vida social numa palavra eacute preacute-

condiccedilatildeo essencial para a prossecuccedilatildeo de uma vida feliz (happy life)

Trata-se de tomar a seacuterio a dimensatildeo do tempo natildeo de a tomar a seacuterio

em dimensotildees tradicionalmente consideradas pela ciecircncia do direito e sim de

a tomar a seacuterio em dimensotildees novas tradicionalmente esquecidas

Tomemos o caso do contrato de trabalho Trata-se de reconhecer que

o trabalho prestado pela pessoa toca o tempo trata-se sobretudo de

reconhecer que o trabalho prestado pela pessoa natildeo toca o tempo como uma

categoria externa ao sujeito (o ser no tempo enquanto tal natildeo pertence ao

empregador) e sim como uma categoria interna O tempo apresenta-se como

uma componente constitutiva do proacuteprio ser humano como pessoa O trabalho

representa um dos principais fenoacutemenos das relaccedilotildees sociais por permitir ao

trabalhador responder ainda que com toda a provisoriedade imposta pela

condiccedilatildeo humana a uma pergunta fundamental para a definiccedilatildeo da identidade

de cada ser humano (de cada pessoa) mdash ldquopor que viverdquo Em tal sentido

poderia porventura falar-se do tempo da vida do trabalhador

Em toda a era taylor-fordista afirmou-se que o trabalho representa uma

etapa da existecircncia em que o trabalhador ldquogastardquo o seu tempo-de-vida (life

time) Tal etapa natildeo faria parte do tempo entendido como kairos mdash ficaria

adscrita ao fazendo parte do tempo entendido como chroacutenos

Ao representar o tempo do trabalho como tempo ldquogastordquo como

chroacutenos o taylor-fordismo faz sobressair aquele que podemos qualificar como

o aspecto mais negativo do envolvimento do trabalhador no cumprimento da

197 H Sinzheimer Das Problem des Menschen im Recht Groningen 1933 republicado em H

Sinzheimer Arbeitsrecht und Rechtssoziologie 2ordf ed Europaumlische Verlagsanstalt Frankfurt-

am-Main 1976 paacutegs 53 ss

77

prestaccedilatildeo laboral O problema estaacute em que do ponto de vista dos princiacutepios e

dos valores o trabalhador natildeo pode ceder-se a si proacuteprio ao empregador e por

isso natildeo pode ceder-lhe o tempo da sua vida Natildeo pode por isso representar-

se o tempo do trabalho como tempo ldquogastordquo cedido ao empregador

A distorccedilatildeo oacuteptica engendrada pelo taylor-fordismo torna-se evidente

desde que consideremos o facto de que o envolvimento do trabalhador

dependente pode atingir em termos em tudo semelhantes os trabalhadores

independente Como soacute pode (sobre)viver atraveacutes do seu trabalho o

trabalhador eacute forccedilado a ldquogastarrdquo o seu tempo preparando ou realizando a sua

prestaccedilatildeo Natildeo eacute por acaso que tem cada vez mais adeptos a posiccedilatildeo segundo

a qual na presenccedila de prestaccedilotildees essencialmente pessoais natildeo deve ser sempre

necessaacuteria a subordinaccedilatildeo Para justificar a aplicaccedilatildeo de partes significativas

do direito do trabalho mdash designadamente daquelas por que se pretende

proteger a esfera existencial do trabalhador mdash deveria ser suficiente que a

prestaccedilatildeo tivesse como destinataacuterio uma empresa uma organizaccedilatildeo

produtiva e que lhe proporcionasse uma particular utilitas Natildeo deveria ser

necessaacuterio que o trabalhador estivesse integrado na empresa mdash seria suficiente

que a prestaccedilatildeo tivesse como destinataacuterio a empresa e que tendo como

destinataacuterio a empresa lhe proporcionasse a particular utilitas resultante da

ligaccedilatildeo entre a prestaccedilatildeo e uma orgnanizaccedilatildeo produtiva

Perguntar-se-aacute poreacutem se o direito com os seus conceitos e as suas

estruturas pode dar ao tempo a importacircncia que deve dar-lhe representando-

o como deve representaacute-lo como algo de ontologicamente ligado ao

indiviacuteduo Ora a concepccedilatildeo do tempo aqui invocada mdash a que poderiacuteamos

chamar intermeacutedia por estar situada entre dois indicadores de medida mdash soacute

pode assumir-se como uma concepccedilatildeo significativa desde que seja adequada

aos conceitos aos princiacutepios e as regras aplicaacuteveis agraves relaccedilotildees sociais

disciplinadas pelo direito O aspecto qualitativo do tempo como expressatildeo

directa ou imediata daquilo que faz de cada pessoa uacutenica deve ser sempre

ldquomediatizadordquo pelo direito e por conseguinte pelos conceitos (juriacutedicos)

atraveacutes dos quais se seleccionam aspectos recorrentes (tiacutepicos) como p ex

a doenccedila a pobreza o desemprego as necessidades familiares ou as

necessidades sociais abstraindo da individualidade dos sujeitos implicados na

relaccedilatildeo inter-individual O jurista corre sempre o risco de incorrer numa

abstracccedilatildeo excessiva distanciando-se da realidade O pensamento juriacutedico

tem-se esforccedilado desde haacute muito tempo para desenvolver instrumentos como

o tipo (Typus) capazes incluir na proacutepria reflexatildeo teoreacutetica (designadamente

na proacutepria reflexatildeo sobre os meacutetodos) o substrato vital a que devem aderir os

conceitos do sistema juriacutedico Eacute um movimento desenvolvido pelos juristas

de alguma forma ligado a um movimento porventura mais amplo de

revalorizaccedilatildeo da filosofia praacutetica Em todo o caso na prossecuccedilatildeo de tal fim

com o qual concordamos plenamente o jurista deve ter toda a atenccedilatildeo para

78

natildeo abdicar daquilo que lhe eacute proacuteprio e para natildeo confiar aos outros mdash aos

filoacutesofos aos economistas ou aos socioacutelogos mdash a selecccedilatildeo dos interess

relevantes para a decisatildeo de cada caso concreto

O jurista que pretenda prevenir-se contra a sensaccedilatildeo de que o terreno

sobre o qual se move foge sob os seus peacutes natildeo pode nem por um momento

renunciar aos conceitos ou prescindir dos conceitos Simplesmente prescindir

dos conceitos natildeo se confunde nem deve confundir-se com renunciar agrave

pretensatildeo de estar tatildeo proacuteximo quanto possiacutevel da realidade O jurista e em

especial o jusprivatista pode referir-se simultaneamente aos conceitos e agrave

realidade Pode fazecirc-lo desde que evite colocar entre parecircntesis

reconhecendo-o aquilo que representa o proacuteprio fundamento da sua actividade

de jurista mdash as relaccedilotildees entre as pessoas Em tais relaccedilotildees cada indiviacuteduo tem

uma propensatildeo instintiva ou quase-instintiva para afirmar a sua

subjectividade para actuar a sua vontade de poder O jusprivatista soacute pode

referir-se agrave realidade desde que reconheccedila que a actuaccedilatildeo da vontade de poder

do indiviacuteduo estaacute sujeita a condiccedilotildees e deve estar sujeita a limites

O juslaborista deve ir ainda mais longe O direito do trabalho soacute se

constituiu por ter dado ao direito privado uma dimensatildeo axioloacutegica Em que

consiste tal dimensatildeo perguntar-se-aacute Em enunciar as regras de julgamento

por que haacute-de atribuir-se e distribuir-se os custos do agir humano de forma a

considerar as situaccedilotildees mais relevantes de limitaccedilatildeo da liberdade de cada um

por causa da sua participaccedilatildeo na vida econoacutemica e na vida social Os princiacutepios

e as regras por que haacute-de concretizar-se a regra de julgamento devem ter em

conta por um lado a loacutegica comutativa de uma relaccedilatildeo contratual e por outro

lado os limites que dentro da loacutegica comutativa o princiacutepio da exigibilidade

potildee agrave desequilibrada distribuiccedilatildeo de custos Em todo o caso ainda que dentro

dos limites da exigibilidade e da loacutegica comutativa do contrato a dimensatildeo

axioloacutegica eacute algo de essencial sem o qual o direito do trabalho natildeo pode

explicar-se e natildeo pode justificar-se

Entre os exemplos que poderiam evocar-se para concretizar o

argumento deduzido haacute um caso de particular actualidade mdash o caso da

utilizaccedilatildeo das tecnologias digitais O indiviacuteduo sofre cada vez mais a pressatildeo

da sua presenccedila Em termos tais que se tornam incompreensiacuteveis os atrasos do

pensamento juslaboral em relaccedilatildeo a um tema cada vez mais fundamental nas

relaccedilotildees de trabalho mdash o dever do empregador de proporcionar ao trabalhador

uma adequada formaccedilatildeo Quando um dos sujeitos da relaccedilatildeo sofre a pressatildeo

da realidade circundante instaurando-se o ldquodomiacutenio das coisas sobre os

79

homensrdquo198 o direito deve recordar ao outro sujeito que ser livre ldquonatildeo significa

ser livre do dever mas sim atraveacutes do dever e da responsabilidaderdquo199

Respondida agrave pergunta pelo se mdash se pode o direito dar ao tempo a

importacircncia que deve dar-lhe mdash falta poreacutem responder agrave pergunta pelo como

Como poderaacute dar-se a devida importacircncia agrave dimensatildeo qualitativa do tempo

atendendo ao ldquotempo da vidardquo ou ao ldquotempo vividordquo por cada um200

Reconhecemos que o direito natildeo pode atribuir relevacircncia pelo menos

relevacircncia directa ou imediata ao tempo da vida de cada trabalhador

O pensamento juriacutedico soacute pode operar com conceitos e os conceitos soacute

podem operar colocando o tempo da vida na sua ordem cronoloacutegica e

transformando os factos concretos de que depende a vida de cada trabalhador

em descriccedilotildees gerais e abstractas mdash em conceitos mdash construiacutedos sem fazer

qualquer referecircncia aos traccedilos individuais Transformar os factos em conceitos

e sobretudo transformar os factos concretos em conceitos abstractos e gerais

eacute algo que soacute pode fazer-se por referecircncia a acontecimentos recorrentes e a

acontecimentos recorrentes na vida de uma pluralidade de pessoas (como a

doenccedila a maternidade ou a paternidade)

Reconhecemos por isso que o direito soacute pode atribuir relevacircncia aos

factos recorrentes porque soacute os factos recorrentes satildeo tipicizaacuteveis

c) Essencialidade para a satisfaccedilatildeo das necessidades humanas Os

comentadores sublinharam sem excepccedilatildeo que um dos pontos fortes do livro

eacute a ligaccedilatildeo estabelecida entre os contratos de trabalho e os contratos de creacutedito

mdash entre ldquotemas que soacute raramente satildeo tratados em conjunto pelos juristasrdquo

Hugh Collins sugere que fundamento de tal ligaccedilatildeo estaacute na ideia de que ambos

os contratos datildeo agrave pessoa a capacidade de gastar Os primeiros os contratos

de trabalho atraveacutes da retribuiccedilatildeo do trabalhador e os segundos atraveacutes do

creacutedito David Hiez concorda com a constataccedilatildeo de Hugh Collins que natildeo eacute

habitual considerar em conjunto os contratos de trabalho os contratos de

arrendamento e os contratos de creacutedito ao consumo ldquosobretudo por se tratar

de contratos mais ou menos autoacutenomos ente si no sistema do direito privadordquo

Sem procurar propriamente sugerir uma qualquer explicaccedilatildeo ou justificaccedilatildeo

para o fenoacutemeno Hiez qualifica a opccedilatildeo por um tratamento unitaacuterio dos trecircs

tipos de contrato como particularmente fecunda para o desenvolvimento das

ideias (particolarmente euristica) O tratamento unitaacuterio do creacutedito do

arrendamento e do trabalho coloca em evidecircncia contiguidades que passam

198 Max Weber Der Sozialismus Athenaumlum Weinheim 1995 paacutegs 76 ss 199 Karl Polanyi Una societagrave umana unrsquoumanitagrave sociale Scritti 1918-1963 Jaca Book

Milano 1963 paacuteg136 200 E Borgna Il tempo e la vita Feltrinelli Milano 2015 paacuteg 59

80

ou podem passar despercebidas a um jusprivatista pelo facto de as suas

classificaccedilotildees dos contratos se sustentarem mais em consideraccedilotildees teacutecnicas

que em consideraccedilotildees sociais

ldquoOs autores do livro demonstram de uma forma convincenterdquo

conclui Hiez ldquoque na actual sociedade de consumo o rendimento

constante natildeo eacute suficiente que eacute necessaacuterio de quando em quando

mobilizar quantias elevadas para fazer frente a circunstacircncias

excepcionais e que tais quantidas elevadas soacute podem ser obtidas

atraveacutes do creacutedito O creacutedito ao consumo acaba por desempenhar

uma funccedilatildeo anaacuteloga ao contrato de trabalhordquo

Javier Ariacuteas Varona preocupa-se sobretudo com a relaccedilatildeo entre creacutedito

e insolvecircncia fazendo sobressair a ligaccedilatildeo estabelecida entre o direito puacuteblico

e o direito privado mdash entre o direito da insolvecircncia na medida em que seja

direito puacuteblico e o direito do creacutedito [ao consumo] na medida em que seja

direito privado ldquoA ligaccedilatildeo entre o conceito de contratos duradouros essenciais

agrave existecircncia da pessoa os contratos de creacutedito e as instituiccedilotildees da insolvecircncia

natildeo eacute uma ligaccedilatildeo evidente mdash em todo o caso os autores do livro tornaram-

na transparente Os capiacutetulos sobre o creacutedito e a insolvecircncia abrem

perspectivas para o futuro ao ligarem o desenvolvimento geral do direito [dos

contratos] aos elementos estruturais do direito da insolvecircnciardquo O contrato

permite ou pode permitir uma resoluccedilatildeo dos problemas colocando os

processos de insolvecircncia (ex post) no contexto das relaccedilotildees contratuais (ex

ante) O problema estaria tatildeo-soacute na resistecircncia da legislaccedilatildeo e da

jurisprudecircncia mdash o actual direito do creacutedito ao consumo natildeo estaria como

deveria estar aberto agrave aplicaccedilatildeo da clausula rebus sic stantibus agraves condiccedilotildees

especiais da pessoa

Em todo o caso Ariacuteas Varona qualifica a perspectiva aberta pelo livro

como profundamente original permitindo-nos apreender o fenoacutemeno da

insolvecircncia [das pessoas singulares] de uma forma diferente da habitual

Explicitando a razatildeo de ser da relaccedilatildeo entre os trecircs tipos de contratos

diremos que na sociedade contemporecircna a relaccedilatildeo de trabalho deixou de ser

a relaccedilatildeo de que depende em exclusivo a vida livre e digna de cada pessoa

Se natildeo queremos qua tal dignidade e tal liberdade se transformem numa pura

e simples utopia devemos reconhecer a importacircncia dos actos de consumo por

que se ldquogastardquo o tempo presente ou futuro da vida das pessoas

Como fizemos no passado com as actividades produtivas (como o

trabalho) devemos no presente dar importatildencia ao consumo e ao tempo

O nosso trabalho poderaacute parecer incompleto mdash grandes aacutereas do

direito como os serviccedilos financeiros como as pensotildees por doenccedila ou por

velhice como os seguros ou como os sistemas de pagamentos parecem ter

81

sido arbitrarimente excluiacutedas do conceito de Life time contracts O problema

potildee-se analogamente para os serviccedilos puacuteblicos essenciais O contributo de

Frey Nybergh sublinha-o ao tratar de alguns aspectos do seu regime

Em resposta agrave acusaccedilatildeo de incompletude deveraacute esclarecer-se que os

trecircs tipos de contratos seleccionados satildeo soacute exemplos Os contratos de

trabalho de arrendamento e de creacutedito ao consumo satildeo soacute trecircs casos ainda que

paradigmaacuteticos de contratos que podem e devem coordenar-se ao conceito de

contratos duradouros essenciais agrave existacircncia da pessoa Natildeo satildeo se forma

nenhuma mdash e nunca pretenderam ser mdash uma enumeraccedilatildeo exaustiva O

conceito de Life time contracts eacute na verdade mais amplo que os conceitos

delimitadores dos trecircs sectores especiacuteficos do direito dos contratos

No direito do trabalho propusemos a extensatildeo da ideia a todos os

contratos em que a actividade intelectual ou manual de uma pessoa (scl o

trabalho) eacute aplicada para a obtenccedilatildeo de um rendimento (em regra para a

obtenccedilatildeo de um rendimento necessaacuterio agrave vida) no direito dos serviccedilos

financeiros propusemos a inclusatildeo de todos os contratos relacionados com o

uso do dinheiro para o consumo pessoal ou para o trabalho nos contratos de

locaccedilatildeo propusemos a inclusatildeo da locaccedilatildeo financeira de bens de consumo

(consumer leasing) Os contratos de locaccedilatildeo claacutessicos como p ex o contrato

de arrendamento [para habitaccedilatildeo] constituem um caso paradigmaacutetico de

contratos duradouros essenciais aacute existecircncia da pessoa os contratos de locaccedilatildeo

novos como p ex o contrato de locaccedilatildeo financeira de bens de consumo

constituem um caso talvez menos paradigmaacutetico todavia natildeo menos

significativo Em todo o caso os contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilo necessaacuterios

para o consumo foram completamente omitidos O problema poderaacute ser

resolvido criando uma quarta aacuterea ou um quarto sector mdash os contratos de

prestaccedilatildeo de serviccedilo orientados para a satisfaccedilatildeo das necessidades essenciais

(como sejam os contratos de fornecimento de bens essenciais como sejam a

aacutegua ou a electricidade ou as comunicaccedilotildees)

Feito o alargamento da categoria dos contratos duradouros essenciais

agrave existecircncia da pessoa poderiacuteamos porventura abandonar a linguagem juriacutedica

e abandonando-a definir a aacuterea dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa de forma a abranger o acesso a e o uso de diferentes

formas de capital de diferentes coisas e de diferentes serviccedilos de diferentes

formas de capital (do acesso ao acesso ao capital atraveacutes da do trabalho da

produccedilatildeo e do creacutedito [dos serviccedilos financeiros]) de diferentes coisas (atraveacutes

dos ldquoantigosrdquo contratos de arrendamento [para habitaccedilatildeo] e dos novos

contratos de locaccedilatildeo financeira de bens de consumo) e de diferentes serviccedilos

(como a aacutegua a electricidade o telefone e as telecomunicaccedilotildees de massa) Os

contratos de trabalho de arrendamento e de creacutedito satildeo soacute os exemplos mais

82

claros e mais distintos de tais contratos simultaneamente duradouros (da-e-

para a vida) e essenciais para a satisfaccedilatildeo das necessidades humanas

O facto de termos incluiacutedo na definiccedilatildeo de Life time contracts uma

referecircncia agrave sua essencialidade para a satisfaccedilatildeo das necessidades humanas

fundamentais (basic needs) carece de alguma explicaccedilatildeo

Deve esclarecer-se em primeiro lugar que a referecircncia agraves

necessidades humanas fundamentais natildeo eacute o criteacuterio da classificaccedilatildeo

Os contratos natildeo se subsumem ao conceito de Life time contracts por

serem contratos essenciais agrave satisfaccedilatildeo das necessidades humanas

fundamentais (basic needs) soacute se lhe subsumem se forem contratos

duradouros e se por serem contratos duradouros tocarem o tempo da-e-para-

a-vida (por tocarem o life time) Em diferentes termos A referecircncia agraves

necessidades humanas fundamentais eacute menos a causa que o efeito de uma

adaptaccedilatildeo das formas contratuais ao tempo da-e-para-a-vida

Deve esclarecer-se em segundo lugar que a referecircncia agraves necessidades

humanas fundamentais natildeo eacute soacute por si suficiente

David Hiez alega com alguma razatildeo que ldquoo criteacuterio baseado na

conexatildeo entre o contrato e a realizaccedilatildeo pessoal do contrato eacute um criteacuterio

susceptiacutevel de uma extensatildeo difiacutecil quase impossiacutevel de delimitarrdquo

O problema pode e deve resolver-se atraveacutes de uma tipificaccedilatildeo dos

interesses relevantes para que um contrato deva incluir-se na categoria dos

Life time contracts Os termos ldquorelaccedilotildees sociais que tecircm por objecto

proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos

necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialrdquo

exigem uma densificaccedilatildeo e uma especificaccedilatildeo jurisprudenciais Entre os

criteacuterios relevantes para tal densificaccedilatildeo para tal especificaccedilatildeo encontra-se o

criteacuterio da conformidade com o sistema de direitos fundamentais O aplicador

do direito deve concretizar os termos da definiccedilatildeo aderindo estritamente aos

direitos fundamentais reconhecidos pelas tradiccedilotildees constitucionais

Em abono da afirmaccedilatildeo de que o problema soacute pode resolver-se atraveacutes

de uma tipificaccedilatildeo dos interesses relevantes podem deduzir-se dois

argumentos O primeiro relaciona-se com o princiacutepio geral da certeza e da

seguranccedila juriacutedicas e o segundo com a regra especiacutefica [do direito alematildeo da

responsabilidade civil] de acordo com a qual os danos natildeo patrimoniais soacute satildeo

indemnizaacuteveis nos casos previstos na lei (sect 253 do Coacutedigo Civil alematildeo)

Na Introduccedilatildeo ao nossso livro chamaacutemos ao caso a jurisprudecircncia do

Supremo Tribunal Federal alematildeo (do Bundesgerichtshof) para darmos um

exemplo de uma densificaccedilatildeo e especificaccedilatildeo jurisprudecircncias dos interesses

relevantes O Supremo Tribunal Federal alematildeo reconhece um direito agrave

83

indemnizaccedilatildeo dos danos natildeo patrimoniais incluindo os danos contratuais pela

privaccedilatildeo ou perturbaccedilatildeo do uso (Nutzungsentschaumldigung) dos bens e serviccedilos

que satildeo essenciais para um estilo de vida econoacutemica e financeiramente

autoacutenomo (eigenwirtschaftliche Lebenshaltung)

O criteacuterio do estilo de vida econoacutemica e financeiramente autoacutenomo

deve em todo o caso alargar-se em termos de incluir todos os casos em que a

interrupccedilatildeo do acesso a certos bens e a certos serviccedilos tem um impacto

significativo sobre os fundamentos materiais da vida de uma pessoa

Entre os casos em que o Supremo Tribunal Federal reconhece um

direito agrave indemnizaccedilatildeo encontram-se p ex os danos causados pela

interrupccedilatildeo do acesso aacute Internet necessaacuterio para a utilizaccedilatildeo do e-mail201 Os

casos de responsabilidade pela privaccedilatildeo ou pela perturbaccedilatildeo do uso devem de

qualquer forma expandir-se de forma a incluir o uso de um aparelho de

televisatildeo ou de um computador incluindo de um computador portaacutetil ou de

uma bicicleta ou de um equipamento de cozinha ou de uma casa de feacuterias

Entre os casos em que o Supremo Tribunal Federal natildeo reconhece ou

natildeo deve reconhecer nenhum direito agrave indemnizaccedilatildeo estatildeo p ex os danos

causados pela privaccedilatildeo ou pela perturbaccedilatildeo do uso de uma piscina privada202

de uma autocaravana203 de um casaco de peles204 ou de um barco a motor205

III POR QUEcirc UM DIREITO DO CONTRATO (SOCIAL) [OU UM DIREITO

(SOCIAL) DO CONTRATO]

Os Life time contracts natildeo estatildeo sujeitos a um regime autoacutenomo nos

direitos nacionais nem no direito europeu nem muito menos no direito

comunitaacuterio Os tipos especiacuteficos de contrato como o contrato de

arrendamento ou o contrato de trabalho tecircm sido regulados pelos direitos

nacionais O tipo geral dos Life time contracts natildeo [O caso do tipo geral

contratos de longa duraccedilatildeo eacute de alguma forma um caso semelhante]

Os juristas da Europa (continental) tecircm-se esforccedilado por enunciar uma

espeacutecie de ldquoparte geral do direito dos contratos e das obrigaccedilotildees para a

[protecccedilatildeo da] parte mais fracardquo (allgemeiner Teil des Rechts des schwaumlcheren

201 BGHZ de 24 de janeiro de 2013 ndash III ZR 9812 in httpjurisbundesgerichtshofdecgi-

binrechtsprechungdocumentpyGericht=bghampArt=enampnr=63259amppos=0ampanz=1 202 BGHZ de 28 de fevereiro de 1980 mdash VII ZR 13173 203 BGHZ de 15 de dezembro de 1982 mdash VIII ZR 31580 204 BGHZ de 12 de fevereiro de 1975 mdash VIII ZR 1173 205 BGHZ de 15 de novembro de 1983

84

Partners)206 O problema estaacute em que a construccedilatildeo de um tipo geral a partir da

fragilidade ou da vulnerabilidade das partes suscita duas dificuldades [Em

primeiro lugar] o criteacuterio da fragilidade ou da vulnerabilidade tende a

favorecer simplesmente uma igualdade formal O direito da parte mais fraca

tende a concretizar-se em princiacutepios e em regras por que se pretende

compensar a assimetria designadamente a assimetria informacional entre as

partes de um contrato Em termos praacuteticos uma compensccedilatildeo da assimetria

designadamente da assimetria informacional corresponderia tatildeo-soacute a uma

generalizaccedilatildeo do actual estado de coisas mdash do actual conjunto dos princiacutepios

e das regras do direito comunitaacuterio relativos agrave protecccedilatildeo dos consumidores

[Em segundo lugar] o criteacuterio da fagilidade ou da vulnerabilidade natildeo parece

ser um criteacuterio particularmente selectivo (natildeo parece ter uma particular

capacidade de selecccedilatildeo) Como afirma Andrea Nicolussi na sua contribuiccedilatildeo

para o livro ldquonos contratos haacute sempre ou quase sempre uma parte que eacute mais

fraca que a outrardquo mdash O direito da parte mais fraca tende a ser um direito de

todos os contratos

Se o contributo da teoria juriacutedica europeia (continental) falha por

convocar um criteacuterio que natildeo eacute adequado o contributo da teoria econoacutemica

norte-americana e em especial da teoria dos contratos relacionais esse falha

por negar as necessidades existenciais das pessoas envolvidas

Os economistas dos Estados Unidos esses tecircm-se esforccedilado por

distinguir os contratos transaccionais e os contratos relacionais enunciando os

princiacutepios e as regras gerais de uma teoria dos relational contracts

Ora a teoria dos contratos relacionais tem um aspecto positivo

reconhece uma parte do problema mdash em todos os contratos de longa duraccedilatildeo

o direito deve atender agrave relaccedilatildeo deve atender ao contacto altamente interactivo

entre as partes mdash natildeo obstante o seu aspecto positivo a teoria dos contratos

relacionais tem um aspecto negativo natildeo reconhece como deveria

reconhecer a outra parte do problema Em alguns contratos de longa duraccedilatildeo

como sejam os contratos de arrendamento de creacutedito ou de trabalho o direito

206 F Gamillscheg ldquoZivilrechtliche Denkformen und die Entwicklung des

Individualarbeitsrechts Zum Verhaumlltnis von Arbeitsrecht und BGBrdquo in Archiv fuumlr die

civilistische Praxis 1976 paacutegs 197 ss (= Idem Ausgewaumlhlte Schriften zu Arbeitsrecht und

Rechtsvergleichung Nomos Baden-Baden 2006 paacutegs 124 ss) P Derleder

ldquoUnterlegenenschutz im Vertragsrecht Ein Modell fuumlr das Arbeitsrechtrdquo in Kristische

Justiz 1995 paacutegs 320 ss G Houmlhn Kompensation gestoumlrter Vertragsparitaumlt Beck Muumlnchen

1982) E Roppo ldquoParte generale del contratto contratti del consumatore e contratti

asimmetricirdquo in Rivista di diritto privato 2007 paacutegs 669 ss G Gitti G Villa (coord) Il

terzo contratto Il Mulino Bologna 2008

85

dos contratos deve atender agraves necessidades existenciais de uma das partes mdash

como sejam p ex o arrendataacuterio o devedor ou o trabalhador

Foram as insuficiecircncias da teoria juriacutedica e da teoria econoacutemica do

contrato que nos fizeram desenvolver um conjunto de princiacutepios e de regras

gerais capazes de reger os Life time contracts Natildeo podemos considerar tatildeo-

soacute a fase da formaccedilatildeo do contrato temos de considerar sobretudo as relaccedilotildees

constituiacutedas na fase da execuccedilatildeo do contrato Em especial natildeo podemos por

considerarmos tatildeo-soacute a fase da formaccedilatildeo do contrato privilegiar a vontade

das partes Os Life time contracts requerem sempre princiacutepios e regras

inderrogaacuteveis O ponto deve enfatizar-se em resposta agravequeles que como Hugh

Collins consideram que a posiccedilatildeo tomada pelos autores do livro natildeo eacute uma

posiccedilatildeo particularmente clara

David Hiez conclui que o Life time contract natildeo eacute (ainda natildeo eacute) um

tipo de contrato ldquoTrata-se de uma categoria abstracta trata-se ainda de uma

categoria intelectual mas natildeo se trata de uma categoria juriacutedica O seu

propoacutesito natildeo eacute o de produzir consequecircncias juriacutedicas imediatas Eacute sim o de

fazer reflectir sobre a orientaccedilatildeo do direito europeu dos contratos [O trabalho

desenvolvido eacute] por isso um trabalho de caraacutecter estritamente doutrinalrdquo

No presente momento histoacuterico a conclusatildeo ainda eacute plenamente

exacta Em todo o caso como eacute mais ou menos manifesto temos a esperanccedila

de que os nossos princiacutepios sejam recebidos por um direito geral dos contratos

e mais mdash temos a esperanccedila de que o sejam num futuro proacuteximo A

globalizaccedilatildeo mundial estaacute a produzir uma cada vez mais marcada integraccedilatildeo

indirecta produzida pelos mercados Eacute tempo de reflectirmos sobre a

oportunidade uma integraccedilatildeo directa produzida pelo direito

O nosso livro privilegia o direito dos contratos Entre a nossa

perspectiva e as perspectivas preconizadas em trabalhos precedentes sobre os

contratos de longa duraccedilatildeo haacute uma diferenccedila fundamental noacutes concentraacutemo-

nos sobre o direito dos contratos e natildeo como Grossi na combinaccedilatildeo do direito

dos contratos com o direito das coisas207 ou como Gierke na combinaccedilatildeo do

direito dos contratos com o direito das pessoas208

O direito do trabalho eacute a prova de que a forma contrato eacute ainda uma

forma conveniente e de que eacute porventura uma forma necessaacuteria

207 P Grossi Locatio ad longum tempus ndash Locazione e rapporti reali di godimento nella

problematica di diritto comune Morano Napoli 1963 paacuteg 26 208 O von Gierke Dauernde Schuldverhaumlltnisse in Jherings Jahrbuumlcher fuumlr die Dogmatik des

buumlrgerlichen Rechts vol 64 (1914) paacutegs 24 ss

86

Em primeiro lugar o paradigma do direito dos contratos permite ligar

a liberdade e a igualdade (formais) entre as partes

A aplicaccedilatildeo da forma contrato agraves relaccedilotildees de trabalho representa para

o trabalhador uma primeira garantia de que eacute ldquoportador de valores ligados agrave

liberdade do ser humanordquo (porteur de valeurs lieacutees agrave la liberteacute de lrsquohomme)209

Eacute evidente que se trata apenas e soacute de uma garantia negativa em todo

o caso mesmo que se trate apenas e soacute de uma garantia negativa e mesmo que

tal seja evidente eacute sempre uma garantia Sem uma contratualizaccedilatildeo poderia

dar-se o caso de a relaccedilatildeo de trabalho se constituir ab initio como uma relaccedilatildeo

juridicamente desequilibrada com uma contratualizaccedilatildeo tal caso natildeo pode

dar-se O contrato eacute uma garantiia que a relaccedilatildeo natildeo se constitua pelo menos

juridicamente como uma relaccedilatildeo desequilibrada

Em segundo lugar independentemente do significado positivo a forma

contrato tem um significado negativo O paradigma do direito ds coisas natildeo

permite representar a realidade de uma forma adequada e sobretudo natildeo

permite resolver os problemas postos pela realidade de uma forma justa

Natildeo permite por um lado representar a realidade de uma forma

adequada Natildeo pode pensar-se com realismo que o trabalhador seja titular de

uma posiccedilatildeo de proprietaacuterio ou sequer de uma posiccedilatildeo anaacuteloga aacute de

proprietaacuterio (natildeo pode p ex pensar-se que o trabalhador seja ldquoproprietaacuteriordquo

de um lugar de trabalho)

Natildeo permite por outro lado resolver os problemas postos pela

realidade de uma forma justa O paradigma do direito dos contratos reconhece

que a composiccedilatildeo das relaccedilotildees entre as partes deve orientar-se por princiacutepios

de justiccedila relacional O paradigma do direito das coisas natildeo o reconhece Ora

na parte da realidade seleccionada pelos princiacutepios e pelas regras do direito

dos contratos estatildeo sempre em causa dois e quase sempre (muito) mais de

dois direitos fundamentais210 Os princiacutepios e as regras de direitos

fundamentais devem ser compreendidos como ldquoprinciacutepiosrdquo e como

ldquoprinciacutepiosrdquo devem condicionar quer a conformaccedilatildeo dos actos legislativos

quer a conformaccedilatildeo dos actos jurisdicionais Os direitos fundamentais devem

aplicar-se (indirecta ou mediatamente) agraves relaccedilotildees juriacutedico-privadas atraveacutes

p ex da interpretaccedilatildeo das disposiccedilotildees legais211 Compreendendo-se os

209 G Lyon-Caen Deacutefense et illustration du contract de travail in Archives de Philosophie

du Droit vol 13 (1968) paacuteg 69 210 Redescobre-se assim a concepccedilatildeo aristoteacutelica de justiccedila mdash vide Aristoacuteteles Eacutetica a

Nicoacutemaco 211 Cf CW Canaris ldquoGrundrechte und Privatrechtrdquo in Archiv fuumlr die civilistische Praxis

vol 184 (1984) paacutegs 201 ss concordando com a jurisprudecircncia constitucional da Repuacuteblica

87

direitos fundamentais como ldquoprinciacutepiosrdquo a aplicaccedilatildeo dos direitos

fundamentais agraves relaccedilotildees juriacutedico-privadas deve sempre realizar-se sob o signo

do balanceamento da nobre arte do compromisso ou da ponderaccedilatildeo da

proportio mdash sob o signo das exigecircncias relacionais

O conceito de exigecircncias relacionais conteacutem em si ldquoelementos de

orientaccedilatildeordquo e ldquoelementos de respostardquo agraves questotildees sobre os valores212

reconhecendo-se como deve reconhecer-se que ldquoas questotildees sobre os valores

[hellip] podem reduzir-se a questotildees sobre as consequecircncias das respectivas

escolhas transferindo a discussatildeo para uma ordem de argumentaccedilotildees e de

valoraccedilotildees das quais eacute mais faacutecil controlar a racionalidaderdquo213

Hugh Collins opotildee um uacuteltimo obstaacuteculo agrave aplicaccedilatildeo do paradigma do

direito dos contratos agraves ldquorelaccedilotildees sociais que tecircm por objecto proporcionar ao

indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos necessaacuterios para a

sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialrdquo

Estando em causa contratos essenciais agrave auto-realizaccedilatildeo pessoal

deveria reconhecer-se a cada ser humano um direito fundamental de acesso agraves

oportunidades proporcionadas pelo mercado Collins critica poreacutem a

convicccedilatildeo de que as normas que disciplinam o acesso aos mercados possam

ser conformadas como propotildeem os Principles on Life Time Contracts mdash as

normas que disciplinam o acesso aos mercados natildeo seriam suficientemente

fortes para proporcionar a cada um um tal acesso a tais mercados

O raciociacutenio de Hugh Collins natildeo deve sufragar-se por desvalorizar

injustificadamente a relaccedilatildeo entre direito privado e os sistemas de valores

colectivos O direito privado tem necessidade de ser completado de ser

integrado pelas poliacuteticas puacuteblicas para que o acesso aos bens aos serviccedilos ao

trabalho e aos rendimentos necessaacuterios para a auto-realizaccedilatildeo e para a

participaccedilatildeo na vida social seja como deve ser universal

Federal da Alemanha mdash M Ruffert ldquoDie Rechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts

zum Privatrechtrdquo in Juristen Zeitung 20088 paacutegs 389-390 212 G Vettori ldquoIl tempo dei dirittirdquo in Rivista trimestrale di diritto e procedura civile 2014

paacuteg 91 213 L Mengoni Diritto e valori Il Mulino Bologna 1985 paacuteg 46 nota nordm 100

88

89

Uma introduccedilatildeo aos contratos existenciais

Nuno Manuel Pinto Oliveira

laquoWer den Rechtstaat will muszlig den Sozialstaat befuumlrworten wer

liberale Grundrechte einfordert muszlig soziale Rechte anerkennen und

wer die Privtrechtsgesellschaft postuliert muszlig deren soziale

Verantwortung respektierenraquo214

I INTRODUCcedilAtildeO O DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS COMO

DIREITO SOCIAL

Em LrsquoEacutetat Providence Franccedilois Ewald distingue dois tipos de direito

privado O direito privado ldquoclaacutessicordquo poderia chamar-se direito civil O direito

privado moderno poderia chamar-se p ex direito social215

Entre o direito civil e o direito social encontrar-se-ia duas diferenccedilas

fundamentais216 O direito civil dirigir-se-ia ao indiviacuteduo o direito social

dirigir-se-iacutea agrave ldquoclasserdquo ou ao ldquogrupordquo dirigindo-se ao indiviacuteduo o direito civil

seria um direito da igualdade dirigindo-se agrave ldquoclasserdquo ou ao ldquogrupordquo o direito

social seria um direito de desigualdades217 Ewald fala impressivamente de

um ldquodireito discriminatoacuteriordquo e de um um ldquodireito de preferecircnciasrdquo218

O actual direito europeu dos contratos inscreve-se (aparentemente) no

direito social em primeiro lugar como direito dos consumidores dirige-se a

uma ldquoclasserdquo ou a um ldquogrupordquo e em segundo lugar como direito de protecccedilatildeo

dos consumidores dirige-se agrave ldquoclasserdquo ou ao ldquogrupordquo dos consumidores para

os preferir O problema estaacute em que o projecto de um direito europeu dos

Professor da Escola de Direito da Universidade do Minho 214 Joumlrg Neuner Privatrecht und Sozialstaat C H Beck Muumlnchen 1998 paacuteg 291 215 Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence Editions Grasset Paris 1986 mdash esp Capiacutetulo II mdash

Droit social (consultado em formato electroacutenico epub) paacutegs 554 ss 216 Franccedilois Ewald fala de trecircs diferenccedilas As duas primeiras afiguram-se essenciais a terceira

natildeo Ewald alega que o fundamento do direito civil eacute um fundamento filosoacutefico e que o

fundamento do direito social eacute um fundamento socioloacutegico mdash a alegaccedilatildeo eacute pelo menos

contestaacutevel 217 Cf Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacuteg 577 (ldquodroit des ineacutegaliteacutesrdquo) 218 Cf Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacuteg 579

90

contratos com os consumidores como direito de desigualdades

discriminaccedilotildees ou preferecircncias eacute hoje um projecto em crise

O conceito de um direito social seria um conceito perigoso por causa

da sua imprecisatildeo219 mdash e o projecto de uma justiccedila social atraveacutes p ex de

um direito de protecccedilatildeo do consumidor seria um projecto perigoso

Heinrich Honsell critica o princiacutepio de uma protecccedilatildeo do consumidor

por contribuir para a diminuiccedilatildeo da qualidade da legislaccedilatildeo de direito privado

O conceito de consumidor seria em si controverso ao aceitar-se que

todos os membros de uma ldquoclasserdquo ou de um ldquogrupordquo carecem de protecccedilatildeo

estaacute a rejeitar-se estaacute a renunciar-se a uma diferenciaccedilatildeo entre os membros

da ldquoclasserdquo ou do ldquogrupordquo em que haacute uma carecircncia de protecccedilatildeo ou uma

necessidade de protecccedilatildeo materialmente justificada e os membros da ldquoclasserdquo

ou do ldquogrupordquo em que natildeo haacute nenhuma necessidade de protecccedilatildeo220

Em texto colectivo subscrito p ex por Grigoleit Jansen ou

Zimmermann alega-se que o conceito de consumidor designa exclusivamente

uma ldquofunccedilatildeo socialrdquo que ldquoos seres humanos natildeo satildeo necessariamente lsquofraacutegeisrsquo

quando desempenham a funccedilatildeo social [de consumidores]rdquo mdash e que a

(alegada) fragilidade dos consumidores ldquonatildeo proporciona uma adequada

fundamentaccedilatildeo para que se tomem medidas de protecccedilatildeo dos consumidores

como normas imperativasrdquo A fragilidade dos consumidores seria

simplesmente ldquoa poorly reasoned artefactrdquo221 222

219 Cf designadamente Friedrich von Hayek Die Verfassung der Freiheit mdash apud Joumlrg

Neuner Privatrecht und Sozialstaat cit paacutegs 73-74 laquoQue realmente significa [a palavra

lsquosocialrsquo] ningueacutem sabe Sabe-se apenas que uma economia de mercado social natildeo eacute uma

economia de mercado que um Estado de direito social natildeo eacute um Estado de direito que uma

consciecircncia social natildeo eacute uma consciecircncia que uma justiccedila social natildeo eacute uma justiccedila mdash e receio

que uma democracia social natildeo seja uma democraciaraquo 220 Heinrich Honsell em ldquoDie Zukunft des Privatrechtsrdquo in Zeitschift fuumlr schweizerisches

Recht 2007 e sobretudo em ldquoDie Erosion des Privatrechts durch das Europarechtrdquo in ZIP

mdash Zeitschrift fuumlr Wirtschaftsrecht 2008 paacutegs 621-630 (623-624) 221 Horst Eidenmuumlller Florian Faust Hans-Christoph Grigoleit Nils Jansen Gerhard

Wagner Reinhard Zimmermann ldquoTowards a Revision of the Consumer-acquisrdquo in Common

Market Law Review vol 48 (2011) paacutegs 1077-1123 (= WWW

lthttppapersssrncomsol3paperscfmabstract_id=1807943gt) 222 Em termos semelhantes Joumlrg Neuner Privatrecht und Sozialstaat cit paacuteg 279 O

princiacutepio da protecccedilatildeo do consumidor soacute em parte e em parte restrita pode procurar a sua

legitimaccedilatildeo atraveacutes do princiacutepio da protecccedilatildeo da parte mais fraca O princiacutepio em causa

precisa de ser completado por consideraccedilotildees morais eacuteticas e pragmaacuteticas mdash designadamente

91

Zimmermann explica que a divisatildeo do direito privado em direito civil

e em direito do consumo seria ldquofatalrdquo para o sistema O direito civil ficaria

ldquopresordquo a um princiacutepio de liberdade e a um princiacutepio de igualdade (formais) e

o direito dos consumidores ao tentar ldquolibertar-serdquo dos princiacutepio de uma

liberdade e de igualdade ldquoformaisrdquo ficaria ldquopresordquo a um princiacutepio de negaccedilatildeo

da liberdade pela protecccedilatildeo do consumidor contra a sua fragilidade223

II O DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS COMO DIREITO CIVIL

Entre os contributos do direito europeu para o desenvolvimento do

direito dos contratos sobressaem duas directivas mdash a Directiva 199313CE

de 5 de Abril de 1993 e a Directiva 199944CE de 25 de Maio de 1999

A primeira pronuncia-se sobre o conteuacutedo dos contratos (sobre as

claacuteusulas abusivas) a segunda pronuncia-se sobre o cumprimento e o natildeo

cumprimento dos contratos [de compra e venda de bens de consumo]

Ora o Tribunal de Justiccedila em acoacuterdatildeos recentes sobre as duas

directivas propotildee-se superar a tese de que o direito europeu dos contratos eacute

um direito da desigualdade discriminando entre os sujeitos da relaccedilatildeo

contratual para proteger o consumidor A representaccedilatildeo do direito europeu

dos contratos como um direito ldquodiscriminatoacuteriordquo ou como um ldquodireito de

preferecircnciasrdquo orientado para a protecccedilatildeo dos interesses de um e soacute um dos

sujeitos da relaccedilatildeo contratual deveria ser abandonada em favor da sua

representaccedilatildeo como um direito ldquonatildeo discriminatoacuteriordquo orientado para um

equiliacutebrio justo

1 A JURISPRUDEcircNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTICcedilA SOBRE A DIRECTIVA

199313CEE DE 5 DE ABRIL DE 1993

O acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila de 14 de marccedilo de 2013 (caso Aziz)

pronunciou-se sobre o conceito de claacuteusula abusiva do art 3ordm

ldquouma claacuteusula contratual que natildeo tenha sido objecto de negociaccedilatildeo

individual eacute considerada abusiva quando a despeito da exigecircncia de

pela conveniecircncia de fazer recair o risco sobre a parte que tem a possibilidade de se proteger

contra o risco atraveacutes de um contrato de seguro 223 Reinhard Zimmermann ldquoContract Law Reform The German Experiencerdquo in Stefan

Vogenauer Stephen Weatherill (coord) The Harmonisation of European Contract Law

Implications for European Private Law Business and Legal Practice Hart Publisnhing

Oxford Portland (Oregon) 2006 paacutegs 71-87 (84-85)

92

boa feacute der origem a um desequiliacutebrio significativo em detrimento do

consumidor entre os direitos e [as] obrigaccedilotildees das partes

decorrentes do contratordquo

O primeiro problema consistia em concretizar o requisito do

ldquodesequiliacutebrio significativordquo O Tribunal de Justiccedila interpretou-o como

significando uma diferenccedila entre as normas contratuais e as normas legais

(dispositivas ou supletivas) Existindo uma diferenccedila (significativa) entre a

situaccedilatildeo em que as normas contratuais e a situaccedilatildeo em que as normas legais

(dispositivas ou supletivas) colocariam o consumidor haacute um desequiliacutebrio

significativo entre os direitos e os deveres das partes decorrentes do

contrato224

O segundo problema consistia em concretizar o requisito da

desconformidade com a boa feacute (ldquoa despeito da exigecircncia de boa feacuterdquo) O

Tribunal de Justiccedila interpretou-o como significando uma diferenccedila

injustificada

O desequiliacutebrio significativo em detrimento do consumidor poderia

ser justificado ou injustificado poderia ser justificado desde que fosse

adequado necessaacuterio e proporcionado agrave prossecuccedilatildeo de um fim legiacutetimo do

profissional poderia ser injustificado desde que natildeo fosse adequado ou natildeo

fosse necessaacuterio ou natildeo fosse proporcionado O desequiliacutebrio justificado seria

conforme agrave exigecircncia da boa feacute o desequiliacutebrio injustificado natildeo mdash dar-se-

ia ldquoa despeito da exigecircncia de boa feacuterdquo Se claacuteusula contratual natildeo negociada

causasse um desequiliacutebrio injustificado e soacute se causasse um desequiliacutebrio

injustificado seria uma claacuteusula abusiva

O conceito de boa feacute garantiria o ldquoequiliacutebrio justordquo entre os interesses

legiacutetimos do profissional e os interesses legiacutetimos do consumidor mdash por um

lado protegeria o ldquointeresse legiacutetimordquo do profissional ldquonuma configuraccedilatildeo das

suas relaccedilotildees contratuais diferente da leirdquo225 mdash por outro lado protegeria o

224 Cf designadamente Stefan Grundmann ldquoThe General Clause or Standard in EC Contract

Law Directivas mdash A Survey on Some Important Legal Measures and Aspects in EC Lawrdquo in

Stefan Grundmann Denis Mazeaud (coord) General Clauses and Standards in European

Contract Law Kluwer Law International The Hague 2006 paacutegs 141-161 (145) ldquoThe most

important element in value judgements (abuse of rights) is where the party setting the

standard terms deviates considerably from default ruleshelliprdquo 225 Cf conclusotildees da advogada-geral Julianne Kokott no processo C-41511 (Aziz) mdash nordm 73

com a distinccedilatildeo entre o primeiro requisito (ldquodesequiliacutebrio significativo em detrimento do

consumidor entre os direitos e [as] obrigaccedilotildees das partes decorrentes do contratordquo) e o

segundo requisito (ldquoa despeito da exigecircncia de boa feacuterdquo) ldquogarante‐se o princiacutepio da liberdade

93

ldquointeresse legiacutetimordquo do consumidor em que a configuraccedilatildeo das contratuais natildeo

excedesse os limites da proporcionalidade

2 A JURISPRUDEcircNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTICcedilA SOBRE A DIRECTIVA

199944CE DE 25 DE MAIO DE 1999

O acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila de 16 de junho de 2011 (caso Weber

Putz) pronunciou-se sobre duas questotildees mdash sobre o conceito de ldquoreposiccedilatildeo

da conformidaderdquo atraveacutes da substituiccedilatildeo da coisa do art 3ordm nordm 2 e sobre o

conceito de desproporccedilatildeo do art 3ordm nordm 3 da Directiva 199944CE

O art 3ordm nordm 2 designa dois modos de ldquoreposiccedilatildeo da conformidaderdquo

com o contrato mdash a reparaccedilatildeo e a substituiccedilatildeo do bem ldquonatildeo conformerdquo

Caso o consumidor pudesse optar por qualquer um dos dois modos de

ldquoreposiccedilatildeo da conformidaderdquo e o fizesse o profissional poderaacute opor-se-lhe

alegando a desproporccedilatildeo relativa Caso o consumidor soacute pudesse optar por

um dos dois modos de ldquoreposiccedilatildeo da conformidaderdquo perguntava-se o

profissional poderaacute opor-se-lhe alegando a desproporccedilatildeo absoluta

O problema dependia da representaccedilatildeo da directiva como uma

directiva ldquodiscriminatoacuteriardquo orientada para a protecccedilatildeo dos interesses de uma

e soacute de uma das partes ou como uma directiva ldquonatildeo discriminatoacuteriardquo

orientada para o ldquoequiliacutebrio justordquo entre os interesses das duas partes

Entendendo-se que o fim da directiva eacute a protecccedilatildeo do consumidor a

resposta negativa seria (deveria ser) evidente O profissional natildeo poderia opor

a desproporccedilatildeo absoluta Ententendo-se que o fim da directiva eacute

simultaneamente a protecccedilatildeo do consumidor e do profissional a resposta

negativa natildeo seria evidente mdash ou pelo menos tatildeo evidente

O advogado-geral Jan Mazak dizia que o fim da directiva era

simultaneamente a protecccedilatildeo do consumidor e do profissional

ldquoComo qualquer outro sistema juriacutedico avanccedilado que regul[asse] os

direitos e obrigaccedilotildees do comprador e do vendedor decorrentes de um

cumprimento [defeituoso] o esquema de soluccedilotildees [hellip] da directiva

contratual e reconhece‐se que as partes possuem frequentemente um interesse legiacutetimo numa

configuraccedilatildeo das suas relaccedilotildees contratuais diferente da leirdquo

94

natildeo pode[ria] de modo algum favorecer nem o consumidor nem o

vendedorrdquo226 227

O Tribunal de Justiccedila ainda que natildeo subscrevesse completamente com

as conclusotildees do advogado-geral228 sufragou a tese do ldquoequiliacutebrio justordquo mdash

O fim da Directiva 199944CE consistiria (teria de consistir) em alcanccedilar um

ldquoequiliacutebrio justordquo atendendo designadamente a consideraccedilotildees de ordem

econoacutemica deduzidas pelo profissional (= deduzidas pelo vendedor)229

O raciociacutenio do Tribunal de Justiccedila conduz-nos agrave conclusatildeo de que as

directivas de protecccedilatildeo do consumidor satildeo simultaneamente directivas de

protecccedilatildeo do consumidor e directivas de protecccedilatildeo do profissional Entre os

direitos atribuiacutedos pelas directivas de protecccedilatildeo do consumidor estatildeo (podem

estar) direitos do profissional (p ex direitos do vendedor)

Face ao acoacuterdatildeo de 16 de Junho de 2011 poderaacute p ex perguntar-se

se o art 4ordm nordm 1 do Decreto-Lei nordm 672003 de 8 de Abril [alterado pelo

Decreto-Lei nordm 842008 de 21 de Maio] ao consagrar uma relaccedilatildeo de

alternatividade entre a reparaccedilatildeo da coisa a substituiccedilatildeo da coisa a reduccedilatildeo

do preccedilo e a resoluccedilatildeo do contrato ainda seraacute compatiacutevel com a directiva O

art 3ordm nordm 6 da Directiva 199944CE natildeo teraacute porventura pretendido dar ao

profissional (ao vendedor) o direito a uma segunda oportunidade (right to

cure)230

226 Conclusotildees do advogado-geral Jan Mazak nos processos C‑6509 (Gebr Weber) e C‑

8709 (Ingrid Putz) mdash paraacutegrafo nordm 30 227 Entre os corolaacuterios do ldquoequiliacutebrio justordquo estaria a protecccedilatildeo do profissional contra custos

desproporcionados ou excessivos O profissional poderia opor ao consumidor a desproporccedilatildeo

absoluta 228 Entre o advogado-geral e o tribunal havia tatildeo-soacute uma diferenccedila O advogado-geral alegava

que o ldquoequiliacutebrio justordquo exigia uma protecccedilatildeo do profissional contra os custos

desproporcionados ou excessivos O tribunal decidiu que natildeo mdash que o profissional natildeo

poderia opor ao consumidor a desproporccedilatildeo absoluta 229 Acoacuterdatildeo do Tribunal de Justiccedila de 16 de junho de 2011 nos processos C‑6509 (Gebr

Weber) e C‑8709 (Ingrid Putz) mdash paraacutegrafo nordm 75 230 A favor da tese de que o art 3ordm da Directiva 199944CE daacute ao profissional o direito a duas

oportunidades Peter Rott ldquoMinimum Harmonisation for the Completion of the Internal

Market The Example of Consumer Sales Lawrdquo in Common Market Law Review vol 40

(2003) paacutegs 1107-1135 e tendencialmente Stefan Grundmann ldquoRegulating Breach of

Contract mdash The Right to Reject Performance by the Party in Breachrdquo in European Review

of Contract Law vol 2 (2007) paacutegs 121-149 contra Andrea Nicolussi ldquoEtica del contratto

e lsquocontratti di durata per lrsquoesistenza della personarsquordquo in Luca Nogler Udo Reifner (coord)

Life Time Contracts Eleven International Publishing The Hague 2014 paacutegs 123-167 (135)

95

III O DIREITO EUROPEU DOS CONTRATOS COMO DIREITO

CIVIL rdquoMATERIALIZADOrdquo

O conceito de equiliacutebrio justo deve compreender-se relacionando-o

com a alteraccedilatildeo com a mudanccedila ou com a transiccedilatildeo de paradigmas mdash do

paradigma de um direito privado formal para um direito privado material231

O paradigma de um direito privado formal centrado em

ldquoabstractismosrdquo232 ou seja centrado em conceitos abstractos de pessoa de

dignidade e de liberdade e dirigido (soacute) para realizaccedilatildeo da liberdade

individual tende a ser insensiacutevel aos contextos sociais em que a liberdade e a

igualdade hatildeo-de realizar-se tende a afirmar os princiacutepios de uma liberdade

formal de uma igualdade formal e de uma justiccedila formal (justiccedila

procedimental)

ldquola garanzia in forma specifica che il consumatore puograve far valere in base alla disciplina

europea della vendita dei beni di consumo non puograve essere concepita come uno strumento per

vincolarlo al contratto impedendogli di tornare sul mercato ma la misura piugrave adeguata

affincheacute il venditore si faccia carico della specifico interesse del consumatore al benerdquo 231 Cf Franz Wieacker Histoacuteria do direito privado moderno (tiacutetulo original

Privatrechtsgeschichte der Neuzeit unter besonderer Beruumlcksichtigung der deutschen

Entwicklung) 2ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1995 paacutegs 679-722 Juumlrgen

Habermas Fatti e norme Contributi a una teoria discorsiva del diritto e della democrazia

(tiacutetulo original Faktizitaumlt und Geltung Beitraumlge zur Diskurstheorie des Rechts und des

demokratischen Rechtsstaats) Milan Guerini 1996 paacutegs 463-484 Claus-Wilhelm Canaris

ldquoWandlungen des Schuldvertragsrechts mdash Tendenzen zu seiner Materialisierungldquo in Archiv

fuumlr die civilistische Praxis vol 200 (2000) paacutegs 273-364 Gralf-Peter Calliess ldquoDie Zukunft

der Privatautonomie Zur neueren Entwicklung eines gemeineuropaumlischen Rechtsprinzipsrdquo

in Jahrbuch junger Zivilrechtswissenschaftler 2000 mdash Prinzipien des Privatrechts und

Rechtsvereinheitlichung Richard Boorberg Verlag Stuttgart Muumlnchen Hannover Berlin

Weimar Dresden 2001 paacutegs 85-110 Stefan Grundmann ldquoEuropean Contract Law(s) mdash Of

What Colourrdquo in European Review of Contract Law vol 1 (2005) paacutegs 184-210 Marietta

Auer Materialisierung Flexibilisierung Richterfreiheit Generalklauseln im Spiegel der

Antinomien des Privatrechtsdenken J C B Mohr (Paul Siebeck) Tuumlbingen 2005 Michael

Martinek ldquoVertragsrechtstheorie und Burgerliches Gesetzbuchrdquo (2005) in WWW

lthttparchivjurauni-saarlanddeprojekteBibliothektextphpid=375sdfootnote7symgt

Ralf Michaels ldquoRollen und Rollenverstandnisse im transnationalen Privatrechtrdquo (2011) in

WWW lt httppapersssrncomsol3paperscfmabstract_id=1938441gt paacutegs 29-31 Stefan

Grundmann ldquoThe Future of Contract Lawrdquo in European Review of Contract Law vol 6

(2011) paacutegs 490-527 (sobretudo pp 500-509) 232 Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica 2ordf ed

Coimbra Editora Coimbra 1955 paacuteg 367

96

O paradigma de um direito privado material centrado em conceitos

(mais) concretos de pessoa de dignidade e de liberdade e dirigido para a

realizaccedilatildeo simultacircnea da liberdade individual e da justiccedila social tende a ser

sensiacutevel aos contextos sociais em que a liberdade e a igualdade hatildeo-de realizar-

se tende a negar os princiacutepios de uma liberdade formal de uma igualdade

formal eou de uma justiccedila formal (procedimental) para os superar233

Habermas fala impressivamente de uma ldquomudanccedila na percepccedilatildeo dos

contextos sociais nos quais a autonomia [ou a liberdade] de cada um deve

encontrar igual realizaccedilatildeordquo234 de que decorre uma ldquoregulamentaccedilatildeo

intencional superior agraves duas partesrdquo235 destinada a compensar as disfunccedilotildees

do mercado favorecendo quem estaacute em posiccedilatildeo mais fraacutegil236

Entre a coordenaccedilatildeo do direito europeu dos contratos ao direito civil

mdashldquomaterializadordquo mdash ou ao direito social haacute tatildeo-soacute uma diferenccedila

O direito social orienta-se por criteacuterios de carecircncia de protecccedilatildeo ou de

necessidade de protecccedilatildeo relacionados com os sujeitos mdash com as pessoas

com as ldquoclassesrdquo ou com os ldquogruposrdquo de pessoas carecidas de protecccedilatildeo237 O

direito civil orienta-se por criteacuterios de carecircncia de protecccedilatildeo ou de

necessidade de protecccedilatildeo relacionados com as situaccedilotildees mdash com os ldquocontextos

sociaisrdquo ou com os ldquocontextos situacionaisrdquo da liberdade238

233 Criticando o termo ldquomaterializaccedilatildeordquo Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacuteg 764

ldquoLrsquoexpression est commode elle est mauvaise par les confusions auxquelles elle invite En

effet si de nouveaux sujets et objets deviennent juridiquement pertinents cela ne tient pas tant

aacute une reacutevolte des faits contre un droit trop formel qursquoagrave une transformation de la rationaliteacute

juridique qui permet leur juridicisationrdquo 234 Juumlrgen Habermas Fatti e norme cit paacuteg 474 235 G W F Hegel Princiacutepios de filosofia do direito Martins Fontes Satildeo Paulo 1997 paacutegs

204-205 236 Juumlrgen Habermas Fatti e norme cit paacuteg 478 237 Joumlrg Neuner fala de uma compensaccedilatildeo de desigualdades determinadas de forma geral e

abstracta (Privatrecht und Sozialstaat cit paacuteg 276 ldquoKompensation abstrakter-generell

Ungleichheitenrdquo) 238 Joumlrg Neuner fala de uma compensaccedilatildeo de deficits determinados de forma individual e

concreta e relacionados com o processo de decisatildeo (Privatrecht und Sozialstaat cit paacuteg 274

ldquoKompensation konkret-entscheidungsbezogener Defiziterdquo)

97

IV O CONTRIBUTO DOS PRINCIacutePIOS SOBRE OS CONTRATOS

DURADOUROS ESSENCIAIS Agrave EXISTAcircNCIA DA PESSOA PARA A

MATERIALIZACcedilAtildeO DO DIREITO CIVIL

Em texto recente Stefan Grundmann apresenta o direito dos contratos

do futuro como um direito com uma diferenciaccedilatildeo acrescida ou reforccedilada

dentro de um sistema de princiacutepios e de regras Os actuais criteacuterios de

diferenciaccedilatildeo (entre ldquoclassesrdquo ou ldquogruposrdquo de pessoas) deveriam ser

completados por novos criteacuterios mdash considerando designadamente os tipos de

contratos e os tipos de situaccedilotildees em que se encontram os sujeitos da relaccedilatildeo

contratual

Grundmann propotildee que a sistematizaccedilatildeo do direito dos contratos em

torno de duas distinccedilotildees Em primeiro lugar da distinccedilatildeo entre os contratos

negociados e os contratos natildeo negociados Em segundo lugar da distinccedilatildeo

entre os contratos de execuccedilatildeo instantacircnea (spot contracts) e os contratos de

execuccedilatildeo duradoura (long-term contracts)239 Os princiacutepios e as regras de

direito civil sobre o conteuacutedo sobre o cumprimento e sobre o natildeo

cumprimento dos contratos de execuccedilatildeo instantantacircnea dos spot contracts

natildeo poderiam aplicar-se aos contratos de execuccedilatildeo duradoura A presunccedilatildeo de

semelhanccedila (presumptio similitatis) entre os dois tipos de relaccedilotildees contratuais

seria pura e simplesmente uma presunccedilatildeo errada240

Os Princiacutepios relativos aos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa propotildeem-se integrar as duas distinccedilotildees desenhadas por

Stefan Grundmann com uma terceira distinccedilatildeo mdash entre os contratos

eticamente irrelevantes (eticamente neutros) e os contratos eticamente

relevantes por serem necessaacuterios para a auto-realizaccedilatildeo da pessoa humana241

O paradigma dos contratos de execuccedilatildeo instantatildenea eticamente

irrelevantes (eticamente neutros) concentrava-se no procedimento de

conformaccedilatildeo do conteuacutedo do contrato e nos resultados do procedimento de

conformaccedilatildeo do conteuacutedo do contrato O significado da justiccedila contratual

quando aplicada ao procedimento relacionava-se com uma ideia de liberdade

e quando aplicada aos resultados relacionava-se com uma ideia de

proporcionalidade mdash o resultado seria justo desde que entre a prestaccedilatildeo e a

239 Stefan Grundmann ldquoThe Future of Contract Lawrdquo cit paacutegs 515-518 240 Stefan Grundmann ldquoThe Future of Contract Lawrdquo cit paacutegs 523-524 241 Cf desenvolvidamente Luca Nogler Udo Reifner ldquoIntroduction The New Dimension of

Life Time in the Law of Contracts and Obligationsrdquo in Luca Nogler Udo Reifner (coord)

Life Time Contracts Eleven International Publishing The Hague 2014 paacutegs 1-71 e Helena

Klinger ldquoLebenszeitvertrage mdash Natur und Ethikrdquo in Luca Nogler Udo Reifner (coord)

Life Time Contracts Eleven International Publishing The Hague 2014 paacutegs 189-220

98

contraprestaccedilatildeo houvesse uma relaccedilatildeo de proporcionalidade O paradigma dos

contratos (de execuccedilatildeo duradoura) eticamente relevantes por serem contratos

essenciais para a auto-realizaccedilatildeo da pessoa humana esse chama a atenccedilatildeo

para pelo menos trecircs coisas

Em primeiro lugar para o tema do acesso ao contrato (para o acesso

atraveacutes do contrato aos bens e aos serviccedilos essenciais agrave auto-realizaccedilatildeo da

pessoa) Em segundo lugar para o tema da justiccedila na relaccedilatildeo entre os sujeitos

da relaccedilatildeo contratual Em terceiro lugar para o tema da justiccedila na relaccedilatildeo

entre todos os sujeitos de todas as relaccedilotildees econoacutemicas e sociais Estando em

causa contratos existenciais cada relaccedilatildeo contratual eacute (soacute) uma fracccedilatildeo da

totalidade de relaccedilotildees da vida econoacutemica e social242

O 1ordm princiacutepio afirma-o ao colocar entre os fins dos ldquocontratos

existenciaisrdquo a participaccedilatildeo na vida social O 14ordm e o 15ordm princiacutepios

confirmam-no ao consagrar garantias de um miacutenimo de participaccedilatildeo na vida

econoacutemica e de um miacutenimo de participaccedilatildeo na vida social

Os princiacutepios da liberdade geral de agir e da liberdade especiacutefica de

contratar natildeo satildeo adequados ou pelo menos natildeo satildeo suficientes O direito ao

delegar a competecircncia para decidir o acesso aos bens e aos serviccedilos

fundamentais na economia faria com que houvesse um perigo de

discriminaccedilatildeo ou um perigo de exclusatildeo ainda que natildeo houvesse nem

discriminaccedilatildeo nem exclusatildeo sempre poderia haver um perigo de que a

conformaccedilatildeo do contrato pusesse em perigo a auto-realizaccedilatildeo da pessoa a

sua participaccedilatildeo na vida econoacutemica ou a sua participaccedilatildeo na vida social

Como o 8ordm princiacutepio propotildee que o direito de acesso atraveacutes do contrato aos

bens e aos serviccedilos essenciais tenha a dignidade de um direito fundamental

dir-se-aacute o seguinte os princiacutepios da liberdade de agir e da liberdade de

contratar natildeo satildeo ou pelo menos podem natildeo ser suficientes para

proporcionar um resultado conforme aos direitos fundamentais

Entre as afirmaccedilotildees mais comuns estaacute a de que o personalismo eacutetico eacute

ou pelo menos deve ser o fundamento do direito civil243 se o termo

242 Cf Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacuteg 558 ldquoAlors que le contrat classique

srsquoanalyse comme la relation immeacutediate drsquoindividu agrave individu souverains et autonomes [hellip]

dans le contrat de droit social le tout a une existence propre et indeacutependante des parties mdash ce

nrsquoest plus lrsquoEacutetat mais la societeacute mdash et les parties ne peuvent jamais srsquoobliger directement sans

passer par la meacutediation du toutrdquo 243 Cf Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts 9ordf ed C H

Beck Muumlnchen 2004 paacuteg 21 ldquoHinter dem BGB seiner Grundbegriffen und seinen

grundlegenden Wertungen steht der ethische Personalismus als Menschenbild den seine

Verfasser ohne es ausdrucklich auszusprechen als selbstverstandlich vorausgesetzt habenrdquo

99

personalismo eacutetico tem algum significado soacute pode ser o seguinte O direito

civil deve contribuir para proporcionar a cada concreta pessoa o acesso aos

bens e aos serviccedilos essenciais deve contribuir para proporcionar a cada

concreta pessoa o acesso agraves relaccedilotildees essenciais para a sua auto-realizaccedilatildeo e

para a sua participaccedilatildeo na vida econoacutemica e na vida social 244 Se os contratos

eticamente irrelevantes podem ser soacute contratos de liberdade os contratos

eticamente relevantes essenciais para a auto-realizaccedilatildeo da pessoa soacute podem

ser contratos de solidariedade245 246

244 Cf Nuno Manuel Pinto Oliveira ldquoOs princiacutepios de um lsquopersonalismo eacuteticorsquo como projecto

de lsquomaterializaccedilatildeorsquo do direito privadordquo in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Joseacute

Lebre de Freitas Coimbra Editora Coimbra 2013 245 Expressatildeo de Franccedilois Ewald LrsquoEacutetat providence cit paacutegs 446 ss mdash ainda que dentro de

um contexto diferente Ewald fala de um contrato social de solidariedade no texto fala-se de

um contrato individual de solidariedade 246 Cf 5ordm princiacutepio ldquoO facto de algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem bens ou serviccedilos

necessaacuterios agrave satisfaccedilatildeo das necessidades essenciais relacionadas com o consumo ou com a

habitaccedilatildeo ou de algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem uma quantia em dinheiro [no quadro

de uma relaccedilatildeo de creacutedito ou de uma relaccedilatildeo de trabalho] implica um dever de protecccedilatildeo da

pessoa do consumidor ou da pessoa do trabalhador como partes mais fracas da relaccedilatildeo

contratualrdquo mdash O texto da versatildeo italiana eacute particularmente impressivo por relacionar o o

dever de protecccedilatildeo com um dever de solidaridade ao referir a ldquodisponibilidade [do prestador

de bens ou serviccedilos] para se encarregar de modo solidaacuterio da protecccedilatildeo da parte mais fraca

considerando a sua integridade fiacutesica e moralrdquo

100

101

Seraacute a negociaccedilatildeo coletiva desejaacutevel no contexto dos

life time contracts

Antoacutenio Agostinho Guedes

SUMAacuteRIO 1 Introduccedilatildeo Enunciado da questatildeo 2 Para que serve o

Direito Valores normas e conflitos de interesse 3 Os ldquoprinciacutepiosrdquo ligados

aos Life Time Contracts 4 A negociaccedilatildeo coletiva e os seus perigos

1 Numa aproximaccedilatildeo ao conceito de Life Time Contracts Luca

Nogler e Udo Reifner apontam para uma ideia de contratos que desempenham

um papel fundamental no dia-a-dia e existecircncia das pessoas contratos que

criam relaccedilotildees sociais de longo prazo atraveacutes dos quais se adquirem bens e

serviccedilos oportunidades de trabalho e de rendimento importantes para a

autorrealizaccedilatildeo de cada pessoa e para a sua participaccedilatildeo plena na

comunidade247

Estariam em causa certos contratos aos quais os autores recusam

aplicar a velha loacutegica liberal do contrato de troca (em sentido amplo) de

mercadoria ou de serviccedilos por dinheiro tratado como uma pura transaccedilatildeo

comercial de execuccedilatildeo instantacircnea que se esgota e extingue no ato de

cumprimento

Referindo-se agraves iniciativas das instituiccedilotildees da Uniatildeo Europeia

especialmente agraves Diretivas sobre proteccedilatildeo dos consumidores creacutedito ao

consumo e relaccedilotildees laborais os autores e o restante grupo de trabalho numa

O presente estudo corresponde genericamente ao registo escrito da comunicaccedilatildeo

apresentada no acircmbito do coloacutequio denominado ldquoColoacutequio Internacional em Torno dos Life

Time Contractsrdquo promovido pelo centro de investigaccedilatildeo Direitos Humanos ndash Centro de

Investigaccedilatildeo Interdisciplinar cuja coordenaccedilatildeo cientiacutefica esteve a cargo do Doutor Nuno

Manuel Pinto de Oliveira e da Doutora Benedita Mac Crorie e que teve lugar na cidade de

Braga em maio de 2015 Professor da Faculdade de Direito da Universidade Catoacutelica Portuguesa (UCP) Escola do

Porto e investigador do Catoacutelica Research Centre for the Future of Law - Centro de Estudos

e Investigaccedilatildeo em Direito 247 Introduction The New Dimension of Life Time in the Law of Contracts and Obligations

in Life Time Contracts ndash Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer

Credit Law Eleven International Publishing (versatildeo e-book) paacuteg 41

102

declaraccedilatildeo conjunta248 criticam o facto de tais iniciativas reduzirem os Life

Time Contracts a contratos sinalagmaacuteticos relativos a prestaccedilotildees presentes

tomando como ponto de partida o modelo do contrato de compra e venda

Justamente com o objetivo de pocircr em relevo as diferenccedilas entre aqueles

contratos e os simples contratos comerciais de troca o grupo EuSoCo

(European Social Contract) elaborou um conjunto de princiacutepios (em sentido

amplo) que seriam privativos dos Life Time Contracts e enunciou-os na obra

coletiva que temos vindo a citar249

Nessa enunciaccedilatildeo e para aleacutem de muitos outros aspetos relevantes

destacaria a adoccedilatildeo de uma noccedilatildeo de Life Time Contracts segundo a qual estes

seratildeo contratos ldquoduradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa [hellip] relaccedilotildees

sociais que tecircm por objeto proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o

trabalho e os rendimentos necessaacuterios para a sua autorrealizaccedilatildeo e para a sua

participaccedilatildeo na vida socialrdquo250

Destaco tambeacutem o princiacutepio enunciado em seacutetimo lugar (Collective

and ethical dimensions) de acordo com o qual os ldquoconsumidores e os

trabalhadores tecircm o direito de exigir do Estado o reconhecimento de sistemas

coletivos de representaccedilatildeo (associaccedilotildees de consumidores ou associaccedilotildees

sindicais)rdquo ldquotecircm o direito de exigir do Estado o reconhecimento e o respeito

pelos sistemas de valores coletivos como aqueles que satildeo designados pelos

conceitos de boa feacute e de bons costumesrdquo estes ldquosistemas de valores coletivos

devem aplicar-se em todas as fases da relaccedilatildeo contratual desde o acesso aos

bens e serviccedilos agrave conformaccedilatildeo do contrato agrave sua adaptaccedilatildeomodificaccedilatildeo e agrave

sua extinccedilatildeordquo251

Este princiacutepio assim enunciado levanta algumas duacutevidas

Naturalmente natildeo sofre contestaccedilatildeo a ideia de que consumidores e

trabalhadores tecircm o direito de se organizar em associaccedilotildees ou outros

mecanismos de representaccedilatildeo coletiva e que o Estado deve reconhecer a tais

organizaccedilotildees legitimidade para essa representaccedilatildeo eacute aliaacutes o que decorre da

nossa Constituiccedilatildeo designadamente dos arts 60ordm 55ordm e 56ordm

A questatildeo que se me coloca neste acircmbito eacute a da saber ateacute onde se pode

admitir a intervenccedilatildeo de tais associaccedilotildees e mecanismos de representaccedilatildeo

248 Declaration in Life Time Contracts hellip cit paacuteg 32 249 Paacutegs 8 e ss 250 Extratos retirados da traduccedilatildeo preliminar para portuguecircs dos ldquoPrinciacutepios Gerais Sobre os

Contratos Duradouros Essenciais agrave Existecircncia da Pessoardquo preparada pelos coordenadores

cientiacuteficos do coloacutequio e distribuiacuteda aos participantes 251 Trad cit

103

coletiva nomeadamente se essa intervenccedilatildeo deve ser admitida desde logo na

proacutepria conformaccedilatildeo das normas reguladoras dos Life Time Contracts e desta

forma na proacutepria concretizaccedilatildeo atraveacutes da lei do que sejam os ldquovalores

coletivosrdquo que ldquodevem aplicar-se em todas as fases da relaccedilatildeo contratual

desde o acesso aos bens e serviccedilos agrave conformaccedilatildeo do contrato agrave sua

adaptaccedilatildeomodificaccedilatildeo e agrave sua extinccedilatildeordquo

Satildeo estas as questotildees sobre as quais me proponho refletir sendo certo

que as respostas encontradas seratildeo necessariamente determinadas pela minha

preacute-compreensatildeo do fenoacutemeno juriacutedico e especialmente do modo como o

legislador se acha vinculado aos valores juriacutedicos

2 De uma forma simples podemos dizer que o primeiro objetivo do

Direito eacute antes de mais resolver (e prevenir) conflitos de interesse segundo

um criteacuterio de justiccedila252

Na verdade enquanto ser autoacutenomo ldquoo homem procura realizar as

suas oportunidades conforme os seus interesses proacuteprios (e nem sempre o faz

por meios honestos ou processos leais) Mas esta satisfaccedilatildeo de interesses soacute

lhe eacute possiacutevel em sociedade quer dizer em intercacircmbio com outros homens

O homem eacute um ser social que apenas na convivecircncia com os outros (p ex na

famiacutelia na escola no trabalho nos tempos de lazer) pode evoluir e realizar-

se Eacute esta sua natureza ambivalente como indiviacuteduo autoacutenomo e ser social a

lsquosociabilidade natildeo-socialrsquo no dizer de Kant que explica as diversidades de

interesses as quais podem conduzir a tensotildees tensotildees essas que surgem tanto

entre os homens entre si como entre o homem e a sociedade a comunidade

em que se insere Estas tensotildees resultantes de interesses divergentes se por

um lado se revelam como estimulantes e dinamizadoras podem por outro lado

assumir a extensatildeo de conflitosrdquo253

Nas sociedades ocidentais este objetivo de resolver e prevenir

conflitos de interesse entre os membros da sociedade eacute normalmente

prosseguido pela criaccedilatildeo de normas gerais e abstratas por parte dos oacutergatildeos

252 Como bem refere ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO Teoria Geral do Direito Civil ndash

Relatoacuterio in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa vol XXIX (1988)

paacuteg 275 253 Heinrich Houmlrster A Parte Geral do Coacutedigo Civil Portuguecircs ndash Teoria Geral do Direito

Civil Almedina 1992 paacuteg 7

104

poliacuteticos da comunidade as quais satildeo depois aplicadas pelos tribunais na

resoluccedilatildeo dos singulares conflitos de interesse254

Naturalmente que a norma legal natildeo vale apenas por si ou pela

legitimidade poliacutetica do oacutergatildeo que a criou essa norma vale antes de mais

porque encerra uma pretensatildeo de justiccedila ou seja porque liga a uma certa

situaccedilatildeo tiacutepica de conflito de interesses (descrita na sua hipoacutetese legal) a

soluccedilatildeo que o legislador entende ser a soluccedilatildeo justa para esse tipo de conflito

Natildeo eacute este o momento nem o lugar para ensaiar uma definiccedilatildeo de

Justiccedila no sentido acabado de apontar aliaacutes as tentativas de definiccedilatildeo da

Justiccedila tecircm ocupado mais os filoacutesofos do que os juristas255 256

A preocupaccedilatildeo destes (dos juristas) tem-se situado mais ao niacutevel da

identificaccedilatildeo de quais os valores que podem ser deduzidos da ideia de Direito

(e portanto de uma ideia de Justiccedila) e que por essa razatildeo devem ser

considerados os valores juriacutedicos fundamentais

Com efeito a ensaiar uma tentativa de descriccedilatildeo daquilo que deve ser

o processo loacutegico de criaccedilatildeo de Direito ou seja um sistema de normas visando

a resoluccedilatildeo de conflitos de interesse segundo um criteacuterio de justiccedila diria que

o primeiro passo seria a escolha pela comunidade dos seus valores essenciais

Claro que historicamente natildeo se pode dizer que os vaacuterios

ordenamentos juriacutedicos de cada comunidade politicamente organizada tenham

resultado de forma imediata de escolhas conscientes de certos valores como

resultado de uma reflexatildeo conjunta de todos os seus membros Pelo contraacuterio

todos os dados histoacutericos disponiacuteveis apontam para que a origem dos primeiros

sistemas juriacutedicos tenha sido a tradiccedilatildeo os usos e o costume e natildeo tanto

processos conscientes e atos expliacutecitos de reconhecimento de certos valores257

254 Estamos a falar principalmente dos paiacuteses da Europa continental sendo certo poreacutem que

tambeacutem nos paiacuteses de cultura anglo-saxoacutenica se tem assistido a um crescimento do statute

law 255 Cfr a este propoacutesito o interessante estudo de Joatildeo Cardoso Rosas Concepccedilotildees da Justiccedila

Ediccedilotildees 70 2011 256 Com bem refere Karl Larenz no seu ensaio Richtiges Recht Grundzuumlge einer Rechtsethik

(trad espanhola de Luis Diacuteez-Picazo Civitas 1985 reimp 1993) ldquoDe acordo com uma larga

tradiccedilatildeo da filosofia ocidental a tarefa dos filoacutesofos consiste em buscar a lsquounidadersquo subjacente

agrave multiplicidade de normas e de decisotildees A tarefa do jurista diversamente consiste em

encontrar decisotildees justas de casos concretosrdquo (traduccedilatildeo nossa do castelhano) 257 Sobre as origens do Direito cfr John Gilissen Introduccedilatildeo Histoacuterica ao Direito (trad de

Antoacutenio Manuel Hespanha e Manuel Macaiacutesta Malheiros) 7ordf ed Ed Gulbenkian 2013

paacutegs 31 e ss

105

A verdade poreacutem eacute que modernamente se tem assistido a um esforccedilo

de identificaccedilatildeo e revelaccedilatildeo dos princiacutepios e valores fundamentais que

conferem sentido ao (e legitimam o) Direito legislado um esforccedilo levado a

cabo algumas vezes ateacute pelo proacuteprio legislador258

A tradiccedilatildeo humanista judaico-cristatilde das sociedades ocidentais levou

desde logo a que esse esforccedilo de identificaccedilatildeo se dirigisse aos valores

relacionados com a dignidade da Pessoa do qual o melhor exemplo eacute sem

duacutevida a Declaraccedilatildeo Universal dos Direitos Humanos Esta consagra

princiacutepios como a igualdade liberdade proteccedilatildeo da vida e da seguranccedila

pessoal a imparcialidade dos tribunais a presunccedilatildeo de inocecircncia o princiacutepio

nulla poena sine lege a proteccedilatildeo da privacidade e da honra e alguns outros

todos acolhidos na nossa Constituiccedilatildeo

Mais recentemente Karl Larenz ensaiou um esforccedilo semelhante mas

agora dirigido aos valores fundamentais que podem ser deduzidos da ideia de

Direito259 Neste contexto Larenz identifica princiacutepios como o respeito muacutetuo

a autonomia privada e a auto-vinculaccedilatildeo atraveacutes dos contratos a equivalecircncia

de prestaccedilotildees nos contratos sinalagmaacuteticos o princiacutepio da confianccedila (no qual

inclui o princiacutepio da boa feacute) o princiacutepio da culpa na responsabilidade civil e

penal mas tambeacutem os princiacutepios da proporcionalidade da natildeo retroatividade

das leis ou os princiacutepios da imparcialidade dos tribunais e do contraditoacuterio

Para aleacutem dos valores ligados agrave dignidade da Pessoa e deduzidos da

ideia de Direito eacute evidente que cada comunidade protege tambeacutem certos

valores ligados agrave sua heranccedila cultural os quais satildeo igualmente refletidos no

direito positivo Eacute o que acontece entre noacutes com certos valores ligados agrave

solidariedade social como o princiacutepio da proteccedilatildeo dos mais fracos social ou

economicamente mais deacutebeis patente em muitas normas relativas ao Direito

do Trabalho ao Direito do Consumo ou ao arrendamento urbano por exemplo

Dada a importacircncia destes valores para cada sociedade eacute normal que

os mesmos sejam enunciados na Lei Fundamental como acontece entre noacutes

aliaacutes A Parte I (Direitos e Deveres Fundamentais) da nossa Constituiccedilatildeo

enuncia muitos dos valores e princiacutepios acima mencionados formalizando um

certo compromisso entre os membros da sociedade portuguesa sobre um

conjunto de valores presentes e futuros

Este consenso sobre os valores fundamentais da sociedade traduz

assim o primeiro passo na construccedilatildeo de um sistema de normas juriacutedicas e

tende a refletir as conceccedilotildees dominantes na sociedade em certo periacuteodo

258 V por exemplo o art 5ordm da Lei nordm 66-B2007 de 28 de dezembro que cria o Sistema

Integrado de Gestatildeo e Avaliaccedilatildeo de Desempenho na Administraccedilatildeo Puacuteblica 259 Richtiges Recht cit paacutegs 55 e ss e passim

106

histoacuterico sejam de natureza moral filosoacutefica poliacutetica social ou cultural O

Direito eacute assim um resultado da cultura eacute uma realidade ldquohistoricamente

instituiacutedardquo260

Sobre estes valores importa ainda dizer duas coisas

Por um lado estatildeo em causa valores extralegais porque estatildeo acima

da lei escrita Constituem na expressatildeo feliz de J Baptista Machado o

ldquoreferente fundamentalrdquo do direito positivo261 no sentido em que cada norma

(e portanto o ordenamento no seu conjunto) remete para (refere-se a) esses

valores ou seja traduz uma ideia ou conceccedilatildeo de justiccedila (a conceccedilatildeo de justiccedila

do legislador) a qual estaacute pressuposta na soluccedilatildeo fornecida pela norma de tal

modo que a perfeita interpretaccedilatildeo ou compreensatildeo da mesma soacute eacute possiacutevel

quando o esforccedilo do inteacuterprete eacute tambeacutem dirigido a conhecer essa conceccedilatildeo ou

ideia de justiccedila traduzida na norma Numa palavra a norma soacute tem sentido

quando se toma em conta o valor para que a mesma remete

Por outro lado estamos em presenccedila de valores juriacutedicos pois os

mesmos tecircm vigecircncia justamente atraveacutes das normas que os concretizam

Valores que natildeo estejam concretizados em normas juriacutedicas natildeo vigoram na

ordem juriacutedica Recorrendo mais uma vez ao texto de J Baptista Machado

ldquoeste quid tans-positivo [o valor] natildeo tem existecircncia a se (autoacutenoma) pois soacute

existe ou tem vigecircncia atraveacutes dos textos positivos e na interpretaccedilatildeo e

aplicaccedilatildeo delesrdquo262

Importa recordar com efeito que haacute muitos aspetos da vida social

subtraiacutedos ao Direito mas natildeo subtraiacutedos agraves regras morais e sociais estas

tambeacutem inspiradas em valores (morais e sociais) mas justamente porque os

conflitos gerados nesses domiacutenios da vida social natildeo satildeo juridicamente

relevantes e portanto natildeo satildeo dirimidos pelo recurso a normas juriacutedicas os

valores invocados ou postos em causa em tais conflitos natildeo podem ser

considerados valores juriacutedicos

260 A expressatildeo eacute de J Baptista Machado (Introduccedilatildeo ao Direito e ao Discurso Legitimador

Almedina 2002 13ordf reimp paacuteg 7 261 Introduccedilatildeo hellip cit paacutegs 206 e ss 262 Introduccedilatildeo hellip cit paacuteg 210 Em sentido semelhante Karl Larenz Richtiges Recht cit

paacuteg 34 Este aspeto coloca em relevo a ideia de que natildeo basta enunciar nos primeiros artigos

de um diploma legal a vinculaccedilatildeo desse conjunto de normas a certos valores ou princiacutepios em

rigor essa enunciaccedilatildeo pouco vale se natildeo estiver traduzida em regras de comportamento

porque eacute dessas regras que se deduzem os tais valores que as mesmas visam concretizar

Enunciar um conjunto de valores ou princiacutepios sem os concretizar em normas de pouco vale

107

Dado este primeiro passo eleiccedilatildeo dos valores fundamentais da

comunidade torna-se necessaacuterio um segundo passo agora em nome da

praticabilidade e exequibilidade

A verdade eacute que se torna muito difiacutecil em alguns casos praticamente

impossiacutevel resolver conflitos de interesse concretos apenas com referecircncia aos

valores ou princiacutepios gerais Estes ldquosatildeo os pensamentos diretores de uma

regulamentaccedilatildeo juriacutedica existente ou possiacutevel Em si mesmos natildeo satildeo ainda

regras suscetiacuteveis de aplicaccedilatildeo embora possam transformar-se em regras [hellip]

Os princiacutepios indicam apenas a direccedilatildeo [o sentido] da regra que se pretende

encontrar Podemos dizer que satildeo o primeiro passo para a obtenccedilatildeo da regra

que determina os passos posterioresrdquo263

Neste sentido e no que toca agrave funccedilatildeo de dirimir conflitos de interesse

os princiacutepios carecem de concretizaccedilatildeo a qual resulta numa norma e pressupotildee

uma nova valoraccedilatildeo264

Na verdade enquanto pensamento diretor um determinado princiacutepio

pode comportar (e frequentemente comporta) um conjunto de concretizaccedilotildees

todas elas ldquojustasrdquo porque conformes ao princiacutepio em causa ou seja conteacutem

uma ldquopluralidade de possibilidades de concretizaccedilatildeordquo265 Assim a criaccedilatildeo de

uma norma inspirada no princiacutepio (a concretizaccedilatildeo do princiacutepio) obriga agrave

escolha de uma dessas possibilidades

Podemos ateacute dizer com J Baptista Machado que as normas

ldquorepresentam [hellip] lsquointerpretaccedilotildeesrsquo do legislador da sua proacutepria conceccedilatildeo de

Direito ou da ideia de Justiccedila a que adererdquo266 isto eacute o legislador elege a

soluccedilatildeo que ele considera mais justa de entre as vaacuterias soluccedilotildees justas que o

valor permite pelo que a norma incorpora a concepccedilatildeo de justiccedila do

legislador

Esta escolha e o juiacutezo de valor que a mesma encerra eacute o momento

poliacutetico do ato legislativo e nela o legislador atua em nome do Povo como

resulta do art 108ordm da nossa Constituiccedilatildeo Tal como acontece na definiccedilatildeo dos

valores constitucionais nas democracias representativas a concretizaccedilatildeo (e

interpretaccedilatildeo) desses valores eacute levada a cabo pelos oacutergatildeos poliacuteticos

263 Karl Larenz Richtiges Recht cit paacutegs 32 e 33 (traduccedilatildeo nossa do castelhano) 264 Karl Larenz Richtiges Recht cit paacuteg 33 265 Karl Larenz Richtiges Recht cit paacuteg 31 266 Introduccedilatildeo hellip cit paacuteg 207

108

(nomeadamente a Assembleia da Repuacuteblica) os quais atuam em nome do

Povo exercendo uma competecircncia poliacutetica267

A escolha feita pelo legislador resulta da ponderaccedilatildeo de vaacuterios aspetos

Num primeiro momento o legislador deve ponderar desde logo o

significado do valor em si o seu conteuacutedo material mas ao mesmo tempo

deve ponderar outros valores igualmente importantes em sede da regulaccedilatildeo

daquela categoria de conflitos de interesse

Por exemplo perante a duacutevida de saber se o proponente deve ou natildeo

poder revogar ou modificar a sua proposta a mera consideraccedilatildeo do princiacutepio

da autonomia privada deveria levar a que se desse uma resposta positiva a tal

questatildeo (como resulta do art 230ordm nordm 2 do Coacutedigo Civil) uma vez que a

proposta soacute estaraacute em linha com os interesses do declarante se prevalecer a

manifestaccedilatildeo mais recente da sua vontade ao mesmo tempo poreacutem a

consideraccedilatildeo do princiacutepio da confianccedila deve levar a que essa revogaccedilatildeo ou

modificaccedilatildeo soacute seja admitida nos casos em que ainda natildeo existam expectativas

consolidadas por parte do destinataacuterio na versatildeo inicial da proposta (e daiacute a

soluccedilatildeo do art 230ordm nordm 1 do Coacutedigo Civil)

Ainda neste primeiro momento a ponderaccedilatildeo dos dois aspetos

mencionados eacute ldquocoloridardquo pelas concepccedilotildees filosoacuteficas poliacuteticas e sociais do

legislador podendo ainda intervir consideraccedilotildees de poliacutetica legislativa eou

ligadas ao momento histoacuterico (como aconteceu nas alteraccedilotildees produzidas no

regime do contrato-promessa em 1980 e 1986 por exemplo)

Ao mesmo tempo o legislador deve levar em conta a necessidade de

assegurar a coerecircncia do sistema (a unidade do sistema juriacutedico de que fala o

art 9ordm do Coacutedigo Civil) evitando contradiccedilotildees com outras normas

(contradiccedilotildees loacutegicas ou teleoloacutegicas) ou com outros valores (contradiccedilotildees

valorativas)

Arriscaria a dizer que a consideraccedilatildeo de todos estes aspetos pesa

essencialmente na busca daquela que na perspetiva do legislador eacute a soluccedilatildeo

justa para certo tipo de conflito de interesses Mas na criaccedilatildeo da norma devem

ainda intervir outros aspetos agora ligados a consideraccedilotildees de seguranccedila

juriacutedica e de justiccedila relativa

267 Eacute tambeacutem por esta razatildeo que a enunciaccedilatildeo de certos princiacutepios em diplomas legais (cfr

notas 14 e 18) aleacutem de inuacutetil pode tornar-se inconveniente se for entendida como um mandato

dado pelo legislador ao tribunal para concretizar esses princiacutepios para aleacutem do direito posto

este mandato natildeo poderaacute deixar de ser considerado uma violaccedilatildeo grosseira do princiacutepio da

separaccedilatildeo de poderes plasmado no art 111ordm da nossa Constituiccedilatildeo

109

Assim num segundo momento o legislador deve ponderar a

exequibilidade da soluccedilatildeo gizada de nada adianta uma norma que em si

mesma eacute um exemplo de justiccedila se depois a mesma se revela de aplicaccedilatildeo

impossiacutevel por razotildees praacuteticas

Por exemplo a soluccedilatildeo mais justa para resolver os conflitos de

interesse relacionados com a capacidade negocial seria talvez submeter todas

pessoas singulares a testes destinados a avaliar a sua maturidade perioacutedicos

ou melhor ainda previamente agrave praacutetica de qualquer ato negocial Ainda que

indiscutivelmente justa esta soluccedilatildeo eacute totalmente inexequiacutevel e qualquer

norma que a consagrasse se tornaria rapidamente letra morta ou pior

paralisaria o traacutefico juriacutedico

Tambeacutem neste segundo momento devem intervir consideraccedilotildees

ligadas agrave proporcionalidade considerando o objetivo prosseguido pelo

legislador (seja uma mera ordenaccedilatildeo da liberdade seja uma intenccedilatildeo

conformadora) bem como a necessidade de natildeo causar perturbaccedilatildeo nos

equiliacutebrios sociais por forma a na medida do possiacutevel preservar a

estabilidade do sistema juriacutedico e concomitantemente do sistema social

particularmente nos casos em que o legislador eacute animado por uma intenccedilatildeo

conformadora da sociedade

Relativamente ao primeiro aspeto pense-se por exemplo nos regimes

da nulidade e da anulabilidade O negoacutecio nulo natildeo produz efeitos nem a

nulidade pode ser sanada porque o que estaacute na base desta invalidade satildeo

razotildees relativas a interesses gerais da comunidade (ou estaacute em causa apenas a

aparecircncia de um negoacutecio) circunstacircncias que impotildeem uma reaccedilatildeo mais

vigorosa da lei Jaacute no caso da anulabilidade estaacute em causa a proteccedilatildeo de

interesses privados circunstacircncia refletida no respetivo regime juriacutedico Na

verdade natildeo soacute o negoacutecio anulaacutevel produz provisoriamente efeitos como estes

apenas poderatildeo ser destruiacutedos pelo tribunal a requerimento do titular do

interesse que a lei visava proteger com a anulabilidade ficando ainda

salvaguardado o direito daquele em confirmar o negoacutecio sanando a

invalidade268

Ou seja o regime juriacutedico de cada um destes tipos de invalidade reflete

uma reaccedilatildeo diferente da lei mais ou menos intrusiva da liberdade individual

segundo os valores que a mesma lei visa salvaguardar

Para o segundo aspeto (estabilidade e previsibilidade) cada vez menos

valorizado numa sociedade em que cada maioria no Parlamento (e cada

Governo que dela emana) pretende reconfigurar a sociedade e os seus

268 Para uma anaacutelise da proporcionalidade como um verdadeiro princiacutepio fundamental de

Direito cfr Antoacutenio Cortecircs Jurisprudecircncia dos Princiacutepios Lisboa 2010 paacutegs 270 e ss

110

equiliacutebrios segundo a sua ideologia poliacutetica ou as modas do momento basta

pensar na importacircncia fundamental da uniformidade de julgados que obriga

(deveria obrigar) a que o legislador no desenho de cada hipoacutetese legal eleja

com criteacuterio os dados juridicamente relevantes para a resoluccedilatildeo da questatildeo de

direito visada na norma desvalorizando outros que embora potencialmente

relevantes para uma soluccedilatildeo justa dos casos aiacute contemplados introduziriam

uma inseguranccedila indesejaacutevel na aplicaccedilatildeo da norma em causa269

Tudo visto fica entatildeo claro que as normas exercem uma funccedilatildeo de

mediaccedilatildeo entre os valores e os concretos conflitos de interesse mediaccedilatildeo essa

exercida em dois sentidos por um lado cada norma traduz uma certa ideia

(conceccedilatildeo) de justiccedila (do legislador) e eacute atraveacutes dela (do enunciado linguiacutestico

contido na norma) que se revela essa ideia de justiccedila por outro lado eacute tambeacutem

atraveacutes da norma que o valor juriacutedico concretizado na mesma adquire

positividade e portanto juridicidade270

Sob o ponto de vista da teacutecnica legislativa a norma descreve na sua

hipoacutetese uma certa categoria de conflito de interesses (ligando-se deste modo

aos concretos conflitos que a mesma norma haacute de resolver quando convocada

pelo tribunal para esse efeito) e na estatuiccedilatildeo associa a esse tipo de conflito

uma soluccedilatildeo que revela a conceccedilatildeo de justiccedila do legislador a qual resulta jaacute

de uma interpretaccedilatildeo que o mesmo levou a cabo dos valores do ordenamento

Eacute desta forma que cada concreto conflito de interesses eacute solucionado

segundo um criteacuterio de justiccedila

3 O primeiro aspeto a considerar no que aos Life Time Contracts diz

respeito eacute que subjacente agrave generalidade dos ldquoprinciacutepiosrdquo identificados pelo

grupo de trabalho parece existir uma ideia de proteccedilatildeo da parte contratual mais

deacutebil

Eacute certo que o relevo dado a esta categoria de contratos parece incidir

mais na dimensatildeo existencial de cada pessoa Luca Nogler e Udo Reifner

referem que Life Time Contracts ldquosatildeo acima de tudo aqueles que asseguram

um lugar para viver (contratos de arrendamento) bens e serviccedilos (contratos de

fornecimento) e rendimento (contratos de trabalho e contratos de

financiamento) o que eacute necessaacuterio para viverrdquo271

269 A velha tensatildeo entre justiccedila e seguranccedila cfr J Baptista Machado Introduccedilatildeohellip cit paacutegs

56 e ss 270 Cfr J Baptista Machado Introduccedilatildeo hellip cit paacutegs 207 e 292 271 Ob cit paacuteg 47

111

Poreacutem a ideia fundamental subentendida no conjunto dos princiacutepios

enunciados pelo grupo de trabalho eacute sem duacutevida a de que nesta categoria de

contratos existe uma parte mais deacutebil carecendo de uma proteccedilatildeo especiacutefica

dada a importacircncia que tais contratos assumem na existecircncia das pessoas em

geral

Tal ideia eacute enunciada de forma clara no quinto princiacutepio

(ldquoNecessidades Baacutesicasrdquo) quando se refere que o ldquofornecimento de bens e

serviccedilos essenciais para necessidades baacutesicas relacionadas com o consumo e

o emprego obriga a levar em conta consideraccedilotildees materiais sociais e

psicoloacutegicas tendo em vista a proteccedilatildeo da parte mais fraca do contrato Uma

regulamentaccedilatildeo rigorosa ou outras regras coletivas devem assegurar um grau

de proteccedilatildeo social adequado em linha com o objeto do contrato a sua duraccedilatildeo

e a sua importacircncia na vida das pessoas em causardquo272

Isso mesmo eacute reafirmado noutros ldquoprinciacutepiosrdquo quando se menciona as

ldquorelaccedilotildees de poderrdquo nos contratos ou se refere a necessidade de ldquoproteger a

confianccedila muacutetuardquo quando se aponta a ldquofinalidade social do contratordquo quando

se exige que os gastos associados a tais contratos sejam ldquoacessiacuteveis e em linha

com os custosrdquo ou que a extinccedilatildeo desses contratos seja ldquosocialmente

responsaacutevelrdquo mais claramente ainda quando relativamente aos contratos que

assegurem um rendimento regular se refere a necessidade de garantir um

ldquoniacutevel miacutenimo de rendimento [hellip] na forma de pagamentos continuados

suficientes para ir ao encontro das necessidades do consumidorrdquo e ainda que

ldquoos riscos sociais de desemprego falta de habitaccedilatildeo e sobre-endividamento

devem ser tidos em conta em todas as formas individuais e coletivas de

contrato considerando as origens sociais da pessoardquo

Podemos dizer que a proteccedilatildeo da parte mais deacutebil do contrato natildeo eacute

uma novidade no nosso ordenamento juriacutedico em vaacuterios ramos do Direito o

nosso legislador tem vindo a ensaiar formas variadas de proteccedilatildeo da parte mais

fraca do contrato ateacute no Direito Civil que continua a ser o ramo do Direito

Privado em que tradicionalmente existe uma maior neutralidade poliacutetica

relativamente a este aspeto

De que forma atua o legislador na interpretaccedilatildeo deste princiacutepio de

proteccedilatildeo da parte mais deacutebil

Na impossibilidade de determinar em cada caso concreto quem eacute a

parte mais fraca e qual a medida justa da proteccedilatildeo a dispensar-lhe o legislador

identifica situaccedilotildees tiacutepicas em que um dos contraentes tende a ter menos poder

negocial social ou econoacutemico seja em termos estatiacutesticos seja pela

interpretaccedilatildeo que o proacuteprio legislador faz da realidade social Eacute o que acontece

272 Ob cit paacutegs 12 e 13

112

com a viacutetima de negoacutecio usuraacuterio com o inquilino nas vaacuterias modalidades de

contrato de arrendamento com o trabalhador com o consumidor com o

pequeno empresaacuterio ou com o promitente-comprador de preacutedios urbanos para

citar os exemplos mais significativos

Num segundo momento o legislador cria normas imperativas que por

um lado visam defender o parte mais deacutebil contra a sua proacutepria fraqueza e

que por outro estabelecem soluccedilotildees visando alterar a partilha de risco que

existiria sem esta preocupaccedilatildeo Por partilha de risco pretendo designar o modo

como satildeo distribuiacutedas pelos contraentes as consequecircncias de certos eventos

natildeo causados pelas partes que afetam negativamente o normal cumprimento

do contrato causando designadamente maior dificuldade em cumprir maior

onerosidade da prestaccedilatildeo degradaccedilatildeo da situaccedilatildeo econoacutemica de uma das

partes (ou de ambas) ou ateacute impossibilidade de cumprimento

Um dos riscos mais importantes nesta categoria dos Life Time

Contracts eacute sem duacutevida o chamado risco normal da vida como sejam por

exemplo o risco de acidente incapacitante doenccedila desemprego perturbaccedilotildees

familiares (separaccedilotildees e divoacutercios com todo o seu cortejo de consequecircncias

negativas) acontecimentos que podem ter efeitos muitiacutessimo adversos para a

capacidade de a pessoa afetada honrar os seus compromissos contratuais

particularmente aqueles que se destinam a perdurar no tempo

Ora algumas das soluccedilotildees apontadas pelo EuSoCo foram jaacute acolhidas

no nosso Direito expressando as preocupaccedilotildees sociais do nosso legislador

civil Eacute o que se passa com a consagraccedilatildeo da possibilidade de extinguir ou

modificar contratos em consequecircncia de alteraccedilotildees do contexto que as partes

natildeo previram e que conduzem a um desequiliacutebrio das prestaccedilotildees (art 437ordm do

Coacutedigo Civil) ou no efeito natildeo retroativo da resoluccedilatildeo do contrato nos

contratos de execuccedilatildeo duradoura na proteccedilatildeo do inquilino no arrendamento

urbano ou ainda na proteccedilatildeo do trabalhador na relaccedilatildeo laboral (ambas algo

atenuadas com as recentes alteraccedilotildees legislativas nestas mateacuterias eacute certo) Eacute o

que acontece tambeacutem com a garantia de acesso a certos bens e serviccedilos

essenciais e com a proteccedilatildeo do consumidor tanto na fase da contrataccedilatildeo como

na fase do cumprimento do contrato com relevo para algumas das mais

recentes medidas adotadas para os contratos de creacutedito agrave habitaccedilatildeo na

sequecircncia da crise econoacutemica de 2008

Aquilo que eacute proposto nos ldquoprinciacutepiosrdquo dos Life Time Contracts eacute

portanto retirar da esfera de risco da parte mais fraca as consequecircncias de

certos eventos que resultam do risco normal da vida e deslocaacute-las para a esfera

de risco do outro contraente

113

4 Parece claro que a proteccedilatildeo da parte mais fraca e o modo como a

mesma eacute prosseguida encontra o seu fundamento na necessidade de defender

a dignidade da Pessoa tanto numa perspetiva formal como numa perspetiva

material Trata-se de proteger de uma forma efetiva o ciacuterculo de direitos

fundamentais e a liberdade de cada indiviacuteduo mas tambeacutem uma integraccedilatildeo

plena na sociedade nomeadamente assegurando na medida do possiacutevel que

cada um(a) tenha a oportunidade de realizar o seu projeto de vida pessoal e

profissional assegurando alguma estabilidade econoacutemica e o acesso a recursos

que permitam a satisfaccedilatildeo de certas necessidades baacutesicas273

Ora dir-se-ia que estas preocupaccedilotildees satildeo legiacutetimas e fazem todo o

sentido na perspetiva de considerar cada um(a) em toda a sua dimensatildeo de

Pessoa incluindo a dimensatildeo existencial Com efeito natildeo podemos perder de

vista que uma regulamentaccedilatildeo do fenoacutemeno contratual que tem como

horizonte apenas a ordenaccedilatildeo da liberdade individual e uma adequada

distribuiccedilatildeo entre as partes dos benefiacutecios e custos encarada numa perspetiva

puramente econoacutemica corre o risco de considerar apenas certas dimensotildees

parciais e portanto redutoras da Pessoa e do proacuteprio objetivo fundamental do

Direito no seu conjunto

Cada pessoa natildeo eacute apenas ldquoo vendedorrdquo ldquoo compradorrdquo ldquoo

empreiteirordquo ldquoo dono de obrardquo o ldquoproprietaacuteriordquo o ldquolocataacuteriordquo o

ldquoprofissionalrdquo ou o ldquoconsumidorrdquo cada pessoa assume pontualmente cada

um desses papeacuteis e muitas vezes vaacuterios desses papeacuteis ao mesmo tempo em

diversos contextos mas nunca podemos dizer que o conjunto desses papeacuteis

sociais define ou esgota cada pessoa

Cada um de noacutes eacute mais do que o conjunto das circunstacircncias que

definem o nosso lugar na sociedade seja a profissatildeo o estado civil a relaccedilatildeo

familiar a condiccedilatildeo de proprietaacuterio ou utilizador Numa perspetiva humanista

cristatilde em linha com a nossa heranccedila cultural uma comunidade de pessoas natildeo

pode ser a mera soma de um conjunto de individualidades ligadas por relaccedilotildees

de troca com colunas de ldquodeverdquo e ldquohaverrdquo assim uma adequada regulaccedilatildeo da

vida em sociedade baseada no respeito muacutetuo numa dimensatildeo global natildeo

pode perder de vista essa realidade

As preocupaccedilotildees expressas nas consideraccedilotildees que serviram de base aos

Life Time Contracts chamam a atenccedilatildeo para aspetos importantes da vida em

sociedade e atingem a proacutepria ideia de Direito enquanto conjunto de valores

e regras que tecircm em vista a ordenaccedilatildeo da vida em sociedade de acordo com

273 Logo no primeiro ldquoprinciacutepiordquo que conteacutem a definiccedilatildeo de Life Time Contracts refere-se a

importacircncia fundamental destes contratos para a autorrealizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e para a sua

participaccedilatildeo na comunidade

114

um criteacuterio de justiccedila e a realidade humana da vida em sociedade natildeo se esgota

em relaccedilotildees de troca

Isto dito importa tambeacutem ter presente os perigos que uma regulaccedilatildeo

demasiado intrusiva da liberdade individual pode gerar nos equiliacutebrios sociais

tendo em conta que as economias das sociedades ocidentais natildeo assentam em

modelos dirigistas mas sim em modelos assentes na liberdade de escolha em

linha aliaacutes com os respetivos modelos de organizaccedilatildeo poliacutetica e social

A questatildeo eacute que ao gizar as normas adequadas a prosseguir um objetivo

de proteccedilatildeo da parte contratual mais deacutebil eacute necessaacuterio identificar o valor

juriacutedico que o fundamenta e encontrar a interpretaccedilatildeo mais razoaacutevel (justa)

desse valor sem perder de vista outros valores igualmente importantes na

prossecuccedilatildeo das finalidades fundamentais do Direito Como jaacute disse antes eacute

necessaacuterio ponderar a coerecircncia do sistema bem como as condiccedilotildees de

exequibilidade oportunidade e proporcionalidade da soluccedilatildeo visada

Eacute tambeacutem muito importante ter a consciecircncia de que a proteccedilatildeo do

contraente mais fraco seraacute prosseguida agrave custa da deslocaccedilatildeo de certos riscos

a maior parte das vezes ligados ao risco normal da vida da esfera daquele a

quem o evento respeita para a esfera de outra pessoa que natildeo o pode gerir ou

controlar e tambeacutem por isso natildeo o quer suportar ou seja a proteccedilatildeo de uma

parte eacute conseguida agrave custa da outra parte (no sentido amplo do termo)

Deste modo independentemente da concepccedilatildeo de justiccedila subjacente agrave

soluccedilatildeo encontrada torna-se ainda necessaacuterio avaliar os efeitos perversos que

a mesma pode ter no sistema social e econoacutemico274 Isto porque num modelo

econoacutemico assente na liberdade individual as pessoas podem definir o limite

dos riscos que estatildeo dispostos a suportar para atingir os seus objetivos

nomeadamente no exerciacutecio de uma atividade profissional ou comercial

Neste sentido uma intervenccedilatildeo legislativa tendo em vista uma

alteraccedilatildeo fundamental do equiliacutebrio das partes em determinados contratos de

bens ou serviccedilos poderaacute ter como consequecircncia um agravamento da

contrapartida exigida por quem fornece esse bem ou serviccedilo na melhor das

hipoacuteteses (para refletir o maior risco em que a parte incorre com a celebraccedilatildeo

do contrato) ou ateacute a necessidade de ser o Estado a assumir certa atividade (e

a inerente socializaccedilatildeo do risco) em virtude de nenhum particular estar

disposto a fazecirc-lo tendo em conta os riscos econoacutemicos envolvidos

Por outro lado no que especialmente diz respeito ao seacutetimo ldquoprinciacutepiordquo

(Dimensatildeo Coletiva e Eacutetica) parece-me natildeo estar em causa um verdadeiro

274 Importa lembrar por exemplo que o congelamento das rendas praticamente levou agrave

extinccedilatildeo do mercado de arrendamento

115

princiacutepio mas sim uma regra com algumas matizes de natureza procedimental

ainda que com oacutebvias repercussotildees a niacutevel material275

Num primeiro passo afirma-se o direito que os ldquoconsumidores e os

trabalhadoresrdquo tecircm de ldquoexigir do Estado o reconhecimento de sistemas

coletivos de representaccedilatildeo (associaccedilotildees de consumidores ou associaccedilotildees

sindicais)rdquo Para aleacutem de um afloramento do princiacutepio da liberdade de

associaccedilatildeo esta menccedilatildeo a um ldquodireito de exigir do Estadordquo remete claramente

para uma norma e natildeo propriamente para um princiacutepio

Depois refere-se que os mesmos consumidores e trabalhadores ldquotecircm o

direito de exigir do Estado o reconhecimento e o respeito pelos sistemas de

valores coletivos como aqueles que satildeo designados pelos conceitos de boa feacute

e de bons costumesrdquo Mais uma vez estaacute em causa o ldquoexigir do Estadordquo um

determinado comportamento que aparentemente deveraacute ser traduzido em

medidas de caraacuteter legislativo destinadas a assegurar que estes sistemas de

valores coletivos se apliquem ldquoem todas as fases da relaccedilatildeo contratual desde

o acesso aos bens e serviccedilos agrave conformaccedilatildeo do contrato agrave sua

adaptaccedilatildeomodificaccedilatildeo e agrave sua extinccedilatildeordquo

Salvo melhor opiniatildeo assim enunciado o ldquoprinciacutepiordquo diria que natildeo

estamos em presenccedila de um verdadeiro pensamento diretor de uma

regulamentaccedilatildeo juriacutedica mas face a algo que resulta da combinaccedilatildeo de uma

verdadeira regra de natureza essencialmente adjetiva (negociaccedilatildeo coletiva

prevalece sobre a negociaccedilatildeo individual) com o recurso a conceitos

indeterminados (boa feacute e bons costumes)

Note-se que este ldquoprinciacutepiordquo natildeo se confunde com o princiacutepio da boa

feacute pelo contraacuterio ele remete para o princiacutepio da boa feacute o qual recorde-se

estaacute consagrado no nosso Direito relativamente agrave fase da contrataccedilatildeo e

cumprimento do contrato (arts 227ordm e 762ordm do Coacutedigo Civil) e eacute ainda

relevante em sede de licitude material do conteuacutedo do contrato no acircmbito das

regulamentaccedilatildeo das claacuteusulas contratuais gerais276

Jaacute o conceito de ldquobons costumesrdquo remete para certos valores morais e

deontoloacutegicos e natildeo propriamente para determinado valor juriacutedico277

A verdade eacute que mais do que verdadeiros princiacutepios de Direito os

ldquoprinciacutepiosrdquo enunciados a propoacutesito dos Life Time Contracts remetem para

275 Uma distinccedilatildeo entre ldquoprinciacutepiordquo enquanto paracircmetro normativo e ldquoregrardquo (e as

dificuldades que a mesma envolve) eacute ensaiada por Antoacutenio Cortecircs ob cit paacutegs 127 e ss 276 Cfr o art 15ordm do Decreto-Lei nordm 44685 de 25 de outubro 277 Cfr por todos L Carvalho Fernandes Teoria Geral do Direito Civil vol II 4ordf ed

Lisboa 2007 paacuteg 199

116

um conjunto de ideias que no seu conjunto ajudam a definir o que possam ser

estes contratos descrevendo as suas carateriacutesticas ou apontam certas regras

(mais normas do que verdadeiros princiacutepios) mais ou menos concretas de

natureza substantiva ou procedimental

Talvez natildeo seja descabido dizer que o princiacutepio fundamental

subjacente aos Life Time Contracts eacute o da proteccedilatildeo da dignidade da Pessoa tal

como ficou dito antes e que o conjunto das 16 regras denominadas

ldquoprinciacutepiosrdquo satildeo jaacute concretizaccedilotildees desse princiacutepio fundamental A ser assim

devemos ter presente que tais concretizaccedilotildees podem natildeo ser politicamente

neutras e mais do isso poderatildeo aqui e ali estar marcadas por uma visatildeo

ideologicamente comprometida estando por isso abertas a discussatildeo

Esta perspetiva natildeo prejudica naturalmente o caraacuteter consensual de

algumas das regras em causa como sejam por exemplo certas normas

relativas agrave extinccedilatildeo dos contratos (deacutecimo primeiro ldquoprinciacutepiordquo mesmo tendo

em conta a necessidade de determinar o que significa entre outras coisas uma

conduta socialmente responsaacutevel) agrave comunicaccedilatildeo e informaccedilatildeo entre as partes

(deacutecimo segundo e deacutecimo terceiro ldquoprinciacutepiosrdquo) e agrave proteccedilatildeo dos dados

pessoais (deacutecimo sexto ldquoprinciacutepiordquo)

Eacute agrave luz destas consideraccedilotildees que o seacutetimo ldquoprinciacutepiordquo deve ser

apreciado

Por princiacutepio natildeo tenho preconceitos (ideoloacutegicos ou outros) contra a

negociaccedilatildeo coletiva quando a mesma eacute levada a cabo dentro de uma quadro

normativo claro e coerente ou seja dentro dos limites da lei criada pelos

oacutergatildeos poliacuteticos da comunidade a quem esta conferiu legitimidade para tal

Recentemente a DECO tem protagonizado a negociaccedilatildeo de condiccedilotildees mais

favoraacuteveis para os consumidores de contratos de fornecimento de bens e

serviccedilos essenciais (e natildeo soacute) tirando justamente partido do facto de atuar por

conta de grupos significativos de consumidores Digamos que desta forma se

consegue equilibrar o peso negocial de cada uma das partes envolvidas na

negociaccedilatildeo e isso eacute beneacutefico para todos os envolvidos e para a sociedade em

geral sob qualquer perspetiva

Poreacutem se a ideia que estaacute na base dessa negociaccedilatildeo coletiva eacute ganhar

peso negocial junto dos poderes puacuteblicos para ldquopermearrdquo a lei aos resultados

da negociaccedilatildeo coletiva entatildeo terei de manifestar a minha total discordacircncia agrave

luz de tudo o ficou dito acima sobre o que significa legislar

Para o poder puacuteblico seraacute sempre confortaacutevel ter grupos sociais

organizados a ldquonegociarrdquo as leis que hatildeo de regular a atividade de tais grupos

(ou parte dela) na medida em que natildeo teraacute de fazer escolhas que o exponham

agrave criacutetica puacuteblica (a coragem natildeo costuma ser um dos atributos dos titulares de

117

cargos puacuteblicos) e sempre se poderaacute desresponsabilizar dos resultados dessa

negociaccedilatildeo

A questatildeo eacute que uma lei raramente diz respeito apenas ao grupo A ou

B Por definiccedilatildeo uma lei diz respeito a toda a comunidade e quem representa

a comunidade satildeo os oacutergatildeos poliacuteticos que a mesma escolheu de acordo com os

mecanismos constitucionais

Por muito que isso possa custar a alguns setores da nossa sociedade os

sindicatos as associaccedilotildees de consumidores as associaccedilotildees de empresaacuterios ou

as organizaccedilotildees profissionais natildeo tecircm legitimidade democraacutetica para legislar

ningueacutem lhes conferiu atraveacutes de sufraacutegio universal e direto legitimidade

para em nome do Povo (de todo o Povo) traduzir em forma de lei uma

determinada ideia de justiccedila enquanto interpretaccedilatildeo de um princiacutepio juriacutedico

fundamental

Estas instituiccedilotildees (a que alguns chamam ldquoorganizaccedilotildees de classerdquo)

estatildeo essencialmente (diria ateacute unicamente) preocupadas com a defesa dos

interesses dos seus associados tal como normalmente resulta dos seus

estatutos e em refletir na lei a proteccedilatildeo desses interesses Por definiccedilatildeo a

procura de leis justas para todos natildeo estaacute no horizonte das suas preocupaccedilotildees

nem se espera que estejam em rigor

Em resultado desta postura de defesa dos interesses de classe perde-se

de vista o essencial Perde-se de vista a justiccedila bem como a ligaccedilatildeo aos valores

juriacutedicos fundamentais perde-se a coerecircncia do sistema (justamente pela

ausecircncia de ligaccedilatildeo aos princiacutepios) e passamos a ter leis que representam o

resultado de uma relaccedilatildeo de forccedila sociopoliacutetica

Quando as leis traduzem apenas uma relaccedilatildeo de forccedila transformam-se

na ldquolei do mais forterdquo e isso natildeo eacute Direito

Os ldquoprinciacutepiosrdquo informadores dos Life Time Contracts devem entatildeo ser

vistos como propostas de regulamentaccedilatildeo inspiradas na proteccedilatildeo da

dignidade da Pessoa que tecircm o meacuterito de trazer para o debate juscientiacutefico

uma questatildeo de indiscutiacutevel importacircncia econoacutemica e social

118

119

A alteraccedilatildeo das circunstacircncias e os life time contracts

Henrique Sousa Antunes

1 ENQUADRAMENTO DO TEMA

Eacute sabido que a natureza dos contratos condiciona a aplicaccedilatildeo dos

princiacutepios e regras contratuais Satildeo diversas as espeacutecies normativas que

disciplinam a relaccedilatildeo entre as partes em razatildeo da natureza unilateral ou

bilateral do contrato do seu caraacutecter instantacircneo ou duradouro da unicidade

ou do fraccionamento das prestaccedilotildees do alcance comutativo ou aleatoacuterio do

negoacutecio da sua dimensatildeo gratuita ou onerosa Tambeacutem na alteraccedilatildeo das

circunstacircncias a caracterizaccedilatildeo eacute relevante para a aplicaccedilatildeo do respectivo

regime

A lei portuguesa prevecirc nos artigos 437ordm a 439ordm do Coacutedigo Civil a

possibilidade da modificaccedilatildeo ou resoluccedilatildeo do contrato por alteraccedilatildeo das

circunstacircncias excepcionando o princiacutepio pacta sunt servanda O regime

parece vocacionado para os contratos duradouros mas abrange tambeacutem os

contratos instantacircneos Neste caso poreacutem a sua aplicaccedilatildeo afigura-se

condicionada pela subsistecircncia de prestaccedilotildees em falta278 O instituto alcanccedila

fundamentalmente os contratos comutativos mas agrave revisatildeo do conteuacutedo do

contrato natildeo se julga imune o contrato aleatoacuterio se a boa feacute assim o impuser279

Eacute neste contexto de acomodaccedilatildeo do regime da resoluccedilatildeo ou

modificaccedilatildeo do contrato por alteraccedilatildeo das circunstacircncias agraves caracteriacutesticas do

contrato afectado que se julga interessante retomar o tema que em texto

recente abordaacutemos entatildeo para apreciar criticamente o direito portuguecircs agrave luz

do direito europeu dos contratos280

O sentido geral da nossa anaacutelise concede agrave boa feacute a margem de

liberdade que a centralidade do recurso a este criteacuterio permite libertando o

julgador da limitaccedilatildeo que a invocaccedilatildeo do requisito da base do negoacutecio

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Catoacutelica Portuguesa 278 Ver por todos Maacuterio Juacutelio de Almeida Costa Direito das Obrigaccedilotildees 12ordf ediccedilatildeo

Coimbra 2009 paacutegs 342 e seguinte 279 Ver por todos Maacuterio Juacutelio de Almeida Costa Direito das Obrigaccedilotildees cit paacutegs 343 e

seguintes 280 A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos contratos in laquoCadernos de Direito

Privadoraquo nordm 47 julhosetembro de 2014 paacutegs 3 e seguintes

120

pressupotildee Agravequele eacute permitida a avaliaccedilatildeo de todas as circunstacircncias mesmo

extracontratuais que em razatildeo da alteraccedilatildeo verificada tornam inexigiacutevel a

prestaccedilatildeo Satildeo circunstacircncias em que as partes fundaram a decisatildeo de contratar

as circunstacircncias existentes ao tempo da vinculaccedilatildeo negocial

independentemente de integrarem a base do negoacutecio Cabe avaliar se no

momento do cumprimento da obrigaccedilatildeo a boa feacute escuda o devedor contra esse

dever Concluiacutemos entatildeo laquoA prevalecircncia da actuaccedilatildeo conjugada da doutrina

da claacuteusula rebus sic stantibus com criteacuterios de gravidade ou razoabilidade

permitiria evitar os equiacutevocos que no direito portuguecircs a associaccedilatildeo do

regime do art 437ordm do CC ao conceito de base negocial previsto no art 252ordm

nordm 2 desse diploma trouxe Lembra-se que segundo a jurisprudecircncia

portuguesa natildeo soacute a situaccedilatildeo econoacutemica ou pessoal do comprador ao tempo

do cumprimento ou em geral os motivos determinantes da vontade parecem

excluiacutedos do regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias como se diversamente

fosse na delimitaccedilatildeo do acircmbito de aplicaccedilatildeo do art 437ordm do CC eacute utilizada

exigecircncia idecircntica agrave do regime do erro sobre os motivos o acordo expresso

das partes sobre a essencialidade do motivo Esta orientaccedilatildeo deixa sem tutela

a alteraccedilatildeo de razotildees extracontratuais de natureza material ou pessoal que

pela sua gravidade merecem essa protecccedilatildeoraquo281

2 O CONCEITO DE LIFE TIME CONTRACTS

A temaacutetica deste coloacutequio na oacuterbita dos life time contracts permite

testar a bondade das nossas conclusotildees a respeito da delimitaccedilatildeo das

circunstacircncias atendiacuteveis por referecircncia agrave restriccedilatildeo que o conceito de base

negocial implica mas tambeacutem acerca do requisito negativo do alcance dos

riscos proacuteprios do contrato

O reconhecimento da existecircncia de contratos que pela natureza das

prestaccedilotildees envolvidas e pela sua duraccedilatildeo se revelam conaturais agrave existecircncia

da pessoa humana serve de fundamento agrave conceptualizaccedilatildeo dos life time

contracts e agrave anaacutelise da sua repercussatildeo em diferentes domiacutenios juriacutedicos

Trata-se de contratos que acompanham a expressatildeo da experiecircncia humana nas

suas vaacuterias dimensotildees e que em razatildeo da sua extensatildeo temporal imprimem

uma marca existencialista que soacute o tempo de uma vida permite Satildeo contratos

que garantem o substrato da vida do indiviacuteduo como o trabalho o

arrendamento os empreacutestimos de longa duraccedilatildeo Na definiccedilatildeo proposta pelo

grupo de trabalho liderado por Luca Nogler e Ugo Reifner (EuSoCo) laquolife

281 Henrique Sousa Antunes A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos contratos

cit paacutegs 20 e seguinte

121

time contracts are long-term social relationships providing goods services

and opportunities for work and income creation They are essential for the

self-realisation of individuals and their participation in society at various

stages in their liferaquo282 Eacute feliz a traduccedilatildeo de Nuno Manuel Pinto Oliveira em

texto que acompanhamos noutros momentos da nossa exposiccedilatildeo283 laquoOs

contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa satildeo relaccedilotildees sociais que

tecircm por objecto proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e

os rendimentos necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo

na vida socialraquo

No nosso entendimento esta categoria contratual justificaria uma outra

conceptualizaccedilatildeo subsidiaacuteria fundada nos reflexos vitaliacutecios de contratos

instantacircneos A comercializaccedilatildeo de bens pessoais como a imagem ou a voz

ou os negoacutecios que tenham por objecto a aquisiccedilatildeo de bens duradouros satildeo

contratos que em medida relevante devem beneficiar da tutela que a

construccedilatildeo de princiacutepios fundamentais procura assegurar aos life time

contracts Estamos perante life time effects contracts

3 O ALCANCE DO PRINCIacutePIO PACTA SUNT SERVANDA

Na regulamentaccedilatildeo geneacuterica dos contratos predomina a perspectiva

relacional da liberdade de conformaccedilatildeo do conteuacutedo e assim da estabilidade

dos direitos e deveres acordados Uma vez nascida a relaccedilatildeo obrigacional o

seu cumprimento soacute muito residualmente pode ser afectado em razatildeo do

princiacutepio pacta sunt servanda Entende-se em geral que a vontade das partes

cria um espaccedilo de reserva que o salvaguarda das vicissitudes que a

socializaccedilatildeo justifica

No direito europeu a utilizaccedilatildeo da compra e venda como paradigma

da harmonizaccedilatildeo das regras contratuais acentua pelo seu caraacutecter instantacircneo

a desconsideraccedilatildeo dos interesses econoacutemicos e sociais que o reflexo

existencial de um contrato explica relevando neste contexto a situaccedilatildeo dos

trabalhadores arrendataacuterios e consumidores enquanto partes de contratos

duradouros

Em tais hipoacuteteses a tutela do creacutedito natildeo pode desconhecer os fins

existenciais que acompanham a prestaccedilatildeo Natildeo se trata de introduzir qualquer

282 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer

Credit Lawraquo (Luca NoglerUdo Reifner ndash eds) The Hague 2014 paacuteg xvii 283 Princiacutepios gerais sobre os contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa

(traduccedilatildeo preliminar para portuguecircs ndash 1 de maio de 2015 documento distribuiacutedo aos

participantes no Coloacutequio)

122

dirigismo contratual de alcance colectivizante mas tatildeo-somente de

reconhecer que se agrave dimensatildeo econoacutemica do contrato acresce um outro

interesse principal relativo agrave dignidade da pessoa humana e assim de

impacto social o direito deve responder de forma ajustada apesar do princiacutepio

pacta sunt servanda

4 A ALTERACcedilAtildeO DAS CIRCUNSTAcircNCIAS NO DIREITO PORTUGUEcircS

A questatildeo eacute em especial significativa acerca da interpretaccedilatildeo dos

requisitos da resoluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo do contrato por alteraccedilatildeo das

circunstacircncias no direito portuguecircs Desde logo e como noutra altura

salientaacutemos eacute preciso romper com a limitaccedilatildeo tradicional agrave base do negoacutecio

As razotildees extracontratuais satildeo frequentemente desconsideradas impedindo

a apreciaccedilatildeo dos factos agrave luz da boa feacute Na verdade se a variaccedilatildeo ocorre em

factos alheios aos pressupostos em que assentou a vontade de ambas as partes

o instituto vecirc a sua aplicaccedilatildeo prejudicada mesmo que a boa feacute aconselhasse a

revisatildeo

Eacute emblemaacutetico do sentido emprestado ao regime juriacutedico portuguecircs o

Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de 23 de janeiro de 2014 (Processo

1117109TVLSBP1S1 Relator Granja da Fonseca) a respeito do pedido

subsidiaacuterio de resoluccedilatildeo de um contrato-promessa de compra e venda de duas

fracccedilotildees imobiliaacuterias por alteraccedilatildeo das circunstacircncias pessoais e econoacutemicas

dos promitentes-compradores laquoDiferentemente do erro em que a base do

negoacutecio eacute unilateral respeitando exclusivamente ao errante na alteraccedilatildeo das

circunstacircncias a mesma eacute bilateral respeitando simultaneamente aos dois

contraentes (ie que se produza uma alteraccedilatildeo anormal das circunstacircncias em

que ambas as partes fundaram a decisatildeo de contratar) (hellip) De onde decorre

tout court que a alteraccedilatildeo das circunstacircncias pessoais dos contraentes eacute

insusceptiacutevel de preencher o instituto Designadamente a invocada

ldquodiminuiccedilatildeo significativa do poder de compra dos autores e a situaccedilatildeo de

desemprego em que se encontra a autora desde outubro de 2009rdquo Afloramento

aliaacutes da proibiccedilatildeo da sua invocaccedilatildeo como fundamento para exigir qualquer

reduccedilatildeo desconto ou abatimento da diacutevida ou dilaccedilatildeo da data do seu

vencimento como decorre do beneficium competentiae ou ne egeant do direito

romanoraquo Eacute ainda salientado que sem prejuiacutezo da aplicaccedilatildeo do entendimento

tradicional da teoria da base do negoacutecio excluindo pois a relevacircncia dos

factos considerados a exigecircncia de imprevisibilidade vedaria o pedido de

resoluccedilatildeo do contrato com os fundamentos invocados laquo(hellip) o nosso Supremo

Tribunal tem vindo a entender que nas situaccedilotildees de crise a alteraccedilatildeo relevante

carece ainda de ser anormal requisito ligado agrave imprevisibilidade pois que

sendo a alteraccedilatildeo normal as partes podiam tecirc-la previsto e acautelado na

123

conclusatildeo do contrato as suas consequecircncias (hellip) Ora as alteraccedilotildees da taxa

de juro e de esforccedilo o desemprego e a desvalorizaccedilatildeo da moeda mais a mais

desacompanhada da invocaccedilatildeo das concretas circunstacircncias de vida dos

autores agrave data da outorga dos contratos-promessas natildeo satildeo fundamentos

ligados agrave ideia de imprevisibilidaderaquo284

Eacute outra a liccedilatildeo do direito europeu que adoptando a perspectiva da

teoria da claacuteusula rebus sic stantibus permite submeter agrave anaacutelise de um criteacuterio

de razoabilidade circunstacircncias que embora alheias agrave definiccedilatildeo do objecto

contratual tecircm implicaccedilotildees numa dimensatildeo existencial da parte laquo(A

irrelevacircncia do conceito de base negocial) eacute o caminho dos instrumentos

internacionais mencionados A determinaccedilatildeo da alteraccedilatildeo das circunstacircncias

por referecircncia ao momento do cumprimento possibilita a consideraccedilatildeo de

factos que se tornaram essenciais depois da celebraccedilatildeo do contrato

designadamente no contexto da chamada ldquogrande base negocialrdquo ou razotildees

diversas da desproporccedilatildeo econoacutemica e assim alargar o acircmbito dos negoacutecios

abrangidos Estabelece-se um paralelismo com as razotildees da impossibilidade

de cumprimento permitindo entatildeo julgar que embora o requisito da

afectaccedilatildeo do objecto da prestaccedilatildeo distinga os regimes da impossibilidade e da

alteraccedilatildeo das circunstacircncias os factos que os motivam divergem da base

negocialraquo285

5 A ALTERACcedilAtildeO DAS CIRCUNSTAcircNCIAS NO DIREITO PORTUGUEcircS Agrave

LUZ DAS REFLEXOtildeES SOBRE LIFE TIME CONTRACTS AS

CIRCUNSTAcircNCIAS ATENDIacuteVEIS

A abordagem seguida no estudo sobre life time contracts a respeito das

circunstacircncias atendiacuteveis parece-nos equiacutevoca e porventura estranhamente

errada ao arrepio das opccedilotildees tomadas nos Princiacutepios Unidroit relativos aos

Contratos Comerciais Internacionais nos Principles of European Contract

Law (PECL) e no Draft Common Frame of Reference que neste contexto se

afiguram bem mais generosos286 As diferentes versotildees linguiacutesticas do estudo

que motiva esta reflexatildeo embora em sentidos natildeo necessariamente

convergentes acomodam a teoria da base do negoacutecio em eventual prejuiacutezo do

beneficiaacuterio da prestaccedilatildeo existencial Por outro lado no que excede a base do

284 Pode ser consultado nas bases de dados juriacutedico-documentais do Instituto de Gestatildeo

Financeira e Equipamentos da Justiccedila IP 285 Henrique Sousa Antunes A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos contratos

cit paacutegs 11 e seguinte 286 Ver Henrique Sousa Antunes A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos

contratos cit paacutegs 3 e seguintes

124

negoacutecio a proposta eacute injustificadamente limitada a circunstacircncias materiais

ou econoacutemicas

Cita-se a versatildeo inglesa laquo10 Adaptation If the social and economic

circumstances upon which a life time contract is based have changed

significantly since the contract was entered into or if material circumstances

from which the parties derived have arisen that are found to be at variance

with its original situation to such an extent that the social nature of the

contract is jeopardised and if the parties would not have entered into the

contract or would have entered into it on different terms had they foreseen this

change adaptation of the contract may be required if taking into account all

the circumstances of the specific case and in particular the contractual or

statutory allocation of risk and the fundamental obligation of a human being

one of the parties cannot reasonably be expected to continue to comply with

the contract without variation of its terms Collective regulation shall take

precedence over individual adaptationraquo287

Na traduccedilatildeo de Nuno Manuel Pinto Oliveira (laquo10 Adaptaccedilatildeo ou

modificaccedilatildeo do contratoraquo) laquo101 Se as circunstacircncias soacutecio-econoacutemicas

pressupostas pelas partes como fundamento da conclusatildeo do contrato natildeo se

verificarem havendo uma grave divergecircncia entre a realidade e a

representaccedilatildeo de que as partes partiram o conteuacutedo dos contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa deve ser adaptado ou modificado 102 A

divergecircncia pode referir-se agraves circunstacircncias presentes ou agraves circunstacircncias

futuras (error in futurum) e deve ser tatildeo grave que se as partes tivessem uma

representaccedilatildeo exacta da realidade natildeo teriam concluiacutedo nenhum contrato ou

teriam concluiacutedo um contrato de tipo ou de conteuacutedo diferente 103 Ao

apreciar-se a gravidade da divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo

deve atender-se ao fim do contrato agrave distribuiccedilatildeo legal ou contratual do risco

e ao significado social da relaccedilatildeo 104 O conteuacutedo do contrato soacute deve ser

adaptado ou modificado desde que a subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual sem

qualquer alteraccedilatildeo ou modificaccedilatildeo seja inexigiacutevel 105 Ao avaliar-se a

exigibilidade ou inexigibilidade da subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual deve

atender-se designadamente aos deveres fundamentais de uma pessoa

humana 106 O consumidor ou o trabalhador devem estar em condiccedilotildees de

cumprir os seus deveres fundamentais como por exemplo o dever de

assistecircncia aos seus familiares assegurando-lhes alimento vestuaacuterio e

habitaccedilatildeo 107 As regulamentaccedilotildees colectivas alcanccediladas atraveacutes dos

sistemas de representaccedilatildeo dos interesses dos consumidores e dos

287 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer

Credit Lawraquo cit paacuteg xix

125

trabalhadores devem ter prioridade sobre os resultados de uma adaptaccedilatildeo ou

de uma modificaccedilatildeo individualraquo

O juiacutezo que agora se faz eacute ainda mais discordante se considerarmos

que na anaacutelise das especificidades dos life time contracts o grupo de trabalho

(EuSoCo) olhou para as relaccedilotildees obrigacionais no seu plano primaacuterio de

desenvolvimento ou seja entre as partes Eacute paradigmaacutetico o princiacutepio relativo

ao reflexo da dimensatildeo humana dessas relaccedilotildees no exerciacutecio dos direitos e

deveres correspondentes laquo2 Human Dimension The subject matter of life time

contracts is real-life circumstances The role of the law governing them is to

frame the power relationships of those contracts in terms of human

development so that on-going co-operation rather than the formation of the

contract lies at the heart of the contratual relationship Personal relations

(such as the family) have to be taken into accountraquo288 Na traduccedilatildeo de Nuno

Manuel Pinto Oliveira (laquo2 Dimensatildeo humanaraquo) laquo21 O ponto central do

regime dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa deve ser o

indiviacuteduo na sua concreta realidade material e moral 22 O direito deve

preocupar-se em disciplinar a conclusatildeo do contrato e as relaccedilotildees de

cooperaccedilatildeo entre as partes conformando-as para proteger e para promover o

desenvolvimento da pessoa humana 23 Em especial o direito deve

preocupar-se em garantir que o desenvolvimento da pessoa humana natildeo seja

nem comprometido nem sequer deformado por relaccedilotildees de poder 24 Ao

fazecirc-lo deve ter em conta que o desenvolvimento de cada indiviacuteduo pressupotildee

relaccedilotildees pessoais particularmente significativas entre as quais estatildeo as

relaccedilotildees familiaresraquo

Se a existecircncia da pessoa eacute afectada na dimensatildeo primaacuteria referida

pouco interessa saber se a alteraccedilatildeo das circunstacircncias integra a base negocial

Eis o sentido que se procura tambeacutem emprestar ao direito portuguecircs Eacute

verdade que a abordagem do Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila antes

citado tomava por referecircncia a prestaccedilatildeo de trabalho remunerado nas

implicaccedilotildees que as suas vicissitudes tecircm noutras vinculaccedilotildees da pessoa

divergindo pois da perspectiva do estudo coordenado por Nogler e Reifner

A questatildeo analisa-se poreacutem do mesmo modo nos dois planos considerados

Desrespeita a dignidade humana pretender que os demais negoacutecios em

que o indiviacuteduo eacute parte satildeo imunes agrave alteraccedilatildeo das circunstacircncias existentes ao

tempo em que as partes celebraram life time contracts ao abrigo da

relatividade dos contratos (artigo 406ordm nordm 2 do Coacutedigo Civil) Fundando as

razotildees que justificam proteger a relaccedilatildeo duradoura nos benefiacutecios que essa

relaccedilatildeo traz agrave existecircncia da pessoa eacute a relaccedilatildeo de causalidade que determina o

288 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer

Credit Lawraquo cit paacuteg xvii

126

contaacutegio das vicissitudes aos proveitos que aquela relaccedilatildeo duradoura permitia

Lembra-se que na definiccedilatildeo de life time contracts a dimensatildeo reflexa dos

efeitos permitidos pelo contrato eacute nuclear laquoThey are essential for the self-

realisation of individuals and their participation in society at various stages

in their liferaquo289 Na traduccedilatildeo de Nuno Manuel Pinto Oliveira recorda-se laquoOs

contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa (hellip) tecircm por objecto

proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos

necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialraquo

O regime dos artigos 437ordm a 439ordm do Coacutedigo Civil constitui lei que

excepciona a relatividade dos contratos pois a nosso ver a necessidade de

valoraccedilatildeo da manutenccedilatildeo do contrato sob o prisma da boa feacute exclui o conceito

de base negocial Eacute esta avaliaccedilatildeo que condiciona a decisatildeo sobre a

estabilidade da relaccedilatildeo obrigacional Como tambeacutem na jurisprudecircncia

portuguesa se salienta laquo(hellip) o direito das obrigaccedilotildees eacute um direito de

cooperaccedilatildeo social o negoacutecio juriacutedico visa realizar determinada cooperaccedilatildeo

entre os indiviacuteduos nele interferentes Daqui resulta que o negoacutecio deixaraacute de

produzir os seus efeitos tiacutepicos se factos supervenientes tornarem impossiacutevel

o miacutenimo de cooperaccedilatildeo nele visado Na determinaccedilatildeo e concretizaccedilatildeo desse

miacutenimo estaacute o princiacutepio da boa feacute Eacute ele que orienta todo o artigo 437ordm

envolvendo uma certa atipicidade A base do negoacutecio na altura da publicaccedilatildeo

do nosso Coacutedigo Civil era jaacute na Alemanha uma foacutermula vazia (hellip)raquo (Acoacuterdatildeo

do Supremo Tribunal de Justiccedila de 11 de marccedilo de 1999 Processo 15899

Relator Torres Paulo)290

Haacute uma eficaacutecia irradiante das vicissitudes dos contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa humana nas condiccedilotildees em que essa existecircncia

se desenvolve ou se expressa Assim justifica-se que num plano secundaacuterio

de desenvolvimento das relaccedilotildees obrigacionais apreciadas se situe a afectaccedilatildeo

de outros contratos se a boa feacute ou outro criteacuterio equivalente o legitimar As

vicissitudes nos life time contracts reforccedilam pois a adopccedilatildeo do criteacuterio da

claacuteusula rebus sic stantibus na aplicaccedilatildeo do artigo 437ordm do Coacutedigo Civil

Entre os princiacutepios desenhados para os life time contracts encontra-se

a fundaccedilatildeo desta tese Escreve-se sobre contratos relacionados laquo4 Linked

contracts Life time contracts are embedded in a network of linked contracts

to which the law must have regard when legal questions fall to be decidedraquo291

Na traduccedilatildeo de Nuno Manuel Pinto Oliveira (laquo4 Contratos coligadosraquo) laquoOs

289 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer

Credit Lawraquo cit paacuteg xvii 290 Pode ser consultado nas bases de dados da Colectacircnea de Jurisprudecircncia 291 In laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer

Credit Lawraquo cit paacuteg xvii

127

contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa integram-se em redes

de contratos ligados entre si O legislador e o juiz devem apreciar e resolver

os problemas por si suscitados considerando sistematicamente a ligaccedilatildeo entre

todos os contratos integrados na rederaquo

Eacute claro que na relaccedilatildeo entre outros contratos e os contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa podemos encontrar niacuteveis diversos de

dependecircncia No contrato de concessatildeo de creacutedito os contratos associados ao

objecto ou agrave actividade financiados estatildeo na oacuterbita contratual daquele Diverso

eacute o grau de dependecircncia entre os contratos que o salaacuterio de uma actividade

laboral remunera e a relaccedilatildeo de trabalho do devedor Neste caso a ausecircncia de

determinaccedilatildeo da finalidade da prestaccedilatildeo cumprida pela entidade empregadora

torna a ligaccedilatildeo entre o contrato de trabalho e as actividades juriacutedico-

econoacutemicas que o trabalhador desenvolve numa relaccedilatildeo indirecta Resta saber

se a teleologia em que se desenvolve a doutrina dos life time contracts tem a

amplitude suficiente para abranger os dois tipos de dependecircncia assinalados

A resposta parece-nos afirmativa

Em resumo as vicissitudes dos contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa reflectem-se nos contratos com aqueles relacionados

directa ou indirectamente como alteraccedilotildees relevantes nos termos do artigo

437ordm do Coacutedigo Civil A diferenciaccedilatildeo entre os planos primaacuterio e secundaacuterio

daqueles contratos natildeo eacute contudo despreziacutevel como veremos de seguida

6 A ALTERACcedilAtildeO DAS CIRCUNSTAcircNCIAS NO DIREITO PORTUGUEcircS Agrave

LUZ DAS REFLEXOtildeES SOBRE LIFE TIME CONTRACTS O RISCO

Deve reconhecer-se que uma malha menos apertada se justifica para a

relevacircncia da alteraccedilatildeo das circunstacircncias no contexto dos proacuteprios contratos

duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa Referimo-nos em especial ao

requisito negativo de a alteraccedilatildeo natildeo estar coberta pelos riscos proacuteprios do

contracto Julgamos assim questionaacutevel a opccedilatildeo tomada na definiccedilatildeo dos

princiacutepios aplicaacuteveis aos life time contracts Lembra-se a passagem relevante

do princiacutepio 10 sobre adaptation laquo(hellip) taking into account all the

circumstances of the specific case and in particular the contractual or

statutory allocation of risk and the fundamental obligation of a human being

()raquo Na traduccedilatildeo citada de Nuno Manuel Pinto Oliveira (laquo10 Adaptaccedilatildeo ou

modificaccedilatildeo do contratoraquo) laquo103 Ao apreciar-se a gravidade da divergecircncia

entre a realidade e a representaccedilatildeo deve atender-se ao fim do contrato agrave

distribuiccedilatildeo legal ou contratual do risco e ao significado social da relaccedilatildeoraquo

Exemplifiquemos a cessaccedilatildeo do contrato de trabalho eacute uma

circunstacircncia atendiacutevel na ponderaccedilatildeo da estabilidade dos negoacutecios celebrados

pelo indiviacuteduo com terceiros o agravamento dos encargos com um

128

empreacutestimo destinado a financiar a compra de uma casa eacute ponderaacutevel a

respeito da manutenccedilatildeo do respectivo contrato-promessa de aquisiccedilatildeo Em

qualquer dos casos as questotildees parecem enquadraacuteveis na aplicaccedilatildeo do artigo

437ordm do Coacutedigo Civil implicando a ponderaccedilatildeo do risco assumido pelo

interessado

Diversamente num contrato de creacutedito agrave habitaccedilatildeo adquirida a casa e

cessada portanto a relaccedilatildeo juriacutedica estabelecida com o vendedor a

legitimidade do exerciacutecio do direito de creacutedito pela instituiccedilatildeo financeira eacute

indissociaacutevel da dimensatildeo existencial do bem que o financiamento facultou e

a instituiccedilatildeo conhece Assim o incumprimento das prestaccedilotildees pelo aumento

das taxas de juro deve ser apreciado na perspectiva das consequecircncias que os

meios facultados ao credor para a tutela do seu direito tecircm na vida do devedor

A tal juiacutezo deve permanecer alheia a imputaccedilatildeo do risco legal ou contratual

ao arrepio do que a aplicaccedilatildeo do artigo 437ordm do Coacutedigo Civil determinaria

Eacute considerando este uacuteltimo enquadramento que se lecirc entre os

princiacutepios aplicaacuteveis aos life time contracts laquo15 Exclusion The social risks

of unemployment homelessness and over-indebtedness must be taken into

account in both the individual and the collective forms of the contract with due

regard to its social origin and in line with public lawraquo Na traduccedilatildeo de Nuno

Manuel Pinto Oliveira (laquo15 Miacutenimo de participaccedilatildeo na vida socialraquo) laquo151

O consumidor ou o trabalhador natildeo pode ser privado de um miacutenimo de

participaccedilatildeo na vida social 152 No momento da conformaccedilatildeo individual e

colectiva como no momento da interpretaccedilatildeo dos contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa deve considerar-se adequadamente os riscos

de exclusatildeo social da pessoa do consumidor ou do trabalhador 153 No

momento da conformaccedilatildeo como no momento da interpretaccedilatildeo do contrato

deve considerar-se designadamente os riscos de falta de emprego de falta de

habitaccedilatildeo ou de sobreendividamento relacionando-os com as suas causas

soacutecio-econoacutemicas 154 Os princiacutepios e as regras de direito privado por que

se pretende prevenir o perigo de exclusatildeo social devem ser completados pelos

princiacutepios e pelas regras de direito puacuteblicoraquo A ideia tem reflexo em medidas

avulsas do legislador inclusivamente o portuguecircs Referem-se

designadamente os regimes estabelecidos nas Leis nordms 572012 582012 e

592012 de 9 de novembro reforccedilando a protecccedilatildeo dos mutuaacuterios de contratos

de creacutedito agrave habitaccedilatildeo e no Decreto-Lei nordm 582013 de 8 de Maio afastando

o regime geral da mora no cumprimento das obrigaccedilotildees em diacutevidas do

beneficiaacuterio de uma operaccedilatildeo de creacutedito

A resposta deve ser no entanto mais abrangente Encontra-se na

doutrina que sobre os life time contracts se pronuncia o reconhecimento da

insuficiecircncia do regime da resoluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo do contrato por alteraccedilatildeo

das circunstacircncias na determinaccedilatildeo de um remeacutedio satisfatoacuterio para os

129

problemas que as vicissitudes naquele acircmbito colocam laquo(hellip) it could be

argued that when a debtor becomes unemployed or suffers an increase in the

interest rates applicable to the finance agreement or is affected by a global

economic crisis such as the current one the ldquostatus quordquo of the contract has

been breached The contract should therefore no longer be binding upon the

parties by application of the ldquorebus sic stantibusrdquo clause and the prejudiced

party would be entitled to amendment or termination of the contractual

relationship The ldquorebus sic stantibusrdquo clause therefore would allow the ex

post or retrospective amendment of the terms and conditions initially agreed

upon in the contract in order to rebalance the consideration resulting from it

However the lack of statutory recognition in the majority of legal systems ()

and a doctrinal foundation based on equity principles coupled with a

restrictive jurisprudential interpretation puts into question its operative

effectivenessraquo292

Em nossa opiniatildeo falta uma norma sobre a inexigibilidade da

prestaccedilatildeo entre os princiacutepios identificados no estudo editado por Luca Nogler

e Udo Reifner Na verdade na sua ausecircncia a alteraccedilatildeo das circunstacircncias fica

aprisionada pela assunccedilatildeo dos riscos proacuteprios do contrato

Exemplifique-se com o direito portuguecircs (artigo 437ordm do Coacutedigo

Civil) verifica-se uma precedecircncia loacutegica do criteacuterio do risco relativamente

ao criteacuterio da boa feacute A parte que assumiu o risco da alteraccedilatildeo das

circunstacircncias estaacute impedida de invocar a boa feacute em seu benefiacutecio Haacute uma

incompatibilidade natural entre a imputaccedilatildeo ao declarante da lesatildeo e o

reconhecimento de que a manutenccedilatildeo do contrato ofende gravemente o

princiacutepio da boa feacute Alguma doutrina admite ainda assim que

episodicamente a boa feacute prevaleccedila sobre a assunccedilatildeo do risco em razatildeo da

especial gravidade da alteraccedilatildeo para o lesado Neste sentido leia-se Almeida

Costa laquoNatildeo se exclui no entanto a possibilidade da ocorrecircncia de situaccedilotildees

excepcionais que apontem para a orientaccedilatildeo oposta visto que tambeacutem deve

ter-se presente o apelo que eacute feito aos princiacutepios da boa feacute Tudo residiraacute em

demonstrar riscos que excedam essa aacutelea normal definida supletivamente no

artigo 796ordm De qualquer modo apenas se coloca o problema a respeito da

292 Juana Pulgar A Contractual Approach to Over-Indebtedness Rebus Sic Stantibus Instead

of Bankruptcy in laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and

Consumer Credit Lawraquo cit paacuteg 534 Ver ainda Geraint Howells Change of Circumstances

in Consumer Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call for the

Maintenance of Sector Specific Rules in laquoLife Time Contracts Social Long-term Contracts

in Labour Tenancy and Consumer Credit Lawraquo cit paacutegs 460 e seguintes

130

revisatildeo e nunca da resoluccedilatildeo do contrato ou seja com vista a uma reparticcedilatildeo

equitativa dos danos pelas partesraquo293

A introduccedilatildeo de uma regra de inexigibilidade da prestaccedilatildeo permitiria

tratar a alteraccedilatildeo das circunstacircncias em contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa com a dulcificaccedilatildeo que a natureza desses contratos

justifica Retoma-se aqui a proposta de Nuno Manuel Pinto Oliveira que

merece o nosso aplauso Escreve laquoO Coacutedigo Civil poderia e porventura

deveria conter um artigo (p ex um art 790ordm-A) em que se dissesse o

seguinte ldquoSe a prestaccedilatildeo eacute excessivamente difiacutecil em tais condiccedilotildees que seria

gravemente contraacuterio agrave boa feacute reclamar o cumprimento pode o devedor

exonerar-se da obrigaccedilatildeo ou obter a modificaccedilatildeo destardquo O adveacuterbio

gravemente circunscreveria a aplicaccedilatildeo da regra aos casos em que a actuaccedilatildeo

do direito de creacutedito excedesse de forma evidente (hellip) os limites da boa feacute

deixando a descoberto o enlace entre os casos de dificuldade excessiva e de

abuso do direitoraquo294

Uma claacuteusula de inexigibilidade subtrairia a alteraccedilatildeo das

circunstacircncias ao procedimento de avaliaccedilatildeo do risco submetendo de

imediato a apreciaccedilatildeo da referida alteraccedilatildeo ao criteacuterio da boa feacute Esse parece-

nos ser o sentido que a legislaccedilatildeo portuguesa deveraacute seguir acomodando a

soluccedilatildeo que na actualidade tatildeo-soacute o recurso a argumentos de salvaguarda

permitem

A intervenccedilatildeo da lei que impute o risco ao lesado em contrato essencial

agrave existecircncia da pessoa pode estar ferida de inconstitucionalidade em razatildeo da

tutela da dignidade humana das condiccedilotildees de que a realizaccedilatildeo humana

concreta depende laquoA Constituiccedilatildeo confere uma unidade de sentido de valor

e de concordacircncia praacutetica ao sistema de direitos fundamentais E ela repousa

na dignidade humana O princiacutepio da dignidade da pessoa humana eacute pois a

referecircncia axial de todo o sistema de direitos fundamentais Pelo menos de

modo directo e evidente os direitos liberdades e garantias pessoais e os

direitos econoacutemicos sociais e culturais comuns tecircm a sua fonte eacutetica na

dignidade da pessoa de todas as pessoas Mas quase todos os outros direitos

ainda quando projectados em instituiccedilotildees remontam tambeacutem agrave ideia de

protecccedilatildeo e desenvolvimento das pessoas e a copiosa extensatildeo do elenco dos

direitos fundamentais das garantias institucionais e das tarefas do Estado natildeo

deve fazer perder de vista esse referencialraquo295 Tratando-se de uma claacuteusula de

293 Direito das Obrigaccedilotildees cit paacuteg 347 294 Princiacutepios de Direito dos Contratos Coimbra 2011 paacuteg 571 295 Jorge MirandaAntoacutenio Cortecircs Anotaccedilatildeo ao artigo 1ordm da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica

Portuguesa in laquoConstituiccedilatildeo Portuguesa Anotadaraquo (coord por Jorge MirandaRui Medeiros)

2ordf ediccedilatildeo Coimbra 2010 paacuteg 82

131

assunccedilatildeo voluntaacuteria do risco crecirc-se que o regime do artigo 280ordm nordm 2 do

Coacutedigo Civil fundamenta a sua ilicitude (laquoEacute nulo o negoacutecio contraacuterio agrave ordem

puacuteblica ou ofensivo dos bons costumesraquo)

Entretanto reconheccedila-se que em geral o reflexo das vicissitudes dos

contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa noutros contratos da

mesma natureza ou diversa eacute apreciado segundo a determinaccedilatildeo imediata da

boa feacute sem a triagem preacutevia dos pressupostos relativos agraves circunstacircncias em

que as partes fundaram a decisatildeo de contratar e ao risco proacuteprio do contrato

(artigo 437ordmdo Coacutedigo Civil)

Na verdade em relaccedilatildeo agraves circunstacircncias contemporacircneas do contrato

que poreacutem se distanciam da sua base negocial falta em regra pela sua

natureza qualquer declaraccedilatildeo preacutevia da lei ou das partes a respeito da

imputaccedilatildeo do deacutebito da lesatildeo agrave esfera juriacutedica do proacuteprio lesado Em sentido

diferente do que sucede com a alteraccedilatildeo verificada no domiacutenio da base

negocial o risco eacute um risco de vida que por essa razatildeo deve ser apreciado

segundo o criteacuterio da boa feacute296

Admite-se contudo que a previsatildeo da lei ou a estipulaccedilatildeo das partes

possa dispor validamente sobre o risco da verificaccedilatildeo de factos

extracontratuais Nesse caso a disposiccedilatildeo parece imune aos argumentos de

ilicitude atraacutes invocados considerando a relatividade dos contratos Eis o

campo de aplicaccedilatildeo natural do princiacutepio sobre adaptaccedilatildeo ou modificaccedilatildeo

aplicaacutevel aos life time contracts que agora se propotildee

7 NOTAS FINAIS

Em suma meacuterito seja reconhecido aos promotores desta abordagem

que reclama a especificidade dos life time contracts A Luca Nogler e Udo

Reifner os parabeacutens pela publicaccedilatildeo de estudo tatildeo oportuno Sirva esta

intervenccedilatildeo como um desafio um repto que convoca o legislador e o aplicador

do direito portugueses mas espera-se que tambeacutem estimule os nossos colegas

estrangeiros a uma renovada ambiccedilatildeo na conceptualizaccedilatildeo dos princiacutepios

aplicaacuteveis aos contratos essenciais agrave existecircncia da pessoa humana A adopccedilatildeo

da claacuteusula rebus sic stantibus e a imunidade da apreciaccedilatildeo da alteraccedilatildeo das

circunstacircncias agrave imputaccedilatildeo legal ou contratual do risco satildeo as propostas

fundamentais que deixamos agrave reflexatildeo dos interessados Muito obrigado

296 Ver Henrique Sousa Antunes A alteraccedilatildeo das circunstacircncias no direito europeu dos

contratos cit paacutegs 14 e seguintes

132

133

As funccedilotildees do Direito da insolvecircncia no acircmbito de life

time contracts

(Breve reflexatildeo)

Catarina Serra

SUMAacuteRIO 1 Life time contracts 2 Contrato de creacutedito e insolvecircncia

3 O processo de insolvecircncia como via para o exerciacutecio de um direito ao

cumprimento (e ao natildeo cumprimento) das obrigaccedilotildees 4 A extinccedilatildeo dos

contratos O instituto da exoneraccedilatildeo do passivo restante 41 Nota histoacuterica

42 A exoneraccedilatildeo do passivo restante como causa extraordinaacuteria de extinccedilatildeo

das obrigaccedilotildees 43 O princiacutepio do cumprimento dos contratos e as razotildees que

justificam a exoneraccedilatildeo do passivo restante 44 Os abusos de exoneraccedilatildeo do

passivo restante 45 Sugestotildees de ajustamentos ao regime da exoneraccedilatildeo do

passivo restante

1 LIFE TIME CONTRACTS

Na preparaccedilatildeo desta intervenccedilatildeo aleacutem das naturais dificuldades

relacionadas com a falta de tempo deparei-me com as dificuldades do tema

central do Coloacutequio life time contracts

A primeira coisa que salta agrave vista eacute o facto de as palavras life e time

aparecerem separadas

Seria ldquocontratos vitaliacuteciosrdquo (ou contratos para toda a vida) uma

traduccedilatildeo adequada da expressatildeo life time contracts

Lendo o sub-tiacutetulo e as palavras introdutoacuterias dos Professores Luca

Nogler e Udo Reifner no livro homoacutenimo coordenado por ambos297 percebe-

O texto que se apresenta corresponde agrave intervenccedilatildeo oral efectuada no Coloacutequio Internacional

ldquoEm torno de Life Time Contractsrdquo realizado no dia 15 de maio de 2015 na Escola de Direito

da Universidade do Minho com a coordenaccedilatildeo cientiacutefica de Nuno Manuel Pinto Oliveira e

Benedita Mac Crorie Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho 297 LUCA NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life Time contracts ndash Social Long-term Contracts in

Labour Tenancy and Consumer Credit Law The Netherlands Eleven International

Publishing 2014

134

se que natildeo ldquoLife timerdquo natildeo se refere ndash ou natildeo se refere exclusivamente ndash agrave

duraccedilatildeo da relaccedilatildeo contratual

Aleacutem de os contratos vitaliacutecios serem contraacuterios a um princiacutepio geral

do direito (o princiacutepio segundo o qual ningueacutem pode ficar indefinidamente

vinculado a uma obrigaccedilatildeo disposto em Portugal no art 280ordm nordm 1ordm do

Coacutedigo Civil)298 verifica-se que o que estaacute em causa satildeo contratos em que a

vida e o tempo aparecem como dois objectos distintos da relaccedilatildeo contratual

ou seja os contratos que tecircm em vista a satisfaccedilatildeo de necessidades baacutesicas

como um lugar para viver (contrato de locaccedilatildeo) o acesso a produtos e serviccedilos

(contrato de fornecimento) e o acesso a rendimentos (contrato de trabalho e

contrato de creacutedito)299 300

A noccedilatildeo de tempo natildeo eacute poreacutem completamente indiferente agrave

caracterizaccedilatildeo destes contratos No quadro dos sistemas de civil law eles satildeo

geralmente reconduzidos agrave categoria dos contratos de execuccedilatildeo continuada

(ininterrupta ou perioacutedica) Um dos traccedilos essenciais destes contratos eacute

portanto o de que o seu cumprimento integral depende da duraccedilatildeo301

2 CONTRATO DE CREacuteDITO E INSOLVEcircNCIA

Na obra dos Professores Luca Nogler e Udo Reifner o contrato de

creacutedito aparece como fonte de uma relaccedilatildeo contratual necessaacuteria e

complementar que permite seja disponibilizar rendimentos agrave medida das

298 No quadro das obrigaccedilotildees duradouras ldquo[a] faculdade de denuacutencia resulta como a doutrina

corrente assinala da natildeo admissibilidade da existecircncia de vinculaccedilotildees negociais eternas ou

excessivamente duradouras que satildeo consideradas contraacuterias agrave ordem puacuteblica entendimento

que se funda no art 280ordm do CCiv (hellip)rdquo [cfr LUIacuteS CARVALHO FERNANDES Teoria Geral

do Direito Civil vol II Lisboa Universidade Catoacutelica Portuguesa 2007 (4ordf ed) p 476] 299 Cfr LUCA NOGLER UDO REIFNER ldquoIntroduction The new dimension of life time in the

law of contracts and obligationsrdquo in LUCA NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life Time contracts

ndash Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law cit pp 1-6 300 Na definiccedilatildeo dos Principles of Life Time Contracts life time contracts ou em portuguecircs

ldquocontratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoardquo satildeo ldquoas relaccedilotildees sociais que tecircm por

objecto proporcionar ao indiviacuteduo os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos

necessaacuterios para a sua auto-realizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialrdquo [cfr ldquoPrinciples

of Life Time Contractsrdquo in LUCA NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life Time contracts ndash Social

Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law cit xvii-xxx (traduccedilatildeo

preliminar de Nuno Manuel Pinto Oliveira)] 301 Cfr LUCA NOGLER UDO REIFNER ldquoIntroduction The new dimension of life time in the

law of contracts and obligationsrdquo cit pp 2-3

135

necessidades (creacutedito ao consumo empreacutestimos garantidos sistema de

pensotildees e reformas apoios agrave educcedilatildeo contas bancaacuterias serviccedilos de

pagamentos) seja aceder directamente a certos bens ou serviccedilos (habitaccedilatildeo

transporte luz aacutegua gaacutes) mediante pagamento diferido ou perioacutedico302 303

Adopte-se esta definiccedilatildeo e pense-se na impossibilidade de

cumprimento que pode afectar o consumidor dos rendimentos ou dos bens e

serviccedilos ndash a impossibilidade de cumprimento do dever de retribuir as

vantagens que o acesso agravequeles rendimentos e agravequeles bens e serviccedilos

representam (pagar o correspectivo)

Se essa impossibilidade de cumprimento for uma impossibilidade

qualificada existe insolvecircncia

Torna-se entatildeo necessaacuterio saber o que fazer com os contratos de

creacutedito

A dar-se-lhes sem mais continuidade existe o risco de que estes

contratos originariamente pensados para durar mas ainda assim

limitadamente se transmutem em obrigaccedilotildees vitaliacutecias pesando sobre o

sujeito ldquopara o resto da vidardquo (debt for life304)

A questatildeo seraacute entatildeo a de como controlar (limitar ou atenuar) estes

efeitos

A funccedilatildeo do Direito da insolvecircncia nestes contextos eacute oacutebvia Ele

disponibiliza formas para a adaptaccedilatildeo da relaccedilatildeo contratual agrave nova situaccedilatildeo do

devedor ou seja para modificar ou fazer cessar os contratos que natildeo podem

ser cumpridos pelo devedor nos termos inicialmente acordados305

Tendo em consideraccedilatildeo contudo que estaacute em causa o confronto dos

direitos de creacutedito com direitos absolutos de tipo pessoal (direitos de

personalidade) pergunta-se seratildeo o Direito da insolvecircncia e as formas por ele

disponibilizadas adequados a estes desiacutegnios

302 Cfr LUCA NOGLER UDO REIFNER ldquoIntroduction The new dimension of life time in the

law of contracts and obligationsrdquo cit p 6 303 O contrato de creacutedito assume entatildeo nesta uacuteltima modalidade a forma de um life time

contract impliacutecito que emerge no quadro de outros life time contracts 304 Para usar a expressatildeo de PETER COY [ldquoStudent Loans Debt for Liferdquo Business Week 2012

18 (disponiacutevel em httpwwwbloombergcombwarticles2012-09-06student-loans-debt-

for-life)] 305 Natildeo houve infelizmente tempo para tratar os instrumentos vocacionados para a

renegociaccedilatildeo dos contratos no caso de situaccedilatildeo econoacutemica difiacutecil ou insolvecircncia de pessoa

singular nomeadamente no quadro da lei portuguesa o plano de pagamentos aos credores e

o plano de revitalizaccedilatildeo

136

3 O PROCESSO DE INSOLVEcircNCIA COMO VIA PARA O EXERCIacuteCIO DE UM

DIREITO AO CUMPRIMENTO (E AO NAtildeO CUMPRIMENTO) DAS

OBRIGACcedilOtildeES

Eacute um facto incontestaacutevel que o acolhimento do instituto da exoneraccedilatildeo

do passivo restante por todas as leis da insolvecircncia europeias306 aumentou

significativamente o nuacutemero de casos em que o processo de insolvecircncia se

abre por iniciativa do devedor e em geral o nuacutemero de processos de

insolvecircncia307

As razotildees para isso satildeo evidentes

Mas a verdade eacute que jaacute muito antes de existir o atractivo da exoneraccedilatildeo

o poder de acccedilatildeo judicial do devedor era associado sobretudo pela doutrina

italiana a um direito ndash ao direito de cumprir308

306 A uacuteltima lei foi a espanhola que pela Ley 242013 de 27 de septiembre de apoyo a los

emprendedores y su internacionalizacioacuten introduziu a figura da ldquoliberacioacuten o remisioacuten de las

deudas insatisfechas en el concurso de acreedores de persona fiacutesicardquo A disciplina comporta

poreacutem uma importante diferenccedila face agrave disciplina prevista no Direito portuguecircs (e na maioria

dos ordenamentos) a exoneraccedilatildeo depende de o devedor ter conseguido satisfazer ateacute ao

encerramento do processo de insolvecircncia aleacutem dos creacuteditos sobre a massa e dos creacuteditos sobre

a insolvecircncia que beneficiem de garantias pelo menos 25 dos creacuteditos comuns 307 Cfr LUTHER ZEIGLER ldquoThe Fraud Exception to Discharge in Bankruptcy A Reappraisalrdquo

Stanford Law Review 1986 38 (3) p 891 308 Como se assinalou haacute algum tempo no plano formal ou processual a apresentaccedilatildeo agrave

insolvecircncia suscitou intensa discussatildeo A hipoacutetese (inicial) de considerar a iniciativa do

devedor como exerciacutecio de poder executivo que se apoiava na concepccedilatildeo (redutora) da

falecircncia como uma execuccedilatildeo (o devedor era o sujeito passivo do processo e a sentenccedila de

declaraccedilatildeo de falecircncia equivalia a uma sentenccedila de condenaccedilatildeo) foi excluiacuteda dada a

impossibilidade processual de se requerer uma execuccedilatildeo contra si proacuteprio Surge entatildeo a tese

do poder de acccedilatildeo judicial defendida pese embora com fundamentos e desenvolvimentos

diversos por GUSTAVO BONELLI [Commentario al Codice di Commercio volume VIII (Del

fallimento) Parte I Milano Vallardi sd p 154] ANTONIO BRUNETTI (Diritto fallimentare

italiano Roma SEFI 1932 p 121) CARLO DAVACK (La natura giuridica del fallimento

Padova CEDAM 1940 pp 178 e s) RENZO PROVINCIALI (Manuale di diritto fallimentare

I Milano Giuffregrave 1962 p 345) GIORGIO DE SEMO (Diritto fallimentare Padova CEDAM

1961 p 135) e PIERO PAJARDI [Manuale di diritto fallimentare (a cura di Manuela Bocchiola

e Alida Paluchowski) Milano Giuffregrave 2002 pp 84 e s] Todos eles associaram mais ou

menos explicitamente este direito de acccedilatildeo ao direito de cumprir e ao facto de o processo de

falecircncia ser o uacutenico meio que permite ao devedor insolvente exonerar-se das suas obrigaccedilotildees

Em Portugal a tese da apresentaccedilatildeo do devedor agrave falecircncia como exerciacutecio do poder de acccedilatildeo

foi perfilhada por vaacuterios autores como por exemplo PEDRO DE SOUSA MACEDO (Manual de

direito das falecircncias volume I Coimbra Almedina 1964 pp 315 e 316)

137

Estaraacute de facto o poder de acccedilatildeo do devedor associado ao direito de

cumprir ndash e logicamente ao (simeacutetrico) direito de natildeo cumprir309

Em defesa da tese da associaccedilatildeo do poder de acccedilatildeo do devedor ao

direito de cumprir dizia-se que tal como nas situaccedilotildees normais o devedor

pode paralisar a acccedilatildeo executiva cumprindo a obrigaccedilatildeo (exercendo o direito

de cumprir) nas situaccedilotildees em que o devedor estaacute insolvente portanto

impossibilitado de cumprir (de exercer o direito de cumprir) ele tem em

alternativa o poder de escolher o tipo de execuccedilatildeo mais adequada agrave sua

situaccedilatildeo patrimonial especial e ao oacutenus de respeitar a par conditio creditorum

O devedor exerceria em ambos os casos o seu direito de cumprir

expressamente tutelado na lei atraveacutes de institutos como a mora do credor

A admissibilidade desta tese eacute duvidosa

E a razatildeo fundamental para isso eacute numa palavra a de que o processo

de insolvecircncia natildeo assegura o cumprimento

Na grande maioria dos casos o processo de insolvecircncia eacute encerrado

permanecendo embora ainda muitas obrigaccedilotildees por cumprir O devedor

manteacutem-se pois vinculado e pode ser executado a qualquer momento por

estas obrigaccedilotildees

Mesmo quando o pedido de declaraccedilatildeo de insolvecircncia eacute acompanhado

por um pedido de exoneraccedilatildeo do passivo restante a exoneraccedilatildeo do devedor eacute

sempre soacute um resultado possiacutevel e limitado do processo de insolvecircncia ou seja

primeiro natildeo eacute garantido que a exoneraccedilatildeo seja concedida310 e mesmo quando

ela eacute concedida deixa sempre algumas categorias de obrigaccedilotildees incoacutelumes311

309 Enquanto direito ou faculdade o direito de cumprir envolve a possibilidade de deixar de

cumprir 310 Excepto no caso de pessoas juriacutedicas que em princiacutepio se extinguem apoacutes o encerramento

do processo de insolvecircncia em sistema nenhum o processo de insolvecircncia garante o devedor

um meio de exoneraccedilatildeo Assim eacute tambeacutem no Direito portuguecircs [cfr art 233ordm nordm 1 als c) e

d) do CIRE] 311 Da exoneraccedilatildeo satildeo ressalvados certos creacuteditos Desde logo implicitamente os creacuteditos

sobre a massa insolvente (cfr nordm 1 do art 245ordm do CIRE a silentio) Depois expressamente

os creacuteditos por alimentos as indemnizaccedilotildees devidas por factos iliacutecitos dolosos praticados pelo

devedor que hajam sido reclamados nessa qualidade os creacuteditos por multas coimas e outras

sanccedilotildees pecuniaacuterias por crimes ou contra-ordenaccedilotildees e os creacuteditos tributaacuterios [cfr art 245ordm

nordm 2 als a) b) c) e d) do CIRE]

138

4 A EXTINCcedilAtildeO DOS CONTRATOS O INSTITUTO DA EXONERACcedilAtildeO DO

PASSIVO RESTANTE

a NOTA HISTORICA

Pode pensar-se que a exoneraccedilatildeo eacute uma aquisiccedilatildeo recente mas a

verdade eacute que tanto quanto se sabe a primeira referecircncia agrave discharge aparece

no Direito inglecircs logo no iniacutecio seacuteculo XVIII mais precisamente num estatuto

de 1705312

Isto significa que a sua emergecircncia tem fundamentos mais antigos do

que as ideias recentes sobre o impacto da sociedade de consumo e a

necessidade de uma poliacutetica protectora (paternalista) dos consumidores313

Haacute sinais de que o destinataacuterio da discharge era inicialmente o

comerciante que colaborasse no processo de pagamento aos credores e nem

tanto o comerciante desafortunado ou infeliz mas o certo eacute que a lei acabou

por se fixar na imagem do ldquoinsolvente viacutetima das circunstacircnciasrdquo

O acircmbito dos beneficiaacuterios da discharge foi ao longo do tempo sendo

sucessivamente alargado ateacute que em 1861 se estendeu em definitivo a todos

os sujeitos314

b A EXONERACcedilAtildeO DO PASSIVO RESTANTE COMO CAUSA

EXTRAORDINAacuteRIA DE EXTINCcedilAtildeO DAS OBRIGACcedilOtildeES

Em rigor a exoneraccedilatildeo do passivo restante qualifica-se como uma

causa de extinccedilatildeo das obrigaccedilotildees extraordinaacuteria relativamente ao elenco de

causas tipificado geralmente nas lei civil

No Coacutedigo Civil portuguecircs existe um cataacutelogo (ainda que incompleto)

dos factos extintivos aleacutem do cumprimento do qual constam a daccedilatildeo em

cumprimento a consignaccedilatildeo em depoacutesito a compensaccedilatildeo a novaccedilatildeo a

remissatildeo e a confusatildeo (cfr arts 837ordm a 874ordm do Coacutedigo Civil)

312 Isto apesar de se ter mantido a pena de prisatildeo para o comerciante falido ateacute 1869 (e a pena

de morte para os casos de falecircncia fraudulenta) [cfr VANESSA FINCH (Corporate insolvency

law mdash Perspectives and principles Cambridge 2009 (second edition) p 11] 313 Na realidade em particular nas aacutereas do Direito com repercussatildeo econoacutemica (Direito

comercial Direito das sociedades Direito da insolvecircncia) parece existir a premissa de que as

pessoas singulares se opotildeem agraves pessoas juriacutedicas e se encontram face a estas em permanente

situaccedilatildeo de fragilidade 314 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law

Review 19901991 43 pp 109-110

139

Deste cataacutelogo resulta mais ou menos claro que os casos em que as

obrigaccedilotildees se extinguem por uma causa que natildeo seja o cumprimento satildeo

poucos e os casos em que as obrigaccedilotildees se extinguem sem nenhuma

contrapartida para o credor satildeo raros (em rigor apenas a remissatildeo entra nessa

categoria)

c O PRINCIacutePIO DO CUMPRIMENTO DOS CONTRATOS E AS

RAZOtildeES QUE JUSTIFICAM A EXONERACcedilAtildeO DO PASSIVO

RESTANTE

A convicccedilatildeo geral eacute a de que a liberaccedilatildeo do devedor deve ficar

dependente do consentimento do credor (soacute ele podendo abdicar do direito a

exigir a satisfaccedilatildeo do seu interesse) e natildeo pode ser judicialmente decidida315

Independentemente do que aconteccedila depois da celebraccedilatildeo do contrato e da

constituiccedilatildeo do devedor na obrigaccedilatildeo (das circunstacircncias supervenientes que

tornem o seu cumprimento mais oneroso) pacta sunt servanda Caso contraacuterio

criar-se-ia uma desconfianccedila generalizada quanto agrave forccedila vinculativa dos

contratos316

O que estaacute na base desta convicccedilatildeo eacute uma visatildeo de tipo individualista

(individualistic) tiacutepica de quem raciocina no estrito quadro do Direito dos

contratos

A esta visatildeo sobreveio ndash e foi-se impondo ndash uma visatildeo de tipo

comunitarista (communitarian) tiacutepica de um alargamento da reflexatildeo ao

Direito da insolvecircncia

Em defesa desta visatildeo argumenta-se que o ldquoganho socialrdquo (net social

gain) alcanccedilado com a exoneraccedilatildeo do devedor compensa os prejuiacutezos

associados agrave ldquoexpropriaccedilatildeordquo dos credores317

315 Este eacute justamente o caso da exoneraccedilatildeo em que os credores satildeo destituiacutedos dos seus

direitos de creacutedito independentemente de consentimento Como se diz no Acoacuterdatildeo do Tribunal

da Relaccedilatildeo do Porto de 23 de outubro de 2008 (relatora ANA PAULA LOBO) (disponiacutevel em

httpwwwdgsipt) ldquoa oposiccedilatildeo dos credores ao deferimento do pedido de exoneraccedilatildeo do

passivo restante natildeo eacute fundamento legal para o indeferimento desse pedidordquo Esta eacute a razatildeo

pela qual vem sendo sustentado que o acesso agrave exoneraccedilatildeo eacute um verdadeiro direito potestativo

do devedor (cfr por todos JOSEacute GONCcedilALVES FERREIRA A exoneraccedilatildeo do passivo restante

Coimbra Coimbra Editora 2013 pp 69-70 e p 123) 316 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law

Review 19901991 43 p 99 317 Exclui-se desde jaacute qualquer possibilidade de associar a exoneraccedilatildeo a um ldquoganho

econoacutemicordquo ou seja de ver na exoneraccedilatildeo um mecanismo adicional para a satisfaccedilatildeo dos

credores Natildeo se adere assim a tese de LUIacuteS MENEZES LEITAtildeO [Direito da Insolvecircncia

140

A ideia encontra-se enraiacutezada desde haacute muito tempo no Direito norte-

americano e associa-se a uma outra a de que natildeo faz sentido (eacute mesmo injusto)

exigir o cumprimento em situaccedilotildees de excessivo sacrifiacutecio318

Para este entendimento teraacute sido decisiva de iniacutecio a ldquoideologia

burguesardquo reclamando o reconhecimento dos riscos inerentes agrave vida

econoacutemica e da mais-valia que representa a restituiccedilatildeo de um comerciante agrave

actividade produtiva

Coimbra Almedina 2009 (2ordf ed) pp 307-308] que afirma que a exoneraccedilatildeo natildeo representa

grande prejuiacutezo para os credores que passam a ter uma dupla oportunidade de satisfaccedilatildeo

durante o processo de insolvecircncia e durante o chamado ldquoperiacuteodo de cessatildeordquo em que o

rendimento disponiacutevel do devedor eacute afectado durante cinco anos ao pagamento dos creacuteditos

Na realidade com a exoneraccedilatildeo cada credor fica novamente sujeito a um rateio sendo que

ainda por cima quanto aos credores da insolvecircncia o que se reparte eacute tatildeo-soacute o remanescente

do pagamento aos credores da massa insolvente [cfr art 241ordm nordm 1 al d) do CIRE] Ora se

natildeo houvesse exoneraccedilatildeo natildeo haveria rateio A satisfaccedilatildeo do credor dependeria apenas da sua

diligecircncia processual e da data de prescriccedilatildeo do seu creacutedito o que natildeo poucas vezes

representaria um aumento significativo do prazo para agir executivamente contra o devedor

O periacuteodo de cessatildeo natildeo eacute aleacutem do mais suficientemente longo para que seja frequente o

devedor reconstituir-se in bonis e pagar dentro desse periacuteodo a todos os que permaneceram

seus credores 318 Apesar do Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer Protection Act of 2005 tornando

mais difiacutecil o acesso agrave discharge subsiste ainda hoje no Direito norte-americano uma

tendecircncia para a desresponsabilizaccedilatildeo do devedor ndash ldquotheory of irresponsabilityrdquo como alguns

lhe chamam (cfr BRIAN ROTHSCHILD ldquoThe illogic of no limits on bankruptcyrdquo Emory

Bankruptcy Developments Journal 2007 2 p 485) ndash para a imputaccedilatildeo do desastre

econoacutemico aos riscos normais da vida como o aparecimento de uma doenccedila que obriga a

despesas meacutedicas excepcionais o despedimento suacutebito ou ateacute o divoacutercio A generosidade do

regime legal para com o devedor serviria para compensar o baixo niacutevel de assistecircncia puacuteblica

Justamente na cerimoacutenia de assinatura do Bankruptcy Abuse Prevention and Consumer

Protection Act of 2005 reconhecia o Presidente George W Bush ldquo[o]ur Bankruptcy laws are

an important part of the safety net of Americardquo Neste contexto o Bankruptcy Abuse

Prevention and Consumer Protection Act of 2005 foi apontado como uma medida de reduccedilatildeo

da ldquorede de seguranccedila socialrdquo (cfr ROBERT M LAWLESS ELIZABETH WARREN ldquoLos cambios

de la normativa concursal estadounidense en 2005 reduciendo parte da la red de seguridadrdquo

Revista de Derecho Concursal y Paraconcursal 2007 6 pp 405 e ss) Sobre as causas da

conformaccedilatildeo da mentalidade norte-americana neste sentido cfr TERESA A SULLIVAN

ELIZABETH WARREN JAY LAWRENCE WESTBROOK ldquoLess Stigma or More Financial Distress

An Empirical Analysis of the Extraordinary Increase in Bankruptcy Filingsrdquo 2006 (disponiacutevel

em httpssrncomabstract=903355 ou httpdxdoiorg102139ssrn903355) e RAFAEL

EFRAT ldquoBankruptcy stigma plausible causes for shifting normsrdquo Emory Bankruptcy

Developments Journal 2006 2 pp 481 e s

141

Gradualmente contudo os comerciantes deram lugar aos

consumidores na posiccedilatildeo de beneficiaacuterios da protecccedilatildeo da lei da

insolvecircncia319 320

Alega-se depois que quando o devedor estaacute insolvente a perda eacute

repartida entre os credores e natildeo se repercute apenas em um ou alguns deles

Em teoria apesar de opostas as duas abordagens natildeo satildeo

inconciliaacuteveis O Direito dos contratos natildeo pode permanecer agrave margem dos

interesses da comunidade nem tatildeo-pouco o Direito da insolvecircncia pode

desconsiderar completamente as legiacutetimas expectativas dos credores

(HILLMAN)321 322

Cumpre contudo fazer uma pergunta essencial Satildeo os argumentos

que suportam esta segunda visatildeo argumentos irrestritamente vaacutelidos

Em primeiro lugar que ganho social eacute esse que alegadamente

compensa os danos decorrentes do natildeo cumprimento das obrigaccedilotildees

Diga-se desde jaacute que tudo indica tratar-se de uma mera convicccedilatildeo de

ganho social ndash a convicccedilatildeo de que eacute melhor para a sociedade reintegrar o

319 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law

Review 19901991 43 pp 110-112 320 Diga-se de passagem que a limitaccedilatildeo da responsabilidade dos comerciantes haacute-de ter

contribuiacutedo para que eles tivessem deixado de estar no centro das atenccedilotildees 321 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law

Review 19901991 43 pp 101-102 e pp 129-136 Para uma anaacutelise da tese (proacutexima) do

Direito da insolvecircncia como legislaccedilatildeo social (social legislation) cfr TODD J ZYWICKI

ldquoBankruptcy Law as Social Legislationrdquo Texas Review of Law and Politics 2000-2001 5 pp

395 e ss 322 Segundo alguns a funccedilatildeo do Direito da insolvecircncia eacute precisamente a de compensar as

limitaccedilotildees do Direito dos contratos [cfr UDO REIFNER ldquoResponsible bankruptucyrdquo in LUCA

NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life Time contracts ndash Social Long-term Contracts in Labour

Tenancy and Consumer Credit Law cit p 553] O autor pergunta-se no entanto se o Direito

da insolvecircncia pode cumprir esta funccedilatildeo Conclui que o Direito da insolvecircncia soacute perderaacute a

sua carga destrutiva e poderaacute contribuir eficazmente para o desenvolvimento econoacutemico geral

quando o Direito privado e o Direito puacuteblico se aproximarem e o Direito da insolvecircncia se

fundir com o Direito do creacutedito (a liquidaccedilatildeo e a recuperaccedilatildeo devem ser princiacutepios separados

e este uacuteltimo deve ser integrado no Direito do creacutedito) e for definido por um novo

entendimento de relaccedilotildees creditiacutecias responsaacuteveis e de longo-prazo (ob cit p 555 e pp 570-

571)

142

devedor na sua posiccedilatildeo produtiva do que deixaacute-lo acorrentado a diacutevidas que

ele natildeo tem a possibilidade de pagar323

O argumento do ldquoganho socialrdquo padece depois de um problema

quanto aos pressupostos Pressupondo a irrelevacircncia dos credores o

argumento deveraacute ser pelo menos restringido eacute melhor para a sociedade se

dela se excluiacuterem os credores nomeadamente as instituiccedilotildees de creacutedito que

fazem da concessatildeo de creacutedito profissatildeo

Concede-se no entanto que as vantagens da exoneraccedilatildeo do passivo

natildeo se esgotam no favor debitoris Haacute outras vantagens de alcance mais geral

Entre elas incluem-se por exemplo na possibilidade de a exoneraccedilatildeo

funcionar como um estiacutemulo agrave diligecircncia processual do devedor324 e um

mecanismo para a uniformizaccedilatildeo dos efeitos do encerramento do processo de

insolvecircncia325

Mais importante do que isto eacute o facto de a exoneraccedilatildeo (ou a

possibilidade de recurso a ela) ter um impacto positivo na economia Ela

provoca uma contracccedilatildeo no creacutedito e por causa dela reduzem-se os casos de

insolvecircncia Quanto mais restrito eacute o acesso ao creacutedito (por ser mais ldquoexigenterdquo

quem o concede e por isso ser mais ldquoresponsaacutevelrdquo quem o pede) menos seratildeo

os riscos de insolvecircncia (MICHELOTTI)326

Quanto ao segundo argumento ele tatildeo-pouco eacute isento de reservas

Eacute verdade que no processo de insolvecircncia haacute uma preocupaccedilatildeo

essencial de justiccedila distributiva A aplicaccedilatildeo do princiacutepio par conditio

creditorum visa precisamente assegurar a justa distribuiccedilatildeo do sacrifiacutecio isto

eacute que se constitui entre os credores uma ldquocomunhatildeo nas perdasrdquo

323 Cfr ROBERT A HILLMAN ldquoContract excuse and bankruptcy dischargerdquo Stanford Law

Review 19901991 43 p 100 324 Cfr ALESSANDRO NIGRO ldquolsquoPrivatizzazionersquo delle procedure concorsuali sie ruolo delle

bancherdquo Banca Borsa e Titoli di Credito 2006 p 365 e VALERIO SANGIOVANNI ldquoLa

domanda di apertura del procedimento dinsolvenza nel diritto tedescordquo Il Fallimento 2006

5 p 504 325 Estaacute agora mais diluiacuteda por exemplo a substancial diferenccedila entre a insolvecircncia de uma

sociedade comercial (de qualquer pessoa juriacutedica) e a insolvecircncia de um comerciante (de

qualquer pessoa humana) Se com a sujeiccedilatildeo ao processo de insolvecircncia se extinguia (se

extingue) a sociedade e consequentemente se tornava (se torna) inviaacutevel a satisfaccedilatildeo dos

creacuteditos remanescentes agora eacute possiacutevel suceder coisa idecircntica ndash atraveacutes da exoneraccedilatildeo ndash no

caso do comerciante em nome individual [cfr FRANCO MICHELOTTI ldquoLrsquoesdebitazione ex artt

142 143 144 L Fallrdquo p 3 (disponiacutevel em httpwwwdottcommroit)] 326 Cfr FRANCO MICHELOTTI ldquoLrsquoesdebitazione ex artt 142 143 144 L Fallrdquo p 8

(disponiacutevel em httpwwwdottcommroit)

143

(Verlustgemeinschaft)327 ou uma ldquocomunhatildeo no riscordquo

(Risikogemeinschaft)328

Eacute verdade tambeacutem por outro lado que o princiacutepio par conditio

creditorum deve ser entendido em sentido material se o justo eacute o igual e o

injusto o desigual quando as pessoas natildeo satildeo iguais natildeo devem receber partes

iguais (ARISTOacuteTELES329)

Atentando todavia na disciplina da exoneraccedilatildeo e em particular nos

seus efeitos percebe-se que haacute creacuteditos que natildeo satildeo atingidos ou que satildeo

ressalvados do efeito exoneratoacuterio (na lei portuguesa por exemplo os creacuteditos

tributaacuterios) Em relaccedilatildeo a eles existe de facto o risco de eles se transmutarem

em ldquocontratos vitaliacuteciosrdquo pesando como se disse sobre o sujeito ldquopara o resto

da vidardquo

Eacute duvidoso que esta soluccedilatildeo possa ser imputada agrave (ou justificada com

base na) dimensatildeo material do princiacutepio da igualdade e nessa medida

considerada compatiacutevel com a ideia acima referida de justa distribuiccedilatildeo das

perdas330 Ela eacute ateacute susceptiacutevel de comprometer na praacutetica a utilidade da

exoneraccedilatildeo uma vez que reduz consideravelmente o alcance da exoneraccedilatildeo

327 Cfr OTHMAR JAUERNIG Zwangsvollstreckungs- und Insolvenzrecht Muumlnchen Verlag

CH Beck 1996 p 172 Diz o A que o ponto de saiacuteda do direito da falecircncia eacute a ruiacutena

econoacutemica do devedor a ordem juriacutedica reage determinando que todos os credores quando

natildeo possam obter plena satisfaccedilatildeo devem ser satisfeitos de forma paritaacuteria enfim concebe

uma espeacutecie de comunhatildeo de destino e de perdas (Schicksals-und Verlustgemeinschaft)

nenhum credor por se antecipar tem direito a receber mais do que os outros 328 Cfr HANS HEILMANN STEFAN SMID Grundzuumlge des Insolvenzrechts Eine Einfuumlhrung in

die Grundfragen des Insolvenzrechts und die Probleme seiner Reform Muumlnchen Verlag CH

Beck 1994 p 16 329 Cfr ARISTOacuteTELES Moral a Nicoacutemaco (traduccioacuten del griego por Patricio Azcaacuterate

introduccioacuten de Luis Castro Nogueira) Madrid Espasa Calpe 1993 pp 209-210 330 Se a subtracccedilatildeo ao efeito exoneratoacuterio dos creacuteditos por alimentos das indemnizaccedilotildees

devidas por factos iliacutecitos dolosos praticados pelo devedor que hajam sido reclamados nessa

qualidade e dos creacuteditos por multas coimas e outras sanccedilotildees pecuniaacuterias por crimes ou contra-

ordenaccedilotildees ndash que nem sempre existem e quando existem satildeo pouco significativos na

totalidade dos creacuteditos ndash ainda se pode considerar justificada natildeo obstante em grau variaacutevel

com base nos interesses que estatildeo na base da sua constituiccedilatildeo (presumivelmente o caraacutecter

alimentar das obrigaccedilotildees de alimentos a especial censurabilidade das condutas geradoras de

obrigaccedilotildees de indemnizaccedilatildeo e a especial natureza dos interesses em jogo nos casos de sanccedilotildees

pecuniaacuterias por violaccedilatildeo do Direito Penal ou do Direito de mera ordenaccedilatildeo social) jaacute a dos

creacuteditos tributaacuterios (que satildeo aleacutem do mais muito frequentes e tecircm na praacutetica uma grande

extensatildeo) pode discutir-se se natildeo seraacute uma generosidade excessiva da lei para com o Estado e

conduziraacute a uma discriminaccedilatildeo injustificada no universo dos credores

144

como instrumento de extinccedilatildeo da generalidade das diacutevidas do devedor

(MENEZES LEITAtildeO)331

d OS ABUSOS DE EXONERACcedilAtildeO DO PASSIVO RESTANTE

Na generalidade dos ordenamentos europeus a exoneraccedilatildeo estaacute ainda

circunscrita ao devedor que a mereccedila ndash ao ldquodevedor honesto e

desafortunadordquo332 pressupondo a inexistecircncia de causas de censurabilidade da

conduta do devedor anterior e posteriormente agrave declaraccedilatildeo de insolvecircncia333 334

O periacuteodo de cessatildeo aparece de facto uma espeacutecie de ldquoperiacuteodo

experimentalrdquo335 e a exoneraccedilatildeo como uma espeacutecie de ldquoliberdade condicional

por bom comportamentordquo336 Diz-se aliaacutes por isso que natildeo eacute rigorosamente

331 Cfr LUIacuteS DE MENEZES LEITAtildeO Coacutedigo da Insolvecircncia e da Recuperaccedilatildeo de Empresas

Anotado Coimbra Almedina 2009 (5ordf ed) p 246 332 A categoria tem origem na expressatildeo francesa ldquodeacutebiteur malheureux et de bonne foirdquo usada

na codificaccedilatildeo napoleoacutenica para qualificar o devedor (natildeo comerciante) admitido agrave cessatildeo de

bens prevista no Code Civil (cfr ALAIN BEacuteNABENT ldquoLa question de la bonne foi dans les

proceacutedures collectivesrdquo Gazette du Palais 2003 nordms 57-58 p 37) Tambeacutem foi amplamente

acolhida nos paiacuteses anglo-saxoacutenicos sob a foacutermula ldquohonest but unfortunate debtorrdquo (cfr por

exemplo BRIAN ROTHSCHILD ldquoThe illogic of no limits on bankruptcyrdquo Emory Bankruptcy

Developments Journal 2007 2 pp 483 e 502) 333 Neste ponto divergem como se sabe originariamente os ordenamentos europeus e o norte-

americano Para a histoacuteria da discharge no Direito norte-americano cfr CHARLES JORDAN

TABB ldquoThe historical evolution of the bankruptcy dischargerdquo American Bankruptcy Law

Journal 1991 65 pp 325 e ss e TERESA A SULLIVAN ELIZABETH WARREN JAY

LAWRENCE WESTBROOK ldquoLimiting access to bankruptcy discharge an analysis of the

creditorsrsquo datardquo Wisconsin Law Review 1983 pp 1098-1101 Para um confronto entre os

dois sistemas cfr JACOB ZIEGEL ldquoFacts on the Ground and Reconciliation of Divergent

Consumer Insolvency Philosophiesrdquo Theoretical Enquiries on Law 2006 7(2) pp 299 e ss 334 Ilustram-no bem na lei portuguesa as normas das als b) d) e f) e g) do nordm 1 do art 238ordm

das als a) e b) do nordm 1 do art 243ordm do nordm 2 do art 244ordm e do nordm 1 do art 246ordm do CIRE A

maioria refere-se expressa ou implicitamente (por remissatildeo) agrave culpa grave e ou ao dolo do

devedor na praacutetica de certos actos uma erige em causa de indeferimento liminar a condenaccedilatildeo

do devedor num dos crimes previstos e punidos nos arts 227ordm a 229ordm do Coacutedigo Penal 335 Usa-se esta expressatildeo no Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 20 de novembro de

2008 (Relator TELES DE MENEZES) (disponiacutevel em httpwwwdgsipt) 336 Natildeo se pode esquecer que o despacho de exoneraccedilatildeo pode ser revogado designadamente

a pedido de qualquer credor ateacute ao termo do ano subsequente ao seu tracircnsito em julgado (cfr

art 246ordm nordm 2 2ordf parte do CIRE) A revogaccedilatildeo importa a reconstituiccedilatildeo de todos os creacuteditos

extintos (cfr art 246ordm nordm 4 do CIRE)

145

possiacutevel falar de ldquofresh startrdquo sendo mais apropriado falar de ldquoearned

startrdquo337

Eacute portanto desejaacutevel que natildeo ocorram comportamentos abusivos Mas

o sistema natildeo eacute ainda perfeito

Pode acontecer que um sujeito se apresente agrave insolvecircncia com o

exclusivo propoacutesito de obter a exoneraccedilatildeo do passivo restante e para que o

pedido de declaraccedilatildeo de insolvecircncia proceda colocar-se intencionalmente

numa situaccedilatildeo de insolvecircncia ou ateacute de aparecircncia de insolvecircncia (transmitindo

a pessoas proacuteximas atraveacutes de actos fraudulentos todos os seus bens) O

processo de insolvecircncia seraacute aberto mas imediatamente declarado findo por

insuficiecircncia de bens Poderaacute deveraacute o processo de insolvecircncia prosseguir

nestes casos para a avaliaccedilatildeo dos pressupostos do pedido de exoneraccedilatildeo

Eacute comum admitir-se que o processo prossiga para avaliaccedilatildeo da

oportunidade do pedido de exoneraccedilatildeo338 339 Nem sempre seraacute uma boa

decisatildeo

A continuaccedilatildeo do processo nestes termos natildeo eacute compatiacutevel com o uso

dos instrumentos preordenados a reagir contra os actos prejudiciais agrave massa

337 Cfr UDO REIFNER JOHANNA NIEMI-KIESILAumlINEN NIK HULS HELGA SPRINGENEER

Overindebtedness in European Consumer Law Principles from 15 European States

Nordesstedt Books on Demand 2010 p 166 338 Cfr por exemplo os Acoacuterdatildeos do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 5 de novembro de 2007

(Relator PINTO FERREIRA) e de 12 de maio de 2009 (Relator HENRIQUE ARAUacuteJO)

(disponiacuteveis em httpwwwdgsipt) Eacute de facto como se diz no primeiro Acoacuterdatildeo uma

decisatildeo possiacutevel ndash o texto do nordm 8 do art 39ordm do CIRE reforccedila este entendimento 339 No quadro da insuficiecircncia do patrimoacutenio do devedor haacute que distinguir duas hipoacuteteses A

hipoacutetese regulada no art 39ordm do CIRE diz respeito agrave situaccedilatildeo em que o juiz antes de declarar

a insolvecircncia se apercebe de factos que lhe permitem presumir que o patrimoacutenio do devedor

eacute insuficiente para a satisfaccedilatildeo das custas do processo e das diacutevidas previsiacuteveis da massa

insolvente Quando assim eacute a declaraccedilatildeo de insolvecircncia eacute uma declaraccedilatildeo limitada [aos

elementos constantes das aliacuteneas a) a d) e h) do art 36ordm do CIRE] pois o fim do processo estaacute

iminente [cfr art 39ordm nordm 7 al b) do CIRE] mas aquele facto (a insuficiecircncia da massa) natildeo

pode deixar de ser mencionado na sentenccedila (cfr art 39ordm nordm 1 do CIRE) Distinta desta eacute a

hipoacutetese regulada no art 232ordm nordm 1 do CIRE em que o juiz de nada se tendo apercebido no

momento da declaraccedilatildeo de insolvecircncia vem a ser alertado pelo administrador da insolvecircncia

de que a massa insolvente eacute insuficiente para a satisfaccedilatildeo das custas do processo e das restantes

diacutevidas da massa Uma vez ouvidos o devedor a assembleia de credores e os credores da

massa insolvente o juiz declara o encerramento do processo (cfr art 232ordm nordm 2 do CIRE)

O art 230ordm nordm 1 al d) do CIRE eacute claro sobre o momento em que a hipoacutetese tem lugar

incluindo-a nos casos em que o processo prossegue ldquoapoacutes a declaraccedilatildeo de insolvecircnciardquo

146

insolvente e a recuperar os bens indevidamente subtraiacutedos ao patrimoacutenio do

devedor (a resoluccedilatildeo e a impugnaccedilatildeo pauliana)340

Uma vez admitido o pedido de exoneraccedilatildeo bastaraacute ao devedor

encontrar um posto de trabalho natildeo excessivamente bem remunerado e

permanecer ldquona sombrardquo adoptando um modo de vida modesto durante os

cinco anos que dura o periacuteodo de cessatildeo Findo este periacuteodo ele estaraacute pronto

para reaver os bens ldquopostos a salvordquo nos patrimoacutenios alheios e ldquoembarcar em

novas aventurasrdquo

Acresce que existindo embora em todas as leis um limite temporal

entre exoneraccedilotildees ou seja um ldquoperiacuteodo de quarentenardquo341 natildeo existe um

limite maacuteximo de exoneraccedilotildees Nada impede portanto que o sujeito beneficie

de mais do que uma exoneraccedilatildeo podendo em uacuteltima anaacutelise passar parte da

vida a contrair diacutevidas e outra a desembaraccedilar-se delas

O perigo de ocorrecircncia destes casos eacute percebido por FINNIS Tomando

o regime da insolvecircncia como exemplo da justiccedila diz o autor

ldquo() the law of bankruptcy can itself be made the instrument of

injustice above all by the bankrupt himself For it is certainly

possible and in some places not uncommon that someone who could

pay his just debts if he were so minded may choose instead to have

them cancelled by bankruptcy submitting himself to temporary

inconvenience for the sake of a future freedom from financial

difficultyrdquo342

e SUGESTOtildeES DE AJUSTAMENTOS AO REGIME DA

EXONERACcedilAtildeO DO PASSIVO RESTANTE

Em siacutentese embora se reconheccedila a sua ldquobondade intriacutensecardquo (as razotildees

ldquohumanitaacuteriasrdquo subjacentes) talvez natildeo fosse desadequado reequacionar a

disciplina da exoneraccedilatildeo do passivo restante

Uma possiacutevel alteraccedilatildeo seria quanto agrave duraccedilatildeo do periacuteodo de cessatildeo

Este periacuteodo deveria ter a duraccedilatildeo adequada a possibilitar ao devedor em cada

340 Natildeo obstante os mecanismos de controlo da conduta do devedor compreendidos nos

(mencionados) arts 238ordm 243ordm 244ordm e 246ordm do CIRE Sobrevaloriza-os em certa medida

JOSEacute GONCcedilALVES FERREIRA (A exoneraccedilatildeo do passivo restante Coimbra Coimbra Editora

2013 p 155) 341 Na lei portuguesa o periacuteodo de quarentena eacute de dez anos (cfr al c) do nordm 1 do art 238ordm

do CIRE) sendo o pedido de exoneraccedilatildeo liminarmente indeferido quando o devedor tiver

beneficiado da exoneraccedilatildeo nos dez anos anteriores agrave data do iniacutecio do processo de insolvecircncia 342 Cfr JONH FINNIS Natural Law and natural rights Oxford Clarendon Press 1980 p 191

147

caso tentar ldquoliquidarrdquo o essencial do seu passivo restante e ldquolimparrdquo o seu

nome A exoneraccedilatildeo produzir-se-ia entatildeo na medida em que houvesse pelo

menos um esforccedilo ldquobem-intencionadordquo por parte do devedor isto eacute orientado

para cumprir e tendo em vista recuperar o seu bom nome

A hipoacutetese contraacuteria aparentemente a Recomendaccedilatildeo da Comissatildeo de

12 de marccedilo de 2014 segundo a qual a exoneraccedilatildeo dos empresaacuterios

insolventes deve ter lugar no fim de um periacuteodo natildeo superior a trecircs anos (cfr

recomendaccedilatildeo 30)343

Mas em primeiro lugar a duraccedilatildeo deste periacuteodo ainda varia muito de

ordenamento para ordenamento e em alguns casos eacute superior ao

recomendado344

Em segundo lugar a soluccedilatildeo proposta natildeo implicaria um

prolongamento generalizado do periacuteodo de cessatildeo mas apenas a possibilidade

do seu ajustamento em concreto agraves perspectivas de uma situaccedilatildeo financeira

compatiacutevel com o pagamento aos credores podendo ateacute ser eliminado (e a

exoneraccedilatildeo ser imediata) nos casos em que se tivesse alcanccedilado no processo

de insolvecircncia um pagamento significativo (qualificado) das diacutevidas

Uma segunda alteraccedilatildeo seria a determinaccedilatildeo expressa de que as

obrigaccedilotildees em vez de se extinguirem se converteriam em obrigaccedilotildees naturais

As obrigaccedilotildees sobreviveriam podendo o devedor se assim quisesse cumpri-

las a qualquer momento (e o credor reter a coisa prestada)

Esta eacute uma alteraccedilatildeo mais consensual uma vez que mesmo na inexistecircncia de

norma expressa alguns jaacute entendem que eacute isso que se passa345

Em ambos os casos tratar-se-ia de funcionalizar o processo de

insolvecircncia agrave realizaccedilatildeo natildeo de um direito ao cumprimento ndash que jaacute se disse

natildeo se acredita que exista ndash mas de direitos de outra natureza relacionados

com o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa humana e tendentes

343 Recomendaccedilatildeo C(2014) 1500 final sobre uma nova abordagem em mateacuteria de falecircncia e

de insolvecircncia das empresas [disponiacutevel (em portuguecircs) em

httpeceuropaeujusticecivilfilesc_2014_1500_ptpdf e (em inglecircs) em

httpeceuropaeujusticecivilfilesc_2014_1500_enpdf] Sublinhe-se contudo a

circunscriccedilatildeo da Recomendaccedilatildeo aos empresaacuterios ou seja agraves pessoas singulares titulares de

empresa 344 Em Portugal dura actualmente cinco anos Na Alemanha comeccedilou por durar sete anos mas

fixou-se posteriormente em seis podendo excepcionalmente (nos casos em que determinada

percentagem dos creacuteditos tenha sido satisfeita) durar apenas trecircs Em Inglaterra dura

geralmente doze meses 345 Assim em Portugal em face do art 245ordm nordm 1 do CIRE JOSEacute GONCcedilALVES FERREIRA A

exoneraccedilatildeo do passivo restante Coimbra Coimbra Editora 2013 pp 119-127

148

a garantir um miacutenimo de participaccedilatildeo na vida econoacutemica (miacutenimo de

existecircncia) (securing livelihood) e um miacutenimo de participaccedilatildeo na vida social

[(preventing) exclusion]346 347

Tratar-se-ia de garantir por outro lado que os institutos satildeo usados

para as suas finalidades proacuteprias ou por outras palavras de reforccedilar a ligaccedilatildeo

devida entre o uso dos direitos e as ldquoboas intenccedilotildeesrdquo dos sujeitos

Por fim seria compreensiacutevel que a ldquodesresponsabilizaccedilatildeordquo dos

empresaacuterios operasse em termos diferentes das pessoas singulares natildeo titulares

de empresa Apesar da ldquodemocratizaccedilatildeordquo do acesso ao creacutedito o primeiro estaacute

teoricamente (ainda) exposto a maiores riscos do que o segundo e por outro

346 Cfr ldquoPrinciples of Life Time Contractsrdquo in LUCA NOGLER UDO REIFNER (Eds) Life

Time contracts ndash Social Long-term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law

cit xvii-xxx (traduccedilatildeo preliminar de Nuno Manuel Pinto Oliveira)] 347 Propondo um enquadramento da exoneraccedilatildeo nos direitos humanos CHRYSTIN ONDERSMA

[ldquoA human rights framework for debt reliefrdquo (disponiacutevel em

httpssrncomabstract=2390788)] sustenta que o tratamento da insolvecircncia das pessoas

singulares deveraacute ter em conta os seguintes direitos niacutevel de vida adequado (adequate

standard of living) direito agrave sauacutede (right to healthcare) direito ao trabalho e a uma

remuneraccedilatildeo justa (right to work and ldquofavorablerdquo remuneration) proibiccedilatildeo da prisatildeo por

diacutevidas (prohibition on incarceration for failure to pay debt) proibiccedilatildeo de escravatura por

diacutevidas (prohibition to debt peonage) discriminaccedilatildeo (discrimination) confidencialidade

(privacy) e dignidade humana (human dignity)

149

lado eacute-lhe exigiacutevel uma maior responsabilidade348 349 Eacute compreensiacutevel

portanto que o empresaacuterio honesto seja qualificado como tal por aplicaccedilatildeo de

criteacuterios distintos daqueles por que se afere a honestidade ou o meacuterito de outros

devedores350

348 Em princiacutepio o exerciacutecio do comeacutercio pressupotildee uma preparaccedilatildeo especial e cuidados

particulares Por forccedila da funccedilatildeo econoacutemica e social que desempenham os comerciantes

devem actuar com maior responsabilidade natildeo sendo livres de perseguir o seu interesse

pessoal ou de agir conforme lhes parece e tendo de avaliar (e saber avaliar) a situaccedilatildeo da sua

empresa e conduzir-se de forma a evitar a produccedilatildeo de danos para os interesses particulares e

geral Acresce que no caso de insolvecircncia ndash risco muito comum na actividade comercial

(ldquomercatores sunt semper in proximo periculo decoquendirdquo) ndash se produzem em regra

perturbaccedilotildees mais graves do que quando se trata de sujeitos comuns se um credor natildeo recebe

com pontualidade natildeo pode por sua vez pagar pontualmente aos seus credores a crise de um

repercute-se nos outros e pode muito bem espoletar uma crise colectiva ou geral Eacute

essencialmente isso que o legislador se propotildee evitar por exemplo quando constitui o devedor

titular de empresa na obrigaccedilatildeo de reagir em prazo uacutetil agrave sua crise individual (cfr art 18ordm nordm

1 do CIRE) No que respeita aos particulares o seu recurso ao creacutedito tem vindo a crescer

mas a verdade eacute que por maior que ele seja a situaccedilatildeo dos particulares e a dos comerciantes

nunca se identificaratildeo sempre seratildeo diversas a motivaccedilatildeo para o recurso ao creacutedito e a funccedilatildeo

que o creacutedito desempenha no creacutedito ao consumo existem particularidades que satildeo

completamente estranhas ao creacutedito comercial como por exemplo as ofertas de creacutedito

(solicitations to take credit) enfim satildeo distintos os grupos de interesses econoacutemicos

envolvidos e merecedores de tutela numa e noutra situaccedilatildeo 349 Por algum motivo a insolvecircncia (a falecircncia) foi durante tanto tempo um regime (quase)

exclusivo dos comerciantes Havendo embora tambeacutem um regime concursual para os

particulares os regimes divergiam ao niacutevel dos efeitos e tambeacutem dos pressupostos No giro

comercial ldquoa insuficiecircncia do activo em face do passivo natildeo constitui de per si uma

perturbaccedilatildeo do mecanismo econoacutemico Haacute a somar ao activo o creacutedito pessoal tantas vezes

de um valor igual ou superior ao activo patrimonial consequecircncia como eacute do saber do

trabalho e da honestidade do indiviacuteduordquo [cfr ponto 4 do Relatoacuterio do Diploma Preambular do

Coacutedigo de Falecircncias de 1935 (DL nordm 25 981 de 26 de outubro de 1935)] 350 Natildeo exige contudo que o comerciante honesto seja o (e preencha os respectivos requisitos

do) ehrlicher Kaufmann de que falava Kant Segundo Kant o comerciante devia agir com

honestidade por convicccedilatildeo e natildeo para daiacute retirar vantagens se o comerciante natildeo engana os

seus clientes porque receia perdecirc-los a sua conduta natildeo tem valor moral pois resulta de um

desejo ou inclinaccedilatildeo egoiacutesta se em vez disso o comerciante procede assim apenas porque

julga ter o dever de ser honesto entatildeo a sua conduta tem valor moral Cfr Immanuel Kant

Grundlegung zur Mataphysic der Sitten 1785 disponiacutevel em httpvirt052zimuni-duisburg-

essendekantaa04385html

150

151

A vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos

fundamentais e os contratos de longa duraccedilatildeo

Benedita Mac Crorie

1 Para esta comunicaccedilatildeo partimos de um caso concreto que natildeo eacute um

caso muito recente (a decisatildeo data de 1993) mas que apesar disso eacute um caso

que coloca questotildees de uma grande actualidade e que eacute muito relevante para a

problemaacutetica da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentais tema

que nos propomos tratar e que por isso seraacute o ponto de partida para toda a

reflexatildeo que faremos

O caso eacute o chamado caso das fianccedilas ou o Buumlrgschaftsurteil351 e eacute

uma decisatildeo do Tribunal Constitucional Federal Alematildeo Neste caso um

banco concedeu a um comerciante um empreacutestimo de 100000 DM (marcos

alematildees) na condiccedilatildeo de que a filha deste uacuteltimo fosse a fiadora Quatro anos

mais tarde e perante a incapacidade do pai em pagar o empreacutestimo o banco

veio pedir-lhe este montante acrescido de 60000 DM (marcos alematildees) de

juros

Na altura em que o caso chegou ao Tribunal Constitucional Federal

Alematildeo a fiadora era matildee solteira e natildeo tinha rendimentos Nas diferentes

instacircncias a sua pretensatildeo de se escusar a pagar essa quantia foi obtendo

respostas diferentes O Tribunal Regional (Landesgericht) considerou que o

contrato era vaacutelido e que consequentemente a quantia teria de ser paga por

seu lado o Tribunal de Recurso (Oberlandesgericht) considerou que o

funcionaacuterio do banco tinha violado o seu dever de informaccedilatildeo uma vez que

antes da assinatura se tinha limitado a pedir-lhe para assinar dizendo-lhe

apenas que necessitava da assinatura para os ficheiros Esta decisatildeo foi

revogada pelo Tribunal Federal de Justiccedila (Bundesgerichtshof) que natildeo

considerou que houvesse tal dever entendendo que qualquer pessoa maior de

idade sabe que assinar um contrato de fianccedila envolve um risco O pai era

solvente na altura em que o contrato foi assinado pelo que a informaccedilatildeo

prestada pelo banco foi considerada suficiente

A filha recorreu entatildeo desta decisatildeo para o Tribunal Constitucional

Federal Alematildeo (Bundesverfassungsgericht) invocando que o Tribunal

Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho 351 BVerfGE 89 214 ss httpwwwservatunibechdfrbv089214html (28012016)

152

Federal de Justiccedila atraveacutes da sua decisatildeo violou o seu direito agrave dignidade (art

1ordm da Constituiccedilatildeo Federal) e a sua autonomia privada (que derivaria do

paraacutegrafo 1 do art 2ordm da Constituiccedilatildeo Federal conjugada com o princiacutepio do

Estado Social (paraacutegrafo 1 do art 20ordm e paraacutegrafo 1 do art 28ordm da

Constituiccedilatildeo Federal)

A sua queixa constitucional foi bem sucedida Na sua fundamentaccedilatildeo

o Tribunal Constitucional Federal alematildeo considerou que em circunstacircncias

normais os contratos devem ser assumidos pelos Tribunais como uma

expressatildeo por ambas as partes do seu direito fundamental agrave autonomia privada

No entanto entendeu tambeacutem que nos casos em que o desequiliacutebrio estrutural

de poderes negociais leva agrave celebraccedilatildeo de um contrato excessivamente oneroso

para a parte mais fraacutegil os tribunais ciacuteveis tecircm a obrigaccedilatildeo de intervir de modo

a garantir a posiccedilatildeo da parte mais fraca No caso em anaacutelise o desequiliacutebrio

negocial existiu porque o banco natildeo informou devidamente a filha dos riscos

de ser fiadora ainda que o risco fosse bastante elevado atendendo ao seu

rendimento

Entendeu o Tribunal que esta obrigaccedilatildeo dos tribunais deriva do seu

dever de garantir um direito constitucionalmente protegido agrave autonomia

privada conjugado com o princiacutepio do Estado social Desta argumentaccedilatildeo

resulta que ambas as partes ndash a forte e a fraca ndash gozam de um direito

constitucional agrave autonomia privada O caso foi configurado como se tratando

de um conflito de direitos fundamentais Consequentemente o Tribunal

Constitucional Federal entendeu que o Tribunal Federal de Justiccedila violou o

direito ao livre desenvolvimento da personalidade da requerente (do qual

entende que deriva o direito agrave autonomia privada) na decisatildeo que tomou352

2 Este caso eacute um dos exemplos mais conhecidos a propoacutesito dos

efeitos dos direitos fundamentais no direito privado e nesta decisatildeo haacute dois

352 OLHA CHEREDNYCHENKO Fundamental Rights Contract Law and the Protection of

the Weaker Party 2007 disponiacutevel em

httpdspacelibraryuunlbitstreamhandle187420945full pdfsequence=6 pp 208 ss

OLHA CHEREDNYCHENKO ldquoThe constitutionalization of contract law Something New

under the Sunrdquo in EJCL Vol 81 2004 pp 4 ndash 5 CLAUS DIETER CLASSEN ldquoDie

Drittwirkung der Grundrechte in der Rechtsprechung des Bundesverfassungsgericht in AoumlR

122 1997 p 77 CLAUS-WILHELM CANARIS ldquoA influecircncia dos direitos fundamentais

sobre o direito privado na Alemanhardquo in INGO WOLFGANG SARLET (org) Constituiccedilatildeo

Direitos Fundamentais e Direito Privado Livraria do Advogado Editora Porto Alegre 2003

pp 228 ndash 229 e IDEM ldquoGrundrechtswirkungen und Verhaltnismassigkeitsprinzip in der

richterlichten Anwendung und Fortbildung des Privatrechtsrdquo in JuS Heft 3 1989 p 168

153

aspectos essenciais que relevam para o tema que estaacute hoje a ser discutido neste

coloacutequio

Por um lado o facto de o Tribunal assumir que derivam das normas de

direitos fundamentais deveres de protecccedilatildeo do Estado seja do Estado

legislador seja do Estado juiacutez que implicam que este tenha de garantir que os

direitos fundamentais dos particulares natildeo satildeo violados por outros particulares

neste caso o direito ao livre desenvolvimento da personalidade

Assim num primeiro momento vou aprofundar um pouco mais a

questatildeo da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentais de modo a

procurar perceber como eacute que essa vinculaccedilatildeo pode eventualmente vir a

ter um ldquoefeito correctorrdquo do conteuacutedo de determinados contratos

Por outro lado e intimamente ligada com a questatildeo anterior o facto de

o juiacutez constitucional ter considerado que este contrato natildeo deveria ser feito

valer invocando para isso o direito agrave autonomia privada da proacutepria pessoa que

se vinculou parece que poderaacute consubstanciar-se numa defesa da pessoa

contra si mesma libertando-a de um viacutenculo juriacutedico que pelo menos

pretensamente voluntariamente assumiu Perante isto seraacute relevante discutir

a questatildeo de saber se eacute legiacutetimo em Estado de Direito democraacutetico que o

Estado assuma uma posiccedilatildeo paternalista de defesa da pessoa contra si proacutepria

ou pelo menos em que situaccedilotildees eacute que poderaacute ser de admitir essa defesa

Ora sendo os contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa

como eacute por exemplo o caso dos contratos de creacutedito a que nos estamos a referir

parece que ainda se colocaraacute neste domiacutenio com maior premecircncia a questatildeo

da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentais Alguns dos

princiacutepios aplicaacuteveis aos contratos duradouros parecem precisamente traduzir

a influecircncia dos direitos fundamentais nas relaccedilotildees juriacutedicas privadas Eacute o caso

do reconhecimento da dimensatildeo humana envolvida nestes contratos o

reconhecimento de dimensotildees colectivas e eacuteticas o salientar de um dever de

informaccedilatildeo e transparecircncia a preocupaccedilatildeo com o respeito pelo princiacutepio da

igualdade a garantia de um miacutenimo de existecircncia a chamada de atenccedilatildeo para

o risco de exclusatildeo da vida social e a proacutepria remissatildeo para as regras e

princiacutepios de direito puacuteblico

De facto o acesso a serviccedilos financeiros tornou-se crucial para a

possibilidade de os consumidores poderem participar natildeo apenas no mercado

mas tambeacutem na proacutepria vida social353 pelo que a questatildeo da

353 OLHA CHEREDNYCHENKO ldquoFundamental Rights European Private Law and

Financial Servicesrdquo 09092013 disponiacutevel em httpssrncom abstract=2475762

(12012016) p 186

154

constitucionalizaccedilatildeo do direito privado parece ser particularmente relevante

nestas aacutereas

3 Vamos entatildeo comeccedilar por tratar a questatildeo da vinculaccedilatildeo dos

particulares aos direitos fundamentais e vamos fazecirc-lo tendo em consideraccedilatildeo

o ordenamento juriacutedico portuguecircs Apesar de a nossa Constituiccedilatildeo referir

expressamente a vinculaccedilatildeo das entidades privadas no nordm 1 do artigo 18ordm tem-

se entendido que esta norma natildeo eacute inteiramente conclusiva

Quanto a esta problemaacutetica as teorias tradicionalmente defendidas satildeo

as teorias monistas as dualistas e a teoria dos deveres de protecccedilatildeo Em termos

sucintos354 as teorias monistas defendem que os direitos fundamentais satildeo

directamente aplicaacuteveis nas relaccedilotildees juriacutedicas privadas ou seja natildeo carecem

da mediaccedilatildeo de disposiccedilotildees de direito privado para que possam ser opostas a

particulares Esta doutrina foi formulada pela primeira vez por Nipperdey na

altura presidente do Bundesarbeitsgericht (BAG) De facto a geacutenese e o

desenvolvimento mais fecundo da teoria da vinculaccedilatildeo dos particulares aos

direitos fundamentais teve como cenaacuterio o campo das relaccedilotildees laborais o que

bem se compreende atendendo ao desequiliacutebrio de forccedilas que caracteriza esse

tipo de relaccedilotildees355

Jaacute as teorias da eficaacutecia mediata desenvolveram-se a partir da

formulaccedilatildeo de Duumlrig e defendem que a influecircncia dos direitos fundamentais eacute

apenas indirecta e deveraacute levar-se a cabo principalmente atraveacutes da

densificaccedilatildeo de claacuteusulas gerais e conceitos indeterminados do direito

privado356

Para a teoria dos deveres de protecccedilatildeo os direitos fundamentais

vinculam apenas os entes puacuteblicos mas estes para aleacutem do dever de os

respeitar e concretizar tecircm ainda a responsabilidade de os proteger contra

quaisquer ameaccedilas ainda que essas ameaccedilas resultem da actividade de outros

particulares Parte-se aqui da distinccedilatildeo entre direitos fundamentais enquanto

354 Mais desenvolvidamente ver BENEDITA MAC CRORIE A Vinculaccedilatildeo dos Particulares

aos Direitos Fundamentais Almedina Coimbra 2005 IDEM Os limites da renuacutencia a

direitos fundamentais nas relaccedilotildees entre particulares Almedina Coimbra 2013 355 JUAN MARIacuteA BILBAO UBILLOS ldquoEn queacute medida vinculan a los particulares los

derechos fundamentalesrdquo in INGO WOLFGANG SARLET (org) Constituiccedilatildeo Direitos

Fundamentais e Direito Privado cit pp 302 ndash 305 356 GUumlNTER DUumlRIG ldquoGrundrechte und Zivilrechtsprechungrdquo in THEODOR MAUNZ

(org) Vom Bonner Grundgesetz zur gesamtdeutschen Verfassung Festschrift zum 75

Geburtstag von Hans Nawiasky Isar Verlag Muumlnchen 1956 pp 176 ndash 177 IDEM ldquoArt 1rdquo

in THEODOR MAUNZ ndash GUumlNTER DUumlRIG Grundgesetz Kommentar Verlag C H Beck

Muumlnchen 1997 pp 66 - 68 tambeacutem ROBERT ALEXY Teoria de los derechos

fundamentales Centro de Estudios Constitucionales Madrid 1993 pp 511 ndash 512

155

direitos de defesa em relaccedilatildeo ao Estado e direitos fundamentais enquanto

deveres de protecccedilatildeo357 Canaris eacute um dos principais defensores desta teoria

na sua aplicaccedilatildeo agraves relaccedilotildees juriacutedicas privadas Segundo ele o destinataacuterio

deste dever de protecccedilatildeo nas relaccedilotildees entre particulares eacute o legislador de

Direito Civil e particularmente o julgador do Direito Civil358

No caso que estivemos a analisar a decisatildeo do Tribunal Constitucional

Federal alematildeo seguiu precisamente esta perpectiva de Canaris quanto agrave

problemaacutetica da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentais

partindo de uma ideia de deveres de protecccedilatildeo do Estado Natildeo eacute esta a

perspectiva que seguimos quanto agrave problemaacutetica da vinculaccedilatildeo dos

particulares aos direitos fundamentais uma vez que entendemos que do art

18ordm da CRP decorre uma ldquovinculaccedilatildeo directa prima facierdquo na linha do que

tem vindo a ser defendido por Ingo Wolfgang Sarlet359 dos particulares aos

direitos fundamentais

Mas independentemente da posiccedilatildeo adoptada hoje a existecircncia de uma

vinculaccedilatildeo dos particulares seja qual for a sua forma e o seu alcance eacute

inquestionaacutevel E apesar das divergecircncias entre as teorias referidas na praacutetica

estas conduzem muitas vezes ao mesmo resultado360 ainda que possa haver

alguma diferenccedila no que se refere ao alcance do papel do juiz na ausecircncia de

lei ordinaacuteria Neste uacuteltimo caso enquanto a teoria da eficaacutecia imediata aplicaraacute

o direito fundamental constitucionalmente consagrado em quaisquer

357 JOAtildeO JOSEacute NUNES ABRANTES A vinculaccedilatildeo das entidades privadas aos direitos

fundamentais Associaccedilatildeo Acadeacutemica da Faculdade de Direito de Lisboa 1990 pp 96 e 97

JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 4ordf Ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2009 p 248 358 CLAUS-WILHELM CANARIS Direitos Fundamentais e Direito Privado Almedina

Coimbra 2003 pp 39 ndash 43 359 INGO WOLFGANG SARLET ldquoDireitos Fundamentais e Direito Privado algumas

consideraccedilotildees em torno da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentaisrdquo in INGO

WOLFGANG SARLET (org) A Constituiccedilatildeo concretizada Livraria do Advogado Editora

Porto Alegre 2000 p 157 Considerando tambeacutem que nas relaccedilotildees entre particulares a

vinculaccedilatildeo dos particulares sem deixar de ser directa eacute neste acircmbito e dimensatildeo menos

absoluta ver JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO O problema do contrato As claacuteusulas

contratuais gerais e o princiacutepio da liberdade contratual Almedina Coimbra 1999 p 137 360 JOSEacute CARLOS VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 cit p 246 JORGE MIRANDA Manual de Direito Constitucional

Tomo IV 4ordf Ediccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra p 303

156

circunstacircncias a teoria dos deveres de protecccedilatildeo apenas o faraacute quando esteja

em causa um deacutefice de protecccedilatildeo (Untermassverbot)361

Para a reflexatildeo de hoje natildeo eacute muito relevante a posiccedilatildeo que se adopte

seja a teoria dos deveres de protecccedilatildeo ou da vinculaccedilatildeo directa dos particulares

aos direitos fundamentais na medida em que a ideia central a reter eacute a de que

os direitos fundamentais podem assumir um papel no controlo que se faz aos

contratos celebrados entre particulares e particularmente nos contratos de

longa duraccedilatildeo

Ainda assim em defesa da vinculaccedilatildeo directa dos particulares aos

direitos fundamentais apenas dizer que esta natildeo implica ldquonegar ou subestimar

o efeito de irradiaccedilatildeo desses direitos atraveacutes da leirdquo Eacute de facto o legislador

quem em primeira linha deve resolver as situaccedilotildees de conflito de direitos

fundamentais que possam surgir362 Eacute muito diferente ldquoafirmar que as normas

de direitos fundamentais tecircm eficaacutecia normativa no acircmbito das relaccedilotildees entre

particulares sendo os cidadatildeos titulares de tais direitos reconhecidos na

Constituiccedilatildeo tambeacutem nas suas relaccedilotildees juriacutedico-privadasrdquo ou considerar ldquoque

a Constituiccedilatildeo eacute por si soacute o instrumento adequado e auto-suficiente para

regular a vigecircncia dos direitos fundamentais no seio de tais relaccedilotildeesrdquo363

Esta perspectiva tambeacutem natildeo infirma a existecircncia de um dever de

protecccedilatildeo do Estado que o vincula a proteger os particulares de ofensas ou

ameaccedilas aos seus direitos fundamentais cometidas por terceiros uma vez que

este dever natildeo eacute incompatiacutevel ou contraditoacuterio com a ideia de vinculaccedilatildeo

imediata O que nos parece eacute que para aleacutem disso poderaacute ainda existir uma

vinculaccedilatildeo imediata dos particulares a estes direitos364 Trata-se de ldquouma

inequiacutevoca zona de confluecircncia entre a vinculaccedilatildeo do poder puacuteblico (hellip) e a

vinculaccedilatildeo - directa - dos particularesrdquo365

361 JORGE REIS NOVAIS ldquoOs direitos fundamentais nas relaccedilotildees juriacutedicas entre

particularesrdquo in JORGE REIS NOVAIS Direitos Fundamentais Trunfos contra a Maioria

Almedina Coimbra 2006 pp 74 e 75 362 JUAN MARIacuteA BILBAO UBILLOS ldquoEn queacute medida vinculan a los particulares los

derechos fundamentalesrdquo cit p 317 363 RAFAEL SARAZAacute JIMENEZ Jueces Derechos Fundamentales y Relaciones entre

Particulares Universidad de La Rioja Logrontildeo 2008 disponiacutevel in dialnetuniriojaes p

691 364 DANIEL SARMENTO Direitos Fundamentais e Relaccedilotildees Privadas Editora Luacutemen Juris

Rio de Janeiro 2004 p 287 365 INGO WOLFGANG SARLET ldquoDireitos Fundamentais e Direito Privado algumas

consideraccedilotildees em torno da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentaisrdquo cit p 147

JOSEacute JOAQUIM GOMES CANOTILHO ndash VITAL MOREIRA Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica

Portuguesa Anotada Vol I Coimbra Editora Coimbra 2007 p 387 entendem que ldquonatildeo eacute a

157

Por outro lado o facto de se admitir uma vinculaccedilatildeo dos particulares

aos direitos fundamentais natildeo significa que estes natildeo devam poder dispor das

posiccedilotildees juriacutedicas subjectivas protegidas pelas normas de direitos

fundamentais Admitir-se a vinculaccedilatildeo directa tem como consequecircncia apenas

que se teraacute de analisar a relaccedilatildeo juriacutedico-privada atraveacutes dos direitos

fundamentais

Assim a autonomia privada deve ser de facto interpretada no sentido

de se permitir que as pessoas se vinculem nos termos em que em consciecircncia

pretendam fazecirc-lo Mas tendo em conta a importacircncia dos contratos de longa

duraccedilatildeo para a proacutepria existecircncia da pessoa pensamos que eacute fundamental que

haja uma preocupaccedilatildeo acrescida quanto agrave influecircncia que os direitos

fundamentais devem ter nesta mateacuteria particularmente para garantir que as

pessoas fazem as suas opccedilotildees efectivamente em condiccedilotildees de plena liberdade

e que mantecircm a liberdade depois de terem feito essas mesmas opccedilotildees

Vimos que no caso que analisaacutemos o Tribunal Constitucional Federal

alematildeo considerou que a sede da protecccedilatildeo constitucional da autonomia

privada reside no direito ao livre desenvolvimento da personalidade Entre noacutes

natildeo haacute consenso quanto agrave norma ou normas constitucionais das quais deriva a

garantia da autonomia individual (poderaacute eventualmente ser de distinguir entre

liberdade geral de acccedilatildeo e liberdade contratual considerando que a liberdade

contratual natildeo decorre directamente de um direito ao desenvolvimento da

personalidade ainda que possa estar impliacutecita em diversas disposiccedilotildees

constitucionais como eacute o caso da garantia do direito de propriedade privada

a garantia da existecircncia de um sector privado dos meios de produccedilatildeo e da

iniciativa econoacutemica privada a liberdade de exerciacutecio de profissatildeo e a

liberdade de constituir famiacutelia)366 Independentemente disso a autonomia

privada eacute protegida a niacutevel constitucional e a partir do momento em que

mesma coisa falar-se em vinculaccedilatildeo imediata de entidades privadas (hellip) ou em dever de

protecccedilatildeo (hellip) dos direitos liberdades e garantias dos privados contra privados atraveacutes do

Estadordquo 366 Quanto agrave questatildeo de saber de que forma a autonomia privada eacute protegida pela Constituiccedilatildeo

ver ANA PRATA A tutela constitucional da autonomia privada Almedina Coimbra 1982

pp 75 e 214 - 216 Tambeacutem JOAtildeO CAUPERS Os direitos fundamentais dos trabalhadores

e a Constituiccedilatildeo Lisboa 1985 pp 168 - 169 JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO O problema

do contrato As claacuteusulas contratuais gerais e o princiacutepio da liberdade contratual cit pp

147 - 148 GUILHERME MACHADO DRAY O princiacutepio da igualdade no Direito do

Trabalho Almedina Coimbra 1999 pp 177 e 178 JORGE MIRANDA Manual de Direito

Constitucional cit pp 74 e 326 PAULO MOTA PINTO ldquoO direito ao livre

desenvolvimento da personalidaderdquo in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de

Coimbra Coimbra Editora 1999 pp 199 ndash 206

158

consideramos que a autonomia privada goza de protecccedilatildeo jusfundamental os

particulares estatildeo tambeacutem vinculados ao seu respeito ou o Estado tem um

dever de proteger esta autonomia seja o Estado legislador seja o Estado Juiz

O facto de entendermos que haacute uma vinculaccedilatildeo dos particulares aos

direitos fundamentais natildeo implica que deva haver uma equiparaccedilatildeo total entre

pessoas puacuteblicas e privadas Sendo ambas as partes do conflito titulares de

direitos fundamentais a sua soluccedilatildeo dependeraacute sempre das circunstacircncias do

caso concreto e dos direitos fundamentais em causa tendo de se levar a cabo

uma ponderaccedilatildeo de bens ou valores367 que foi exactamente o que fez o

Tribunal Constitucional Federal alematildeo

Ora um dos criteacuterios fundamentais a ter em conta nessa ponderaccedilatildeo eacute

o grau de desigualdade faacutectica entre as partes368 Quanto mais uma das partes

da relaccedilatildeo se encontre numa posiccedilatildeo de supremacia maior seraacute a sua

vinculaccedilatildeo ao respeito do direito fundamental em causa e maior seraacute o dever

do Estado de garantir que efectivamente o que estaacute em causa eacute ainda um

exercicio de autonomia e natildeo uma conduta heterodeterminada Entre iguais a

regra deve ser o princiacutepio da liberdade natildeo sendo em princiacutepio de aplicar neste

domiacutenio criteacuterios de proporcionalidade369

No caso Buumlrgschaft o Tribunal Constitucional Federal alematildeo diz

expressamente que ldquose o conteuacutedo do contrato for excessivamente oneroso

para a parte mais fraca e desproporcionado natildeo devem os juiacutezes ater-se agrave ideia

de que contrato eacute contratordquo A desigualdade das partes foi neste caso

considerada decisiva para o Tribunal no reconhecimento de uma violaccedilatildeo ao

direito ao livre desenvolvimento da personalidade

4 Passando agora para a segunda questatildeo que eacute a de saber se eacute

legiacutetimo em Estado de Direito democraacutetico que o Estado assuma uma posiccedilatildeo

367 INGO WOLFGANG SARLET ldquoDireitos Fundamentais e Direito Privado algumas

consideraccedilotildees em torno da vinculaccedilatildeo dos particulares aos direitos fundamentaisrdquo cit p 157 368 DANIEL SARMENTO Direitos Fundamentais e Relaccedilotildees Privadas cit pp 302 e 375 369 Nesse sentido JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO O Problema do Contrato As Claacuteusulas

Contratuais Gerais e o Princiacutepio da Liberdade Contratual cit p 138 JOSEacute CARLOS

VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo Portuguesa de 1976

cit p 314 PAULO MOTA PINTO ldquoO direito ao livre desenvolvimento da personalidaderdquo

cit p 234 entende que ldquoo acordo dos particulares eacute no domiacutenio juriacutedico-privado

considerado determinante para a ponderaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo do peso relativo de certos bens

sobretudo no domiacutenio patrimonialrdquo Obviamente desde que respeitados os ldquolimites positivos

e negativosrdquo da liberdade contratual

159

paternalista de defesa da pessoa contra si proacutepria ou pelo menos em que

situaccedilotildees eacute que poderaacute ser de admitir essa defesa370

Um dos problemas fundamentais com que o Direito tem

inelutavelmente de se confrontar eacute o de estabelecer um compromisso entre os

valores em que uma dada comunidade se revecirc e visa prosseguir e a liberdade

dos indiviacuteduos de poderem escolher o modo de vida que pretendem levar371

Admitir-se a defesa da pessoa contra si proacutepria implica que se entenda que eacute

legiacutetimo o Estado proteger os direitos fundamentais do indiviacuteduo para o seu

proacuteprio bem e contra a sua vontade quando natildeo se lesam quaisquer bens de

terceiros ou da comunidade Haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre a defesa da pessoa

contra si mesma e o paternalismo estadual372 na medida em que se considera

paternalista um comportamento do Estado que visa impor protecccedilatildeo

independentemente da questatildeo de saber se essa protecccedilatildeo eacute ou natildeo desejada

pela pessoa protegida

Ora se se restringe a autonomia privada para o bem dos proacuteprios

cidadatildeos por se considerar que estes poderatildeo natildeo ter em devida conta as

consequecircncias desse acto de disposiccedilatildeo estamos perante uma medida

paternalista

Haacute uma ligaccedilatildeo estreita entre a defesa de um mais ou menos abrangente

dever de protecccedilatildeo do Estado e a interpretaccedilatildeo do princiacutepio da dignidade da

pessoa humana previsto na CRP que se preconiza Na base da protecccedilatildeo da

pessoa contra si mesma encontra-se uma concepccedilatildeo de dignidade enquanto

princiacutepio que natildeo soacute envolve o reconhecimento da liberdade individual mas

370 Sobre esta questatildeo ver mais desenvolvidamente Benedita Mac Crorie Os limites da

renuacutencia a direitos fundamentais nas relaccedilotildees entre particulares cit e tambeacutem Benedita Mac

Crorie ldquoO paternalismo estadual e a legitimidade da defesa da pessoa contra si proacutepriardquo in

AAVV Anuaacuterio Publicista da Escola de Direito da Universidade do Minho Tomo I - Ano de

2012 ndash Responsabilidade e Cidadania Escola de Direito da Universidade do Minho

Departamento de Ciecircncias Juriacutedicas Puacuteblicas Braga 2012 pp 33 ndash 45 (e-book ISBN 978-

989-97970-0-0 disponiacutevel in httpsissuucomeduminhodocsfinal_

responsabilidade_e_cidadania106) 371 MARIA CELINA BODIN DE MORAES ldquoO conceito de dignidade humana substrato

axioloacutegico e conteuacutedo normativordquo in INGO WOLFGANG SARLET (org) Constituiccedilatildeo

Direitos Fundamentais e Direito Privado Livraria do Advogado Editora Porto Alegre 2003

pp 108 e 109 372 Quando o Estado age de modo paternalista em relaccedilatildeo aos seus cidadatildeos podemos falar de

paternalismo estadual ou seguindo a expressatildeo inglesa legal paternalism de paternalismo

juriacutedico KAI MOumlLLER Paternalismus und Persoumlnlichkeitsrecht Duncker amp Humblot

Berlin 2005 pp 11

160

que tambeacutem pode justificar restriccedilotildees ao exerciacutecio das liberdades

individuais373

Pensamos que a dignidade natildeo deve ser entendida como um valor

objectivo que se pode inclusivamente opor agrave proacutepria vontade do indiviacuteduo

De facto justificar a defesa da pessoa contra si proacutepria invocando o princiacutepio

da dignidade corresponderia a aplicar este princiacutepio contra a finalidade da sua

consagraccedilatildeo pois a dignidade traduz-se precisamente na possibilidade de o

indiviacuteduo escolher em liberdade o rumo que pretende seguir na sua vida374 Se

o princiacutepio da dignidade for entendido neste sentido soacute em casos extremos

poderaacute justificar restriccedilotildees da liberdade seja quando estamos a falar de

pessoas que natildeo tecircm capacidade de autodeterminaccedilatildeo seja quando possa estar

em causa a possibilidade de ldquoautodeterminaccedilatildeo futurardquo375

Talvez natildeo seja no entanto de excluir que nas situaccedilotildees em que seja

particularmente difiacutecil avaliar a existecircncia ou ausecircncia de autodeterminaccedilatildeo e

haja uma forte presunccedilatildeo de natildeo-voluntariedade se equacione a possibilidade

de pressupor essa ausecircncia376 Poderatildeo pois excepcionalmente admitir-se

restriccedilotildees graccedilas ao custo associado com a determinaccedilatildeo de autonomia caso a

caso377 embora este tipo de soluccedilotildees mais gerais possam conduzir a situaccedilotildees

injustas

373 JEAN-PHILIPPE FELDMAN ldquoFaut-il proteacuteger lrsquohomme contre lui-mecircme La digniteacute

lrsquoindividu et la personne humainerdquo in Droits nordm 48 2009 pp 88 e 89 374 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoInconstitucionalidade do Artigo 6ordm da Lei sobre

a Colheita e Transplante de Oacutergatildeos e Tecidos de Origem Humanardquo in Scientia Iuridica nordms

286288 2000 pp 260 e 261 375 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo ldquoRenuacutencia a direitos

fundamentaisrdquo in JORGE MIRANDA (org) Perspectivas Constitucionais ndash Nos 20 anos da

Constituiccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra 1996 pp 327 e 330 Considerando tambeacutem que soacute

em situaccedilotildees limite eacute que a dignidade pode servir para restringir a liberdade ver ANSGAR

OHLY ldquoVolenti non fit iniuriardquo ndash die Einwilligung im Privatrecht Mohr Siebeck Tuumlbingen

2002 p 104 376 JESSICA WILEN BERG ldquoUnderstanding waiverrdquo in Houston Law Review Vol 40 nordm

281 2003 httppapersssrncomsol3paperscfmAbstract_id=614522 (28012016) p 299

sustenta que uma das razotildees para limitar a possibilidade de renuacutencia eacute precisamente o grau de

dificuldade que pode implicar a prova de que a renuacutencia preenche ldquoo grau de autonomia

exigido em cada casordquo MARGARET JANE RADIN ldquoMarket Inalienabilityrdquo in Harvard

Law Review Vol 100 nordm 8 19861987 pp 1909 e 1910 entende que algumas restriccedilotildees

impostas agrave possibilidade de venda de certos bens no mercado decorrem das grandes

dificuldades que implica avaliar todas as transacccedilotildees de modo a aferir se o consentimento eacute

verdadeiramente livre 377 JESSICA WILEN BERG ldquoUnderstanding waiverrdquo cit p 325

161

Assim entende-se que a opccedilatildeo por correr determinados riscos se insere

no ldquoprojeto de vidardquo do proacuteprio indiviacuteduo projecto que deve ser escolhido

livremente de acordo com as suas convicccedilotildees pessoais porquanto em

ldquosociedades pluraisrdquo natildeo eacute ldquodesejaacutevel uma absoluta uniformizaccedilatildeo dos

comportamentos individuaisrdquo378 Assim quando o sujeito se coloca em perigo

ou mesmo quando provoca uma lesatildeo no seu direito sendo ele capaz e estando

em causa um comportamento autodeterminado trata-se ainda do gozo de

liberdade jusfundamentalmente protegida Numa sociedade democraacutetica e

pluralista deve haver ldquoum direito a errar a tomar maacutes decisotildees e a correr

riscosrdquo sem o qual ldquotoda a ideia de autodeterminaccedilatildeo perderia sentidordquo379

Natildeo se coaduna por isso com a imagem de Homem pressuposta na

Constituiccedilatildeo uma concepccedilatildeo que partindo de uma ideia de deveres de

protecccedilatildeo do Estado considera que este tem legitimidade para proteger o

indiviacuteduo de si proacuteprio380

Parece-nos relevante e aplicaacutevel agrave concepccedilatildeo de dignidade que aqui

defendemos a perspectiva de Martha Nussbaum no seu livro ldquoCreating

capabilities the Human Development Approachrdquo Neste livro a autora defende

que o grau de desenvolvimento de uma sociedade e o respeito pela dignidade

dos seus cidadatildeos natildeo se deve medir pelo seu PIB mas antes pela resposta agrave

seguinte questatildeo o que eacute capaz de fazer e ser cada pessoa Esta eacute uma

perspectiva pluralista quanto a valores porque tem como objectivo criar

capacidades mas natildeo impor que as pessoas as utilizem de facto e a ideia baacutesica

que defende eacute a de que certas condiccedilotildees de vida proporcionam agraves pessoas uma

vida que eacute merecedora da dignidade que elas possuem Assim a dignidade eacute

inerente agrave pessoa o que implica uma ideia de que todos somos dotados de

378 HELENA PEREIRA DE MELO ldquoA Igualdade de Oportunidades para Quem Opta pela

ldquoEstrada do Tabacordquo in RUI NUNES ndash MIGUEL RICOU ndash CRISTINA NUNES (orgs)

Dependecircncias Individuais e Valores Sociais Graacutefica de Coimbra Coimbra 2004 p 163 379 JOEL FEINBERG Harm to Self The Moral Limits of the Criminal Law Oxford University

Press New York Oxford 1986 p 62 380 Nesse sentido referindo-se agrave Constituiccedilatildeo alematilde MARTINA DOROTHEE EPPELT

Grundrechtsverzicht und Humangenetik GCA-Verlag Herdecke 1999 pp 203 e 204

tambeacutem CHRISTIAN HILLGRUBER Der Schutz des Menschen vor sich selbst Verlag Franz

Vahlen Muumlnchen 1992 p 147 JOSEF ISENSEE ldquoDas Grundrecht als Abwehrrecht und als

staatliche Schutzpflichtrdquo in JOSEF ISENSEE ndash PAUL KIRCHHOF (orgs) Handbuch des

Staatrechts der Bundesrepublik Deutschland Vol V 2ordf Ediccedilatildeo C F Muumlller Verlag

Heidelberg 2000 pp 203 KAI MOumlLLER Paternalismus und Persoumlnlichkeitsrecht Duncker

amp Humblot Berlin 2005 p 115

162

igual dignidade mas para aleacutem disso carece de ser desenvolvida atraveacutes da

criaccedilatildeo de capacidades381

Em conclusatildeo num Estado natildeo-paternalista que se funda na dignidade

da pessoa humana e no livre desenvolvimento da personalidade individual a

defesa da pessoa contra si mesma natildeo deve consequentemente justificar a

restriccedilatildeo de direitos fundamentais neste caso do direito agrave autonomia privada

Tal dever existe apenas em situaccedilotildees extremas ou quando a pessoa em causa

natildeo esteja em posiccedilatildeo de cuidar de si Sendo a autonomia um valor central na

nossa ordem juriacutedica e cabendo ao Estado criar condiccedilotildees de autonomia o

titular do direito natildeo deve poder consentir numa intervenccedilatildeo que lhe retire a

possibilidade de se autodeterminar livremente no futuro Parece-nos que o

caso analisado tambeacutem poderia ser visto sob esta perspectiva

Para aleacutem destas situaccedilotildees natildeo eacute de admitir uma ldquoprotecccedilatildeo impostardquo

que restrinja as possibilidades de actuaccedilatildeo do visado382 jaacute que tal protecccedilatildeo

implica uma violaccedilatildeo grave ldquoda presunccedilatildeo de liberdade que deriva do princiacutepio

da dignidade da pessoa humanardquo383 O que natildeo invalida evidentemente que

natildeo decorra da proacutepria norma ou normas constitucionais da qual ou das quais

deriva a protecccedilatildeo da autonomia privada deveres do estado de proteger essa

mesma autonomia legislando no sentido de garantir que esta seja

efectivamente exercida em condiccedilotildees de liberdade Tal pressupotildee por

exemplo que os contraentes sejam devidamente informados de todos os riscos

inerentes agrave celebraccedilatildeo de determinados contratos isto eacute haacute um dever de

protecccedilatildeo do legislador que se deve reflectir no estabelecimento de garantias

quanto agrave obtenccedilatildeo de um consentimento que seja verdadeiramente livre e

esclarecido

381 MARTHA NUSSBAUM Creating capabilities the Human Development Approach

Harvard University Press 2011 pp 18 ss 382 WERNER FROTSCHER ldquorsquoBig Brotherrsquo und das deutsche Rundfunkrechtrdquo in

Schriftenreihe der LPR Hessen nordm 12 2000 p 43 Considerando que a defesa da pessoa

contra a autolesatildeo natildeo estaacute incluiacuteda no dever de protecccedilatildeo estadual ver JOSEF ISENSEE

ldquoDas Grundrecht als Abwehrrecht und als staatliche Schutzpflichtrdquo cit p 190 383 CARLA AMADO GOMES ldquoEstado Social e concretizaccedilatildeo de direitos fundamentais na

era tecnoloacutegica algumas verdades inconvenientesrdquo in Scientia Iuridica Tomo LXLL nordm 315

2008 p 423

163

Os princiacutepios gerais sobre os contratos duradouros

essenciais agrave existecircncia da pessoa (life time contracts)

Alguns toacutepicos

Joseacute Joatildeo Abrantes

1 INTRODUCcedilAtildeO

A oportunidade de um coloacutequio sobre life time contracts contratos

laquoexistenciaisraquo contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa life

time contracts a ignorada dimensatildeo social do direito europeu dos contratos

por exemplo no DCFR criacutetica

2 JUSTICcedilA SOCIAL E CONTRATO

De Fouilleacute (laquoqui dit contractuel dit justeraquo) agrave actualidade - i eacute da

autonomia da vontade e da liberdade contratual sem limites a um novo

conceito de contrato marcado pelo cercear crescente daquela autonomia e

daquela liberdade Da liberdade abstracta agrave liberdade concreta A

funcionalizaccedilatildeo dos direitos e do contrato Um contrato laquomenos contratualraquo

(Josserand)

Da afirmaccedilatildeo da igualdade juriacutedico-formal dos contraentes ao

reconhecimento da sua desigualdade real Dos coacutedigos civis oitocentistas agrave

criacutetica do liberalismo (vg com Otto von Gierke Philipp Lotmar e Anton

Menger entre outros) e agrave laquocrise do contratoraquo A entrada em cena da justiccedila

social

3 A PROTECCcedilAtildeO DO CONTRAENTE DEacuteBIL

Momentos diferenciados dessa protecccedilatildeo mdash numa primeira fase a

debilidade contratual encarada apenas como caracteriacutestica individual do

contraente daiacute a resposta para o problema aparecer centrada sobretudo nas

teorias das incapacidades e dos viacutecios da vontade no regime dos negoacutecios

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

164

usuraacuterios (lesatildeo) nos institutos da imprevisatildeo e do abuso de direito etc mdash

mais tarde eacute que se passa a encarar essa debilidade como caracteriacutestica de

certas categorias de contraentes como o trabalhador o inquilino o comprador

a creacutedito ou a prestaccedilotildees o mutuaacuterio etc a tutela do aderente nas claacuteusulas

contratuais gerais (contratos de adesatildeo) garantia constitucional da autonomia

privada

4 JUSTICcedilA CONTRATUAL NOS CONTRATOS laquoEXISTENCIAISraquo VG NO

CONTRATO DE TRABALHO

Constitucionalizaccedilatildeo materializaccedilatildeo e socializaccedilatildeo do direito privado

A Constituiccedilatildeo como objektive Wertordnung e a eficaacutecia horizontal dos

direitos fundamentais (artordm 18ordm1 da CRP) Justiccedila social no direito dos

contratos breve referecircncia ao DCFR e agrave invalidade dos contracts infringing

fundamental principles (art II-7301) O caso do contrato de trabalho foi sob

a eacutegide da ideia de protecccedilatildeo do contraente deacutebil que o juslaboralismo ganhou

foros de cidadania em relaccedilatildeo ao direito civil Referecircncia aos artigos 14ordm e

seguintes do Coacutedigo do Trabalho algumas questotildees

165

Os contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos

essenciais como life time contracts

Jorge Morais Carvalho

1 ENQUADRAMENTO E SEQUEcircNCIA

O convite formulado pelo Prof Doutor Nuno Manuel Pinto Oliveira

para participar em coloacutequio sobre o tema em Braga no dia 15 de maio de

2015 foi o meu primeiro contacto com os Life Time Contracts384 que podem

ser designados em portuguecircs como contratos duradouros essenciais agrave

existecircncia da pessoa385

Pensei de imediato em estudar a aplicaccedilatildeo dos princiacutepios gerais sobre

Life Time Contracts aos contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos essenciais

suspeitando da sua relevacircncia neste acircmbito

Tal como na apresentaccedilatildeo feita no coloacutequio tambeacutem neste texto

depois de indicar quais satildeo face agrave lei portuguesa os contratos de prestaccedilatildeo de

serviccedilos puacuteblicos essenciais ocupar-me-ei da questatildeo de saber se estes podem

ser qualificados como Life Time Contracts Nos pontos subsequentes tratarei

de dois problemas especiacuteficos que se colocam nos contratos de prestaccedilatildeo de

serviccedilos puacuteblicos essenciais ambos ligados agrave cessaccedilatildeo do contrato e que

podem e devem ser analisados agrave luz dos princiacutepios gerais sobre Life Time

Contracts Satildeo eles a cessaccedilatildeo do contrato pelo utente durante o denominado

periacuteodo de fidelizaccedilatildeo e a suspensatildeo e posterior cessaccedilatildeo do contrato pelo

prestador do serviccedilo

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Investigador do CEDIS

ndash Centro de Investigaccedilatildeo amp Desenvolvimento sobre Direito e Sociedade 384 AAVV (coordenaccedilatildeo de Luca Nogler e Udo Reifner) Life Time Contracts Eleven

International Publishing The Hague 2014 385 Segundo a traduccedilatildeo feita pelo Prof Doutor Nuno Manuel Pinto Oliveira que seraacute seguida

ao longo do texto nas citaccedilotildees dos princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts

166

2 CONTRATOS DE PRESTACcedilAtildeO DE SERVICcedilOS PUacuteBLICOS ESSENCIAIS

Nos termos do artigo 9ordm-8 da Lei de Defesa do Consumidor386

ldquoincumbe ao Governo adotar medidas adequadas a assegurar o equiliacutebrio das

relaccedilotildees juriacutedicas que tenham por objeto bens e serviccedilos essenciais

designadamente aacutegua energia eleacutetrica gaacutes telecomunicaccedilotildees e transportes

puacuteblicosrdquo

A Lei nordm 2396387 regula certos aspetos dos contratos relativos a

serviccedilos puacuteblicos essenciais natildeo se aplicando apenas aos contratos de

consumo O regime tem um acircmbito subjetivo de aplicaccedilatildeo mais alargado Com

efeito o artigo 1ordm-1 refere-se ldquoagrave proteccedilatildeo do utenterdquo e o nordm 3 considera

ldquoutente para os efeitos previstos nesta lei a pessoa singular ou coletiva a quem

o prestador do serviccedilo se obriga a prestaacute-lordquo Assim o diploma aplica-se a

todos os contratos em que se verifique a prestaccedilatildeo de um serviccedilo puacuteblico

essencial independentemente da natureza juriacutedica ou da dimensatildeo do

utente388 Soacute no caso de o utente ser simultaneamente um consumidor nos

termos da Lei de Defesa do Consumidor389 por exemplo eacute que se trata de uma

relaccedilatildeo de consumo390 mas em todas as situaccedilotildees o objeto das normas tem

386 Lei nordm 2496 de 31 de julho (retificada pela Declaraccedilatildeo de Retificaccedilatildeo nordm 1696 de 13 de

novembro) alterada pela Lei nordm 8598 de 16 de dezembro pelo Decreto-Lei nordm 672003 de

8 de abril e pelas Leis nos 102013 de 28 de janeiro e 472014 de 28 de julho 387 Lei nordm 2396 de 26 de julho alterada pelas Leis nos 52004 de 10 de fevereiro 122008

de 26 de fevereiro 242008 de 2 de junho 62011 de 10 de marccedilo 442011 de 22 de junho

e 102013 de 28 de janeiro 388 ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO ldquoO Anteprojecto de Coacutedigo do Consumidorrdquo in O Direito

Ano 138ordm IV 2006 p 706 389 Segundo o artigo 2ordm-1 da Lei de Defesa do Consumidor ldquoconsidera-se consumidor todo

aquele a quem sejam fornecidos bens prestados serviccedilos ou transmitidos quaisquer direitos

destinados a uso natildeo profissional por pessoa que exerccedila com caraacuteter profissional uma

atividade econoacutemica que vise a obtenccedilatildeo de benefiacuteciosrdquo O conceito de consumidor pode ser

analisado com referecircncia a quatro elementos (embora alguns deles possam em determinadas

normas ficar vazios) elemento subjetivo elemento objetivo elemento teleoloacutegico e elemento

relacional (CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA Direito do Consumo Almedina Coimbra 2005

p 29 JORGE MORAIS CARVALHO Manual de Direito do Consumo 2ordf ediccedilatildeo Almedina

Coimbra 2014 p 15)Note-se que o elemento teleoloacutegico exclui do conceito todas as pessoas

fiacutesicas ou juriacutedicas que atuam no acircmbito de uma atividade profissional independentemente

de terem ou natildeo conhecimentos especiacuteficos no que respeita ao negoacutecio em causa Distinguem-

se neste elemento de forma clara os conceitos de consumidor e de utente 390 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Contratos Privadosrdquo in Estudos em

Homenagem agrave Professora Doutora Isabel de Magalhatildees Collaccedilo Vol II Almedina Coimbra

2002 p 123

167

uma grande afinidade com o direito do consumo consistindo tambeacutem na

proteccedilatildeo de uma das partes do contrato precisamente aquela que no contrato

em concreto natildeo tem conhecimentos especiacuteficos na aacuterea do serviccedilo em causa

Neste sentido justifica-se que esta mateacuteria seja normalmente incluiacuteda no

estudo do direito do consumo391

Apesar da referecircncia a serviccedilos puacuteblicos os contratos a que a Lei nordm

2396 se refere satildeo contratos de direito privado392 independentemente de o

prestador de serviccedilo ser uma entidade puacuteblica ou privada sendo competentes

para a resoluccedilatildeo dos litiacutegios os tribunais comuns e natildeo os tribunais

administrativos393 Estes contratos satildeo atualmente celebrados na maioria dos

casos com exceccedilatildeo dos serviccedilos de fornecimento de aacutegua de gestatildeo de

resiacuteduos soacutelidos urbanos e de recolha e tratamento de aacuteguas residuais geridos

em regra pelos municiacutepios entre os utentes e as empresas privadas que prestam

os serviccedilos previstos no diploma ainda que no acircmbito de um contrato de

concessatildeo394 O artigo 1ordm-4 aditado pela Lei nordm 122008 esclarece que se

considera prestador de serviccedilo ldquotoda a entidade puacuteblica ou privada que preste

ao utente qualquer dos serviccedilos [hellip] independentemente da sua natureza

juriacutedica do tiacutetulo a que o faccedila ou da existecircncia ou natildeo de contrato de

concessatildeordquo

O caraacuteter puacuteblico dos serviccedilos estaacute essencialmente relacionado com o

interesse geral nestes serviccedilos que devem estar acessiacuteveis ao puacuteblico na sua

391 ANTOacuteNIO PINTO MONTEIRO ldquoA Protecccedilatildeo do Consumidor de Serviccedilos de

Telecomunicaccedilotildeesrdquo in As Telecomunicaccedilotildees e o Direito na Sociedade da Informaccedilatildeo

Instituto Juriacutedico da Comunicaccedilatildeo Coimbra 1999 p 141 MAFALDA MIRANDA BARBOSA

ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais Taxatividade ou Caraacutecter

Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de 26 de julhordquo in Estudos de Direito

do Consumidor nordm 6 2004 p 407 392 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Contratos Privadosrdquo in Estudos em

Homenagem agrave Professora Doutora Isabel de Magalhatildees Collaccedilo Vol II Almedina Coimbra

2002 p 124 Contra ALEXANDRA LEITAtildeO ldquoA Protecccedilatildeo dos Consumidores no Sector das

Telecomunicaccedilotildeesrdquo in Estudos do Instituto de Direito do Consumo Vol I 2002 p 147 393 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 29 de maio de 2014 Processo nordm

167178120IYPRT-AP1 (Judite Pires) 394 ANTOacuteNIO PINTO MONTEIRO ldquoA Protecccedilatildeo do Consumidor de Serviccedilos Puacuteblicos

Essenciaisrdquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 2 2000 p 340 MAFALDA MIRANDA

BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais Taxatividade ou

Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de 26 de julhordquo in Estudos de

Direito do Consumidor nordm 6 2004 p 422

168

globalidade Neste sentido seria porventura preferiacutevel a referecircncia a serviccedilos

de interesse geral em detrimento de serviccedilos puacuteblicos essenciais395

O requisito da essencialidade remete principalmente para a sua

relevacircncia na vida dos cidadatildeos embora possa ser objeto de criacuteticas396

No que respeita aos serviccedilos abrangidos deve atender-se agrave lista do

artigo 1ordm-2 da Lei nordm 2396 Apesar de se debater acerca do caraacuteter taxativo

ou meramente exemplificativo da lista397 eacute muito duvidoso que face agrave letra

do preceito (ldquosatildeo os seguintes os serviccedilos puacuteblicos abrangidosrdquo) possam ser

acrescentados serviccedilos na sequecircncia de simples determinaccedilatildeo por via

interpretativa da sua natureza de serviccedilo puacuteblico essencial398

Na redaccedilatildeo originaacuteria o diploma aplicava-se aos serviccedilos de

fornecimento de aacutegua de energia eleacutetrica de gaacutes e de telefone estabelecendo

o artigo 13ordm-2 que ldquoa extensatildeo das regras [hellip] aos serviccedilos de

telecomunicaccedilotildees avanccediladas bem como aos serviccedilos postais ter[ia] lugar no

prazo de 120 dias mediante Decreto-Lei ouvidas as entidades representativas

dos respetivos sectoresrdquo o que soacute veio a suceder em 2008

O artigo 127ordm-2 da Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas399 excluiu o

serviccedilo de telefone do acircmbito de aplicaccedilatildeo da Lei nordm 2396 Esta situaccedilatildeo foi

retificada pela Lei nordm 122008 que alterou o artigo 1ordm-2 alargando a lista dos

395 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Contratos Privadosrdquo in Estudos em

Homenagem agrave Professora Doutora Isabel de Magalhatildees Collaccedilo Vol II Almedina Coimbra

2002 p 139 ELIONORA CARDOSO Os Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais ndash A Sua Problemaacutetica no

Ordenamento Juriacutedico Portuguecircs Coimbra Editora Coimbra 2010 p 137 396 ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO ldquoO Anteprojecto de Coacutedigo do Consumidorrdquo in O Direito

Ano 138ordm IV 2006 p 707 397 CARLOS FERREIRA DE ALMEIDA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Contratos Privadosrdquo in Estudos em

Homenagem agrave Professora Doutora Isabel de Magalhatildees Collaccedilo Vol II Almedina Coimbra

2002 pp 140 e 141 MAFALDA MIRANDA BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos

Puacuteblicos Essenciais Taxatividade ou Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm

2396 de 26 de julhordquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 6 2004 p 423 398 ANTOacuteNIO PINTO MONTEIRO ldquoA Protecccedilatildeo do Consumidor de Serviccedilos Puacuteblicos

Essenciaisrdquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 2 2000 p 339 MAFALDA MIRANDA

BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais Taxatividade ou

Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de 26 de julhordquo in Estudos de

Direito do Consumidor nordm 6 2004 p 414 399 Lei nordm 52004 de 10 de fevereiro (retificada pela Declaraccedilatildeo de Retificaccedilatildeo nordm 32-A2004

de 10 de abril) alterada pelo Decreto-Lei nordm 1762007 de 8 de maio pela Lei nordm 352008 de

28 de julho pelos Decretos-Leis nos 1232009 de 21 de maio e 2582009 de 25 de setembro

e pelas Leis nos 462011 de 24 de junho 512011 de 13 de setembro 102013 de 28 de

janeiro e 422013 de 3 de julho

169

serviccedilos puacuteblicos essenciais a que o diploma se aplica Aleacutem de o serviccedilo de

telefone se encontrar novamente abrangido pelo regime400 incluindo

naturalmente todos os serviccedilos ligados a telefone fixo ou moacutevel como as

mensagens escritas401 este acolhe ainda todos os outros serviccedilos relativos a

comunicaccedilotildees eletroacutenicas (em especial Internet e televisatildeo por cabo402) e os

serviccedilos postais de recolha e tratamento de aacuteguas residuais e de gestatildeo de

resiacuteduos soacutelidos urbanos

Em relaccedilatildeo ao telefone discutia-se face agrave redaccedilatildeo originaacuteria se os

serviccedilos relativos aos telemoacuteveis se encontravam abrangidos pelo regime

questatildeo que se encontra atualmente resolvida em sentido afirmativo pela

referecircncia a comunicaccedilotildees eletroacutenicas403

Quanto agrave compatibilizaccedilatildeo do regime da Lei nordm 2396 com o da Lei

das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas natildeo parecem levantar-se problemas teoacutericos

complexos uma vez que natildeo se verifica uma contradiccedilatildeo entre as normas dos

dois diplomas Os princiacutepios gerais previstos no regime dos serviccedilos puacuteblicos

essenciais constituem uma boa base para a interpretaccedilatildeo das normas

especiacuteficas sobre proteccedilatildeo dos utentes de serviccedilos relativos a comunicaccedilotildees

eletroacutenicas consagradas na Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas A grande

vantagem para o utente que resulta da aplicaccedilatildeo da Lei nordm 2396 a estes

contratos consiste na sujeiccedilatildeo dos prestadores de serviccedilos a normas que natildeo

encontram paralelo na Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas como a proibiccedilatildeo

de imposiccedilatildeo de consumos miacutenimos (artigo 8ordm) e em especial o

estabelecimento de um prazo de prescriccedilatildeo relativamente curto do direito de

exigir o pagamento do preccedilo do serviccedilo (artigo 10ordm)404

No que respeita agrave aacutegua agrave eletricidade e ao gaacutes note-se que o contrato

em causa natildeo consiste num simples fornecimento de uma quantidade

determinada caso em que se trataria de simples contratos de compra e venda

mas na disponibilizaccedilatildeo de um sistema de abastecimento que permite ao utente

400 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 4 de junho de 2013 Processo nordm

122618087YIPRTL1 (Rosa Maria Ribeiro Coelho) 401 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 20 de fevereiro de 2014 Processo nordm

155374124 YIPRTL1-8 (Luiacutes Correia de Mendonccedila) 402 ELIONORA CARDOSO Os Serviccedilos Puacuteblicos Essenciais ndash A Sua Problemaacutetica no

Ordenamento Juriacutedico Portuguecircs Coimbra Editora Coimbra 2010 p 103 403 JOAtildeO CALVAtildeO DA SILVA ldquoServiccedilos Puacuteblicos Essenciais Alteraccedilotildees agrave Lei nordm 2396 pelas

Leis nos 122008 e 242008rdquo in Revista de Legislaccedilatildeo e de Jurisprudecircncia Ano 137ordm nordm

3948 2008 p 168 404 MAFALDA MIRANDA BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos

Essenciais Taxatividade ou Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de

26 de julhordquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 6 2004 pp 414 e 415

170

a utilizaccedilatildeo de bem com as carateriacutesticas acordadas sempre que entenda

adequado sendo no entanto devida a quantidade efetivamente consumida405

Assim por exemplo o contrato que tem por objeto uma garrafa de aacutegua natildeo

pode ser qualificado como relativo a um serviccedilo puacuteblico essencial pois neste

caso o bem eacute vendido isoladamente fora de um sistema contiacutenuo de

fornecimento de aacutegua

3 OS CONTRATOS DE PRESTACcedilAtildeO DE SERVICcedilOS PUacuteBLICOS ESSENCIAIS

COMO LIFE TIME CONTRACTS

Os contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos essenciais satildeo sem

duacutevida contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa

Assim por um lado trata-se de contratos de execuccedilatildeo duradoura

Todos os serviccedilos atualmente consagrados na lista do artigo 1ordm-2 da

Lei 2396 pressupotildeem uma prestaccedilatildeo contiacutenua incluindo os serviccedilos postais

na parte que respeita agrave deslocaccedilatildeo diaacuteria do carteiro para entrega de

correspondecircncia

Esta eacute aliaacutes uma carateriacutestica essencial dos serviccedilos puacuteblicos

essenciais

Nos casos da aacutegua da eletricidade do gaacutes da televisatildeo por cabo e

parcialmente do telefone e da Internet o fornecimento resulta em regra de

contratos de execuccedilatildeo duradoura que tecircm por objeto uma prestaccedilatildeo de

execuccedilatildeo continuada a cargo do prestador do serviccedilo (fornecimento

permanente do bem ou do serviccedilo) e uma prestaccedilatildeo de execuccedilatildeo perioacutedica a

cargo do utente (pagamento do preccedilo)406

Estes contratos envolvem mais do que o simples fornecimento do bem

implicando um serviccedilo correspondente ao acesso a uma determinada rede pelo

que existe uma relaccedilatildeo duradoura unitaacuteria determinando-se as prestaccedilotildees

concretas em conformidade com o contrato e em regra consoante as

necessidades e os acessos do utente ao bem atraveacutes de atos materiais como

abrir a torneira acender a luz ou realizar uma chamada telefoacutenica Estes atos

405 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 28 de novembro de 2013 Processo nordm

35729119YIPRTL1-2 (Vaz Gomes) 406 MAFALDA MIRANDA BARBOSA ldquoAcerca do Acircmbito da Lei dos Serviccedilos Puacuteblicos

Essenciais Taxatividade ou Caraacutecter Exemplificativo do Artigo 1ordm nordm 2 da Lei nordm 2396 de

26 de julhordquo in Estudos de Direito do Consumidor nordm 6 2004 p 423 ANTUNES VARELA

Das Obrigaccedilotildees em Geral Vol I 10ordf ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2003 (reimpressatildeo da

ediccedilatildeo de 2000) pp 92 e 93

171

natildeo correspondem agrave aceitaccedilatildeo taacutecita de uma proposta de contrato resultante de

um contrato quadro anterior mas a um pedido (tambeacutem taacutecito) do utente do

qual deve resultar nos termos do contrato previamente celebrado o seu

cumprimento imediato e automaacutetico

A satisfaccedilatildeo do interesse das partes eacute permanente o que tambeacutem eacute

carateriacutestico dos Life Time Contracts

Por outro lado estes contratos satildeo ainda essenciais agrave existecircncia da

pessoa

Podem natildeo ter a mesma relevacircncia em termos da ponderaccedilatildeo do que

um contrato de creacutedito de arrendamento ou de trabalho que podem ter efeitos

mais prolongados no tempo mas os bens ou serviccedilos em causa satildeo

fundamentais para o nosso modo de vida

Considerando-se que ldquoos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia

da pessoa satildeo relaccedilotildees sociais que tecircm por objeto proporcionar ao indiviacuteduo

os bens os serviccedilos o trabalho e os rendimentos necessaacuterios para a sua

autorrealizaccedilatildeo e para a sua participaccedilatildeo na vida socialrdquo (ponto 11 dos

princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts) natildeo subsistem duacutevidas de que

numa primeira linha a aacutegua a eletricidade e o gaacutes satildeo bens sem os quais natildeo

podemos sentir-nos minimamente realizados e em segunda linha o mesmo se

pode concluir dos serviccedilos relativos a comunicaccedilotildees eletroacutenicas Com efeito

a autorrealizaccedilatildeo e a participaccedilatildeo na vida social passam em grande parte

atualmente pela comunicaccedilatildeo Sem meios para estabelecer comunicaccedilotildees

(telefone Internet televisatildeo etc) perde-se parte da forma como a existecircncia

eacute entendida na nossa sociedade

4 APLICACcedilAtildeO DOS PRINCIacutePIOS GERAIS SOBRE LIFE TIME CONTRACTS

A ALGUNS PROBLEMAS RELACIONADOS COM A CESSACcedilAtildeO DO

CONTRATO

Neste ponto o objetivo passa por testar os princiacutepios gerais sobre Life

Time Contracts a questotildees concretas relacionadas com a cessaccedilatildeo dos

contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos essenciais

Seratildeo abordados dois problemas muito distintos (a) cessaccedilatildeo do

contrato pelo utente durante o periacuteodo de fidelizaccedilatildeo e (b) suspensatildeo e

cessaccedilatildeo do contrato pelo prestador do serviccedilo em caso de incumprimento por

parte do cliente

172

a CESSACcedilAtildeO DO CONTRATO DURANTE O PERIacuteODO DE

FIDELIZACcedilAtildeO

O periacuteodo de fidelizaccedilatildeo eacute o periacuteodo miacutenimo de vigecircncia de um

contrato de execuccedilatildeo duradoura sem termo final durante o qual os contraentes

natildeo lhe podem pocircr fim por via de denuacutencia O contrato com termo final em

que por definiccedilatildeo natildeo existe a possibilidade de denuacutencia deve ser cumprido

integralmente Os contratos sem e com termo final distinguem-se em funccedilatildeo

de o contrato continuar ou natildeo a produzir efeitos apoacutes o final do periacuteodo em

causa sendo irrelevante a qualificaccedilatildeo dada pelas partes

O periacuteodo de fidelizaccedilatildeo tem fonte contratual (e natildeo legal) Produz

efeitos se estiver inserido numa claacuteusula de um contrato tratando-se em regra

de uma claacuteusula contratual geral que natildeo pode ser negociada pelo aderente

A fidelizaccedilatildeo incide sobre as condiccedilotildees definidas no contrato em que

a claacuteusula se encontra inserida As partes vinculam-se assim a no periacuteodo

miacutenimo de vigecircncia do contrato cumprir pontualmente as condiccedilotildees que

foram por si previamente definidas

Aleacutem de definir o periacuteodo de duraccedilatildeo miacutenima do contrato (elemento

relativo ao tempo) a claacuteusula relativa ao periacuteodo de fidelizaccedilatildeo pressupotildee a

determinaccedilatildeo do valor a pagar em caso de incumprimento desse periacuteodo

miacutenimo Poder-se-aacute discutir a qualificaccedilatildeo desse valor como preccedilo

(contrapartida da prestaccedilatildeo do serviccedilo relativamente ao conjunto do periacuteodo

de duraccedilatildeo miacutenima do contrato descontando o que jaacute tiver sido pago pelo

consumidor) ou como indemnizaccedilatildeo (claacuteusula penal que fixa

antecipadamente o valor da indemnizaccedilatildeo a pagar em caso de incumprimento)

A natureza da claacuteusula soacute pode ser avaliada em concreto dependendo

da interpretaccedilatildeo das declaraccedilotildees das partes (artigos 236ordm a 238ordm do Coacutedigo

Civil e 1ordm e 11ordm do Decreto-Lei nordm 44685407) Nos casos em que o valor a

pagar equivale agrave soma do montante das mensalidades acordadas como

contrapartida da prestaccedilatildeo do serviccedilo ateacute ao termo do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo

esse valor deveraacute ser em princiacutepio qualificado como preccedilo Se o valor for

inferior o mais provaacutevel seraacute tratar-se de uma claacuteusula penal O valor nunca

pode ser superior

A jurisprudecircncia aponta no sentido de que a validade da claacuteusula que

impotildee um periacuteodo de fidelizaccedilatildeo depende da existecircncia de contrapartidas para

407 O Decreto-Lei nordm 44685 de 25 de outubro foi alterado pelos Decretos-Leis nos 22095

de 31 de agosto (retificado pela Declaraccedilatildeo de Retificaccedilatildeo nordm 114-B95 de 31 de agosto)

24999 de 7 de julho e 3232001 de 17 de dezembro

173

o consumidor408 efetivamente compensadas ndash apenas ndash pela manutenccedilatildeo do

contrato por um periacuteodo miacutenimo409 Invoca-se o artigo 22ordm-1-a) do Decreto-

Lei nordm 44685 que visa proteger o aderente de uma vinculaccedilatildeo excessiva

irrefletida410 evitando que veja a sua liberdade contratual limitada411

Neste sentido nota-se que o ponto 32 dos princiacutepios gerais sobre Life

Time Contracts apesar de proibir em regra a cessaccedilatildeo antecipada do contrato

por ato unilateral de uma das partes excetua ldquoos casos em que a cessaccedilatildeo

antecipada eacute necessaacuteria para garantir um miacutenimo de liberdade de accedilatildeo e de

decisatildeordquo Articulando este princiacutepio com o constante do ponto 51 (ldquoo facto de

algueacutem colocar agrave disposiccedilatildeo de outrem bens ou serviccedilos necessaacuterios agrave

satisfaccedilatildeo as necessidades essenciais relacionadas com o consumo [hellip]

implica um dever de proteccedilatildeo da pessoa do consumidor [hellip] como parte[hellip]

mais fraca[hellip] da relaccedilatildeordquo) protege-se a posiccedilatildeo do utenteconsumidor por se

tratar de um Life Time Contract

O artigo 19ordm-c) do Decreto-Lei nordm 44685 tambeacutem eacute relevante neste

contexto No Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 7 de maio de

2015412 considera-se que ldquoa claacuteusula contratual geral inserida num contrato

de prestaccedilatildeo de serviccedilos de comunicaccedilotildees electroacutenicas vaacutelido por dois anos

que estabeleccedila que em caso de denuacutencia antecipada pelo cliente a operadora

teraacute direito a uma indemnizaccedilatildeo no valor da totalidade das prestaccedilotildees do preccedilo

previstas ateacute ao termo do prazo contratado impotildee consequecircncias patrimoniais

injustificadas e gravosas ao aderente e consequentemente eacute uma claacuteusula penal

desproporcionada aos danos a ressarcirrdquo

Considera-se portanto excessiva uma claacuteusula que preveja o

pagamento de um valor correspondente ao preccedilo contratado para a globalidade

408 Cfr Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 6 de dezembro de 2011 Processo nordm

2881080YXLSBL1-7 (Luiacutes Espiacuterito Santo) Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de

5 de junho de 2012 Processo nordm 3095085YXLSBL1-7 (Maria da Conceiccedilatildeo Saavedra)

anotado por JOAtildeO PEDRO PINTO-FERREIRA e JORGE MORAIS CARVALHO ldquoContrato para a

Utilizaccedilatildeo de Instalaccedilotildees e Equipamentos Desportivos ndash Anotaccedilatildeo ao Acoacuterdatildeo do Tribunal da

Relaccedilatildeo de Lisboa de 5 de junho de 2012rdquo in Desporto amp Direito ndash Revista Juriacutedica de

Direito do Desporto Ano X nordm 28 2012 e Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 5

de julho de 2012 Processo nordm 7855109TBOERL (Teresa Prazeres Pais) 409 JORGE MORAIS CARVALHO ldquoContratos Civis e Proacuteprios do Fenoacutemeno Desportivordquo in O

Desporto que os Tribunais Praticam Coimbra Editora Coimbra 2014 pp 69-90 p 89 410 JOSEacute MANUEL DE ARAUacuteJO BARROS Claacuteusulas Contratuais Gerais Coimbra Editora

Coimbra 2010 p 343 411 ANA PRATA Contratos de Adesatildeo e Claacuteusulas Contratuais Gerais Almedina Coimbra

2010 p 520 412 Processo nordm 134839123YIPRTP1 (Leonel Serocircdio)

174

do periacuteodo contratual miacutenimo Natildeo parece ser assim admissiacutevel a estipulaccedilatildeo

de uma compensaccedilatildeo por incumprimento do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo

equivalente ao valor correspondente agraves mensalidades em falta

O incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo por parte do consumidor

soacute pode resultar da cessaccedilatildeo do contrato por causa natildeo imputaacutevel ao

profissional antes do termo do periacuteodo miacutenimo de vigecircncia do contrato

definido pelas partes

Este ocorre em duas situaccedilotildees denuacutencia do contrato pelo consumidor

dentro do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo resoluccedilatildeo do contrato pela empresa com

fundamento em incumprimento por parte do cliente413

Natildeo haacute incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo se o cliente declarar

agrave outra parte a resoluccedilatildeo do contrato mas natildeo tiver fundamento para exercer

o direito Neste caso natildeo haacute direito de resoluccedilatildeo pelo que a declaraccedilatildeo natildeo

produz efeitos O contrato manteacutem-se portanto nos termos anteriores agrave

declaraccedilatildeo do consumidor

Tambeacutem natildeo haacute incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo no caso de

o consumidor manifestar intenccedilatildeo de natildeo exercer o seu direito de creacutedito em

relaccedilatildeo ao profissional mas natildeo de pocircr em causa a manutenccedilatildeo do contrato

Por exemplo num contrato relativo a comunicaccedilotildees eletroacutenicas o pedido de

portabilidade ou a alteraccedilatildeo da residecircncia do consumidor nos casos em que

impeccedilam a prestaccedilatildeo do serviccedilo pelo profissional natildeo satildeo incompatiacuteveis com

a manutenccedilatildeo do contrato pelo que o consumidor natildeo incumpre a claacuteusula de

fidelizaccedilatildeo podendo (e devendo) continuar a cumprir periodicamente a sua

prestaccedilatildeo

Quanto agraves consequecircncias do incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo

ndash quando esta seja vaacutelida ndash pelo consumidor o valor a pagar por este nunca

poderaacute exceder o das prestaccedilotildees em falta ateacute ao final do periacuteodo definido no

contrato Assim por exemplo caso o consumidor resolva o contrato 6 meses

antes do final do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo e o valor da mensalidade seja de euro 40

o valor maacuteximo que lhe poderaacute ser exigido eacute determinado tendo em conta os

meses em falta (6 meses) e o valor da mensalidade (euro 40) pelo que natildeo poderaacute

ser superior a euro 240

413 Cfr Acoacuterdatildeos do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 27 de maio de 2010 Processo nordm

4294060YXLSBL1-2 (Neto Neves) e de 30 de junho de 2011 Processo nordm

1410080TJLSBL1-7 (Luiacutes Lameiras) Natildeo havendo incumprimento definitivo natildeo haacute

fundamento de resoluccedilatildeo pelo que a claacuteusula de fidelizaccedilatildeo natildeo pode ser acionada Neste

sentido v Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Lisboa de 25 de fevereiro de 2010 Processo

nordm 1591083TVLSBL1-6 (Maacutercia Portela)

175

Em mateacuteria de contratos relativos a comunicaccedilotildees eletroacutenicas o

Decreto-Lei nordm 562010 consagra um regime especial que se aplica a qualquer

utente ndash conceito definido no artigo 1ordm-3 da Lei nordm 2396 ndash e natildeo apenas a

consumidores

O artigo 2ordm-3 do Decreto-Lei nordm 562010 estabelece que ldquoeacute proibida a

cobranccedila de qualquer contrapartida aleacutem das referidas no nuacutemero anterior a

tiacutetulo indemnizatoacuterio ou compensatoacuterio pela resoluccedilatildeo do contrato durante o

periacuteodo de fidelizaccedilatildeordquo

O artigo 2ordm-2 do Decreto-Lei nordm 562010 pressupotildee ndash interpretado

extensivamente parcialmente em linha com o artigo 48ordm-2 da Lei das

Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas ndash que o periacuteodo de fidelizaccedilatildeo tem de estar

associado a determinada vantagem

Essa vantagem pode consistir (i) num desconto abatimento ou

subsidiaccedilatildeo na aquisiccedilatildeo ou posse de equipamento que permite o acesso ao

serviccedilo de comunicaccedilotildees eletroacutenicas hipoacuteteses constantes da letra do artigo

2ordm-2 do Decreto-Lei nordm 562010 ou (ii) em outros aspetos desde que previstos

de forma expressa (e clara no que respeita aos valores) no contrato nos termos

do artigo 48ordm-2 da Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas na redaccedilatildeo dada pela

Lei nordm 512011 de 13 de setembro

O jaacute referido Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 1 de abril

de 2014 restringe no entanto a aplicaccedilatildeo do Decreto-Lei nordm 562010 aos

casos em que eacute fornecido um equipamento414

Em sentido diametralmente oposto ao desta decisatildeo natildeo

correspondendo assim agrave posiccedilatildeo intermeacutedia que defendemos neste texto pode

ler-se no Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 26 de junho de 2014415

que ldquose natildeo tiver sido vendido ou de outra forma fornecido qualquer

equipamento pelo operador da rede puacuteblica de comunicaccedilotildees electroacutenicas ao

utente das comunicaccedilotildees electroacutenicas aquelas normas do corpo do artigo 2ordm-

2 e do artigo 2ordm-3 impedem que o operador cobre o que quer que seja pela

resoluccedilatildeo do contrato resoluccedilatildeo essa operada pelo utente durante o periacuteodo de

fidelizaccedilatildeordquo Portanto segundo esta decisatildeo que parte do pressuposto de que

ldquoa disciplina do Decreto-Lei nordm 562010 natildeo foi alterada ou derrogada pela

414 Esta orientaccedilatildeo teve grande sucesso no Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto v Acoacuterdatildeos de 13

de maio de 2014 Processo nordm 203179122YIPRTP1 (Rodrigues Pires) de 16 de setembro

de 2014 Processo nordm 27076138YIPRTP1 (Henrique Arauacutejo) de 20 de maio de 2014 de 28

de abril de 2015 Processo nordm 95926130YIPRTP1 (Vieira e Cunha) e embora de forma

bastante atenuada quanto agraves consequecircncias Acoacuterdatildeo de 7 de maio de 2015 415 Processo nordm 28496120YIPRTP1 (Pedro Lima Costa)

176

entrada em vigor da Lei nordm 512011rdquo416 a vantagem tem de estar relacionada

com um equipamento sob pena de o prestador de serviccedilos de comunicaccedilotildees

eletroacutenicas natildeo poder impor ao utente o pagamento de qualquer valor pelo

incumprimento do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo

Parece-nos que a interpretaccedilatildeo mais adequada por corresponder quer

agrave letra quer ao espiacuterito dos dois diplomas eacute aquela que permite a sua

compatibilizaccedilatildeo aplicando-se o Decreto-Lei nordm 562010 independentemente

de ter sido fornecido um equipamento No caso de natildeo ter sido fornecido um

equipamento a vantagem para o utente afere-se com base em outros elementos

(artigo 48ordm-2 da Lei das Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas) desde que previstos no

contrato

Quanto ao valor a pagar em caso de incumprimento da claacuteusula o

artigo 2ordm-2 do Decreto-Lei nordm 562010 prevecirc que nos primeiros 6 meses a

contar do iniacutecio do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo o consumidor deve pagar no

maacuteximo 100 do valor da vantagem concedida em contrapartida da

fidelizaccedilatildeo apoacutes os primeiros 6 meses (e antes de se chegar ao uacuteltimo ano) o

consumidor deve pagar no maacuteximo 80 no uacuteltimo ano do periacuteodo de

fidelizaccedilatildeo o consumidor deve pagar no maacuteximo 50 Estas satildeo as

percentagens maacuteximas podendo ser inferiores uma vez que ao valor da

vantagem concedida em contrapartida da fidelizaccedilatildeo eacute subtraiacutedo nos termos

da norma o valor das mensalidades entretanto pagas417 A soluccedilatildeo que permite

indexar o valor a pagar ao valor da vantagem tem o meacuterito de colocar em

relevo o nexo quase sinalagmaacutetico418 que existe entre o periacuteodo de fidelizaccedilatildeo

e a vantagem

O que acontece se durante o periacuteodo de fidelizaccedilatildeo o utente fica

desempregado tem de emigrar muda de residecircncia ou por qualquer motivo

passa a estar sobreendividado

A resposta dada pelo direito portuguecircs eacute claramente inadequada natildeo

existindo um mecanismo que salvaguarde de forma equilibrada a posiccedilatildeo do

utente O regime da alteraccedilatildeo de circunstacircncias a que se poderia

eventualmente recorrer nestes casos tem pressupostos de aplicaccedilatildeo que o

416 Parece-nos correta a ideia de que o Decreto-Lei nordm 562010 natildeo foi alterado ou derrogado

pela entrada em vigor da Lei nordm 512011 Com efeito sendo a Lei das Comunicaccedilotildees

Eletroacutenicas (alterada pela Lei nordm 512011) lei geral em relaccedilatildeo ao Decreto-Lei nordm 562010

parece-nos que a interpretaccedilatildeo em sentido contraacuterio feita na jurisprudecircncia citada na nota 29

natildeo eacute adequada 417 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 13 de maio de 2014 418 Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo do Porto de 21 de outubro de 2014 Processo nordm

83857138YIPRTP1 (Henrique Arauacutejo)

177

tornam dificilmente aplicaacutevel Com efeito tem-se entendido que estas

situaccedilotildees diretamente ligadas ao utente se encontram cobertas ldquopelos riscos

proacuteprios do contratordquo

Relativamente agrave emigraccedilatildeo e agrave mudanccedila de residecircncia trata-se de

decisotildees dos utentes que devem ter em conta na sua atuaccedilatildeo a vinculaccedilatildeo

contratual com terceiros O desemprego e o sobreendividamento (quando

motivado no todo ou em parte por razatildeo exterior ao sobreendividado) natildeo

resultam em regra de decisotildees dos utentes podendo mais facilmente ser

invocados no sentido da adaptaccedilatildeo ou modificaccedilatildeo do contrato

O princiacutepio 10 dos princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts parece

menos exigente do que o artigo 437ordm do Coacutedigo Civil Com efeito o ponto

101 estabelece que ldquose as circunstacircncias socioeconoacutemicas pressupostas pelas

partes como fundamento da conclusatildeo do contrato natildeo se verificarem havendo

uma grave divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo de que as partes

partiram o conteuacutedo dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da

pessoa deve ser adaptado ou modificadordquo

A celebraccedilatildeo de um contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos

essenciais com uma claacuteusula de fidelizaccedilatildeo pressupotildee em regra uma

situaccedilatildeo econoacutemica estaacutevel por parte do utente que lhe permita cumprir o

contrato ao longo da sua vigecircncia

O ponto 102 prevecirc que ldquoa divergecircncia pode referir-se agraves circunstacircncias

presentes ou agraves circunstacircncias futuras e deve ser tatildeo grave que se as partes

tivessem uma representaccedilatildeo exata da realidade natildeo teriam concluiacutedo nenhum

contrato ou teriam concluiacutedo um contrato de tipo ou de conteuacutedo diferenterdquo

Neste caso estatildeo em causa circunstacircncias futuras relativas agrave

estabilidade da situaccedilatildeo socioeconoacutemica do utente que eram essenciais para a

celebraccedilatildeo do contrato Se as partes soubessem que o utente iria emigrar

passado seis meses (com um periacuteodo de fidelizaccedilatildeo de vinte e quatro meses)

natildeo teriam certamente celebrado o contrato

O ponto 103 determina que ldquoao apreciar-se a gravidade da

divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo deve atender-se ao fim do

contrato agrave distribuiccedilatildeo legal ou contratual do risco e ao significado social da

relaccedilatildeordquo

Se for dada especial relevacircncia ao fim do contrato e agrave distribuiccedilatildeo

contratual do risco podemos aproximar este princiacutepio ao artigo 437ordm do

Coacutedigo Civil enfraquecendo-o significativamente Prevecirc-se no entanto que

tenha igualmente em conta o significado social da relaccedilatildeo Este elemento

parece decisivo para concluir que agrave partida este princiacutepio poderaacute ser aplicaacutevel

aos casos de desemprego emigraccedilatildeo ou sobreendividamento Quanto agrave

mudanccedila de residecircncia a resposta teraacute de ser menos taxativa uma vez que

178

depende de circunstacircncias concretas relativas ao caso Se o utente decidir

simplesmente mudar de residecircncia sem que nada na sua situaccedilatildeo

socioeconoacutemica o imponha ou aconselhe natildeo deve ser protegido por este

princiacutepio Jaacute se tiver que mudar de residecircncia devido a uma deslocalizaccedilatildeo do

seu posto de trabalho provavelmente jaacute deveraacute ser protegido natildeo tendo de

cumprir a claacuteusula de fidelizaccedilatildeo A anaacutelise soacute poderaacute ser feita em qualquer

caso em concreto

O princiacutepio 103 deve ser lido em articulaccedilatildeo com o princiacutepio 153 do

qual resulta que ldquono momento da conformaccedilatildeo como no momento da

interpretaccedilatildeo do contrato deve considerar-se designadamente os riscos de

falta de emprego de falta de habitaccedilatildeo ou de sobreendividamento

relacionando-os com as suas causas socioeconoacutemicasrdquo

Os princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts estatildeo essencialmente

construiacutedos a pensar na proteccedilatildeo da pessoa no sentido da manutenccedilatildeo do

contrato419 e natildeo no da sua resoluccedilatildeo Do ponto 31 dos princiacutepios gerais sobre

Life Time Contracts resulta que ldquoa confianccedila de ambas as partes na

continuidade da relaccedilatildeo contratual deve ser protegidardquo Num contrato de

creacutedito de arrendamento ou de trabalho o devedor o inquilino ou o

trabalhador tem de ser protegido em regra com vista agrave manutenccedilatildeo do

contrato Num contrato de prestaccedilatildeo de serviccedilos puacuteblicos essenciais o utente

tem de ser protegido nos dois sentidos Jaacute analisamos a questatildeo no que respeita

agrave possibilidade de o utente pocircr termo ao contrato Veremos agora as regras e

os princiacutepios aplicaacuteveis agrave situaccedilatildeo inversa em que eacute o prestador de serviccedilos a

pocircr termo ao contrato

b SUSPENSAtildeO E CESSACcedilAtildeO DO CONTRATO PELO PRESTADOR DE

SERVICcedilO

A questatildeo a que se procura dar resposta neste ponto diz respeito agrave

consequecircncia da mora do utente relativamente agrave obrigaccedilatildeo de pagar o preccedilo

sendo necessaacuterio perceber se e quando a prestaccedilatildeo do serviccedilo pode ser

suspensa e o contrato resolvido

O ponto 11 dos princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts ocupa-se

da cessaccedilatildeo antecipada do contrato O ponto 111 determina que ldquoa cessaccedilatildeo

antecipada dos contratos duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa deve ser

feita de uma forma transparente controlaacutevel e socialmente aceitaacutevelrdquo

acrescentando-se que ldquocaso seja feita contra a vontade do consumidor [hellip]

419 LUCA NOGLER e UDO REIFNER ldquoIntroduction The New Dimension of Life Time in the

Law of Contracts and Obligationsrdquo in Life Time Contracts Eleven International Publishing

The Hague 2014 p 43

179

deve representar-se como uma medida extrema (ultima ratio)rdquo A

responsabilidade social impotildee por exemplo que o fornecimento de aacutegua natildeo

possa ser suspenso salvo em situaccedilotildees-limite natildeo se devendo considerar

como tal a simples mora do consumidor sem analisar as circunstacircncias em que

esta ocorreu420

O ponto 112 impotildee que o ato pelo qual se faz cessar o contrato seja

fundamentado sendo as razotildees comunicadas ldquoverdadeiras adequadas e justas

natildeo podendo em caso algum ser razotildees discriminatoacuterias ou ter resultados

discriminatoacuteriosrdquo As razotildees tecircm de estar relacionadas neste caso com o

comportamento do consumidor que deve ser ldquotatildeo grave ou significativo que

justifique uma ruturardquo (1121) Assim por exemplo num contrato de

fornecimento de eletricidade a falta de pagamento de uma ou mais faturas

numa situaccedilatildeo em que o consumidor se encontre impossibilitado de o fazer

por algum evento da sua vida natildeo deve permitir a suspensatildeo e a cessaccedilatildeo do

contrato uma vez que o comportamento do consumidor natildeo eacute suficientemente

censuraacutevel a ponto de justificar a rutura

A lei portuguesa apesar de proteger o utente de serviccedilos puacuteblicos

essenciais no que respeita agrave suspensatildeo do fornecimento natildeo vai ainda tatildeo

longe como o que parece resultar dos princiacutepios gerais sobre Life Time

Contracts

Nos termos do artigo 5ordm-1 da Lei nordm 2396 ldquoa prestaccedilatildeo do serviccedilo

natildeo pode ser suspensa sem preacute-aviso adequado salvo caso fortuito ou de forccedila

maiorrdquo Impotildee-se assim que o prestador de serviccedilo avise previamente o utente

de que o fornecimento do serviccedilo poderaacute ser suspenso Esta regra protege o

utente contra uma suspensatildeo inesperada

O artigo 5ordm-2 regula especificamente os casos de mora do utente

estabelecendo que sempre que se ldquojustifique a suspensatildeo do serviccedilo esta soacute

pode ocorrer apoacutes o utente ter sido advertido por escrito com a antecedecircncia

miacutenima de vinte dias relativamente agrave data em que ela venha a ter lugarrdquo Esta

advertecircncia ldquoaleacutem de justificar o motivo da suspensatildeo deve informar o utente

dos meios que tem ao seu dispor para evitar a suspensatildeo do serviccedilo e bem

assim para a retoma do mesmo sem prejuiacutezo de poder fazer valer os direitos

que lhe assistam nos termos geraisrdquo (artigo 5ordm-3) O utente tem assim de ser

informado da possibilidade de suspensatildeo com uma antecedecircncia bastante

razoaacutevel e dos passos que deve dar se pretender evitar a suspensatildeo ou jaacute

420 Nota-se que o ponto 142 dos princiacutepios gerais sobre Life Time Contracts refere que os

contratos que tirem o acesso a rendimento do consumidor ldquoentregando-o ao fornecedor de

bens ou ao prestador de serviccedilos devem proporcionar agrave pessoa humana o miacutenimo necessaacuterio

para a sua subsistecircnciardquo

180

depois de esta ter tido lugar se quiser voltar a beneficiar da prestaccedilatildeo do

serviccedilo

O artigo 5ordm-4 reforccedila a posiccedilatildeo do utente ao prever que ldquoa prestaccedilatildeo

do serviccedilo puacuteblico natildeo pode ser suspensa em consequecircncia de falta de

pagamento de qualquer outro serviccedilo ainda que incluiacutedo na mesma fatura

salvo se forem funcionalmente indissociaacuteveisrdquo Sendo dissociaacuteveis os

serviccedilos natildeo pode ser suspensa a prestaccedilatildeo de um na sequecircncia da falta de

pagamento de outro Por exemplo se o utente tiver celebrado um contrato de

fornecimento de energia eleacutetrica e de gaacutes mas natildeo pagar a parte da fatura

relativa ao gaacutes o fornecimento de energia eleacutetrica natildeo pode ser interrompido

No que respeita aos serviccedilos de comunicaccedilotildees eletroacutenicas se estiver

em causa uma relaccedilatildeo de consumo o regime eacute consideravelmente menos

favoraacutevel para o consumidor sendo mesmo incompreensiacutevel no que respeita

aos seus objetivos Aplica-se neste caso o artigo 52ordm-A da Lei das

Comunicaccedilotildees Eletroacutenicas

O nordm 1 deste artigo alarga o prazo do preacute-aviso para trinta dias

O nordm 2 determina que o preacute-aviso seja comunicado por escrito ao

consumidor impondo o prazo (ldquodez dias apoacutes a data de vencimento da faturardquo)

e o conteuacutedo (indicaccedilatildeo especiacutefica da ldquoconsequecircncia do natildeo pagamento

nomeadamente a suspensatildeo do serviccedilo e a resoluccedilatildeo automaacutetica do contrato e

informaacute-lo dos meios ao seu dispor para as evitarrdquo) Isto significa que mesmo

que natildeo o queira fazer o prestador do serviccedilo de comunicaccedilotildees eletroacutenicas

tem o dever de desencadear o mecanismo que conduziraacute agrave suspensatildeo do

serviccedilo e posteriormente agrave resoluccedilatildeo do contrato no prazo de dez dias apoacutes

a data do vencimento da fatura Natildeo se admite aparentemente sequer que as

partes acordem numa dilaccedilatildeo do prazo para pagamento da fatura interpretaccedilatildeo

do preceito que me parece de afastar por ser inaceitaacutevel

Comunicada ao consumidor a possibilidade de suspensatildeo este tem

trinta dias para pagar Se natildeo o fizer o prestador de serviccedilo deve

ldquoobrigatoriamente no prazo de dez dias apoacutes o fim do prazo [hellip] suspender o

serviccedilo por um periacuteodo de trinta diasrdquo (nordm 3) A suspensatildeo soacute pode ser evitada

pelas partes se tiverem celebrado um acordo de pagamento por escrito com

vista agrave regularizaccedilatildeo dos valores em diacutevida

A suspensatildeo tambeacutem natildeo tem lugar nos termos do nordm 4 nos casos em

que ldquoos valores da fatura sejam objeto de reclamaccedilatildeo por escrito junto da

empresa com fundamento na inexistecircncia ou na inexigibilidade da diacutevida ateacute

agrave data em que deveraacute ter iniacutecio a suspensatildeordquo

Se o consumidor pagar os valores em diacutevida ou se as partes tiverem

celebrado um acordo de pagamento por escrito cessa a suspensatildeo do serviccedilo

devendo este ser resposto no prazo maacuteximo de cinco dias uacuteteis (nordm 6)

181

O nordm 7 estatui que ldquofindo o periacuteodo de 30 dias de suspensatildeo sem que

o consumidor tenha procedido ao pagamento da totalidade dos valores em

diacutevida ou sem que tenha sido celebrado um acordo de pagamento por escrito

o contrato considera-se automaticamente resolvidordquo Ou seja mais uma vez

independentemente da sua vontade o prestador de serviccedilo tem o dever de

resolver o contrato

Este regime parece ter tido como objetivo por um lado resolver o

problema das pendecircncias nos tribunais portugueses tendo como pressuposto

que estes litiacutegios entopem os tribunais e por outro lado combater o

sobreendividamento dos consumidores evitando a acumulaccedilatildeo de diacutevidas

Natildeo se evita contudo a propositura de accedilotildees em tribunal uma vez que seraacute

sempre devido pelo menos o valor relativo ao mecircs que desencadeou este

procedimento mais o correspondente agrave prestaccedilatildeo do serviccedilo nos quarenta dias

seguintes Teremos portanto sempre uma diacutevida correspondente a um periacuteodo

superior a dois meses Se o regime ficasse por aqui ainda se poderia considerar

cumprida uma parte dos seus objetivos pois conter-se-ia a acumulaccedilatildeo de

diacutevidas pelo consumidor

No entanto o nordm 8 de preceito em anaacutelise estabelece que a resoluccedilatildeo

ldquonatildeo prejudica a cobranccedila de uma contrapartida a tiacutetulo indemnizatoacuterio ou

compensatoacuterio pela resoluccedilatildeo do contrato durante o periacuteodo de fidelizaccedilatildeordquo

Ou seja aleacutem dos valores relativos aos dois meses em que o serviccedilo natildeo esteve

suspenso o prestador do serviccedilo pode ainda exigir a contrapartida relativa ao

incumprimento da claacuteusula de fidelizaccedilatildeo Eacute a proacutepria lei que impotildee que se

mantecircm os efeitos do periacuteodo de fidelizaccedilatildeo mas apenas para o utente Resulta

deste regime portanto que o prestador de serviccedilo estaacute obrigado a resolver o

contrato deixando de prestar o serviccedilo mas manteacutem o direito a exigir os

valores previstos na claacuteusula de fidelizaccedilatildeo Esta norma nada resolve assim

como se vecirc quer o problema das pendecircncias nos nossos tribunais quer o

problema da acumulaccedilatildeo de diacutevidas pelos consumidores acentuando o

desequiliacutebrio da relaccedilatildeo

Se a empresa decidir continuar a prestar o serviccedilo depois de

ultrapassados os prazos aqui referidos deixa de poder exigir o seu pagamento

sendo tambeacutem responsaacutevel pelo pagamento das custas processuais devidas

pela cobranccedila do creacutedito (nordm 10) A consequecircncia eacute bastante gravosa para o

prestador de serviccedilo que por esta via se vecirc compelido a suspender o serviccedilo e

a resolver o contrato sempre que se verifiquem as situaccedilotildees aqui indicadas

independentemente das circunstacircncias concretas do caso

Uma leitura deste regime agrave luz dos jaacute referidos princiacutepios gerais sobre

Life Time Contracts permitiria corrigir algumas soluccedilotildees inadequadas no

sentido da sua aceitabilidade social Trata-se assim de um oacutetimo exemplo da

182

importacircncia que a consideraccedilatildeo da existecircncia de uma categoria de contratos

duradouros essenciais agrave existecircncia da pessoa e da sua regulaccedilatildeo especiacutefica

pode ter

183

O contrato de creacutedito para aquisiccedilatildeo de habitaccedilatildeo

permanente garantido por hipoteca agrave luz dos

princiacutepios de life time contracts

Ana Taveira da Fonseca

1 QUALIFICACcedilAtildeO DO CONTRATO DE CREacuteDITO PARA AQUISICcedilAtildeO DE

HABITACcedilAtildeO PERMANENTE GARANTIDO POR HIPOTECA COMO LIFE

TIME CONTRACT

O contrato de muacutetuo para aquisiccedilatildeo de habitaccedilatildeo proacutepria e permanente

pode ser qualificado como um life time contract porque se trata um contrato

duradouro essencial agrave existecircncia da pessoa atraveacutes do qual ainda que

indiretamente se proporciona a fruiccedilatildeo de um bem fundamental a habitaccedilatildeo

Constitui por isso um contrato essencial agrave realizaccedilatildeo e integraccedilatildeo do

indiviacuteduo em sociedade

Noutra perspetiva o contrato de muacutetuo para aquisiccedilatildeo de habitaccedilatildeo

proacutepria e permanente eacute um contrato de creacutedito ao consumo com

especificidades proacuteprias que decorrem da importacircncia dos montantes

envolvidos da duraccedilatildeo do contrato e da finalidade do creacutedito Um creacutedito que

se destina a facultar ao mutuaacuterio habitaccedilatildeo permanente tem para este uma

importacircncia diversa de qualquer outro contrato de financiamento

Ao contraacuterio do que sucede noutros paiacuteses em que o acesso agrave habitaccedilatildeo

eacute garantido primordialmente pelo arrendamento em Portugal em virtude dos

incentivos que foram criados para aquisiccedilatildeo de casa proacutepria e das taxas de juro

historicamente baixas o modelo passou a ser o da aquisiccedilatildeo da propriedade

atraveacutes do recurso ao creacutedito de longa duraccedilatildeo

Tatildeo importante quanto indagar se o regime juriacutedico do contrato de

arrendamento para habitaccedilatildeo estaacute em conformidade com os princiacutepios de life

time contracts eacute averiguar se o contrato de creacutedito agrave habitaccedilatildeo garantido por

hipoteca protege eficaz e efetivamente o consumidor Essa proteccedilatildeo vinha

sendo fundamentalmente assegurada pela imposiccedilatildeo de fornecimento

detalhado de informaccedilatildeo ao mutuaacuterio antes da celebraccedilatildeo do contrato Ora o

que a crise econoacutemico-financeira que vem assolando a Europa desde 2008

demonstrou eacute que essa proteccedilatildeo eacute insuficiente para atingir os objetivos a que

Professora da Faculdade de Direito da Universidade Catoacutelica Portuguesa

184

se propotildee O paradigma de que o consumidor informado saberaacute tomar as

melhores decisotildees vem sendo pouco a pouco substituiacutedo por um modelo de

responsable lending em que o mutuante tambeacutem se responsabiliza pelos riscos

da concessatildeo de creacutedito ao longo de toda a execuccedilatildeo do contrato Por esta via

pretende-se assegurar na medida do possiacutevel que o mutuaacuterio iraacute contrair um

creacutedito com montantes e condiccedilotildees de reembolso que teraacute capacidade de

cumprir natildeo obstante tratar-se de um financiamento de muito longo prazo e

por isso estar sujeito a um conjunto de vicissitudes imprevisiacuteveis e natildeo

controlaacuteveis no momento da concessatildeo do creacutedito umas que podem afetar

diretamente a pessoa do mutuaacuterio como por exemplo a diminuiccedilatildeo da

capacidade financeira provocada por doenccedila ou desemprego involuntaacuterio ou a

ocorrecircncia de uma qualquer patologia na relaccedilatildeo matrimonial e outras

decorrentes da imprevista alteraccedilatildeo da conjuntura financeira que conduza por

exemplo a um aumento das taxas de juros passiacutevel de tornar incomportaacutevel o

serviccedilo da diacutevida421

O que nos propomos analisar eacute em que medida os princiacutepios de life

time contracts se encontram refletidos na nossa legislaccedilatildeo especialmente

depois das alteraccedilotildees introduzidas pelas Leis nos 57 58 59 e 602012 de 9 de

Novembro e que modificaccedilotildees se vislumbram venham a ser efetuadas

421 Para UDO REIPFNER ldquoo modelo paternalistardquo da informaccedilatildeo enquanto meio preferencial

de proteccedilatildeo do consumidor falhou em virtude da incapacidade de os consumidores jogarem

corretamente as regras do mercado para daiacute concluir que a ldquoconsumer credit protection needs

a safe haven in the form of the loan contract as a life time contractrdquo Cfr UDO REIPFNER

ldquoDarlehensvertrag als Kapitalmiete (Locatio conduction specialis)rdquo Life Time Contracts

Social Long-Term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law (org Luca

Nogler amp Udo Reifner) Eleven International Publishing The Hague 2014 p 420 Ainda

segundo o mesmo autor o princiacutepio de responsible lending natildeo se pode concretizar

simplesmente na disponibilizaccedilatildeo de informaccedilatildeo ao consumidor porque desta forma se

acautela o momento da formaccedilatildeo do contrato mas natildeo o periacuteodo da sua execuccedilatildeo Segundo

REIFNER eacute esta concepccedilatildeo de responsible lending que estaacute refletida na proposta que veio a

dar origem agrave Diretiva 201417UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 de fevereiro

de 2014 relativa aos contratos de creacutedito aos consumidores para imoacuteveis de habitaccedilatildeo Cfr

UDO REIPFNER ldquoResponsible Bankruptcyrdquo Life Time Contracts Social Long-Term Contracts

in Labour Tenancy and Consumer Credit Law (org Luca Nogler amp Udo Reifner) Eleven

International Publishing The Hague 2014 p 570 Sobre a importacircncia da manutenccedilatildeo de

obrigaccedilotildees de informaccedilatildeo durante o periacuteodo de execuccedilatildeo do contrato de creacutedito ao consumo

no direito do Reino Unido GERAINT HOWELLS ldquoChange of Circumstances in Consumer

Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call for the Maintenance of Sector

Specific Rulesrdquo Life Time Contracts Social Long-Term Contracts in Labour Tenancy and

Consumer Credit Law (org Luca Nogler amp Udo Reifner) Eleven International Publishing

The Hague 2014 pp 454 e ss

185

aquando da transposiccedilatildeo da Diretiva 201417UE do Parlamento Europeu e

do Conselho de 24 de fevereiro de 2014 relativa aos contratos de creacutedito agrave

habitaccedilatildeo garantidos por hipoteca

2 DIMENSAtildeO HUMANA DO DIREITO

O princiacutepio primeiro sobre que o qual deve assentar a regulaccedilatildeo de um

life time contract eacute o da dimensatildeo humana422 O regime juriacutedico aplicaacutevel a

estes contratos deve por isso acautelar o desenvolvimento dos indiviacuteduos que

a eles recorrem para assegurar a sua existecircncia Essa dimensatildeo humana eacute

concretizada em mais princiacutepios nomeadamente o da exigecircncia de adaptaccedilatildeo

dos contratos em caso de alteraccedilatildeo das circunstacircncias e o da cessaccedilatildeo do

contrato como uacuteltimo remeacutedio em caso de incumprimento Aquilo que de mais

interessante encontramos nestes princiacutepios eacute exatamente a dimensatildeo

humanista do Direito que neles se encontra refletida mais concretamente o

facto de atraveacutes deles se recolocar o indiviacuteduo no centro das preocupaccedilotildees do

Direito e natildeo se relativizar a proteccedilatildeo do Homem em nome de outros

interesses mormente os econoacutemico-financeiros

21 AS EXIGEcircNCIAS DE ADAPTACcedilAtildeO IMPOSTAS PELOS PRINCIacutePIOS DE

LIFE TIME CONTRACTS E A SUA COMPATIBILIDADE COM O

REGIME DE REPARTICcedilAtildeO DO RISCO

211 A dimensatildeo social deste contrato e a sua importacircncia vital para

aqueles a quem um bem essencial eacute por esta via proporcionado exigem que

este possa ser adaptadomodificado se as circunstacircncias econoacutemicas e sociais

presentes e futuras pressupostas pelas partes como fundamento da conclusatildeo

do contrato natildeo se verificarem desde que se possa razoavelmente concluir que

as partes natildeo teriam celebrado o contrato ou soacute o teriam feitos em condiccedilotildees

diferentes423

422 Tomamos por base a traduccedilatildeo apresentada por Nuno Pinto de Oliveira em 1 de maio de

2015 423 De acordo com o princiacutepio 10 de Life Time Contractsldquoif the social and economic

circumstances upon which a life time contract is based have changed significantly since the

contract was entered into or if material circumstances from which the parties derived have

arisen that are found to be at variance with its original situation to such an extent that the social

nature of the contract is jeopardised and if the parties would not have entered into the contract

or would have entered into it on different terms had they foreseen this change adaptation of

the contract may be required if taking into account all the circumstances of the specific case

and in particular the contractual or statutory allocation of risk and the fundamental obligation

of a human being one of the parties cannot reasonably be expected to continue to comply with

186

O que cabe perguntar eacute se uma diminuiccedilatildeo abrupta da solvabilidade do

mutuaacuterio deve permitir agrave luz do princiacutepio enunciado lanccedilar matildeo dos

mecanismos de adaptaccedilatildeo do contrato Eacute preciso contudo assinalar que

mesmo de acordo com este princiacutepio para que o contrato possa ser modificado

eacute necessaacuterio que decorra de todas as circunstacircncias do caso concreto e em

particular da distribuiccedilatildeo legal e contratual do risco do fim cooperativo do

contrato e de eventuais obrigaccedilotildees fundamentais das partes que natildeo seja

exigiacutevel que uma delas se mantenha vinculada ao contrato com o conteuacutedo

imodificado

Segundo JUANA PULGAR a funccedilatildeo deste princiacutepio eacute alargar o acircmbito

de aplicaccedilatildeo da claacuteusula rebus sic standibus prevista no sect 313 do BGB para

ldquolife time circumstances and the social environmentrdquo424 Mais concretamente

segundo a autora quando o devedor fica desempregado sofre um aumento da

taxa de juro aplicaacutevel ao seu contrato de financiamento ou eacute afetado por uma

crise econoacutemica global como a atual ldquothe ldquostatus quordquo of the contract has

been breached (hellip) The rdquorebus sic standibusrdquo clause therefore would allow

the ex post or retrospective amendment of the terms and conditions initially

agreed upon in the contract in order to rebalance the consideration resulting

from itrdquo425

A primeira questatildeo que importa equacionar eacute se eacute possiacutevel recorrer ao

regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias no caso de ocorrer uma deterioraccedilatildeo da

situaccedilatildeo patrimonial do devedor que o impeccedila de cumprir a obrigaccedilatildeo a que se

vinculou e em segundo lugar se esse regime geral deve sofrer alguma inflexatildeo

se se estiver perante um life time contract

Uma vez que mesmo de acordo com o princiacutepio enunciado ao

apreciar-se a divergecircncia entre a realidade e a representaccedilatildeo se deve atender agrave

distribuiccedilatildeo legal e contratual do risco impotildee-se antes de tudo que se proceda

a uma definiccedilatildeo dos riscos associados a estes contratos e por conta de quem

na falta de convenccedilatildeo em contraacuterio eacute que os mesmos devem correr

Satildeo conhecidas as reservas que na nossa ordem juriacutedica assim como

noutras satildeo colocadas ao risco enquanto pressuposto negativo de aplicaccedilatildeo do

the contract without variation of its terms Collective regulation shall take precedence over

individual adaptationrdquo 424 Cfr JUANA PULGAR ldquoA Contractual Approach to Overindebtedness Rebus Sic Standibus

Instead of Bankruptcyrdquo Life Time Contracts Social Long-Term Contracts in Labour Tenancy

and Consumer Credit Law (org Luca Nogler amp Udo Reifner) Eleven International

Publishing The Hague 2014 p 533 425 JUANA PULGAR ldquoA Contractual Approach to Overindebtedness Rebus Sic Standibus

Instead of Bankruptcyrdquo cit p 534

187

regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias Somos contudo de opiniatildeo que uma

limitaccedilatildeo ao princiacutepio da forccedila vinculativa do contrato soacute se justifica nas

hipoacuteteses em que o problema natildeo possa resolver-se por apelo a uma regra

razoaacutevel de reparticcedilatildeo do risco De outra forma pocircr-se-ia em causa a confianccedila

legiacutetima da parte no cumprimento das obrigaccedilotildees assumidas pela contraparte

De facto quem se vincula atraveacutes de um contrato ao cumprimento de uma

obrigaccedilatildeo faacute-lo-aacute na perspetiva de obtenccedilatildeo direta ou indireta de um ganho

Tal implica necessariamente a assunccedilatildeo de um risco Ora natildeo deve legitimar-

se a alteraccedilatildeo de um contrato sempre que se verifique existir uma modificaccedilatildeo

indesejada para um dos contraentes das condiccedilotildees de cumprimento das

obrigaccedilotildees por si contraiacutedas mas que ainda assim esteja a coberto dos riscos

que aquele assumiu no momento em que decidiu contratar426

Tudo passa quanto a noacutes por determinar quais satildeo os riscos proacuteprios

do contrato em anaacutelise427 Estando em causa um life time contract eacute natural

que as regras de reparticcedilatildeo do risco sejam diferentes do regime geral aplicaacutevel

aos demais contratos de muacutetuo

212 O risco de desvalorizaccedilatildeo do imoacutevel deve em princiacutepio correr

por conta do proprietaacuterio porque tambeacutem seraacute ele o primeiro beneficiado pela

sua valorizaccedilatildeo428 Se o imoacutevel desvalorizar depois de a propriedade se ter

426 Entendimento diverso eacute preconizado por HENRIQUE SOUSA ANTUNES ldquoA alteraccedilatildeo das

circunstacircncias no direito europeu dos contratosrdquo Cadernos de Direito Privado nordm 47

julhosetembro 2014 pp 15 e 16 Segundo o autor soacute quando ldquoa lei o preveja o contrato

tenha natureza aleatoacuteria ou as partes tenham disposto de modo expresso sobre o temardquo eacute que

se justificaria um afastamento do regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias por aplicaccedilatildeo das

regras do risco ldquoSoluccedilatildeo diversa prejudicaria a adequaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre as partes ao que a

boa feacute dispotildee legitimaria um grave desequiliacutebrio que afecta o proacuteprio sentido da justiccedila

contratual Noutra perspectiva pressuporia a inversatildeo da primazia do requisito da afectaccedilatildeo

grave dos princiacutepios da boa feacuterdquo 427 Sobre a questatildeo v FERREIRA DE ALMEIDA ldquoErro sobre a base do negoacuteciordquo Cadernos de

Direito Privado nordm 43 julhosetembro 2013 pp 8 e ss Para FERREIRA DE ALMEIDA a

reparticcedilatildeo do risco resultaraacute em primeiro lugar da interpretaccedilatildeo do contrato Sendo este

omisso a reparticcedilatildeo do risco far-se-aacute por apelo a um conjunto de cacircnones em sistema moacutevel

ldquo2ordm Incidecircncia tendencial do risco sobre a parte que controla (ou que estaacute mais ldquoproacuteximardquo de)

o fator errado ou alterado 3ordm (que pode coincidir com a anterior) Incidecircncia tendencial do

risco sobre a parte a quem compete a prestaccedilatildeo caracteriacutestica (hellip) 4ordf Incidecircncia tendencial

do risco sobre a parte que atua com motivaccedilatildeo especulativa 5ordm Incidecircncia tendencial do risco

sobre a parte mais forte (hellip) 6ordm Reparticcedilatildeo equitativa sempre que possiacutevel atraveacutes da

modificaccedilatildeo soluccedilatildeo que precede a resoluccedilatildeordquo 428 A questatildeo natildeo eacute muito diferente daquela que no iniacutecio dos anos 80 foi amplamente

debatida pela doutrina e jurisprudecircncia portuguesas Em agosto de 1973 as accedilotildees de uma

determinada sociedade anoacutenima foram vendidas As accedilotildees foram entregues e foi acordado que

188

transmitido o risco corre por conta do seu titular quer este recorra a fundos

proacuteprios quer recorra a um financiamento de terceiro para o adquirir Ubi

commoda ibi incommoda Se o imoacutevel passar a valer o dobro apesar de por

essa via a hipoteca enquanto garantia ficar reforccedilada o beneficiaacuterio direto eacute

o proprietaacuterio Essa eacute aliaacutes uma das vantagens de aceder agrave habitaccedilatildeo atraveacutes

da aquisiccedilatildeo da titularidade do direito de propriedade com recurso a um

financiamento em alternativa agrave celebraccedilatildeo de um contrato de arrendamento O

mesmo resulta do regime geral aplicaacutevel agrave hipoteca Se existir uma diminuiccedilatildeo

do valor da coisa hipotecada por facto natildeo imputaacutevel ao devedor o credor

pode ainda assim exigir que o primeiro a substitua ou reforce (art 701ordm nordm1

o preccedilo seria pago em prestaccedilotildees Na praacutetica o vendedor concedeu por esta via um creacutedito

aos compradores Antes de essas prestaccedilotildees terem sido integralmente pagas o Estado

portuguecircs nacionalizou a sociedade vendida em 1973 Os compradores a creacutedito vieram pedir

a modificaccedilatildeo do contrato com fundamento na alteraccedilatildeo das circunstacircncias em que basearam

a decisatildeo de contratar VASCO LOBO XAVIER defendeu em Parecer que ldquodepois de transmitida

por efeito do contrato a propriedade da coisa alienada o risco do perecimento ou deterioraccedilatildeo

desta passa a correr por conta do adquirente Isto significa que natildeo obstante este perecimento

ou deterioraccedilatildeo o adquirente continuaraacute vinculado ao pagamento integral do preccedilo ainda em

diacutevida Em face disto o comprador natildeo pode valer-se do art 437ordm nos casos em que alteraccedilatildeo

das circunstacircncias invocada consista na perda ou deterioraccedilatildeo da coisa adquirida e em que

essa perda ou deterioraccedilatildeo se tenha verificado depois da transferecircncia do riscordquo Cf VASCO

LOBO XAVIER ldquoAlteraccedilatildeo das Circunstacircncias e Risco (art 437ordm e 796ordm do Coacutedigo Civil)rdquo

CJ 1982 T II p 21 Acolhendo soluccedilatildeo idecircntica v CALVAtildeO DA SILVA ldquoSwap de taxa de

juro inaplicabilidade do regime da alteraccedilatildeo das circunstacircnciasrdquo Revista de Legislaccedilatildeo e

Jurisprudecircncia ano 143 maio-junho de 2014 pp 368 e 369 Tambeacutem nos parece que em

casos como os descritos o contrato natildeo pode ser alterado por modificaccedilatildeo das circunstacircncias

De outra forma teriacuteamos de admitir que o contrato de compra e venda tambeacutem poderia ser

resolvido ou modificado a requerimento do vendedor na hipoacutetese de a sociedade no lugar de

ter sido nacionalizada ter passado a valer o dobro por circunstacircncias excecionais com as quais

as partes natildeo podiam contar no momento da conclusatildeo do contrato Contra esta soluccedilatildeo

tinham-se pronunciado ANTUNES VARELA e HENRIQUE MESQUITA para quem as regras do

risco natildeo podem paralisar o funcionamento do instituto da alteraccedilatildeo das circunstacircncias

Segundo os referidos autores o art 437ordm destina-se ldquoa corrigir certas injusticcedilas surgidas no

desenvolvimento das relaccedilotildees contratuais e que nesse plano se sobrepotildee agrave disciplina estrita

estabelecida em planos diferentes para as vaacuterias espeacutecies de contratordquo Assim as regras do

risco soacute impediriam a aplicaccedilatildeo do instituto da alteraccedilatildeo das circunstacircncias quando em causa

estivesse um risco normal mas jaacute natildeo nas situaccedilotildees de risco anormal como seria o caso de

uma nacionalizaccedilatildeo Cf ANTUNES VARELA (com colaboraccedilatildeo de HENRIQUE MESQUITA)

ldquoResoluccedilatildeo ou Modificaccedilatildeo do Contrato por Alteraccedilatildeo das Circunstacircnciasrdquo CJ 1982 T II

pp 14 e 15 Em sentido idecircntico v GUILHERME DE OLIVEIRA ldquoAlteraccedilatildeo das Circunstacircncias

Risco e Abuso de Direito a propoacutesito de um Creacutedito de Tornasrdquo Colectacircnea de

Jurisprudecircncia 1989 t V pp 20 e ss

189

do CC) mutatis mutandis se a coisa se valorizar em mais de um terccedilo do seu

valor agrave data da constituiccedilatildeo da hipoteca pode o devedor requerer a reduccedilatildeo

judicial da hipoteca (art 720ordm nordm2 al b) do CC)

213 No que concerne aos riscos do creacutedito mais concretamente ao

incumprimento das prestaccedilotildees devidas pelo mutuaacuterio em consequecircncia de uma

alteraccedilatildeo da sua situaccedilatildeo patrimonial o risco deve ser do mutuaacuterio embora

num contexto de crise nos pareccedilam positivas todas as alteraccedilotildees introduzidas

em 2012 quer atraveacutes do procedimento extrajudicial de regularizaccedilatildeo de

situaccedilotildees de incumprimento (PERSI) criado pelo Decreto-Lei nordm 2272012 de

25 de outubro quer atraveacutes do regime extraordinaacuterio de proteccedilatildeo dos

devedores de creacutedito agrave habitaccedilatildeo que se encontrem numa situaccedilatildeo econoacutemica

muito difiacutecil instituiacutedo pela Lei nordm 582012429 de 9 de novembro430 com as

alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm 582014 25 de agosto De acordo com este

uacuteltimo diploma os mutuaacuterios e os fiadores chamados a assumir as obrigaccedilotildees

dos primeiros que reuacutenam os pressupostos aiacute previstos podem beneficiar a

requerimento de um plano de reestruturaccedilatildeo da diacutevida e medidas

complementares a esse plano (arts 8ordm 10ordm e 19ordm da Lei nordm 582012 de 9 de

novembro com as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm 582014 25 de agosto)

Natildeo existindo acordo relativamente agrave restruturaccedilatildeo da diacutevida pode o devedor

solicitar a aplicaccedilatildeo de medidas substitutivas da execuccedilatildeo da hipoteca como a

daccedilatildeo em cumprimento do imoacutevel hipotecado a alienaccedilatildeo do imoacutevel a um

fundo de investimento imobiliaacuterio de arrendamento habitacional com opccedilatildeo

de compra (sale and lease back) ou permuta por imoacutevel propriedade do

mutuante ou de um terceiro de valor inferior com revisatildeo do contrato de

creacutedito (art 20ordm da Lei nordm 582012 de 9 de novembro com as alteraccedilotildees

introduzidas pela Lei nordm 582014 25 de agosto)

O financiador passou a estar obrigado a renegociar o contrato por se

entender que nestes casos se ultrapassou a linha do limite de sacrifiacutecio que

com base numa ideia de justa reparticcedilatildeo do risco pode ser imposto a uma parte

para a manter vinculada a um contrato sem o modificar

429 NOTA DE ATUALIZACcedilAtildeO 1 Uma vez que o regime instituiacutedo pela Lei nordm 582012 tinha

um periacuteodo de vigecircncia inicial que terminou no dia 31 de dezembro de 2015 e natildeo foi

prorrogado afigura-se que o mesmo jaacute natildeo estaraacute em vigor 430 Sobre a proteccedilatildeo alcanccedilada no Reino Unido para os devedores sobreendividados em caso

de incumprimento do contrato de creacutedito agrave habitaccedilatildeo garantido por hipoteca pela Pre-Action

Protocol for Possession Claims based on Mortgage or Home Purchase Plan Arreas in Respect

of Residential Property v GERAINT HOWELLS ldquoChange of Circumstances in Consumer

Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call for the Maintenance of Sector

Specific Rulesrdquo cit p 462

190

A aplicaccedilatildeo deste regime tem contudo sido diminuta em virtude dos

requisitos que a lei exige estarem reunidos para que o devedor possa recorrer

a estes mecanismos de flexibilizaccedilatildeo e atenuaccedilatildeo das suas obrigaccedilotildees

contratuais O devedor tem de pertencer a um agregado familiar que se

encontre numa situaccedilatildeo econoacutemica difiacutecil431 e o valor patrimonial do imoacutevel

natildeo pode ultrapassar os euro100000 euro115000 ou euro130000 consoante o imoacutevel

hipotecado tenha respetivamente um coeficiente de localizaccedilatildeo ateacute 14 entre

15 e 25 e entre 25 e 35 (art 4ordm da Lei nordm 582012 de 9 de novembro com

as alteraccedilotildees introduzidas pela Lei nordm 582014 25 de agosto) O alargamento

dos potenciais beneficiaacuterios deste regime estaria em conformidade com os

princiacutepios de life time contracts de acordo com os quais os riscos de doenccedila

ou desemprego do mutuaacuterio podemdevem em certa medida ser transferidos

para os mutuantes Somos contudo de opiniatildeo que esse objetivo deve ser

preferencialmente alcanccedilado atraveacutes de um alargamento dos beneficiaacuterios do

regime instituiacutedo pela Lei nordm 582012 e natildeo pelo recurso agrave aplicaccedilatildeo do regime

geral da alteraccedilatildeo das circunstacircncias432 De iure condendo dever-se-aacute

nomeadamente equacionar a extensatildeo deste regime especial a agregados

431 Considera-se de acordo com o art 5ordm do referido diploma em situaccedilatildeo econoacutemica muito

difiacutecil o agregado familiar que reuacutena cumulativamente os seguintes requisitos

a) Pelo menos um dos mutuaacuterios o seu cocircnjuge ou unido de facto se encontre em situaccedilatildeo de

desemprego ou o agregado familiar tenha sofrido uma reduccedilatildeo do rendimento anual bruto

igual ou superior a 35

b) Aumento da taxa de esforccedilo para valor igual ou superior a 45 50 ou 40 consoante

respetivamente o agregado familiar integre ou natildeo dependentes ou seja considerado uma

famiacutelia numerosa

c) O valor total do patrimoacutenio financeiro de todos os elementos do agregado familiar seja

inferior a metade do rendimento anual bruto do agregado familiar

d) O patrimoacutenio imobiliaacuterio do agregado familiar seja constituiacutedo unicamente pela habitaccedilatildeo

proacutepria e permanente e por garagem e imoacuteveis natildeo edificaacuteveis ateacute ao valor total de euro 20000

e) O rendimento anual bruto do agregado familiar calculado em funccedilatildeo do seu nuacutemero de

membros natildeo exceda em 14 vezes os valores correspondente agrave soma de 100 ou 120 do

valor do salaacuterio miacutenimo nacional pelo mutuaacuterio consoante o agregado seja ou natildeo constituiacutedo

por mais de uma pessoa 70 por cada membro maior e 50 por cada membro menor 432 Esta parece ser tambeacutem a posiccedilatildeo perfilhada por GERAINT HOWELLS ldquoChange of

Circumstances in Consumer Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call

for the Maintenance of Sector Specific Rulesrdquo cit pp 463 quando refere que ldquosome

protection around the enforcement of credit contracts may be provided by general provision

on good faith and fair dealing but the consumer credit context seems best served by specific

rules (hellip) one might be sceptical about the ability of a general rule law to provide meaningful

rules that fit each and every life time contractrdquo

191

familiares com rendimentos superiores e a imoacuteveis com valores patrimoniais

mais elevados

214 Apesar de o risco da desvalorizaccedilatildeo do imoacutevel e do

incumprimento do contrato ser primariamente do mutuaacuterio o mutuante tem a

possibilidade de antes de o creacutedito ser concedido proceder a uma avaliaccedilatildeo

mais rigorosa desse risco do que o mutuaacuterioconsumidor Eacute neste contexto

que devem ser entendidas as obrigaccedilotildees de avaliaccedilatildeo da solvabilidade do

mutuaacuterioconsumidor e dos imoacuteveis criadas pela Diretiva 201417UE Aiacute se

estabelece que ldquoos Estados-Membros asseguram que antes da celebraccedilatildeo do

contrato de creacutedito o mutuante proceda a uma rigorosa avaliaccedilatildeo da

solvabilidade do consumidorrdquo atraveacutes da qual se deve apurar a probabilidade

de o mutuaacuterio cumprir o contrato de creacutedito sendo que essa avaliaccedilatildeo natildeo deve

basear-se predominantemente na circunstacircncia de o valor do imoacutevel ser

superior ao valor do creacutedito nem no pressuposto de que o imoacutevel se vai

valorizar salvo se o creacutedito se destinar agrave construccedilatildeo ou agrave realizaccedilatildeo de obras

nesse mesmo imoacutevel (art 18ordm nos 1 e 3 da Diretiva 201417UE) No que

respeita agrave avaliaccedilatildeo dos imoacuteveis cumpre assinalar que a preocupaccedilatildeo que

ressalta do art 19ordm nordm2 da Diretiva 201417UE eacute a de que esta seja realizada

por profissionais ldquoindependentes em relaccedilatildeo ao processo de negociaccedilatildeo e

contrataccedilatildeo do creacuteditordquo A soluccedilatildeo indicia que o legislador comunitaacuterio

entende que em regra a responsabilidade do devedor natildeo estaacute limitada ao

valor do imoacutevel hipotecado e que o risco de desvalorizaccedilatildeo deste assim como

as alteraccedilotildees da sua situaccedilatildeo patrimonial correm pelo mutuaacuterioconsumidor

mas que a incorreta avaliaccedilatildeo da solvabilidade deste uacuteltimo e do valor do

imoacutevel hipotecado eacute um risco do mutuante Conclusatildeo que se retira da

circunstacircncia de no art 18ordm nordm4 da Diretiva 201417UE se estabelecer que

os mutuantes natildeo poderatildeo resolver ou alterar o contrato em prejuiacutezo do

consumidor com base na incorreta avaliaccedilatildeo da solvabilidade deste uacuteltimo

salvo se esta se tiver baseado em informaccedilatildeo falsificada por ele

Interrogamo-nos contudo se na transposiccedilatildeo da Diretiva natildeo se pode

- ou deve - ir mais longe visto que aiacute tambeacutem se prevecirc que o mutuante soacute pode

disponibilizar creacutedito ao consumidor se a avaliaccedilatildeo de solvabilidade indicar

que eacute provaacutevel o cumprimento do contrato de muacutetuo (art 18ordm nordm 5 al a) da

Diretiva 201417UE) Nas hipoacuteteses em que esse juiacutezo de probabilidade

assentou numa incorreta avaliaccedilatildeo da solvabilidade do devedor e do imoacutevel

dado em garantia sem que tenha havido dolo do mutuaacuterio e essa avaliaccedilatildeo

gerou no mutuante e no mutuaacuterio a expectativa de que o imoacutevel hipotecado

seria suficiente em caso de incumprimento para solver o creacutedito em diacutevida

parece-nos que a hipoacutetese pode configurar uma situaccedilatildeo de erro sobre a base

ou de alteraccedilatildeo das circunstacircncias consoante o caso concreto que exigiraacute uma

anulaccedilatildeoresoluccedilatildeo ou modificaccedilatildeo do contrato Neste caso natildeo eacute possiacutevel

afastar o regime da alteraccedilatildeo das circunstacircncias por apelo agraves regras do risco

192

215 Jaacute todavia no que respeita agrave alteraccedilatildeo dos custos do creacutedito o

risco deve correr por conta do mutuante O certo eacute que as mais das vezes esse

risco eacute transferido para o mutuaacuterio atraveacutes de claacuteusulas que permitem ao

mutuante alterar unilateralmente o spread Estas claacuteusulas ndash ditas de ius

variandi ndash parecem estar legitimadas pelo regime juriacutedico aplicaacutevel agraves

claacuteusulas contratuais gerais433 De acordo com o art 22ordm nordm1 al c) da LCCG

satildeo proibidas as claacuteusulas contratuais gerais que atribuam a quem as

predisponha o direito de alterar livremente o contrato exceto se existir razatildeo

atendiacutevel que as partes tenham convencionado Poreacutem tal proibiccedilatildeo natildeo se

aplica a claacuteusulas contratuais gerais que concedam ao fornecedor de serviccedilos

financeiros o direito de alterar a taxa de juro ou o montante de quaisquer outros

encargos aplicaacuteveis desde que correspondam a variaccedilotildees do mercado e sejam

comunicadas de imediato por escrito agrave contraparte podendo esta resolver o

contrato com fundamento na mencionada alteraccedilatildeo ndash cfr art 22ordm nordm 2 al

a) da LCCG434 A resoluccedilatildeo implica contudo a obrigaccedilatildeo de restituiccedilatildeo do

capital mutuado de que o mutuaacuterio pode natildeo dispor Ainda que em abstrato

433 Partindo do pressuposto que as claacuteusulas de ius variandi satildeo vaacutelidas e que por isso as

alteraccedilotildees ao contrato satildeo legiacutetimas desde que o credor as comunique atempadamente ao

devedor os Tribunais no Reino Unido tecircm discutido quais os limites que devem ser impostos

a este poder de modificaccedilatildeo unilateral dos contratos de creacutedito A jurisprudecircncia tem sido a

este propoacutesito bastante permissiva Desde que a alteraccedilatildeo da taxa de juro natildeo tenha um fim

iliacutecito ou natildeo seja desonesta caprichosa arbitraacuteria ou discriminatoacuteria a liberdade de comeacutercio

imporaacute aos tribunais que natildeo controlem estas alteraccedilotildees Para um resumo de diversas decisotildees

judiciais que versam sobre a problemaacutetica enunciada v GERAINT HOWELLS ldquoChange of

Circumstances in Consumer Credit Contracts ndash The United Kingdom Experience and a Call

for the Maintenance of Sector Specific Rulesrdquo cit pp 456 e ss Para GERAINT HOWELLS

ldquoone suspects that the courts will continue to allow a large measure of commercial freedom

(hellip) Variation is not an issue covered by Consumer Credit Directive beyond the requirement

that the borrower be informed of changes in the rate interest However controls on the power

to vary it are one aspect of the ongoing relationship that could possibly be formulated as a

general rule and included in the CFR (hellip) However even if there is a power to control

variation of interest rates the scope of any such rule will have to be worked out in the context

of credit contracts that is whether it is only arbitrary controls that are restricted or whether

any charge must be reasonable thus interfering with commercial judgmentsrdquo 434 De acordo com aquele que eacute o entendimento do Banco de Portugal expresso na Carta-

Circular nordm 322011DSC os factos que fundamentam a alteraccedilatildeo devem ser especificados

pela instituiccedilatildeo de creacutedito Por outro lado esses factos devem ser externos ou alheios a esta e

ser relevantes excecionais e ter subjacente um motivo ponderoso fundado em juiacutezo ou criteacuterio

objetivo Cfr ANDREacute FIGUEIREDO ldquoO Poder de Alteraccedilatildeo Unilateral nos Contratos Bancaacuterios

Celebrados com Consumidoresrdquo Subjudice nordm 39 junho de 2007 p 17

193

o mutuaacuterio possa junto de outra instituiccedilatildeo contratar um novo financiamento

para amortizar o antigo natildeo significa que em concreto tal seja possiacutevel

Segundo ANDREacute FIGUEIREDO ldquoao contraacuterio do que sucede ao abrigo

da regra geral natildeo se exige aqui que os fundamentos objectivos para o

exerciacutecio do poder de alteraccedilatildeo unilateral do contrato se encontrem elencados

na claacuteusula geral Se a claacuteusula especificasse os eventos que legitimariam o

exerciacutecio do ius variandi estariacuteamos natildeo no acircmbito de aplicaccedilatildeo desta norma

especial mas no contexto da proacutepria regra geralrdquo435 Somos de opiniatildeo que

deveratildeo ser consideradas nulas por indeterminabilidade do seu objeto (art

280ordm do CC) as claacuteusulas contratuais que se limitem a permitir a modificaccedilatildeo

unilateral do contrato no caso de existir uma variaccedilatildeo dos mercados Quem

contrai uma obrigaccedilatildeo por 30 ou 40 anos tem de poder determinar a medida

da sua responsabilidade o que natildeo eacute possiacutevel se a uma taxa de juro variaacutevel

como a EURIBOR adicionarmos a possibilidade de alteraccedilatildeo ilimitada dos

spreads em virtude de variaccedilotildees dos mercados a definir unilateral e

exclusivamente no futuro pelo credor Natildeo nos parece que a vaguidade das

claacuteusulas contratuais que legitimam este ius variandi seja colmatada por

segundo a Carta-Circular do Banco Portugal nordm 322011DSC a alteraccedilatildeo da

taxa de juro ou outros encargos de contratos dever obedecer ao princiacutepio da

proporcionalidade e assentar numa relaccedilatildeo de causalidade entre por um lado

o evento invocado e por outro o teor e alcance da alteraccedilatildeo contratual que a

instituiccedilatildeo de creacutedito pretende introduzir Embora a invocaccedilatildeo do princiacutepio da

proporcionalidade permita excluir as alteraccedilotildees que conduzam a um

desequiliacutebrio injustificado das prestaccedilotildees ainda natildeo assim natildeo faculta ao

devedor um criteacuterio que lhe permita objetivamente mensurar a medida da sua

responsabilidade no momento em que o contrato eacute concluiacutedo

O artigo art 28ordm-A aditado ao Decreto-Lei nordm 34998 de 11 de

novembro pela Lei nordm 592009 de 9 de novembro apesar de ter limitado as

alteraccedilotildees de spread em caso de renegociaccedilatildeo do contrato436 ficou aqueacutem do

que seria exigiacutevel numa loacutegica de imputaccedilatildeo do risco de aumento dos custos

do creacutedito a quem o concede mormente quando este se funda numa variaccedilatildeo

dos mercados visto que neste ponto o regime ficou intocado

435 Cfr ANDREacute FIGUEIREDO ldquoO Poder de Alteraccedilatildeo Unilateral nos Contratos Bancaacuterios

Celebrados com Consumidoresrdquo cit pp 17 e 18 436 O que aiacute se proiacutebe eacute simplesmente o aumento dos spreads por o mutuaacuterio ter arrendado o

imoacutevel a um terceiro em virtude de uma alteraccedilatildeo do local de trabalho ou de uma situaccedilatildeo de

desemprego ou em caso de divoacutercio separaccedilatildeo judicial de pessoas e bens dissoluccedilatildeo da uniatildeo

de facto ou falecimento de um dos cocircnjuges quando se prove que o agregado familiar tem

rendimentos que proporcionam uma taxa de esforccedilo inferior a 55 ou 60 consoante este

uacuteltimo seja composto por dois ou mais dependentes

194

22 A RESOLUCcedilAtildeO E CONSEQUENTE EXECUCcedilAtildeO FORCcedilADA DA

DIacuteVIDA COMO UacuteLTIMA MEDIDAREMEacuteDIO EM CASO DE

INCUMPRIMENTO DO CREacuteDITO Agrave HABITACcedilAtildeO GARANTIDO POR

HIPOTECA E SUA CONFORMIDADE COM A DIMENSAtildeO HUMANISTA

QUE OS PRINCIacutePIOS DE LIFE TIME CONTRACTS IMPOtildeEM Agrave

REGULACcedilAtildeO DESTES CONTRATOS

De acordo com o deacutecimo primeiro princiacutepio de life time contracts a

cessaccedilatildeo antecipada do contrato deve ser feita de forma transparente

controlaacutevel e socialmente aceitaacutevel e caso seja feita contra a vontade do

consumidor deve representar-se como uma medida extrema (ultima ratio)

Em primeiro lugar cumpre assinalar que na nossa legislaccedilatildeo jaacute

encontramos refletido o princiacutepio enunciado Em caso de incumprimento jaacute

se estabelece uma proibiccedilatildeo de imediata resoluccedilatildeo do contrato de muacutetuo De

acordo com o art 7ordm-B - aditado pela Lei nordm 592012 ao Decreto-Lei nordm

34998 que regula a concessatildeo de creacutedito agrave habitaccedilatildeo - eacute necessaacuterio o

incumprimento de pelo menos trecircs prestaccedilotildees vencidas para que o contrato

possa ser resolvido

Preocupaccedilatildeo aliaacutes reiterada pelo legislador comunitaacuterio quando na

Diretiva 201417UE prevecirc que os Estados-Membros obriguem os mutuantes

ldquoa agirem com ponderaccedilatildeo adequadardquo antes de iniciarem um processo de

execuccedilatildeo (art 28ordm nordm1) Num contexto geral de crise natildeo eacute qualquer

incumprimento que deve fazer despoletar a responsabilidade patrimonial

Conforme resulta do preacircmbulo da referida Diretiva ldquodadas as importantes

consequecircncias que a execuccedilatildeo da hipoteca tem para os mutuantes os

consumidores e eventualmente para a estabilidade financeira conveacutem

incentivar os mutuantes a tratarem de forma proactiva o risco de creacutedito logo

de iniacutecio e instituir as medidas necessaacuterias para assegurar que os mutuantes

ajam com razoaacutevel toleracircncia e envidem diligecircncias razoaacuteveis para resolver a

situaccedilatildeo por outros meios antes de intentarem um processo de execuccedilatildeo

hipotecaacuteriardquo

Desde que proceda ao pagamento de todas as prestaccedilotildees vencidas e natildeo

pagas juros de mora e demais despesas incorridas pelo mutuante o mutuaacuterio

tem a possibilidade de no prazo de oposiccedilatildeo agrave execuccedilatildeo requerer a retoma do

creacutedito A lei permite assim uma purgaccedilatildeo do incumprimento com efeitos

retroativos Eacute que apesar de a mora se ter convertido em incumprimento

definitivo os efeitos retroativos da purgaccedilatildeo do incumprimento permitem a

195

revivescecircncia de um contrato que cessou (art 23ordm-B aditado pela Lei nordm 59

2012 ao Decreto-Lei nordm 34998)437

23 NAtildeO LIMITACcedilAtildeO DA RESPONSABILIDADE DO MUTUAacuteRIO AO BEM

DADO EM GARANTIA E SUA CONFORMIDADE COM OS PRINCIacutePIOS

DA NAtildeO EXCLUSAtildeO SOCIAL DO DEVEDOR EM CASO DE

INCUMPRIMENTO

Outro dos traccedilos caracteriacutesticos do nosso regime eacute a natildeo limitaccedilatildeo da

responsabilidade do mutuaacuterio ao bem dado em garantia salvo nas hipoacuteteses

em que tal foi convencionado por mutuante e mutuaacuterio (art 602ordm do CC)

Soluccedilatildeo que natildeo foi alterada pelo art 23ordm-A nordm1 do Decreto-Lei nordm 34998

aditado pela Lei nordm 592012 quando determina que por acordo podem as

partes estabelecer que a venda executiva ou a daccedilatildeo em cumprimento extingue

integralmente a diacutevida Disposiccedilatildeo desnecessaacuteria porquanto esta possibilidade

de limitaccedilatildeo da responsabilidade sempre existiu

Mesmo quando o mutuaacuterio se encontra numa situaccedilatildeo econoacutemica

difiacutecil para efeitos de aplicaccedilatildeo do regime instituiacutedo pelo art 23ordm nordm1 da Lei

nordm 582012 e vem requerer a daccedilatildeo em cumprimento do imoacutevel a daccedilatildeo soacute

extingue totalmente a diacutevida quando a soma do valor da avaliaccedilatildeo atual do

imoacutevel e das quantias entregues a tiacutetulo de reembolso do capital for pelo

menos igual ao valor do capital inicialmente mutuado acrescido das

capitalizaccedilotildees que possam ter ocorrido ou quando o valor da avaliaccedilatildeo atual

do imoacutevel para efeito de daccedilatildeo for igual ou superior agrave quantia em diacutevida Nos

outros casos a diacutevida manteacutem-se relativamente ao capital remanescente Soacute

natildeo eacute possiacutevel ao mutuante aplicar condiccedilotildees de creacutedito piores e beneficiar de

novas garantias pessoais ou reais (art 23ordm n os 2 e 3)

Soluccedilatildeo que nos parece conforme ao art 28ordm nordm 4 da Diretiva quando

estabelece que ldquoos Estados-Membros natildeo podem impedir as partes num

contrato de creacutedito de acordarem expressamente que a devoluccedilatildeo ou a

transferecircncia para o mutuante da garantia ou do produto da respetiva venda eacute

suficiente para reembolsar o creacuteditordquo

Ao contraacuterio do sustentado pelo Tribunal Judicial de Portalegre438 na

sequecircncia de algumas decisotildees proferidas por tribunais espanhoacuteis no mesmo

sentido natildeo entendemos que exista abuso de direito quando o mutuante requer

a continuaccedilatildeo da execuccedilatildeo sobre outros bens do mutuaacuterio apoacutes a adjudicaccedilatildeo

437 A revivescecircncia tambeacutem se encontra prevista no art 1084ordm nos 3 e 4 do CC para o contrato

de arrendamento que foi resolvido por falta de pagamento de rendas 438 Cf Sentenccedila de 14 de janeiro de 2012 do Tribunal Judicial de Portalegre in

httpwwwinverbispt2012ficheirosdoctribunalportalegre_creditohipotecariopdf

196

do imoacutevel hipotecado por um valor inferior ao da avaliaccedilatildeo feita no momento

da concessatildeo do creacutedito439 Segundo o Tribunal a ldquoobrigaccedilatildeo de pagamento

do simples remanescente da diacutevida apoacutes valor da adjudicaccedilatildeo configuraria

uma situaccedilatildeo de abuso de direito na modalidade de desequiliacutebrio no exerciacutecio

de direito porquanto sendo titular de um direito de creacutedito formal e

aparentemente exigiacutevel por incumprimento contratual a sua executoriedade e

reconhecimento judicial desencadearia resultados totalmente alheios ao que o

sistema poderia admitir (hellip) em consequecircncia do seu normal e regular

exerciacuteciordquo O que o Tribunal parece defender eacute que o Banco ao conceder um

creacutedito na sequecircncia de uma avaliaccedilatildeo que ele proacuteprio certificou cria uma

situaccedilatildeo de confianccedila de que o valor do imoacutevel chegaraacute para pagar o

empreacutestimo e por isso eacute abusivo vir pedir a diferenccedila entre o valor da

avaliaccedilatildeo e o valor da adjudicaccedilatildeo

Natildeo nos parece que em regra e em abstrato o exerciacutecio do direito a

requerer a adjudicaccedilatildeo pelo valor miacutenimo fixado na lei seja ilegiacutetimo por o seu

titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa feacute quando esse

valor for inferior ao da avaliaccedilatildeo feita no momento da concessatildeo do creacutedito

muito menos que haja um investimento de confianccedila merecedor de tutela que

conduza ao mesmo resultado Tudo depende do que se venha a provar ter

ocorrido no caso concreto O mutuaacuterio sabe que a sua responsabilidade natildeo se

encontra circunscrita ao bem hipotecado e que o risco de desvalorizaccedilatildeo do

imoacutevel corre por sua conta uma vez que seraacute ele tambeacutem o primeiro

beneficiado se este se valorizar

Desde que na avaliaccedilatildeo para efeitos de venda ou de adjudicaccedilatildeo se

tenha dado cumprimento aos criteacuterios legalmente estabelecidos o facto de a

adjudicaccedilatildeo ser feita por um valor inferior ao da avaliaccedilatildeo e o credor exigir a

quantia remanescente que esteja em diacutevida natildeo eacute de per si abusivo A garantia

de que goza o devedor nesses casos eacute a de que a adjudicaccedilatildeo natildeo pode ser feita

por um valor inferior a 85 do valor de base dos bens (na data do Acoacuterdatildeo o

valor era de 70) e que esse valor de base eacute o maior dos seguintes valores o

valor patrimonial tributaacuterio com menos de seis anos ou o valor de mercado

(art 816ordm nordm2 do CPC) A posiccedilatildeo do devedor natildeo eacute diferente quando o

credor requer a adjudicaccedilatildeo daquela em que estaria na hipoacutetese de o bem ser

439 No mesmo sentido v ISABEL MENEacuteRES CAMPOS ldquoComentaacuterio agrave (muito falada) sentenccedila

do Tribunal Judicial de Portalegre de 4 de janeiro de 2012rdquo Cadernos de Direito Privado nordm

38 abriljunho de 2012 pp 4 a 9 Sustentando posiccedilatildeo contraacuteria MENEZES LEITAtildeO ldquoO

impacto da crise financeira no regime do creacutedito agrave habitaccedilatildeordquo in I Congresso de Direito

Bancaacuterio Almedina Coimbra 2015 p 16 considera que este comportamento do Banco

representa um exerciacutecio manifestamente abusivo do direito de creacutedito mais concretamente

um verdadeiro venire contra factum proprium

197

vendido a um terceiro atraveacutes de apresentaccedilatildeo de proposta em carta fechada

pois o valor miacutenimo da adjudicaccedilatildeo (art 799ordm nordm3 do CPC) eacute igual ao valor

miacutenimo de venda (art 821ordm nordm3 do CPC)

O Tribunal entendeu tambeacutem que haveria aqui um enriquecimento sem

causa na modalidade de condictio ob rem quando o Banco ficou com o imoacutevel

por 70 do seu valor de base O argumento foi o de que tendo o contrato de

muacutetuo um fim especiacutefico mais concretamente a aquisiccedilatildeo de um imoacutevel o

mutuante soacute teria direito agrave diferenccedila entre o valor da diacutevida e o valor do imoacutevel

agrave data da concessatildeo do creacutedito440

Cabe perguntar se de iure condendo natildeo estaria em conformidade aos

princiacutepios de life time contracts limitar a responsabilidade do mutuaacuterio ao

valor do bem hipotecado Temos duacutevidas que essa limitaccedilatildeo seja defensaacutevel

Em primeiro lugar esta soluccedilatildeo nunca protegeria a casa de morada de famiacutelia

Sendo o uacutenico bem que responderia pela diacutevida mais facilmente seria

executado Em segundo lugar apesar de proteger o restante patrimoacutenio do

mutuaacuterio a soluccedilatildeo natildeo tem em conta que o risco de natildeo ser possiacutevel uma

daccedilatildeo em cumprimento uma adjudicaccedilatildeo ou uma venda judicial pelo valor do

creacutedito deve correr por conta do mutuaacuterio porque eacute sobre ele que recai o risco

de desvalorizaccedilatildeo do imoacutevel

Embora natildeo nos pareccedila imperativo agrave luz dos princiacutepios de life time

contracts restringir a garantia agrave hipoteca somos de opiniatildeo que devem criar-

se condiccedilotildees e incentivos para que os consumidores para aleacutem do seguro de

vida e do imoacutevel possam tambeacutem fazer seguros para garantia de situaccedilotildees de

desemprego ou de alteraccedilatildeo do niacutevel de rendimentos por motivos de sauacutede

Apesar de os custos decorrentes da subscriccedilatildeo deste tipo de coberturas serem

elevados as vantagens para o consumidor e para a solvabilidade do sistema

bancaacuterio em geral associadas agrave socializaccedilatildeo destes riscos seratildeo certamente

superiores E isto sobretudo se os seguros natildeo forem contratados com

companhias pertencentes ao mesmo grupo (juriacutedico ou econoacutemico) do

mutuante

O que se prevecirc na Diretiva eacute que os ldquoEstados-Membros devem instituir

procedimentos ou tomar medidas que permitam a obtenccedilatildeo do melhor preccedilo

pelo imoacutevel objeto de execuccedilatildeo hipotecaacuteriardquo Se depois de executada a

hipoteca subsistirem montantes em diacutevida os Estados-Membros asseguram a

440 MENEZES LEITAtildeO em comentaacuterio agrave referida decisatildeo considera que natildeo haveraacute aqui um

enriquecimento sem causa posto que ldquoa aplicaccedilatildeo da condictio ob rem natildeo tem lugar sempre

que esteja em causa um contrato como eacute neste caso o creacutedito agrave habitaccedilatildeordquo Cfr MENEZES

LEITAtildeO ldquoO impacto da crise financeira no regime do creacutedito agrave habitaccedilatildeordquo cit p 16

198

adoccedilatildeo de medidas que facilitem o reembolso a fim de proteger os

consumidores (cfr art 28ordm nordm5 da Diretiva 201417UE)

A este propoacutesito eacute necessaacuterio registar que desde 2012 o valor miacutenimo

de venda judicial ou pelo qual pode ser requerida a adjudicaccedilatildeo passou de 70

do valor de base dos bens para 85 Eacute desejaacutevel que o legislador aumente

ainda este valor

Pode tambeacutem pensar-se na criaccedilatildeo de incentivos de natureza fiscal a

quem adquira imoacuteveis atraveacutes de vendas judiciais a fim de estimular e alargar

a procura e deste modo potenciar que o produto da liquidaccedilatildeo do bem seja o

da avaliaccedilatildeo Mais concretamente propotildee-se que as isenccedilotildees previstas no art

8ordm do CIMT para as instituiccedilotildees de creacutedito ou para as sociedades comerciais

cujo capital seja direta ou indiretamente dominado pelas primeiras sejam

alargadas a todos os adquirentes de imoacuteveis em processo execuccedilatildeo ou de

insolvecircncia

Apesar de o Acoacuterdatildeo Uniformizador de Jurisprudecircncia nordm 399 e de o

art 5ordm nordm4 que subsequentemente foi introduzido no Coacutedigo de Registo

Predial terem aparentemente excluiacutedo do conceito de terceiros para efeitos de

registo as aquisiccedilotildees de direitos sobre imoacuteveis que natildeo derivem de um ato

voluntaacuterio do seu titular subsiste na jurisprudecircncia alguma incerteza

relativamente agrave oponibilidade ao comprador de boa feacute - que adquiriu um

determinado imoacutevel atraveacutes de venda judicial e registou a sua aquisiccedilatildeo - de

um direito anterior incompatiacutevel mas natildeo registado antes da penhora441 No

seguimento do que jaacute defendemos anteriormente entendemos que em face do

disposto no art 824ordm nordm2 do CC com a venda executiva caducam todos os

direitos constituiacutedos antes da penhora mas natildeo registados ateacute essa data442

No que respeita agrave garantia do reembolso do remanescente o que o

legislador nacional teraacute de equacionar no momento da transposiccedilatildeo da Diretiva

441 Sobre o tema v Acoacuterdatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de 7 de fevereiro de 2013 (LOPES

DO REGO) processo nordm 3326094TBVFRP1S1 in wwwdgsipt De acordo com o referido

aresto o Acoacuterdatildeo Uniformizador de Jurisprudecircncia nordm 399 ldquonatildeo decidiu nem tinha que

decidir a questatildeo da natureza juriacutedica da venda judicial em termos de apurar se o Estado nela

actua em nome proacuteprio no exerciacutecio de um poder coercitivo autoacutenomo ou se pelo contraacuterio

o transmitente do bem vendido judicialmente continua ainda a ser o devedor executado

actuando o Estado em verdadeira sub-rogaccedilatildeo deste ndash e dependendo decisivamente desta

configuraccedilatildeo normativa da venda judicial a qualificaccedilatildeo do adquirente do bem como terceiro

por ter adquirido a propriedade de um mesmo transmitente comumrdquo 442 Cfr ANA TAVEIRA DA FONSECA ldquoPublicidade espontacircnea e publicidade provocada de

direitos reais sobre imoacuteveisrdquo Cadernos de Direito Privado nordm 20 outubrodezembro de 2007

pp 16 e ss

199

eacute se o regime vigente eacute suficiente para acautelar as situaccedilotildees de exclusatildeo social

do devedor sobreendividado que perde a habitaccedilatildeo Seraacute nomeadamente

necessaacuterio determinar se o regime das impenhorabilidades e da exoneraccedilatildeo do

passivo restante (arts 235ordm e ss do CIRE) eacute suficiente para acautelar esse

perigo ou se depois de executada a hipoteca seraacute necessaacuterio assegurar por via

legal uma modificaccedilatildeo do contrato de creacutedito que permita ao devedor solver o

remanescente em diacutevida e ao mesmo tempo reorganizar a sua vida O

incumprimento e a insolvecircncia natildeo podem determinar ldquoa morte do devedorrdquo

quando este eacute uma pessoa individual

24 EXECUCcedilAtildeO DA HIPOTECA E PROTECcedilAtildeO DA CASA DE MORADA DE

FAMIacuteLIA

A garantia do miacutenimo de subsistecircncia do executado outra das

preocupaccedilotildees refletida nos princiacutepios de life time contracts natildeo vai ao ponto

de impedir a penhoravenda da casa de morada de famiacutelia443

Importa por isso refletir se agrave luz deste princiacutepio tem sentido que a

execuccedilatildeo comece obrigatoriamente pelo bem hipotecado como parece resultar

do disposto no art 752ordm do CPC De facto o agente de execuccedilatildeo parece estar

obrigado a comeccedilar a penhora pelo imoacutevel hipotecado para garantia do creacutedito

exequendo mesmo que esta natildeo possa ser considerada adequada (art 751ordm

nordm3 do CPC) e proporcional ao valor da quantia exequenda (art 735ordm nordm3

do CPC) Afigura-se-nos que embora a penhora deva comeccedilar pelo bem

onerado para garantia da obrigaccedilatildeo exequenda (art 752ordm do CPC) nada

impede o executado de requerer a sua substituiccedilatildeo por outro bem que

permitindo ao exequente receber a prestaccedilatildeo a que tem direito seja menos

onerosa para o executado devendo o juiz em caso de oposiccedilatildeo do exequente

agrave substituiccedilatildeo tomar em devida consideraccedilatildeo a importacircncia do bem para o

executado (art 751ordm nordm4 al a) e nordm5 do CPC) O que resulta do regime

substantivo eacute que o devedor que for dono da coisa hipotecada tem o direito de

se opor agrave penhora de outros bens enquanto natildeo for reconhecida a insuficiecircncia

daquela para solver o creacutedito exequendo (art 697ordm do CC) Muito embora a

ratio da disposiccedilatildeo seja a de evitar que o patrimoacutenio do devedor continue

onerado enquanto outros bens do devedor estatildeo a ser penhorados e vendidos

por tal ser em geral contraacuterio ao interesse do devedor tal poderaacute natildeo suceder

443 NOTA DE ATUALIZACcedilAtildeO 2 Com a entrada em vigor da Lei nordm 132016 de 23 de maio

deixou de ser possiacutevel a venda em sede de execuccedilatildeo dos imoacuteveis destinados exclusivamente

a habitaccedilatildeo proacutepria e permanente do devedor que tenham sido penhorados por diacutevidas fiscais

Nestes casos depois da penhora a venda fica suspensa o que natildeo significa que o imoacutevel natildeo

possa ser vendido se vier a ser novamente penhorado no acircmbito por exemplo de uma

execuccedilatildeo por incumprimento de um contrato de creacutedito para aquisiccedilatildeo de habitaccedilatildeo proacutepria e

permanente garantido por hipoteca

200

quando o que estaacute em causa eacute a casa de morada de famiacutelia Devia por isso

pensar-se na possibilidade de o regime previsto no art 752ordm do CPC natildeo se

aplicar quando o bem onerado fosse a habitaccedilatildeo do executado

Eacute verdade que o regime da accedilatildeo executiva para pagamento de quantia

certa contempla vaacuterias formas de proteccedilatildeo da casa de habitaccedilatildeo efetiva do

executado especialmente desde 2013 Aiacute se prevecirc que recaindo a penhora

sobre a casa de habitaccedilatildeo efetiva do embargante a requerimento deste pode

por decisatildeo judicial sem necessidade de prestaccedilatildeo de cauccedilatildeo a venda ficar

suspensa ateacute agrave prolaccedilatildeo da decisatildeo em primeira instacircncia sobre os embargos

deduzidos pelo executado quando tal venda seja suscetiacutevel de causar prejuiacutezo

grave e dificilmente reparaacutevel (art 733ordm nordm5 do CPC) O mesmo sucede

com as necessaacuterias adaptaccedilotildees se houver deduccedilatildeo de oposiccedilatildeo agrave penhora do

imoacutevel que seja a habitaccedilatildeo efetiva do executado (art 785ordm nordm4 do CPC) ou

se a sentenccedila que estiver a servir de base agrave execuccedilatildeo estiver pendente de

recurso (art 704ordm nordm4 do CPC)

Contudo ao contraacuterio do previsto no art 864ordm do CPC e no art15ordm-N

do NRAU para o despejo do arrendataacuterio natildeo estaacute prevista a possibilidade de

se requerer a suspensatildeo provisoacuteria da entrega do imoacutevel por motivos de razatildeo

social imperiosa apoacutes a venda judicial do mesmo Eacute certo que nestes casos o

executado eacute constituiacutedo depositaacuterio depois da penhora (art 756ordm nordm1 al a)

do CPC) mas depois da venda pode necessitar de algum tempo para encontrar

outra habitaccedilatildeo e a lei natildeo contempla essa possibilidade A lei somente

estabelece que o agente de execuccedilatildeo deve comunicar antecipadamente o

despejo agrave cacircmara municipal e agraves entidades assistenciais competentes se

existirem dificuldades seacuterias de realojamento do executado e permite que a

execuccedilatildeo se suspenda quando a entrega do imoacutevel puser em risco de vida a

pessoa que aiacute habita por razotildees de doenccedila aguda (arts 828ordm 861ordm e 863ordm

nordm3 do CPC)

201

Proporcionalidade e adaptabilidade a jurisprudecircncia

do TEDH no equiliacutebrio da relaccedilatildeo entre senhorio e

inquilino

Sandra Passinhas

1 INTRODUCcedilAtildeO A RELACcedilAtildeO DE ARRENDAMENTO

Satildeo elementos essenciais do contrato de arrendamento a cedecircncia

temporaacuteria do gozo de uma coisa e o pagamento de uma retribuiccedilatildeo por esse

mesmo gozo Consideraccedilotildees de poliacutetica social mas tambeacutem de equidade ou

justiccedila social levaram os legisladores dos vaacuterios paiacuteses europeus a

implementarem normas que afectam cada um destes elementos em especial

no arrendamento para habitaccedilatildeo medidas relativas a limitaccedilotildees ao montante

inicial da renda ou congelamento dos aumentos posteriores limitaccedilotildees na

escolha da pessoa do arrendataacuterio impossibilidade de extinccedilatildeo do contrato por

vontade do senhorio natildeo caducidade do contrato de arrendamento pelo

decurso do prazo ou ainda diferimento da desocupaccedilatildeo do imoacutevel apoacutes o termo

do contrato

A protecccedilatildeo do arrendataacuterio e do seu direito agrave habitaccedilatildeo foi sendo

desenhada como uma limitaccedilatildeo aos poderes do senhorio444 em regra

proprietaacuterio do imoacutevel a favor do contraente mais fraco e vulneraacutevel o

arrendataacuterio Esta circunstacircncia natildeo pode obliterar contudo que a intervenccedilatildeo

material no contrato eacute uma opccedilatildeo do legislador na conformaccedilatildeo da poliacutetica

puacuteblica de acesso agrave habitaccedilatildeo

O direito agrave habitaccedilatildeo em Portugal eacute um direito constitucionalmente

garantido no artigo 65ordm da CRP Na sua vertente positiva445 aquela que estaacute

Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra 444 No acoacuterdatildeo R amp L SRO e outros c Repuacuteblica Checa (Queixas nordms 3792605 2578409

3600209 4441009 e 6554609) de 3 de julho de 2014 pode ler-se no sect102 que uma das

dimensotildees de um direito real eacute precisamente a determinaccedilatildeo das condiccedilotildees em que um terceiro

pode usar a coisa 445 Na vertente negativa o direito agrave habitaccedilatildeo consiste no direito de natildeo ser arbitrariamente

privado da habitaccedilatildeo ou de natildeo ser impedido de conseguir uma revestindo entatildeo a forma de

direito de defesa determinando um dever de abstenccedilatildeo do Estado e de terceiros e

apresentando-se nessa medida como um direito anaacutelogo aos direitos liberdades e garantias

A chamada dimensatildeo negativa do direito agrave habitaccedilatildeo traduz-se num mero dever de abstenccedilatildeo

202

aqui em causa o direito agrave habitaccedilatildeo consiste no direito de a obter traduzindo-

se na exigecircncia das medidas e prestaccedilotildees estaduais adequadas a realizar tal

objectivo Neste sentido constitui um verdadeiro e proacuteprio lsquodireito socialrsquo que

justifica e legitima a pretensatildeo do cidadatildeo a determinadas prestaccedilotildees446

implicando determinadas obrigaccedilotildees positivas do Estado O conteuacutedo do

direito agrave habitaccedilatildeo natildeo estaacute preacute-determinado ao niacutevel das opccedilotildees

constitucionais mas antes pressupotildee uma tarefa de concretizaccedilatildeo e de

mediaccedilatildeo do legislador ordinaacuterio e cuja efectividade estaacute dependente da

chamada ldquoreserva do possiacutevelrdquo (Vorbehalt des Moumlglichen) em termos

poliacuteticos econoacutemicos e sociais447 A intervenccedilatildeo do Estado pode incindir

sobre aspectos tatildeo variados como a requalificaccedilatildeo urbana o financiamento da

aquisiccedilatildeo proacutepria a promoccedilatildeo da construccedilatildeo imobiliaacuteria o incentivo ao

arrendamento etc448 Esta intervenccedilatildeo pode ser directa atraveacutes o

do Estado e de terceiros em ordem a natildeo praticarem actos que possam prejudicar a efectiva

realizaccedilatildeo daquele direito Cfr por todos J GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA

Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa Anotada 1ordm vol 2ordf ed pp 345 e 346 446 J J GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa

Anotada 1ordm vol 2ordf ed pp 345 e 346 Na jurisprudecircncia vide o Acoacuterdatildeo TC nordm 10192 de

17 de marccedilo onde se lecirc ldquoCom efeito a vertente mais significativa do direito agrave habitaccedilatildeo

enquanto lsquodireito econoacutemico social e culturalrsquo conteacutem-se na sua dimensatildeo positiva isto eacute

no direito dos cidadatildeos agraves medidas e prestaccedilotildees estaduais adequadas agrave concretizaccedilatildeo do

objectivo ali enunciado ndash o direito a obter uma habitaccedilatildeo adequada e condigna agrave realizaccedilatildeo

da condiccedilatildeo humana em termos de preservar a intimidade pessoal e a privacidade familiarrdquo

e o Acoacuterdatildeo TC nordm 13192 de 1 de abril ldquoO lsquodireito agrave habitaccedilatildeorsquo ou seja o direito a ter uma

morada condigna como direito fundamental de natureza social situado no Capiacutetulo II

(direitos e deveres sociais) do Tiacutetulo III (direitos e deveres econoacutemicos sociais e culturais)

da Constituiccedilatildeo eacute um direito a prestaccedilotildeesrdquo Considera este aresto que o direito agrave habitaccedilatildeo

como direito social que eacute quer seja entendido como um direito a uma prestaccedilatildeo natildeo vinculada

recondutiacutevel a uma mera pretensatildeo juriacutedica (na senda de Vieira de Andrade) ou antes como

um autecircntico direito subjectivo inerente ao espaccedilo existencial do cidadatildeo (na opiniatildeo de

Gomes Canotilho) natildeo lhe confere um direito imediato a uma prestaccedilatildeo efectiva jaacute que natildeo

eacute directamente aplicaacutevel nem exequiacutevel por si mesmo 447 Por todos J C VIEIRA DE ANDRADE Os Direitos Fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 5ordf ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2012 pp 162 e ss 448 Da parte do particular o acesso agrave habitaccedilatildeo passa em geral pela escolha entre dois meios

privilegiados a compra e o arrendamento A opccedilatildeo por este uacuteltimo convoca razotildees tatildeo diversas

como o facto de a compra natildeo ser viaacutevel (natildeo ter meios para custear a compra de uma casa ou

natildeo ter credibilidade bancaacuteria) natildeo ser adequada agraves necessidades habitacionais (mudanccedila

frequente do local de trabalho vida familiar instaacutevel) ou existir uma opccedilatildeo expressa do

particular nesse sentido

203

fornecimento de habitaccedilatildeo ou indirecta atraveacutes de regulaccedilatildeo subsiacutedios e

incentivos449

No acircmbito da poliacutetica de acesso agrave habitaccedilatildeo450 alternativas como a

construccedilatildeo de habitaccedilatildeo puacuteblica e o desenvolvimento do arrendamento social

tecircm tido no nosso paiacutes um caraacutecter marcadamente residual A intervenccedilatildeo

sobre o arrendamento habitacional tem sido sobretudo realizado de forma

indirecta atraveacutes da regulaccedilatildeo do regime do arrendamento urbano Da

intervenccedilatildeo legislativa resulta todavia a oneraccedilatildeo do senhorioproprietaacuterio

com os custos dessas poliacuteticas nomeadamente inscrevendo-os na funccedilatildeo

social da propriedade

Numa altura em que se assiste a uma certa revitalizaccedilatildeo do mercado do

arrendamento cabe reflectir sobre os vectores essenciais de uma poliacutetica de

habitaccedilatildeo a longo prazo indagar da necessidade de uma mudanccedila das atitudes

e vontade poliacuteticas e propor a superaccedilatildeo de eventuais barreiras regulatoacuterias

O que pretendemos destacar neste texto eacute a relevante inversatildeo do

caminho decisoacuterio no TEDH de uma poliacutetica proacute-inquilino baseada num

primeiro momento de reconhecimento de uma ampla margem de apreciaccedilatildeo

aos Estados Contratantes o TEDH passou a uma anaacutelise mais profunda da

proporcionalidade das restriccedilotildees impostas aos proprietaacuterios vindo a

considerar que as poliacuteticas de habitaccedilatildeo de enorme importacircncia econoacutemica e

social natildeo podem violar os paracircmetros de protecccedilatildeo da CEDH451

449 Cfr DAVID MULLINS e ALAN MURIE ldquoIntroductionrdquo Housing Policy in the UK Public

Policy and Politics 2005 p 1 450 Note-se que a habitaccedilatildeo tem caracteriacutesticas que determinam a poliacutetica puacuteblica e que a

distinguem de outras poliacuteticas puacuteblicas para aleacutem de ter tem um custo alto por referecircncia ao

rendimento corrente reflecte padrotildees de investimento de 60-100 anos anteriores Cfr DAVID

MULLINS e ALAN MURIE ldquoIntroductionrdquo Housing Policy in the UK Public Policy and

Politics 2005 p 1 451 Jaacute analisaacutemos a protecccedilatildeo da propriedade pela Convenccedilatildeo Europeia dos Direitos Humanos

no nosso ldquoThe protection of Property under European Law Fundamental Rights Consumer

Protection and Intellectual Property Bridging Conceptsrdquo Florenccedila 2010 pp 134 e ss

disponiacutevel em httpswwwgoogleptsearchq=sandra+passinhas+cadmusampie=utf-

8ampoe=utf-8ampgws_rd=crampei=zYKvVoD-LMj5aIaIlegO Mais recentemente vide o nosso

ldquoFundamental rights in actions to protect immovablerdquo in SONIA MARTIN SANTISTEBAN e

PETER SPARKES Protection of Immovables in European Legal Systems CUP 2015 pp 31-

62

204

2 A PROTECCcedilAtildeO DA PROPRIEDADE NO TEDH

Como no decurso dos trabalhos preparatoacuterios da CEDH natildeo foi

possiacutevel chegar a acordo quanto agrave oportunidade de inserir a tutela da

propriedade numa Convenccedilatildeo os Estados Contratantes acordaram que esta

protecccedilatildeo seria reenviada para a adopccedilatildeo de um protocolo posterior Eacute neste

contexto que vem a surgir o Protocolo 1 cujo artigo 1ordm eacute a uacutenica disposiccedilatildeo

da Convenccedilatildeo que tem como objecto expresso um direito patrimonial A

norma vem a ser aceita452 com o objectivo limitado de evitar os actos de

confisco arbitraacuterio da propriedade privada sem excluir o poder conformador

dos Estados sobre a propriedade a fim de garantir a realizaccedilatildeo da sua funccedilatildeo

social

O artigo 1ordm do Protocolo 1 estabelece que

ldquoQualquer pessoa singular ou colectiva tem o direito ao respeito dos

seus bens Ningueacutem pode ser privado do que eacute a sua propriedade a

natildeo ser por utilidade puacuteblica e nas condiccedilotildees previstas na lei e pelos

princiacutepios gerais do direito internacional

As condiccedilotildees precedentes entendem-se sem prejuiacutezo do direito que os

Estados possuem de pocircr em vigor as leis que julguem necessaacuterias

para a regulamentaccedilatildeo do uso dos bens de acordo com o interesse

geral ou para assegurar o pagamento de impostos ou outras

contribuiccedilotildees ou de multasrdquo

Esta norma garante o direito de propriedade453 e tem sido

entendida454 como compreendendo trecircs regras distintas455 a primeira

expressa na primeira frase do primeiro paraacutegrafo consagra o princiacutepio do gozo

paciacutefico dos bens como uma norma de natureza geral a segunda na segunda

frase do mesmo paraacutegrafo abrange a privaccedilatildeo da propriedade e sujeita-a a

determinadas condiccedilotildees a terceira contida no segundo paraacutegrafo reconhece

que os estados podem entre outras coisas controlar o uso da propriedade para

452 Sobre a origem da norma vide MARIA LUISA PADELLETTI La tutela della proprietagrave nella

Convenzione dei Diritti dellrsquoUomo Giuffregrave Milatildeo 2003 pp 1 e ss 453 Acoacuterdatildeo Marckx c Beacutelgica (Queixa nordm 683374) de 13 de junho de 1979 sect63 454 Sobre os princiacutepios que regem a interpretaccedilatildeo da Convenccedilatildeo MARIE-BEacuteNEacuteDICTE

DEMBOUR Who Believes in Human Rights ndash Reflecions on the European Convention CUP

2006 pp 21 e ss 455 Veja-se o Acoacuterdatildeo Sporrong e Loumlnnroth c Sueacutecia (Queixas nordm 715175 715275) de 23

de setembro de 1982 sect 61

205

a realizaccedilatildeo do interesse geral atraveacutes de leis456 que considerem necessaacuterias

para esse fim O Tribunal cabe controlar a conformidade do exerciacutecio deste

poder de regulamentaccedilatildeo do uso dos bens com os princiacutepios da legalidade e da

proporcionalidade surgindo assim o direito de propriedade como uma

garantia negativa perante a acccedilatildeo do poder estatal

As regras enunciadas contudo estatildeo interrelacionadas a segunda e a

terceira regras constituem instacircncias de interferecircncia com o gozo paciacutefico da

propriedade e portanto devem ser concretizadas em funccedilatildeo do princiacutepio geral

enunciado na primeira regra457

A problemaacutetica do arrendamento tem sido tratada pelo TEDH no

acircmbito especiacutefico da terceira regra (segundo paraacutegrafo) ou seja no poder dos

Estados de regulamentarem o uso dos bens458 Ainda que os senhorios

houvessem ficado privados do uso e fruiccedilatildeo do imoacutevel natildeo o pudessem

alienar etc em nenhum dos casos analisados houve medidas que implicassem

a transferecircncia do tiacutetulo de propriedade O Tribunal parece assim atribuir

relevacircncia agrave finalidade uacuteltima do regime considerando como uma simples

regulamentaccedilatildeo do uso dos bens qualquer medida que embora restringindo ndash

temporaacuteria ou definitivamente ndash alguns dos poderes do proprietaacuterio natildeo

aparece finalizada numa privaccedilatildeo da propriedade

456 No que respeita ao seu conteuacutedo o respeito pelo princiacutepio da legalidade pressupotildee uma

dupla determinaccedilatildeo relativa agrave existecircncia das normas de direito interno e agrave conformidade das

medidas concretas com essas normas Cfr MARIA LUISA PADELLETTI La tutela della

proprietagrave nella Convenzione dei Diritti dellrsquoUomo Giuffregrave Milatildeo 2003 p 182 O Acoacuterdatildeo

R amp L SRO e outros c Repuacuteblica Checa (Queixas nordm 3792605 2578409 3600209

4441009 e 6554609) de 3 de julho de 2014 versou sobre um esquema de controlo de rendas

que natildeo cobria os custos de reparaccedilatildeo reconstruccedilatildeo e manutenccedilatildeo dos apartamentos em causa

As normas em causa haviam sido declaradas inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional

pelo que a interferecircncia com os direitos do titular natildeo tinha base legal 457 Inter alia ver o Acoacuterdatildeo Lithgow e Outros c Reino Unido (Queixas nordm 900680 926281

926381 926581 926681 931381 940581) de 8 de julho de 1986 sect 106 Sobre o

fundamento filosoacutefico destas normas ver Ali Riza Ccediloban Protection of Property Rights

within the European Convention on Human Rights Ashgate 2004 pp137-138 458 Na verdade nunca o TEDH considerou que a legislaccedilatildeo do arrendamento conduzisse a uma

expropriaccedilatildeo de direito ou de facto Cfr Mellacher e outros contra Aacuteustria (Queixas nordm

1052283 1101184 1107084) de 19 de dezembro de 1989 Scollo contra Itaacutelia (Queixa nordm

1913391) de 28 de setembro de 1995 sect 27 Ghigo c Malta (Queixa nordm 3112205) de 26 de

setembro de 2006 sect49 Immobiliare Saffi contra Itaacutelia (Queixa nordm 2277493) de 28 de julho

de 1999 sect 46 Spadea and Scalabrino contra Itaacutelia (Queixa nordm 1286887) de 28 de setembro

de 1995 sect 28

206

Especificamente no que respeita ao poder de regulamentaccedilatildeo do uso dos bens

para a realizaccedilatildeo do interesse geral satildeo de referir duas notas

(1) O TEDH reconhece uma ampla margem de apreciaccedilatildeo aos Estados para

definir o que eacute o lsquointeresse geralrsquo (isto eacute quanto agrave anaacutelise e

reconhecimento do problema e quanto agrave escolha concreta das medidas

adequadas para a soluccedilatildeo do problema)

Segundo a jurisprudecircncia europeia a margem de apreciaccedilatildeo atribuiacuteda

aos Estados varia em funccedilatildeo do contexto459 entre os elementos que o TEDH

toma em consideraccedilatildeo figuram a natureza e a importacircncia do direito protegido

e o tipo de comportamento no caso concreto460 Os oacutergatildeos de controlo natildeo

podem exercer um controlo de meacuterito quanto a tal avaliaccedilatildeo no pressuposto

de que os Estados gozam de um amplo espaccedilo de avaliaccedilatildeo em funccedilatildeo dos

objectivos de poliacutetica econoacutemica e social a realizar A natildeo ser que seja

desprovida de uma base razoaacutevel ou seja se revele manifestamente infundada

o Tribunal natildeo pode substituir-se461 agrave avaliaccedilatildeo da autoridade nacional Assim

sendo o limite constituiacutedo pelo interesse geral assume significado enquanto

se consubstancie numa garantia de racionalidade (coerecircncia loacutegica e

racionalidade) mais do que numa garantia de conteuacutedo462

(1) O princiacutepio da proporcionalidade

O princiacutepio do justo equiliacutebrio ou da proporcionalidade natildeo tem

nenhuma referecircncia textual e eacute de origem exclusivamente jurisprudencial No

acircmbito do artigo 1ordm do Protocolo 1 este princiacutepio aplica-se quer a medidas de

desapossamento (segunda regra) quer nas hipoacuteteses de meras interferecircncias

com o direito de propriedade (terceira regra)463

ldquoo segundo paraacutegrafo do Artigo 1 do Protocolo 1 (P1-1) deve ser

construiacuteda agrave luz do princiacutepio da primeira frase desse artigo Assim

a interferecircncia deve respeitar um equiliacutebrio justo entre as exigecircncias

do interesse geral e os requisitos da protecccedilatildeo dos direitos

fundamentais dos indiviacuteduosrdquo

459 Sobre a margem de apreciaccedilatildeo em geral vide FRANCSCO BILANCIA I diritti fondamentale

como conquiste sovrastatali de civiltagrave Il diritto de proprietagrave nella Convenzione europea

Giappichelli Turim 2002 pp 113 e ss 460 Acoacuterdatildeo Buckley c Reino Unido (Queixa nordm 2034892) de 29 de setembro de 1996 sect 74 461 James e outros c Reino Unido (Queixa nordm 879379) de 21 de fevereiro de 1986 sect46 462 Em Mellacher et al c Aacuteustria sect 45 463 Cfr Sporrong e Loumlnnroth c Sweden sect69 e Mellacher et al c Aacuteustria sect48 James e Outros

c Reino Unido sect50

207

O princiacutepio do justo equiliacutebrio exige que cada medida de privaccedilatildeo ou

de regulamentaccedilatildeo do direito individual (no nosso caso a propriedade)

obedeccedila a uma razoaacutevel relaccedilatildeo de proporcionalidade entre os meios utilizados

e o objectivo da medida464 Este criteacuterio - que tem um alcance mais amplo do

que o da exigecircncia do pagamento de um montante indemnizatoacuterio465 - permite

equilibrar em concreto os direitos individuais protegidos pela Convenccedilatildeo com

os interesses da colectividade que justificam a sua compressatildeo

Dito de outro modo a avaliaccedilatildeo da proporcionalidade constitui o

instrumento que permite coordenar o respeito pelas obrigaccedilotildees resultantes da

Convenccedilatildeo com o exerciacutecio dos poderes soberanos de que os Estados satildeo

titulares Neste sentido a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da proporcionalidade acaba

por desenvolver uma funccedilatildeo complementar466 agrave da doutrina da margem de

apreciaccedilatildeo estadual enquanto o recurso a esta uacuteltima permite atribuir ao

Estado uma certa esfera de discricionariedade na determinaccedilatildeo dos

pressupostos que permitem a tomada de medidas limitativas ou de

regulamentaccedilatildeo dos direitos individuais a avaliaccedilatildeo da proporcionalidade diz

respeito agrave congruecircncia das medidas concretas relativamente ao fim a atingir

permitindo controlar que as medidas adoptadas pelo Estado no exerciacutecio do

poder discricionaacuterio natildeo comprimam excessivamente a posiccedilatildeo juriacutedica do

indiviacuteduo467

Assim entendido o princiacutepio da proporcionalidade constitui natildeo

apenas um princiacutepio substancial ou informador mas tambeacutem um esquema

compoacutesito de valoraccedilatildeo que permite equilibrar interesses e valores de

natureza heterogeacutenea assumindo eventualmente conteuacutedos distintos em

funccedilatildeo do tipo de interferecircncia bem como da importacircncia do direito individual

e do interesse colectivo que justificam a restriccedilatildeo

Eacute quanto a este uacuteltimo aspecto que o controlo do tribunal se mostra

mais incisivo transformando-se num controlo de meacuterito que tem em conta

todas as circunstacircncias do caso concreto O criteacuterio do justo equiliacutebrio e o da

464 Acoacuterdatildeo Beyeler c Itaacutelia (Queixa nordm 3320296) de 5 de janeiro de 2000 sect114 465 Vide MARIA LUISA PADELLETTI La tutela della proprietagrave nella Convenzione dei Diritti

dellrsquoUomo Giuffregrave Milatildeo 2003 pp 212 e ss 466 Cfr MARIA LUISA PADELLETTI La tutela della proprietagrave nella Convenzione dei Diritti

dellrsquoUomo Giuffregrave Milatildeo 2003 p 233 Fala em funccedilatildeo correctiva ALI RIZA CcedilOBAN

Protection of Property Rights within the European Convention on Human Rights Ashgate

2004 p 204 467 O controlo da proporcionalidade incinde sobre os efeitos que a medida concreta de

interferecircncia ou regulamentaccedilatildeo comporta em relaccedilatildeo ao caso concreto permite verificar se o

indiviacuteduo (o senhorio) sofre um sacrifiacutecio excessivo e exorbitante Cfr Hakansson e Sturesson

c Sueacutecia (Queixa nordm 1185585) sect 51

208

proporcionalidade tornam-se nas matildeos do tribunal um instrumento de poliacutetica

judiciaacuteria extremamente duacutectil que permite a este uacuteltimo alcanccedilar as soluccedilotildees

mais variadas

3 AS POLIacuteTICAS NACIONAIS DE ARRENDAMENTO SUJEITAS A

ESCRUTIacuteNIO O RECONHECIMENTO DE UMA AMPLA MARGEM DE

APRECIACcedilAtildeO AOS ESTADOS CONTRATANTES

Vamos comeccedilar por analisar a jurisprudecircncia do TEDH no caso

Mellacher em que o Tribunal escrutinou medidas austriacuteacas de controlo de

rendas

I CASO MELLACHER ET AL C AacuteUSTRIA DE 19 DE DEZEMBRO DE

1989 RENDAS CONTROLADAS

Este eacute um caso paradigmaacutetico na jurisprudecircncia do TEDH cujas linhas

orientadoras estiveram na base da posterior evoluccedilatildeo jurisprudencial

Discutiam-se no caso concreto determinadas medidas legislativas - com base

na Lei do Arrendamento Austriacuteaca de 1981 (Mietrechtsgesetz) em especial o

sect 44 - atraveacutes das quais o Estado havia transformado contratos de

arrendamento de duraccedilatildeo limitada com rendas livremente negociadas entre as

partes em contratos de duraccedilatildeo indeterminada e com renda limitada que em

alguns casos dificilmente permitia cobrir os custos de manutenccedilatildeo dos

imoacuteveis468

Mr Mellacher e os outros requerentes que eram proprietaacuterios de um

preacutedio relativamente ao qual haviam celebrado contratos de arrendamento

queixaram-se de que as autoridades austriacuteacas interferiram com a sua liberdade

contratual e privaram-nos do percebimento das rendas A Lei do

Arrendamento alegaram tornara-os meros administradores das suas

propriedades a troco de uma retribuiccedilatildeo controlada pelas autoridades puacuteblicas

Natildeo se colocaram no caso concreto duacutevidas quanto agrave base legal da

intervenccedilatildeo e na medida em que o Estado Austriacuteaco alegou que a Lei visava

reduzir a disparidade de rendas para apartamentos equivalentes e combater a

especulaccedilatildeo imobiliaacuteria tornar mais faacutecil o alojamento a preccedilos razoaacuteveis para

468 Para a fixaccedilatildeo do montante de renda por metro quadrado a Lei do Arrendamento dividia

os arrendamentos em quatro classes de acordo com o seu niacutevel de conforto e

independentemente da sua localizaccedilatildeo geograacutefica Esta divisatildeo era muito desvantajosa para os

senhorios de casas com menos condiccedilotildees criando situaccedilotildees de desigualdade

209

uma populaccedilatildeo menos afluente e ao mesmo tempo incentivar melhoramentos

nos imoacuteveis o Tribunal considerou que a medida visava prosseguir um

objectivo de interesse geral469

Restava470 entatildeo a questatildeo da proporcionalidade saber se a intervenccedilatildeo

em causa respeitava o equiliacutebrio (fair balance) entre as necessidades de

interesse geral da comunidade e a protecccedilatildeo dos direitos fundamentais dos

indiviacuteduos equiliacutebrio esse que se manifesta numa adequada proporcionalidade

entre os meios empregues e o objectivo perseguido O juiacutezo do Tribunal foi

positivo apesar do montante avultado das reduccedilotildees estas natildeo constituem um

oacutenus desproporcionado e o facto de as rendas terem sido acordadas

previamente de acordo com os valores de mercado natildeo impede que o legislador

as considere inaceitaacuteveis do ponto de vista da justiccedila social

Se esta decisatildeo respeita integralmente a margem de apreciaccedilatildeo do

Estado Contratante no que respeita agrave intervenccedilatildeo no equiliacutebrio das prestaccedilotildees

contratuais vamos agora ver as especificidades dos casos em que estava em

causa a legislaccedilatildeo italiana no acircmbito do arrendamento

II CASOS CONTRA ITAacuteLIA

Desde 1947 que o legislador italiano intervinha no arrendamento

urbano quer atraveacutes do controlo e congelamento das rendas quer pela

prorrogaccedilatildeo legal dos arrendamentos em vigor e pelo adiamento suspensatildeo

ou escalonamento da execuccedilatildeo das ordens de despejodesapossamento

Diploma nuclear deste regime foi a Lei 392 de 27 de julho de 1978

que estabelecia um limite da prorrogaccedilatildeo legal dos arrendamentos ateacute 31 de

dezembro de 1982 30 de junho de 1983 ou 31 de dezembro de 1983 consoante

as circunstacircncias Este diploma estabelecia na Secccedilatildeo 56 que o magistrado

fixava a data para a execuccedilatildeo da ordem de desapossamento tendo em

consideraccedilatildeo as circunstacircncias particulares do inquilino e do senhorio e a

causa de extinccedilatildeo do arrendamento A execuccedilatildeo natildeo poderia ser diferida por

mais de seis meses ou de doze em casos excepcionais

469 Cfr sect 47 470 O Tribunal reconheceu no sect 51 que na legislaccedilatildeo social sobre o controlo de rendas o

legislador pode tomar medidas que afectem a execuccedilatildeo de contratos celebrados em data

anterior de modo a prosseguir o objectivo pretendido Tambeacutem natildeo ajuizou a possibilidade de

medidas alternativas Na medida em que o Estado aja nos limites da sua margem de

apreciaccedilatildeo natildeo cabe ao Tribunal avaliar em que medida a legislaccedilatildeo em causa representa a

melhor soluccedilatildeo para lidar com o problema ou em que medida a discricionariedade legislativa

deveria ter sido exercida noutra maneira

210

Desde 1983 todavia vaacuterias normas vieram prorrogar a suspensatildeo

dessas ordens de reapossamento (ordinanze di sfratto)471 A Lei 118 de 5 de

abril de 1985 na sua Secccedilatildeo 1(3) viria a determinar que as suspensotildees natildeo

seriam aplicaacuteveis se a repossessatildeo houvesse sido ordenada por incumprimento

do pagamento das rendas Tambeacutem natildeo poderia ser ordenada a prorrogaccedilatildeo da

suspensatildeo do despejo se (a) apoacutes a conclusatildeo do contrato o senhorio

requeresse o imoacutevel para uso (residencial comercial ou profissional) proacuteprio

do cocircnjuge filhos ou netos e se oferecesse ao inquilino acomodaccedilatildeo similar

com uma renda comportaacutevel e que natildeo ultrapassasse os 20 da renda inicial

pagando ainda os custos da mudanccedila do inquilino (b) quando o senhorio

tivesse necessidade urgente do imoacutevel para seu alojamento dos seus filhos ou

dos seus ascendentes

Estas medidas foram sancionadas pelo Tribunal no Acoacuterdatildeo Spadea e

Scalabrino c Itaacutelia472 No que respeita ao objectivo da interferecircncia o Tribunal

considerou que as medidas legislativas que suspendiam os despejos durante o

periacuteodo 1984 a 1988 eram adequadas para lidar com o elevado nuacutemero de

extinccedilatildeo de contratos de arrendamento entre 1982 e 1983 previsto devido ao

levantamento das suspensotildees de execuccedilatildeo pela Lei 3921978 e justificava-se

pela necessidade de permitir que os inquilinos afectados encontrassem novo

alojamento ou obtivessem habitaccedilatildeo social A execuccedilatildeo simultacircnea de todas

as ordens de despejo considerou-se originaria uma consideraacutevel tensatildeo social

e poria em causa a ordem puacuteblica473

Quanto agrave proporcionalidade da interferecircncia face ao propoacutesito da

intervenccedilatildeo ndash proteger os inquilinos com baixos rendimentos e evitar o risco

de perturbaccedilatildeo da ordem puacuteblica ndash o Tribunal avaliou em que medida foi

respeitado o equiliacutebrio entre o interesse dos requerentes e o interesse puacuteblico

Considerando que na situaccedilatildeo concreta a uacutenica causa para o desapossamento

471 Mais concretamente o Decreto Legislativo 795 de 1 de dezembro de 1984 cujas normas

foram incorporadas no Decreto Legislativo 12 de 7 de fevereiro de 1985 que mais tarde se

tornou Lei 118 de 5 de abril de 1985 e que cobria o periacuteodo de 1 de dezembro de 1984 a 30

de junho de 1985 Uma segunda suspensatildeo resultou do Decreto Legislativo 708 de 29 de

outubro de 1986 que veio a tornar-se a Lei 899 de 23 de dezembro de 1986 e que cobria o

periacuteodo entre 29 de dutubro de 1986 e 31 de marccedilo de 1987 Uma terceira suspensatildeo foi

introduzida pelo Decreto Legislativo 26 de 8 de fevereiro de 1988 que se tornou a Lei 108

de 8 de abril de 1988 e que cobria inicialmente o periacuteodo de 8 de fevereiro de 1988 a 30 de

setembro mas depois foi prorrogado ateacute 31 de dezembro de 1988 Finalmente uma uacuteltima

suspensatildeo foi introduzida pelo Decreto Legislativo 551 de 30 de dezembro de 1988 que se

tornou Lei 61 de 21 de fevereiro de 1989 e que cobria o periacuteodo ateacute 30 de abril de 1989 472 Acoacuterdatildeo Spadea e Scalabrino c Itaacutelia (Queixa nordm 1286887) de 28 de setembro de 1995 473 Para 31

211

era a caducidade do contrato de arrendamento e que natildeo se verificava

nenhuma situaccedilatildeo de excepccedilatildeo agrave suspensatildeo do despejo ndash apesar de os

requerentes terem sido obrigados a comprar um novo apartamento e natildeo terem

recuperado o imoacutevel senatildeo apoacutes a morte de uma arrendataacuteria e apoacutes a saiacuteda

voluntaacuteria da outra ndash o Tribunal considerou que as medidas natildeo eram

desproporcionadas mas antes cabiam na margem de apreciaccedilatildeo reconhecida

ao Estado italiano pelo segundo paraacutegrafo do artigo 1 do Protocolo 1

No Acoacuterdatildeo Scollo c Itaacutelia de 28 de setembro de 1995474 o requerente

tinha uma ordem judicial para a desocupaccedilatildeo do imoacutevel pelo inquilino em 30

de junho de 1984 A pedido do inquilino o magistrado deferiu ao abrigo da

Lei 94 de 25 de marccedilo de 1982 a desocupaccedilatildeo para 31 de outubro de 1984

Como o inquilino permaneceu no imoacutevel o requerente iniciou o procedimento

de despejo Entretanto o Decreto de 17 de fevereiro de 1985 (que viria a ser a

Lei nordm 118 de 5 de abril de 1985) entrou em vigor suspendendo os despejos

ateacute 30 de junho de 1985 Entre 1 de julho de 1985 e a entrada em vigor do

Decreto Legislativo 708 de 29 de outubro de 1986 que suspendeu os despejos

ateacute 31 de marccedilo de 1987 o requerente fez nove tentativas para despejar o

inquilino Entre 1 de abril de 1987 e 8 de fevereiro de 1988 data em que uma

nova seacuterie de diplomas veio suspender os despejos ateacute 30 de abril de 1989 o

senhorio fez nove tentativas para despejar o inquilino Entre 1 de maio de 1989

e 15 de outubro de 1991 o senhorio (diabeacutetico com 71 de incapacidade e

desempregado) fez dezoito tentativas infrutiacuteferas para despejar o inquilino Em

1 de dezembro de 1989 o senhorio inicia um processo judicial contra o

inquilino invocando que a suspensatildeo do despejo natildeo era aplicaacutevel ao caso

concreto pois o inquilino desde Novembro de 1987 natildeo pagava parte da

renda O inquilino regularizou a situaccedilatildeo e o processo foi arquivado Scollo

viria a recuperar o imoacutevel a 15 de janeiro de 1995

A respeito do propoacutesito da interferecircncia o Tribunal repetiu o raciociacutenio

jaacute referido no Acoacuterdatildeo Spadea e Scalabrino v Itaacutelia e considerou que a

execuccedilatildeo simultacircnea de todas as ordens de despejo originaria uma

consideraacutevel tensatildeo social e poria em causa a ordem puacuteblica

Quanto agrave proporcionalidade o Tribunal comeccedilou por aceitar que a

necessidade urgente de Scollo em recuperar o seu imoacutevel natildeo se verificou

durante todo o periacuteodo em causa mas natildeo aceitou as conclusotildees que o

Governo retirou desse facto Apesar da declaraccedilatildeo solene do requerente da

necessidade da casa proferida a 30 de novembro de 1987 que lhe daria

prioridade na assistecircncia policial para executar o despejo nunca houve uma

ordem administrativa nesse sentido Igualmente apesar de o seu advogado ter

contactado duas vezes o Comiteacute da Prefeitura em setembro de 1994 -

474 Acoacuterdatildeo Scollo c Itaacutelia (Queixa nordm 1913391) de 28 de setembro de 1995

212

sublinhando que o caso do seu cliente deveria ser resolvido rapidamente jaacute

que ele precisava do apartamento natildeo tinha emprego e tinha uma incapacidade

de 71 para aleacutem de o inquilino natildeo pagar a renda desde 30 de novembro de

1987 - as autoridades administrativas competentes natildeo agiram de forma a

responder a estes pedidos

Ainda que no caso concreto as condiccedilotildees legais para a execuccedilatildeo do

despejo estivessem verificadas o requerente natildeo recuperou a propriedade ateacute

15 de janeiro de 1995 e apenas porque o inquilino deixou o apartamento de

livre vontade Nesse periacuteodo o requerente natildeo soacute foi obrigado a comprar outro

apartamento como ainda teve de propor uma acccedilatildeo judicial para resolver o

problema do natildeo pagamento das rendas

Concluiu o Tribunal que475 ao adoptar as medidas de emergecircncia e ao

estabelecer determinadas excepccedilotildees agrave sua aplicaccedilatildeo o legislador italiano

poderia razoavelmente considerar que de acordo com a necessidade de

encontrar um justo equiliacutebrio entre os interesses da comunidade e o direito dos

senhorios e do requerente em particular que os meios escolhidos eram

apropriados para alcanccedilar o objectivo pretendido No entanto a restriccedilatildeo ao

uso do apartamento por parte do requerente resultante da natildeo aplicaccedilatildeo pelas

autoridades competentes dessas normas foi contraacuteria aos requisitos do

segundo paraacutegrafo do Artigo 1 do Protocolo 1 Consequentemente houve uma

violaccedilatildeo dessa norma

O Tribunal apreciou ainda a existecircncia de uma violaccedilatildeo do artigo 6ordm476

sect1 que estabelece

Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada

equitativa e publicamente num prazo razoaacutevel por um tribunal

independente e imparcial estabelecido pela lei o qual decidiraacute quer

sobre a determinaccedilatildeo dos seus direitos e obrigaccedilotildees de caraacutecter civil

quer sobre o fundamento de qualquer acusaccedilatildeo em mateacuteria penal

dirigida contra ela O julgamento deve ser puacuteblico mas o acesso agrave

sala de audiecircncias pode ser proibido agrave imprensa ou ao puacuteblico

durante a totalidade ou parte do processo quando a bem da

moralidade da ordem puacuteblica ou da seguranccedila nacional numa

sociedade democraacutetica quando os interesses de menores ou a

protecccedilatildeo da vida privada das partes no processo o exigirem ou na

medida julgada estritamente necessaacuteria pelo tribunal quando em

475 Para 40 476 Sobre as relaccedilotildees entre o artigo 1ordm do Protocolo 1 e o artigo 6ccedil Ali Riza Ccediloban Protection

of Property Rights within the European Convention on Human Rights Ashgate 2004 pp 244

e ss

213

circunstacircncias especiais a publicidade pudesse ser prejudicial para

os interesses da justiccedila

O Tribunal considerou em primeiro lugar que a norma era aplicaacutevel

o objectivo dos procedimentos era resolver um litiacutegio entre o requerente e o

inquilino Em segundo lugar o Tribunal sublinhou que entre a notificaccedilatildeo do

inquilino para o despejo e a desocupaccedilatildeo (voluntaacuteria) do imoacutevel decorreram

onze anos e dez meses Ao natildeo ultrapassar as dificuldades praacuteticas criadas com

a execuccedilatildeo de um elevado nuacutemero de despejos considerou o Tribunal que a

ineacutercia das autoridades administrativas competentes gerou responsabilidade

do Estado italiano nos termos do artigo 6ordm nordm 1

No Acoacuterdatildeo Immobiliare Saffi v Itaacutelia477 um caso entre muitos

julgados pelo Tribunal478 relativos agrave jaacute referida Lei 61 de 21 de fevereiro de

1989 que entrou em vigor no mecircs de marccedilo desse mesmo ano ndash estava em

causa a distinccedilatildeo entre os despejos prioritaacuterios e os natildeo prioritaacuterios Esta Lei

estabelecia que a partir de 1 de maio de 1989 o pedido de assistecircncia policial

para os despejos seria tratado segundo uma ordem de prioridade estabelecida

de acordo com criteacuterios fixados pelo prefeito Entre os casos com prioridade

contavam-se aqueles em que natildeo era legalmente possiacutevel suspender a

execuccedilatildeo especialmente os casos em que os senhorios precisavam de

alojamento para si proacuteprios para os cocircnjuges descendentes e ascendentes

Para todos os outros casos a assistecircncia policial deveria ser providenciada no

maacuteximo ateacute quarenta e oitos meses contados a partir de 1 de janeiro de 1990

ou seja ateacute dezembro de 1993 Na sequecircncia desta lei e relevante para o caso

entraram na Perfettura de Livorno 1186 casos de pedido de assistecircncia policial

para despejos (354 casos de atrasos no pagamento da renda 58 denuacutencias para

habitaccedilatildeo 722 porque terminou o contrato 55 outras)

Se os casos natildeo prioritaacuterios deveriam ter lugar num periacuteodo maacuteximo

de 4 anos a contar de 1990 ou seja ateacute dezembro de 1993 na praacutetica todavia

ateacute os despejos urgentes se tornaram muito difiacuteceis e o pedido de assistecircncia

policial tornou-se um momento autoacutenomo no despejo com a possibilidade de

o prefeito poder suspender a ordem dada pelo magistrado Em dezembro de

1993 o prazo foi prorrogado ateacute 31 de dezembro de 1995 depois ateacute 26 de

fevereiro de 1996 e finalmente ateacute 26 de abril de 1996 De 31 de dezembro de

1993 ateacute 31 dezembro de 1995 (Decreto Legislativo nordm 33093) de 31 de

dezembro de 1995 ateacute 29 de fevereiro de 1996 (Decreto Legislativo nordm 54695

477 Acoacuterdatildeo Immobiliare Saffi c Itaacutelia (Queixa nordm 2277493) de 28 de julho de 1999 478 Stornelli e Sacchi c Itaacutelia 28 de outubro de 2005 Lunari c Itaacutelia 11 de abril de 2001

Edoardo Palumbo c Itaacutelia 1 de marccedilo de 2001 Molteni e Ghisi c Itaacutelia 28 de outubro de

2005

214

de 29 de fevereiro de 1996 ateacute 26 de abril de 1996 (Decreto-Legislativo nordm

8196) de 26 abril 1996 ateacute 25 de junho de 1996 (Decreto Legislativo nordm

21796 e desde essa altura ateacute 31 de dezembro de 1996 (Decreto Legislativo

nordm 33596) Satildeo ainda de referir as posteriores Lei 566 de 4 de novembro de

1996 os Decretos Legislativos 1721997 71998 e 3751998 e a Lei 431 de

9 de dezembro de 1998

No caso concreto depois de ter sido dada notiacutecia de despejo em 1983

e de entre 15 de dezembro de 1988 e janeiro de 1996 terem sido feitas onze

tentativas de recuperar o imoacutevel sem sucesso por o requerente natildeo ter direito

a assistecircncia policial o reapossamento acabou por ter lugar apenas em abril de

1996 na sequecircncia da morte do inquilino

O Tribunal considerou que o escopo desta legislaccedilatildeo que se

enquadrava no segundo paraacutegrafo do Artigo 1ordm do Protocolo 1 era liacutecito jaacute

que a legislaccedilatildeo impugnada tinha um objectivo de interesse geral como

requerido pelo segundo paraacutegrafo do Artigo 1ordm (o jaacute mencionado objectivo de

evitar a tensatildeo social e o perigo para a ordem puacuteblica eventualmente resultante

da extinccedilatildeo de um elevado nuacutemero de contratos entre 1982 e 1983 devido ao

levantamento das suspensotildees de execuccedilatildeo das ordens de despejo e o de

permitir que os inquilinos afectados encontrassem novo alojamento ou

obtivessem habitaccedilatildeo social)479

No que agrave proporcionalidade da medida dizia respeito o tribunal reiterou

que esta deve respeitar o justo equiliacutebrio (fair balance) entre as necessidades do

interesse geral e a protecccedilatildeo dos direitos dos indiviacuteduos reconhecendo ao

Estado uma ampla margem de apreciaccedilatildeo quer na escolha dos meios de

concretizaccedilatildeo desse fim quer na questatildeo de saber se as consequecircncias dessa

concretizaccedilatildeo satildeo justificadas pelo objectivo da lei em questatildeo480 Nesse

sentido reiterou que um sistema de suspensatildeo temporaacuteria ou escalonamento de

execuccedilatildeo de ordens judiciais seguidas da reinstalaccedilatildeo do senhorio na sua

propriedade natildeo eacute soacute por si susceptiacutevel de criacutetica tendo em consideraccedilatildeo a

margem de apreciaccedilatildeo permitida pelo segundo paraacutegrafo do artigo 1481

Todavia este sistema comporta o risco de impor aos senhorios um oacutenus

excessivo em termos de disposiccedilatildeo da sua propriedade e deve dar garantias

procedimentais que salvaguardem a operatividade do sistema e que o impacto

nos direitos do proprietaacuterio natildeo seja arbitraacuterio nem imprevisiacutevel O Tribunal

considerou que o sistema italiano era inflexiacutevel ao estabelecer que os casos em

que o arrendamento havia cessado com fundamento na necessidade urgente do

479 sect 47 480 sect 49 481 sect 54

215

imoacutevel do senhorio tinham prioridade tornou a execuccedilatildeo das ordens natildeo-

urgentes dependentes da inexistecircncia de ordens prioritaacuterias Na medida em que

existia sempre um largo nuacutemero de pedidos prioritaacuterios as ordens natildeo

prioritaacuterias praticamente natildeo foram executadas mesmo apoacutes Janeiro de 1990

Dito de outro modo o fornecimento de assistecircncia policial ficava sempre

dependente do nuacutemero de pedidos prioritaacuterios e do nuacutemero de agentes policiais

disponiacuteveis O Tribunal sublinhou ainda que na fase administrativa nenhum

tribunal tinha jurisdiccedilatildeo para apreciar o impacto que os atrasos causados pelo

sistema tinham nos casos concretos a actividade do perfeito era autorizada e

cabia no acircmbito da legislaccedilatildeo em vigor O Tribunal considerou em uacuteltimo lugar

que as medidas de emergecircncia adoptadas natildeo tinham nenhum limite temporal

findo o qual fosse assegurado o reaposssamento do senhorio

No caso concreto o juiz ordenou ao inquilino que restituiacutesse o imoacutevel

ao senhorio ateacute 30 de setembro de 1984 Nos seis anos seguintes a execuccedilatildeo

das ordens de despejo natildeo urgentes foi sendo sucessivamente suspensa Em

1989 Immobiliare Saffi obteve o direito a assistecircncia policial entre 1 de janeiro

de 1990 e o final de 1993 Mas este prazo foi sendo prorrogado e o requerente

soacute recuperou o imoacutevel a 11 de abril de 1996 apoacutes a morte do inquilino

O tribunal considerou que durante onze anos a situaccedilatildeo causou um

estado de incerteza juriacutedica quanto ao momento da restituiccedilatildeo do apartamento

O requerente natildeo poderia requerer tutela judicial ao juiz que tratou do processo

de execuccedilatildeo que considerou ser de admitir uma prorrogaccedilatildeo nem ao tribunal

administrativo que natildeo poderia afastar a decisatildeo do prefeito de dar prioridade a

casos urgentes jaacute que a decisatildeo era legiacutetima O requerente natildeo tinha modo de

compelir o governo a tomar em consideraccedilatildeo as dificuldades surgidas em

virtude da prorrogaccedilatildeo Do mesmo a empresa natildeo tinha perspectivas de obter

uma indemnizaccedilatildeo do Governo italiano pelo periacuteodo da prorrogaccedilatildeo durante o

qual esteve incapaz de vender ou arrendar o seu apartamento a valor de mercado

Consequentemente o Tribunal concluiu que as medidas tomadas pelo legislador

italiano impuseram um oacutenus excessivo agrave empresa requerente e afectaram o

equiliacutebrio entre a protecccedilatildeo do direito de propriedade e as exigecircncias do

interesse geral consubstanciando uma violaccedilatildeo do artigo 1 do Protocolo 1

Os requerentes tambeacutem invocaram a violaccedilatildeo do artigo 6ordm nordm 1 da

CEDH A este respeito o Tribunal tomou em consideraccedilatildeo que a requerente

pediu ao magistrado de Livorno uma ordem confirmando a extinccedilatildeo do

arrendamento e requerendo que o inquilino restituiacutesse o imoacutevel Como o

inquilino natildeo contestou o despejo a uacutenica questatildeo era verdadeiramente a

restituiccedilatildeo do imoacutevel a recusa em restituir o imoacutevel consubstanciava uma

extensatildeo de facto do arrendamento e uma limitaccedilatildeo do direito de propriedade

do requerente o que constituiacutea um ldquolitiacutegiordquo para efeitos do artigo 6ordm O

Tribunal considerou ainda que o direito a um tribunal seria ilusoacuterio se uma

216

decisatildeo domeacutestica pudesse manter-se inoperativa em detrimento de uma das

partes Seria inconcebiacutevel que o artigo 6ordm previsse garantias processuais dos

litigantes ndash processos justos puacuteblicos e ceacuteleres ndash sem proteger a execuccedilatildeo das

decisotildees construir o artigo 6ordm como dizendo respeito apenas ao acesso aos

tribunais e com o decurso do processo seria uma violaccedilatildeo do Estado de Direito

A execuccedilatildeo de uma decisatildeo judicial cabe ainda no conceito de ldquocausardquo do

artigo 6ordm como eacute jurisprudecircncia constante e antiga do Tribunal482

Relativamente ao caso concreto o Tribunal sublinhou em primeiro

lugar que a decisatildeo administrativa relativa agrave concessatildeo de assistecircncia policial

se baseava nos mesmos factores jaacute tomados em consideraccedilatildeo pelo magistrado

ao abrigo da Lei 39278 Em segundo lugar o Tribunal observou que a decisatildeo

administrativa natildeo estava sujeita a controlo judicial Por uacuteltimo o Tribunal

considerou que a prestaccedilatildeo de assistecircncia policial foi sendo adiada por

periacuteodos de seis meses ao longo de quase nove anos fazendo pressupor que

as autoridades italianas natildeo procuraram soluccedilotildees alternativas para as questotildees

de ordem puacuteblica na aacuterea da habitaccedilatildeo Consequentemente o Tribunal

declarou uma violaccedilatildeo do artigo 6ordm da Convenccedilatildeo

4 A VIRAGEM NA JURISPRUDEcircNCIA DO TEDH DA INSUFICIEcircNCIA

ADJECTIVA OU PROCEDIMENTAL Agrave INTERFEREcircNCIA SUBSTANTIVA

Se nos casos contra Itaacutelia o Tribunal declarou a violaccedilatildeo do artigo 1ordm

do Protocolo 1 com base em razotildees objectivas ou procedimentais483 vamos

agora analisar a viragem jurisprudencial do Tribunal em casos em que estava

em causa o equiliacutebrio substancial484 da relaccedilatildeo entre senhorio e inquilino485

482 Acoacuterdatildeo Hornsby c Greece (Queixa nordm 1835791) de 19 de marccedilo de 1997 sect 40 483 Assim como no Acoacuterdatildeo Schirmer c Poloacutenia (Queixa nordm 6888001) de 21 de setembro de

2004 sobre a oferta de residecircncia alternativa como requisito de execuccedilatildeo de uma decisatildeo de

despejo 484 Em sentido divergente quanto agrave natureza desta viragem mas quanto a noacutes sem razatildeo como

resulta do que vimos de dizer David Magalhatildees ldquoPropriedade privada e cessaccedilatildeo do

arrendamento urbano uma compatibilizaccedilatildeo possiacutevelrdquo BFD 86 (2010) p 690 Afirma o

autor que o acompanhamos num texto que havia escrito anteriormente em 2005 - ldquoAs

restriccedilotildees ao direito de propriedade decorrentes do vinculismo arrendatiacutecio uma perspectiva

jusfundamentalrdquo BFD 81 (2005) pp 967-1007 - o que natildeo eacute verdade como claramente

resulta da presente exposiccedilatildeo 485 Sobre o que consideram o abandono da autocontenccedilatildeo judicial do Tribunal ver CHRISTOPH

SCHMID JASON R DINSE e MARTA SANTOS SILVA ldquoRumo a um nuacutecleo comum do

arrendamento urbano para fins habitacionais da Europardquo BFD 89 (2013) pp 422 e ss

217

I OS ACOacuteRDAtildeOS HUTTEN-CZAPSKA V POLOacuteNIA 3501497 DE 22

DE FEVEREIRO DE 2005 E 19 DE JUNHO DE 2006 (GRAND

CHAMBRE)

Comecemos por algumas notas sobre o contexto polaco O Decreto de

21 de dezembro de 1945 sobre Gestatildeo Puacuteblica da Habitaccedilatildeo e Controlo do

Arrendamento486 que entrou em vigor a 13 de fevereiro de 1946 introduziu a

Poliacutetica de Gestatildeo Puacuteblica da Habitaccedilatildeo que se aplicava aos arrendamentos

para habitaccedilatildeo e para comeacutercio de imoacuteveis privados O Decreto sobre o

Arrendamento (Dekret o najmie lokali)487 de 28 de julho de 1948 que entrou

em vigor em 1 de setembro de 1948 estabelecia a competecircncia das autoridades

estaduais para administrar o arrendamento quer no sector puacuteblico quer no

sector privado Para o efeito foi-lhes concedido poder para atribuir a um

particular um apartamento num imoacutevel privado A afectaccedilatildeo de uma habitaccedilatildeo

(przydział lokalu) equivalia para todos os efeitos praacuteticos a lsquoconcederrsquo o

direito a arrendar uma habitaccedilatildeo (ou uma instalaccedilatildeo comercial) Estes

diplomas tambeacutem continham normas sobre controlo de rendas

A Lei da Habitaccedilatildeo (Prawo lokalowe) de 10 de abril de 1974488 entrou

em vigor em 1 de agosto e substituiu o Decreto 1945 sobre a Gestatildeo Puacuteblica

da Habitaccedilatildeo e do Controlo do Arrendamento pelo Regime Especial do

Arrendamento (Ocupaccedilatildeo e Uso das Instalaccedilotildees e Edifiacutecios) Todavia natildeo

modificou substancialmente os princiacutepios em que se baseava a poliacutetica de

arrendamento em particular o direito de arrendar um apartamento (para

habitaccedilatildeo ou para fins comerciais) num edifiacutecio sujeito a lsquogestatildeo puacuteblicarsquo natildeo

tinha origem num contrato privado mas era conferido ao inquilino atraveacutes de

uma decisatildeo administrativa O dono do edifiacutecio continuava a natildeo ter uma

palavra a dizer sobre quem podia viver na sua casa nem por quanto tempo

Manteve-se ainda o regime das rendas controladas Estas normas que

restringiam drasticamente o montante de renda cobraacutevel tiveram origem numa

distribuiccedilatildeo de recursos habitacionais excepcionalmente riacutegida que

caracterizou os primeiros trinta anos do regime comunista na Poloacutenia As

486 Dekret z 21 grudnia 1945 r o publicznej gospodarce lokalami i kontroli najmu -

httpwwwlegeoplprawodekret-z-dnia-21-grudnia-1945-r-o-publicznej-gospodarce-

lokalami-i-kontroli-najmuon=26081950) 487httpwwwlegeoplprawodekret-z-dnia-28-lipca-1948-r-o-najmie-lokalion=16081958 488httpwwwlegeoplprawoustawa-z-dnia-10-kwietnia-1974-r-prawo-

lokaloweon=12101987

218

circunstacircncias todavia natildeo se modificaram substancialmente depois de 1989

No iniacutecio de 1990 a situaccedilatildeo habitacional na Poloacutenia apresentava-se

particularmente difiacutecil em resultado de uma diminuiccedilatildeo do alojamento

disponiacutevel e do elevado custo de adquisiccedilatildeo de um apartamento O montante

da renda controlada pelo Estado que tambeacutem era aplicada a edifiacutecios privados

cobria apenas 30 do custo de conservaccedilatildeo dos edifiacutecios

A Lei de 2 de julho de 1994 sobre o Arrendamento Residencial e

Subsiacutedios agrave Habitaccedilatildeo que entrou em vigor em 12 de novembro do mesmo

ano pretendia estabelecer uma nova regulamentaccedilatildeo das relaccedilotildees entre

inquilinos e senhorios e por isso aboliu o Regime Especial do Arrendamento

e introduziu um novo regime de controlo de rendaTodavia embora tivesse

abolido o regime de renda controlada e viesse a permitir que as rendas fossem

livremente negociadas este regime mantinha a renda controlada para os

arrendamentos residenciais que houvessem tido na sua origem decisatildeo

administrativa Por outro lado introduziu o regime da renda regulada (czynsz

regulowany) e regulamentou pormenorizadamente o caacutelculo da renda para

arrendamentos residenciais que tivessem estado sujeitas ao Regime Especial

do Arrendamento Estabeleceu ainda um conjunto de normas que visavam

proteger inquilinos em situaccedilatildeo difiacutecil durante a transiccedilatildeo de um sistema de

controlo estadual para um sistema de mercado e que se permaneceriam em

vigor ateacute 31 de dezembro de 2004 Relativamente a esses contratos criados

administrativamente manteve-se o direito de sucessatildeo no arrendamento e

com ligeiras modificaccedilotildees as normas que protegiam os inquilinos (mesmo os

inadimplentes) contra a extinccedilatildeo dos arrendamentos

Em geral a relaccedilatildeo de arrendamento sob a Lei 1994 continuava a ser

constituiacuteda atraveacutes de uma decisatildeo unilateral do estado A renda a receber era

estabelecida em valores muito baixos que natildeo cobriam os custos meacutedios de

manutenccedilatildeo da propriedade Por outro lado os proprietaacuterios estavam

obrigados a levar a cabo dispendiosos trabalhos de manutenccedilatildeo e o senhorio

enfrentava fortes limitaccedilotildees na extinccedilatildeo dos arrendamentos

De acordo com um relatoacuterio de 1998 quatro anos depois da introduccedilatildeo

do regime da renda regulada a renda meacutedia cobria apenas 60 dos custos de

manutenccedilatildeo dos edifiacutecios residenciais A diferenccedila era suportada pelos

senhorios A escala do problema era grande jaacute que nessa altura 2960000

residecircncias (255 de todos os recursos habitacionais do paiacutes) estavam

submetidas a este regime de renda controladas (600 000 eram propriedade

privada) Sendo que o nuacutemero de apartamentos na Poloacutenia era de 11600000

os apartamentos privados sujeitos ao regime de controlo de renda constituiacuteam

52 dos recursos habitacionais do paiacutes

A Lei de 2 de julho de 1994 veio a ser apreciada pelo Tribunal

Constitucional Polaco nos Acoacuterdatildeos de 12 de janeiro e de 10 de outubro de

219

2000 que considerou que a Secccedilatildeo 9 - estabelecendo os deveres dos senhorios

- era incompatiacutevel com os princiacutepios constitucionais da protecccedilatildeo da

propriedade e da justiccedila social jaacute que os onerava excessivamente um encargo

que de modo nenhum era proporcional ao proveito resultante da renda

controlada O Tribunal decidiu ainda que a Lei deveria ser revogada ateacute 11 de

julho de 2001

Em 21 de junho de 2001 o parlamento adoptou uma nova Lei da

Protecccedilatildeo dos Direitos dos Inquilinos Recursos Habitacionais dos Municiacutepios

e Alteraccedilotildees ao Coacutedigo Civil (Ustawa o ochronie praw lokatoroacutew

mieszkaniowym zasobie gminy i o zmianie Kodeksu cywilnego)489 que entrou

em vigor a 10 de julho Esta Lei revogou o anterior regime da renda controlada

e substituiu-o por um outro regime legal de controlo de renda mas que

restringia a possibilidade de o senhorio aumentar as rendas De resto esta Lei

natildeo modificou substancialmente o regime do arrendamento manteve quase

todas as restriccedilotildees na extinccedilatildeo dos arrendamentos e as obrigaccedilotildees quanto agrave

conservaccedilatildeo da propriedade agravaram a situaccedilatildeo dos senhorios em parte

devido ao congelamento das rendas a niacuteveis considerados inaceitaacuteveis (3 do

valor de reconstruccedilatildeo do edifiacutecio)

A Lei de 2001 foi sucessivamente alterada A alteraccedilatildeo mais

importante foi a adoptada pelo Parlamento em 17 e 22 de dezembro de 2004

que entrou em vigor em 1 de janeiro de 2005 Em virtude das alteraccedilotildees de

2004 as autoridades prolongaram a aplicaccedilatildeo das regras impondo restriccedilotildees

no montante das rendas para aleacutem do final de 2004 ndash o que veio a ser

considerado pelo Tribunal Constitucional Polaco como uma seacuteria violaccedilatildeo do

Estado de Direito

No caso concreto a casa da condessa Maria Hutten-Czapska

construiacuteda em 1936 como uma moradia familiar com reacutes-do-chatildeo e primeiro

andar foi usada durante a Segunda Guerra Mundial pelos oficiais do Exercito

Alematildeo e em 1945 foi ocupada por oficiais do Exeacutercito Vermelho Em maio

de 1945 o Director do Departamento da Habitaccedilatildeo de Cacircmara de Gdynia

(Kierownik Wydzialu Mieszkaniowego Magistratu Miasta Gdynia) emitiu uma

ordem atribuindo o primeiro andar a A Z que se mudou definitivamente em

outubro do mesmo ano Por ordem cronoloacutegica satildeo de destacar os seguintes

factos

- A 13 de fevereiro de 1946 a casa ficou sujeita ao regime da lsquoGestatildeo

Puacuteblica da Habitaccedilatildeorsquo e em 1 de agosto de 1974 ao Regime Especial do

Arrendamento

489 httpisapsejmgovplDetailsServletid=WDU20010710733

220

- A 8 de julho de 1975 o Mayor da Gdynia autorizou WP a mudar o

apartamento de que era arrendataacuterio sob o Regime Especial do Arrendamento

pelo reacutes-do-chatildeo da casa da requerente por um periacuteodo de tempo

indeterminado

- A 24 de outubro de 1975 o Director do Gabinete da Cacircmara de

Gnynia para a Administraccedilatildeo Local e o Ambiente (Kierownik Wydziału

Gospodarki Terenowej i Ochrony Środowiska Urzędu Miejskiego w Gdyni)

ordenou que a casa ficasse sujeita a gestatildeo estadual (przejęcie w zarząd

państwowy) a partir de 2 de janeiro de 1976

- A 3 de agosto de 1988 o Tribunal Judicial da Gdynia (Sąd Rejonowy)

julgou que em virtude da morte de A Z os seus herdeiros sucederiam no

direito de arrendar o 1ordm andar

- Em outubro de 1990 o Mayor da Gnydia restituiu a gestatildeo da casa agrave

requerente que desde entatildeo procura recuperar a casa para aiacute instalar a sede da

Amber Trail Foundation (Fundacja Bursztynowego Szlaku)

A requerente queixou-se ao TEDH de que o Estado Polaco tinha

violado o artigo 1ordm do Protocolo 1 da CEDH A situaccedilatildeo criada pela aplicaccedilatildeo

de leis que lhe impunham relaccedilotildees de arrendamento e estabeleciam um

inadequado niacutevel de renda constituiacutea uma violaccedilatildeo contiacutenua do direito ao

lsquorespeito dos seus bensrsquo O seu direito de propriedade foi substancialmente

afectado jaacute que ela natildeo soacute natildeo retirava nenhum proveito da sua propriedade

como tambeacutem em virtude das restriccedilotildees agrave extinccedilatildeo do arrendamento natildeo

readquiria a posse ou o uso da sua propriedade (as condiccedilotildees legais para

recuperar a casa por exemplo providenciar habitaccedilatildeo substituta para o

inquilino) Era dona soacute no papel Natildeo tinha possibilidade de decidir quem e

por quanto tempo habitaria a casa E por uacuteltimo o facto de a renda fixada natildeo

ter razoavelmente adequada aos custos para manter a propriedade em bom

estado resultou numa significativa descida do valor e estado de conservaccedilatildeo

da sua casa490

Reunido em secccedilatildeo o Tribunal considerou que em anaacutelise estava uma

medida que regulamentava o uso da propriedade e natildeo uma expropriaccedilatildeo

apesar de a requerente natildeo ter a detenccedilatildeo material da casa e de os seus direitos

relativos ao arrendamento da casa incluindo o seu direito a receber as rendas

e a extinguir os arrendamentos estarem sujeitos a uma seacuterie de limitaccedilotildees

490 O funcionamento do regime da renda controlada jaacute afectou 100 000 senhorios cuja

propriedade esteve sujeita agraves mesmas limitaccedilotildees que constam do presente caso Entre 600 000

a 900 000 inquilinos na Poloacutenia beneficiaram destas regras especiais sobre o montante da

renda e a extinccedilatildeo dos contratos A decisatildeo do caso presente teve pois consequecircncias nos

direitos de um grande nuacutemero de indiviacuteduos

221

Assim a decisatildeo deste caso foi colocada no acircmbito do segundo paraacutegrafo do

Artigo 1ordm

Quanto agrave prossecuccedilatildeo do interesse geral o Tribunal reiterou que satildeo as

autoridades nacionais que estatildeo melhor posicionadas para apreciar o que eacute o

interesse geral Satildeo elas que fazem a avaliaccedilatildeo inicial quanto agrave existecircncia de

um problema puacuteblico que requer a adopccedilatildeo de medidas que afectem o direito

de propriedade491 Decisotildees sobre se e quando o arrendamento deve ser

controlado pelo Estado ou deixado agraves regras do mercado bem como a escolha

das medidas para assegurarem as necessidades habitacionais da comunidade e

o momento para a sua implementaccedilatildeo envolvem a consideraccedilatildeo de aspectos

sociais econoacutemicos e poliacuteticos necessariamente complexos O Tribunal

relembramos aceita por princiacutepio a decisatildeo do legislador nacional sobre o

que eacute do interesse geral a natildeo ser que ela no caso concreto se mostre

totalmente desprovida de fundamento

O controlo das rendas teve origem numa escassez contiacutenua de

habitaccedilatildeo devido agrave diminuiccedilatildeo de casas para arrendar e aos altos custos de

aquisiccedilatildeo de um apartamento Foi implementado para assegurar a protecccedilatildeo

social dos inquilinos e assegurar especialmente relativamente a inquilinos em

difiacutecil situaccedilatildeo financeira uma transiccedilatildeo gradual de rendas controladas pelo

estado para um arrendamento plenamente negociado durante a reforma do

paiacutes a seguir ao colapso do regime comunista O Tribunal aceitou pois que

naquele contexto econoacutemico e social a legislaccedilatildeo impugnada servia um

interesse geral

Quanto agrave proporcionalidade ainda que na discricionariedade dos

Estados Contratantes caiba o poder de tomar medidas sobre o controlo das

rendas (sancionadas em Mellacher) o Tribunal sublinhou que esta

discricionariedade natildeo eacute ilimitada no seu exerciacutecio mesmo no contexto da

mais complexa reforma do Estado e natildeo pode afrontar os paracircmetros da

Convenccedilatildeo Em particular nada justifica que natildeo se assegurasse ao requerente

durante todo o periacuteodo em anaacutelise pelo menos as quantias necessaacuterias para

cobrir os custos de manutenccedilatildeo

O Tribunal relembrou as palavras do Tribunal Constitucional Polaco

no Acoacuterdatildeo de 12 de maio de 2004492 segundo o qual ldquoo regime da renda

controlada baseada em normas que necessaacuteria e inevitavelmente

acarretavam prejuiacutezos para os senhorios resultou numa distribuiccedilatildeo

491 Para 149 492 httpisapsejmgovplDetailsServletid=WDU20041221289ampmin=1

222

desproporcionada injustificada e arbitraacuteria do oacutenus social envolvido na

reforma habitacional e essa reforma foi feita principalmente agrave custa dos

senhoriosrdquo O Tribunal Constitucional havia considerado que as medidas

adoptadas consubstanciavam uma violaccedilatildeo contiacutenua do direito de propriedade

porquanto a maneira como as rendas eram calculadas tornava impossiacutevel que

os senhorios tivessem algum proveito com as rendas ou que ao menos

conseguissem recuperar os custos de conservaccedilatildeo dos imoacuteveis

Nessas circunstacircncias considerou o TEDH e na linha das decisotildees do

tribunal constitucional as autoridades polacas tinham o dever de eliminar ou

ao menos remediar com prontidatildeo a situaccedilatildeo que foi considerada incompatiacutevel

com os requisitos do direito fundamental da propriedade Acresce que o

princiacutepio da legalidade do Artigo 1ordm do Protocolo 1 e a previsibilidade do

direito resultante dessa norma exigiria do Estado que tivesse revogado o

regime do controlo de renda o que natildeo era incompatiacutevel com a adopccedilatildeo de

medidas para protecccedilatildeo do inquilino Em suma o Tribunal considerou que as

autoridades impuseram agrave requerente um encargo desproporcionado e

excessivo que natildeo era susceptiacutevel de justificaccedilatildeo pelo interesse geral

Foi a primeira vez que o TEDH declarou uma determinada restriccedilatildeo

dos direitos dos proprietaacuterios operada atraveacutes da interferecircncia no contrato de

arrendamento como inadmissiacutevel As reacccedilotildees natildeo se fizeram esperar

marcadas pela tentativa de reduzir o impacto do Acoacuterdatildeo ao estabelecimento

de um montante das rendas que constituiacutesse uma lsquorestriccedilatildeo injustificadarsquo ao

direito de propriedade

O acoacuterdatildeo da Grand Chamber de 19 de junho de 2006 veio confirmar

esta decisatildeo Mas acrescentou que a violaccedilatildeo do direito de propriedade no caso

em questatildeo natildeo resultava exclusivamente da questatildeo do montante da renda

pelo contraacuterio consistia no efeito combinado de normas de determinaccedilatildeo da

renda e de vaacuterias restriccedilotildees quanto aos direitos dos senhorios a respeito da

extinccedilatildeo dos arrendamentos dos encargos financeiros que lhes foram

impostos e da ausecircncia de meios legais para tornar possiacutevel compensar ou

mitigar os prejuiacutezos em que incorriam com a conservaccedilatildeo da propriedade ou

de terem obras subsidiadas pelo Estado em casos justificados493

493 O Tribunal considerou que a situaccedilatildeo polaca natildeo era semelhante a outros casos julgados

anteriormente Em Mellacher and Others a legislaccedilatildeo domeacutestica restringia a renda cobraacutevel

mas nunca abaixo dos niacuteveis de conservaccedilatildeo da propriedade e os senhorios podiam aumentar

a renda de modo a cobrir as necessaacuterias despesas de conservaccedilatildeo Esta norma permitiu aos

senhorios austriacuteacos manter a sua propriedade em boa condiccedilatildeo ao passo que o regime polaco

natildeo o permitiu nem fornecia nenhum outro procedimento para obter contribuiccedilotildees para a

conservaccedilatildeo ou subsiacutedios estaduais causando inevitaacutevel deterioraccedilotildees na propriedade por

223

O Tribunal sublinhou que se se era verdade que o Estado polaco

herdou do regime comunista uma escassez grave de alojamentos disponiacuteveis

com rendas comportaacuteveis sempre teria de equilibrar as questotildees

particularmente difiacuteceis e socialmente sensiacuteveis com a resoluccedilatildeo do conflito

entre inquilinos e senhorios Cabia-lhe assegurar a protecccedilatildeo dos direitos de

propriedade dos senhorios e o respeito pelos direitos sociais dos inquilinos

frequentemente vulneraacuteveis o que requeria uma distribuiccedilatildeo justa dos

encargos sociais e financeiros envolvidos na transformaccedilatildeo e reforma da

poliacutetica de habitaccedilatildeo Este encargo contudo natildeo poderia ser imputado apenas

a um grupo social especiacutefico independentemente dos interesses especiacuteficos do

outro grupo ou da comunidade como um todo

II A CONSOLIDACcedilAtildeO OS CASOS CONTRA MALTA

Ao abrigo da Lei da Habitaccedilatildeo as casas eram requisitadas pelo

Governo de Malta atraveacutes do Director da Habitaccedilatildeo Social Passado algum

tempo era dado conhecimento aos proprietaacuterios de que a casa teria sido dada

de arrendamento a um inquilino Por exemplo no caso Ghigo c Malta494 a

detenccedilatildeo prolongou-se por vinte e dois anos no caso Fleri Soler e Camilleri

c Malta495 por sessenta e cinco anos e no caso Edwards c Malta496 por mais

de trinta 30 anos Vejamos os dois primeiros casos497

No Acoacuterdatildeo Ghigo v Malta quanto ao objectivo da interferecircncia o

TEDH considerou que as medidas de requisiccedilatildeo e de controlo de rendas

visavam assegurar uma distribuiccedilatildeo justa e um igualmente justo uso de

recursos habitacionais num paiacutes em que o solo disponiacutevel para habitaccedilatildeo natildeo

chegava para responder agrave procura498

falta dos adequados investimento e modernizaccedilatildeo Em Spadea and Scalabrino embora o

Estado tivesse suspendido temporariamente os despejos de apartamentos privados os

senhorios mantinham o direito de extinguir os arrendamentos No caso em anaacutelise pelo

contraacuterio o legislador polaco condicionou a extinccedilatildeo dos arrendamentos limitando

seriamente os direitos dos senhorios a esse respeito 494 Acoacuterdatildeo Ghigo v Malta (Queixa nordm 3112205) de 26 de setembro de 2006 495 Acoacuterdatildeo Fleri Soler e Camilleri c Malta (Queixa nordm 3534905) de 26 de setembro de

2006 496 Edwards c Malta (Queixa nordm 1764704) de 24 de outubro de 2006 497 Sem esquecer outros Acoacuterdatildeos como Amato Gauci c Malta (Queixa nordm 4704506) de 15

de setembro de 2009 Gera de Petri Testaferrata Bonici Ghaxaq c Malta (Queixa nordm

2677107) de 5 de abril de 2011 (90 anos) Saliba et al c Malta (queixa nordm 2028710) de 22

de novembro de 2011 498 sect 58

224

Quanto agrave proporcionalidade o Tribunal reiterou que ao apreciar o

respeito pelo Artigo 1ordm era necessaacuterio um exame global dos vaacuterios interesses

em causa considerando que a Convenccedilatildeo visa salvaguardar a efectividade dos

direitos Esse exame quando se trata da legislaccedilatildeo relativa agrave habitaccedilatildeo

envolve natildeo apenas as condiccedilotildees de reduccedilatildeo da renda recebida pelos

senhorios e a extensatildeo da interferecircncia estatal na liberdade contratual e nas

condiccedilotildees do mercado de arrendamento mas tambeacutem a existecircncia de garantias

procedimentais de que o sistema e o seu impacto nos direitos do senhorio natildeo

satildeo arbitraacuterios nem imprevisiacuteveis A incerteza - legislativa administrativa ou

resultante das praacuteticas das autoridades - eacute um factor a ter em conta na avaliaccedilatildeo

da conduta do estado499

No caso concreto a casa havia sido requisitada sem aviso preacutevio pelo

Governo em 31 de marccedilo de 1984 e soacute quase cinco meses depois em 23 de

agosto do mesmo ano o requerente foi informado de que a casa tinha sido

atribuiacuteda a um determinado inquilino Os senhorios natildeo tinham nenhuma

influecircncia na escolha do inquilino ou nos elementos essenciais do

arrendamento O senhorio tambeacutem natildeo podia impedir o arrendamento com

base na necessidade da casa para habitaccedilatildeo proacutepria Por uacuteltimo o requerente

nunca recebeu nenhuma compensaccedilatildeo pela perda de controlo sobre a sua

propriedade O valor da renda estabelecido pelo Gabinete de Avaliaccedilatildeo de

Imoacuteveis era de MTL 23 anuais (mais ou menos 55 Euros) o que

reconhecidamente natildeo reflectia o valor de mercado dos imoacuteveis afectados O

Tribunal considerou que a restriccedilatildeo ao proprietaacuterio que apenas lhe permitia

receber menos de 5 euros por mecircs pela sua propriedade natildeo salvaguardava o

seu direito a fruir a sua propriedade

O Tribunal reiterou que nas esferas como a poliacutetica de habitaccedilatildeo os

Estados necessariamente gozam de uma ampla margem de apreciaccedilatildeo natildeo

apenas quanto ao reconhecimento da existecircncia de um problema mas tambeacutem

quanto agrave escolha de medidas e da sua forma de implementaccedilatildeo O controlo do

Estado sobre as rendas eacute uma dessas medidas e da sua aplicaccedilatildeo normalmente

resulta reduccedilotildees significativas no montante da renda a receber Mesmo em

situaccedilotildees onde o controlo de renda pelo legislador envolve consequecircncias tatildeo

vastas para numerosos proprietaacuterios e tem consequecircncias econoacutemicas e sociais

para o paiacutes como um todo as autoridades dispotildeem de uma discricionariedade

consideraacutevel natildeo apenas na escolha da forma e na decisatildeo da extensatildeo do

controlo sobre o uso da propriedade mas tambeacutem em decidir sobre o momento

apropriado para a execuccedilatildeo das leis necessaacuterias Todavia a discricionariedade

do estado ainda que consideraacutevel natildeo eacute ilimitada e o seu exerciacutecio natildeo pode

levar a consequecircncias contra os paracircmetros da Convenccedilatildeo

499 Cfr sect 62

225

O Tribunal considerou que considerando o extremamente baixo valor

da renda fixada o facto de o imoacutevel do requerente ter sido requisitado por

mais de vinte e dois anos o facto de o proprietaacuterio natildeo participar na escolha

do arrendataacuterio nem poder influenciar os termos do contrato fora imposto

um oacutenus excessivo e desproporcionado ao requerente que havia suportado os

custos sociais e financeiros do alojamento do inquilino e nessa medida

declarou uma violaccedilatildeo do Artigo 1 do Protocolo1

No caso Fleri Soler e Camilleri c Malta500 o imoacutevel dos requerentes

foi requisitado a 4 de setembro de 1941 e afectado primeiro ao Departamento

de Educaccedilatildeo e posteriormente ao Ministeacuterio da Induacutestria e Agricultura O

edifiacutecio foi usado como reparticcedilatildeo puacuteblica durante 65 anos A renda devida

era de 89 Libras Maltesas (aproximadamente 213 Euros) anuais tendo sido

aumentada em 1989 para 34053 libras maltesas (aproximadamente 817

Euros) por ano

O TEDH considerou que a interferecircncia era legal e cumpria um

objectivo de interesse geral jaacute que os imoacuteveis foram afectados a entidades

puacuteblicas que prosseguiam interesses da comunidade como um todo O

Tribunal considerou todavia que as rendas eram extremamente baixas e natildeo

poderiam compensar o uso de um imoacutevel grande o suficiente para alojar

reparticcedilotildees puacuteblicas A ponderaccedilatildeo das consequecircncias da limitaccedilatildeo das rendas

sempre seria diferente pelo facto de o imoacutevel visar a instalaccedilatildeo de reparticcedilotildees

puacuteblicas e natildeo assegurar o bem-estar social dos inquilinos o que impotildee um

escrutiacutenio mais apertado por parte do TEDH

Considerando o baixo montante da renda paga o proveito miacutenimo que

o proprietaacuterio poderia tirar do imoacutevel o facto de a propriedade ter sido

ocupada por mais de sessenta e cinco anos a restriccedilatildeo na escolha do

arrendataacuterio e nas estipulaccedilatildeo das condiccedilotildees do contrato a inexistecircncia de

garantias procedimentais o Tribunal declarou a existecircncia de um encargo

desproporcionado e excessivo sobre o requerente que natildeo respeitava o

equiliacutebrio entre o interesse geral da comunidade e a protecccedilatildeo dos seus direitos

fundamentais

Em face da jurisprudecircncia analisada que reforccedila a posiccedilatildeo do senhorio

no acircmbito do contrato de arrendamento cabe indagar do respeito pelos

princiacutepios gerais sobre contratos duradouros essenciais agrave existecircncia das

pessoas Eacute o que veremos no proacuteximo ponto

500 Acoacuterdatildeo Fleri Soler e Camilleri c Malta (Queixa nordm 3534905) de 26 de setembro de

2006

226

5 OS PRINCIacutePIOS GERAIS SOBRE CONTRATOS DURADOUROS501

O arrendamento eacute um contrato duradouro502 essencial agrave existecircncia da

pessoa503 porquanto tem por objecto proporcionar ao indiviacuteduo (na sua

concreta realidade material e moral) um bem alojamento necessaacuterio para a

sua auto-realizaccedilatildeo e participaccedilatildeo na vida social O objecto dos contratos

duradouros satildeo as circunstacircncias da vida real sendo que o papel das normas

que regulam estes contratos consistiraacute sempre em enquadrar as relaccedilotildees de

poder resultantes destes contratos em termos de desenvolvimento humano de

modo a que seja a contiacutenua cooperaccedilatildeo mais do que a formaccedilatildeo do contrato

a estar no centro da relaccedilatildeo contratual

O fim do contrato impede que aquele que coloca agrave disposiccedilatildeo de

outrem bens necessaacuterios agrave satisfaccedilatildeo de necessidades materiais aja de modo a

pocircr em perigo a sua fruiccedilatildeo ou o proacuteprio significado social da relaccedilatildeo A

dimensatildeo temporal do contrato de arrendamento e a protecccedilatildeo da confianccedila

das partes na continuidade da relaccedilatildeo contratual requer que a natildeo ser que

exista uma necessidade de garantir um miacutenimo de liberdade de acccedilatildeo e

decisatildeo a cessatildeo antecipada de um contrato por acto unilateral natildeo deve ser

permitida A dimensatildeo colectiva destes contratos requer da sua parte a

aplicaccedilatildeo do sistema colectivo de valores a todas as fases da realccedilatildeo contratual

desde o acesso aos bens e serviccedilos agrave conformaccedilatildeo do contrato agrave sua

modificaccedilatildeo e extinccedilatildeo Se por um lado o acesso mediante o contrato aos

bens e serviccedilos essenciais agrave existecircncia da pessoa eacute assegurado por uma poliacutetica

de natildeo discriminaccedilatildeo destacamos por outro lado que a prestaccedilatildeo e a

contraprestaccedilatildeo natildeo devem ser gravemente desproporcionadas o preccedilo deve

ser acessiacutevel natildeo discriminatoacuterio e proporcionado aos custos

Aleacutem de aspectos procedimentais relativos agrave comunicaccedilatildeo entre as

partes e da consagraccedilatildeo de direitos agrave informaccedilatildeo transparecircncia e

501 Dispensamo-nos neste momento de aprofundar a temaacutetica dos princiacutepios gerais sobre

contratos duradouros necessaacuterios agrave existecircncia humana e agrave Declaraccedilatildeo EuSoCo por jaacute ter sido

tratado noutra sede 502 Vide LUCA NOGLER e UDO REIFER ldquoIntroductionrdquo em Life Time Contracts Social Long-

term Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law Eleven International

Publishing 2014 p 1 e ss sobre as diferentes dimensotildees do tempo e correspondente

importacircncia nas relaccedilotildees contratuais 503 Sobre a eacutetica do contrato nesta sede vide ANDREA NICOLUSSI ldquoEtica del contrato e

lsquoContratti ldquodi duratardquo per lrsquoesistenza della personarsquordquo e HELENA KLINGER ldquoLebenszeitvertrage

ndash Natur und Ethikrdquo em LUCA NOGLER e UDO REIFER Life Time Contracts Social Long-term

Contracts in Labour Tenancy and Consumer Credit Law cit pp 123 e ss e 189 e ss

respectivamente

227

confidencialidade os princiacutepios versam ainda sobre os miacutenimos de

participaccedilatildeo quer na vida econoacutemica (os contratos que atingirem os

rendimentos do consumidor por lhe tirarem o acesso a tal rendimento

entregando-o ao fornecedor de bens ou prestador de serviccedilos devem

proporcionar agrave pessoa humana o miacutenimo necessaacuterio para a sua subsistecircncia)

quer na vida social (no momento da conformaccedilatildeo e no momento da

interpretaccedilatildeo do contrato deve considerar-se os riscos da falta de emprego de

falta de habitaccedilatildeo ou de sobreendividamento relacionando-os com as suas

causas soacutecio-econoacutemicas)

Face a este quadro necessariamente breve a jurisprudecircncia do TEDH

pode surgir como contraditoacuteria com estes princiacutepios porquanto a viragem

recente que descrevemos se deu no sentido de tutelar a posiccedilatildeo do senhorio

proprietaacuterio que em virtude de medidas puacuteblicas viram a sua posiccedilatildeo

individual intoleravelmente afectada em funccedilatildeo do interesse social do

contrato Em nossa opiniatildeo contudo tal contradiccedilatildeo eacute meramente aparente

Na verdade a jurisprudecircncia do TEDH ndash partindo do pressuposto de que

habitaccedilatildeo eacute essencial para a auto-realizaccedilatildeo dos indiviacuteduos e para a sua

participaccedilatildeo social em vaacuterias fases da vida e que o inquilino eacute normalmente

uma parte vulneraacutevel - estaacute alinhada com os princiacutepios gerais sobre contratos

duradouros Vejamos

O princiacutepio da remuneraccedilatildeo exige em primeiro lugar que as

obrigaccedilotildees muacutetuas dos contratos duradouros natildeo devam ser

desproporcionadas Os preccedilos devem ser claros e natildeo discriminatoacuterios e os

encargos devem ser comportaacuteveis e alinhados com os custos a suportar com o

bem Ora a jurisprudecircncia recente do TEDH condenou os Estados por

imporem legislativamente limites de renda extraordinariamente baixos que

natildeo permitiam aos seus proprietaacuterios suportarem os custos com a manutenccedilatildeo

e a conservaccedilatildeo dos imoacuteveis504

O princiacutepio da adaptaccedilatildeo sugere que se as circunstacircncias em que um

contrato duradouro foi celebrado se alterarem significativamente ou se as

circunstacircncias materiais em que as partes fundaram a sua vontade variaram de

tal maneira que a natureza social do contrato eacute posta em causa e se as partes

natildeo teriam contratado agora ou natildeo teriam contratado em termos diferentes se

tivessem previsto a mudanccedila a adaptaccedilatildeo do contrato pode ser necessaacuteria se

tendo em conta as circunstacircncias do caso concreto e em particular a afectaccedilatildeo

do risco natildeo se pode razoavelmente esperar de uma das partes que continue a

cumprir o contrato nos mesmos termos Igualmente na jurisprudecircncia do

TEDH encontramos o sancionamento de medidas estatais que impedem esta

adaptaccedilatildeo natildeo soacute quanto agrave actualizaccedilatildeo das rendas mas quanto agrave

504 Relembremos os casos contra a Poloacutenia e contra Malta

228

impossibilidade de obter a restituiccedilatildeo do imoacutevel ainda que houvesse

necessidade dele para habitaccedilatildeo proacutepria ou que entretanto tivesse mudado o

contexto soacutecio-poliacutetico do paiacutes505

Analisemos ainda um outro aspecto agora relativo agrave extinccedilatildeo do

contrato a cessaccedilatildeo antecipada deve ser transparente controlaacutevel e

socialmente responsaacutevel Tambeacutem aqui o TEDH veio declarar como contraacuterias

agrave CEDH medidas que impediam a cessaccedilatildeo do contrato de arrendamento quer

criando dificuldades procedimentais (Itaacutelia e Malta) quer desconhecendo as

necessidades habitacionais do proprietaacuterio do imoacutevel (Itaacutelia Poloacutenia e Malta)

Na verdade o fim social dos contratos duradouros necessaacuterios agrave

existecircncia da pessoa exigem um apurado equiliacutebrio entre as prestaccedilotildees das

partes numa valoraccedilatildeo especiacutefica de proporcionalidade A ideia de

proporcionalidade lato sensu representa hoje uma importante limitaccedilatildeo ao

exerciacutecio do poder puacuteblico servindo a garantia dos direitos e liberdades

individuais506 Consagrada no artigo 18ordm nordm 2 da CRP no que agraves restriccedilotildees a

direitos liberdades e garantias diz respeito a exigecircncia de proporcionalidade

enquanto princiacutepio geral de limitaccedilatildeo do poder puacuteblico pode ancorar-se no

princiacutepio geral do Estado de Direito e impotildee os limites resultantes da avaliaccedilatildeo

da relaccedilatildeo entre os fins e as medidas puacuteblicas devendo o Estado (legislador

505 Em especial nos casos contra a Itaacutelia e a Poloacutenia 506 Na jurisprudecircncia o Tribunal Constitucional tem reconhecido e aplicado em vaacuterias

decisotildees o princiacutepio da proporcionalidade Veja-se o Acoacuterdatildeo TC nordm 63493 [Relator LUIacuteS

NUNES DE ALMEIDA] (inconstitucionalidade do artigo 132ordm do Coacutedigo Penal e Disciplinar da

Marinha Mercante aprovado pelo Decreto-Lei nordm 33252 de 20 de novembro de 1943 na

parte em que estabelece a puniccedilatildeo como desertor daquele que sendo tripulante de um navio e

sem motivo justificado o deixe partir para o mar sem embarcar quando tal tripulante natildeo

desempenhe funccedilotildees directamente relacionadas com a manutenccedilatildeo seguranccedila e equipagem

do mesmo navio) de 4 de novembro o Acoacuterdatildeo TC nordm 27498 [Relator ARMINDO RIBEIRO

MENDES] de 9 de marccedilo (natildeo inconstitucionalidade de norma que pune o natildeo acatamento de

ordem de demoliccedilatildeo) o Acoacuterdatildeo TC nordm 45195 [Relator GUILHERME DA FONSECA] de 6 de

julho (inconstitucionalidade de norma que estabelece a impenhorabilidade total de bens

anteriormente penhorados pelas reparticcedilotildees de financcedilas em execuccedilotildees fiscais) Acoacuterdatildeo TC

nordm 75895 [Relator LUIacuteS NUNES DE ALMEIDA] de 20 de dezembro (inconstitucionalidade de

norma que impede a participaccedilatildeo pessoal na assembleia geral dos bancos e em certas

condiccedilotildees de accionistas que natildeo disponham de 1300 da soma dos votos possiacuteveis) Acoacuterdatildeo

TC nordm 118296 [Relator SOUSA BRITO] de 20 de novembro (inconstitucionalidade de normas

sobre custas nos tribunais tributaacuterios) Acoacuterdatildeos TC nordm 17600 [Relator BRAVO SERRA] de

22 de marccedilo e Acoacuterdatildeo TC nordm 20200 [Relator PAULO MOTA PINTO] de 4 de abril (sobre a

perda dos instrumentos do crime)o Acoacuterdatildeo TC nordm 48400 [Relator PAULO MOTA PINTO]

de 22 de novembro (indeferimento taacutecito do pedido de legalizaccedilatildeo de obras)

229

ou administrador) adequar a sua acccedilatildeo aos fins pretendidos natildeo tomando

medidas desnecessaacuterias ou excessivamente restritivas

Satildeo subprinciacutepios constitutivos do princiacutepio da proporcionalidade o

princiacutepio da conformidade ou adequaccedilatildeo de meios o princiacutepio da

exigibilidade ou da necessidade (Erforderlichkeit) e o princiacutepio da

proporcionalidade em sentido restrito (Verhaumlltnismaumlssigkeit) entendido como

princiacutepio da justa medida507 O primeiro destes princiacutepios requer que a medida

adoptada para a realizaccedilatildeo do interesse puacuteblico a proteger deva ser apropriada

agrave prossecuccedilatildeo do fim ou fins a ele subjacentes508 A exigecircncia de conformaccedilatildeo

pressupotildee que o acto do poder puacuteblico seja apto para e conforme aos fins

justificativos da sua adopccedilatildeo (Zielkonformitaumlt Zwecktauglichkeit) Pressuposta

a legitimidade do fim consignado na norma a idoneidade traduz-se na

existecircncia de um meio adequado agrave sua prossecuccedilatildeo Perante um bem

juridicamente protegido a intervenccedilatildeo ou a providecircncia a adoptar pelo oacutergatildeo

competente teria de estar em correspondecircncia com ele A liberdade de

conformaccedilatildeo do legislador recorde-se eacute muito ampla neste campo e deve ser

tomada em consideraccedilatildeo ao estabelecer a relaccedilatildeo de adequaccedilatildeo meio-fim Por

uacuteltimo o princiacutepio da exigibilidade ou da necessidade impotildee que o cidadatildeo

cujo direito esteja a ser restringido tenha direito agrave menor desvantagem

possiacutevel Destaca-se como elemento operativo a ideia de exigibilidade

material pois o meio deve ser o mais poupado possiacutevel quanto agrave limitaccedilatildeo dos

direitos fundamentais A necessidade do meio significa que eacute aquele entre

todos os que poderiam ser escolhidos in abstracto que melhor satisfaz em

concreto com menos custos a realizaccedilatildeo do fim e assim eacute essa providecircncia

essa decisatildeo que deve ser tomada Como decidiu o Tribunal Constitucional509

ldquoessas medidas restritivas tecircm de ser exigidas para alcanccedilar os fins em vista

por o legislador natildeo dispor de outros meios menos restritivos para alcanccedilar

o mesmo desideratordquo

Os tribunais nacionais e referimo-nos especificamente aos tribunais

constitucionais natildeo podem ignorar estes princiacutepios O cerne do debate ao niacutevel

constitucional estaacute na relaccedilatildeo a estabelecer entre o direito agrave habitaccedilatildeo e o

direito de propriedade a que subjaz uma opccedilatildeo legislativa de raiz a quem cabe

507 SEGUIMOS GOMES CANOTILHO Direito constitucional e teoria da constituiccedilatildeo 7ordf ediccedilatildeo

Almedina Coimbra 2003 paacuteg 270 Em formulaccedilatildeo semelhante para JORGE MIRANDA

Manual de Direito Constitucional IV 5ordf ediccedilatildeo Coimbra Editora 2012 paacuteg 308 o princiacutepio

da proporcionalidade decompotildee-se nos trecircs subprinciacutepios da idoneidade ou adequaccedilatildeo da

necessidade e da racionalidade ou proporcionalidade stricto sensu 508 Cfr por todos o Acoacuterdatildeo TC nordm 118296 [Relator SOUSA BRITO] de 20 de novembro

(inconstitucionalidade de normas sobre custas nos tribunais tributaacuterios) 509 Acoacuterdatildeo TC nordm 63493 [Relator LUIacuteS NUNES DE ALMEIDA] de 4 de novembro

230

suportar os custos de uma poliacutetica de habitaccedilatildeo baseada no arrendamento510

Como JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS511 acentuam o direito agrave habitaccedilatildeo

tem fundamentalmente como sujeito passivo o Estado em sentido amplo e

natildeo ao menos em princiacutepio os proprietaacuterios ou senhorios O direito agrave

habitaccedilatildeo ldquonatildeo se move agrave partida no ciacuterculo das relaccedilotildees entre particulares

antes tem como alvo o Estado no sentido de que cabe a este a

responsabilidade poliacutetica de planear adoptar e executar providecircncias

tendentes a criar as condiccedilotildees necessaacuterias para todos poderem ter habitaccedilatildeo

condignardquo Por isso os destinataacuterios do direito a habitaccedilatildeo satildeo o Estado as

regiotildees autoacutenomas e as autarquias locais e natildeo ao menos em princiacutepios os

proprietaacuterios de habitaccedilotildees ou os senhorios Tambeacutem JOSE CASALTA

NABAIS512 nos ensina que os deveres de direitos fundamentais recaem

predominantemente ou exclusivamente sobre o Estado consoante se trate de

direitos liberdades ou garantias ou de deveres de direitos sociais

Relativamente a estes uacuteltimos os deveres do estado satildeo o dever de

concretizaccedilatildeo legal dos direitos sociais o dever de natildeo retroceder no

respeitante agravequele niacutevel de concretizaccedilatildeo legal jaacute sedimentado na consciecircncia

comunitaacuteria e o dever de prestar nos termos da concretizaccedilatildeo constitucional

(se e na medida em que a houver) e da concretizaccedilatildeo legal respectiva Na

opiniatildeo do autor os particulares natildeo satildeo sujeitos passivos de direitos sociais

natildeo podendo a lei impor-lhes a realizaccedilatildeo dos mesmos como se

desencadeassem uma Drittwirkung ldquoPor isso quando a lei obriga os

particulares agrave realizaccedilatildeo de prestaccedilotildees sociais como de algum modo sucede

entre noacutes com as tradicionais leis do arrendamento urbano para a habitaccedilatildeo

por forccedila da conjugaccedilatildeo do congelamento das rendas com a inflaccedilatildeo

verificada nas uacuteltimas deacutecadas ela estaacute a infringir a Constituiccedilatildeo eacute que a

realizaccedilatildeo do direito social agrave habitaccedilatildeo implica para o estado e natildeo para os

particulares a tiacutetulo de propriedade de arrendamento ou de qualquer outro

de uma habitaccedilatildeo para cada famiacutelia a custos adequadamente suportaacuteveis

pelos respectivos agregados familiares atendendo aos respectivos

rendimentos e encargos Numa outra perspectivaccedilatildeo isto quer dizer que os

direitos sociais numa sociedade que pretende manter-se aberta devem ser

realizados atraveacutes do estado fiscal (atraveacutes do sistema de impostos) e natildeo por

510 Sobre a histoacuterica permeabilidade da disciplina do arrendamento urbano a factores de

poliacutetica econoacutemico-social vide MARIA OLINDA GARCIA Arrendamento plural Quadro

normativo e natureza juriacutedica Coimbra Editora Coimbra 2009 pp 51 e ss 511 JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS Constituiccedilatildeo Portuguesa Anotada I Coimbra Editora

Coimbra 2005 anot ao artigo 65ordm paacutegs 669-670 III 512 JOSEacute CASALTA NABAIS O dever fundamental de pagar impostos Almedina Coimbra

1998 (3ordf reimpressatildeo de 2012) paacutegs 66-67 nota 140

231

via do estado dirigista como foi a soluccedilatildeo concretizada nas ceacutelebres leis do

inquilinatordquo

O Tribunal Constitucional portuguecircs que comeccedilou por apresentar uma

orientaccedilatildeo mais luacutecida veio posteriormente a sancionar decisotildees poliacuteticas que

oneravam o proprietaacuteriosenhorio fundamentando as suas decisotildees na

ldquohipoteca social que onera a propriedaderdquo Vejamos

I ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 10192 DE 17 DE MARCcedilO

ldquoOra no plano desta vertente do direito agrave habitaccedilatildeo natildeo pode

aceitar-se como constitucionalmente exigiacutevel que a realizaccedilatildeo

daquele direito esteja dependente de limitaccedilotildees intoleraacuteveis e

desproporcionadas de direitos de terceiros (que natildeo o Estado)

direitos esses porventura tambeacutem constitucionalmente consagrados

como sucede aliaacutes com o direito de propriedade privada elencado

no tiacutetulo constitucional correspondente aos direitos econoacutemicos

sociais e culturais

Escreveu-se a este propoacutesito no acoacuterdatildeo recorrido que laquoo facto

de a Constituiccedilatildeo reconhecer a todos o direito agrave habitaccedilatildeo natildeo implica

que os proprietaacuterios de casas tenham de entregaacute-las a quem as natildeo

tem e muito menos que o tenham de fazer para todo o sempre como

se os seus verdadeiros donos fossem os respectivos arrendataacuterios e

seus sucessores (hellip)rdquo

Na verdade natildeo existe qualquer exigecircncia constitucional

impondo agrave lei ordinaacuteria o dever de consagrar uma transmissatildeo

sucessiva e ilimitada da posiccedilatildeo juriacutedica de arrendataacuterio mortis causa

sendo manifesto que a norma do artigo 65ordm da Constituiccedilatildeo natildeo

obriga a semelhante entendimento mesmo quando se entenda que o

direito agrave habitaccedilatildeo deve prevalecer sobre o direito de uso e disposiccedilatildeo

da propriedade privada

A isto acresce que a soluccedilatildeo consagrada na norma sob

controveacutersia garante um quadro de transmissatildeo do arrendamento no

qual se contempla e protege suficientemente a dimensatildeo social mais

premente do direito agrave habitaccedilatildeo acautelando os interesses do cocircnjuge

sobrevivo e dos parentes ou afins na linha recta do de cujus os quais

aliaacutes beneficiam em certos casos do regime de rendas subsidiadas

instituiacutedo pela Lei nordm 4685

Haacute-de dizer-se que neste domiacutenio de particular sensibilidade

social uma dialeacutectica fundada nos interesses conflituantes que aqui

se colocam (os do inquilino e do direito agrave habitaccedilatildeo e os do senhorio

232

e do direito de uso e disposiccedilatildeo da propriedade privada) pode

conduzir a opccedilotildees de poliacutetica legislativa diversas daquela que hoje se

contecircm na norma do artigo 1111ordm do Coacutedigo Civil Simplesmente

deve reconhecer-se que a soluccedilatildeo vigente poderaacute sofrer contestaccedilatildeo

neste domiacutenio mas natildeo jaacute seguramente por viacutecio de violaccedilatildeo do artigo

65ordm da Constituiccedilatildeordquo

II ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 13192 DE 1 DE ABRIL

ldquoO direito agrave habitaccedilatildeo tem assim o Estado ndash e igualmente as

regiotildees autoacutenomas e os municiacutepios ndash como uacutenico sujeito passivo ndash e

nunca ao menos em princiacutepio os proprietaacuterios de habitaccedilotildees ou os

senhorios Aleacutem disso ele soacute surge depois de uma interpositio do

legislador destinada a concretizar o seu conteuacutedo o que significa que

o cidadatildeo soacute poderaacute exigir o seu cumprimento nas condiccedilotildees e nos

termos definidos pela lei Em suma o direito fundamental agrave

habitaccedilatildeo considerando a sua natureza natildeo eacute susceptiacutevel de conferir

por si mesmo ao arrendataacuterio um direito jurisdicionalmente

exercitaacutevel de impedir que o senhorio denuncie o contrato de

arrendamento quando necessitar do preacutedio para sua habitaccedilatildeo

Estas consideraccedilotildees satildeo suficientes para demonstrar que a

norma da primeira parte da aliacutenea a) do nordm 1 do artigo 1096ordm bem

como as dos artigos 1097ordm e 1098ordm todos do Coacutedigo Civil nunca

poderatildeo infringir o disposto no artigo 65ordm da Constituiccedilatildeordquo

III ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 15192 DE 8 DE ABRIL

A concretizaccedilatildeo do direito agrave habitaccedilatildeo - o facultar a cada

pessoa uma morada condigna - eacute pois uma tarefa cuja realizaccedilatildeo -

gradual como se disse - a Constituiccedilatildeo comete ao Estado

Mas fundando-se o direito agrave habitaccedilatildeo na dignidade da pessoa

humana (ou seja naquilo que a pessoa realmente eacute - um ser livre com

direito a viver dignamente) existe aiacute um miacutenimo que o Estado

sempre deve satisfazer E para isso pode ateacute se tal for necessaacuterio

impor restriccedilotildees aos direitos do proprietaacuterio privado Nesta medida

tambeacutem o direito agrave habitaccedilatildeo vincula os particulares chamados a

serem solidaacuterios com o seu semelhante (princiacutepio de solidariedade

social) vincula designadamente a propriedade privada que tem

uma funccedilatildeo social a cumprir

Eacute a esta luz que hatildeo-de ser avaliadas normas como aquelas que

como jaacute atraacutes se referiu subtraem o contrato de arrendamento para

habitaccedilatildeo agrave regra da liberdade contratual e o submetem agrave regra da

233

renovaccedilatildeo automaacutetica e obrigatoacuteria Nelas o legislador conhecendo

como conhece a falta de casas para habitaccedilatildeo sacrifica um direito do

senhorio a favor do direito do locataacuterio a dispor de uma casa para sua

habitaccedilatildeo De facto retira agravequele o direito que em princiacutepio lhe

assistiria de denunciar livremente o contrato de arrendamento

celebrado - direito este que estaacute compreendido seja no direito de

iniciativa econoacutemica privada (artigo 61ordm nordm 1 da Constituiccedilatildeo) seja

no direito de propriedade privada (artigo 62ordm nordm 1 da Constituiccedilatildeo)

A legislaccedilatildeo sobre arrendamento para habitaccedilatildeo eacute fortemente

vinculiacutestica sendo um domiacutenio onde a hipoteca social que recai sobre

a propriedade eacute talvez mais forte

IV ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 2632000 DE 3 DE MAIO

ldquoEm face desta parametrizaccedilatildeo ponderando que jaacute se concluiu

que o lsquonuacutecleorsquo ou dimensatildeo essencial do direito de propriedade do

senhorio natildeo eacute posto em crise pelos normativos sub specie que aos

interesses dos cidadatildeos em verem garantido o seu direito agrave habitaccedilatildeo

natildeo eacute alheia a vinculaccedilatildeo dos particulares chamados com o seu

direito de propriedade a cumprir a funccedilatildeo social decorrente daquele

direito agrave habitaccedilatildeo a par com as incumbecircncias que o Estado deve

prosseguir e que a escassez do mercado habitacional reclama a

adopccedilatildeo de medidas tendentes a conseguir a preservaccedilatildeo do direito

de habitaccedilatildeo como um valor indubitavelmente protegido pela Lei

Fundamental igualmente se haveraacute de concluir que as normas em

apreccedilo ao conferir caracteriacutesticas vinculiacutesticas ao contrato de

arrendamento para habitaccedilatildeo designadamente no que se reporta agrave sua

livre revogaccedilatildeo por banda do senhorio e agraves limitaccedilotildees quanto agrave

actualizaccedilatildeo da contrapartida pelo desfrute do arrendado se natildeo

configuram como ultrapassando um modo adequado e proporcionado

de resoluccedilatildeo do conflito que agrave partida se postaria entre um e outro

daqueles direitos

E justamente por isso natildeo violam elas designadamente os

artigos 62ordm 13ordm e 18ordm da Lei Fundamental

Natildeo cabe a este Tribunal indicar se de entre as vaacuterias formas

virtualmente possiacuteveis de hipotisar e tendentes a tal resoluccedilatildeo outro

deveria ser o trilho a seguir pelo legislador Cabe-lhe isso sim aferir

se a soluccedilatildeo normativa adoptada na oacuteptica do quadro unitaacuterio da

Constituiccedilatildeo e da prossecuccedilatildeo do desiderato da menor compressatildeo

dos direitos ou valores em jogo eacute adequada e proporcionada questatildeo

agrave qual como se viu jaacute se deu resposta afirmativa

234

Natildeo satildeo pois inconstitucionais as normas colocadas agrave

sindicacircncia deste Tribunal no presente recurso

V ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 4202000 DE 11 DE OUTUBRO

Como atraacutes se referiu ndash apenas com a excepccedilatildeo dos contratos

de duraccedilatildeo limitada - o legislador subtraiu o contrato de

arrendamento para habitaccedilatildeo agrave regra da liberdade contratual e

submeteu-o agrave da renovaccedilatildeo obrigatoacuteria e automaacutetica Fecirc-lo porque

conhecendo como conhece a falta de casas para habitaccedilatildeo decidiu

sacrificar um direito do senhorio ndash o direito de denunciar livremente

o contrato que se compreende seja no direito de iniciativa econoacutemica

privada seja no direito de propriedade - a favor do direito agrave habitaccedilatildeo

do locataacuterio ou seja do direito que este tem de dispor de uma casa

para nela habitar

Eacute que o direito agrave habitaccedilatildeo embora seja um direito cuja

realizaccedilatildeo ndash uma realizaccedilatildeo gradual pois eacute um direito colocado sob

reserva do possiacutevel ndash constitui essencialmente tarefa do Estado (cf

artigo 65ordm nordm 2 da Constituiccedilatildeo) funda-se na dignidade da pessoa

humana E por isso como haacute um miacutenimo incomprimiacutevel desse

direito cuja concretizaccedilatildeo o Estado deve assegurar o legislador com

esse objectivo impotildee restriccedilotildees ao proprietaacuterio privado que desse

modo eacute chamado a ser solidaacuterio com o seu semelhante em nome

desde logo da funccedilatildeo social da propriedade sobre a qual recai uma

verdadeira hipoteca social a qual numa certa visatildeo das coisas se

funda no destino universal dos bens

VI ACOacuteRDAtildeO TC Nordm 1962010

Tem sido entendido que os preceitos que desde o princiacutepio do

seacuteculo XX estabelecem as regras do arrendamento de preacutedios

urbanos vecircm consagrando um regime de severas limitaccedilotildees agrave

liberdade contratual impondo importantes restriccedilotildees e viacutenculos agrave

autonomia da vontade privada de modo a assegurar uma poliacutetica de

justiccedila social Neste domiacutenio as partes natildeo satildeo encaradas pela lei

como contraentes mas enquanto membros de uma determinado

grupo social (inquilinos e senhorios) cujos interesses pela sua

relevacircncia na dinacircmica da sociedade importa reger em abstracto

independentemente do acto que deu origem agrave situaccedilatildeo em concreto

Eacute este caraacutecter puacuteblico e de forte incidecircncia poliacutetico-social da

legislaccedilatildeo sobre o contrato de arrendamento que exige que tambeacutem

ele seja encarado ao lado de institutos onde a vontade das partes cede

235

perante os interesses comunitaacuterios sendo por isso a lei nova de

aplicaccedilatildeo imediata aos contratos preacute-existentes

6 CONCLUSAtildeO

Seria desejaacutevel que o Tribunal Constitucional numa perspectiva

necessariamente dialoacutegica repensasse a sua metodologia decisoacuteria agrave luz dos

desafios lanccedilados pela recente jurisprudecircncia do Tribunal Europeu Mais do

que encarar a tutela do inquilino como um encargo do proprietaacuteriosenhorio

configurada esta como um limite inerente agrave funccedilatildeo social da propriedade

sugere-se uma metoacutedica centrada na valorizaccedilatildeo das duas posiccedilotildees em

confronto na situaccedilatildeo concreta a do inquilino (quer se enquadre a sua

pretensatildeo no acircmbito do direito social agrave habitaccedilatildeo quer se qualifique a sua

posiccedilatildeo como ldquopropriedaderdquo [property] em termos de tutela internacional) e

a do senhorio (no acircmbito da permissatildeo normativa que lhe confere o seu direito

real) A soluccedilatildeo da antinomia pragmaacutetica entre os direitos do senhorio e do

inquilino513 tem de ser pensada atraveacutes de um processo ponderativo de

concordacircncia praacutetica em que a cada um dos direitos seja reconhecido o seu

espaccedilo proacuteprio de operatividade segundo o princiacutepio da proporcionalidade

enquanto princiacutepio juriacutedico fundamental objectivamente conformador de toda

a actividade do Estado incluindo a actividade judicial E sempre note-se no

respeito pela reparticcedilatildeo de competecircncias constitucionalmente estabelecida

Seraacute assim ainda que aparentemente repetimos soacute aparentemente o contrato

de arrendamento se torne menos social

513 Que ainda vai deixando vestiacutegios no nosso ordenamento sobretudo nos regimes

transitoacuterios Para uma anaacutelise geral vide MARIA OLINDA GARCIA Arrendamento Urbano

Anotado 3ordf ediccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra 2014

236

237

Breves reflexotildees sobre o exerciacutecio (extrajudicial) do

direito de resoluccedilatildeo do contrato bilateral

sinalagmaacutetico em particular sobre as exceccedilotildees ao

ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo

O caso particular das relaccedilotildees contratuais duradouras

Maria Joatildeo Sarmento Pestana de Vasconcelos

INTRODUCcedilAtildeO

Nas uacuteltimas deacutecadas temos vindo a assistir a uma importacircncia

crescente das relaccedilotildees contratuais duradouras e complexas assentes numa

relaccedilatildeo de confianccedila reciacuteproca e de colaboraccedilatildeo muacutetua entre as partes nas

quais as qualidades pessoais dos contratantes e porventura tambeacutem a sua

solidez financeira se afiguram essenciais514

Natildeo obstante as vaacuterias legislaccedilotildees nacionais e os vaacuterios diplomas

normativos de fonte comunitaacuteria que constituem o alicerce do denominado

ldquoDireito Europeu dos Contratosrdquo continuam a assentar no paradigma do

contrato de compra e venda ndash contrato de execuccedilatildeo instantacircnea por excelecircncia

- consagrando assim uma regulamentaccedilatildeo que nem sempre reflete as

peculiaridades das relaccedilotildees contratuais duradouras Refira-se a tiacutetulo de

exemplo a Diretiva 199944CE sobre a venda de bens de consumo e das

garantias a ela relativas bem como o a opccedilatildeo seguida pelo legislador alematildeo

que aproveitou a necessidade de transposiccedilatildeo do referido diploma comunitaacuterio

para reformar o Coacutedigo Civil estendendo o regime nele consagrado para a

venda de bens de consumo a todo o direito da compra e venda e ainda ao

regime geral das perturbaccedilotildees da prestaccedilatildeo Aliaacutes uma das criacuteticas que tem

sido apontada agrave reforma do BGB de 20012002515 eacute justamente o facto de o

Assistente da Escola de Direito da Universidade do Minho 514 Cfr JOAtildeO BAPTISTA MACHADO ldquoPressupostos da Resoluccedilatildeo por Incumprimentordquo in

Estudos em Homenagem ao Prof J J Teixeira Ribeiro pp 343 a 411 p 356 515 Cfr STEFAN GRUNDMANN ldquoRegulating Breach of Contract ndash The Right to Reject

Performance by the Party in Breachrdquo in ERCL 2207 pp 121 a 149 O Autor critica o facto

de o legislador alematildeo natildeo ter aproveitado a Reforma de 20012002 para tomar em

238

legislador alematildeo ter tomado como paradigma de todo o direito contratual o

contrato de compra e venda

A nossa intervenccedilatildeo neste Coloacutequio subordinado ao tema ldquoLife Time

Contractsrdquo pretende ser uma breve reflexatildeo sobre o exerciacutecio extrajudicial do

direito de resoluccedilatildeo do contrato bilateral sinalagmaacutetico em particular sobre

as exceccedilotildees ao chamado ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo no acircmbito das

relaccedilotildees contratuais duradouras

Numa primeira fase procuraremos responder agrave seguinte questatildeo

sendo o cumprimento ainda possiacutevel em que circunstacircncias poderaacute o credor

exercer imediatamente o direito potestativo de resoluccedilatildeo do contrato bilateral

sinalagmaacutetico sem ter de dar ao devedor inadimplente uma segunda

oportunidade para cumprir Posteriormente procuraremos refletir sobre esta

questatildeo no acircmbito das relaccedilotildees contratuais duradouras e complexas a fim de

averiguar em que medida eacute que a ponderaccedilatildeo de interesses subjacente ao

referido ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo se adapta agraves peculiaridades destas

relaccedilotildees

1 O ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS OPORTUNIDADESrdquo COMO REQUISITO DO

VAacuteLIDO EXERCIacuteCIO DO DIREITO POTESTATIVO DE RESOLUCcedilAtildeO

Na eventualidade de o devedor natildeo realizar a prestaccedilatildeo a que estaacute

adstrito sendo o cumprimento ainda possiacutevel o credor soacute poderaacute em

princiacutepio exercer o direito subjetivo propriamente dito ao cumprimento

atraveacutes do qual obteacutem o mesmo resultado praacutetico que teria conseguido atraveacutes

do cumprimento pontual e voluntaacuterio516 A razatildeo pela qual o credor natildeo pode

neste caso escolher se quer ficar vinculado ou desvincular-se do contrato

prende-se com o facto de o princiacutepio da prioridade do cumprimento visar

simultaneamente a proteccedilatildeo do credor e do devedor517

consideraccedilatildeo os contratos de prestaccedilatildeo de serviccedilos e os contratos duradouros de uma forma

mais substancial como um segundo paradigma ao lado da compra e venda e dos contratos de

execuccedilatildeo instantacircnea 516 Neste sentido v JOAtildeO CALVAtildeO DA SILVA ldquoCumprimento e sanccedilatildeo pecuniaacuteria

compulsoacuteriardquo Almedina Coimbra 2002 p 141 Como observa o Autor atraveacutes do

cumprimento e execuccedilatildeo in natura ldquosatisfaz-se de forma especiacutefica e in natura o interesse

primaacuterio do credor proporcionando-lhe natildeo uma qualquer vantagem mas a vantagem bem

determinada e por si esperada finalidade e razatildeo de ser da proacutepria obrigaccedilatildeordquo 517 Neste sentido v NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo

Coimbra Editora Coimbra 2011 p 810 O Autor defende que por esta razatildeo a relaccedilatildeo entre

o cumprimento e a resoluccedilatildeo do contrato natildeo eacute uma relaccedilatildeo de alternatividade mas de

239

O ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo surge como uma soluccedilatildeo de

compromisso entre a proteccedilatildeo dos interesses de cada um dos sujeitos da

relaccedilatildeo juriacutedica obrigacional Em termos gerais podemos afirmar que de

acordo com este princiacutepio o devedor que natildeo cumpre agrave primeira (no tempo

devido) deve ter a oportunidade de cumprir agrave segunda ndash dentro de um prazo

razoaacutevel depois do tempo devido518 Isto significa que sendo o cumprimento

ainda possiacutevel o credor soacute poderaacute desvincular-se do contrato exercendo o

direito potestativo de resoluccedilatildeo se decorrido o referido prazo o devedor natildeo

tiver realizado a prestaccedilatildeo devida

O ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo ainda que com contornos

diversos eacute comum a muitos ordenamentos juriacutedicos nacionais sistemas de

Direito uniforme ndash como eacute o caso da Convenccedilatildeo de Viena de 1980 sobre a

compra e venda internacional de mercadorias ndash tendo sido ainda

reaproveitado pelo legislador comunitaacuterio

11 O ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS OPORTUNIDADESrdquo NA DIRETIVA

199944CE DE 25 DE MAIO DE 1999

Na Diretiva 199944CE de 25 de maio de 1999 relativa a certos

aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas o

legislador comunitaacuterio regula o natildeo cumprimento da obrigaccedilatildeo de entrega de

bens em conformidade com o contrato individualizando no artigo 3ordm os

quatro direitos que o consumidor pode exercer e estabelecendo entre eles uma

hierarquia519 Embora caiba ao consumidor o direito de escolha esta escolha

deve respeitar a ordem hieraacuterquica estabelecida pelo legislador comunitaacuterio

na qual podemos distinguir dois niacuteveis com dois direitos cada Num primeiro

niacutevel encontramos os direitos primaacuterios (que o consumidor pode e deve

exercer preferencialmente) que satildeo os direitos orientados para o

cumprimento o direito agrave reparaccedilatildeo e o direito agrave substituiccedilatildeo da coisa num

segundo niacutevel encontramos os direitos secundaacuterios o direito agrave reduccedilatildeo

adequada do preccedilo e o direito agrave rescisatildeo do contrato

A transiccedilatildeo de um niacutevel para o outro eacute regulada pelos nordms 5 e 6 do

artigo 3ordm do referido diploma comunitaacuterio Aquilo que resulta destas normas

eacute que sendo a reparaccedilatildeo ou a substituiccedilatildeo ainda possiacuteveis sem grave

subsidiariedade Isto significa que sendo o cumprimento ainda possiacutevel o credor natildeo poderaacute

escolher se quer ficar vinculado ou desvincular-se 518 V NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 810 519 Sobre a Diretiva 199944CE de 25 de maio de 1999 v por todos PAULO MOTA PINTO

ldquoConformidade e garantias na venda de bens de consumordquo in Estudos de Direito do

Consumidor Coimbra 2000 pp 197 e ss e ldquoReflexotildees sobre a transposiccedilatildeo da Directiva

199944CE para o direito portuguecircsrdquo in Themis ano II nordm 4 2001 pp 195 a 218

240

inconveniente para o consumidor os direitos agrave reduccedilatildeo adequada do preccedilo ou

agrave rescisatildeo do contrato soacute podem ser exercidos depois de ter expirado um

adicional e razoaacutevel periacuteodo de tempo destinado a dar ao vendedor uma

segunda oportunidade para cumprir isto eacute para repor os bens em

conformidade com o contrato atraveacutes da reparaccedilatildeo ou da substituiccedilatildeo Neste

sentido podemos afirmar que o princiacutepio das duas oportunidades constitui a

peccedila central da ordem hieraacuterquica estabelecida pela Diretiva

12 O ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS OPORTUNIDADESrdquo NA LEI ALEMAtilde

A Diretiva sobre a venda de bens de consumo esteve como jaacute

referimos na geacutenese da reforma do BGB de 20012002520

Esta reforma incidiu de forma particular no regime das perturbaccedilotildees

da prestaccedilatildeo

No que toca agrave questatildeo que nos ocupa o (atual) nordm 1 do sect 323 BGB

passou a estabelecer como ponto de partida em caso de natildeo cumprimento a

necessidade de conceder ao devedor um prazo adicional para cumprir antes

de o credor poder exercer o direito subjetivo propriamente dito a uma

indemnizaccedilatildeo substitutiva da prestaccedilatildeo - sect 282 ndash ou o direito potestativo de

resoluccedilatildeo do contrato bilateral - sect 324

No entanto enquanto que na Diretiva 199944CE este prazo comeccedila

a correr automaticamente o BGB exige que este prazo seja fixado pelo credor

embora jaacute natildeo se exija ao contraacuterio do que resultava do sect 326 (versatildeo anterior

do BGB) que a fixaccedilatildeo do referido prazo seja acompanhada de uma

advertecircncia de que natildeo aceitaraacute a prestaccedilatildeo fora de prazo

(Ablehnungsandrohung)521 Consequentemente perante a versatildeo reformada

do BGB decorrido o prazo adicional sem que o devedor tenha realizado a

prestaccedilatildeo em falta o credor manteacutem a faculdade de optar pelo cumprimento

pela indemnizaccedilatildeo ou pela resoluccedilatildeo do contrato

520 Sobre a Reforma do Coacutedigo Civil alematildeo v ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO ldquoDa

Modernizaccedilatildeo do Direito Civilrdquo I Aspectos Gerais 2004 Almedina Coimbra 2004 em

especial pp 70 e ss 521 Uma importante consequecircncia da supressatildeo deste requisito que se encontrava

expressamente previsto no sect 326 BGB v ant eacute que decorrido o prazo adicional sem que o

devedor tenha realizado a prestaccedilatildeo em falta o credor manteacutem a faculdade de optar pela accedilatildeo

de cumprimento pela indemnizaccedilatildeo ou pela resoluccedilatildeo do contrato Sobre este ponto v NUNO

MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoEstudos sobre o natildeo cumprimento das obrigaccedilotildeesrdquo III

Contributo para a interpretaccedilatildeo do artigo 808ordm do Coacutedigo Civil Almedina Coimbra 2009

p 61

241

O sect 323 do BGB contempla ainda determinados casos em que o

credor pode resolver imediatamente o contrato Entre eles contam-se (1) a

recusa definitiva e seacuteria de cumprimento feita pelo devedor ao credor (sect 323

nordm 2 al 1)) (2) os casos em que a prestaccedilatildeo de torna inuacutetil por perda de

interesse do credor na prestaccedilatildeo o que acontece nos casos em que a prestaccedilatildeo

natildeo seja realizada dentro do prazo ou termo essencial (3) os casos em que

atendendo agraves circunstacircncias concretas e agrave ponderaccedilatildeo dos interesses de ambas

as partes se justifique a resoluccedilatildeo imediata Nestes casos o requisito da

concessatildeo de um prazo adicional ao devedor para que este cumpra eacute

substituiacutedo por um aviso preacutevio (Abmahnung)

A possibilidade dada ao credor de resolver imediatamente o contrato

nos casos em que ldquoatendendo agraves circunstacircncias concretas e agrave ponderaccedilatildeo dos

interesses de ambas as partes se justifique a resoluccedilatildeo imediatardquo afigura-se

especialmente importante no acircmbito das relaccedilotildees contratuais duradouras e

complexas e abrange casos que entre noacutes soacute poderiam caber numa claacuteusula

geral de resoluccedilatildeo do contrato por inexigibilidade de subsistecircncia da relaccedilatildeo

contratual

13 O ldquoPRINCIacutePIO DAS DUAS OPORTUNIDADESrdquo NO DIREITO

PORTUGUEcircS

Ao contraacuterio do BGB o Coacutedigo Civil portuguecircs natildeo consagra (ainda)

uma noccedilatildeo ampla de incumprimento O natildeo cumprimento eacute regulado num

enquadramento sistemaacutetico que tem como polos de referecircncia a

impossibilidade (total ou parcial) e a mora522 Consequentemente tambeacutem o

regime da resoluccedilatildeo do contrato bilateral sinalagmaacutetico se encontra construiacutedo

em torno desta dicotomia

No que respeita agrave questatildeo que nos ocupa o ponto de partida do direito

portuguecircs eacute diferente do ponto de partida do direito alematildeo Enquanto que o

direito alematildeo parte como jaacute vimos do requisito da concessatildeo ao devedor de

um prazo adicional para cumprir antes de o credor poder exercer o direito agrave

resoluccedilatildeo do contrato os artigos 801ordm nordm 2 e 802ordm do Coacutedigo Civil portuguecircs

consideram explicitamente a impossibilidade como causa (a causa) da

resoluccedilatildeo imediata do contrato bilateral sinalagmaacutetico523 No entanto

tambeacutem de acordo com o direito portuguecircs nos casos em que o

incumprimento natildeo revista a forma de impossibilidade (casos de mora em que

o cumprimento posterior ainda eacute possiacutevel) o credor natildeo goza de um direito de

resoluccedilatildeo imediata teraacute de dar ao devedor (em mora) nos termos do artigo

522 JOAtildeO BAPTISTA MACHADO ldquoPressupostos da Resoluccedilatildeo por Incumprimentordquo cit p 344 523 O artigo 801ordm contempla os casos de impossibilidade (definitiva) total o artigo 802ordm

contempla os casos de impossibilidade (definitiva) parcial

242

808ordm nordm 1 do Coacutedigo Civil uma segunda oportunidade para cumprir O

ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo consubstancia-se pois na necessidade de

o credor fixar ao devedor (em mora) um prazo razoaacutevel para que este cumpra

Antes de o credor fixar este prazo e de ele terminar o credor continua

vinculado ao conteuacutedo originaacuterio da relaccedilatildeo contratual o que significa que soacute

poderaacute atuar o direito subjetivo propriamente dito ao cumprimento Depois de

o prazo terminar sem que o devedor tenha realizado uma prestaccedilatildeo conforme

ao contrato o credor adquire o direito potestativo de resoluccedilatildeo do contrato

podendo escolher se quer ficar vinculado ao contrato ou desvincular-se

exercendo o direito potestativo de resoluccedilatildeo do contrato Neste sentido o

direito potestativo de resoluccedilatildeo do contrato bilateral sinalagmaacutetico previsto

nos artigos 801ordm nordm 2 e 802ordm do Coacutedigo Civil soacute pode em princiacutepio ser

exercido desde que o devedor desaproveite duas oportunidades para

cumprir524

O artigo 808ordm nordm 1 2ordf alternativa consagra poreacutem uma exceccedilatildeo ao

princiacutepio das duas oportunidades Trata-se do caso em que a prestaccedilatildeo se torna

inuacutetil por perda (objectiva) do interesse do credor na prestaccedilatildeo ldquose o credor

em consequecircncia da mora perder o interesse que tinha na prestaccedilatildeordquo O nordm 2

do artigo 808ordm por sua vez acrescenta que ldquoa perda do interesse do credor na

prestaccedilatildeo eacute apreciada objectivamenterdquo Isto significa que o artigo 808ordm do

Coacutedigo Civil se deve aplicar aos casos em que o credor natildeo possa realizar os

fins da prestaccedilatildeo por causa do natildeo cumprimento temporaacuterio ou transitoacuterio

imputaacutevel ao devedor525

Em segundo lugar embora natildeo resulte expressamente da lei o credor

pode ainda desvincular-se do contrato sem necessidade de conceder ao

devedor um prazo adicional para cumprir quando o devedor recuse de forma

categoacuterica clara e definitiva o cumprimento da obrigaccedilatildeo526 Neste caso seria

inuacutetil intimar para cumprir dentro de um prazo adicional ou suplementar um

devedor que jaacute declarou definitivamente que natildeo cumpriraacute Por outro lado por

parte do devedor a alegaccedilatildeo de que o credor natildeo lhe deu uma segunda

oportunidade para cumprir consubstanciaria um abuso do direito na

modalidade de venire contra factum proprium

524 V NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 810 525 V NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 863 526 V NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 827

243

2 A RESOLUCcedilAtildeO DO CONTRATO NO AcircMBITO DAS RELACcedilOtildeES

CONTRATUAIS DURADOURAS

Diferentemente dos contratos de execuccedilatildeo instantacircnea os contratos

duradouros (nomeadamente os contratos de execuccedilatildeo continuada ou

perioacutedica) criam uma relaccedilatildeo contratual mais complexa que apresenta

aspectos particulares e que poderaacute reclamar a adopccedilatildeo de um criteacuterio especial

para avaliar a gravidade do inadimplemento susceptiacutevel de justificar a

resoluccedilatildeo do contrato

A particular natureza dos contratos duradouros527 faz com que cada

prestaccedilatildeo ou cada inadimplemento natildeo devam ser tomados e valorados

isoladamente mas antes com referecircncia agrave relaccedilatildeo contratual no seu todo

Assim por um lado em regra natildeo bastaraacute o inadimplemento de uma soacute

prestaccedilatildeo para fazer desaparecer o interesse do credor na subsistecircncia da

relaccedilatildeo e para legitimar a resoluccedilatildeo O credor teraacute normalmente interesse nas

prestaccedilotildees subsequentes

Mas por outro lado um inadimplemento ainda que de menor

importacircncia jaacute poderaacute legitimar a resoluccedilatildeo se pela sua natureza e pelas

circunstacircncias de que se rodeou (p ex desordem nos negoacutecios do devedor

desorganizaccedilatildeo da empresa fornecedora) for de molde a fazer desaparecer a

confianccedila do credor no exato cumprimento das prestaccedilotildees subsequentes ou

das obrigaccedilotildees contratuais em geral para o futuro Esta perda de confianccedila natildeo

deve ser valorada tendo em vista a gravidade do inadimplemento do ponto de

vista do prejuiacutezo que dele advenha para o credor528 Aqui o que se pergunta eacute

se ao inadimplemento de uma soacute prestaccedilatildeo se pode (ou natildeo) atribuir este valor

sintomaacutetico529

O problema do incumprimento sintomaacutetico ainda no acircmbito dos

contratos de execuccedilatildeo duradoura pode estar relacionado com o natildeo

cumprimento de deveres de prestaccedilatildeo ou com o natildeo cumprimento de deveres

acessoacuterios de conduta Assim por exemplo nos contratos de execuccedilatildeo

continuada que pressuponham uma relaccedilatildeo de confianccedila muacutetua e de

527 Cfr BAPTISTA MACHADO ldquoPressupostos da Resoluccedilatildeo por Incumprimentordquo cit p 356 528 Isto natildeo significa que numa relaccedilatildeo nascida de um contrato de execuccedilatildeo continuada ou

perioacutedica natildeo possam surgir inadimplementos cuja valoraccedilatildeo deve ser feita tendo em vista o

prejuiacutezo que desses inadimplementos advenha para o credor ou que o criteacuterio especial do

desaparecimento da confianccedila possa valer como criteacuterio concorrente ou subsidiaacuterio 529 Por exemplo um atraso na realizaccedilatildeo de uma soacute prestaccedilatildeo pode natildeo ser suficientemente

grave mas o conjunto de atrasos sim O cumprimento defeituoso ou imperfeito pode natildeo ser

suficientemente grave mas o conjunto de cumprimentos imperfeitos sim

244

colaboraccedilatildeo estreita entre as partes530 deve entender-se como ensina Baptista

Machado que todo o comportamento que afecte gravemente essa relaccedilatildeo potildee

em perigo o proacuteprio fim do contrato abala o fundamento deste e pode

justificar por isso a resoluccedilatildeo531

A possibilidade conferida ao credor de resolver imediatamente o

contrato bilateral sinalagmaacutetico sem ter de dar ao devedor uma segunda

oportunidade para cumprir com fundamento na inexigibilidade de

subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual afigura-se pois especialmente relevante no

acircmbito das relaccedilotildees contratuais duradouras e complexas O nosso Coacutedigo

Civil porque toma como paradigma o contrato de execuccedilatildeo instantacircnea e

porque regula a resoluccedilatildeo com base na dicotomia impossibilidademora natildeo

prevecirc no regime geral do natildeo cumprimento a resoluccedilatildeo do contrato por

inexigibilidade Contudo acolhe esta ideia de inexigibilidade da subsistecircncia

da relaccedilatildeo contratual no regime especiacutefico de alguns contratos tiacutepicos ndash de

execuccedilatildeo duradoura ndash por exemplo do contrato de arrendamento do contrato

de sociedade do contrato de trabalho ou do contrato de agecircncia Em todos

estes contratos a inexigibilidade surge associada agrave noccedilatildeo de ldquojusta causardquo (cfr

art 1003ordm al a) e 1083ordm nordm 2 do Coacutedigo Civil art 351ordm nordm 1 do Coacutedigo

do Trabalho e no art 30ordm do Decreto-Lei nordm 17686 de 3 de julho)

Nuno Pinto Oliveira na esteira da posiccedilatildeo defendida entre noacutes por

Baptista Machado interpreta estas normas como afloramentos de um princiacutepio

geral aplicaacutevel natildeo apenas agraves relaccedilotildees contratuais duradouras mas a todas as

relaccedilotildees contratuais de acordo com o qual o credor deveraacute dispor de um direito

potestativo de resoluccedilatildeo do contrato bilateral sinalagmaacutetico sempre que se decirc

ldquoqualquer circunstacircncia facto ou situaccedilatildeo em face da qual e segundo a boa feacute

natildeo seja exigiacutevel a uma das partes a continuaccedilatildeo da relaccedilatildeo contratualrdquo Ao

esquecer-se de consagrar este princiacutepio o legislador portuguecircs teria causado

uma lacuna que deveria pois ser integrada atraveacutes de uma analogia geral

(analogia juris)532

O BGB reformado afigura-se no que toca a este ponto mais ajustado

agraves peculiaridades das relaccedilotildees contratuais duradouras O sect 323 3 BGB admite

a resoluccedilatildeo do contrato nos casos em que haja circunstacircncias especiais

(besondere Umstaumlnde) e em que a resoluccedilatildeo imediata do contrato se

expliquese justifique atendendo ao balanceamento ou ponderaccedilatildeo dos

interesses contrapostos de cada uma das partes (unter Abwaumlgung der

beiderseitigen Interessen) O sect 324 BGB por sua vez admite a resoluccedilatildeo do

530 Poderaacute tratar-se de contratos celebrados intuito personae mas natildeo necessariamente 531 BAPTISTA MACHADO ldquoPressupostos da Resoluccedilatildeo por Incumprimentordquo cit p 359 532 Cfr NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoPrinciacutepios de Direito dos Contratosrdquo cit p 870

245

contrato sempre que a inobservacircncia de deveres acessoacuterios de conduta torne

inexigiacutevel a subsistecircncia da relaccedilatildeo contratual

Estas normas embora sejam aplicaacuteveis a todas as relaccedilotildees contratuais

introduzem uma abertura e uma flexibilidade que se afiguram especialmente

relevantes no acircmbito das relaccedilotildees contratuais duradouras533 Para aleacutem disso

funcionado como exceccedilotildees ao ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo estas

normas poderatildeo tambeacutem contribuir para disciplinar o devedor de uma forma

mais eficiente jaacute que lhe retiram em parte a seguranccedila juriacutedica que o

princiacutepio das duas oportunidades lhe outorga o devedor sabe que natildeo teraacute uma

segunda oportunidade de cumprir se o seu comportamento abalar a relaccedilatildeo de

confianccedila muacutetua na qual assenta a relaccedilatildeo contratual tornando assim

inexigiacutevel a sua subsistecircncia

3 O MODELO CONSAGRADO NA CONVENCcedilAtildeO DE VIENA DE 1980 SOBRE

A COMPRA E VENDA INTERNACIONAL DE MERCADORIAS

31 A NOCcedilAtildeO DE VIOLACcedilAtildeO FUNDAMENTAL DO CONTRATO

Nos termos da Convenccedilatildeo de Viena de 1980 sobre a compra e venda

internacional de mercadorias o direito de rescisatildeo do contrato eacute concedido ao

comprador em duas hipoacuteteses previstas no artigo 49ordm nordm 1 da Convenccedilatildeo

quando a falta de cumprimento de qualquer obrigaccedilatildeo pelo vendedor constituir

uma violaccedilatildeo fundamental do contrato ou quando o vendedor natildeo faccedila a

entrega das mercadorias findo o prazo suplementar que foi fixado pelo

comprador nos termos do artigo 47ordm (ou ainda no decurso deste se o vendedor

declarar categoricamente que natildeo faraacute a entrega dentro de tal prazo) Deste

modo excetuado o caso em que haja falta de entrega o direito de rescisatildeo que

o comprador pode exercer nos termos da Convenccedilatildeo repousa na noccedilatildeo de

ldquoviolaccedilatildeo fundamentalrdquo do contrato ou fundamental breach utilizando a

expressatildeo anglo-saxoacutenica534 Esta noccedilatildeo serve para traccedilar a fronteira entre as

533 Defendendo que ldquo[e]ntre a flexibilidade do Coacutedigo Civil alematildeo e a inflexibilidade do

Coacutedigo Civil portuguecircs deve preferir-se a primeirardquo v NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA

ldquoEstudos sobre o natildeo cumprimento das obrigaccedilotildeesrdquo cit p 69 534 A consagraccedilatildeo da noccedilatildeo de ldquoviolaccedilatildeo fundamentalrdquo do contrato pode ser vista como uma

aproximaccedilatildeo aos sistemas do Common Law em que a faculdade de resoluccedilatildeo eacute limitada aos

casos em que haacute uma violaccedilatildeo grave do contrato O legislador internacional teraacute entendido

que a soluccedilatildeo do Common Law representa o melhor equiliacutebrio entre o interesse da parte faltosa

em natildeo sofrer as consequecircncias da rescisatildeo em caso de uma violaccedilatildeo de gravidade menor e o

interesse da parte lesada em natildeo se ver obrigada a aceitar uma prestaccedilatildeo em que natildeo tem (ou

246

formas de incumprimento menos graves que natildeo potildeem em causa a

subsistecircncia do contrato e situaccedilotildees mais graves que permitem agrave parte lesada

a rescisatildeo do contrato

O artigo 25ordm da convenccedilatildeo determina que uma violaccedilatildeo do contrato

cometida por uma das partes eacute fundamental quando causa agrave outra parte um

prejuiacutezo tal que a prevecirc substancialmente daquilo que lhe era legiacutetimo esperar

do contrato salvo se a parte faltosa natildeo previu esse resultado e se uma pessoa

razoaacutevel com idecircntica qualificaccedilatildeo e colocada na mesma situaccedilatildeo natildeo o

tivesse igualmente previsto

A expressatildeo ldquoprejuiacutezordquo natildeo eacute aqui utilizada no seu sentido teacutecnico mas

como desvantagem resultante do incumprimento agrave luz do interesse do credor

Assim jaacute se entendeu que natildeo constitui uma violaccedilatildeo fundamental a existecircncia

de defeitos de conformidade numa pequena parte da mercadoria ou que natildeo

excluam uma utilizaccedilatildeo alternativa sem fazer incorrer o comprador em

despesas elevadas Por outro lado natildeo soacute o incumprimento da obrigaccedilatildeo

principal mas tambeacutem o incumprimento de obrigaccedilotildees acessoacuterias pode ser

considerado uma violaccedilatildeo fundamental se tiver suficiente importacircncia para a

outra parte Assim por exemplo o desrespeito pelo vendedor de um direito de

exclusividade reconhecido ao comprador pode dependendo do conteuacutedo do

contrato e das circunstacircncias concretas do caso consubstanciar uma ldquoviolaccedilatildeo

fundamentalrdquo do contrato535

Natildeo basta poreacutem a existecircncia de um prejuiacutezo substancial Eacute

necessaacuterio que a parte faltosa tenha previsto a produccedilatildeo desse prejuiacutezo ou que

ele fosse previsiacutevel por uma pessoa razoaacutevel com idecircntica qualificaccedilatildeo e

colocada na mesma situaccedilatildeo Incumbe agrave parte faltosa provar que o prejuiacutezo

substancial causado agrave outra parte natildeo foi previsto nem seria previsiacutevel Assim

por exemplo o atraso na entrega da mercadoria soacute constituiraacute uma violaccedilatildeo

fundamental se causar um prejuiacutezo substancial ao comprador e se o vendedor

puder aperceber-se da sua gravidade Nesta hipoacutetese poreacutem o comprador

pode nos termos do artigo 49ordm nordm 1 aliacutenea b) fixar um prazo suplementar ao

vendedor e resolver o contrato se a entrega natildeo tiver lugar dentro desse prazo

sem necessidade de demonstrar que o atraso na entrega da mercadoria constitui

uma violaccedilatildeo fundamental do contrato

jaacute natildeo tem) interesse V LUIacuteS DE LIMA PINHEIRO Direito Comercial Internacional Almedina

Coimbra 2005 p 278 535 V LUIacuteS DE LIMA PINHEIRO Direito Comercial Internacional cit p 279

247

32 O DIREITO DE DECLARAR A RESOLUCcedilAtildeO NOS CONTRATOS COM

PRESTACcedilOtildeES SUCESSIVAS

O artigo 73ordm da Convenccedilatildeo consagra um regime especial aplicaacutevel agrave

resoluccedilatildeo do contrato por inexecuccedilatildeo de alguma das obrigaccedilotildees quando a

prestaccedilatildeo de qualquer das partes se protele no tempo Tal regime comtempla

as consequecircncias que resultam de uma tal inexecuccedilatildeo quer no que diz respeito

agrave entrega natildeo efectivada quer no que concerne agrave sua repercussatildeo sobre os

demais atos de entrega futuros ou jaacute efetuados536 No caso de contratos em

que as prestaccedilotildees se achem fracionadas como eacute o caso de contratos de compra

e venda com entregas sucessivas o princiacutepio geral eacute o de que se o

incumprimento de uma obrigaccedilatildeo referente a uma entrega constituir uma

violaccedilatildeo fundamental do contrato a outra parte pode resolvecirc-lo no acircmbito

correspondente a esta entrega (artigo 73ordm nordm 1) Neste caso o direito de

resoluccedilatildeo eacute limitado agrave prestaccedilatildeo em causa e soacute existe nos termos gerais

quando se verifique uma violaccedilatildeo fundamental do contrato

O nordm 2 do artigo 73ordm da Convenccedilatildeo prevecirc a hipoacutetese em que o

incumprimento de uma das prestaccedilotildees singulares de entrega daacute agrave outra parte

seacuterias razotildees para pensar que ocorreraacute uma violaccedilatildeo fundamental na parte

correspondente agraves futuras entregas Assim autoriza-se a parte lesada a num

prazo razoaacutevel declarar a resoluccedilatildeo de toda a relaccedilatildeo duradoura para o futuro

Neste caso prescinde-se do caraacuteter fundamental da violaccedilatildeo ocorrida para se

exigir apenas que ela funde o receio justificado de outras violaccedilotildees futuras

que possam revestir aquele caraacuteter

Embora natildeo exista na nossa lei uma norma semelhante poderemos

admitir como defende Baptista Machado que o inadimplemento de uma

prestaccedilatildeo neste tipo de contratos pode ter valor sintomaacutetico legitimando

entatildeo a resoluccedilatildeo do contrato se tal inadimplemento ldquofor de molde a fazer

desaparecer a confianccedila do credor no exato e fiel cumprimento das prestaccedilotildees

subsequentesrdquo

O nordm 3 do artigo 73ordm prevecirc a hipoacutetese em que tendo o comprador

resolvido o contrato em relaccedilatildeo a uma das entregas as demais (passadas ou

futuras) natildeo poderem mais ser utilizadas para os fins tidos em vista pelas partes

no momento da celebraccedilatildeo do contrato em virtude da sua iacutentima conexatildeo com

a prestaccedilatildeo em falta

Haacute aqui uma analogia com o regime especial dos efeitos da resoluccedilatildeo

do contrato previsto na nossa lei para as chamadas obrigaccedilotildees de execuccedilatildeo

536 Cfr os nuacutemeros 2 e 3 do artigo 73ordm da Convenccedilatildeo de Viena de 1980

248

continuada ou perioacutedica no que diz respeito agraves prestaccedilotildees jaacute efetuadas (v

artigo 434ordm nordm 2 do Coacutedigo Civil)

CONCLUSOtildeES

A anaacutelise que empreendemos permite-nos concluir que quer na

Diretiva 199944CE de 25 de maio de 1999 quer nos Coacutedigos Civis

portuguecircs e alematildeo quer na Convenccedilatildeo de Viena de 1980 sobre a venda

internacional de mercadorias existe uma diferenciaccedilatildeo entre incumprimentos

essenciais (em que a prestaccedilatildeo jaacute natildeo eacute possiacutevel ou eacute inuacutetil do ponto de vista

da satisfaccedilatildeo do interesse do credor) e incumprimentos natildeo essenciais (em

que a prestaccedilatildeo ainda eacute possiacutevel e uacutetil)

A razatildeo de ser desta diferenciaccedilatildeo eacute a seguinte sendo a prestaccedilatildeo ainda

possiacutevel e uacutetil importa encontrar um equiliacutebrio entre o interesse do devedor

em cumprir e o interesse do credor em desvincular-se do contrato exercendo

o direito potestativo de resoluccedilatildeo O equiliacutebrio entre estes dois interesses

alcanccedila-se atraveacutes do ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo ou seja do requisito

da fixaccedilatildeo ao devedor de um prazo adicional para cumprir e assim impedir a

resoluccedilatildeo do contrato

O ldquoprinciacutepio das duas oportunidadesrdquo tem vantagens para ambas as

partes para o credor porque lhe permite exercer o direito potestativo de

resoluccedilatildeo do contrato mesmo nos casos em que o cumprimento posterior

ainda eacute possiacutevel para o devedor pela certeza e pela seguranccedila que lhe

proporciona ele sabe que se natildeo cumprir agrave primeira poderaacute ainda cumprir agrave

segunda e tem ainda a garantia de que enquanto aquele prazo adicional natildeo

terminar o credor natildeo poderaacute exercer o direito de resoluccedilatildeo do contrato (a natildeo

ser que no decurso desse prazo o devedor declare de forma definitiva e

categoacuterica que natildeo cumpriraacute)

Nos casos em que a prestaccedilatildeo jaacute natildeo eacute possiacutevel ou eacute inuacutetil ndash o interesse

do credor em desvincular-se do contrato exercendo o direito potestativo de

resoluccedilatildeo eacute claramente preponderante razatildeo pela qual faz sentido admitir que

este possa resolver imediatamente o contrato sem ter que dar ao devedor uma

segunda oportunidade para cumprir537

537 O artigo 9301 (1) PECL determina que uma das partes pode resolver o contrato se o

incumprimento da outra parte constituir um incumprimento essencial Assim nos casos de

incumprimento essencial existe um direito de resoluccedilatildeo imediata Natildeo existindo um

incumprimento essencial o credor soacute poderaacute resolver o contrato se previamente tiver

concedido ao devedor um prazo adicional para este cumprir e o respectivo prazo terminar sem

que o devedor tenha realizado a sua prestaccedilatildeo O artigo 9301 (2) PECL estabelece que em

249

A ponderaccedilatildeo de interesses subjacente ao princiacutepio das duas

oportunidades nem sempre se afigura adequada agraves peculiaridades das relaccedilotildees

contratuais duradouras e complexas as quais reclamam uma maior

flexibilidade afigurando-se pois preferiacutevel o regime consagrado no Coacutedigo

Civil alematildeo o qual permite abranger todos os casos em que o princiacutepio da

ponderaccedilatildeo de interesses justifique a resoluccedilatildeo do contrato ou ainda o regime

consagrado na Convenccedilatildeo de Viena de 1980 sobre a venda internacional de

mercadorias o qual para aleacutem de permitir a resoluccedilatildeo imediata sempre que

haja uma violaccedilatildeo fundamental do contrato conteacutem regras proacuteprias aplicaacuteveis

apenas a relaccedilotildees contratuais duradouras e como tal particularmente

ajustadas agraves suas peculiaridades

caso de mora o credor pode resolver o contrato em virtude do 8 106 (3) PECL Esta norma

determina que se o atraso no cumprimento natildeo constituir um natildeo cumprimento essencial e se

o credor tiver concedido ao devedor um prazo adicional para este cumprir poderaacute resolver o

contrato se esse prazo decorrer de forma infrutuosa

250

Coloacutequio ldquoO princiacutepio da dignidade da

pessoa humana e o direito privado

Repensar os direitos de personalidaderdquo

Braga 14 de dezembro de 2015

252

253

Os direitos de personalidade como direitos

fundamentais

Joaquim de Sousa Ribeiro

1 A Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa (CRP) confere plena

centralidade valorativa agrave pessoa como objeto de proteccedilatildeo

O primado desse conceito como conceito de valor a preservar e a

promover fica logo expresso com evidecircncia no artigo 1ordm ao reconhecer a

dignidade da pessoa humana como uma das bases da Repuacuteblica Portuguesa

Esta ideia regulativa baacutesica preacute-enuncia em si mesma todo um programa

normativo natildeo soacute de fixaccedilatildeo de limites de atuaccedilatildeo aos poderes puacuteblicos mas

tambeacutem de imposiccedilatildeo de tarefas e de incumbecircncias prestacionais

teleologicamente direcionadas a conformar a vivecircncia em sociedade como

ldquolivre justa e solidaacuteriardquo de acordo com o segmento final daquele preceito

Esse programa eacute desenvolvidamente explicitado por toda a

Constituiccedilatildeo com destaque naturalmente para os ldquoprinciacutepios fundamentaisrdquo

e para a parte I atinente aos direitos fundamentais O valor matricial da

dignidade da pessoa humana funda e daacute unidade de sentido a todas as previsotildees

de direitos da pessoa que aiacute se contecircm cobrindo as diversificadas situaccedilotildees

existenciais em que a sua personalidade se constroacutei e se exprime O imperativo

de respeito pelo modo de ser concreto de cada indiviacuteduo sem sujeiccedilatildeo a um

modelo ideal predeterminado em abstrato alimenta um conceito de liberdade

de cunho substancialista como autodeterminaccedilatildeo efetiva em todos os

domiacutenios da existecircncia O que por sua vez e em conexatildeo postula uma

dimensatildeo essencial da igualdade como direito agrave diferenccedila Na verdade como

jaacute noutra sede escrevemos laquoa autodeterminaccedilatildeo como direito ao ldquolivre

desenvolvimento da personalidaderdquo eacute indissociaacutevel do tratamento como igual

daquele que faz opccedilotildees de vida divergentes dos padrotildees dominantes Digna de

igual reconhecimento e respeito eacute a pessoa como ser uacutenico e diferenciado

portadora de necessidades aspiraccedilotildees desejos e atributos que a

individualizam na circunstacircncia histoacuterica do seu viverraquo (A tutela de bens da

personalidade na Constituiccedilatildeo e na jurisprudecircncia constitucional

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Presidente do Tribunal

Constitucional

254

portuguesasrdquo Estudos em homenagem ao Prof Doutor Joseacute Joaquim Gomes

Canotilho III paacuteg 852)

A pessoa eacute protegida natildeo apenas enquanto tal mas tambeacutem como

cidadatildeo e como trabalhador formando-se assim a trilogia de categorias de

direitos liberdades e garantias que no seu conjunto disponibilizam uma tutela

global agrave pessoa direitos liberdades e garantias pessoais de participaccedilatildeo

poliacutetica e dos trabalhadores

A estrutura da proteccedilatildeo constitucional da pessoa completa-se com a

fixaccedilatildeo aos poderes puacuteblicos de incumbecircncias concretas de atuaccedilatildeo prestativa

no acircmbito da efetivaccedilatildeo de direitos fundamentais sociais econoacutemicos e

culturais Para aleacutem do seu significado especiacutefico atinente a cada um dos bens

objeto de tutela esses direitos no seu conjunto datildeo substacircncia aos valores

cimeiros da liberdade e da igualdade procurando assegurar a todos condiccedilotildees

reais minimamente igualitaacuterias de integraccedilatildeo e de participaccedilatildeo autoacutenoma na

vida social Funccedilatildeo essencial neste domiacutenio cumpre o direito a um miacutenimo

de subsistecircncia condigna natildeo expressamente consagrado mas que o Acoacuterdatildeo

nordm 5092002 do Tribunal Constitucional fez diretamente entroncar no

princiacutepio do respeito da dignidade humana

Partindo da pessoa a Constituiccedilatildeo natildeo abandona esse eixo nuclear na

proacutepria modelaccedilatildeo da organizaccedilatildeo econoacutemica Ela foi constitucionalmente

concebida como instrumental ao objetivo de promoccedilatildeo do bem-estar e da

qualidade de vida do povo e da igualdade real entre os portugueses ndash uma das

tarefas fundamentais do Estado assim expressa na aliacutenea d) do artigo 9ordm da

CRP Reforccedilando esse ponto de vista valorativo a aliacutenea a) do artigo 81ordm

estabelece como incumbecircncia prioritaacuteria do Estado no acircmbito econoacutemico e

social laquopromover o aumento de bem-estar social e econoacutemico e da qualidade

de vida das pessoas em especial das mais desfavorecidas (hellip)raquo

2 Esta densa malha protetiva a niacutevel da Lei Fundamental eleva a um

novo patamar o reconhecimento normativo dos direitos da pessoa no

ordenamento portuguecircs sendo de lhe atribuir um profundo significado

sisteacutemico

A tutela dos bens da personalidade jaacute tivera um anterior momento

marcante com a consagraccedilatildeo no Coacutedigo Civil de 1966 de ldquodireitos de

personalidaderdquo Compondo toda uma secccedilatildeo integrada no tiacutetulo III da Parte

Geral dedicado agraves ldquorelaccedilotildees juriacutedicasrdquo (artigos 70ordm a 81ordm) aiacute encontra

expressatildeo forte a visatildeo ldquopersonalistardquo de que cada indiviacuteduo vale como pessoa

o que implica a disponibilizaccedilatildeo pela ordem juriacutedica de instrumentos de

proteccedilatildeo dos modos de ser por que se manifesta a sua irredutiacutevel identidade e

individualidade Proteccedilatildeo que nesse plano do direito civil lhe foi

255

extensamente concedida atraveacutes de uma claacuteusula geral muito aberta (artigo

70ordm nordm 1) de tutela ldquocontra qualquer ofensa iliacutecita ou ameaccedila de ofensa agrave sua

personalidade fiacutesica ou moralrdquo articulada com algumas previsotildees especiacuteficas

em salvaguarda de concretos bens da personalidade

Mas e natildeo obstante todo o realce e encoacutemios que a consagraccedilatildeo

legislativa de direitos de personalidade no nosso Coacutedigo Civil

indiscutivelmente merece natildeo pode ignorar-se que deles transparece uma

compreensatildeo estritamente individualista e abstratizante da pessoa como ldquoente

centrado sobre si proacutepriordquo sem ter em conta as posiccedilotildees relacionais e os papeacuteis

que ela assume na esfera da convivecircncia social

Este ldquoisolamentordquo dos direitos de personalidade foi muito favorecido

pela sistemaacutetica germacircnica que o Coacutedigo adotou com a compartimentaccedilatildeo da

mateacuteria civiliacutestica em blocos normativos separados (em ldquolivrosrdquo) por criteacuterios

estruturais e funcionais que nada tecircm a ver com o percurso vivencial da pessoa

Colocados dentro do regime geral da relaccedilatildeo juriacutedica os direitos de

personalidade revelam-se aiacute quase como um ldquocorpo estranhordquo pois nesse

contexto a personalidade eacute dominantemente equiparada agrave subjetividade sendo

a pessoa encarada como mero elemento da relaccedilatildeo juriacutedica como centro de

imputaccedilatildeo dos efeitos juriacutedicos que ela comporta

Em resultado de tudo isto e ainda que o reconhecimento de direitos de

personalidade seja uma componente da parte ldquogeralrdquo do Coacutedigo eles natildeo

tiveram qualquer projeccedilatildeo valorativa nos outros sectores da regulaccedilatildeo

civiliacutestica

Pense-se por exemplo no regime da ldquoemissatildeo de fumo produccedilatildeo de

ruiacutedos e factos semelhantesrdquo (artigo 1346ordm) O proprietaacuterio de um imoacutevel pode

opor-se a esses factos provenientes de preacutedio vizinho laquosempre que tais factos

importem um prejuiacutezo substancial para o uso do imoacutevel ou natildeo resultem da

utilizaccedilatildeo normal do preacutedio de que emanamraquo Eacute notoacuterio que a ponderaccedilatildeo

legislativa incidiu exclusivamente sobre a relaccedilatildeo entre imoacuteveis entre o preacutedio

gerador daqueles factos e o preacutedio por eles afetado Numa oacutetica

exclusivamente patrimonialista contrapocircs-se as utilidades propiciadas pelo

primeiro aos prejuiacutezos sofridos pelo segundo com alheamento absoluto das

ofensas ao direito ao repouso ou agrave integridade pessoal do titular deste agrave perda

da qualidade de vida por accedilatildeo lesiva sobre o meio circundante e ambiental da

pessoa Sobressai neste criteacuterio de soluccedilatildeo a salvaguarda sem qualquer

ressalva da ldquoutilizaccedilatildeo normalrdquo do preacutedio de onde proveem os factos lesivos

Se um interpretaccedilatildeo sistemaacutetica que entre em linha de conta com o

disposto no artigo 70ordm ainda pode contrariar esta conclusatildeo ndash e a nossa

jurisprudecircncia natildeo hesitou em seguir essa via minus o mesmo jaacute natildeo acontece com

as autecircnticas antinomias valorativas criadas por opccedilotildees tomadas no acircmbito do

256

direito da famiacutelia Na redaccedilatildeo originaacuteria do Coacutedigo anteriormente agraves

alteraccedilotildees introduzidas pelo Decreto-Lei nordm 49677 de 25 de novembro a

mateacuteria foi tratada numa perspetiva puramente institucionalista como se o

casamento e a famiacutelia nada tivessem a ver com a autodeterminaccedilatildeo e a

realizaccedilatildeo da pessoa minus os valores determinantes da garantia do livre

desenvolvimento da personalidade contida na tutela geral reconhecida no

artigo 70ordm Daiacute entre outros aspetos a indissolubilidade por divoacutercio dos

casamentos catoacutelicos celebrados desde 1 de agosto de 1940 (artigo 1790ordm) e

em muacuteltiplos pontos o estatuto inferiorizado da mulher submetida ao ldquopoder

maritalrdquo do marido como ldquochefe de famiacuteliardquo (artigo 1674ordm) com as restriccedilotildees

e as condicionantes decorrentes

Por isso mesmo a nova ordem constitucional implicou nesta aacuterea uma

radical reconfiguraccedilatildeo normativa do direito ordinaacuterio Soacute entatildeo o regime

juriacutedico-civil do casamento da famiacutelia e dentro dela da filiaccedilatildeo passou a estar

ajustado agraves ideias de valor da autodeterminaccedilatildeo de integridade e de igual

dignidade das pessoas ndash ideias que dando conteuacutedo a princiacutepios

constitucionais e a direitos fundamentais satildeo tambeacutem fundantes da

consagraccedilatildeo de direitos de personalidade E a forma consequente como foi

levada a cabo essa tarefa de ajustamento do direito ordinaacuterio aos paracircmetros

constitucionais manifesta-se bem no tratamento dos filhos menores de acordo

com o grau de maturidade destes os pais ldquodevem ter em conta a sua opiniatildeo

nos assuntos familiares importantes e reconhecer-lhes autonomia na

organizaccedilatildeo da proacutepria vidardquo (artigo 1878ordm nordm 2)

3 Este o primeiro e grande apport da consagraccedilatildeo constitucional dos

direitos da pessoa como direitos fundamentais situados no veacutertice do sistema

juriacutedico Nessa qualidade beneficiam da forccedila juriacutedica que o artigo 18ordm da

CRP atribui aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos liberdades

e garantias Vinculando as entidades puacuteblicas e privadas impotildeem-se ao

proacuteprio legislador como padrotildees de referecircncia normativa a respeitar em todas

as aacutereas de intervenccedilatildeo legislativa As conformaccedilotildees de cunho restritivo soacute satildeo

admissiacuteveis dentro dos paracircmetros fixados nos nordms 2 e 3 daquela disposiccedilatildeo

devendo em particular ldquolimitar-se ao necessaacuterio para salvaguardar outros

direitos e interesses constitucionalmente protegidosrdquo e natildeo afetar o ldquonuacutecleo

essencialrdquo dos direitos liberdades e garantias

Com o reconhecimento constitucional os direitos da pessoa natildeo soacute

estendem a sua esfera de proteccedilatildeo ndash na medida em que satildeo tambeacutem e em

primeira linha direitos de defesa contra intromissotildees lesivas do Estado minus

como ganham uma eficaacutecia vinculativa irradiante para todo o sistema juriacutedico

Natildeo haacute campo normativo que se lhes possa subtrair natildeo haacute razotildees especiacuteficas

de nenhum setor de regulaccedilatildeo infraconstitucional que se possam sobrepor aos

257

imperativos que os direitos fundamentais incorporam em termos de validarem

soluccedilotildees que os contrariem Natildeo mais satildeo possiacuteveis visotildees parcelares

desconectadas da unidade de sentido tutelador que a Constituiccedilatildeo confere aos

direitos da pessoa nos vaacuterios ldquopalcosrdquo em que esta desenvolve a sua atividade

Os criteacuterios material-valorativos modeladores do estatuto juriacutedico-

constitucional da pessoa tecircm projeccedilatildeo universal em todo o ordenamento pela

posiccedilatildeo supraordenada que nele ocupam sem prejuiacutezo das especiacuteficas

dimensotildees protetivas que no plano do direito ordinaacuterio satildeo concretizadas nos

vaacuterios sectores da ordem juriacutedica de forma ajustada agrave iacutendole proacutepria das

esferas existenciais neles reguladas Aqueles criteacuterios constitucionais

permeiam a conformaccedilatildeo normativa tambeacutem das relaccedilotildees juriacutedico-privadas

servindo simultaneamente de padratildeo de controlo da validade das estatuiccedilotildees

infraconstitucionais

Ganha-se assim uma visatildeo integrada sistemicamente coerente do

conjunto multifacetado da estrutura de proteccedilatildeo da pessoa sem

compartimentaccedilotildees estanques entre si em total correspondecircncia com a

natureza una e indivisiacutevel da personalidade humana

Dessa visatildeo natildeo podem ser excluiacutedos pelo menos alguns dos direitos

econoacutemicos e sociais Tendo eacute certo o seu nuacutecleo mais caracterizador nas

relaccedilotildees com o Estado como direito a prestaccedilotildees alguns desses direitos

desempenham tambeacutem uma funccedilatildeo de defesa e de proteccedilatildeo contra agressotildees

nas relaccedilotildees juriacutedico-privadas Nessa vertente defensiva complementam os

claacutessicos direitos pessoais ndash eacute o caso por exemplo do direito econoacutemico-social

agrave habitaccedilatildeo (artigo 65ordm da CRP) com relevantes projeccedilotildees valorativas bem

patentes na jurisprudecircncia constitucional sobre a disciplina do arrendamento

minus ou tecircm mesmo incidecircncia sobre o acircmbito de proteccedilatildeo destes direitos

enriquecendo-o e alargando-o Exemplo expressivo desta interconexatildeo

horizontal de sentido tutelador eacute-nos dado pela associaccedilatildeo do direito agrave

integridade pessoal (artigo 25ordm da CRP) ao direito agrave sauacutede (artigo 64ordm) bem

como ao direito a um ambiente sadio e a qualidade de vida (artigo 66ordm) Essa

associaccedilatildeo contribuiu para potenciar uma compreensatildeo mais exigente mesmo

na esfera juriacutedico-privada como direito da personalidade do direito agrave

integridade fiacutesica e psiacutequica ampliando o bem protegido de forma a abarcar

natildeo apenas os atentados diretos ao ser da pessoa mas tambeacutem as accedilotildees que

inquinam o seu meio vivencial afetando o seu bem-estar Uma rica e

diversificada jurisprudecircncia civiliacutestica documenta bem essa extensatildeo do

acircmbito de tutela

4 A proteccedilatildeo constitucional integrada e unificada de todos os atributos

que garantem ao indiviacuteduo ldquovaler como pessoardquo comunica-se assim a todo o

258

sistema juriacutedico funcionando como poacutelo agregador dos regimes sectorizados

que tecircm esse objeto de tutela e impulsionador da sua efetiva aplicaccedilatildeo de

modo conforme aos valores constitucionais

Fica patente que mecanismos de proteccedilatildeo diacutespares entre si por

obedecerem ao ethos normativo proacuteprio da aacuterea do juriacutedico onde se situam

apresentam um eacutetimo comum por todos serem expressatildeo dos imperativos de

tutela que por forccedila da ordenaccedilatildeo axioloacutegica jusfundamental sobre o Estado

recai Na verdade de acordo na estrutura complexa dos direitos fundamentais

neles natildeo cabem apenas deveres de respeito limites agrave intrusatildeo na esfera

protegida ndash deveres que no que se refere ao Estado ganham particular

evidecircncia quando este eacute o uacutenico potencial agressor como sucede em todo o

vasto campo do exerciacutecio do direito de punir Cabem tambeacutem deveres de

proteccedilatildeo bem expressos no segmento da caracterizaccedilatildeo geneacuterica da Repuacuteblica

Portuguesa como ldquoEstado de direito democraacuteticordquo (artigo 2ordm) que nele

integra como sua componente essencial a ldquogarantia de efectivaccedilatildeo dos

direitos e liberdades fundamentaisrdquo e em previsotildees especiacuteficas dispersas por

vaacuterios preceitos (cfr por exemplo a parte final do nordm 1 e os nordms 2 e 3 do artigo

26ordm)

Com respeito pelo princiacutepio da proporcionalidade o legislador goza de

ampla liberdade na escolha do meio de proteccedilatildeo mais adequado A proteccedilatildeo

mais intensa (mas tambeacutem a mais exposta ao risco de excesso e daiacute a sua

sujeiccedilatildeo estrita ao criteacuterio da necessidade naquele princiacutepio contido) eacute dada

pelas incriminaccedilotildees de direito penal com a criminalizaccedilatildeo de condutas lesivas

de bens da personalidade Os ldquocrimes contra as pessoasrdquo eacute uma tipificaccedilatildeo que

todos os coacutedigos penais contecircm e natildeo podem deixar de conter como parte

destacada do seu cataacutelogo de accedilotildees puniacuteveis Mas se esse eacute um locus

obbligatus desses complexos normativos a moderna compreensatildeo do direito

penal que seleciona como bens dotados de dignidade penal ldquosoacute bens juriacutedicos

de niacutevel constitucionalrdquo os ldquobens juriacutedicos essenciais agrave realizaccedilatildeo mais livre

possiacutevel do homem na comunidaderdquo (nesse sentido Figueiredo Dias Direito

penal Parte Geral t I 2ordf ed Coimbra 2007 paacutegs 117-123) veio inocular-

lhe uma nova carga valorativa como componente imprescindiacutevel de um

sistema protetor na iacutentegra e em todas as dimensotildees da personalidade

humana

No Coacutedigo Penal portuguecircs esta mateacuteria ocupa todo o tiacutetulo I da Parte

Especial estendendo-se do artigo 131ordm ao artigo 201ordm A ldquocorrespondecircncia de

sentidordquo com a ordem constitucional de tutela da pessoa manifesta-se desde

logo em certas previsotildees com direta atinecircncia a garantias constitucionais

designadamente as do capiacutetulo respeitante aos ldquocrimes contra a reserva da vida

privadardquo (artigos 190ordm a 198ordm) e agrave tipificaccedilatildeo do crime de ldquogravaccedilotildees e

fotografias iliacutecitasrdquo (artigo 199ordm)

259

Mas manifesta-se tambeacutem e com especial valor sintomaacutetico na

reconfiguraccedilatildeo dos crimes sexuais no fundamento material-valorativo

conteuacutedo e lugar sistemaacutetico das incriminaccedilotildees que a eles respeitam Na versatildeo

inicial do Coacutedigo Penal de 1982 estes crimes ainda figuravam no Tiacutetulo III

(ldquoDos crimes contra interesses e valores da vida em sociedaderdquo) e dentro dele

no Capiacutetulo I sob a epiacutegrafe ldquoDos crimes contra os fundamentos eacutetico-sociais

da vida em sociedaderdquo Com a revisatildeo de 1995 tais crimes passaram a ser

perspetivados como ldquocrimes contra a liberdade e autodeterminaccedilatildeo sexualrdquo

das viacutetimas como consta da designaccedilatildeo do Capiacutetulo V do Tiacutetulo respeitante

aos crimes contra as pessoas A mudanccedila natildeo eacute apenas de nome mas de toda

a axiologia imanente na identificaccedilatildeo dos bens protegidos a tutela eacute recentrada

na pessoa tendo como objeto os bens constitutivos e expressivos da sua

personalidade na aacuterea do comportamento sexual em vez de estar direcionada

como ateacute aiacute para valores de ordenaccedilatildeo social de acordo com o padratildeo dos

ldquobons costumesrdquo

5 No setor que especialmente diz respeito ao tema em anaacutelise ndash o das

relaccedilotildees interprivadas pois eacute este o campo de exerciacutecio dos direitos de

personalidade em sentido proacuteprio teacutecnico-juriacutedico minus tambeacutem aiacute teve sensiacutevel

impacto e influxo conformador a previsatildeo constitucional de direitos

liberdades e garantias pessoais como direitos fundamentais Para aleacutem de fator

de aglutinaccedilatildeo sisteacutemica ndash como jaacute acima se explanou ndash dessas previsotildees

resultou uma tutela mais extensa e mais intensa dos bens da personalidade

Mais extensa porque a niacutevel constitucional haacute uma maior e mais

atualizada especificaccedilatildeo dos bens de personalidade garantidos A enumeraccedilatildeo

que o Coacutedigo Civil conteacutem dos concretos modos de ser em que a personalidade

se projeta eacute parca e algo desatualizada Basta atentar em que dos dez preceitos

atinentes a particulares objetos de tutela (artigos 72ordm a 81ordm) quatro referem-

se a cartas e outros escritos Haacute de convir-se que num juiacutezo atual este acircmbito

normativo de proteccedilatildeo incide sobre uma dimensatildeo da personalidade em

progressiva perda de significado pessoal e social natildeo se justificando este

detalhe regulador Em contrapartida satildeo silenciadas dimensotildees hoje expostas

a riscos seacuterios de accedilatildeo lesiva como por exemplo em toda a aacuterea de utilizaccedilatildeo

de meios informaacuteticos e das tecnologias de informaccedilatildeo e comunicaccedilatildeo

Eacute certo que esta maior extensatildeo das previsotildees constitucionais natildeo deve

ser sobrevalorizada pois natildeo nos podemos esquecer que o Coacutedigo Civil

conteacutem uma claacuteusula geral de tutela (artigo 70ordm) que funcionando como

ldquonorma de recolhardquo (Anfangsvorschrift) permite ldquocaptarrdquo normativamente

como objeto de proteccedilatildeo aspetos da personalidade natildeo especificamente

regulados

260

Mas justamente a consagraccedilatildeo na Constituiccedilatildeo de um cataacutelogo de

direitos pessoais que vai para aleacutem do cataacutelogo dos direitos de personalidade

constante da legislaccedilatildeo civil deu um impulso concretizador agravequela claacuteusula

geral contribuindo para uma densificaccedilatildeo consistente do seu alcance E a

progressiva interiorizaccedilatildeo pela generalidade dos operadores judiciaacuterios de

uma ldquocultura de constitucionalidaderdquo de que fazem destacadamente parte as

opccedilotildees de valor expressivamente manifestadas nesses direitos fundamentais

estimulou a efetiva aplicaccedilatildeo de todos os instrumentos de tutela da pessoa O

notoacuterio enriquecimento da jurisprudecircncia civiliacutestica nesta mateacuteria a partir da

deacutecada de oitenta do seacuteculo passado eacute testemunho disso mesmo

Satildeo expressamente consagrados para aleacutem do direito agrave vida e do

direito agrave integridade pessoal sob a epiacutegrafe ldquooutros direitos pessoaisrdquo (artigo

26ordm) e para referir apenas os que tecircm expressatildeo dominante na esfera privada

os direitos agrave identidade pessoal ao desenvolvimento da personalidade

(introduzido na revisatildeo de 1997) agrave capacidade civil (resultante da 1ordf revisatildeo

de 1982) ao bom nome e reputaccedilatildeo agrave imagem (introduzido igualmente na 1ordf

revisatildeo) agrave palavra (introduzido pela 2ordf revisatildeo de 1989) e agrave reserva da

intimidade da vida privada e familiar Neste quadrante normativo se insere

tambeacutem a tutela dos bens da pessoa que podem ser afetados pela utilizaccedilatildeo da

informaacutetica (artigo 35ordm) Em graus variados avulta neste bloco a defesa da

integridade dos bens inerentes agrave pessoa perante a potencial accedilatildeo agressiva dos

outros

Estamos aqui na aacuterea normativa de correspondecircncia direta entre os

objetos de direitos fundamentais e de direitos de personalidade Parcialmente

no caso dos direitos tambeacutem consagrados especificamente na esfera civiliacutestica

ndash o direito ao bom nome e reputaccedilatildeo (indiretamente pelo artigo 484ordm do

Coacutedigo Civil) agrave reserva da intimidade da vida privada e agrave imagem minus haacute uma

sobreposiccedilatildeo normativa praticamente total sem prejuiacutezo naturalmente de

enquanto direitos fundamentais estes direitos valerem tambeacutem contra o

Estado assim se fechando o ciacuterculo em todas as direccedilotildees de proteccedilatildeo da

pessoa De acircmbito muito heterogeacuteneo os direitos reconhecidos no artigo 26ordm

tecircm de comum o integrarem (com exclusatildeo do direito agrave cidadania) o nuacutecleo

ldquomais pessoalrdquo da personalidade se assim se pode dizer Estatildeo em causa

atributos pessoais em si mesmos em que tal como nos direitos de

personalidade haacute uma conexatildeo direta e exclusiva entre o ser da pessoa como

sujeito e a sua personalidade individual como objeto

Entre estes direitos tem lugar destacado o direito ao desenvolvimento

da personalidade ou como mais expressivamente o nomeia o artigo 2ordm da

Grundgesetz ao livre desenvolvimento da personalidade Pela amplitude e

indeterminaccedilatildeo do seu acircmbito de proteccedilatildeo este direito desempenha no plano

constitucional uma funccedilatildeo tuteladora de alcance geral idecircntica agrave que cabe agrave

261

previsatildeo do artigo 70ordm do Coacutedigo Civil Recolhendo a ideia baacutesica e fundante

de que a pessoa goza de autonomia na conformaccedilatildeo identitaacuteria da sua

personalidade (liberdade de formaccedilatildeo da personalidade) e de liberdade de

exteriorizaccedilatildeo dos seus modos de ser este direito eacute verdadeiramente um

ldquodireito matrizrdquo onde de forma mais ou menos direta vatildeo entroncar todas as

ramificaccedilotildees descentralizadas de tutela de concretos atributos da pessoa Nessa

medida o direito ao desenvolvimento da personalidade pode albergar os

direitos pessoais que natildeo obstante o detalhe regulador do capiacutetulo a eles

respeitante permaneccedilam inominados (por exemplo os direitos agrave

autodeterminaccedilatildeo corporal e agrave autodeterminaccedilatildeo sexual) E assim com a

constitucionalizaccedilatildeo do direito ao desenvolvimento da personalidade se

reforccedila no acircmbito dos direitos pessoais a abertura do sistema de direitos

fundamentais mesmo em face do disposto no artigo 16ordm nordm 1 pois por essa

via o reconhecimento de direitos de tal natureza natildeo tem que se cingir como

estabelece esta norma aos direitos ldquoconstantes das leis e das regras aplicaacuteveis

em direito internacionalrdquo

Mas a Constituiccedilatildeo natildeo se limitou a consagrar o direito ao

desenvolvimento da personalidade contendo tambeacutem a especiacutefica tutela de

muacuteltiplas formas de comportamento que o concretizam Para aleacutem do direito

de constituir famiacutelia e contrair matrimoacutenio (artigo 36ordm) estatildeo consagradas

liberdades em distintos campos de atuaccedilatildeo da pessoa liberdade de expressatildeo

e informaccedilatildeo (artigo 37ordm) de imprensa e meios de comunicaccedilatildeo social (artigo

38ordm) de consciecircncia de religiatildeo e de culto (artigo 41ordm) de criaccedilatildeo cultural

(artigo 42ordm) de aprender e ensinar (artigo 43ordm) de associaccedilatildeo (artigo 46ordm) de

escolha de profissatildeo e acesso agrave funccedilatildeo puacuteblica (artigo 47ordm)

Coenvolvendo nalguns casos dimensotildees institucionais em todas estas

previsotildees transparece a perspetiva de que a tutela da pessoa natildeo fica completa

sem a conformaccedilatildeo desse ponto de vista valorativo das esferas relacionais

onde a sua identidade se constroacutei e se afirma Estaacute em causa a liberdade de

cada um conduzir a sua existecircncia de acordo com aquilo que eacute (ou quer ser)

perseguindo os fins que almeja pelo modo que elegeu assim se realizando

como pessoa Protegido eacute o ser com os outros o agir humano no meio social

A maior abrangecircncia e intensidade da tutela resultante da transposiccedilatildeo

para a esfera das relaccedilotildees interprivadas dos direitos liberdades e garantias

pessoais revela-se com particular evidecircncia nos casos em que o objeto do

direito de personalidade soacute parcialmente cobre uma aacuterea de interesse relevante

para a tutela da pessoa O direito ao nome (artigo 72ordm da Coacutedigo Civil) fornece

um bom exemplo Assim identificado o objeto do direito com ele soacute se garante

a natildeo confundibilidade pessoal Mas abarcando essa componente o direito agrave

identidade pessoal (artigo 26ordm da CRP) eacute de conteuacutedo mais rico e

multifacetado garantindo que o titular possa conhecer e fazer valer a verdade

262

de todos os traccedilos da sua individualidade proacutepria incluindo das suas raiacutezes

geneacuteticas sociais e culturais Dele se extrai o direito ao conhecimento da

progenitura de que eacute instrumento qualificado a accedilatildeo de investigaccedilatildeo da

paternidade O paracircmetro valorativo deste direito incidiu sobre o regime desta

accedilatildeo em particular sobre o prazo-regra de propositura da accedilatildeo o qual na

redaccedilatildeo inicial do artigo 1817ordm nordm 1 do Coacutedigo Civil era de dois anos a

partir da maioridade Foi decidido que esse prazo representava uma restriccedilatildeo

inadmissiacutevel do conteuacutedo essencial dos direitos fundamentais agrave identidade

pessoal e a constituir famiacutelia o que levou a uma declaraccedilatildeo de

inconstitucionalidade com forccedila obrigatoacuteria geral pelo Acoacuterdatildeo nordm 232006

Na sequecircncia a Lei nordm 142009 alargou o referido prazo para dez anos

6 Concluiremos reiterando e reforccedilando uma ideia-forccedila de toda esta

comunicaccedilatildeo Olhar para os direitos da pessoa a partir da Constituiccedilatildeo faculta

uma compreensatildeo integrada e global do conjunto diversificado de

instrumentos de tutela Sendo certo que algumas previsotildees constitucionais

quanto aos direitos liberdades e garantias pessoais ultrapassam a aacuterea estrita

dos direitos de personalidade todas elas nos datildeo a niacutevel supraordenado o

enquadramento e a envolvecircncia normativa da proteccedilatildeo da pessoa integrada

comunitariamente em todas as aacutereas do seu viver multidimensional Para aleacutem

do enriquecimento da estrutura protetiva assim se ganha unidade de sentido e

coerecircncia valorativa que devem estar presentes nas muacuteltiplas especificaccedilotildees

sectorizadas ndash com tendecircncia a expandir-se do que eacute relevante manifestaccedilatildeo

a consagraccedilatildeo de direitos de personalidade no Coacutedigo de Trabalho desde a

versatildeo originaacuteria de 2003

263

A (ir)renunciabilidade dos direitos de personalidade

Benedita Mac Crorie

1 INTRODUCcedilAtildeO

O tema que hoje pretendemos tratar prende-se com uma das

caracteriacutesticas que eacute normalmente associada aos direitos de personalidade a

sua irrenunciabilidade

Os direitos de personalidade satildeo um conjunto de direitos subjectivos

que incidem sobre a proacutepria pessoa ou nas palavras de Carlos Alberto da Mota

Pinto sobre ldquoos vaacuterios modos de ser fiacutesicos ou moraisrdquo dessa

personalidade538 Trata-se de direitos gerais isto eacute de direitos de que satildeo

titulares todos os seres humanos e de direitos absolutos porque se lhes

contrapotildee uma obrigaccedilatildeo universal Eacute ainda entendimento dominante na

doutrina que estes direitos natildeo satildeo alienaacuteveis nem renunciaacuteveisrdquo podendo o

titular no entanto consentir em alguma medida na sua limitaccedilatildeo539

Vamos num primeiro momento tentar distinguir os dois conceitos em

anaacutelise a renuacutencia e a limitaccedilatildeo voluntaacuteria dos direitos de personalidade para

num segundo momento procurar dar uma resposta quanto ao papel que

desempenha ou que achamos que deve desempenhar o princiacutepio da dignidade

Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho 538 CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO Teoria Geral do Direito Civil 4ordf Ediccedilatildeo (por

ANTOacuteNIO PINTO MONTEIRO ndash PAULO MOTA PINTO) Coimbra Editora Coimbra

2005 p 208 539 Estes direitos exprimem o ldquorsquominimumrsquo necessaacuterio e imprescindiacutevelrdquo do conteuacutedo da

personalidade sendo por isso essenciais Nesse sentido ADRIANO DE CUPIS Os Direitos

de Personalidade Morais Editora Lisboa 1961 p 17 Ver mais desenvolvidamente

CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO Teoria Geral do Direito Civil cit pp 207 ss

JOSEacute CASTAN TOBENtildeAS Los Derechos de la Personalidad Instituto Editorial Reus

Madrid 1952 p 23 ORLANDO DE CARVALHO Teoria Geral do Direito Civil Sumaacuterios

Desenvolvidos Centelha Coimbra 1981 p 89 PAULO MOTA PINTO ldquoO direito agrave reserva

sobre a intimidade da vida privadardquo in Boletim da Faculdade de Direito Volume LXIX

Coimbra 1993 pp 482 e 483 RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA ldquoA Constituiccedilatildeo e

os direitos de personalidaderdquo ldquoA Constituiccedilatildeo e os direitos de personalidaderdquo in JORGE

MIRANDA (coor) Estudos sobre a Constituiccedilatildeo Livraria Petrony Lisboa 1978 pp 94 ndash

98 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA Direito das Pessoas Sumaacuterios Desenvolvidos das

Liccedilotildees ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito Associaccedilatildeo de Estudantes de

Direito da Universidade do Minho Braga 2008 pp 10 ndash 15

264

da pessoa humana na determinaccedilatildeo do alcance do poder de dispor sobre

direitos de personalidade e que eacute a questatildeo central da nossa intervenccedilatildeo

Finalmente vamos dedicar-nos agrave questatildeo da eventual necessidade de admitir

alguns desvios agraves regras civiliacutesticas relativas agrave declaraccedilatildeo negocial no que

concerne agrave declaraccedilatildeo de limitaccedilatildeo voluntaacuteria

A admissibilidade da renuacutencia aos direitos de personalidade natildeo pode

ser analisada agrave margem da problemaacutetica da renuacutencia a direitos fundamentais

uma vez que as normas de direito privado natildeo podem hoje estar desligadas da

sua relaccedilatildeo com a Constituiccedilatildeo tendo de se conformar com os princiacutepios

constitucionais e particularmente com os direitos fundamentais sem que com

isso queiramos evidentemente retirar autonomia ao direito privado Na

verdade nas palavras de Jorge Reis Novais as ldquonormas positivas que no

Direito ordinaacuterio admitem ou excluem a renuacutencia a direitos sobre bens

protegidos por normas de direitos fundamentais satildeo elas proacuteprias sindicaacuteveis

agrave luz da sua conformidade aos princiacutepios constitucionaisrdquo relativos a esta

mateacuteria540 Ora como vimos nas intervenccedilotildees anteriores haacute de facto uma

grande coincidecircncia entre as normas de direitos fundamentais e os direitos de

personalidade

2 OS CONCEITOS DE RENUacuteNCIA E DE LIMITACcedilAtildeO VOLUNTAacuteRIA

A distinccedilatildeo que se estabelece entre renuacutencia e limitaccedilatildeo voluntaacuteria

parece assentar na ideia de que a figura da renuacutencia implica a extinccedilatildeo de um

direito541 enquanto na limitaccedilatildeo voluntaacuteria estaraacute apenas em causa um

compromisso do indiviacuteduo de natildeo invocar temporariamente uma determinada

posiccedilatildeo juriacutedica tutelada por um direito de personalidade A questatildeo

terminoloacutegica tem relevacircncia precisamente porque tem consequecircncias quanto

agrave extensatildeo do poder de disposiccedilatildeo sendo que a propoacutesito da renuacutencia a direitos

fundamentais tambeacutem se discute se o termo renuacutencia eacute o mais adequado

540 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo in JORGE MIRANDA (org)

Perspectivas Constitucionais ndash Nos 20 anos da Constituiccedilatildeo Coimbra Editora Coimbra

1996 p 264 541 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo cit p 270 LUIacuteSA NETO

O Direito Fundamental agrave Disposiccedilatildeo sobre o Proacuteprio Corpo Coimbra Editora Coimbra

2004 p 371 Sobre a renuacutencia abdicativa e o seu efeito extintivo do direito ver mais

desenvolvidamente FRANCISCO MANUEL PEREIRA COELHO A Renuacutencia Abdicativa

no Direito Civil Coimbra Editora Coimbra 1995 ANA PRATA Dicionaacuterio Juriacutedico

Almedina Coimbra 1995 p 848

265

Gomes Canotilho considera por exemplo que natildeo pode haver

renuacutencia a direitos fundamentais mas apenas ldquolimitaccedilatildeo voluntaacuteria ao

exerciacutecio de alguns direitosrdquo542

Jorge Miranda por seu lado considera que por princiacutepio ningueacutem

pode renunciar a direitos fundamentais apenas se concebendo que o proacuteprio

titular deste ou daquele direito venha a estabelecer uma ldquoauto-restriccedilatildeordquo ou

ldquoauto-suspensatildeordquo para fins natildeo contraacuterios aos princiacutepios do Estado de Direito

democraacutetico543

A este propoacutesito tivemos jaacute oportunidade de nos pronunciar noutra

sede544 e consideraacutemos ser de seguir a perspectiva de Jorge Reis Novais que

defende a manutenccedilatildeo do conceito de renuacutencia para designar o poder de dispor

sobre posiccedilotildees juriacutedicas de direitos fundamentais Se delimitarmos agrave partida

este poder considerando que natildeo pode haver uma renuacutencia total a um direito

fundamental como um todo estamos a restringir esse poder que eacute tambeacutem

jusfundamentalmente protegido antes sequer de atentarmos nos limites dessa

mesma renuacutencia

Consequentemente estamos de acordo com o Autor na medida em que

considera que o conceito de renuacutencia deve tambeacutem abarcar pelo menos agrave

partida as situaccedilotildees de renuacutencia que impliquem a extinccedilatildeo do direito natildeo

fazendo sentido adoptar uma concepccedilatildeo restritiva a priori do conceito o que

implica que natildeo se devem excluir agrave partida situaccedilotildees de renuacutencia que

impliquem a extinccedilatildeo do direito545

Sendo esta a posiccedilatildeo que defendemos a propoacutesito da renuacutencia a direitos

fundamentais a primeira questatildeo que colocamos eacute a de saber se assumir de

uma forma absoluta a irrenunciabilidade dos direitos de personalidade natildeo seraacute

uma soluccedilatildeo demasiado restritiva e que natildeo se coaduna com a resposta que

nos parece ser de retirar do texto constitucional quanto agrave possibilidade de o

indiviacuteduo voluntariamente dispor das suas posiccedilotildees subjectivas de direitos

fundamentais perante terceiros

Apesar disso e pondo de parte a questatildeo terminoloacutegica tem-se

defendido que a irrenunciabilidade dos direitos de personalidade natildeo impede

542 JOSEacute JOAQUIM GOMES CANOTILHO Direito Constitucional e Teoria da

Constituiccedilatildeo 7ordf Ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2003 p 464 543 JORGE MIRANDA Manual de Direito Constitucional Tomo IV 4ordf Ediccedilatildeo Coimbra

Editora Coimbra 2008 pp 384 e 385 544 BENEDITA MAC CRORIE Os limites da renuacutencia a direitos fundamentais nas relaccedilotildees

entre particulares Almedina Coimbra 2013 545 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo cit pp 270 ndash 272

266

a relevacircncia do consentimento do lesado546 isto eacute admite-se a limitaccedilatildeo

voluntaacuteria destes direitos partindo da ideia de que os direitos de

personalidade enquanto direitos subjectivos se traduzem em ldquoposiccedilotildees de

liberdaderdquo reconhecidas ao seu beneficiaacuterio pelo que se devem considerar

disponiacuteveis547

Vamos entatildeo agora olhar para a segunda questatildeo que nos propusemos

tratar que eacute a de saber ateacute onde pode ir a limitaccedilatildeo voluntaacuteria a direitos de

personalidade particularmente atendendo ao papel a desempenhar pelo

princiacutepio da dignidade da pessoa humana nesta mateacuteria

No que diz respeito agrave limitaccedilatildeo voluntaacuteria ao exerciacutecio de direitos de

personalidade o nordm 1 do art 81ordm do CC determina que esta eacute nula quando

contrarie os princiacutepios da ordem puacuteblica548 pelo que antes do mais conveacutem

concretizar o conceito de ordem puacuteblica

Tem-se entendido por ordem puacuteblica mais uma vez nas palavras de

Carlos Alberto da Mota Pinto ldquoo conjunto de princiacutepios basilares de uma dada

ordem juriacutedica (hellip) que regulam interesses gerais e fundamentais da

colectividaderdquo549 e que pela importacircncia que assumem ldquodevem prevalecer

sobre as convenccedilotildees privadasrdquo550 Esta compreende nas palavras de Luiacutesa

Neto ldquoas normas que servem agrave realizaccedilatildeo e agrave protecccedilatildeo dos valores e bens

fundamentais para a vida em comunidade e que encontramos nomeadamente

546 ADRIANO DE CUPIS Os Direitos de Personalidade cit p 53 547 ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil Portuguecircs Vol I Parte

Geral Tomo III Almedina Coimbra 2004 p 107 548 HEINRICH EWALD HOumlRSTER A Parte Geral do Coacutedigo Civil Portuguecircs Teoria Geral

do Direito Civil Almedina Coimbra 2005 p 268 Considerando que no Direito Civil a

declaraccedilatildeo de limitaccedilatildeo voluntaacuteria pode ldquoser anulada ou objecto de uma declaraccedilatildeo de

nulidade quer com fundamento nas regras sobre incapacidade (hellip) quer (hellip) com fundamento

na sua ilicitude ou contrariedade agrave ordem puacuteblica ou aos bons costumes ver PAULO MOTA

PINTO ldquoA limitaccedilatildeo voluntaacuteria do direito agrave reserva sobre a intimidade da vida privadardquo in

JORGE DE FIGUEIREDO DIAS ndash IRINEU CABRAL BARRETO ndash TERESA PIZARRO

BELEZA ndash EDUARDO PAZ FERREIRA (orgs) Estudos em Homenagem a Cunha

Rodrigues Coimbra Editora 2001 p 54 ORLANDO CARVALHO Teoria Geral do Direito

Civil Sumaacuterios Desenvolvidos cit p 91 0 PIRES DE LIMA ndash ANTUNES VARELA

Coacutedigo Civil Anotado Vol I Coimbra Editora Coimbra 1987 pp 110 e 304 549 ANA PRATA Dicionaacuterio Juriacutedico cit p 707 550 CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO Teoria Geral do Direito Civil cit pp 557 e

558

267

na Constituiccedilatildeordquo551 Consequentemente o consentimento deve considerar-se

contraacuterio agrave ordem puacuteblica sempre que ofenda ldquoprinciacutepios constitucionaisrdquo552

Verifica-se de facto a tendecircncia de densificar os conceitos

indeterminados do direito civil como sejam os conceitos de ordem puacuteblica ou

bons costumes atraveacutes das disposiccedilotildees constitucionais Sendo que a

concretizaccedilatildeo dos bons costumes e da ordem puacuteblica se tem vindo a fazer

atraveacutes do recurso aos direitos fundamentais553 no fundo do que se trata eacute de

avaliar se a limitaccedilatildeo voluntaacuteria eacute conforme aos princiacutepios e regras

constitucionais Nesse sentido a ordem puacuteblica e os bons costumes podem

inclusivamente ser ldquofundamento para a disponibilidaderdquo554

Paulo Mota Pinto a propoacutesito da limitaccedilatildeo voluntaacuteria ao direito agrave

reserva da intimidade da vida privada defendeu que a invocaccedilatildeo dos bons

costumes e da ordem puacuteblica como limites ao consentimento natildeo poderaacute servir

551 LUIacuteSA NETO O Direito Fundamental agrave Disposiccedilatildeo sobre o Proacuteprio Corpo cit p 478

Ver tambeacutem PEDRO PAIS DE VASCONCELOS Teoria Geral de Direito Civil 5ordf Ediccedilatildeo

Almedina Coimbra 2008 p 591 552 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA Direito das Pessoas Sumaacuterios Desenvolvidos das

Liccedilotildees ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito cit p 61 HEINRICH EWALD

HOumlRSTER A Parte Geral do Coacutedigo Civil Portuguecircs Teoria Geral do Direito Civil cit p

523 553 Considerando que seguindo ldquouma perspectiva liberal-democraacutetica satildeo precisamente os

direitos fundamentais que constituem a essecircncia da proacutepria ideia de ordem puacuteblicardquo ver LUIS

MARIacuteA DIacuteEZ-PICAZO ldquoNota sobre la renuncia a los derechos fundamentalesrdquo in Persona

y Derecho nordm 45 2001 pp 133 e 134 FRANZ JUumlRGEN SAumlCKER Muumlnchener Kommentar

zum Buumlrgerlichen Gesetzbuch Vol I 3ordf Ediccedilatildeo Verlag C H Beck Muumlnchen 1993 p 1139

entende por sua vez que ldquoos direitos fundamentais satildeo um elemento especialmente

importante para a concretizaccedilatildeo dos bons costumes atraveacutes do ordenamento internordquo DIETER

MEDICUS Allgemeiner Teil des BGB 8ordf Ediccedilatildeo C F Muumlller Verlag Heidelberg 2002 p

269 defende que ldquoos valores da Constituiccedilatildeo sobretudo os direitos fundamentais tecircm efeitos

na validade de negoacutecios juriacutedicosrdquo ldquoatraveacutes da claacuteusula geral de bons costumesrdquo Tambeacutem

MANUEL ANTOacuteNIO CARNEIRO DA FRADA Teoria da Confianccedila e Responsabilidade

Civil Almedina Coimbra 2004 p 846 nota 940 faz referecircncia a um preenchimento da

claacuteusula dos bons costumesrdquo agrave luz da protecccedilatildeo constitucional dos direitos fundamentaisrdquo e

ao facto de que vaacuterios princiacutepios juriacutedicos fundamentais obtecircm realizaccedilatildeo atraveacutes dela

Finalmente ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil Portuguecircs cit

pp 508 em relaccedilatildeo ao conceito de ordem puacuteblica entende que ldquosatildeo contraacuterios agrave ordem puacuteblica

negoacutecios que atinjam valores constitucionais importantesrdquo 554 LUIacuteSA NETO O Direito Fundamental agrave Disposiccedilatildeo sobre o Proacuteprio Corpo cit p 475

268

para uma pretensa protecccedilatildeo da pessoa contra si proacutepria ou para impor um

determinado ldquoconceito objectivo de lsquodignidade humanarsquordquo555

Ora estamos completamente de acordo com esta posiccedilatildeo que nos

remete para o grande tema deste coloacutequio o princiacutepio da dignidade da pessoa

humana e a sua relaccedilatildeo com o direito privado

3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E LIMITACcedilAtildeO VOLUNTAacuteRIA DE

DIREITOS DE PERSONALIDADE

Quanto agrave dignidade da pessoa humana enquanto limite agrave renuacutencia a

direitos fundamentais a questatildeo que em grande medida se discute eacute a de saber

se a definiccedilatildeo da dignidade depende essencialmente do entendimento que o

proacuteprio tem acerca do que eacute para si mais ou menos digno ou se o Estado pode

impor limites a essa autodefiniccedilatildeo Por conseguinte natildeo estaacute tanto em causa

apurar se o indiviacuteduo pode renunciar agrave dignidade mas antes ateacute que ponto lhe

cabe decidir o que eacute ou natildeo atentatoacuterio da sua dignidade556 Em virtude disso

os principais problemas quanto agrave determinaccedilatildeo deste princiacutepio levantam-se

ldquoquando a dignidade e o direito agrave autodeterminaccedilatildeo se confrontamrdquo557 Estas

consideraccedilotildees parecem-me aplicaacuteveis tambeacutem agrave limitaccedilatildeo voluntaacuteria de

direitos de personalidade

Entendemos que a dignidade eacute atribuiacuteda ao Homem porque este deve

ser concebido como um ldquoser autoacutenomo capaz de autodeterminaccedilatildeordquo558 Desse

555 Nesse sentido PAULO MOTA PINTO ldquoA limitaccedilatildeo voluntaacuteria do direito agrave reserva sobre

a intimidade da vida privadardquo cit p 547 JORGE MIRANDA Manual de Direito

Constitucional cit pp 173 e 174 tambeacutem nota 1 considera que ldquonatildeo raro na experiecircncia

histoacuterica a invocaccedilatildeo da lsquoordem puacuteblicarsquo tem sido feita como conceito (hellip) beligerante contra

a liberdade No entanto a ordem puacuteblica ldquosoacute vale enquanto permite a realizaccedilatildeo do bem

comum aferido pelo equiliacutebrio entre liberdade e autoridaderdquo 556 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo cit p 329 557 GERHARD SPIESS Der Grundrechtsverzicht Peter Lang Frankfurt am Main 1997 p

92 558 MARTIN NETTESHEIM ldquoDie Garantie der Menschenwurde zwischen metaphysicher

Uumlberhoumlhung und blossem Abwaumlgungstoposrdquo in AoumlR nordm 130 2005 pp 93 e 100 ss Este

Autor entende que aquilo que Duumlrig pretendia no seu comentaacuterio agrave Constituiccedilatildeo era a

ldquoformulaccedilatildeo de um princiacutepio fundamental eacutetico-estadualrdquo Ao dizer que o princiacutepio da

dignidade proiacutebe que se transforme a pessoa em objecto Durig ldquoformula uma regra eacutetico-

estadualrdquo que deve apenas vincular os titulares de poder puacuteblico A confusatildeo que se gerou a

partir daiacute deve-se ao facto de se ter transposto esta interpretaccedilatildeo do princiacutepio da dignidade

para as relaccedilotildees entre privados ou seja ter-se considerado que tambeacutem decorre do princiacutepio

da dignidade o dever do Estado de evitar que os indiviacuteduos nas suas relaccedilotildees privadas se

269

modo a dignidade ldquoeacute apenas algo indisponiacutevel para o Estado e natildeo jaacute para o

indiviacuteduordquo pelo que o dever de protecccedilatildeo que incumbe aos poderes puacuteblicos

vincula-os a ldquorespeitar e proteger a dignidaderdquo mas jaacute natildeo os obriga ldquoa forccedilar

comportamentos conformes agrave dignidaderdquo Uma tal obrigaccedilatildeo transformaria o

sentido deste princiacutepio no seu oposto559

Como jaacute tivemos oportunidade de referir noutros escritos560

defendemos que a dignidade deve servir essencialmente como fundamento da

liberdade e soacute excepcionalmente como fundamento de restriccedilotildees agrave liberdade

Para a concretizaccedilatildeo do princiacutepio da dignidade parece-nos relevante a

consagraccedilatildeo de um direito ao desenvolvimento da personalidade na CRP que

em situaccedilotildees de duacutevida deve ser entendido como estabelecendo ldquouma

presunccedilatildeo a favor da liberdaderdquo mais uma vez nas palavras de Paulo Mota

Pinto561

Assim o princiacutepio da dignidade deve ser interpretado em

conformidade com as normas constitucionais que conferem ao indiviacuteduo a

transformem em objectos Por outro lado este Autor defende que o conteuacutedo juriacutedico-

constitucional do princiacutepio da dignidade ldquonatildeo se esgota na fundamentaccedilatildeo de obrigaccedilotildees eacutetico-

estaduais fundamentaisrdquo A par com ldquouma dimensatildeo eacutetico-estadualrdquo existe tambeacutem ldquouma

dimensatildeo liberal e jusfundamental cujo objectivo eacute a defesa de lesotildees concretas da dignidade

humanardquo Na sua ldquodimensatildeo liberalrdquo o princiacutepio da dignidade garante a liberdade individual

bem como a capacidade do sujeito para realizar a sua personalidade Nesta dimensatildeo jaacute natildeo

seraacute no entanto de aplicar a foacutermula do objecto 559 DETLEF MERTEN ldquoDer Grundrechtsverzichtrdquo in HANS-DETLEF HORN Recht Im

Pluralismus Festschrift fuumlr Walter Schmitt Glaeser zum 70 Geburtstag Duncker und

Humblot Berlin 2003 p 64 560 BENEDITA MAC CRORIE ldquoO recurso ao princiacutepio da dignidade da pessoa humana na

jurisprudecircncia do Tribunal Constitucionalrdquo cit p 168 Considerando tambeacutem que ldquoa partir

do texto constitucional e da doutrina se pode dizer que a dignidade da pessoa humana (hellip)

aponta para o livre desenvolvimento da personalidaderdquo ver ISABEL MOREIRA A Soluccedilatildeo

dos Direitos Liberdades e Garantias e dos Direitos Econoacutemicos Sociais e Culturais na

Constituiccedilatildeo Portuguesa Almedina Coimbra 2007 p 128 Tambeacutem JOSEacute DE OLIVEIRA

ASCENSAtildeO ldquoA dignidade da pessoa humana e o fundamento dos direitos humanosrdquo in ROA

Ano 68 Vol I 2008 p 117 sustenta que a dignidade do homem se funda na ldquocapacidaderdquo e

no ldquoencargo de auto-construccedilatildeordquo em que se traduz o direito ao desenvolvimento da

personalidade 561 PAULO MOTA PINTO ldquoO direito ao livre desenvolvimento da personalidaderdquo cit pp

157 - 161

270

possibilidade de eleger o seu modo de vida com autodeterminaccedilatildeo e sem a

ingerecircncia estadual562

Tal natildeo significa no entanto que natildeo haja situaccedilotildees em que a vontade

individual tenha de ceder sem que tal origine necessariamente uma lesatildeo da

dignidade563 O princiacutepio da dignidade natildeo eacute forccedilosamente violado atraveacutes de

qualquer medida ou regulamentaccedilatildeo estatal que restrinja a liberdade

individual564 O que se retira entatildeo do princiacutepio da dignidade da pessoa

humana eacute que apenas se poderaacute limitar a autonomia individual quando haja

fins de interesse colectivo que o justifiquem565

Eacute entatildeo legiacutetima a protecccedilatildeo de terceiros ou da comunidade mas jaacute

natildeo o seratildeo em princiacutepio as restriccedilotildees da liberdade que visem proteger a

pessoa de si proacutepria ou que pretendam fazer face a uma concepccedilatildeo duvidosa

de dignidade uma vez que natildeo eacute funccedilatildeo do Estado corrigir os cidadatildeos566 Se

o princiacutepio da dignidade for entendido neste sentido soacute em casos extremos

poderaacute justificar restriccedilotildees da liberdade seja quando estamos a falar de

pessoas que natildeo tecircm capacidade de autodeterminaccedilatildeo ou quando possa estar

em causa a possibilidade de ldquoautodeterminaccedilatildeo futuraldquo567

562 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA Direito das Pessoas Sumaacuterios Desenvolvidos das

Liccedilotildees ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito cit pp 64 e 65 563 INGO WOLFGANG SARLET Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na

Constituiccedilatildeo Federal de 1988 4ordf ediccedilatildeo Livraria do Advogado Editora Porto Alegre 2006

p 135 entende que ldquopartindo-se de um conceito mais restrito de dignidaderdquo segundo o qual

ldquoapenas uma grave violaccedilatildeo da condiccedilatildeo da pessoardquo se traduz em violaccedilatildeo da dignidade todas

as outras condutas restritivas deixariam de ser reconhecidas ldquocomo verdadeiras restriccedilotildees agrave

dignidaderdquo passando a ser encaradas como ldquoofensas a outros direitos fundamentais

especiacuteficosrdquo

564 HANS HOFMANN ldquoArtikel 1rdquo in BRUNO SCHMIDT-BLEIBTREU ndash HANS

HOFMANN ndash AXEL HOPFAUF Kommentar zum Grundgesetz 11ordf Ediccedilatildeo Carl Heymanns

Verlag 2008 p 110 565 CARLA AMADO GOMES Defesa da sauacutede puacuteblica vs Liberdade individual Associaccedilatildeo

Acadeacutemica da Faculdade de Direito Lisboa 1999 p 21 566 ERNST BERNA ldquoDignidad humana y derechos de la personalidadrdquo cit p 144 567 JORGE REIS NOVAIS ldquoRenuacutencia a direitos fundamentaisrdquo cit pp 327 e 330 Segundo

o Autor soacute se verificaraacute uma violaccedilatildeo da dignidade quando o indiviacuteduo ldquoanua na destruiccedilatildeo

ou anulaccedilatildeo das condiccedilotildees da sua autodeterminaccedilatildeo futura ou aceite colocar-se numa situaccedilatildeo

que iniba a possibilidade de continuar a conformar a sua vida de acordo com planos pessoais

livremente concebidos Considerando tambeacutem que soacute em situaccedilotildees limite eacute que a dignidade

pode servir para restringir a liberdade ver ANSGAR OHLY ldquoVolenti non fit iniuriardquo ndash die

Einwilligung im Privatrecht Mohr Siebeck Tuumlbingen 2002 p 104

271

Por tudo o que vimos parece-nos que o princiacutepio da dignidade nas

palavras de Nuno Pinto Oliveira ldquonatildeo eacute e natildeo deve ser a foacutermula por que se

dificulta a institucionalizaccedilatildeo da liberdade natildeo eacute nem deve ser a foacutermula por

que se facilita a institucionalizaccedilatildeo das restriccedilotildees agrave liberdaderdquo pelo que ldquoo

oacutenus da argumentaccedilatildeo recai sempre ou deve recair sempre sobre quem propotildee

a restriccedilatildeo da liberdaderdquo568 Entende-se que ldquoa liberdade [se] justifica (hellip) a si

proacutepriardquo ao contraacuterio das restriccedilotildees agrave liberdade que apenas podem ter lugar

quando haja interesses puacuteblicos ou de terceiros que o justifiquem569

Assim na limitaccedilatildeo voluntaacuteria aos direitos de personalidade soacute

excepcionalmente o princiacutepio da dignidade da pessoa deveraacute servir para limitar

o poder de dispor sobre direitos de personalidade

Como jaacute referimos pensamos que a dignidade natildeo deve ser entendida

como um valor objectivo que se pode opor agrave proacutepria vontade do indiviacuteduo

De facto justificar a defesa da pessoa contra si proacutepria invocando o princiacutepio

da dignidade corresponderia a aplicar este princiacutepio contra a finalidade da sua

consagraccedilatildeo pois a dignidade traduz-se precisamente na possibilidade de o

indiviacuteduo escolher em liberdade o rumo que pretende seguir na sua vida

Nas situaccedilotildees em que o proacuteprio consente deveraacute entatildeo prevalecer a

sua vontade ressalvados os limites que jaacute referimos Eacute em primeira linha o

indiviacuteduo que deve determinar o que eacute ou natildeo violador da sua dignidade o que

leva a uma ldquonecessaacuteria relativizaccedilatildeo do alcance deste princiacutepio tambeacutem como

base para a limitaccedilatildeo do poder de disposiccedilatildeordquo570 sobre direitos de

personalidade

4 APLICABILIDADE DAS REGRAS CIVILIacuteSTICAS SOBRE A DECLARACcedilAtildeO

NEGOCIAL Aacute DECLARACcedilAtildeO DE LIMITACcedilAtildeO VOLUNTAacuteRIA

Finalmente gostariacuteamos ainda de terminar colocando algumas

questotildees a propoacutesito das regras que valem no direito civil quanto agrave declaraccedilatildeo

negocial em que se expressa o consentimento para a limitaccedilatildeo voluntaacuteria571

568 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA ldquoO princiacutepio da dignidade da pessoa humana e a

regulaccedilatildeo juriacutedica da bioeacuteticardquo in Lex Medicinae nordm15 2011 pp 32 e 33 569 NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA Direito das Pessoas Sumaacuterios Desenvolvidos das

Liccedilotildees ao Primeiro Ano do Curso de Licenciatura em Direito cit p 65 570 JOSEacute DE MELO ALEXANDRINO A Estruturaccedilatildeo do Sistema dos Direitos Liberdades

e Garantias na Constituiccedilatildeo Portuguesa Vol II Almedina Coimbra 2006 p 321 571 Agradecemos ao Doutor Nuno Pinto Oliveira a chamada de atenccedilatildeo para estas questotildees

bem como todos os ensinamentos e sugestotildees de leitura

272

Este consentimento estaacute sujeito ao regime geral previsto no Coacutedigo

Civil (CC) Assim sendo defende-se que ldquosatildeo aplicaacuteveis quer o princiacutepio da

liberdade declarativa (hellip) quer o princiacutepio da liberdade de formardquo Para aleacutem

disso a declaraccedilatildeo de consentimento para a limitaccedilatildeo voluntaacuteria pode ser

expressa ou taacutecita impondo-se ldquoque se preste especial atenccedilatildeo agrave verificaccedilatildeo

da integridade do consentimentordquo atendendo agrave ldquonatureza pessoal dos

interesses em causardquo572 Ainda que o consentimento seja vaacutelido ldquonatildeo poderaacute

ter lugar uma execuccedilatildeo em forma especiacuteficardquo e este pode sempre ldquoser

revogado com indemnizaccedilatildeo dos prejuiacutezos causados agraves expectativas legiacutetimas

da outra parterdquo573

De facto tem-se entendido que no consentimento para a limitaccedilatildeo

voluntaacuteria ldquoa tutela dos interesses do comeacutercio juriacutedico ou da contraparte natildeo

merece (hellip) a protecccedilatildeo que se daacute no domiacutenio dos negoacutecios juriacutedicos em geral

admitindo-se (hellip) a livre revogabilidade do consentimento a todo o tempo574

Finalmente tambeacutem se considera que a declaraccedilatildeo de limitaccedilatildeo voluntaacuteria

pode ldquoser anulada ou objecto de uma declaraccedilatildeo de nulidade (hellip) com

fundamento nas regras sobre (hellip) falta ou viacutecio de vontaderdquo575

Parece-nos que na limitaccedilatildeo voluntaacuteria se justificariam alguns desvios

agraves regras civilistas relativas agrave declaraccedilatildeo negocial uma vez que parece natildeo

dever bastar a aparecircncia da vontade para que se considere vaacutelida essa

declaraccedilatildeo

Tambeacutem quanto agrave interpretaccedilatildeo da declaraccedilatildeo negocial ldquoo objectivo

da soluccedilatildeo aceite na lei civil eacute [precisamente] o de proteger o declarataacuterio

conferindo agrave declaraccedilatildeo o sentido que seria razoaacutevel presumir em face do

comportamento do declarante e natildeo o sentido que este lhe quis efectivamente

572 PAULO MOTA PINTO ldquoA limitaccedilatildeo voluntaacuteria do direito agrave reserva sobre a intimidade da

vida privadardquo cit p 539 573 CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO Teoria Geral do Direito Civil cit p 216

PAULO MOTA PINTO ldquoA limitaccedilatildeo voluntaacuteria do direito agrave reserva sobre a intimidade da

vida privadardquo cit pp 552 ndash 554 FERNANDO PIRES DE LIMA ndash JOAtildeO ANTUNES

VARELA Coacutedigo Civil Anotado cit p 110 574 ANDREacute GONCcedilALO DIAS PEREIRA O Consentimento Informado na Relaccedilatildeo Meacutedico-

Paciente Estudo de Direito Civil Coimbra Editora Coimbra 2004 p 154 ANDREacute

GONCcedilALO DIAS PEREIRA ldquoA capacidade para consentir um novo ramo da capacidade

juriacutedicardquo in Comemoraccedilotildees dos 35 anos do Coacutedigo Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977

Vol II Coimbra Editora Coimbra 2006 pp 208 e 209 575 PAULO MOTA PINTO ldquoA limitaccedilatildeo voluntaacuteria do direito agrave reserva sobre a intimidade da

vida privadardquo cit p 540 FERNANDO PIRES DE LIMA ndash JOAtildeO ANTUNES VARELA

Coacutedigo Civil Anotado cit pp 110 e 304

273

atribuirrdquo consagrando-se uma doutrina tendencialmente ldquoobjectivistardquo576

Colocamos no entanto a questatildeo de saber se na interpretaccedilatildeo da declaraccedilatildeo de

limitaccedilatildeo voluntaacuteria natildeo faria sentido aplicar-se uma regra de interpretaccedilatildeo

mais subjectivista577

A especificidade da limitaccedilatildeo voluntaacuteria tambeacutem tem consequecircncias

no regime da falta e dos viacutecios da vontade o que talvez devesse acarretar

alguns desvios em relaccedilatildeo ao regime de Direito Civil no sentido de alargar as

possibilidades de invocaccedilatildeo da invalidade da declaraccedilatildeo578

576 FERNANDO PIRES DE LIMA ndash JOAtildeO ANTUNES VARELA Coacutedigo Civil Anotado

cit p 223 O art 236ordm do CC estabelece que ldquoo sentido decisivo da declaraccedilatildeo negocial eacute

aquele que seria apreendido por um destinataacuterio normal (hellip) Exceptuam-se apenas os casos

de natildeo poder ser imputaacutevel ao declarante razoavelmente aquele sentido (hellip) ou de o

declarataacuterio conhecer a vontade real do declaranterdquo 577 LETIacuteCIA DE CAMPOS VELHO MARTEL Direitos Fundamentais Indisponiacuteveis limites

e padrotildees do consentimento para a autolimitaccedilatildeo do direito agrave vida disponiacutevel in

httpworksbepresscomleticia_martel5 pp 254 ss seguindo a perspectiva de Deryck

Beyleveld e Roger Brownsword considera que a tendecircncia para uma tese subjectivista se

baseia na necessidade de evitar o risco de se utilizar a manifestaccedilatildeo de quem consente ldquocomo

uma maacutescara que impede a visualizaccedilatildeo da sua intenccedilatildeo (subjectiva)rdquo Para a Autora a

ldquotendecircnciardquo para o subjectivismo justifica-se particularmente na disposiccedilatildeo de posiccedilotildees

subjectivas de direitos fundamentais pessoais dada a delicadeza das relaccedilotildees em causa 578 Ilustrando essa diferenccedila por exemplo nos casos de erro na declaraccedilatildeo (art 247ordm CC) a

exigecircncia da essencialidade do erro para a anulabilidade da declaraccedilatildeo parece ser questionaacutevel

nas declaraccedilotildees de vontade de renuacutencia O mesmo se deveraacute aplicar aos casos de erro na

transmissatildeo (art 250ordm CC) e erro sobre a pessoa ou objecto do negoacutecio (art 251ordm CC) na

medida em que estas disposiccedilotildees remetem para o regime do erro obstaacuteculo ou seja erro na

declaraccedilatildeo Por outro lado quanto ao erro sobre os motivos (art 252ordm CC) este soacute eacute relevante

se as partes tiverem reconhecido por acordo a essencialidade do motivo Ora temos tambeacutem

duacutevidas que esse regime deva ser extensiacutevel agrave declaraccedilatildeo de renuacutencia MARTINA

DOROTHEE EPPELT Grundrechtsverzicht und Humangenetik cit p 47 considera no

entanto que por razotildees de seguranccedila juriacutedica um erro que se refira apenas a questotildees laterais

natildeo deve excluir a voluntariedade da renuacutencia Tambeacutem nos casos de dolo (art 253ordm CC)

temos duacutevidas que a distinccedilatildeo estabelecida nesta disposiccedilatildeo entre dolus bonus e dolus malus

seja relevante para a declaraccedilatildeo de renuacutencia Ainda nas situaccedilotildees de dolo de terceiro (art 254ordm

nordm 2) parece natildeo haver razotildees para proteger expectativas do destinataacuterio assim como quanto

agrave coacccedilatildeo moral (art 255ordm CC) deveraacute eventualmente considerar-se que qualquer das

situaccedilotildees enunciadas no artigo poderaacute influenciar a formaccedilatildeo da vontade Finalmente as

exigecircncias de gravidade do mal e fundamento do receio nos casos de coacccedilatildeo de terceiros

parecem natildeo fazer sentido para as situaccedilotildees de renuacutencia Sobre a falta e viacutecios da vontade ver

mais desenvolvidamente ANTOacuteNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil

Portuguecircs Vol I Parte Geral Tomo I cit pp 575 ss PEDRO PAIS DE VASCONCELOS

274

Haacute aqui claramente uma preocupaccedilatildeo com exigecircncias de certeza e

seguranccedila juriacutedicas que natildeo devem ter a mesma relevacircncia numa limitaccedilatildeo

voluntaacuteria579 pelo que a protecccedilatildeo plena do bem juriacutedico autonomia

subjacente a essa limitaccedilatildeo talvez devesse implicar o afastamento das regras

de Direito Civil dirigidas agrave protecccedilatildeo das expectativas da contraparte580

Para aleacutem disso quanto agrave capacidade de exerciacutecio de direitos tem sido

defendido particularmente por Andreacute Dias Pereira que deve ser de erigir

ldquoparalelamente agraves regras gerais do negoacutecio juriacutedicordquo um ldquoregime especiacutefico

para a limitaccedilatildeo de direitos de personalidaderdquo Tal perspectiva natildeo se coaduna

com a letra do art 123ordm do CC uma vez que esta norma consagra para

menores e interditos ldquouma incapacidade geral de exerciacuteciordquo que se aplica

quer a ldquodireitos patrimoniaisrdquo quer a ldquodireitos pessoaisrdquo Apesar disso a

proacutepria lei prevecirc excepccedilotildees em mateacuteria de casamento perfilhaccedilatildeo ou

testamento parecendo estabelecer uma distinccedilatildeo entre ldquoactos juriacutedicos

patrimoniaisrdquo e ldquoactos juriacutedicos pessoaisrdquo581 Assim coloca-se a questatildeo de

saber se essa diferenciaccedilatildeo natildeo deveria reflectir-se em termos mais gerais nas

regras vigentes quanto agrave capacidade para consentir

Teoria Geral de Direito Civil 5ordf Ediccedilatildeo Almedina Coimbra 2008 pp 653 ss CARLOS

ALBERTO DA MOTA PINTO Teoria Geral do Direito Civil cit pp 457 ss 579 ANDREacute GONCcedilALO DIAS PEREIRA O Consentimento Informado na Relaccedilatildeo Meacutedico-

Paciente Estudo de Direito Civil cit p 139 por exemplo no que se refere ao consentimento

para a praacutetica de actos meacutedicos considera que este se consubstancia num ldquosimples acto

juriacutedicordquo e nessa medida natildeo lhe satildeo aplicaacuteveis as normas da doutrina geral do negoacutecio

juriacutedico que ldquosatildeo inspiradas pela tutela da confianccedila dos declarataacuterios e dos interesses gerais

do traacuteficordquo 580 PAULO MOTA PINTO Declaraccedilatildeo Taacutecita e Comportamento Concludente no Negoacutecio

Juriacutedico cit pp 426 e 427 entende que ldquoa tutela das expectativasrdquo estaacute presente ldquona

dogmaacutetica juriacutedico-negocialrdquo Ainda que o regime do negoacutecio juriacutedico se inspire na ideia de

autodeterminaccedilatildeo eacute evidente a preocupaccedilatildeo do legislador com a ldquotutela da confianccedila

especificamente negocialrdquo 581 ANDREacute GONCcedilALO DIAS PEREIRA O Consentimento Informado na Relaccedilatildeo Meacutedico-

Paciente Estudo de Direito Civil cit pp 163 ndash 166 ANDREacute GONCcedilALO DIAS PEREIRA

ldquoA capacidade para consentir um novo ramo da capacidade juriacutedicardquo cit pp 216 ndash 218

275

Direitos (fundamentais) de personalidade

Luiacutesa Neto

A comunicaccedilatildeo apresentada correspondeu a sinopse de trabalho de

anotaccedilatildeo dos artigos relativos aos direitos de personalidade do Coacutedigo Civil

(anotaccedilotildees em projecto integrado na linha de investigaccedilatildeo Dimensatildeo

Econoacutemica e Social do Direito Privado do CEDIS da Faculdade de Direito da

Universidade Nova de Lisboa no prelo e a publicar ateacute final de 2016 e que

por razotildees editoriais aqui natildeo se apresentam em forma completa) O iter das

referidas anotaccedilotildees pretende realccedilar o distinguo entre direitos fundamentais

com locus constitucional e os direitos de personalidade A previsatildeo destes

uacuteltimos ndash sem alteraccedilotildees desde 1966 ndash reclama hoje uma interpretaccedilatildeo

actualista que integre os desafios de acomodaccedilatildeo dogmaacutetica mais recentes dos

direitos fundamentais

Assim e nestes termos foram os seguintes os passos salientados aqui

apenas apresentados de forma toacutepica

1 Se a teoria geral dos direitos fundamentais eacute uma teoria dos direitos

fundamentais positivados na Constituiccedilatildeo tais princiacutepios constitucionais satildeo

imperativos de otimizaccedilatildeo Ora se eacute verdade que eacute a lei que se deve mover no

acircmbito dos direitos fundamentais e natildeo o inverso mesmo sem afirmar que o

coacutedigo civil seja nesta parte substancialmente constitucional satildeo os direitos

fundamentais que fornecem um padratildeo de afericcedilatildeo para a lei ordinaacuteria e natildeo o

contraacuterio A lei ordinaacuteria haacute de mover-se no quadro e no acircmbito dos direitos

fundamentais previamente previstos na constituiccedilatildeo dirigente

2 Assim a irradiaccedilatildeo das normas constitucionais de 1976 impotildee

porventura repensar os direitos de personalidade jaacute antes reconhecidos no

Coacutedigo Civil atendendo aliaacutes agrave declarada eficaacutecia vertical e horizontal e

aplicabilidade direta ditada pelo nordm1 do artigo 18ordm da Constituiccedilatildeo para os

direitos liberdades e garantias ndash e para os direitos fundamentais se adotarmos

a teoria da dogmaacutetica unitaacuteria

3 Pensamos que se justifica uma maior articulaccedilatildeo entre esta mateacuteria

e os direitos fundamentais Por um lado protegem-se no Coacutedigo Civil direitos

como cartas missivas confidenciais eou pseudoacutenimo e minimizam-se (ou

remetem-se para o direito geral da personalidade) aspetos muito mais

Professora Associada da Faculdade de Direito da Universidade do Porto

276

relevantes dessa mesma personalidade Por outro lado bem mais relevante

para a equaccedilatildeo social atual e como se acentuaraacute vg quanto agrave previsatildeo dos

artigos 69ordm e 80ordm e 81ordm a correta destrinccedila entre renuacutencia autolimitaccedilatildeo e

consentimento deve ser trazida agrave luz da discussatildeo especialmente a propoacutesito

das denominadas vagas de consentimento em que a permissatildeo de lesatildeo eacute dada

genericamente por determinado circunstancialismo histoacuterico e social

4 Uma das mateacuterias em que mais releva convocar os indirizzos

constitucionais aplicaacuteveis diz respeito agrave das situaccedilotildees de colisatildeo ndash confronto

entre um direito e um bem da sociedade ou do Estado ndash ou conflito ndash em que

se embatem duas posiccedilotildees juriacutedicas subjetivas de titulares diversos Recorde-

se que haacute muito jaacute se abandonou um criteacuterio hieraacuterquico de soluccedilatildeo de

conflitos e colisotildees o referido criteacuterio da concordacircncia praacutetica incide sobre o

tipo e intensidade da lesatildeo em causa que pode muitas vezes ser miacutenima

ancorado fortemente no princiacutepio da proporcionalidade nas suas trecircs vertentes

necessidade adequaccedilatildeo e proibiccedilatildeo do excesso Acresce que as restriccedilotildees natildeo

satildeo um fim em si mesmo ndash servem um propoacutesito que eacute a resoluccedilatildeo de um

conflito ou a resoluccedilatildeo de uma colisatildeo Assim ante o proacuteprio conflito de

direitos ndash tambeacutem previsto no artigo 335ordm do Coacutedigo Civil - deve ter-se em

conta o conteuacutedo essencial de cada um deles e tratar de buscar a sua

coordenaccedilatildeo evitando que um elimine o outro porque a congruecircncia e a

completude satildeo elementos essenciais do ordenamento juriacutedico haveraacute entatildeo

prevalecircncia mas de iacutendole casuiacutestica e concreta de uns direitos sobre os outros

e que atenda ainda ao tipo da lesatildeo

277

Tomando a seacuterio o personalismo eacutetico

Nuno Manuel Pinto Oliveira

I

1 Larenz colocou o termo personalismo eacutetico no centro do discurso

sobre o direito privado e em particular sobre o direito civil

laquoPor traacutes do Coacutedigo civil [alematildeo] por traacutes dos seus conceitos

fundamentais dos seus princiacutepios e das suas valoraccedilotildees est[aria] o

personalismo eacuteticoraquo582

Enquanto princiacutepio filosoacutefico ele estaria (ainda) por traacutes do sistema de

direito civil enquanto princiacutepio juriacutedico estaria (jaacute) por cima do sistema de

direito civil O personalismo eacutetico positivar-se-ia atraveacutes do princiacutepio

(constitucional) da dignidade da pessoa humana Larenz diz p ex que ldquo[o]

personalismo eacutetico com o reconhecimento da pessoa e da sua dignidade eacute

hoje atraveacutes do art 1ordm da Constituiccedilatildeo alematilde o princiacutepio mais alto (oberstes

Prinzip) do sistema juriacutedico considerado no seu conjuntordquo583 O personalismo

eacutetico seria a face filosoacutefica do princiacutepio de dignidade da pessoa humana e o

princiacutepio de dignidade da pessoa humana seria a face juriacutedica do personalismo

eacutetico

O presente texto actualiza e em alguns aspectos desenvolve os argumentos deduzidos em

Nuno Manuel Pinto Oliveira ldquoOs princiacutepios de um lsquopersonalismo eacuteticorsquo como projecto de

lsquomaterializaccedilatildeorsquo do direito privadordquo in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Joseacute

Lebre de Freitas Coimbra Editora Coimbra 2013 Professor da Escola de Direito da Universidade do Minho 582 Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts 9ordf ed C H Beck

Munchen 2004 paacuteg 21 ldquoHinter dem BGB seiner Grundbegriffen und seinen grundlegenden

Wertungen steht der ethische Personalismus als Menschenbild den seine Verfasser ohne es

ausdruumlcklich auszusprechen als selbstverstaumlndlich vorausgesetzt habenrdquo 583 Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts cit paacuteg 22

278

II

2 Os contributos para a (re)construccedilatildeo do conceito de personalismo

eacutetico compreenderiam designadamente a filosofia de Kant584 e de Hegel585

Larenz sugere que o princiacutepio fundamental da filosofia do direito de Kant mdash

ldquocada ser humano tem um direito subjectivo a que todos os outros o respeitem

e correspondentemente tem um dever [juriacutedico] de respeito por todos os

outrosrdquo mdash corresponde a um princiacutepio fundamental da filosofia do direito de

584 Sobre a filosofia de Kant em geral vide p ex Alexandre Fradique Morujatildeo ldquoKantrdquo in

Logos Enciclopeacutedia luso-brasileira de filosofia vol 3 Verbo Lisboa 1991 cols 110-144

Simon Blackburn ldquoKantrdquo e ldquoImperativo categoacuterico hipoteacuteticordquo in Dicionaacuterio de filosofia

Gradiva Lisboa 1997 paacutegs 241-243 e 223-24 respectivamente Bertrand Russell History

of Western Philosophy and Its Connection with Political and Social Circumstances from the

Earliest Times to the Present Day George Allen and Son London 1946 paacutegs 728-745

Anthony Kenny Histoacuteria concisa da filosofia ocidental Temas amp Debates Lisboa 1999

paacutegs 325-348 sobre a filosofia do direito de Kant em particular vide Giorgio del Vecchio

Liccedilotildees de filosofia do direito 5ordf ed Armeacutenio Amado Coimbra 1979 paacutegs 126-142 Luiacutes

Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica 2ordf ed

Coimbra Editora Coimbra 1955 paacutegs 249-270 Arthur Ripstein ldquoKantrsquos Legal Philosophyrdquo

in IVR Encyclopaedia of Jurisprudence Legal Theory and Philosophy of Law in WWW

lthttpivr-encinfoindexphptitle=Kant27s_Legal_Philosophygt e com maior

desenvolvimento Ernest J Weinrib ldquoLaw as a Kantian Idea of Reasonrdquo in Columbia Law

Review vol 87 (1987) paacutegs 472-508 e Winfried Brugger ldquoGrundlinien der kantischen

Rechtsphilosophierdquo in Liberalismus Pluralismus Kommunitarismus mdash Studien zur

Legitimation des Grundgesetzes Nomos Baden-Baden 1999 paacutegs 143-161 585 Sobre a filosofia de Hegel em geral vide p ex Michel Renard ldquoHegelrdquo in Logos

Enciclopeacutedia luso-brasileira de filosofia vol 2 Verbo Lisboa 1990 cols 1026-1046 Simon

Blackburn ldquoHegelrdquo in Dicionaacuterio de filosofia cit paacutegs 199-200 Bertrand Russell History

of Western Philosophy cit paacutegs 758-773 Anthony Kenny Histoacuteria concisa da filosofia

ocidental cit paacutegs 350-355 Edward Caird Hegel J B Lippicott Company Philadelphia

1883 Raymond Plant Hegel George Allen amp Unwin 1973 Charles Taylor Hegel

Cambridge University Press Cambridge 1975 Peter Singer Hegel A Very Short

Introduction Oxford University Press Oxford 1983 sobre a filosofia do direito de Hegel em

particular vide Giorgio del Vecchio Liccedilotildees de filosofia do direito cit paacutegs 151-157 Luiacutes

Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica cit paacutegs 279-

301 Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of Right Routledge London New York

2002 Thom Brooks Hegelrsquos Political Philosophy A Systematic Reading of the Philosophy

of Right Edinburgh University Press Edinburgh 2007 Robert Pippin Otfried Houmlffe

(coord) Hegel on Ethics and Politics Cambridge University Press Cambridge 2004 Benno

Zabel ldquoHegel Georg Wilhelm Friedrichrdquo in EZR mdash Enzyklopaumldie zur Rechtsphilosophie

in lthttpwwwenzyklopaedie-

rechtsphilosophienetJoomlaindexphpoption=com_joomlawikiampItemid=98gt

279

Hegel mdash ldquosecirc uma pessoa e respeita os outros como pessoasrdquo586 Entre as duas

foacutermulas haveria soacute uma diferenccedila de palavras587 a foacutermula de Kant seria

mais analiacutetica e a foacutermula de Hegel seria mais sinteacutetica588 589

3 Interpretando-se a filosofia do direito de Hegel como um

personalismo (eacutetico) disse-se p ex que os conceitos de ldquopessoardquo e de

ldquopersonalidaderdquo de Hegel podem e porventura devem considerar-se como um

indiacutecio do desenvolvimento cultural da Europa590 mdash que ldquo[a] siacutentese pessoa

ser humano susceptiacutevel de acompanhar o desenvolvimento liberal obteve uma

foacutermula de excelecircncia em Hegelrdquo591 que todo o sistema juriacutedico pode e

porventura deve considerar-se um desenvolvimento do imperativo do

ldquopressupostordquo ou do ldquopostuladordquo de Hegel592 ou que atraveacutes da ldquofoacutermula de

586 Georg Wilhelm Friedrich Hegel Princiacutepios de filosofia do direito (traduccedilatildeo portuguesa de

Grundlinien der Philosophie des Rechts) Martins Fontes Satildeo Paulo 1997 paacuteg 40 (sect 36) 587 Na Allgemeiner Teil Larenz daacute aparentemente (alguma) prioridade agrave foacutermula de Kant o

pensamento de Kant eacute tratado com maior e o pensamento de Hegel com menor

desenvolvimento no Richtiges Recht natildeo lhe daacute prioridade alguma as foacutermulas de Kant e de

Hegel seriam ldquouma traduccedilatildeo para a linguagem da sua eacutetica ou da sua moral de umas

consideraccedilotildees genuinamente cristatildes e das consequecircncias que daiacute decorrem para o direitordquo natildeo

devendo dar-se prioridade a nenhuma [cf Derecho justo Fundamento de eacutetica juriacutedica

(traduccedilatildeo espanhola de Richtiges Recht Grundzuumlge einer Rechtsethik) Civitas Madrid

1985 paacuteg 58) 588 Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts cit paacuteg 22 sendo

mais sinteacutetica a foacutermula de Hegel seria mais impressiva 589 Sobre o significado das filosofias de Kant e de Hegel no contexto da histoacuteria da filosofia

do seacuteculo XIX (e do seacuteculo XX) vide p ex Louis Millet ldquoLrsquoeacutevolution de la philosophie mdash

La philosophie en Europerdquo in Histoire [du deacuteveloppement culturel et scientifique] de

lrsquoHumaniteacute Robert Laffont UNESCO Paris 1969 paacutegs 583-620 590 Horst Ehmann ldquoDer Begriff des Allgemeinen Persoumlnlichkeitsrechts als Grundrecht und als

absolut-subjektives Rechtrdquo in Festschift fuumlr Georgiades 2006 paacutegs 113 ss consultado

atraveacutes de WWW lt httpwwwjusmeumdeuploadsdocumentsapr-georgpdf gt ldquoDieser

Persoumlnlichkeitsbegriff Hegels kann als eine aus der Wesensschau unserer europaumlischen

Kulturentwicklung gewonnene Vorstellung des Wertes der Persoumlnlichkeit und als Grundlage

von Art 1 und 2 GG und der gesamten sonstigen Rechtsordnung verstanden werden ist aber

weder identisch mit dem APR [allgemeinen Persoumllichkeitsrecht]-Grundrecht noch mit dem

buumlrgerlich-rechtlichen APR [allgemeinen Persoumllichkeitsrecht]rdquo 591 Antoacutenio Menezes Cordeiro Tratado de direito civil portuguecircs vol I mdash Parte geral tomo

III mdash Pessoas Livraria Almedina Coimbra 2004 paacuteg 19 592 Horst Ehmann ldquoDas Allgemeine Persoumlnlichkeitsrecht mdash Zur Transformation

unmoralischer in unerlaubte Handlungenrdquo in 50 Jahre Bundesgerichtshof - Festgabe aus der

Wissensschaft vol I C H Beck Muumlnchen 2000 paacutegs 613 ss consultado atraveacutes de

280

excelecircnciardquo obtida em Hegel a ldquosiacutentese pessoa ser humanordquo se assumiu

ldquocomo fonte da proacutepria juridicidaderdquo593 Ora concorde-se ou natildeo com as

criacuteticas de um Russell594 ou de um Popper595 agrave filosofia de Hegel596 a

aproximaccedilatildeo entre Kant e Hegel eacute pelo menos duvidosa

4 O princiacutepio ldquosecirc uma pessoa e respeita os outros como pessoasrdquo deve

contextualizar-se Os Princiacutepios de filosofia do direito relacionam-no

exclusivamente com o direito abstracto e por conseguinte formal

ldquoEacute a personalidade que principalmente conteacutem a capacidade do

direito e constitui o fundamento (ele mesmo abstrato) do direito

abstrato por conseguinte formal O imperativo do direito eacute portanto

secirc uma pessoa e respeita os outros como pessoasrdquo597

Ora o sistema de Hegel distingue trecircs momentos na ldquorealizaccedilatildeo efectiva

da liberdaderdquo598 o direito abstracto a moralidade subjectiva e a moralidade

objectiva599 O direito abstracto seria o primeiro momento a moralidade

subjectiva o segundo e a moralidade objectiva o terceiro mdash como primeiro

momento o direito abstracto seria a tese como segundo momento a

moralidade subjectiva seria a antiacutetese e como terceiro momento a moralidade

WWW lthttpwwwjusmeumdeuploadsdocumentsfg-50bghpdfgt ldquoDie gesamte

Rechtsordnung kann freilich verstanden werden als eine Entwicke- lung dieses Hegelrsquoschen

Postulatsrdquo 593 Antoacutenio Menezes Cordeiro tratado de direito civil portuguecircs vol I mdash Parte geral tomo

III mdash Pessoas cit paacuteg 19 594 Bertrand Russell History of Western Philosophy cit paacutegs 769-773 mdash concluindo com a

afirmaccedilatildeo de que a filosofia de Hegel ilustra uma ldquoimportante verdaderdquo ldquothe worse your logic

the more interesting the consequences to which it gives riserdquo 595 Karl R Popper A sociedade aberta e os seus inimigos vol II cit esp paacutegs 33-80 596 Contestando a interpretaccedilatildeo de Russell e sobretudo de Popper Plant escreve nem mais

nem menos que o seguinte ldquoConceived in ignorance of Hegels philosophical achievements

Poppers discusons of Hegel is a conjecture which has bad in the past and also receives in

the present work a firm rcfatation The refutation supplied in this book is however implicitmdash

to have explicitly challenged Popper at each point in his interpretation would have credited

bis work with more importance than it deservesrdquo (Raymond Plant Hegel George Allen amp

Unwin 1973 paacutegs 9-10) 597 Georg Wilhelm Friedrich Hegel Princiacutepios de filosofia do direito cit paacuteg 40 (sect 36) 598 Jean Hyppolite prefaacutecio a Georg Wilhelm Friedrich Hegel Principes de la philosophie du

droit cit paacuteg 9 599 Expondo sucintamente os trecircs momentos da (auto-)realizaccedilatildeo da liberdade vide Luiacutes

Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica cit paacutegs 287-

293

281

objectiva a siacutentese O processo de realizaccedilatildeo efectiva da liberdade implicaria

a supressatildeo do direito abstracto para que superando-o se realizasse a

moralidade subjectiva e sobretudo a moralidade objectiva mdash Se Hegel fala

do direito abstracto (do direito da ldquopessoardquo e da ldquopropriedaderdquo) eacute soacute para o

superar600

ldquoEm face do direito mais formal e portanto mais abstrato e mais

limitado o domiacutenio e a fase do espiacuterito em que os ulteriores

elementos contidos na ideia de liberdade [ou seja a ldquomoralidade

subjectivardquo e a ldquomoralidade objectivardquo] alcanccedilam a realidade

possuem um direito mais elevado porque mais concreto mais rico e

mais verdadeiramente universalrdquo601

O indiviacuteduo soacute poderia realizar-se integrando-se na sociedade e no

Estado Hegel diz que ldquo[o] direito que os indiviacuteduos tecircm de estar

subjetivamente destinados agrave liberdade satisfaz-se quando eles pertencem a

uma realidade moral objetivardquo602 e em particular quando eles pertencem agrave

ldquorealidade moral objectivardquo Estado ldquoeacute numa tal objetividaderdquo e soacute numa tal

objectividade ldquoque reside a verdade da certeza [sic] da sua liberdade e na

realidade moral possuem eles realmente a sua essecircncia proacutepria a sua iacutentima

universalidaderdquo603

5 Entre o personalismo de Kant e o (pseudo-)personalismo de Hegel

haacute uma diferenccedila fundamental O personalismo eacutetico de Kant eacute um

personalismo final ou intransitivo o valor da pessoa humana por ser um valor

absoluto e incondicionado natildeo depende em nada da sua integraccedilatildeo na

sociedade (civil) ou no Estado o (pseudo-) personalismo eacutetico de Hegel eacute um

personalismo instrumental ou transitivo o valor da pessoa humana por ser

(soacute) um valor condicionado depende da sua integraccedilatildeo na sociedade (civil) e

no Estado

ldquoQuando se confunde o Estado com a sociedade civil destinando-o

agrave seguranccedila e proteccedilatildeo da propriedade e da liberdade pessoais o

interesse dos indiviacuteduos enquanto tais eacute o fim supremo para que se

reuacutenem do que resulta ser facultativo ser membro de um Estado

Orardquo diz Hegel ldquoeacute muito diferente a sua relaccedilatildeo com o indiviacuteduo

600 Cf Jean Hyppolite prefaacutecio a Georg Wilhelm Friedrich Hegel Principes de la philosophie

du droit cit paacuteg 20 ldquoIl a voulu en parler pour le deacutepasser comme une abstractionrdquo 601 Georg Wilhelm Friedrich Hegel Princiacutepios de filosofia do direito cit paacuteg 32 (sect 30) 602 Georg Wilhelm Friedrich Hegel Princiacutepios de filosofia do direito cit paacuteg 148 (sect 153) 603 Georg Wilhelm Friedrich Hegel Princiacutepios de filosofia do direito cit paacuteg 148 (sect 153)

282

Se o Estado eacute o espiacuterito objetivo entatildeo soacute como membro eacute que o

indiviacuteduo tem objetividade verdade e moralidaderdquo604

Os textos de Hegel quase sempre tatildeo obscuros satildeo agora

absolutamente claros605 O indiviacuteduo livre soacute poderia realizar-se ou pelo

menos soacute poderia realizar-se como indiviacuteduo livre dentro de uma

colectividade (de um Estado)606 Em cada um dos dois poacutelos no poacutelo do

indiviacuteduo e no poacutelo da colectividade (do Estado) o desenvolvimento completo

da liberdade faria com que se representassem a si proacuteprios como instrumentos

da razatildeo universal607 Entre a liberdade particular subjectiva de cada

indiviacuteduo e a liberdade universal objectiva da colectividade (do Estado)

haveria uma relaccedilatildeo de complementaridade a liberdade particular subjectiva

soacute poderia actualizar-se dentro de uma colectividade mdash dentro de um

Estadomdash por que se realizasse a liberdade universal objectiva (= dentro de

um Estado racional)

Hegel representa a colectividade institucionalizada no Estado como a

forma de vida colectiva por que se concretiza a liberdade608 sem o Estado o

indiviacuteduo natildeo poderia actualizar-se como pessoa sem o Estado a liberdade

particular ou subjectiva de cada indiviacuteduo natildeo poderia desenvolver-se com o

Estado e soacute como membro do Estado poderia o indiviacuteduo realizar-se como

604 Georg Wilhelm Friedrich Hegel Princiacutepios de filosofia do direito cit paacuteg 217 (sect 258) 605 Cf contudo Raymond Plant Hegel cit paacuteg 182 mdash ldquoCertainly the point is not

unambiguousrdquo mdash concordando com uma interpretaccedilatildeo do sect 258 em termos compatiacuteveis com

os princiacutepios estruturantes de um Estado constitucional democraacutetico e pluralista vide Michael

Quante ldquolsquoThe Personality of the Willrsquo as the Principle of Abstract Right An Analysis of sectsect

34-40 of Hegelrsquos Philosophy of Right in Terms of the Logical Structure of the Conceptrdquo in

Robert Pippin Otfried Houmlffe (coord) Hegel on Ethics and Politics Cambridge University

Press Cambridge 2004 paacutegs 81-100 e sobretudo Ludwig Siep ldquoConstitution Fundamental

Rights and Social Welfare in Hegelrsquos Philosophy of Rightrdquo in Robert Pippin Otfried Houmlffe

(coord) Hegel on Ethics and Politics Cambridge University Press Cambridge 2004 paacutegs

268-290 esp nas paacutegs 283-287 Siep reconhece em todo o caso que Hegel daacute um tratamento

desequilibrado ao perigo dos poderes puacuteblicos e dos poderes privados a protecccedilatildeo do

indiviacuteduo contra os poderes privados dos indiviacuteduos e dos grupos seria algo de essencial a

protecccedilatildeo do indiviacuteduo contra os poderes puacuteblicos e em particular contra o poder do Estado

natildeo o seria (paacuteg 287) 606 Charles Taylor Hegel cit paacuteg 120 ldquothe free individual cannor realize himself as free

outside the staterdquo 607 Taylor escreve ldquoas the vehicle of universal reasonrdquo (Hegel cit paacuteg 120) 608 Cf Charles Taylor Hegel cit paacuteg 120 ldquoFreedom is only real (wirklich) when expressed

in a form of life and since man cannot live on his own this must be a collectiva form of life

but the state is the collective form of life which is backed by the power of the community and

thus freedom must be embodied in the staterdquo

283

pessoa com o Estado e soacute como membro do Estado poderia a liberdade

particular ou subjectiva de cada indiviacuteduo desenvolver-se de forma a alcanccedilar

a sua objectividade ou universalidade reconciliando-se com a liberdade

universal do Estado

O conceito abstracto e formal de pessoa designando as ldquopessoas-

nuacutemerosrdquo609 deveria ser superado610 O direito abstracto e formal da pessoa

disciplinando ldquo[as] relaccedilotildees entre [hellip] pessoas-nuacutemeros com iguais

direitosrdquo611 deveria ser superado pelo direito (concreto e material) do

Estado612 mdash e por isso o princiacutepio fundamental do direito abstracto e formal

da pessoa consignado na foacutermula ldquosecirc uma pessoa e respeita os outros como

pessoasrdquo deveria ser superado pelos princiacutepios fundamentais do direito

(concreto e material) do Estado

Ou seja O aparente personalismo eacutetico de Hegel eacute em substacircncia um

supra-personalismo ou um trans-personalismo em que o valor particular e

transitivo de cada pessoa se realiza e soacute se realiza atraveacutes do valor geral e

intransitivo do Estado Em que o Estado e soacute o Estado eacute absolutamente fim-

de-si-mesmo (Selbstzweck)613

III

6 Em alguns textos mais antigos e mais recentes tem sido sugerida

uma re-leitura da filosofia do direito e do Estado de Hegel Em lugar de um

inimigo da liberdade mdash ou pelo menos um inimigo da liberdade particular e

subjectiva mdash Hegel seria um amigo da liberdade de toda a liberdade

609 Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica cit

paacuteg 289 610 Cf Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica

cit paacuteg 289 (nota nordm 1) ldquo[o] conceito juriacutedico puramente abstracto de pessoa sobre o qual

os romanos construiacuteram o direito privado eacute para Hegel algo de vazio e de despresiacutevelrdquo 611 Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica cit

paacuteg 289 612 Cf Jean Hyppolite prefaacutecio a Georg Wilhelm Friedrich Hegel Principes de la philosophie

du droit cit paacuteg 9 ldquoO direito da famiacutelia e o direito do Estado elevam-se muito por cima

deste direito abstracto que se formulou pela primeira vez mdash e sob uma forma imperfeita [hellip]

mdash no mundo romanordquo 613 Cf Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica

cit paacuteg 292 ldquoO Estado eacute [hellip] uma unidade eacutetica substancial e como tal absolutamente fim-

de-si mesmo (Selbstzweck) Aiacute a liberdade atingue a sua realizaccedilatildeo maacutexima cabendo-lhe por

isso o mais sagrado direito sobre todos os seus membros bem como a estes o mais sagrado

dever de neles se integraremrdquo

284

objectiva ou subjectiva particular ou universal A filosofia do direito de Hegel

seria em uacuteltima anaacutelise a filosofia do direito de uma sociedade livre de um

Estado democraacutetico mdash em uacuteltima anaacutelise a filosofia de um Estado de direito

liberal614 mdash Knowles chega a defender que deveriacuteamos representar Hegel

como o maior e o mais sofisticado dos filoacutesofos da liberdade (ldquoas the greatest

and most sophisticated of philosophers of freedomrdquo)615

O traccedilo mais original do pensamento de Hegel relacionar-se-ia

precisamente com a superaccedilatildeo de uma certa imagem do ser humano

Contestando a representaccedilatildeo do ser humano como um ser isolado Hegel

reconhececirc-lo-ia como ser social (como ser em relaccedilatildeo)

Cada ser humano representar-se-ia e deveria representar-se a si

proacuteprio simultaneamente na sua particularidade e na sua universalidade

Representar-se-ia a si proacuteprio por um lado na sua particularidade Cada ser

humano pensar-se-ia como indiviacuteduo mdash representar-se-ia como um ser

essencialmente diferente dos demais Representar-se-ia a si proacuteprio por outro

lado na sua universidalidade Cada ser humano pensar-se-ia como membro

de uma colectividade de uma comunidade mdash de uma sociedade Knowles fala

de uma ldquosociedade organicamente unificadardquo616

O sentido da teoria da integraccedilatildeo ou da teoria do reconhecimento por

integraccedilatildeo propugnada por Hegel aproximar-se-ia substancialmente do

sentido da teoria do reconhecimento preconizada por Fichte Knowles refere-

se agrave ideia central subjacente agrave teoria do reconhecimento como sendo a

seguinte a actualizaccedilatildeo da pessoa de que decorre o seu reconhecimento

como pessoa depende de um ldquoprocesso de socializaccedilatildeo ideal em que valores

como a autonomia ou a liberdade individuais tecircm um lugar importanterdquo617 Ora

Hegel refere-se explicitamente ao problema do reconhecimento

ldquoO ser humano procura o reconhecimentordquo mdash escreve Kojegraveve mdash

ldquoNatildeo se satisfaz em atribuir a si proacuteprio um valor Quer que esse

particular valor lhe seja atribuiacutedo por todos Quer que esse

614 Robert Pippin ldquoIntroductionrdquo in Robert Pippin Otfried Houmlffe (coord) Hegel on Ethics

and Politics Cambridge University Press Cambridge 2004 paacutegs 1-18 (2) ldquoultimate defense

of liberal democratic society itselfrdquo 615 Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of Right cit paacuteg 27 616 Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of Right cit paacuteg 79 617 Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of Right cit paacuteg 93

285

particular valor que o seu proacuteprio particular valor lhe seja

reconhecido por todos os seres humanos universalmenterdquo618

Como cada ser humano quer que o seu valor particular seja

reconhecido por todos os seres humanos universalmente o problema do

reconhecimento eacute um problema poliacutetico Os adeptos de uma interpretaccedilatildeo

democraacutetica ou quase democraacutetica da filosofia hegeliana alegam que a

racionalidade exige duas coisas ao Estado que se subordine ao direito 619 e

que subordinando-se ao direito trate cada ser humano como um sujeito (=

como um fim em si mesmo)620

7 Se a construccedilatildeo de Plant de Taylor ou de Knowles estivesse

correcta mdash se o Estado ideal racional de Hegel fosse (tivesse de ser) um

Estado capaz de proporcionar a cada um dos indiviacuteduos uma ldquoesfera externa

de liberdaderdquo621 mdash a integraccedilatildeo ou o reconhecimento por integraccedilatildeo deveria

representar-se como algo de condicionado

Em primeiro lugar o indiviacuteduo soacute teria de se integrar no Estado desde

que o Estado fosse um Estado constitucional democraacutetico e pluralista e em

segundo lugar o indiviacuteduo ainda que se integrasse no Estado teria direitos

contra o Estado teria direitos contra o direito mdash teria direitos contra o direito

do Estado622 Em tal contexto e soacute em tal contexto poderia falar-se com

propriedade de ldquoreivindicaccedilotildees formuladas ao direito pela personalidade

humanardquo623

618 Alexandre Kojegraveve Introduction to the Reading of Hegel Lectures on the Phenomenology

of Spirit Cornell University Press Ithaca London 1969 paacuteg 58 619 Charles Taylor Hegel cit paacuteg 375 ldquorationality [hellip] requires that the state be ruled by

lawrdquo 620 Charles Taylor Hegel cit paacuteg 375 ldquorationality requires that man be treated as a rational

subject as in Kantrsquos formulation an end and not only as meansrdquo 621 Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of Right cit paacuteg 112 622 Cf designamente Robert Pippin ldquoIntroductionrdquo cit paacuteg 8 mdash ao fazer uma siacutentese do

texto de Quante mdash ldquoHegel defends the normative claim that human beings are owed

treatment as lsquopersonsrsquo rights-bearing human beings just qua individuals (or lsquoabstractlyrsquo no

matter a personrsquos status background talents and so forth even while he presents the issue

so as to argue that there are numerous questions that the claim to lsquopersonrsquo status raises that

cannot be answered lsquoabstractlyrsquo but only by consideration of such person within a legal

systemrdquo 623 Expressatildeo de Orlando de Carvalho Teoria geral do direito civil Sumaacuterios desenvolvidos

para uso dos alunos do 2ordm ano (1ordf turma) do Curso Juriacutedico de 198081 Centelha Coimbra

1981 paacutegs 160-167 e 185

286

A relaccedilatildeo de reconhecimento entre o indiviacuteduo e o Estado seria uma

relaccedilatildeo de reconhecimento reciacuteproca O indiviacuteduo teria de reconhecer o

Estado mdash representando a sua autoridade como uma autoridade legiacutetima mdash

e o Estado teria de reconhecer o indiviacuteduo

O caso eacute que o conceito de direitos do ser humano contra o direito

contra o Estado ou contra o direito-do-Estado mdash o caso eacute que que o conceito

de reivindicaccedilotildees do ser humano contra o direito ou contra o Estado mdash eacute de

todo em todo estranho ao pensamento de Hegel

O movimento filosoacutefico de que Hegel faz parte (com Fichte ou

Schelling p ex) foi sobretudo um movimento uma tentativa de superaccedilatildeo

dos princiacutepios da autonomia e da liberdade subjectivas624 Knowles reconhece-

o

laquoa root-and-branch examination of the credentials of the authority

claimed by the state is not possible given our nature as citizensraquo625

Em Hegel a integraccedilatildeo ou o reconhecimento por integraccedilatildeo deve

representa-se como algo de incondicionado O indiacuteviacuteduo deve integrar-se no

Estado ainda que o Estado natildeo seja um Estado racional mdash ainda que natildeo seja

nem um Estado de direito nem um Estado constitucional nem tatildeo-pouco um

Estado democraacutetico

O indiviacuteduo tem de reconhecer o Estado mdash Se a histoacuteria do mundo eacute

simplesmente a histoacuteria do progresso da ideia de liberdade a ideia de

liberdade concretizar-se-ia na instituiccedilatildeo do Estado626 mdash O Estado natildeo tem

de forma nenhuma de reconhecer o indiviacuteduo

Em lugar de uma interpretaccedilatildeo do pensamento de Hegel Plant ou

Taylor como Quante Siep ou Knowles propotildeem uma correcccedilatildeo por via

interpretativa do pensamento de Hegel pode discutir-se se a correcccedilatildeo eacute ou

natildeo eacute necessaacuteria pode afirmar-se que sim que eacute necessaacuteria627 ou pode negar-

624 Cf designadamente Edward Caird Hegel J B Lippicott Company Philadelphia 1883

paacuteg 3 ldquo[Hegelrsquos movement] was above all an attempt to find a way through the modern

principles of subjective freedom [hellip] to a reconstruction of the intellectual and moral order on

which manrsquos life had been been based in the pastrdquo 625 Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of Right cit paacuteg 112 626 Cf designadamente Peter Singer Hegel A Very Short Introduction Oxford University

Press Oxford 1983 paacuteg 53 ldquothe universal law is embodied in the concrete institutions of the

staterdquo 627 Como admite Knowles ldquoHegel does not give sufficient recognition to the possibility that

the law might be an ass or worse a tyrantrdquo (Dudley Knowles Hegel and the Philosophy of

Right cit paacuteg 282)

287

se que o seja natildeo pode poreacutem discutir-se e sobretudo natildeo pode poreacutem negar-

se que eacute uma correcccedilatildeo628

IV

8 Larenz ao sugerir que o princiacutepio fundamental da filosofia do direito

de Kant ldquocada ser humano tem um direito subjectivo a que todos os outros o

respeitem e correspondentemente tem um dever [juriacutedico] de respeito por

todos os outrosrdquo corresponde a um princiacutepio fundamental da filosofia do

direito de Hegel mdash ldquosecirc uma pessoa e respeita os outros como pessoasrdquo mdash

pode estar a sugerir uma de trecircs coisas

- pode estar a sugerir por um lado que o personalismo eacutetico de Kant

deve ser suprimido para que possa ser superado

- pode estar a sugerir por outro lado que o supra-personalismo ou

trans-personalismo eacutetico de Hegel deve suprimido

- pode estar a sugerir por uacuteltimo que a alternativa Kant Hegel eacute uma

falsa alternativa629

O primeiro termo da alternativa significaria que o direito abstracto

orientado pelo princiacutepio do respeito pela pessoa pode e deve ldquoser

ultrapassado[] superado[] para desembocar[] numa realidade mais plenardquo630

o segundo que o direito abstracto natildeo deve ser ultrapassado e natildeo pode ser

superado ldquopara desembocar[] numa realidade mais plenardquo o terceiro que a

628 O Estado ideal racional de Hegel estaacute ainda demasiado proacuteximo de um Estado real pode

discutir-se se haacute ou natildeo diferenccedilas fundamentais entre a ideia de Estado de Hegel e a

realidade do Estado em que Hegel vivia [criticando a afirmaccedilatildeo de Popper de que a ideia de

Estado racional de Hegel era tatildeo-soacute uma abstracccedilatildeo da realidade do Estado natildeo-democraacutetico

e natildeo-racional emm que Hegel vivia mdash e criticando a afirmaccedilatildeo de Popper com a explicitaccedilatildeo

das diferenccedilas entre os dois Estados vide Peter Singer Hegel A Very Short Introduction cit

paacutegs 58-59] natildeo pode poreacutem discutir-se que ainda que haja diferenccedilas fundamentais entre

a ideia e a realidade Hegel natildeo era um dos liberais nem um precursor dos liberais no sentido

que hoje damos agrave palavra [cf designadamente Peter Singer Hegel A Very Short Introduction

cit paacuteg 59 ldquo[These differences] do not however make Hegel any kind of liberal in the modern

senserdquo] 629 Cf Karl-Otto Appel ldquoKant Hegel and the Contemporary Question Concerning the

Normative Foundation of Morality and Rightrdquo in Robert Pippin Otfried Houmlffe (coord)

Hegel on Ethics and Politics Cambridge University Press Cambridge 2004 paacutegs 49-77 630 Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do Direito e do Estado vol I mdash Parte histoacuterica cit

paacutegs 295-296

288

relaccedilatildeo entre o direito abstracto da pessoa e o direito (concreto) do Estado

deve representar-se como uma relaccedilatildeo de reconhecimento reciacuteproco

ldquoO homem soacute pode[ria] ser autenticamente satisfeito e a histoacuteria soacute

pode[ria] terminar pela formaccedilatildeo de uma Sociedade de um Estado

em que o valor estritamente particular pessoal individual de cada

um [fosse] reconhecido como tal na sua particularidade por todos

pela universalidade concretizada no Estado como tal e em que o

valor universal do estado [fosse] reconhecido e realizado pelo

particular como tal por todos os particularesrdquo631

O primeiro termo da alternativa a supressatildeo do personalismo de Kant

deve excluir-se Se o ldquoregresso a Hegelrdquo632 significasse a supressatildeo do

personalismo final e intransitivo de Kant teria de dar-se razatildeo (teria de dar-se

toda a razatildeo) a Popper mdash um renovado ldquoregresso a Hegelrdquo significaria

simplesmente uma renovada ldquoperversatildeordquo dos ideais de liberdade e de

igualdade entre todas as pessoas633

Excluiacutedo o primeiro termo da alternativa por ser insustentaacutevel Larenz

inclinar-se-ia seguramente para sustentar que a alternativa entre Kant e Hegel

eacute uma falsa alternativa634 O princiacutepio kantiano do respeito pelo ser humano

como fim em si mesmo soacute se actualizaria desde que as instituiccedilotildees da sociedade

e do Estado dessem a cada ser humano uma concreta capacidade e uma

concreta liberdade

Os termos de Larenz devem em todo o caso criticar-se ao

desvalorizarem como desvalorizam a diferenccedila entre os contributos de Kant

e de Hegel para a determinaccedilatildeo dos princiacutepios de um personalismo eacutetico Kant

propotildee-nos que a autoridade do Estado seja uma autoridade condicionada O

Estado fundar-se-ia na liberdade particular e subjectiva mdash na liberdade de

cada ser humano Entre o personalismo eacutetico e a filosofia praacutetica de Kant haacute

631 Alexandre Kojegraveve Introduction to the Reading of Hegel Lectures on the Phenomenology

of Spirit cit paacuteg 58 632 Cf Joseacute Lamego ldquoNoacutetula do tradutorrdquo cit paacutegs 701-707 mdash sobre as tendecircncias da

filosofia do direito e do Estado alematildes dos anos 20 e 30 633 Karl R Popper A sociedade aberta e os seus inimigos vol II cit esp paacuteg 52 mdash Popper

descreve a filosofia de Hegel como ldquoperversatildeo mesquinha de tudo quanto eacute decenterdquo e em

particular ldquoda razatildeo da liberdade da igualdade e das outras ideias da sociedade abertardquo 634 Cf Joseacute Lamego ldquoNoacutetula do tradutorrdquo cit paacuteg 712 ldquoA continuidade de uma atitude de

rejeiccedilatildeo de um pensamento formalista abstracto ao longo das mais distintas conjunturas

econoacutemicas e poliacuteticas [hellip] e a sua defesa de um pensamento metodoloacutegico lsquocompreensivorsquo e

orientado a valores permitiram a Larenz uma transiccedilatildeo do compromisso totalitaacuterio a um

personalismo eacutetico de pendor lsquoinstitucionalistarsquordquo

289

uma convergecircncia (quase) total Hegel propotildee-nos que a autoridade do Estado

seja uma autoridade incondicionada O Estado fundar-se-ia na liberdade

universal e objectiva Entre o personalismo eacutetico contemporatildeneo e a filosofia

do direito de Hegel haacute por isso uma convergecircncia parcial mdash haacute uma relaccedilatildeo

de semelhanccedila entre palavras natildeo entre ideias635 636

V

9 Larenz prossegue sugerindo expliacutecita ou implicitamente que haacute

uma relaccedilatildeo de continuidade entre o personalismo dos seacuteculos XVIII e XIX e

o personalismo do seacuteculo XX O personalismo eacutetico seria simultaneamente a

ldquoimagem de homemrdquo que os redactores do coacutedigo civil alematildeo pressupunham

que se adquirira mdash considerando-a como algo de ldquoevidenterdquo637 mdash e a ldquoimagem

do homemrdquo que os redactores da constituiccedilatildeo alematilde propunham que se

(re)adquirisse ao afirmarem que o princiacutepio da dignidade da pessoa humana eacute

o ldquoprinciacutepio mais alto (oberstes Prinzip) do sistema juriacutedico considerado no

seu conjuntordquo638

ldquoa imagem de homem [desenvolvida pelo personalismo eacutetico]

arranca do ser humano como uma pessoa determinada eacutetica e

racionalmente a qual segundo a sua natureza eacute colocada em

posiccedilatildeo de conformar livre e responsavelmente o seu ser e o seu

mundo no quadro das possibilidades que lhe satildeo dadas de pocircr a si

proacutepria os seus fins e de impor a si proacutepria os seus limitesrdquo639

635 Riley fala de uma relaccedilatildeo de tensatildeo entre o ldquoliberalismo kantianordquo e o ldquocomunitarismo

hegelianordquo mdash vide Stephan Riley ldquoHuman dignity comparative and conceptual debatesrdquo in

International Journal of Law in Context vol 6 (2010) paacutegs 117ndash138 (127) 636 Cf Karl-Otto Appel ldquoKant Hegel and the Contemporary Question Concerning the

Normative Foundation of Morality and Rightrdquo in Robert Pippin Otfried Houmlffe (coord)

Hegel on Ethics and Politics Cambridge University Press Cambridge 2004 paacutegs 49-77

(50) ldquoThe considerations that motivated the constantly repeated return from Hegel to Kant

were [hellip] justified in themselvesrdquo 637 Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts cit paacuteg 21

ldquoHinter dem BGB [hellip] steht der ethische Personalismus als Menschenbild der seine

Verfasser ohne es ausdruumlcklich auszusprechen als selbstverstaumlndlich vorausgesetzt habenrdquo 638 Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts cit paacuteg 22 639 Karl Larenz Manfred Wolf Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts cit paacuteg 21

ldquoDieser Menschenbild geht vom Menschen als ethisch un vernunftmaumlssig bestimmte Person

aus die ihrer Natur und Bestimmung nach darauf angelegt ist ihr Dasein und ihre Umwelt

im Rahmen der ihr jeweils gegeben Moumlglichkeiten frei und verantwortlich zu gestalten sich

Ziele zu setzen und selbst Schranken des Handelns aufzuerlegenrdquo

290

O texto esquece a relatividade histoacuterico-cultural dos conceitos de

dignidade e de liberdade Entre os dois personalismos haacute relaccedilotildees de

continuidade e relaccedilotildees de descontinuidade O personalismo dos seacuteculos

XVIII e XIX concretizado p ex na(s) filosofia(s) do direito de Kant

pressupotildee ldquoo recalcamento ou subestimaccedilatildeo do indiviacuteduo empiacuterico em

benefiacutecio de um eu racional e transcendental identificado com a Razatildeordquo640

afirmando o valor de uma liberdade racional nega o valor da liberdade

empiacuterica afirmando o valor de uma liberdade abstracta nega o valor da

liberdade concreta641 afirmando o valor de um sujeito racional nega o valor

do sujeito empiacuterico ou seja afirmando o valor de uma pessoa abstracta nega

o valor da pessoa concreta642 O personalismo dos seacuteculos XX e XXI esse

propotildee-se precisamente re-afirmar o valor da concreta e empiacuterica liberdade de

uma concreta e empiacuterica pessoa

10 O seacuteculo XX teraacute dado nas sugestivas palavras de Cabral de

Moncada ldquoum golpe de timatildeo no sentido da vida da vida real e concreta

profunda e rica de conteuacutedos voltando-se para uma existecircncia concreta

imediata e total e afastando-se daquilo a que podemos chamar o lsquoabstractismorsquo

dos seacuteculos XIX e XVIIIrdquo643

O paradigma de um homem abstracto racional foi aprofundado644

com a ldquodescida ao realrdquo mdash ao paradigma de um homem concreto ldquoem

situaccedilatildeordquo645 Entre os fundamentos histoacuterios e ideoloacutegicos mdash entre os

fundamentos eacuteticos e morais mdash dos sistemas de direito privado dos seacuteculos

640 Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do direito e do Estado vol I mdash Parte histoacutericacit

paacuteg 267 641 Russell ao apresentar a filosoacutefia do direito e do Estado de Hegel acentua ldquothe very odd

sense in which Hegel uses the word lsquofreedomrsquordquo dizendo que ldquorsquofreedomrsquo for him means little

more than lsquothe right to obbey the lawrsquordquo mdash History of Western Philosophy cit paacuteg 764 642 Como diz p ex Margaret Jane Radin ldquoHegels person is the same as Kants-simply an

abstract autonomous entity capable of holding rights a device for abstracting universal

principles and hence by definition devoid of individuating characteristicsrdquo [cf ldquoProperty and

Personhoodrdquo in Stanford Law Review vol 34 (1982) paacutegs 957-1015 (972)] 643 Luiacutes Cabral de Moncada Filosofia do direito e do Estado vol I mdash Parte histoacutericacit

paacuteg 367 mdash itaacutelico no original 644 Orlando de Carvalho A teoria geral da relaccedilatildeo juriacutedica Seu sentido e limites Centelha

Coimbra 1981 paacuteg 71 ldquoO que urgia ante o homem abstracto do jusnaturalismo racionalista

era um aprofundamento ou uma densificaccedilatildeo mdash natildeo um esvaziamento ou uma formalizaccedilatildeordquo 645 Orlando de Carvalho A teoria geral da relaccedilatildeo juriacutedica Seu sentido e limites cit paacuteg 72

ldquoO que se exigia era em suma uma descida ao real ao homem em situaccedilatildeo mdash natildeo uma fuga

para foacutermulas geomeacutetricas ainda mais ocas e impunemente alienantesrdquo

291

XVIII e XIX e os fundamentos ideoloacutegicos dos sistemas de direito privado dos

seacuteculos XX e XXI haacute diferenccedilas absolutamente decisivas Se o(s)

personalismo(s) dos seacuteculos XVIII e XIX mdash entre os quais o personalismo de

Kant mdash representava(m) a dignidade como valor intriacutenseco de um ser humano

abstracto (como o valor intriacutenseco da humanidade) o(s) personalismo(s) dos

seacuteculos XX e XXI representa(m)-na como valor intriacutenseco de um ser humano

concreto

O confronto entre os discursos de Kant e de Duumlrig sobre o conceito de

dignidade da pessoa humana eacute elucidativo Kant afirmava um dever moral de

nunca tratar a humanidade somente como um meio Duumlrig ao reconstruir o

dever moral como um dever juriacutedico convola o dever de nunca tratar a

humanidade como um meio no dever de nunca tratar a pessoa humana

concreta somente como um meio ldquoa dignidade da pessoa humana [seria]

atingida se a pessoa humana concreta [fosse] reduzida agrave condiccedilatildeo de objecto

de simples meio de elemento substituiacutevelrdquo mdash Kant como os filoacutesofos do

seacuteculo XVIII e do seacuteculo XIX dizia-nos que a dignidade da pessoa humana

era algo que pertencia agrave humanidade como abstracccedilatildeo646 Duumlrig como os

filoacutesofos do seacuteculo XX e do seacuteculo XXI diz-nos mdash que a dignidade da

pessoa eacute algo que pertence a cada pessoa humana concreta

11 O problems estaacute em que o paradigma de um homem concreto ldquoem

situaccedilatildeordquo convoca simultaneamente os aspectos ou momentos de verdade647

das duas filosofias da de Kant e da de Hegel mdash convoca o aspecto ou

momento de verdade da filosofia de Kant por referir sempre a autoridade do

Estado ao reconhecimento e ao respeito da dignidade de cada indiviacuteduo e

convoca o aspecto ou momento de verdade da filosofia de Hegel por referir

sempre a autoridade do Estado agrave conformaccedilatildeo das instituiccedilotildees como a famiacutelia

ou a sociedade em que a dignidade de cada indiviacuteduo haacute-de realizar-se

O(s) personalismo(s) dos seacuteculos XVIII e XIX representava(m) a

dignidade e a liberdade (racional) de cada ser humano como algo que lhe foi

646 Dietmar von der Pfordten ldquoZur Wurde des Menschen bei Kantrdquo cit paacutegs 1-2 a dignidade

da pessoa humana (Menschenwuumlrde) seria simplesmente ldquodignidade da humanidaderdquo (Wuumlrde

des Menscheit) mdash e como a essecircncia da humanidade seria a racionalidade a ldquodignidade da

pessoa humanardquo seria a ldquodignidade de uma essecircncia racionalrdquo (Wuumlrde eines vernuumlnftigen

Wesens) 647 Expressatildeo de Benedetto Croce Ciograve che egrave vivo e ciograve che egrave morto della filosofia di Hegel

Laterza Bari 1907 paacutegs 207-208 ldquoogni pensatore e ogni movimento storico di pensiero

non puograve esser passato senza frutto senza deporre un elemento di veritaacute che fa parte

consapevole o no del pensiero vivo e modernordquo

292

dado pela ldquonaturezardquo o(s) personalismo(s) dos seacuteculos XX e XXI

representa(m) a dignidade e a liberdade (empiacuterica) como algo que pode ou

natildeo ser-lhe dado pela civilizaccedilatildeo ou pela cultura ao representar(em) a

dignidade e a liberdade (racional) de cada ser humano como algo que lhe foi

dado pela natureza o(s) personalismo(s) eacutetico(s) dos seacuteculos XVIII e XIX

cometia ao direito em geral e ao direito civil em particular uma funccedilatildeo

essencialmente negativa mdash o direito deveria simplesmente admitir ou

reconhecer a liberdade mdash ao representar(em) a dignidade e a liberdade

(empiacuterica) de cada ser humano como algo que pode ou natildeo ser-lhe dado pela

civilizaccedilatildeo ou pela cultura o(s) personalismo(s) eacutetico(s) dos seacuteculos XX e

XXI comete(m) ao direito uma funccedilatildeo essencialmente positiva mdash de tornar

possiacutevel a actualizaccedilatildeo da liberdade e atraveacutes da liberdade de tornar possiacutevel

a actualizaatildeo da dignidade de cada pessoa648

12 O personalismo eacutetico soacute poderaacute ser plenamente tomado a seacuterio

desde que as confusotildees conceptuais sejam desfeitas

Em primeiro lugar deve afastar-se toda a confusatildeo entre a filosofia de

Kant e a filosofia de Hegel O personalismo eacutetico relaciona-se com toda a

filosofia do direito de Kant e com uma parte soacute com uma parte da filosofia

do direito de Hegel mdash a filosofia do direito abstracto O personalismo de Kant

pode ser o fundamento histoacuterico e filosoacutefico do sistema de direito civil o

supra-personalismo ou trans-personalismo de Hegel natildeo pode poreacutem secirc-lo

Em segundo lugar deve afastar-se toda a confusatildeo entre o personalismo das

filosofias dos seacuteculos XVIII e XIX e o(s) personalismo(s) das filosofias dos

seacuteculos XX e XXI O personalismo de Kant soacute pode ser o fundamento histoacuterico

e filosoacutefico do sistema de direito civil desde que se adapte corrigindo-se a sua

tendacircncia para o abstractismo Em terceiro lugar ao adaptar-se o aspecto ou

momento de verdade do pensamento de Kant deve atender-se ao aspecto ou ao

momento de verdade do pensamento de Hegel O ser humano pode actualizar-

se ou realizar-se de uma forma mais completa mais plena desde que tenha

648 Vide p ex Martha Nussbaum ldquoThe Supreme Court 2006 Term mdash Foreword

lsquoConstitutionsrsquo and Capabilities lsquoPerceptionrsquo Against Lofty Formalismrdquo cit paacuteg 7 ldquoThis

normative approach the ldquoCapabilities Approachrdquo (CA) holds that a key task of a nationrsquos

constitution and the legal tradition that interprets it is to secure for all citizens the

prerequisites of a life worthy of human dignity mdash a core group of ldquocapabilitiesrdquo mdash in areas

of central importance to human liferdquo

293

uma relaccedilatildeo harmoniosa com a totalidade social mdash com as instituiccedilotildees sociais

e poliacuteticas649

649 Como explica Bertrand Russell ldquoa totalidade social eacute uma totalidade em que o indiviacuteduo

natildeo desaparece antes adquire uma mais plena realidade e a adquire atraveacutes de uma relaccedilatildeo

harmoniosa com um organismo maior que si proacutepriordquo (History of Western Philosophy cit

paacuteg 769)

294

295

Austeridade e dignidade da pessoa humana

Joaquim Freitas da Rocha

1 A abordagem de duas coordenadas materiais distintas e

aparentemente distanciadas dificilmente poderaacute ser efetuada sem a delimitaccedilatildeo

dos respetivos pressupostos terminoloacutegicos metodoloacutegicos e axioloacutegicos por

forma a eliminar espaccedilos discursivos de ambiguidade e a minorar a exposiccedilatildeo

a conclusotildees impulsivas e precipitadas No quadro de tais pressupostos

impotildee-se enfatizar que a abordagem aqui empreendida revestiraacute natureza

eminentemente juriacutedico-normativa no sentido em que teraacute por objeto e

referecircncia normas juriacutedicas (princiacutepios regras) vaacutelidas e operativas no

concreto ordenamento juriacutedico portuguecircs

2 A dignidade da pessoa humana constitui o pinaacuteculo de qualquer

ordenamento e ateacute de qualquer outro modelo de existecircncia que se queira

reputar de aceitaacutevel Em termos juriacutedicos e em referecircncia ao Estado de Direito

trata-se de um postulado inafastaacutevel mdash sendo por tal motivo erigido agrave

categoria de princiacutepio juriacutedico fundamental mdash que num enfoque material natildeo

eacute facilmente definiacutevel mas que convoca algumas coordenadas

axiologicamente insubstituiacuteveis (i) a pessoa humana eacute insuscetiacutevel de

valoraccedilatildeo (preccedilo) (ii) eacute inviolaacutevel e (iii) eacute sujeito do Direito e natildeo o seu

objeto Aleacutem disso na estruturaccedilatildeo de qualquer arranjo juriacutedico-organizatoacuterio

sobrelevam as consideraccedilotildees a si atinentes e apenas depois se consideram as

referecircncias aos termos de organizaccedilatildeo e competecircncia Como princiacutepio juriacutedico

fundamental que eacute invalida qualquer soluccedilatildeo que a coloque em crise

Importa enfatizar que a consideraccedilatildeo dessa fundamentalidade arrasta

uma exigecircncia - a sobriedade Vale isto por dizer que a sua invocaccedilatildeo deve ser

reservada para situaccedilotildees absolutamente excecionais nas quais a pessoa

humana esteja realmente em causa e nas quais o restante arsenal

principioloacutegico densificador (eg princiacutepios da proporcionalidade da

igualdade da seguranccedila juriacutedica da proteccedilatildeo da reserva da vida privada) natildeo

seja suficiente ou adequado Caso contraacuterio enfrenta-se o perigo da

O presente texto pretende apenas materializar em forma escrita a intervenccedilatildeo proferida no

acircmbito do evento ao qual a presente obra se refere assumindo por isso uma estrutura

eminentemente coloquial Professor na Escola de Direito da Universidade do Minho

296

banalizaccedilatildeo pois a contiacutenua mdash e por vezes exageradamente repetida mdash alusatildeo

agrave sua importacircncia introduz o risco da desvalorizaccedilatildeo axioloacutegica e juriacutedica

3 A austeridade tambeacutem natildeo eacute uma realidade faacutecil de identificar e

menos ainda de concetualizar atendendo a que quando se convoca tal termo

se alude frequentemente a uma pluralidade heterogeacutenea de estados factos atos

ou situaccedilotildees que podem natildeo ter entre si elementos unificadores bastantes Em

todo o caso eacute possiacutevel dizer que a austeridade pode ser vista como um periacuteodo

(temporal) como uma concreta medida mdash de natureza restritiva e ablativa mdash

ou como uma poliacutetica650 Neste uacuteltimo sentido mdash que seraacute aquele que mais

relevaraacute no contexto das presentes consideraccedilotildees mdash a austeridade pode ser

perspetivada como o conjunto de medidas de poliacutetica orccedilamental de natureza

restritiva que tecircm por objetivo a disciplina econoacutemico-financeira natildeo sendo

difiacutecil de extrair de tal conceito os seguintes elementos constitutivos

i) Um elemento quantitativo - a poliacutetica de austeridade materializar-se-aacute

sempre numa realidade plural e natildeo numa uacutenica medida isoladamente

considerada

ii) Um elemento loacutegico-sistemaacutetico - as diversas medidas da poliacutetica de

austeridade deveratildeo elas proacuteprias enquadrar-se num conjunto de

opccedilotildees integradas e consistentes de feiccedilatildeo financeira e orccedilamental

(poliacutetica orccedilamental) e natildeo ser encaradas como esparsas avulsas ou

isoladas sem qualquer fator de reductio ad unum

iii) Um elemento material - as medidas referidas deveratildeo ter natureza

restritiva e limitadora de direitos designadamente mdash embora natildeo

apenas mdash de direitos de feiccedilatildeo patrimonial (eg direito de propriedade

privada direito ao trabalho direito a prestaccedilotildees sociais)

iv) Um elemento teleoloacutegico - toda a poliacutetica de austeridade deve ser

pensada delineada e posteriormente executada tendo em vista um fim

mais amplo que a direcione (por exemplo a prevenccedilatildeo de estados de

insolvabilidade puacuteblica ou o cumprimento de determinada meta fixada

ao niacutevel de compromissos internacionais como o cumprimento dos

criteacuterios estabelecidos no pacto de estabilidade e crescimento da zona

euro)

650 Para maiores desenvolvimentos sugerimos o nosso ldquoA Austeridade de um ponto de vista

juriacutedico-constitucionalrdquo in A austeridade cura A austeridade mata (coord Eduardo Paz

Ferreira) AAFDL Lisboa 2013 pp 649 e ss

297

4 Como se referiu a austeridade materializa-se num conjunto de

medidas financeiras e orccedilamentais restritivas Essas medidas irrompem quase

sempre em estados de crise econoacutemica ao ponto de com ela se confundirem

De um ponto de vista tipoloacutegico pode dizer-se que existem medidas de

austeridade respeitantes agrave receita puacuteblica e medidas de austeridade respeitantes

agrave despesa puacuteblica

i) Do lado da receita puacuteblica assumem particular destaque os aumentos

diretos da imposiccedilatildeo tributaacuteria (eg aumento das taxas de imposto e

outros tributos) a revogaccedilatildeo limitaccedilatildeo ou suspensatildeo de benefiacutecios

fiscais (como isenccedilotildees reduccedilotildees deduccedilotildees ou abatimentos) a maior

facilidade (permissividade) no acesso por parte da administraccedilatildeo

tributaacuteria a dados protegidos por sigilo (como os sujeitos a sigilo

bancaacuterio) o incremento das accedilotildees de fiscalizaccedilatildeo e de inspeccedilatildeo

tributaacuteria ou o aumento das execuccedilotildees fiscais e das penhoras por

diacutevidas tributaacuterias Em todos os casos transparece mdash ou pode

transparecer mdash uma conceccedilatildeo autoritaacuteria e inquisitoacuteria do Direito

tributaacuterio que encara o contribuinte como o objeto de um

procedimento e natildeo tanto como o sujeito de uma relaccedilatildeo juriacutedica em

condiccedilotildees de tendencial paridade com o Estado

ii) Do lado da despesa puacuteblica ganham relevo desde logo os despedimentos

na funccedilatildeo puacuteblica bem assim como os denominados cortes nas

prestaccedilotildees salariais e pensionistas puacuteblicas (lato sensu) e a restriccedilatildeo

de prestaccedilotildees materiais nos domiacutenios da educaccedilatildeo sauacutede e assistecircncia

social (por exemplo subsiacutedios abonos comparticipaccedilotildees

fornecimento de bens moacuteveis ou imoacuteveis)

Como se pode ver e como jaacute supra se adiantou ao contraacuterio do que

uma visatildeo meramente intuitiva poderia sugerir a austeridade amplamente

considerada estaacute longe de se materializar somente em medidas restritivas de

feiccedilatildeo patrimonial e particularmente de restriccedilatildeo ao direito de propriedade

Seraacute verdade que na maior parte das situaccedilotildees seraacute isso o que acontece

(aumentos de impostos cortes nas pensotildees etc) e ateacute seratildeo estas situaccedilotildees

aquelas que teratildeo maior visibilidade e relativamente agraves quais os destinataacuterios

mais se insurgiratildeo Poreacutem casos existem (como por exemplo o alargamento

das possibilidades de derrogaccedilatildeo do sigilo bancaacuterio por parte do fisco ou o

maior nuacutemero de inspeccedilotildees) em que o que estaacute em causa seratildeo outras

dimensotildees constitucionais relevantes (como a proteccedilatildeo dos dados que

integram a reserva da vida privada ou a inviolabilidade do domiciacutelio ou da

correspondecircncia) as quais ainda que menos visiacuteveis natildeo prescindem de

atenccedilatildeo e de afericcedilatildeo da correspondente validade juriacutedica e juriacutedico-

constitucional

298

5 A colocaccedilatildeo temaacutetica das duas coordenadas em conjunto (dignidade

da pessoa humana e austeridade) convoca um conjunto de questotildees agraves quais a

ciecircncia juriacutedica natildeo pode ficar indiferente atenta a inerente relevacircncia

juriacutedico-axioloacutegica juriacutedico-constitucional e juriacutedico-financeira Entre tais

questotildees pode salientar-se as que seguem

i) A austeridade eacute compatiacutevel com o postulado da dignidade da pessoa

humana

ii) Seraacute possiacutevel assegurar a todos uma existecircncia digna sem a execuccedilatildeo

preacutevia de medidas de austeridade que possibilite a captaccedilatildeo de receitas

puacuteblicas e a efetivaccedilatildeo de despesas puacuteblicas

iii) Seraacute legiacutetimo retirar direitos agraves pessoas (cidadatildeos famiacutelias e empresas)

para por vias da austeridade resolver problemas do Estado (diacutevida

puacuteblica deacutefice puacuteblico desequiliacutebrios orccedilamentais)

iv) A aceitaccedilatildeo da austeridade natildeo significaraacute um primado do Direito

orccedilamental sobre o Direito Constitucional

Ora sem prejuiacutezo da indiscutiacutevel valia problemaacutetica destas e de vaacuterias

outras questotildees que no mesmo alinhamento temaacutetico poder ser colocadas a

verdade eacute que uma anaacutelise racional e pragmaacutetica destes toacutepicos resultaraacute numa

conclusatildeo no miacutenimo dececionante trata-se de questotildees que natildeo satildeo novas e

agraves quais bem vistas as coisas a Teoria geral do Direito (e em particular o

Direito constitucional e o Direito financeiro) jaacute tecircm conseguido dar resposta

Esta uacuteltima passaraacute pelas ideias de compatibilizaccedilatildeo de normas e de

concordacircncia praacutetica de pretensotildees juriacutedicas em termos de se considerar que

natildeo apenas merecem tutela e proteccedilatildeo os Interesses puacuteblicos inerentes agraves

medidas de austeridade (estabilidade das financcedilas puacuteblicas cumprimentos de

compromissos assumidos internacionalmente) como os direitos adquiridos

com base em expectativas legiacutetimas por parte dos vaacuterios sujeitos O que natildeo

se poderaacute fazer seraacute absolutizar qualquer uma das coordenadas em confronto

pretendendo fazer crer que a mesma constitui um direito sem restriccedilatildeo

O uacutenico direito absoluto e intangiacutevel aqui em causa eacute precisamente a

dignidade da pessoa humana a qual em muitas das situaccedilotildees referidas natildeo

chegaraacute a estar colocada em crise Daiacute que se diga que se alguma novidade

haveraacute resultante das recentes retoacutericas de austeridade ela limitar-se-aacute agrave

reafirmaccedilatildeo de algo que natildeo sofre contestaccedilatildeo a austeridade natildeo pode privar

ningueacutem de prestaccedilotildees relativas agrave existecircncia condigna mdash o que natildeo significa

que natildeo possa privar de nada em absoluto mdash e natildeo pode significar a renuacutencia

agrave exigecircncia das mesmas

De resto vecirc-se com reservas a referecircncia a tal postulado em mateacuteria

de Direito financeiro puacuteblico muito por causa da banalizaccedilatildeo que daiacute pode

decorrer

299

A grande ldquoconclusatildeordquo que se pretende apresentar com a presente

intervenccedilatildeo eacute tatildeo-somente esta as respostas agraves questotildees colocadas natildeo

emergem de qualquer paradigma novo que deva ser inventado ou reinventado

por causa da(s) crise(s) mas antes resulta da consideraccedilatildeo de uma adequada

metoacutedica juriacutedica nos aspetos subjetivo (posiccedilotildees juriacutedicas subjetivas direitos

fundamentais) e objetivo (bens juriacutedicos valores juridicamente protegidos)

Desde logo porque novos tambeacutem natildeo parecem ser os problemas agora

suscitados embora se possa convir que os mesmos aparecem eventualmente

com uma roupagem renovada Em qualquer caso nada haacute de novo a

acrescentar ao jaacute ensinado classicamente pela postura da concordacircncia praacutetica

e da harmonizaccedilatildeo Aqui a concordacircncia estabelecer-se-aacute estaacute bom de ver

entre as medidas restritivas preconizadas e que materializam a poliacutetica de

austeridade ndash medidas essas que devem passar pelo crivo da absoluta

necessidade adequaccedilatildeo e proporcionalidade ndash e as exigecircncias decorrentes da

dignidade da pessoa humana

Enfim no modo toacutepico e sumaacuterio a que nos propusemos refletir estas

satildeo as consideraccedilotildees que apraz verter em discurso Naturalmente que muito

mais haveria a problematizar ponderar e expressar mas os desenvolvimentos

que aqui rareiam poderatildeo ser objeto de futuras revisitaccedilotildees destes acircmbitos

temaacuteticos

300

301

Dignidade humana e contrato

Joseacute Joatildeo Abrantes

1 DOS TEMPOS DO ldquoQUI DIT CONTRACTUEL DIT JUSTErdquo AOS TEMPOS DE

UM CONTRATO ldquoMENOS CONTRATUALrdquo

O liberalismo partia de uma separaccedilatildeo radical entre o Estado e a

sociedade civil entre o direito puacuteblico e o direito privado vendo a

Constituiccedilatildeo reduzida agrave garantia da liberdade individual perante o Estado

encarado como o uacutenico poder capaz de a ameaccedilar Tal como resulta da Magna

Carta do liberalismo a Declaraccedilatildeo dos Direitos do Homem e do Cidadatildeo de

26 de Agosto de 1789 (artordm 16) a Constituiccedilatildeo aparece entatildeo como

instrumento de protecccedilatildeo dos direitos individuais naturais anteriores e

superiores agrave sociedade poliacutetica e ao Estado que natildeo os conferem natildeo os criam

antes se limitam a reconhececirc-los a declaraacute-los Existindo em todos os homens

em todos os tempos e lugares (artordm 1) esses direitos natildeo satildeo funcionalizaacuteveis

soacute tendo por limites os iguais direitos de todos os outros homens (artordm 4) Satildeo

direitos de defesa contra o Estado a uacutenica forccedila capaz de ameaccedilar a liberdade

individual

O direito privado por sua vez precisamente porque era o reino das

relaccedilotildees entre iguais aparece amplamente dominado pelos princiacutepios da

autonomia da vontade e liberdade contratual A intervenccedilatildeo do legislador era

aiacute proscrita dado que soacute as partes livres e actuando em igualdade podiam

auto-regulamentar os seus interesses de uma forma justa

Com o Estado Social de Direito que jaacute natildeo eacute o Estado neutro da

tradiccedilatildeo liberal antes se reconhece ldquoo direito e o dever de intervir nas relaccedilotildees

econoacutemicas entre os cidadatildeosrdquo existindo esse dever ainda que tal intervenccedilatildeo

sacrifique a liberdade individual e as suas projecccedilotildees na liberdade contratual e

na propriedade privada tambeacutem se modifica o anterior entendimento dos

princiacutepios da autonomia da vontade e liberdade contratual expressotildees do

Professor Catedraacutetico da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa Toacutepicos da comunicaccedilatildeo apresentada em 14 de dezembro de 2015 num Coloacutequio

organizado pelo Centro de Investigaccedilatildeo Interdisciplinar em Direitos Humanos da Escola de

Direito do Minho sob a coordenaccedilatildeo cientiacutefica dos Professores Nuno Manuel Pinto Oliveira

e Benedita Mac Crorie a quem o autor agradece o honroso convite para a sua participaccedilatildeo

Em termos de referecircncias bibliograacuteficas remete-se para os textos anteriores que temos

dedicado a esta temaacutetica designadamente para a nossa tese de doutoramento Contrato de

trabalho e direitos fundamentais Coimbra 2005

302

liberalismo econoacutemico a que praticamente natildeo eram postas restriccedilotildees Da

autonomia da vontade e da liberdade contratual sem limites passa-se para um

novo conceito de contrato marcado pelo cercear crescente daquela autonomia

e daquela liberdade ndash o que leva por exemplo Josserand a perguntar se natildeo

se estaraacute face a um contrato laquomenos contratualraquo

No fundo o que ocorre eacute a passagem de um conceito de liberdade

abstracta para a liberdade concreta da afirmaccedilatildeo da igualdade juriacutedico-formal

dos contraentes para o reconhecimento da sua desigualdade real Dos coacutedigos

civis oitocentistas passa-se agrave criacutetica do liberalismo e agrave (impropriamente

chamada) laquocrise do contratoraquo com a entrada em cena da justiccedila social e a

funcionalizaccedilatildeo dos direitos e do contrato

2 A JUSTICcedilA SOCIAL E A PROTECCcedilAtildeO DO CONTRAENTE DEacuteBIL

Um dos valores que aparece entatildeo eacute a protecccedilatildeo do contraente deacutebil

que tem momentos diferenciados

Se numa primeira fase a debilidade contratual eacute encarada apenas

como caracteriacutestica individual do contraente [e daiacute a resposta para o problema

aparecer centrada sobretudo nas teorias das incapacidades e dos viacutecios da

vontade no regime dos negoacutecios usuraacuterios (lesatildeo) nos institutos da

imprevisatildeo e do abuso de direito etc] mais tarde ela passa a ser vista como

caracteriacutestica de certas categorias de contraentes (como o trabalhador o

inquilino o comprador a creacutedito ou a prestaccedilotildees o mutuaacuterio etc sem

esquecer o aderente nas claacuteusulas contratuais gerais ou contratos de adesatildeo)

chegando-se por uacuteltimo agrave garantia constitucional da autonomia privada

Daacute-se a materializaccedilatildeo a socializaccedilatildeo e a constitucionalizaccedilatildeo do

direito privado

Como escreve Ana Prata ldquonatildeo soacute natildeo pode pois pensar-se a

autonomia privada como um dado inerente agrave tutela constitucional da liberdade

como antes haacute que desta tutela retirar importantes elementos num sentido ou

restritivo da liberdade negocial ou reordenador desta em tais termos que o seu

significado claacutessico surge completamente alteradordquo

Apenas a actuaccedilatildeo dos direitos fundamentais configura para o

legislador constituinte a autecircntica liberdade que por natildeo ser diferente

consoante se situe no domiacutenio puacuteblico ou privado deve valer erga omnes

contra os poderes puacuteblicos e tambeacutem contra entidades privadas ndash de forma a

garantir sempre contra quem quer que seja aquilo que a Constituiccedilatildeo

considera intangiacutevel isto eacute a dignidade da pessoa humana

A Constituiccedilatildeo constitui uma objektive Wertordnung e daiacute deriva a

eficaacutecia horizontal dos direitos fundamentais (artordm 18ordm1 da CRP)

303

3 A EFICAacuteCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A ideia de que os direitos fundamentais se impotildeem aos cidadatildeos nas

suas relaccedilotildees interprivadas constituindo um limite agrave autonomia negocial eacute

originaacuteria da Alemanha paiacutes onde veio mesmo a transformar-se num ldquotema-

paradigmardquo do Direito Constitucional e do Direito do Trabalho nos anos 50 e

60

Assenta na concepccedilatildeo dos direitos fundamentais como princiacutepios

objectivos da ordem juriacutedica civil ou seja no reconhecimento a esses direitos

de uma dimensatildeo objectiva deixando de ser apenas direitos subjectivos de

defesa perante os poderes do Estado

Os direitos que a Constituiccedilatildeo reconhece aos cidadatildeos constituem

princiacutepios objectivos princiacutepios ordenadores da vida social vaacutelidos para

todas as relaccedilotildees sociais estabelecidas no interior da ordem juriacutedica estadual

puacuteblica ou privada

A Constituiccedilatildeo natildeo eacute ldquouma ordem axiologicamente neutrardquo mas sim

uma ldquoordem objectiva de valoresrdquo um ldquosistema de valoresrdquo (ldquoWertsystemrdquo)

no contexto de uma ordem juriacutedico-poliacutetica que se afasta do modelo

pretensamente neutral e abstencionista do Estado liberal

Esta construccedilatildeo influenciou a jurisprudecircncia dos tribunais alematildees e viria a

encontrar a sua mais completa expressatildeo no ceacutelebre acoacuterdatildeo do caso Luumlth

proferido pelo Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht)

em 15011958

Os direitos fundamentais representam a expressatildeo maacutexima dessa

ordem axioloacutegica desse sistema de valores em que assenta a unidade do

ordenamento (Rechtseinheit) e cujo valor fundamental eacute em uacuteltima

instacircncia a dignidade da pessoa humana (ldquoMenschenwuumlrderdquo) (artordm 1ordm

Grundgesetz) de que todos os outros direitos fundamentais - e

designadamente a faculdade que qualquer indiviacuteduo tem de se autodeterminar

e desenvolver livremente (artordm 2ordm Grundgesetz) - natildeo passam de

concretizaccedilotildees Esses direitos deveratildeo por isso valer do ponto de vista da

comunidade em geral como valores que esta se propotildee prosseguir Tecircm pois

uma funccedilatildeo social e uma dimensatildeo objectiva de que resulta a sua eficaacutecia erga

omnes a obrigaccedilatildeo geral de respeito desses direitos (tambeacutem) nas proacuteprias

relaccedilotildees que os particulares estabelecem entre si

Para o Tribunal Constitucional ldquoa imagem que a Lei Fundamental nos

daacute do homem natildeo eacute a de um indiviacuteduo isolado na relaccedilatildeo entre o indiviacuteduo e

a comunidade a Constituiccedilatildeo daacute precedecircncia agrave integraccedilatildeo do indiviacuteduo no

todo e agraves suas obrigaccedilotildees para com elerdquo

304

Eacute fundamentalmente a partir deste entendimento do homem natildeo como

mero indiviacuteduo isolado mas sim como pessoa integrado na sociedade que a

doutrina e na sua esteira a jurisprudecircncia vieram afirmar a impossibilidade

de manter o domiacutenio das relaccedilotildees privadas fechado aos valores

constitucionais com o aparecimento de vaacuterias teorias

a A FORMULACcedilAtildeO ORIGINAacuteRIA DA TEORIA DA DRITTWIRKUNG

A primeira dessas teorias cujos principais defensores foram Hans Carl

Nipperdey e Walter Leisner defende a eficaacutecia directa ou imediata

(ldquounmittelbare Drittwirkungrdquo) dos direitos fundamentais nas relaccedilotildees de

direito privado

Para a tese em questatildeo a primeira das necessidades de que

objectivamente nasce a Drittwirkung eacute a de manter a coerecircncia interna do

ordenamento ligada agrave dimensatildeo objectiva e natildeo meramente subjectiva hoje

reconhecida aos direitos fundamentais sendo que a segunda dessas

necessidades corresponde ao reconhecimento da presenccedila na sociedade civil

de fortes poderes econoacutemicos e sociais

Por outro lado a autonomia privada e a liberdade contratual supotildeem

uma situaccedilatildeo mais ou menos equivalente dos contraentes quer do ponto de

vista juriacutedico quer real sem ela toda a autodeterminaccedilatildeo dos sujeitos de

direito seria excluiacuteda a priori Eacute essa autodeterminaccedilatildeo que pode faltar quando

um indiviacuteduo eacute confrontado com uma situaccedilatildeo de superioridade social ou

econoacutemica de outras pessoas Diz-se entatildeo que a protecccedilatildeo daqueles direitos

natildeo pode ser dirigida apenas contra os poderes estaduais mas igualmente

contra as entidades privadas detentores de um cada vez maior poder social e

econoacutemico e por isso capazes de afectar intensamente aspectos relevantes da

vida e da personalidade dos indiviacuteduos

Sem pretender pocircr em causa os valores especiacuteficos da ordem juriacutedica

privada a aplicaccedilatildeo directa tem como sua maior (natildeo uacutenica) preocupaccedilatildeo a

protecccedilatildeo da liberdade individual contra os poderes sociais

Natildeo surpreende pois que a teoria tenha sido inicialmente colocada no

acircmbito laboral

Mas a Drittwirkung rege tambeacutem as relaccedilotildees entre iguais de direito

e de facto A sua imposiccedilatildeo sempre resulta da dimensatildeo objectiva reconhecida

aos direitos fundamentais que devem considerar-se vaacutelidos para toda a ordem

juriacutedica soacute que aiacute a aplicaccedilatildeo dos preceitos constitucionais cederia em favor

da autonomia privada na medida em que o conteuacutedo essencial dos direitos

garantidos por tais preceitos natildeo fosse atingido

A teoria da eficaacutecia directa veio a ter a sua maior repercussatildeo junto do

Tribunal Federal do Trabalho (Bundesarbeitsgericht) que jaacute numa decisatildeo de

305

31254 escrevia que uma seacuterie de importantes direitos fundamentais natildeo

garantem apenas a liberdade individual contra o poder do Estado eles satildeo

acima de tudo princiacutepios da vida social pelo que satildeo tambeacutem directamente

aplicaacuteveis nas relaccedilotildees entre os cidadatildeos A principal razatildeo da aceitaccedilatildeo

desta doutrina pelo BAG prende-se obviamente com o desequiliacutebrio existente

nas relaccedilotildees laborais

Mas tambeacutem por exemplo no BVerfG eacute possiacutevel encontrarmos

exemplos desta teoria Eacute o que acontece no caso Blinkfuumler (BVerfGE 25 256

boicote pela editora Springer agrave Blinkfuumler uma pequena revista que apoacutes a

construccedilatildeo do Muro de Berlim continuava a dar publicidade aos programas

da raacutedio e da televisatildeo leste-alematildes) em que o BVerfG numa decisatildeo de 26

de fevereiro de 1969 anulou o julgamento anterior considerando ilegal o

boicote promovido pela editora visto ter esta utilizado a forte pressatildeo social

resultante da sua posiccedilatildeo dominante no mercado contra a liberdade de

expressatildeo e imprensa direito fundamental garantido no artordm 5I da Lei

Fundamental entendendo que o boicote natildeo feria o sect 823 (1) do BGB (ldquobons

costumesrdquo) decidiu o tribunal que contra ele e face agrave inoperacircncia de uma

mera eficaacutecia mediata dos princiacutepios constitucionais (a partir daquela claacuteusula

geral de direito privado) poderia a Blinkfuumler valer-se desses princiacutepios

entendidos como directamente aplicaacuteveis

b DESENVOLVIMENTOS DOGMAacuteTICOS POSTERIORES

A admissibilidade da Drittwirkung deparou contudo com obstaacuteculos

Contra ela invocou-se sobretudo a perversatildeo do direito civil da autonomia

privada e do livre desenvolvimento da personalidade a que tal teoria

conduziria Invocou-se que a eficaacutecia imediata daqueles direitos iria restringir

de uma forma intoleraacutevel a autonomia privada e o poder de autodeterminaccedilatildeo

individual que satildeo as bases de toda a ordem juriacutedica privada Tal eficaacutecia

ldquocoagiriardquo os cidadatildeos e representaria uma ameaccedila agrave sua liberdade uma vez

que lhes traria vinculaccedilotildees injustificadas invertendo-se assim o sentido dos

direitos fundamentais ao aniquilar tal liberdade em nome dela proacutepria

Para Guumlnter Duumlrig sem duacutevida o nome mais representativo desta

corrente aqueles direitos natildeo valem em princiacutepio para as relaccedilotildees entre

particulares sob pena de ser prejudicado o princiacutepio do livre desenvolvimento

da personalidade (ldquofreie Entfaltung der Persoumlnlichkeitrdquo) do artordm 2 da GG

base em que assenta toda a ordem juriacutedica privada Desse alargamento do seu

acircmbito de validade resultaria um aumento excessivo do poder do Estado que

para fiscalizar os ldquodeveresrdquo dos indiviacuteduos invadiria toda a esfera da

autonomia pessoal dos mesmos O reconhecimento de uma eficaacutecia imediata

aos direitos fundamentais teria como resultado inverter o sentido desses

306

mesmos direitos aniquilando-se ndash ou pelo menos reduzindo-se ao miacutenimo -

a liberdade que eles em princiacutepio visariam garantir

Para Duumlrig o Estado seria pois o uacutenico sujeito passivo dos referidos

direitos aparecendo tal ideia como expressatildeo da autonomia do direito privado

valor que entendia estar sacrificado na teoria da eficaacutecia imediata

Reconhecendo-se-lhes uma eficaacutecia deste tipo estar-se-ia diz a atingir

precisamente o resultado inverso (a reduccedilatildeo da liberdade ao miacutenimo) daquilo

que esses direitos devem assegurar Ao contraacuterio a decisatildeo constitucional em

favor da liberdade (Grundentscheidung des Grundgesetzes fuumlr die Freiheitrdquo)

tem por corolaacuterio a faculdade reconhecida aos particulares no quadro do

traacutefico juriacutedico privado de se desviar de normas e princiacutepios que satildeo

inultrapassaacuteveis pela actuaccedilatildeo dos poderes puacuteblicos sendo por isso em

princiacutepio perfeitamente legiacutetimos os negoacutecios privados feitos agrave margem

dessas regras que pelo contraacuterio vinculam os poderes puacuteblicos

Mas essa autonomia do direito privado natildeo pode levar a que se esqueccedila

a necessidade de ser simultaneamente garantida a unidade da ordem juriacutedica

(Einheit der Gesamtrechtsordnung) Ela natildeo significa pois independecircncia

face aos direitos fundamentais precisamente porque enquanto sujeito passivo

destes direitos o Estado tem o dever de protegecirc-los em todas as relaccedilotildees que

se estabeleccedilam no seio da ordem juriacutedica e naturalmente tambeacutem contra

entidades privadas

Soacute que essa protecccedilatildeo apenas se afirmaria de uma forma indirecta ou

mediata atraveacutes dos princiacutepios e regras proacuteprios do direito privado Neste

ramo do direito os valores constitucionais seriam garantidos por normas

imperativas e na eventual falta ou insuficiecircncia dessas normas atraveacutes do

recurso agraves claacuteusulas gerais ou conceitos indeterminados de direito privado

(ordem puacuteblica principalmente) de que os preceitos da Constituiccedilatildeo

serviriam como princiacutepios de interpretaccedilatildeo sempre dentro do espiacuterito do

direito privado

Esta eacute a soluccedilatildeo que de acordo com o autor assegurava tanto a unidade

da ordem juriacutedica como a autonomia do direito privado

Tambeacutem esta teoria da eficaacutecia directa ou imediata (ldquomittelbare

Drittwirkungrdquo) encontrou eco junto dos tribunais alematildees sobretudo do

Tribunal Constitucional ao qual a problemaacutetica chegou precisamente atraveacutes

do jaacute referido caso Luumlth cuja sentenccedila natildeo soacute conteacutem a mais completa

expressatildeo da concepccedilatildeo dos direitos fundamentais enquanto sistema de

valores como tambeacutem ilustra muitiacutessimo bem o modelo de anaacutelise fornecido

pela teoria da eficaacutecia indirecta O tribunal de 1ordf instacircncia considerando que

se estava face a um incitamento ao boicote contraacuterio aos bons costumes (eine

sittenwidrige Aufforderung zum Boycott) violador pois do sect 826 do BGB

307

condenou o jornalista que interpocircs um recurso de apelaccedilatildeo para o Tribunal do

Land bem como um recurso de constitucionalidade invocando a violaccedilatildeo do

seu direito agrave liberdade de expressatildeo que no seu entender incluiria a

possibilidade de influenciar outros mediante a palavra Por decisatildeo de

15011958 veio o Tribunal Constitucional a dar-lhe razatildeo com o fundamento

de que o apelo ao boicote natildeo atentava dadas as circunstacircncias concretas do

caso contra a referida claacuteusula dos bons costumes (ldquoguten Sittenrdquo) do sect 826

BGB considerando que a liberdade de expressatildeo (artordm 5I1 da GG) natildeo era

aplicaacutevel de forma directa agraves relaccedilotildees privadas entendeu que o tribunal a quo

decidira incorrectamente ao natildeo ter anteposto o princiacutepio objectivo subjacente

a tal liberdade ndash que seria vaacutelido (tambeacutem) para o Direito Civil devendo por

conseguinte ser levado em conta no proacuteprio entendimento da claacuteusula de

bons costumes - aos interesses privados da companhia produtora de filmes

Tambeacutem o ceacutelebre caso Grundgens-Mephisto (BVerfGE 30 173)

configura uma aplicaccedilatildeo da teoria da eficaacutecia indirecta a sentenccedila incidiu aiacute

sobre uma queixa apresentada por uma editora em recurso contra uma

sentenccedila ciacutevel que havia proibido por razotildees de moralidade ligadas agrave defesa

do bom nome de um conhecido actor alematildeo Gustaf Grundgens a distribuiccedilatildeo

de uma novela (Mephisto - Roman einer Karriere) da autoria de um tambeacutem

muito conhecido escritor Klaus Mann Agrave queixa foi negada procedecircncia por

sentenccedila de 24011971 mantendo-se pois a proibiccedilatildeo decretada pelo tribunal

a quo por ter considerado que a liberdade de criaccedilatildeo artiacutestica deveria ceder

perante os direitos de personalidade decorrentes dos artordms 1 e 2 da

Grundgesetz

Referecircncia autoacutenoma tratando-se aliaacutes de uma teoria que de certa

maneira aparece como um desenvolvimento e uma precisatildeo da mittelbare

Drittwirkung merece a Schutzauftragslehre (ou Schutzpflichtslehre) que

radica na concepccedilatildeo dos direitos fundamentais como mandatos de protecccedilatildeo

(Schutzgebote) invocando-se desde logo o artordm 1I2 da GG que diz que os

poderes estaduais natildeo apenas devem respeitar (achten) a dignidade da

pessoa humana mas tambeacutem protegecirc-la (schuumltzen) O Estado tem o dever

de proteger os direitos fundamentais o que implica nomeadamente proteger

a parte mais fraca de uma relaccedilatildeo contratual de poder-sujeiccedilatildeo para a qual no

fundo a autonomia da vontade e o direito ao livre desenvolvimento da

personalidade natildeo satildeo por vezes mais do que uma mera ficccedilatildeo aquele deve

pois estabelecer mecanismos de correcccedilatildeo de uma tal situaccedilatildeo porque a

protecccedilatildeo da liberdade significa a garantia de um verdadeiro poder de decisatildeo

livre e autoacutenomo

De facto a autonomia privada eacute ameaccedilada por situaccedilotildees de

inferioridade negocial natildeo sendo os mecanismos civis suficientes para

assegurar a autodeterminaccedilatildeo do contraente que natildeo tem condiccedilotildees de

308

autotutela dos seus interesses constitucionalmente protegidos e havendo pois

que limitar a autodeterminaccedilatildeo formal em nome da autodeterminaccedilatildeo

substancial Trata-se de uma ideia particularmente importante por exemplo

para o direito do trabalho do qual se pode dizer que laquoo desequiliacutebrio de forccedilas

entre as partes do contrato de trabalho eacute a sua razatildeo de ser e a compensaccedilatildeo

desse desequiliacutebrio a sua finalidaderaquo

O que se passa eacute que a eficaacutecia dos preceitos constitucionais nas

relaccedilotildees de Direito Privado - considere-se a mesma imposta por uma

Drittwirkung desses preceitos ou por um mandato de protecccedilatildeo

(Schutzauftrag) dirigido ao Estado - deveraacute sempre ser realizada atraveacutes de

uma ponderaccedilatildeo de interesses

Hoje assiste-se ao reconhecimento generalizado da eficaacutecia dos

direitos fundamentais nas relaccedilotildees juriacutedicas privadas com recurso agraves regras

dos conflitos de direitos nomeadamente com aplicaccedilatildeo do princiacutepio da

proporcionalidade entenda-se essa aplicaccedilatildeo imposta directamente pelos

proacuteprios preceitos constitucionais ou pelas claacuteusulas gerais de direito privado

(vg a boa feacute) Esse princiacutepio com origem no direito puacuteblico enquanto

instrumento de controlo do poder derivado da intervenccedilatildeo puacuteblica com reflexo

na esfera dos privados expandiu-se para o direito privado maxime para as

situaccedilotildees contratuais de poder-sujeiccedilatildeo em que uma das partes estaacute em

posiccedilatildeo de poder exercer sobre a outra uma espeacutecie de (quase)-poderes de

autoridade ndash ou seja para os casos em que atentas as circunstacircncias o

desequiliacutebrio entre as partes potildee em crise o exerciacutecio de uma efectiva liberdade

contratual ficando esta facticamente derrogada Trata-se de situaccedilotildees em que

a estrutura do direito privado se aproxima do direito puacuteblico sendo o princiacutepio

entatildeo convocado com o objectivo de estabelecer limites agrave prevalecircncia de uma

parte sobre a outra e transformar assim essas situaccedilotildees de poder em situaccedilotildees

de equiliacutebrio ou pelo menos de desequiliacutebrio toleraacutevel

O exemplo mais significativo de actuaccedilatildeo do princiacutepio no domiacutenio

privado encontra-se no direito do trabalho por ser um domiacutenio em que eacute

particularmente intenso o conflito entre interesses de sinal contraacuterio tendo

sido sob a eacutegide da protecccedilatildeo do contraente deacutebil que o juslaboralismo ganhou

foros de cidadania em relaccedilatildeo ao direito civil

Em Portugal a eficaacutecia horizontal e a sua projecccedilatildeo laboral chegaram

com a Constituiccedilatildeo de 1976 onde se deu a aceitaccedilatildeo dessa eficaacutecia horizontal

consagrada expressamente pelo artordm 18ordm1 da CRP como uma eficaacutecia

ldquodirectardquo

309

4 A JUSTICcedilA CONTRATUAL NO CONTRATO DE TRABALHO

Eacute agrave luz dessa eficaacutecia que os direitos fundamentais actuam podem

actuar como limites dos poderes empresariais Estaacute-se face a uma questatildeo de

conflito de direitos e de concordacircncia praacutetica que reclama a aplicaccedilatildeo da ideia

de proporcionalidade nas suas vertentes de necessidade ou indispensabilidade

de idoneidade ou adequaccedilatildeo e de menor restriccedilatildeo possiacutevel O que se exige eacute

uma ponderaccedilatildeo de interesses entre por um lado os direitos fundamentais da

pessoa humana no trabalho e por outro a honra e a intimidade do empregador

e dos outros trabalhadores o direito agrave sauacutede e agrave integridade fiacutesica e moral e

outros direitos e interesses legiacutetimos do empregador nomeadamente a

liberdade de empresa (e a propriedade privada) o seu direito de gerir

eficazmente a empresa e sobretudo o seu direito de se proteger da

responsabilidade ou do prejuiacutezo que as acccedilotildees dos trabalhadores podem

suscitar A questatildeo eacute de equiliacutebrio entre a salvaguarda dos direitos dos

trabalhadores e a correcta execuccedilatildeo dos seus compromissos contratuais

Hoje o Coacutedigo do Trabalho nos seus artigos 14ordm e seguintes

reconhece expressamente alguns direitos fundamentais da pessoa humana no

trabalho entre os quais se inclui a intimidade da vida privada Os trabalhadores

tecircm com efeito o direito de esperar um certo grau de respeito pela sua vida

privada no seu lugar de trabalho pois eacute aiacute que desenvolvem uma parte

importante das suas relaccedilotildees com outras pessoas Mas tal direito deve ser

equilibrado com outros direitos e interesses legiacutetimos do empregador e de

terceiros motivos legiacutetimos que podem justificar limitaccedilotildees ao direito agrave vida

privada dos trabalhadores

O artordm 16ordm do CT refere esse direito agrave reserva da intimidade da vida

privada que se analisa na proibiccedilatildeo tanto do acesso de estranhos a informaccedilotildees

sobre a vida privada como da divulgaccedilatildeo de informaccedilotildees que algueacutem tenha

sobre ela eacute o que diz o seu nordm 2 cujo elenco natildeo eacute exaustivo abrangendo a

proibiccedilatildeo quaisquer factos natildeo relevantes para efeitos de valoraccedilatildeo da atitude

profissional do trabalhador ateacute mesmo por exemplo os seus gostos pessoais

e haacutebitos de vida situaccedilatildeo familiar estado de sauacutede etc

Os artigos seguintes tecircm tambeacutem a ver com a vida privada neles se

definindo por ex os termos em que se pode ldquoexigir ao candidato a emprego

ou ao trabalhador que preste informaccedilotildees relativas agrave sua vida privadardquo ldquoagrave sua

sauacutede ou estado de gravidezrdquo (artordm 17ordm) tratar dados biomeacutetricos do

trabalhador (artordm 18ordm) exigir-lhe ldquoa realizaccedilatildeo ou apresentaccedilatildeo de testes ou

exames meacutedicosrdquo (artordm 19ordm) utilizar ldquomeios de vigilacircncia agrave distacircncia no local

de trabalhordquo (artordms 20ordm e 21ordm) ou ldquoestabelecer regras de utilizaccedilatildeo dos meios

de comunicaccedilatildeo na empresa nomeadamente do correio electroacutenicordquo (artordm

22ordm)

310

O direito agrave intimidade soacute pode ser limitado se interesses relevantes o

justificarem natildeo podendo pocircr-se em causa os princiacutepios constitucionais da

necessidade adequaccedilatildeo e proibiccedilatildeo do excesso

Eacute assim que nos termos do nordm 1 do artordm 17ordm do CT os princiacutepios que

devem nortear a recolha de dados para efeitos de contrataccedilatildeo de pessoal satildeo a

necessidade e a proporcionalidade soacute podendo o empregador solicitar dados

sobre a vida privada que ldquosejam estritamente necessaacuterios e relevantesrdquo para

avaliar da aptidatildeo para a execuccedilatildeo do contrato (trata-se de uma regra idecircntica

agraves constantes por exemplo do SL italiano ou do Code du Travail francecircs (cfr

respectivos artigos L 121-6 e L 122-45) e natildeo podendo as limitaccedilotildees agrave

intimidade dos trabalhadores revelar-se desnecessaacuterias ou excessivas sob

pena de contrariedade aos artordms 26ordm e 18ordm2 da CRP

Por sua vez o artordm 19ordm1 fixa algumas situaccedilotildees em que pode ser

solicitada a realizaccedilatildeo ou apresentaccedilatildeo de testes e exames meacutedicos a

candidatos a emprego ou trabalhadores se tiverem ldquopor finalidade a protecccedilatildeo

e seguranccedila do trabalhador ou de terceirosrdquo e ldquoquando particulares exigecircncias

inerentes agrave actividade o justifiquemrdquo resulta do nordm 3 que esses exames

meacutedicos soacute podem ser feitos por ordem e sob a direcccedilatildeo de um meacutedico e o

resultado dos mesmos deveraacute ser inacessiacutevel agrave entidade empregadora

Tambeacutem os tribunais tecircm entendido que interesses dignos de protecccedilatildeo

social vg a seguranccedila rodoviaacuteria ou a prevenccedilatildeo de acidentes laborais

podem justificar a realizaccedilatildeo de testes de alcoolemia ou de exames para

detecccedilatildeo de drogas O direito agrave privacidade natildeo eacute absoluto pode ser limitado

se estiver em causa a protecccedilatildeo da sauacutede puacuteblica ou a seguranccedila do proacuteprio ou

de terceiros Existem pois actividades em que estes exames se justificam

condutores em transporte ferroviaacuterio rodoviaacuterio mariacutetimo pilotos

controladores de traacutefego aeacutereo condutores de maacutequinas Assim por

exemplo referindo-se ao domiacutenio rodoviaacuterio o Tribunal Constitucional jaacute

considerou que ldquoa submissatildeo do condutor ao teste de detecccedilatildeo de aacutelcool natildeo

viola o dever de respeito pela dignidade da pessoa do condutor nem o seu

direito ao bom nome e agrave reputaccedilatildeo nem o direito que ele tem agrave reserva da

intimidade da vida privadardquo Tambeacutem o STJ natildeo soacute considerou legiacutetima uma

ordem do empregador para que o trabalhador se sujeitasse a um teste de

alcoolemia como acrescentou que a imposiccedilatildeo da obrigatoriedade desse teste

atraveacutes de regulamento interno se encontra abrangida pelo poder directivo (e

regulamentar) do empregador violando o dever de obediecircncia o trabalhador

que se recuse a fazecirc-lo

Tomando agora um outro exemplo o da videovigilacircncia igualmente

aiacute se poderaacute dizer que a mesma se deve traduzir numa vigilacircncia geneacuterica

destinada a detectar factos situaccedilotildees ou acontecimentos incidentais e natildeo

numa vigilacircncia directamente dirigida aos postos de trabalho ou ao campo de

311

acccedilatildeo dos trabalhadores que configuraria uma tiacutepica medida de poliacutecia

transformando os trabalhadores indefinidamente em suspeitos de praacutetica de

iliacutecitos criminais com clara violaccedilatildeo dos seus direitos de personalidade A

protecccedilatildeo dos bens natildeo eacute um argumento sem mais Deve ter-se em conta

aspectos como o valor dos bens o facto de serem facilmente acessiacuteveis a

terceiros e de se tratar de infracccedilotildees graves Por outro lado a videovigilacircncia

oculta viola o artigo 20ordm nordms 1 e 3 do CT e o dever de lealdade e boa feacute nas

relaccedilotildees laborais

Quanto agrave admissibilidade da videovigilacircncia como meio de prova

entendemos ser legiacutetima a utilizaccedilatildeo no exerciacutecio do poder disciplinar de

dados conhecidos de forma acidental atraveacutes do controlo destinado a

satisfazer as necessidades previstas na lei por ex por razotildees de seguranccedila ou

de gestatildeo empresarial A videovigilacircncia pode servir para provar infracccedilotildees

disciplinares se estiver justificada por uma finalidade legiacutetima o

conhecimento acidental for o uacutenico meio de prova e a conduta em questatildeo

comprometa bens de relevacircncia constitucional

Se passarmos para o correio electroacutenico tambeacutem aiacute mais uma vez o

princiacutepio eacute o de que a actividade do trabalhador na empresa natildeo implica a

perda do direito agrave intimidade devendo o empregador escolher as formas de

controlo que tenham menor impacto sobre os direitos fundamentais dos

trabalhadores O empregador deve privilegiar metodologias geneacutericas de

controlo evitando a consulta individualizada de dados pessoais O empregador

natildeo deve fazer um controlo permanente e sistemaacutetico do e-mail dos

trabalhadores Esse controlo deve ser pontual e direccionado para as aacutereas e

actividades que apresentem um maior ldquoriscordquo para a empresa

O controlo dos e-mails ndash a realizar de forma aleatoacuteria ndash deve ter em

vista essencialmente garantir a seguranccedila do sistema e a sua performance Para

assegurar estes objectivos o empregador pode adoptar os procedimentos

necessaacuterios para ndash sempre com o conhecimento dos trabalhadores ndash fazer uma

ldquofiltragemrdquo de certos ficheiros que pela natureza da actividade desenvolvida

pelo trabalhador podem indiciar claramente natildeo se tratar de e-mails de

serviccedilo (vg ficheiros de imagens exe ou mp3)

O acesso ao e-mail deveraacute ser o uacuteltimo recurso a utilizar pelo

empregador devendo ser feito na presenccedila do trabalhador visado e limitar-se

agrave visualizaccedilatildeo dos endereccedilos dos destinataacuterios o assunto a data e hora do

envio (podendo o trabalhador se for o caso especificar a existecircncia de alguns

e-mails de natureza privada que natildeo pretende que sejam lidos pela entidade

empregadora)

312

Ateacute mesmo o facto de o empregador proibir o e-mail para fins privados

natildeo lhe daacute o direito de abrir automaticamente qualquer e-mail dirigido ao

trabalhador

313

A visatildeo personalista da famiacutelia e a afirmaccedilatildeo de

direitos individuais no seio do grupo familiar ndash a

emergecircncia de um novo paradigma decorrente do

processo de constitucionalizaccedilatildeo do direito da famiacutelia

Rute Teixeira Pedro

SUMAacuteRIO

I Consideraccedilotildees introdutoacuterias II A transformaccedilatildeo da famiacutelia e a

mudanccedila de modelo subjetivo em que a mesma se estrutura ndash do paradigma

institucional ao paradigma personalista III A constitucionalizaccedilatildeo do direito

da famiacutelia e a emergecircncia de conflitos entre direitos (fundamentais)

individuais dos familiares IV As repercussotildees da irrupccedilatildeo da individualidade

e da alteridade no acircmbito familiar 1) A promoccedilatildeo da autonomia privada nas

relaccedilotildees familiares 2) A afirmaccedilatildeo crescente do funcionamento da

responsabilidade civil no contexto familiar V Observaccedilotildees conclusivas

I CONSIDERACcedilOtildeES INTRODUTOacuteRIAS

I No contexto temporal da celebraccedilatildeo do quadrageacutesimo aniversaacuterio da

Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa importa refletir sobre a transformaccedilatildeo

que vem ocorrendo nas uacuteltimas quatro deacutecadas na perspetivaccedilatildeo juriacutedica da

famiacutelia sob o influxo do texto constitucional portuguecircs de 1976 O recuar da

importacircncia da dimensatildeo comunitaacuteria em favor do acentuar do relevo da

dimensatildeo individualista na configuraccedilatildeo do tratamento juriacutedico da entidade

familiar eacute um movimento que se vem paulatinamente produzindo no direito

portuguecircs agrave luz das novas diretrizes constitucionais Na verdade o

protagonismo dado agrave pessoa ndash a cada pessoa em si e por si apesar da sua

inserccedilatildeo na famiacutelia ndash reflete-se na definiccedilatildeo do recorte subjetivo das posiccedilotildees

juriacutedicas que emergem e se desenvolvem no interior do contexto familiar com

ineludiacuteveis consequecircncias na perspetivaccedilatildeo juriacutedica dos direitos dos

Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e Investigadora do

CIJE ndash Centro de Investigaccedilatildeo Juriacutedico-Econoacutemica da mesma Faculdade

314

familiares qua tale no espaccedilo intrafamiliar e tambeacutem com ecos que se

repercutem na relevacircncia de tais direitos fora daquele espaccedilo

II Propomo-nos entatildeo neste trabalho refletir sobre o assunto

considerando de seguida a mudanccedila de paradigma juriacutedico-familiar

decorrente do processo de constitucionalizaccedilatildeo do direito da famiacutelia que

importou uma promoccedilatildeo da visatildeo personalista da entidade familiar (parte II)

e uma consequente revoluccedilatildeo subjetivista no seu seio (parte III) Depois (parte

IV) daremos conta das repercussotildees de tal metamorfose concentrando a nossa

atenccedilatildeo por um lado na promoccedilatildeo da autonomia privada nas relaccedilotildees

familiares (1) e por outro lado na afirmaccedilatildeo crescente do funcionamento da

responsabilidade civil no contexto familiar (2) Finalizaremos com

breviacutessimas notas conclusivas sobre as profundas transformaccedilotildees que se vecircm

produzindo na intervenccedilatildeo do direito no arquipeacutelago familiar651

II A TRANSFORMACcedilAtildeO DA FAMIacuteLIA E A MUDANCcedilA DE MODELO

SUBJETIVO EM QUE A MESMA SE ESTRUTURA ndash DO PARADIGMA

INSTITUCIONAL AO PARADIGMA PERSONALISTA

I A estruturaccedilatildeo juriacutedica da subjetividade desenvolveu-se num

primeiro momento a partir da ideia de ldquostatusrdquo cunhada no Direito Romano

Aiacute se distinguiam trecircs estados652 ndash o status libertatis o status civitatis e o status

familiae653 ndash a que se associavam diferenccedilas naquilo que mais recentemente

mereceu a qualificaccedilatildeo conceptual como ldquocapacidade juriacutedicardquo654 na medida

651 Utilizamos aqui uma expressatildeo inspirada em imagens insulares frequentemente usadas

no acircmbito familiar Pensamos por um lado na muito conhecida frase de ARTURO CARLO

JEMOLO em que o insigne Autor se refere agrave famiacutelia como uma ilha tocada pelo mar juriacutedico

(La famiglia e il diritto in Pagine sparse di diritto e storiografia scelte e ordinate da L Scavo

Lombardo Milano Giuffregrave 1957 p 241) e por outro lado no tiacutetulo de um artigo da autoria

de FRANCESCO DONATO BUSNELLI em que o Autor se refere agrave transformaccedilatildeo

morfoloacutegica da famiacutelia (ldquoLa famiglia e lrsquoarcipelago familiarerdquo in Rivista di Diritto Civile

Ano XLVIII nordm 4 julho a agosto 2002 pp 509 e ss) 652 Vamos usar neste trabalho a palavra ldquoestadordquo como sinoacutenima de ldquostatusrdquo ainda que o

termo latino encerrasse um significado mais rico que em portuguecircs natildeo se conteacutem naquele

vocaacutebulo 653 Sobre esta divisatildeo tripartida vide CARLO FADDA Diritto delle Persone e della famiglia

Napoli Lorenzo Alvano Libraio Editore 1923 pp 42 a 166 e em particular sobre o ldquostatus

familiaerdquo sectsect 106 a 118 ie a partir da p 146 654 O conceito de capacidade juriacutedica ndash assim como o de personalidade juriacutedica com que

inicialmente se confundia ndash eacute muito recente remontando ao iniacutecio do seacuteculo XIX Para uma

315

em que o conhecimento do ldquostatusrdquo de uma pessoa permitia a identificaccedilatildeo da

maior ou menor extensatildeo da sua idoneidade para a titularidade eou para o

exerciacutecio de direitos655

No cruzamento dos seacuteculos XVIII e XIX por influecircncia do iluminismo

e do jusnaturalismo a construccedilatildeo do conceito universal e abstrato de

personalidade juriacutedica desferiu um duro golpe neste modelo de

subjetividade656 que havia marcado ateacute entatildeo a evoluccedilatildeo do pensamento

juriacutedico Apesar da sua derrocada na ciecircncia juriacutedica geral ele continuou a

projetar-se na famiacutelia refletindo-se na manutenccedilatildeo no acircmbito familiar ateacute

bem dentro do seacuteculo XX de um modelo institucional de sabor estatutaacuterio em

que os membros da famiacutelia se perspetivavam em funccedilatildeo da sua inserccedilatildeo no

grupo familiar em vez de serem perspetivados de acordo com as suas

caracteriacutesticas individuais657

II A posiccedilatildeo juriacutedica de cada sujeito recortava-se a partir do papel que

cada um era chamado a desempenhar no seio da famiacutelia agrave luz de uma ideia de

breve referecircncia agrave sua histoacuteria vide DIOGO COSTA GONCcedilALVES Personalidade vs Capacidade

Juriacutedica ndash um regresso ao monismo conceptual in Revista da Ordem dos Advogados Ano 75

janeiro-junho de 2015 pp 121 e ss 655 O ldquostatusrdquo associava-se assim quer ao conceito de capacidade de gozo quer ao de

capacidade de exerciacutecio Ademais por vezes fazia-se ateacute uma associaccedilatildeo agrave ideia de

personalidade que apresentava no Direito Romano vaacuterios graus Aiacute se admitiam trecircs espeacutecies

de penalidades que constituiacuteam trecircs situaccedilotildees de ldquodiminuiccedilatildeo da personalidade (juriacutedica)rdquo

Assim SEBASTIAtildeO CRUZ Direito Romano (Ius Romanum) I Introduccedilatildeo Fontes 4ordf Ediccedilatildeo

Revista e Actualizada Coimbra Dislivro 1984 p197 Note-se que a distinccedilatildeo entre

capacidade e personalidade juriacutedica data de haacute cerca de dois seacuteculos DIOGO COSTA

GONCcedilALVES Personalidade vs Capacidade Juriacutedica ndash um regresso ao monismo conceptual

cit 656 Anteriores ataques agrave ideia de ldquostatusrdquo haviam-se produzido por um lado com a aboliccedilatildeo

da escravatura que esvaziou a relevacircncia do status libertatis e por outro lado com a lenta

eliminaccedilatildeo da diversidade de tratamento juriacutedico entre cidadatildeos e natildeo cidadatildeos de um Estado

com a consequente degradaccedilatildeo a partir do seacuteculo XIX do relevo do status civitatis Para

maiores desenvolvimentos sobre o significado histoacuterico de ldquostatusrdquo e da sua influecircncia na

conformaccedilatildeo do modelo tradicional de subjetividade familiar vide o nosso Convenccedilotildees

matrimoniais A autonomia na conformaccedilatildeo dos efeitos patrimoniais do casamento

Dissertaccedilatildeo apresentada na Faculdade de Direito da Universidade do Porto em 2016 ainda

ineacutedito pp 57 e ss 657 Num modelo estatutaacuterio a diferenciaccedilatildeo dos sujeitos faz-se em funccedilatildeo do estatuto que a

cada um se reconhece no interior de um determinado agrupamento social sem se atender agraves

caracteriacutesticas particulares que sustentavam ou atenuavam a respetiva idoneidade para uma

atuaccedilatildeo produtora de efeitos juriacutedicos

316

especializaccedilatildeo de funccedilotildees e de complementaridade das mesmas em prol do

bem comunitaacuterio

Na verdade de forma persistente ateacute ao seacuteculo passado a famiacutelia658

apresentava-se como uma entidade corporativa orientada segundo um modelo

orgacircnico para um fim unitaacuterio o sujeito inseria-se entatildeo nesta formaccedilatildeo

social como um elemento de um organismo659 em que as partes cooperavam

para o funcionamento do todo Nesta perspetiva colaborativa o fim unitaacuterio ndash

por isso comunitaacuterio ndash sobrepunha-se aos fins individuais de cada um dos

sujeitos que a compunham prevalecendo consequentemente sobre a vontade

dos sujeitos da relaccedilatildeo familiar A famiacutelia aparecia assim como uma entidade

unificadora de fim (ldquoZweckzusammenhangrdquo660) cujo bom funcionamento

demandava uma estrutura hierarquizada com a consequente afirmaccedilatildeo da

superioridade da posiccedilatildeo juriacutedica de um dos seus membros aquele que como

marido e pai era o ldquochefe de famiacuteliardquo Como exemplo paradigmaacutetico deste

modelo familiar aparece entatildeo o do casamento frequentemente denominado

atraveacutes da expressatildeo de origem inglesa ldquobreadwinner-housewife marriagerdquo

acolhido ainda entre noacutes na versatildeo original do Coacutedigo Civil de 1966661 que

se caracterizava pela outorga do poder marital e paternal ao cocircnjuge do sexo

masculino e pela atribuiccedilatildeo do governo domeacutestico ao cocircnjuge do sexo

feminino

III A estrutura intersubjetiva desnivelada que caracterizava

matricialmente as relaccedilotildees juriacutedico-familiares e a funcionalizaccedilatildeo do

exerciacutecio das posiccedilotildees juriacutedicas encabeccediladas por cada sujeito agrave satisfaccedilatildeo de

um interesse que natildeo concernia apenas nem necessariamente em primeira

658 O paradigma institucional que descrevemos em texto manifestava-se em particular na

famiacutelia matrimonial que se apresentava historicamente como o modelo legiacutetimo de formaccedilatildeo

da unidade familiar e que por isso tradicionalmente ocupou uma posiccedilatildeo nuclear no

tratamento juriacutedico da famiacutelia 659 A integraccedilatildeo comunitaacuteria de que falamos em texto natildeo importou no entanto a

personificaccedilatildeo da entidade familiar nem a perspetivaccedilatildeo dos membros da famiacutelia como

oacutergatildeos em sentido teacutecnico da mesma 660 As posiccedilotildees juriacutedico-familiares apareciam fundamentalmente como deveres morais

(ldquosittliche Pflichtenrdquo) entretecendo-se entre eles uma teia de ligaccedilotildees (ldquoZusammenhangrdquo)

finalisticamente orientada (ldquoZweckzusammenhangrdquo) ENNECCERUSNIPPERDEY

Lehrbuch des Buumlrgerlichen Rechts Allgemeiner Teil des Buumlrgerlichen Rechts Erster Band

15ordf ediccedilatildeo Tuumlbingen JCB Mohr 1959 p 455 661 Segundo o artordm 1674ordm do Coacutedigo Civil na versatildeo originaacuteria (constante do Decreto-lei nordm

47344 de 25 de novembro de 1966) o marido era erigido agrave categoria de chefe de famiacutelia e

nessa qualidade eram-lhe acometidas as funccedilotildees de representaccedilatildeo da famiacutelia e de decisatildeo em

todos os atos da vida conjugal em comum Nos termos do 1677ordm nordm 1 da mesma versatildeo agrave

mulher era atribuiacutedo o governo domeacutestico

317

linha ao respetivo titular insuflava aquelas posiccedilotildees de uma forte carga

deveral e revestia-as de um caraacuteter indisponiacutevel

As posiccedilotildees juriacutedicas familiares apresentavam-se por isso ndash e natildeo

apenas no domiacutenio da filiaccedilatildeo ndash como poderes-deveres ou como ldquodireitos de

fim altruiacutesticordquo662 cujo exerciacutecio devia ser iluminado mais pelo bem da

famiacutelia do que pelo respeito da vontade do correspondente titular Para tal

contribuiacutea decisivamente a especial natureza eacutetica do fim por elas servido

(ldquobesonderer sittlicher Zweckrdquo663) e a que o direito procurava emprestar nem

sempre com sucesso forccedila de vinculaccedilatildeo

IV A manutenccedilatildeo desta perspetiva acarretou repercussotildees vaacuterias no

plano juriacutedico quer quanto agrave natureza e forma de intervenccedilatildeo do direito na

regulaccedilatildeo da famiacutelia quer quanto agrave conformaccedilatildeo da condiccedilatildeo juriacutedica dos seus

membros

Assim por um lado naquele modelo organizativo da famiacutelia que

ditava uma aproximaccedilatildeo das relaccedilotildees familiares agraves relaccedilotildees disciplinadas pelo

direito puacuteblico se ancorava a natureza especial reconhecida secularmente ao

direito da famiacutelia dificultando a sua qualificaccedilatildeo no mare magnum do

direito664

Por outro lado o direito subjetivo como expressatildeo maacutexima da

soberana autodeterminaccedilatildeo da pessoa e como instrumento idoacuteneo agrave

prossecuccedilatildeo dos interesses do respetivo titular natildeo traduzia adequadamente a

natureza das posiccedilotildees juriacutedicas exercidas pelos sujeitos agrave luz deste modelo

familiar

V Este deacutefice de individualizaccedilatildeo subjetiva na atuaccedilatildeo dos membros

da famiacutelia concorria a par de outros fatores665 para a edificaccedilatildeo de um

enquadramento familiar desfavoraacutevel agrave autoconformaccedilatildeo dos efeitos juriacutedicos

das relaccedilotildees familiares mesmo que ela concernisse apenas agrave sua componente

patrimonial Ademais faltava um dos pressupostos necessaacuterios ao

662 LUIZ DA CUNHA GONCcedilALVES Tratado de Direito Civil em comentaacuterio ao Coacutedigo

Civil Portuguecircs Vol I Coimbra Coimbra Editora 1929 p 277 663 ENNECCERUSNIPPERDEY op cit p 454 664 A sua inclusatildeo no hemisfeacuterio do direito privado ou do direito puacuteblico foi objeto de um

prolongado debate ANTONIO CICU jurista italiano escrevendo no iniacutecio do seacuteculo XX fez

um estudo aprofundado sobre esta questatildeo pondo a nu que existia ldquouma afinidade entre direito

puacuteblico e direito da famiacutelia fundada sobre uma estrutura anaacuteloga das respetivas relaccedilotildees

juriacutedicasrdquo Il diritto di Famiglia Teoria Generale Roma Cittagrave di Castello coi tipi della Societagrave

laquoLeonardo da Vinciraquo 1914 p 315 665 Para mais desenvolvimentos veja-se o nosso Convenccedilotildees matrimoniais A autonomia na

conformaccedilatildeo dos efeitos patrimoniais do casamento cit pp 98 e ss

318

florescimento da atividade negocial que era o da afirmaccedilatildeo da igualdade das

pessoas que se perfilam como partes contratantes e que atraveacutes de acordo

configuram os efeitos juriacutedicos da relaccedilatildeo juriacutedica de que satildeo titulares Note-

se que natildeo se tratava de uma situaccedilatildeo ndash constatada noutros domiacutenios do direito

civil ndash de agrave igualdade formal natildeo corresponder uma igualdade material no

acircmbito familiar inexistia o reconhecimento ainda que meramente formal da

igualdade jaacute que a estrutura desnivelada caracterizava por natureza as

relaccedilotildees familiares A hostilidade ao fenoacutemeno negocial neste domiacutenio

manifestava-se em particular a partir do momento em que a relaccedilatildeo familiar

se constituiacutea assim se fazendo jus agrave imutabilidade e indisponibilidade dos

estados pessoais que a mesma originava

Acrescia que tambeacutem por causa do assinalado deacutefice666 se arredava a

possibilidade de demandar o cumprimento coercitivo do que era devido no

acircmbito de relaccedilotildees familiares afastando-se igualmente em muitas situaccedilotildees

o funcionamento da responsabilidade civil e consequentemente a

possibilidade de ressarcimento dos danos que desse incumprimento pudessem

advir

A uma famiacutelia institucional correspondia pois uma intervenccedilatildeo do

direito que se caracterizava pela especialidade das reaccedilotildees juriacutedicas que no

seu acircmbito podiam funcionar em muitos casos reaccedilotildees inexistentes ou pouco

mais que platoacutenicas proacuteximas das das ordens normativas que natildeo beneficiam

da imposiccedilatildeo coativa (muitas normas se apresentavam como proclamaccedilotildees de

modelos de conduta sem sanccedilatildeo) ou noutros casos quando elas existiam eram

reaccedilotildees especiais que passavam mais pela inibiccedilatildeo do exerciacutecio ou pela

extinccedilatildeo da titularidade de uma posiccedilatildeo familiar ndash como acontecia667

respetivamente com as inibiccedilotildees do exerciacutecio das responsabilidades parentais

para a violaccedilatildeo dos deveres paternais ou com o decretamento da separaccedilatildeo de

pessoas e bens ou divoacutercio para os incumprimentos dos deveres conjugais

666 A que se juntava a forte componente pessoal que tambeacutem afastava a suscetibilidade de

execuccedilatildeo especiacutefica 667 E ainda acontece (respetivamente nos termos dos arts 1913ordm e ss do Coacutedigo Civil ie

CC para a inibiccedilatildeo do exerciacutecio das responsabilidades parentais e nos termos do art 1781ordm

d) do mesmo Coacutedigo ainda que hoje no acircmbito do divoacutercio baseado na rutura do casamento

e sem emissatildeo de declaraccedilatildeo de culpa resultante da reforma introduzida pela Lei nordm 612008

de 31 de outubro) Mas agora a mudanccedila de perspetivaccedilatildeo da realidade familiar consente o

recurso a um arsenal de instrumentos juriacutedicos que natildeo satildeo exclusivos do direito da famiacutelia

319

III A CONSTITUCIONALIZACcedilAtildeO DO DIREITO DA FAMIacuteLIA E A

EMERGEcircNCIA DE CONFLITOS ENTRE DIREITOS (FUNDAMENTAIS)

INDIVIDUAIS DOS FAMILIARES

I O quadro juriacutedico que acabamos de descrever viria a sofrer uma

profunda alteraccedilatildeo na segunda metade do seacuteculo XX Para esse movimento

transformador muito contribuiu a produccedilatildeo de uma mudanccedila no plano faacutectico

que se tornou particularmente visiacutevel nesse periacuteodo A diversificaccedilatildeo das

formaccedilotildees familiares ndash resultante da conjugaccedilatildeo das tendecircncias de reduccedilatildeo do

nuacutemero de casamentos de multiplicaccedilatildeo das ruturas matrimonias de aumento

das uniotildees natildeo matrimonializadas e de dissociaccedilatildeo entre a filiaccedilatildeo e o

casamento ndash produziu um fenoacutemeno que se pode denominar como ldquoprimeira

desinstitucionalizaccedilatildeordquo da famiacutelia A esta transformaccedilatildeo seguiu-se depois

uma metamorfose no plano juriacutedico do dever ser concretizada em particular

no uacuteltimo terccedilo do seacuteculo passado com importantes reformas legislativas

incidentes sobre o direito da famiacutelia em vaacuterios ordenamentos entre eles no

ordenamento portuguecircs com as alteraccedilotildees introduzidas no plano da lei

ordinaacuteria na segunda metade da deacutecada de 70 sinteticamente referidas pelo

epiacuteteto ldquoreforma de 1977rdquo668 A este segundo movimento impulsionado pelo

primeiro e simultaneamente legitimador e ateacute impulsionador da multiplicaccedilatildeo

dos efeitos faacutecticos que o primeiro jaacute produzira se pode dar o nome de

ldquosegunda desinstitucionalizaccedilatildeordquo da famiacutelia669

II Ora o epicentro do abalo siacutesmico que provoca a derrocada no plano

juriacutedico do modelo familiar do periacuteodo anterior localiza-se no plano

constitucional670 Por consequecircncia a causa do processo que conduziu agraves

transformaccedilotildees em que se desdobra esta segunda desinstitucionalizaccedilatildeo de

natureza juriacutedica merece justamente tambeacutem o epiacuteteto de

ldquoconstitucionalizaccedilatildeo do direito da famiacuteliardquo traduzindo a influecircncia que na

668 A designaccedilatildeo fica a dever-se agrave magnitude das transformaccedilotildees operadas pelo Decreto-lei

49677 de 25 de novembro A transformaccedilatildeo do direito constituiacutedo comeccedilou antes no plano

legal com vaacuterios diplomas que foram emanados mesmo antes da entrada em vigor da

Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa nomeadamente quanto ao regime juriacutedico do divoacutercio

e da separaccedilatildeo de pessoas e bens (nomeadamente com o Decreto-lei 26175 de 27 de maio e

com o Decreto-lei 56176 de 17 de julho) 669 Inspiramo-nos aqui na ideia de ldquodouble deacutesinstitutionnalisationrdquo de que fala Louis

Roussel em La famille incertaine Paris Editions Odile Jacob 1989 pp 90 e ss 670 Para um estudo da conexatildeo entre a Constituiccedilatildeo e a Famiacutelia no seacuteculo XX com

consideraccedilotildees sobre a Constituiccedilatildeo de 1933 e a de 1976 vide JORGE MIRANDA Sobre a

relevacircncia constitucional da Famiacutelia in Revista da Faculdade de Direito da Universidade do

Porto Vol XI ano 2014 pp 78 e ss

320

conformaccedilatildeo das soluccedilotildees de direito (ordinaacuterio) da famiacutelia exerceram as

normas e princiacutepios constitucionalmente consagrados entre noacutes na

Constituiccedilatildeo de 1976 A referida influecircncia manifestou-se natildeo soacute ao niacutevel do

processo de reformulaccedilatildeo legislativa do direito positivo mas tambeacutem ao niacutevel

da aplicaccedilatildeo do direito anteriormente constituiacutedo que atraveacutes da operaccedilatildeo de

interpretaccedilatildeo671 no quadro da nova moldura constitucional passou a merecer

uma leitura renovada

Cumpre aliaacutes recordar que a marca que o direito constitucional

imprimiu na evoluccedilatildeo do direito da famiacutelia nas uacuteltimas deacutecadas natildeo eacute

resultado de um fenoacutemeno que se tenha produzido exclusivamente nesse

ramo do direito tendo o mesmo ocorrido em todo o hemisfeacuterio do direito civil

Na verdade tem sido assinalada a transversalidade do processo de

ldquoconstitucionalizaccedilatildeo do direito civilrdquo672 dadas as implicaccedilotildees decorrentes da

aplicaccedilatildeo no acircmbito das relaccedilotildees juriacutedico-privadas de normas e princiacutepios

constitucionais673 A esse propoacutesito avulta a aplicaccedilatildeo do princiacutepio da

igualdade nas suas vertentes formal e material por forccedila da sua proclamaccedilatildeo

geral no art 13ordm e da consagraccedilatildeo dos seus vaacuterios corolaacuterios de que o art 36ordm

671 Em que para aleacutem do recurso a outros instrumentos da hermenecircutica juriacutedica avulta o

princiacutepio da interpretaccedilatildeo conforme agrave Constituiccedilatildeo Sobre a interpretaccedilatildeo conforme agrave

Constituiccedilatildeo vide GOMES CANOTILHO Direito constitucional e teoria da constituiccedilatildeo

Reimpressatildeo da 7ordf ed Coimbra Almedina 2013 pp 1226 e ss Referindo-se agrave importacircncia

da aplicaccedilatildeo na aacuterea do direito da famiacutelia da doutrina da ldquointerpretaccedilatildeo conforme agrave

Constituiccedilatildeordquo a propoacutesito do novo texto constitucional de 1976 PEREIRA COELHO in

Casamento e famiacutelia no Direito Portuguecircs in Temas de Direito da Famiacutelia Ciclo de

Conferecircncias no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados Coimbra Livraria

Almedina 1986 pp 6 e 7 672 A expressatildeo eacute usada por J J GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA Constituiccedilatildeo

da Repuacuteblica Portuguesa Anotada Vol I artordm 1ordm a 107ordm 4ordf ediccedilatildeo revista Coimbra

Coimbra Editora 2007 e reimpressatildeo em 2014 anotaccedilatildeo ao artordm 13ordm p 349 Para um estudo

de uma manifestaccedilatildeo da constitucionalizaccedilatildeo no direito civil veja-se NUNO PINTO DE

OLIVEIRA O direito geral de personalidade e a ldquosoluccedilatildeo do dissentimentordquo Ensaio sobre um

caso de ldquoconstitucionalizaccedilatildeordquo do direito civil Centro de Direito Biomeacutedico da Faculdade de

Direito da Universidade de Coimbra Coimbra Coimbra Editora 2002 673 Na concretizaccedilatildeo deste processo de constitucionalizaccedilatildeo assumiram protagonismo os

mecanismos da ldquoeficaacutecia externa dos direitos fundamentaisrdquo e da sua aplicaccedilatildeo horizontal

direta nas relaccedilotildees juriacutedicas entre particulares com traduccedilatildeo no regime previsto entre noacutes no

artordm 18ordm da CRP Sobre esta problemaacutetica vide CLAUS-WILHELM CANARIS

Grundrechte und Privatrecht in AcP 1984 Heft 3 pp 201 e ss e ldquoDireitos fundamentais e

Direito Privadordquo traduccedilatildeo de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto Almedina 2012 e

entre noacutes Joseacute Carlos VIEIRA DE ANDRADE Os direitos fundamentais na Constituiccedilatildeo

Portuguesa de 1976 5ordf ediccedilatildeo Coimbra Almedina 2012 pp 229 e ss

321

nordm 3 da Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa (doravante CRP) quanto ao

acircmbito conjugal eacute um dos vaacuterios exemplos

Note-se que as repercussotildees do assinalado movimento de

constitucionalizaccedilatildeo em geral e da irradiaccedilatildeo do princiacutepio da igualdade para

as relaccedilotildees entre particulares em especial natildeo foram idecircnticas em todos os

setores do direito civil Na verdade enquanto nos outros ramos desse domiacutenio

do direito privado a interferecircncia das diretrizes constitucionais acarretou uma

limitaccedilatildeo do poder de autodeterminaccedilatildeo dos particulares ndash ainda que

justificada pela finalidade uacuteltima de se servir a proacutepria autonomia674 ndash no

acircmbito do direito da famiacutelia como veremos aquela influecircncia importou um

alargamento desse poder com a (decorrente e causante) erosatildeo do caraacuteter

institucional da realidade familiar de que falaacutemos na secccedilatildeo anterior

imprimindo uma nova marca estruturante a todo direito da famiacutelia e dentro

dele em especial ao direito matrimonial

III No acircmbito familiar a assinalada ldquoconstitucionalizaccedilatildeordquo adveacutem

tambeacutem em especial de uma particular transformaccedilatildeo ocorrida no plano

constitucional e que vai importar a deslocaccedilatildeo do ponto de equiliacutebrio entre os

interesses individuais e os interesses comunitaacuterios presentes no referido

domiacutenio Na verdade o texto constitucional de 1976 acolhe uma ldquoconceccedilatildeo

personalista da famiacutelia e do casamentordquo como decorrecircncia aliaacutes da

proclamaccedilatildeo dos princiacutepios basilares da dignidade da pessoa humana no artordm

1 e do ldquorespeitordquo e ldquogarantia da efetivaccedilatildeo dos direitos e liberdade

fundamentaisrdquo previstos no artordm 2ordm da CRP675

Natildeo obstante a persistecircncia da tutela da dimensatildeo institucional da

famiacutelia enquanto ldquoelemento fundamental da sociedaderdquo como se lecirc no artordm 67ordm

674 Explicando ateacute a autonomizaccedilatildeo de certos ramos de feiccedilatildeo finalista e protecionista de

grupos delimitados de pessoas carecidas de tutela especial como aconteceu com o direito do

trabalho e com o direito do consumo Sobre a autonomizaccedilatildeo e a evoluccedilatildeo do direito do

trabalho ldquosob o desiacutegniordquo da ldquoprotecccedilatildeo do trabalhadorrdquo vide MARIA DO ROSAacuteRIO

PALMA RAMALHO Tratado de Direito do Trabalho Parte I ndash Dogmaacutetica Geral 3ordf ediccedilatildeo

Coimbra Almedina 2012 pp 52 a 61 Sobre o processo de autonomizaccedilatildeo do direito do

consumo em Portugal sobre a pertinecircncia dessa autonomizaccedilatildeo e as razotildees que lhe subjazem

vide Antoacutenio PINTO MONTEIRO Sobre o direito do consumidor em Portugal in Estudos de

Direito do Consumidor nordm 4 Coimbra 2002 675 JORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS Constituiccedilatildeo Portuguesa Anotada Tomo I

Introduccedilatildeo Geral Preacircmbulo Artigos 1ordm a 79ordm 2ordf ediccedilatildeo Coimbra Coimbra Editora 2010

anotaccedilatildeo ao artordm 36ordm p 807

322

da CRP676 o acolhimento de uma tal conceccedilatildeo677 importa como veremos a

acentuaccedilatildeo da importacircncia reconhecida agrave dimensatildeo individual-subjectiva da

famiacutelia e consequentemente dos direitos de que satildeo titulares as pessoas que a

compotildeem Na verdade a famiacutelia e o casamento passam a ser entendidos como

um meio de concretizaccedilatildeo do desenvolvimento pessoal dos cocircnjuges como eacute

reconhecido aliaacutes no referido preceito constitucional678

Este novo enquadramento constitucional consente ndash promovendo ateacute

ndash uma perspetivaccedilatildeo mais individualista da famiacutelia como passou a estar

evidenciado na jurisprudecircncia do Tribunal Constitucional A tiacutetulo meramente

ilustrativo do que acaba de ser dito pode considerar-se o teor do Acoacuterdatildeo

desse Tribunal nordm 69098 de 15 de dezembro de 1998679 Nesta decisatildeo

Tribunal Constitucional destaca que agrave luz dos dados fornecidos pelo novo

texto constitucional a ordem juriacutedica natildeo pode desatender a transformaccedilatildeo da

conceccedilatildeo da relaccedilatildeo familiar matrimonial operada na sociedade e

constitucionalmente autorizada Nesse sentido na operaccedilatildeo de apreciaccedilatildeo do

direito ordinaacuterio reformado680 o referido Tribunal afirma que tem que se ter

676 A famiacutelia e o casamento continuam a merecer proteccedilatildeo constitucional sob a forma de

garantias institucionais GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA Constituiccedilatildeo da

Repuacuteblica Portuguesa Anotada Vol I cit anotaccedilatildeo ao artordm 36ordm p 561 e ao artordm 67ordm p 856

No mesmo sentido apesar das ldquodisposiccedilotildees algo nebulosas da Constituiccedilatildeordquo PEREIRA

COELHO in Casamento e famiacutelia no Direito Portuguecircs cit pp 3 e 5 a 7 677 A conceccedilatildeo de famiacutelia acolhida no texto constitucional de 1976 eacute muito distinta da que

resultava da Constituiccedilatildeo de 1933 em que se enfatizava a dimensatildeo objetiva ao optar-se por

no corpo do artigo em que se acolhia a tutela constitucional da realidade familiar (artordm 13ordm)

se pocircr a toacutenica nos modos (taxativos) de constituiccedilatildeo da famiacutelia (ldquoa constituiccedilatildeo da famiacutelia

assenta no casamento e filiaccedilatildeo legiacutetimahelliprdquo) sem traccedilo revelador da correspondente

imputaccedilatildeo subjetiva dos mesmos na esfera juriacutedica das pessoas a que aquela constituiccedilatildeo [da

famiacutelia] respeitava e em que se perspetivava a famiacutelia tal como as freguesias os concelhos e

as corporaccedilotildees como ldquoorganismos componentes da Naccedilatildeordquo 678 GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa

Anotada Vol I cit anotaccedilatildeo ao artordm 36ordm e ao artordm 67ordm 679 In httpwwwtribunalconstitucionalpttcacordaos19980690html acedido pela uacuteltima

vez no dia 15 de outubro de 2016 como aliaacutes todos os documentos consultados na internet

referidos neste trabalho 680 A citaccedilatildeo feita em texto integra a linha argumentativa apresentada pelo Tribunal

Constitucional no Acoacuterdatildeo referido para defender a necessidade decorrente da CRP de no

plano de direito ordinaacuterio ser dada relevacircncia agrave mera separaccedilatildeo de facto na definiccedilatildeo das

pessoas com direito a constituiacuterem-se como assistentes em processo penal O Tribunal

Constitucional julgou por isso inconstitucional por violaccedilatildeo do disposto no artigo 20ordm nordm 1

conjugado com o artigo 67ordm nordm 1 a norma constante do artigo 68ordm nordm 1 aliacutenea c) do Coacutedigo

de Processo Penal na interpretaccedilatildeo que dava acolhimento no exerciacutecio daquele direito agrave

323

em atenccedilatildeo que casamento deixou ldquode ser encarado como uma instituiccedilatildeo

acima dos proacuteprios cocircnjuges para assumir as caracteriacutesticas de uma instituiccedilatildeo

que apenas permanece enquanto ambos de forma livre a reconhecerem como

fonte de afeto e realizaccedilatildeo pessoalrdquo Sintomaticamente o direito ao divoacutercio

merecedor de tutela constitucional passa a ser protegido no plano ordinaacuterio de

forma universal para todos os cocircnjuges em todos os casamentos embora

sujeito naturalmente a certos requisitos que vecircm diminuindo em nuacutemero e

densidade ao longo do tempo681

Ora no difiacutecil jogo de articulaccedilatildeo entre o interesse comunitaacuterio da

famiacutelia e o interesse individual de cada um dos seus membros daacute-se entatildeo

uma oscilaccedilatildeo nos pontos de equiliacutebrio para que o ordenamento juriacutedico

aponta Se no passado eles se situavam numa localizaccedilatildeo mais proacutexima do

polo comunitaacuterio com a Constituiccedilatildeo de 1976 deslocam-se para um ponto com

mais proximidade do polo individualista Natildeo eacute um movimento de uma

inversatildeo absoluta em termos de polarizaccedilatildeo Eacute no entanto uma mudanccedila

acentuada que vai produzir alteraccedilotildees nas soluccedilotildees de direito da famiacutelia

IV Acresce que a tutela da pessoa reclama como imperativo ocircntico a

tutela da liberdade nas suas muacuteltiplas expressotildees nomeadamente a liberdade

de atuaccedilatildeo como liberdade de realizaccedilatildeo da personalidade ndash necessariamente

individual e uacutenica Nesse sentido o direito ao desenvolvimento da

personalidade consagrado no artordm 26ordm eacute aliaacutes particularmente fecundo de

significado para tutela da esfera nuclear das pessoas Estas como seres

dotados de poder de autodeterminaccedilatildeo gozam de liberdade de definiccedilatildeo do

projeto biograacutefico que pretendem adotar de liberdade de accedilatildeo para

concretizaccedilatildeo das decisotildees em que esse projeto se desdobre e

consequentemente de liberdade de realizaccedilatildeo da sua personalidade682 sendo

prevalecircncia absoluta do cocircnjuge natildeo separado judicialmente de pessoas e bens ainda que

separado de facto com a consequente exclusatildeo da possibilidade do exerciacutecio desse direito por

outras pessoas (os ascendentes do ofendido falecido) 681 Para uma exposiccedilatildeo da evoluccedilatildeo do regime juriacutedico do divoacutercio em Portugal vide PEREIRA

COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA Curso de direito da famiacutelia Vol I - Introduccedilatildeo direito

matrimonial 5ordf ed Coimbra com a colaboraccedilatildeo de Rui Moura Ramos Coimbra Ediccedilotildees da

Universidade de Coimbra 2016 pp 684 a 690 682 Na esteira da doutrina e da jurisprudecircncia alematilde desenvolvida por referecircncia ao artordm 2ordm

nordm 1 da Lei Fundamental alematilde aceita-se que tambeacutem entre noacutes e apesar das diferenccedilas em

relaccedilatildeo agrave previsatildeo do mesmo direito no nosso artordm 26ordm a tutela do direito ao desenvolvimento

da personalidade abrange a proteccedilatildeo quer de um direito geral de personalidade quer de uma

da liberdade geral de accedilatildeo Assim agrave luz desse entendimento servindo-nos das palavras de

GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA a tutela constitucional daquele direito inclui a

proteccedilatildeo da ldquoformaccedilatildeo livre da personalidade sem planificaccedilatildeo ou imposiccedilatildeo estatal de

modelos de personalidaderdquo (i) a proteccedilatildeo da ldquoliberdade de acccedilatildeo de acordo com o projecto de

324

a famiacutelia um espaccedilo privilegiado para tal concretizaccedilatildeo Esta liberdade revela-

se nesse acircmbito logo a propoacutesito da constituiccedilatildeo da famiacutelia683 manifestando-

se tambeacutem na vigecircncia das relaccedilotildees familiares e mesmo tendo por referecircncia

o cenaacuterio da sua extinccedilatildeo684

V A visatildeo personalista da famiacutelia eacute aliaacutes uma expressatildeo especial de

uma preocupaccedilatildeo maior ndash no sentido de mais ampla porque geral e nessa

medida transversal a todo o ordenamento juriacutedico685 ndash direcionada a niacutevel

constitucional para a tutela da pessoa e dos muacuteltiplos bens (de personalidade)

em que ela se desdobra como concretizaccedilatildeo do princiacutepio fundamental de

vida e a vocaccedilatildeo e capacidades proacutepriasrdquo (ii) e ainda a proteccedilatildeo da ldquointegridade da pessoardquo

visando fundamentalmente ldquoa garantia da esfera juriacutedico-pessoal no processo de

desenvolvimentordquo (iii) Como os mesmos Autores evidenciam esta proteccedilatildeo natildeo se esgota

numa conceccedilatildeo estaacutetica da personalidade antes contendo uma vertente dinacircmica

correspondendo a uma ldquolaquopessoa em devirraquordquo com as potencialidade de enriquecimento da ldquosua

dignidade em termos de capacidade de prestaccedilatildeo no plano pessoal social e culturalrdquo

Constituiccedilatildeo da Repuacuteblica Portuguesa Anotada Vol I cit anotaccedilatildeo ao artordm 26ordm pp 463 e

464 (o itaacutelico encontra-se no original) 683 Destacando-se a abertura constitucional ao reconhecimento juriacutedico (ainda que

diferenciado) de novas opccedilotildees (manifestaccedilotildees) de vida de natureza familiar (ou parafamiliar)

consentida pela inexistecircncia no texto constitucional de um elenco fechado de fontes de

relaccedilotildees familiares (e de relaccedilotildees parafamiliares) A questatildeo tem sido discutida sobretudo a

propoacutesito da abertura constitucional de uma tutela direta agrave uniatildeo de facto Abertura que alguns

Autores extraem precisamente da previsatildeo do direito a constituir famiacutelia incluiacutedo no nordm 1 do

artordm 36ordm e outros entendem dever encontrar-se contida no acircmbito normativo do direito ao

desenvolvimento da personalidade consagrado no artordm 26ordm ambos da Constituiccedilatildeo A este

propoacutesito vide PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA Curso de direito da famiacutelia cit

pp 60 a 64 684 Pensamos aqui em particular na extinccedilatildeo da relaccedilatildeo matrimonial jaacute que a possibilidade

de pocircr fim agrave relaccedilatildeo juriacutedico-familiar por vontade de um ou de ambos os sujeitos da relaccedilatildeo

natildeo eacute um atributo comum agrave generalidade das relaccedilotildees dessa espeacutecie Assim o parentesco natildeo

cessa em princiacutepio salvo o decretamento da adoccedilatildeo que produz os efeitos previstos no artordm

1986ordm nordm 1 do CC nomeadamente a extinccedilatildeo dos viacutenculos familiares com a famiacutelia

bioloacutegica (parentesco) A afinidade insuscetiacutevel de cessaccedilatildeo ateacute agrave entrada em vigor da Lei nordm

612008 de 31 de outubro hoje pode cessar ainda que apenas por dissoluccedilatildeo por divoacutercio do

casamento que lhe serviu de base Ressalvadas as hipoacuteteses de revisatildeo de sentenccedila previstas

no art 1990ordm do CC e a impugnaccedilatildeo da sentenccedila atraveacutes de recurso extraordinaacuterio de revisatildeo

previsto na lei processual civil o viacutenculo adotivo uma vez constituiacutedo tambeacutem natildeo se

extinguiraacute sendo irrevogaacutevel ainda que adotante e adotado acordassem nesse sentido (art

1989ordm do CC) 685 A evoluccedilatildeo ocorrida no acircmbito do regime da responsabilidade civil e a intervenccedilatildeo pro

damnato que assim vem verificando eacute um dos exemplos desta preocupaccedilatildeo crescente do

direito com a tutela da pessoa

325

respeito pela dignidade da pessoa (artordm 1 da CRP) Tambeacutem na aacuterea familiar

a pessoa ndash cada uma das pessoas que integram a famiacutelia ndash conquista relevacircncia

Eacute que pela inserccedilatildeo numa relaccedilatildeo juriacutedico-familiar aos respetivos sujeitos e

no caso da famiacutelia matrimonializada aos cocircnjuges natildeo deixa de ser

reconhecida a titularidade de direitos e nomeadamente de direitos

fundamentais e direitos de personalidade Naturalmente que do teor do

conteuacutedo deveral a que os familiares ficam vinculados ndash vertido por exemplo

no acircmbito do casamento nos deveres conjugais emergentes da assunccedilatildeo do

compromisso matrimonial (art 1672ordm do Coacutedigo Civil doravante CC686) ndash

podem derivar limitaccedilotildees especiacuteficas ao exerciacutecio desses direitos e ao acircmbito

de concretizaccedilatildeo da sua liberdade individual O exemplo paradigmaacutetico eacute

constituiacutedo pelas restriccedilotildees agrave liberdade sexual de cada um dos cocircnjuges

decorrentes da assunccedilatildeo por eles do dever de coabitaccedilatildeo ndash em virtude do

deacutebito conjugal que nele se compreende ndash e do dever de fidelidade687 Natildeo

obstante isso o princiacutepio fundamental que deve iluminar esta mateacuteria passou

a ser o da incolumidade da esfera juriacutedica dos sujeitos apesar de se

encontrarem no acircmbito de uma relaccedilatildeo familiar

VI Ora como decorrecircncia da ldquoconstitucionalizaccedilatildeo do direito da

famiacuteliardquo e da conceccedilatildeo personalista de teor individualista da famiacutelia acolhida

no texto constitucional o contexto familiar surge nas uacuteltimas deacutecadas como

um espaccedilo de exerciacutecio de liberdade e de afirmaccedilatildeo e concretizaccedilatildeo de direitos

dos seus membros ndash sejam direitos fundamentais sejam direitos de

personalidade688

A referecircncia agrave ldquoecircnfase nos direitos individuaisrdquo689 agrave promoccedilatildeo de uma

ldquocultura dos direitosrdquo690 ndash muitas vezes divorciados de deveres ndash satildeo

686 Sobre o conteuacutedo dos deveres conjugais vide PEREIRA COELHO e GUILHERME DE

OLIVEIRA Curso de direito da famiacutelia cit pp 406 a 425 687 Quanto aos deveres conjugais sexuais vide JORGE DUARTE PINHEIRO O Nuacutecleo Intangiacutevel

da Comunhatildeo Conjugal ndash Os deveres conjugais sexuais Coimbra Almedina 2004 688 Muitos deles simultaneamente direitos fundamentais e direitos de personalidade Sobre a

distinccedilatildeo destes dois conceitos vide PAULO MOTA PINTO O Direito ao livre

desenvolvimento da personalidade in Portugal - Brasil Ano 2000 tema direito Congresso

Portugal-Brasil Ano 2000 Studia Iuridica 40 Colloquia 2 Coimbra Coimbra Editora 1999

pp 225 e ss 689 SANFORD N KATZ autor americano identifica ldquothe emphasis on individual rightsrdquo

como a linha orientadora que descreve a evoluccedilatildeo do direito matrimonial contemporacircneo

Family Law in America 2ordf ed Oxford Oxford University Press 2015 p 84 690 Referindo-se a esta ldquoculture of rightsrdquo no direito da famiacutelia ALISON DIDUCK In What

is family law for in Current Law Problems Volume 64 2011 pp 293 e ss

326

expressotildees usadas pela doutrina portuguesa691 e estrangeira para explicar a

transformaccedilatildeo do direito da famiacutelia contemporacircneo

VII Como consequecircncia deste movimento de afirmaccedilatildeo subjetiva as

relaccedilotildees familiares aparecem perspetivadas com frequecircncia no plano

juriacutedico como um campo de tensatildeo de direitos nomeadamente de direitos

fundamentais de que os seus membros satildeo titulares (ldquoSpannungsfeld der

Grundrechterdquo)692

A jurisprudecircncia portuguesa eacute rica em exemplos ilustrativos deste

combate travado no contexto das relaccedilotildees familiares ou a propoacutesito da sua

constituiccedilatildeo Pensemos por um lado na discussatildeo a propoacutesito da fixaccedilatildeo de

prazos para a propositura de accedilotildees de filiaccedilatildeo693 ou ainda a querela suscitada

pelas consequecircncias que devem ser associadas agrave recusa da realizaccedilatildeo de

exames cientiacuteficos por parte dos investigados no acircmbito de accedilotildees relativas agrave

filiaccedilatildeo694 Em qualquer dos casos em abono do direito a conhecer a

identidade do pai e da matildee e do direito a constituir os correspondentes laccedilos

juriacutedicos de paternidade e maternidade convocam-se o direito a constituir

famiacutelia (artordm 36ordm nordm 1) o direito agrave identidade pessoal e direito agrave integridade

pessoal (artsordm 25ordm e 26ordm) e o direito ao desenvolvimento da personalidade

(plasmado tambeacutem no artordm 26ordm) ndash direitos que no seu exerciacutecio colidem com

o direito do investigado agrave reserva de intimidade da vida privada e familiar (artordm

26ordm nordm 1) (na primeira questatildeo) e tambeacutem com os seus direitos agrave integridade

691 Nesse sentido veja-se entre noacutes o DIOGO LEITE CAMPOS afirmando que a introduccedilatildeo

dos direitos da pessoa no acircmbito familiar como marco desencadeador da transformaccedilatildeo do

direito da famiacutelia atual In As relaccedilotildees de Associaccedilatildeo O Direto sem direitos Coimbra

Almedina 2011 pp 29 e 41-42 692 Empregamos aqui uma expressatildeo usada na doutrina alematilde no acircmbito do direito da

famiacutelia por exemplo por JOACHIM GERNHUBER e DAGMAR COESTER-WALTJEN

Familienrecht fortgefuumlhrt von Dagmar Coester-Waltjen 6 voumlllig neu bearb Aufl Muumlnchen

CH Beck 2010 p 31 693 A tiacutetulo meramente ilustrativo da abundante jurisprudecircncia sobre a mateacuteria considerem-

se quanto ao Tribunal Constitucional o Acoacuterdatildeo nordm 3022015 de 2 de junho o Acoacuterdatildeo nordm

7042014 de 28 de outubro o Acoacuterdatildeo nordm 5472014 de 15 de julho o Acoacuterdatildeo nordm 4412013

15 de julho e o Acoacuterdatildeo 4012011 de 22 de setembro (todos disponiacuteveis no endereccedilo

wwwtribunalconstitucionalpt) e quanto ao Supremo Tribunal de Justiccedila o Acoacuterdatildeo de 17 de

marccedilo de 2016 o Acoacuterdatildeo de 17 de novembro de 2015 o Acoacuterdatildeo de 22 de outubro de 2015

o Acoacuterdatildeo de 28 de maio de 2015 e o Acoacuterdatildeo de 14 de janeiro de 2014 (todos disponiacuteveis no

endereccedilo wwwdgsipt) 694 Quanto a esta problemaacutetica vejam-se os Acoacuterdatildeo dos Supremo Tribunal de Justiccedila de 24

de maio de 2012 e de 21 de fevereiro de 2008 e os Acoacuterdatildeos da Relaccedilatildeo do Porto de 24 de

fevereiro de 2015 de 2 de julho de 2013 de 27 de novembro de 2012 de 15 de marccedilo de 2012

(todos disponiacuteveis no endereccedilo wwwdgsipt)

327

fiacutesica e moral (art 25ordm) e agrave liberdade (art 27ordm todos da CRP) nas duas

questotildees assinaladas695

VIII A afirmaccedilatildeo subjetiva no seio familiar propicia um movimento

de aproximaccedilatildeo das posiccedilotildees juriacutedicas familiares ao modelo do direito

(subjetivo) que no entanto natildeo se produz com idecircntica intensidade nas vaacuterias

espeacutecies das relaccedilotildees familiares Na verdade importa operar a distinccedilatildeo entre

relaccedilotildees em que predomina a igualdade e a liberdade em que se daraacute um

funcionamento amplo da autonomia privada atraveacutes do exerciacutecio de direito

subjetivo e do funcionamento da liberdade negocial e por outro lado as

relaccedilotildees em que a igualdade se encontra limitada e em que por isso ainda

pontificam as posiccedilotildees juriacutedicas funcionalizadas (os poderes-deveres)

695 A perspetivaccedilatildeo das relaccedilotildees familiares (constituiacutedas e a constituir) como um espaccedilo de

colisatildeo de direitos Estaacute presente na decisatildeo 1 BvR 330913 de 19 de abril de 2016 do Tribunal

Constitucional alematildeo (Bundesverfassungsgericht) Nesta decisatildeo o primeiro Senado do

referido Tribunal foi chamado a pronunciar-se sobre a eventual inconstitucionalidade da

decisatildeo do Oberlandesgericht de Hamm no sentido de natildeo aplicar o sect 1598a do BGB relativo

agrave recusa de realizaccedilatildeo de exames cientiacuteficos no acircmbito de uma accedilatildeo de impugnaccedilatildeo de

paternidade a uma accedilatildeo de investigaccedilatildeo da paternidade A questatildeo a responder era se da

interpretaccedilatildeo da natildeo extensatildeo da norma a uma hipoacutetese desta uacuteltima espeacutecie natildeo resultava uma

desconformidade agrave Lei Fundamental alematilde por natildeo se estar a proteger o direito

constitucionalmente tutelado ao direito de uma pessoa ao conhecimento das suas origens

geneacuteticas (Recht auf Kenntnis der eigenen Abstammung) O Tribunal Constitucional alematildeo

entendeu que natildeo considerando que esse direito natildeo eacute absoluto e natildeo pode ser atendido

isoladamente antes devendo ser ponderado em articulaccedilatildeo com os direitos de outras pessoas

Para o sentido da decisatildeo foi determinante a diversidade de pessoas titulares de direitos que

eram atingidos pela aplicaccedilatildeo da soluccedilatildeo normativa ao caso nela natildeo previsto como o Tribunal

teve ocasiatildeo de elencar (ldquoIm Falle einer gegen den Willen des vermeintlich leiblichen Vaters

durchgefuumlhrten Abstammungsklaumlrung sind mehrere Grundrechtstraumlger in unterschiedlichem

Maszlige betroffenrdquo) Essa diversidade impedia que se entendesse que a falta de aplicaccedilatildeo da

norma prevista para outra situaccedilatildeo no sect1598a do BGB consubstanciava uma

inconstitucionalidade O Tribunal natildeo nega que se possa adotar uma soluccedilatildeo semelhante para

o caso natildeo regulado mas entende que caberaacute ao legislador fazer a apreciaccedilatildeo dos interesses

envolvidos e decidir (ou natildeo) introduzir uma alteraccedilatildeo no direito positivo (ldquoBei der

Ausgestaltung privater Rechtsbeziehungen kommen dem Gesetzgeber jedoch grundsaumltzlich

weite Einschaumltzungs- Wertungs- und Gestaltungsspielraumlume zurdquo) A decisatildeo pode ser

consultada no endereccedilo

httpswwwbundesverfassungsgerichtdeSharedDocsEntscheidungenDE201604rs20160

419_1bvr330913html

328

Podemos socorrer-nos das expressotildees siacutentese que denominam aquelas

relaccedilotildees respetivamente como relaccedilotildees horizontais e relaccedilotildees verticais696

De qualquer modo tambeacutem no acircmbito das uacuteltimas se operam

transformaccedilotildees ao reconhecer-se um espaccedilo crescente para o exerciacutecio da

autonomia dos sujeitos que as encabeccedilam Assim no acircmbito das relaccedilotildees

familiares com crianccedilas e jovens reconhecem-se oportunidades muacuteltiplas para

a autodeterminaccedilatildeo individual seja atraveacutes da atribuiccedilatildeo do direito de audiccedilatildeo

ou participaccedilatildeo no processo de tomada de uma decisatildeo por uma autoridade

puacuteblica697 ou mesmo atraveacutes do reconhecimento em aacutereas mais numerosas

do direito de atuaccedilatildeo juridicamente vinculante por ato pessoal e autoacutenomo

antes do niacutevel etaacuterio em que se atinge a maioridade698 A esse propoacutesito

deram-se passos importantes nas reformas produzidas em setembro de 2015

no direito das crianccedilas e dos jovens reconhecendo-se-lhe importantes

faculdades de atuaccedilatildeo e autodeterminaccedilatildeo699

IX Do mesmo passo e como consequecircncia da emergecircncia do novo

modelo subjetivo no acircmbito familiar constata-se a multiplicaccedilatildeo de direitos

de informaccedilatildeo como marca do direito da famiacutelia atual tambeacutem denominado

696 Estas expressotildees satildeo usadas por ENCARNA ROCA I TRIAS in Libertad y Familia Valencia

Tirant Lo Blanch 2014 p 25 Com uma biparticcedilatildeo idecircntica DIOGO LEITE CAMPOS refere-se

a ldquoduas zonasrdquo no direito da famiacutelia destacando aquela ldquoem que aparecem demasiadamente

visiacuteveis as diferenccedilas de poder entre os sujeitosrdquo e que o Autor exemplifica com o direito da

filiaccedilatildeo e com o direito dos menores In As relaccedilotildees de Associaccedilatildeo cit pp 42 e ss 697 A tiacutetulo exemplificativo veja-se no acircmbito do processo de adoccedilatildeo a previsatildeo do princiacutepio

da participaccedilatildeo (art 3ordm al d)) e a exigecircncia de audiccedilatildeo da crianccedila a adotar mesmo que ela

tenha menos de 12 anos (artordm 54ordm nordm 1 c) ambos do Regime Juriacutedico do Processo de Adoccedilatildeo

aprovado pela Lei nordm 1432015 de 8 de setembro) O princiacutepio da ldquoaudiccedilatildeo obrigatoacuteria e

participaccedilatildeo estaacute tambeacutem consagrado no artordm 4ordm al j) e no art 84ordm da Lei de Proteccedilatildeo de

Crianccedilas e Jovens e Perigo reformada e republicada pela Lei nordm 14799 de 1 de setembro

Em qualquer caso deve aplicar-se o regime previsto nos artordm 4ordm nordm 1 al c) e art 5ordm do

Regime Geral do Processo Tutelar Ciacutevel aprovado pela Lei nordm 1412015 de 8 de setembro 698 Trata-se de um ldquomodelo gradualistardquo que substituiu o anterior modelo de ldquoincapacidade

geneacutericardquo das crianccedilas Vide CLARA SOTTOMAYOR O direito das Crianccedilas ndash um novo ramo de

direito in Temas de Direito da Famiacutelia Coimbra Almedina 2014 pp 58 e ss 699 O Regime Geral do Processo Tutelar Ciacutevel aprovado pela Lei nordm 1412015 de 8 de

setembro prevecirc no art 18ordm a obrigatoriedade de nomeaccedilatildeo de advogado agrave crianccedila quando

os seus interesses e os dos seus pais representante legal ou de quem tenha a guarda de facto

sejam conflituantes e ainda quando a crianccedila com maturidade adequada o solicitar ao tribunal

No art 17ordm nordm 1 do mesmo diploma eacute reconhecida iniciativa processual no acircmbito dos

processos tutelares ciacuteveis agrave crianccedila com idade superior a 12 anos a par dos seus ascendentes

aos irmatildeos e ao representante legal da crianccedila

329

poacutes-moderno700 Veja-se no recentemente modificado Regime Juriacutedico do

Processo de Adoccedilatildeo (Lei 1432015 de 8 de setembro) a previsatildeo no seu artordm

6ordm do direito de acesso ao conhecimento de informaccedilatildeo sobre as origens

bioloacutegicas por parte do adotado com idade igual ou superior a 16 anos que

enquanto natildeo for maior careceraacute para o efeito do consentimento dos pais

adotivos ou dos representantes legais701 Estes deveres de informaccedilatildeo tecircm

vindo tambeacutem a ser desentranhados do teor deveral do casamento Para a sua

fundamentaccedilatildeo entre noacutes podem ser chamados entre outros argumentos a

vinculaccedilatildeo dos cocircnjuges aos deveres de respeito e cooperaccedilatildeo Noutros

ordenamentos a busca de um fundamento para a sua afirmaccedilatildeo estaacute na origem

da discussatildeo da introduccedilatildeo de alteraccedilotildees do direito constituiacutedo para nele se

incluir a previsatildeo normativa de especiacuteficos deveres de informaccedilatildeo702

X Por outro lado como consequecircncia da perspetivaccedilatildeo personalista da

famiacutelia autonomizam-se novos direitos de natureza especificamente familiar

como seja a afirmaccedilatildeo do direito de convivecircncia com a crianccedila por parte de

um universo de pessoas que por forccedila da intervenccedilatildeo judicial vai

ultrapassando o acircmbito recortado no artordm 1887ordm- A do CC que se refere

apenas aos avoacutes e aos irmatildeos estando no entanto o seu reconhecimento

condicionado agrave satisfaccedilatildeo do interesse da crianccedila703

700 ERYC JAIME in Poacutes-modernismo e direito da famiacutelia in Boletim da Faculdade de Direito

Vol LXXVIII 2002 pp 209 e ss 701 Veja-se o regime previsto no art 6ordm nordm 1 e nordm 2 do Regime Juriacutedico do Processo de

Adoccedilatildeo aprovado pela Lei nordm 1432015 de 8 de setembro que disciplina o exerciacutecio do

direito ao acesso ao conhecimento das origens Por forccedila do mesmo diploma a consagraccedilatildeo

expressa de tal direito foi vertida no art 1990ordm-A do CC 702 Eacute o caso da proposta de diploma (ldquoEntwurf eines Gesetzes zur Reform des

Scheinvaterregresses zur Ruumlckbenennung und zur Aumlnderung des Internationalen Familien-

rechtsverfahrensgesetzesrdquo conhecida como a lei dos filhos do cuco ldquoKuckuckskindernrdquo) que

estaacute presentemente a ser discutida na Alemanha Pretende alterar-se o Coacutedigo Civil Alematildeo

no sentido de nele incluir previsatildeo do dever informaccedilatildeo (ldquoAuskunftspflichtrdquo) por parte da

mulher em relaccedilatildeo ao ldquopai aparenterdquo (ldquoScheinvaterrdquo) e definir a proteccedilatildeo que lhe eacute devida 703 Apesar de na jurisprudecircncia portuguesa existirem diferentes perspetivas sobre o exato

alcance do direito de convivecircncia previsto no art 1887ordm-A do CC existem jaacute decisotildees que

acolhem um entendimento que alarga para aleacutem dos limites traccedilados na letra do preceito o

ciacuterculo de pessoas a quem eacute reconhecido o referido direito em homenagem agrave proximidade

existencial incluindo mesmo pessoas natildeo ligadas formalmente agrave crianccedila por um viacutenculo

familiar Veja-se nesse sentido o Acoacuterdatildeo do Tribunal da Relaccedilatildeo de Porto de 7 de janeiro

de 2013 (acessiacutevel no endereccedilo wwwdgsipt) Trata-se de um entendimento que se apresenta

em harmonia com a jurisprudecircncia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem no que

respeita ao direito ao respeito pela vida familiar previsto no art 8ordm da Convenccedilatildeo Europeia

dos Direitos do Homem

330

XI As transformaccedilotildees acabadas de enunciar constituem corolaacuterios de

um fenoacutemeno que jaacute foi denominado como ldquoprivatizaccedilatildeordquo do direito da

Famiacutelia704 ou como ldquocontratualizaccedilatildeordquo da famiacutelia ndash esta uacuteltima expressatildeo

inspira-se na famosa siacutentese de HENRY JAMES SUMNER MAINE A

utilizaccedilatildeo das foacutermulas referidas procura pocircr em destaque a aproximaccedilatildeo da

regulaccedilatildeo juriacutedica familiar ao regime comum do direito privado em que a

figura negocial como manifestaccedilatildeo privilegiada da autonomia privada a par

do direito subjetivo constitui um elemento conceptual de referecircncia

XII Como consequecircncia da revoluccedilatildeo no modelo subjetivo vigente na

famiacutelia opera-se a correccedilatildeo do deacutefice de individualizaccedilatildeo das posiccedilotildees

juriacutedico-familiares de que falaacutevamos na secccedilatildeo anterior e que inibia o

funcionamento de dois importantes institutos do direito civil no quadro

familiar

IV AS REPERCUSSOtildeES DA IRRUPCcedilAtildeO DA INDIVIDUALIDADE E DA

ALTERIDADE NO AcircMBITO FAMILIAR

I Com a substituiccedilatildeo do paradigma institucional pelo paradigma

personalista de famiacutelia daacute-se a emergecircncia no acircmbito familiar das ideias de

individualidade e alteridade em lugar das ideias de comunidade e unidade que

anteriormente pontificavam E a essa substituiccedilatildeo associam-se repercussotildees

muito importantes no plano juriacutedico

Na verdade se a famiacutelia deixa de ser entendida como um organismo

em que a individualidade das partes (dos seus membros) eacute dissolvida em prol

da promoccedilatildeo do fim unitaacuterio705 e se o desniacutevel que tradicionalmente

caracterizava as relaccedilotildees familiares eacute banido com a proclamaccedilatildeo do princiacutepio

da igualdade tambeacutem no domiacutenio familiar os sujeitos da famiacutelia surgem no

seu acircmbito como centros autoacutenomos de autodeterminaccedilatildeo individualista

Consequentemente por um lado podem os mesmos procurar a harmonizaccedilatildeo

das suas posiccedilotildees atraveacutes da configuraccedilatildeo consensualizada de (alguns) efeitos

704 Esta expressatildeo de siacutentese da evoluccedilatildeo de direito da famiacutelia eacute usada com muita frequecircncia

Veja-se a tiacutetulo ilustrativo a utilizaccedilatildeo dessa expressatildeo por FERNANDO SANTOSUOSSO

Il matrimonio Libertagrave e responsabilitagrave nella relazione familiari Torino Utet Giuridica 2011

p 10 705 Sublinhe-se que ldquoo bem da famiacuteliardquo (art 1671ordm nordm 2 do CC) e a ldquounidade da vida

familiarrdquo (art 1673ordm nordm 1 do CC) continuam a relevar nomeadamente quanto ao teor dos

acordos sobre a direccedilatildeo da vida familiar e de escolha da casa de morada de famiacutelia Trata-se

como referimos de uma oscilaccedilatildeo entre dois polos (o individualista e o comunitaacuterio) natildeo

havendo uma eliminaccedilatildeo de nenhum deles

331

juriacutedicos da relaccedilatildeo de que satildeo titulares atraveacutes da aproximaccedilatildeo dos interesses

individuais como acontece na atividade negocial em geral706 Por outro lado agrave

violaccedilatildeo das posiccedilotildees juriacutedicas familiares que se apresente juridicamente

como um ato iliacutecito pode associar-se a aplicaccedilatildeo de reaccedilotildees juriacutedicas que o

ordenamento predispotildee para os comportamentos desvaliosos em ordem ao

ressarcimento das consequecircncias danosas verificadas

II Criam-se entatildeo as condiccedilotildees propiacutecias ao florescimento de dois

fenoacutemenos no seio da famiacutelia o da promoccedilatildeo da autonomia privada nas

relaccedilotildees familiares e o da afirmaccedilatildeo crescente do funcionamento da

responsabilidade civil no contexto familiar A cada um deles dedicaremos

breviacutessimas palavras nas duas proacuteximas aliacuteneas707

1 A PROMOCcedilAtildeO DA AUTONOMIA PRIVADA NAS RELACcedilOtildeES FAMILIARES

I A nova ordem jusfamiliar impregnada pelas diretrizes

constitucionais referidas na secccedilatildeo anterior consente e promove o exerciacutecio da

autonomia privada no seio das relaccedilotildees familiares pelos respetivos sujeitos

em detrimento da imposiccedilatildeo heteroacutenoma de soluccedilotildees cunhadas externamente

A este propoacutesito ganha relevo por um lado o exerciacutecio de direitos subjetivos

no acircmbito familiar de que jaacute falaacutemos na secccedilatildeo anterior mas tambeacutem a

autoconformaccedilatildeo convencional dos efeitos juriacutedicos das relaccedilotildees familiares

nomeadamente a conformaccedilatildeo consensual de tais efeitos atraveacutes da formaccedilatildeo

de acordos sobre essas mateacuterias Os sujeitos num plano de igualdade708

exercem tambeacutem aqui a liberdade que lhes eacute reconhecida recorrendo agrave

atividade negocial

706 Natildeo significa como referiremos infra que se aplique no acircmbito familiar o regime juriacutedico

previsto para a atividade negocial em geral 707 Para observaccedilotildees mais desenvolvidas sobre este fenoacutemeno e com abundantes referecircncias

bibliograacuteficas vide o nosso Convenccedilotildees matrimoniais A autonomia na conformaccedilatildeo dos

efeitos patrimoniais do casamento cit 708 A igualdade entre os cocircnjuges existiraacute pelo menos no plano formal atenta a sua

proclamaccedilatildeo no art 36ordm nordm 3 da CRP e no art 1671ordm do CC Sabemos no entanto que

subsistem importantes diferenccedilas que podem atraiccediloar a concretizaccedilatildeo da igualdade

substancial entre os cocircnjuges Trata-se de um fenoacutemeno que natildeo eacute exclusivo desta aacuterea da

vida ocorrendo com frequecircncia no acircmbito do direito do consumo e do direito laboral para o

que o legislador predispocircs mecanismos protecionistas Tal realidade no domiacutenio matrimonial

natildeo pode ser negligenciada quando se busque o tratamento juriacutedico a dispensar agrave atividade

negocial que nela se desenvolva

332

II O fenoacutemeno eacute particularmente visiacutevel e intenso no acircmbito

matrimonial ndash onde os seus pressupostos (a igualdade e a liberdade) se

manifestam mais fortemente709

A celebraccedilatildeo de acordos juridicamente relevantes sobre efeitos

matrimoniais jaacute natildeo se circunscreve agrave fase preacute-nupcial mesmo num

ordenamento como o nosso em que ainda persiste a vigecircncia do princiacutepio da

imutabilidade das Convenccedilotildees Antenupciais (art 1714ordm do CC) Para aleacutem

dessas espeacutecies negociais em que tradicionalmente se continham claacuteusulas

relacionadas com o regime de bens o acordo aparece como modelo

organizativo da vida familiar durante a vigecircncia do casamento (art 1671ordm nordm

2 do CC) As novas regras da administraccedilatildeo (art 1678ordm do CC) postulam

tambeacutem a formaccedilatildeo de consensos para o que cada um dos cocircnjuges concorre

em plano de igualdade Tambeacutem no acircmbito da dissoluccedilatildeo da relaccedilatildeo

matrimonial o acordo ganha relevacircncia seja para efeito do decretamento da

extinccedilatildeo da relaccedilatildeo (pensamos no divoacutercio por muacutetuo consentimento) seja

para efeito de conformaccedilatildeo dos efeitos associados agrave liquidaccedilatildeo das relaccedilotildees

patrimoniais (consideramos os acordos relativos agrave obrigaccedilatildeo de alimentos ou

agrave utilizaccedilatildeo da casa de morada de famiacutelia no periacuteodo poacutes-conjugal a que se

refere o legislador nos art 1775ordm nordm 1 al c) e d) do CC mas tambeacutem os

acordos de partilha de bens ou os acordos sobre a prestaccedilatildeo compensatoacuteria do

art 1676ordm do mesmo diploma) A ldquonegociabilidaderdquo atinge longitudinalmente

toda a relaccedilatildeo matrimonial e o casamento passa a ser uma entidade sujeita a

um ldquoregime consensuale permanenterdquo710 durante a sua vida e tambeacutem no seu

ocaso711

Eacute aliaacutes por referecircncia agrave eventualidade de extinccedilatildeo da relaccedilatildeo

matrimonial que as manifestaccedilotildees de autonomia privada mais tecircm crescido em

ordenamentos juriacutedicos estrangeiros Com a derrocada dos obstaacuteculos

tradicionais nomeadamente ancorados numa ideia de feacuterrea indisponibilidade

709 Estamos no acircmbito daquilo que como referimos jaacute se chamou ldquodireito de famiacutelia

horizontalrdquo para destacar o nivelamento das posiccedilotildees juriacutedicas dos sujeitos 710 A expressatildeo eacute de ANGELO FALZEA para transmitir a ideia de que o ldquoaccordo dei coniugi

condiziona sia la costituzione sia la conservazione del rapporto consortilerdquo In Famiglia e

aspetti patrimoniali in Ricerche di teoria generale del diritto e di dogmatica giuridica Volume

II Dogmatica giuridica reimpressatildeo da 3ordf ediccedilatildeo Milano Giuffregrave Editore 1997 p 866

Num sentido proacuteximo JOACHIM GERNHUBER apelidou o novo casamento de ldquogeordnete

Eherdquo Die geordnete Ehe in FamRZ Zeitschrift fuumlr das gesamte Familienrecht 1979 26

Jahrgang Heft 3 pp 193 e ss em especial pp 196 e 197 711 Como soacutei referir-se agraves manifestaccedilotildees da autonomia negocial no periacuteodo fisioloacutegico da

relaccedilatildeo matrimonial juntaram-se mais recentemente as expressotildees da autonomia na fase

patoloacutegica da mesma relaccedilatildeo

333

do viacutenculo matrimonial que o regime do divoacutercio deixou de refletir deteta-se

uma aceitaccedilatildeo transversal da possibilidade de regulaccedilatildeo negocial muitas vezes

antecipada das consequecircncias da dissoluccedilatildeo do casamento especialmente por

divoacutercio em consonacircncia com a ideia de clean-break que se procura

promover E este novo entendimento natildeo pressupocircs uma reforma legislativa

que se dirigisse precipuamente agrave regulaccedilatildeo de tal atividade negocial antes

derivando da nova conceccedilatildeo do divoacutercio que importou uma nova conceccedilatildeo do

casamento712 Nessa releitura dos dados normativos agrave luz do novo modelo de

casamento a jurisprudecircncia tem desempenhado um papel motriz713

Abandonando-se a hostilidade de princiacutepio contra expressatildeo da

liberdade (negocial) dos nubentes e dos cocircnjuges em relaccedilatildeo agrave sua relaccedilatildeo

matrimonial a problemaacutetica em discussatildeo deixou de ser a da afirmaccedilatildeo da

autonomia privada dos cocircnjuges no que respeita agrave conformaccedilatildeo da sua relaccedilatildeo

matrimonial para passar a ser a da definiccedilatildeo dos limites agrave mesma714

Mesmo que em Portugal a questatildeo natildeo se tenha ainda colocado com

o vigor que ela jaacute assumiu no estrangeiro os dados do ordenamento juriacutedico

portuguecircs consentem uma evoluccedilatildeo idecircntica agrave detetada noutros ordenamentos

juriacutedicos Nem sequer a manutenccedilatildeo da vigecircncia do princiacutepio da imutabilidade

explica a persistecircncia de uma visatildeo tatildeo radicalmente ostracizante da atividade

negocial dos nubentes e dos cocircnjuges quanto aos efeitos patrimoniais da sua

relaccedilatildeo A nova ordem jusmatrimonial demanda aliaacutes um entendimento que

natildeo negligenciando as especificidades do contexto familiar em que esses

acordos surgem seja mais consentacircneo com os novos eixos axioloacutegico-

712 Na verdade a mudanccedila no plano legislativo natildeo incidiu diretamente sobre o regime juriacutedico

da atividade negocial dos cocircnjuges Antes se deu por alteraccedilatildeo dos eixos axioloacutegico-

normativos (igualdade e liberdade) sobre que ordem matrimonial passou a estruturar-se e por

mutaccedilatildeo quanto agrave disciplina de outras mateacuterias ndash em particular quanto ao divoacutercio e quanto agrave

centralidade do acordo na organizaccedilatildeo familiar ndash o que redundou numa alteraccedilatildeo da conceccedilatildeo

de casamento Sobre esta transformaccedilatildeo vide Convenccedilotildees matrimoniais A autonomia na

conformaccedilatildeo dos efeitos patrimoniais do casamento cit pp 145 e ss 713 Nos ordenamentos alematildeo espanhol italiano e inglecircs foram emanadas importantes

decisotildees judiciais que consubstanciaram marcos tradutores e promotores da viragem de

perspetiva legitimada por alteraccedilotildees constitucionais e legais (a montante a jusante) produzidas

na disciplina juriacutedica da realidade familiar Veja-se a referecircncia bibliograacutefica presente na nota

anterior 714 No decurso da elaboraccedilatildeo de uma obra em que se coligiram relatoacuterios de vaacuterios paiacuteses sob

o mote ldquoThe future of family Property in Europerdquo emergiu ao longo dos trabalhos segundo

os organizadores JO MILES e JENS SCHERPE como problemaacutetica central e transversal agrave

reflexatildeo a de saber ldquohow much autonomy the parties should have to regulate their own

affairsrdquo ldquoThe future of family property in Europerdquo Edited by Katharina Boele-Woelki Jo

Miles and Jens M Scherpe Cambridge-Antwerp-Portland Intersentia 2011 p 429

334

normativos (igualdade e liberdade) sobre que a ordem matrimonial se

encontra hoje715 edificada e uma intervenccedilatildeo cerceadora da autonomia

privada que respeite mais adequadamente o princiacutepio da proporcionalidade

III Apesar de se manifestar mais intensamente no domiacutenio

matrimonial a promoccedilatildeo da autonomia ndash no sentido de ser atribuiacutedo relevo

aos atos de autodeterminaccedilatildeo em que se encontra plasmada a vontade de um

sujeito a que satildeo reconhecidos ateacute certo ponto pelo menos efeitos juriacutedicos

consentacircneos com a vontade manifestada ndash encontra tambeacutem eco noutras

aacutereas do domiacutenio familiar716

No acircmbito da filiaccedilatildeo a manifestaccedilatildeo mais ostensiva da relevacircncia da

autonomia privada atraveacutes da conformaccedilatildeo convencional encontra-se ao

niacutevel da regulaccedilatildeo do exerciacutecio das responsabilidades parentais717 Quando os

progenitores se encontram casados ou vivem em uniatildeo de facto (por forccedila da

remissatildeo constante do nordm 1 do artordm 1911ordm do CC introduzida pela Lei

612008 de 31 de outubro) o exerciacutecio das ldquoresponsabilidades parentaisrdquo

pertence a ambos os progenitores importando a formaccedilatildeo de acordos (artordm

1905ordm do CC) Tambeacutem no contexto de crise das relaccedilotildees entre os

progenitores casados ou unidos de facto (art 1911ordm nordm 2 do CC) o regime

715 Para agregarmos todas as manifestaccedilotildees convencionais de autonomia privada no acircmbito

da relaccedilatildeo matrimonial cunhaacutemos a figura das convenccedilotildees matrimoniais a que procuraacutemos

conhecer os limites de extensatildeo e de homogeneidade As convenccedilotildees matrimoniais aparecem

entatildeo como expressatildeo especiacutefica da autonomia privada daqueles sujeitos na configuraccedilatildeo da

sua relaccedilatildeo matrimonial A este propoacutesito para maiores desenvolvimentos vide o nosso

Convenccedilotildees matrimoniais A autonomia na conformaccedilatildeo dos efeitos patrimoniais do

casamento cit 716 Paralelamente no acircmbito do direito sucessoacuterio intensificam-se as vozes que demandam a

promoccedilatildeo da autonomia privada na conformaccedilatildeo do fenoacutemeno sucessoacuterio nomeadamente

clamando por uma reforma da sucessatildeo legitimaacuteria Trata-se de um movimento que se

manifesta transversalmente como se pode ver na obra ldquoThe law of succession testamentary

freedom European perspectivesrdquo editada por M Anderson and E Amayuelas European

studies in private law (5) Groningen European Law Publishing 2011 Refletindo entre noacutes

sobre esta problemaacutetica vide CRISTINA ARAUacuteJO DIAS A proteccedilatildeo sucessoacuteria da famiacutelia ndash

notas criacuteticas em torno da sucessatildeo legitimaacuteria in ldquoAutonomia e Heteronomia no Direito da

Famiacutelia e no direito das Sucessotildeesrdquo coordenaccedilatildeo de Helena Mota e Maria Raquel Guimaratildees

Almedina 2016 pp 449 e ss 717 Natildeo esqueccedilamos no entanto que haacute neste acircmbito uma forte funcionalizaccedilatildeo agrave satisfaccedilatildeo

do superior interesse da crianccedila que justifica um intenso controlo heteroacutenomo pelo julgador

(art 1778ordm-A e art 1905ordm do CC) ou pelo Ministeacuterio Puacuteblico (art 1776ordm-A do CC) Natildeo

deixa no entanto de ser um espaccedilo em que se promove o acordo dos familiares

335

regra eacute hoje nos termos do art 1905ordm do CC o do exerciacutecio conjunto

daquelas responsabilidades

Tambeacutem no plano da proacutepria constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo de filiaccedilatildeo718

conquistam importacircncia as declaraccedilotildees de vontade daqueles que se

converteratildeo juridicamente em pais Tal acontece desde logo na filiaccedilatildeo

assente na procriaccedilatildeo natural em que a vontade do progenitor relevaraacute

nomeadamente quando o estabelecimento da paternidade se decirc por

reconhecimento voluntaacuterio atraveacutes do ato de perfilhaccedilatildeo719

O relevo juriacutedico reconhecido a expressotildees de vontade relativas agrave

constituiccedilatildeo da filiaccedilatildeo sobe de tom se considerarmos a filiaccedilatildeo decorrente do

recurso a teacutecnicas de procriaccedilatildeo medicamente assistida Nestes casos o

viacutenculo familiar assenta numa realidade volitiva havendo mesmo no que

concerne agraves situaccedilotildees de procriaccedilatildeo totalmente heteroacuteloga720ndash em que haacute

doaccedilatildeo dos dois gacircmetas por terceiros ndash um desprendimento do princiacutepio do

biologismo721 que vinha em especial desde 1977 iluminando o regime da

718 Para uma visatildeo de direito comparado do crescimento da importacircncia da autonomia privada

na constituiccedilatildeo dos viacutenculos juriacutedicos de filiaccedilatildeo (incluindo a filiaccedilatildeo adotiva que soacute num

sentido amplo integra aquele conceito) vide CHRISTINE BUDZIKIEWICZ Contracting on

Parentage in Family Law and Culture in Europe Developments challenges and opportunities

Katharina Boele-Woelki Nina Dethloff e Werner Gephart (eds) Cambridge-Antwerp-

Portland Intersentia 2014 pp 151e ss 719 A perfilhaccedilatildeo consubstancia um ato juriacutedico unilateral cuja natureza como declaraccedilatildeo de

ciecircncia ou declaraccedilatildeo de vontade eacute discutida Vide PEREIRA COELHO e GUILHERME

OLIVEIRA que se pronunciam no sentido de que constituiraacute uma mera declaraccedilatildeo de ciecircncia

agrave semelhanccedila da declaraccedilatildeo de maternidade ndash ldquotanto a maternidade como a paternidade satildeo

factos bioloacutegicos a que o direito pretende dar relevacircncia juriacutedicardquo In Curso de Direito da

Famiacutelia Vol II Direito da Filiaccedilatildeo Tomo I Estabelecimento da Filiaccedilatildeo Adopccedilatildeo Coimbra

Coimbra Editora 2006 pp 149 e ss em especial p 151 Repare-se que a falta de possibilidade

de conformaccedilatildeo dos efeitos juriacutedicos produzidos pela perfilhaccedilatildeo (artordm 1852ordm) conduz a que

se negue a reconduccedilatildeo da perfilhaccedilatildeo agrave figura negocial 720 Como sabemos nesse caso os doadores nunca satildeo havidos como pais da crianccedila que venha

a nascer (ex vi do nordm 2 do artordm 10ordm e artordm 21 da Lei 322006 de 26 de julho que se mantiveram

incoacutelumes agraves alteraccedilotildees introduzidas pela Lei 172016 de 20 de junho e pela Lei 252016 de

22 de agosto) sendo a parentalidade definida nos termos do artordm 20ordm daquele diploma na

redaccedilatildeo que lhe foi dada pela Lei 172016 de junho em relaccedilatildeo aos beneficiaacuterios que

consentiram nos termos do art 14ordm 721 O afastamento do biologismo foi acentuado pelas alteraccedilotildees introduzidas na Lei da

procriaccedilatildeo medicamente assistida atraveacutes da Lei 172016 de 20 de junho agrave luz das quais nos

termos do novo art 6ordm nordm 1 o recurso a teacutecnicas de PMA foi permitido a casais de mulheres

(casadas ou vivendo em uniatildeo de facto) e a mulheres singulares independentemente do estado

civil e da respetiva orientaccedilatildeo sexual Em qualquer caso esta forma de procriaccedilatildeo natildeo replica

336

filiaccedilatildeo Consequentemente a filiaccedilatildeo juriacutedica traduz aqui natildeo uma verdade

bioloacutegica mas uma verdade volitiva vertida no(s) consentimento(s)722 dos

beneficiaacuterios das teacutecnicas de procriaccedilatildeo medicamente assistida723

A acentuaccedilatildeo da relevacircncia reconhecida agrave vontade dos particulares eacute

aliaacutes uma das tendecircncias mais marcadas da evoluccedilatildeo do direito da filiaccedilatildeo na

medida em que tambeacutem aiacute se opera a substituiccedilatildeo do paradigma anterior por

um modelo de definiccedilatildeo da parentalidade com base no ldquocriteacuterio do amor sob a

forma de vontade de cuidar e da assunccedilatildeo voluntaacuteria da responsabilidade pelo

cuidadordquo724 A substituiccedilatildeo daacute-se aliaacutes natildeo soacute no plano do regime da

constituiccedilatildeo do estatuto de pai e de filho Na verdade com as alteraccedilotildees

introduzidas pela Lei nordm 1372015 de 7 de setembro nos arts 1903ordm e 1904ordm

do CC fomenta-se uma intervenccedilatildeo juriacutedica que deixando intocada a filiaccedilatildeo

estabelecida opera no plano do exerciacutecio das responsabilidades parentais o

reconhecimento de realidades faacutecticas tradutoras da assunccedilatildeo voluntaacuteria do

cuidado de quem natildeo eacute seu filho bioloacutegico Trata-se de um movimento de

superaccedilatildeo tambeacutem no domiacutenio da filiaccedilatildeo da centralidade do ldquostatusrdquo com

atribuiccedilatildeo de predomiacutenio ao desempenho efetivo da funccedilatildeo assumida725

a natureza na medida em que as crianccedilas que venham a nascer natildeo teratildeo um progenitor do

sexo masculino sendo filhas de duas matildees no primeiro caso ou de uma matildee no segundo (jaacute

que o art 20ordm nordm 3 prevecirc a situaccedilatildeo de parentalidade singular com afastamento de

averiguaccedilatildeo oficiosa da parentalidade omissa) 722 PEREIRA COELHO e GUILHERME OLIVEIRA apelidam-na de ldquofiliaccedilatildeo assente no

consentimento no contexto da reproduccedilatildeo assistidardquo Curso de Direito da Famiacutelia Vol I cit

pp 111 e ss Eacute uma lsquointentional parentagersquo na expressiva foacutermula usada por INGEBORG

SCHWENZER Tensions between legal biological and social conceptions of parentage

Antwerpen-Oxford Intersentia 2007 p 11 JEAN HAUSER emprega a designaccedilatildeo de

ldquoenfant conventionnelrdquo a propoacutesito da entrada em vigor em Franccedila das Leis de 29 de julho

de 1994 que introduziram no artordm 311-19 do CCF uma norma equivalente agraves normas dos artordm

10 nordm 2 e artordm 21ordm da nossa Lei 322006 de 26 de julho In Un nouveau-neacute l`enfant

conventionnel in Recueil Dalloz Sirey 1996 21e Cahier pp 182 a 184 723 A norma do art 4ordm nordm 3 Lei da procriaccedilatildeo medicamente assistida alterada pela da Lei

172016 de 20 de junho ao permitir o recurso agraves teacutecnicas de procriaccedilatildeo artificial sem

necessidade de um diagnoacutestico de infertilidade importaraacute uma derrogaccedilatildeo ao princiacutepio da

subsidiariedade que ateacute entatildeo vigorava de modo absoluto no que iraacute contida mais uma

concessatildeo agrave filiaccedilatildeo assente na vontade (de ser matildee) 724 Nas palavras de GUILHERME DE OLIVEIRA Criteacuterios Juriacutedicos de parentalidade in Textos

de Direito da Famiacutelia para Francisco Pereira Coelho Coordenaccedilatildeo de Guilherme de Oliveira

Coimbra Imprensa da Universidade de Coimbra 2016 p 278 Os sublinhados foram

acrescentados por noacutes 725 Para uma reflexatildeo profunda das transformaccedilotildees operadas no direito da filiaccedilatildeo dando conta

da substituiccedilatildeo em 1977 do paradigma da filiaccedilatildeo legiacutetima pelo da filiaccedilatildeo assente num

337

Idecircntica verdade de vontade se encontra desde sempre726 na base da

constituiccedilatildeo da relaccedilatildeo adotiva Apesar da exigecircncia do ato judicial que nos

termos do art 1973ordm do CC se apresenta como ato constitutivo do viacutenculo

familiar o ato de adoccedilatildeo tem tambeacutem uma componente privatiacutestica em que

pontifica(m) as declaraccedilatildeo(otildees) de vontade do(s) adotante(s) eventualmente

associada(s) ao(s) consentimento(s) requerido(s) pelo artordm 1981ordm do CC de

outra(s) pessoa(s)727

IV Apesar da dilataccedilatildeo da aacuterea em que se daacute o reconhecimento do

exerciacutecio da autonomia privada no acircmbito familiar e nessa medida da

consequente aproximaccedilatildeo ao regime geral do direito civil natildeo haacute ndash nem pode

haver ndash uma assimilaccedilatildeo integral entre o exerciacutecio da autonomia privada

nomeadamente atraveacutes da atividade negocial nos dois domiacutenios

A natureza da mateacuteria (auto)conformada (atendendo agrave conexatildeo do seu

objeto com as relaccedilotildees familiares) por um lado a condiccedilatildeo particular dos

sujeitos e o contexto em que se daacute o exerciacutecio da autonomia privada

nomeadamente a celebraccedilatildeo de acordos (em virtude da proximidade

existencial das partes e das dependecircncias reciacuteprocas que por causa dela se

podem gerar728) por outro lado e a influecircncia do decurso do tempo sobre os

compromissos assumidos (atenta a natureza duradoura que eacute apanaacutegio das

relaccedilotildees familiares) por fim justificam no seu conjunto a necessidade de uma

criteacuterio bioloacutegico e mais recentemente a substituiccedilatildeo desse paradigma pelo que eacute referido

em texto GUILHERME DE OLIVEIRA Criteacuterios Juriacutedicos de parentalidade cit pp 271 a 306 726 Aqui o movimento foi precisamente o oposto do que se manifestou nas outras aacutereas do

direito da famiacutelia Na verdade de uma relaccedilatildeo adotiva eminentemente privatiacutestica e ao serviccedilo

dos interesses do adotante no direito romano evoluiacutemos para uma relaccedilatildeo adotiva que

iluminada pelo superior interesse da crianccedila (art 1974ordm 1) pressupotildee uma forte intervenccedilatildeo

puacuteblica PEREIRA COELHO e GUILHERME OLIVEIRA Curso de Direito da Famiacutelia Vol

II cit pp 262 e ss 727 Por consequecircncia afirma-se a natureza complexa do ato referido resultando a relaccedilatildeo

adotiva da integraccedilatildeo das duas componentes sendo ambas necessaacuterias mas nenhuma delas

suficiente para produzir o efeito constitutivo Reflete-se aqui a satisfaccedilatildeo do interesse geral

e dos interesses dos particulares (cujo consentimento eacute exigido) que a adoccedilatildeo deve

simultaneamente servir Sobre a natureza da adoccedilatildeo vide PEREIRA COELHO e

GUILHERME OLIVEIRA Curso de Direito da Famiacutelia Vol II cit pp 311 a 313 728 Eacute que como jaacute referimos mesmo nos domiacutenios em que haacute proclamaccedilatildeo da igualdade

formal persistem desequiliacutebrios que podem prejudicar o exerciacutecio da autonomia refletida nos

atos convencionais Por outro lado a atuaccedilatildeo de entreajuda caracteriacutestica das relaccedilotildees

familiares eacute promotora da emergecircncia ou acentuaccedilatildeo de dependecircncias reciacuteprocas que natildeo

podem ser negligenciadas

338

intervenccedilatildeo especial que acomode o regime juriacutedico agraves particularidades que o

exerciacutecio da autonomia privada apresenta no contexto familiar

Ademais natildeo se vislumbra possiacutevel um tratamento uniforme aplicaacutevel

em todos domiacutenios do direito da famiacutelia havendo que destacar desde logo as

aacutereas em que haacute uma relaccedilatildeo entre dois sujeitos maiores e iguais em que por

isso a autonomia poderaacute manifestar-se mais amplamente (como no direito

matrimonial ou no direito dos conviventes em uniatildeo de facto) daquelas em

que as relaccedilotildees familiares continuam a desenvolver-se agrave luz de uma

intervenccedilatildeo protecionista e em que por isso pontificam as posiccedilotildees juriacutedicas

funcionalizadas a interesses que se impotildeem ao respetivo titular e que lhe

podem ser alheios (como acontece no direito da filiaccedilatildeo nas posiccedilotildees juriacutedicas

dos pais)

2 A AFIRMACcedilAtildeO CRESCENTE DO FUNCIONAMENTO DA

RESPONSABILIDADE CIVIL NO CONTEXTO FAMILIAR

I A transformaccedilatildeo da ordem jusmatrimonial operada na segunda

metade do seacuteculo XX encontra-se tambeacutem na raiz da afirmaccedilatildeo crescente do

funcionamento da responsabilidade civil no contexto familiar A mudanccedila da

perspetivaccedilatildeo da famiacutelia que supra deixaacutemos descrita veio provocar a

derrocada de um importante obstaacuteculo ao funcionamento da responsabilidade

civil e que radicava na visatildeo institucional da famiacutelia como uma unidade em

que a individualidade dos respetivos membros era dissolvida A entidade

unitaacuteria assim constituiacuteda produzia primeiro de jure729 e depois de facto730 o

efeito da imunidade dos sujeitos dentro do grupo familiar de que eram

membros

Como sabemos a responsabilidade civil pressupotildee uma alienidade do

dano em relaccedilatildeo ao responsaacutevel demandando uma perspetiva autonomizada

do lesante e do lesado o que no passado agrave luz do modelo de famiacutelia preteacuterito

era dificultado pela integraccedilatildeo daqueles sujeitos no mesmo agrupamento

familiar Se em termos juriacutedicos natildeo havia uma unidade em sentido proacuteprio

729 A inibiccedilatildeo do funcionamento da responsabilidade civil no acircmbito familiar constitui um

dos corolaacuterios da teoria da unidade matrimonial (ldquoThe matrimonial alliance made the parties

to it an unit in lawrdquo) e uma manifestaccedilatildeo da ldquocoverturerdquo da ldquocommon lawrdquo Sobre a

ldquointerspousal tort immunityrdquo vide MARSHAL DAVIS EWELL in A Manual of the Law of

the domestic relations Detroit The Collector Publishing 1896 pp 40 e ss 730 Mesmo depois da revoluccedilatildeo igualitaacuteria do uacuteltimo terccedilo do seacuteculo XX sabemos que

subsistem obstaacuteculos (econoacutemicos sociais) ao recurso agrave responsabilidade civil no acircmbito

familiar

339

ndash ie os membros de uma famiacutelia (nem mesmo os cocircnjuges) natildeo constituiam

uma soacute pessoa juriacutedica ndash pensemos nas profundas capiti diminuitiones que ateacute

muito recentemente se afirmavam em relaccedilatildeo ao cocircnjuge mulher (entretanto

desaparecidas) e se continuam a afirmar quanto agraves crianccedilas e jovens (entretanto

atenuadas) com importantes reflexos juriacutedicos na sua capacidade juriacutedica (seja

na capacidade de gozo seja na capacidade de exerciacutecio seja tambeacutem na

capacidade judiciaacuteria) limitando-a

II A aceitaccedilatildeo do funcionamento da responsabilidade civil seraacute pois

um desenvolvimento inevitaacutevel da substituiccedilatildeo de um modelo familiar

orgacircnico e hieraacuterquico por um modelo familiar dito democraacutetico assente em

graus superiores de autonomia dos seus membros Atraveacutes da aplicaccedilatildeo

daquele instituto na aacuterea familiar reforccedila-se a garantia dos direitos tambeacutem

nesse acircmbito onde tradicionalmente se verificava a muito propalada

fragilidade dos mesmos731

III A maior visibilidade e o crescente interesse da doutrina pelo

funcionamento da responsabilidade civil no acircmbito familiar ocorre ao mesmo

tempo que se assiste sobretudo no estrangeiro a um acreacutescimo dos casos que

satildeo levados a juiacutezo sobre a mateacuteria

Entre noacutes a discussatildeo surgiu a propoacutesito do regime introduzido pela

Lei 612008 de 31 de outubro (a denominada Lei do divoacutercio) que alterou a

redaccedilatildeo do artordm 1792ordm do CC e portanto a propoacutesito da responsabilidade

civil surgida no acircmbito da relaccedilatildeo matrimonial Trata-se no entanto de uma

manifestaccedilatildeo singular de uma problemaacutetica mais vasta abrangendo entre

outras tambeacutem as relaccedilotildees da filiaccedilatildeo

IV Por um lado a possibilidade de afirmaccedilatildeo da responsabilidade

quando satildeo afetadas posiccedilotildees delitualmente protegidas ndash ie quando estatildeo em

causa situaccedilotildees que se ocorressem entre terceiros conduziriam agrave

responsabilidade do agressor (por exemplo uma agressatildeo fiacutesica) ndash natildeo eacute

prejudicada pelo facto de lesante e lesado se integrarem na mesma famiacutelia e

731 Vide HEINRICH EWALD HOERSTER relativamente ao regime anterior ao da Lei nordm 612008

de 31 de outubro A respeito da Responsabilidade Civil dos Cocircnjuges entre si (ou A doutrina

da fragilidade da garantia seraacute vaacutelida) in Scientia Iuridica ndash Revista de Direito Comparado

Portuguecircs e Brasileiro T XLIV 1995 nordm 253255 pp 113 e ss Posteriormente agravequela lei o

mesmo Autor conclui que ldquoo princiacutepio da fragilidade da garantia caiurdquo In A responsabilidade

civil entre os cocircnjuges in E foram felizes para sempre hellip Actas do Congresso de 23 24 e 25

de outubro de 2008 Wolters Kluwer Coimbra Coimbra Editora 2010 pp 109 e 110

340

portanto se encontrarem ligados por um viacutenculo familiar que pode no entanto

ter repercussotildees na densificaccedilatildeo dos pressupostos da responsabilidade civil732

Tambeacutem se aceita de forma crescente a responsabilidade por

incumprimento dos deveres particulares que vinculam especificamente entre

si certos membros da famiacutelia (por exemplo quando haacute incumprimento dos

deveres conjugais733) em que pode mesmo ser equacionado o funcionamento

da responsabilidade obrigacional Natildeo eacute no entanto paciacutefico este

entendimento havendo muitas vozes na doutrina portuguesa que remetem o

ressarcimento para o acircmbito delitual ou aquiliano734 destacando para o efeito

a violaccedilatildeo de direitos absolutos (direitos de personalidade fazendo

nomeadamente apelo ao direito geral de personalidade) que por traacutes do

incumprimento dos deveres conjugais se esconderaacute735

V Muitas outras situaccedilotildees em que no acircmbito familiar haacute a afetaccedilatildeo

de direitos fundamentais com projeccedilotildees pessoais poderiam ainda ser

enunciadas Entre noacutes ainda natildeo existe rasto de querelas que tecircm surgido

732 Nomeadamente na afirmaccedilatildeo dos juiacutezos de desvalor objetivo e subjetivo da accedilatildeo A

consideraccedilatildeo do viacutenculo familiar e a violaccedilatildeo simultacircnea do dever de respeito impendente

entre familiares poderaacute levar in casu a uma acentuaccedilatildeo ou a uma atenuaccedilatildeo da

censurabilidade da conduta 733 Fazendo a aplicaccedilatildeo da responsabilidade civil agrave violaccedilatildeo culposa dos deveres conjugais

considere-se a decisatildeo do Supremo Tribunal de Justiccedila de 12 de maio de 2016 (acessiacutevel no

endereccedilo wwwdgsipt) 734 Nesse sentido vide PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA in Curso de Direito da

Famiacutelia Vol I cit p 788 735 Ora o recurso agrave tutela delitual permitiraacute fundar a oponibilidade a terceiros de certas

posiccedilotildees juriacutedicas familiares jaacute que possibilitaraacute a afirmaccedilatildeo de responsabilidade civil para

fundar pretensotildees reparatoacuterias quando um ato de terceiro as afete aiacute se concretizando (tambeacutem

assim) a sua ilicitude e a consequente identificaccedilatildeo do dano reparaacutevel A situaccedilatildeo entre noacutes

tem sido discutida em particular nos casos em que um ato iliacutecito de terceiro provoca uma lesatildeo

a um sujeito (lesado direto) de que decorre por sua vez a afetaccedilatildeo de um familiar por forccedila

de deveres familiares que os vinculem Estes lesados ndash reflexa ou diretamente conforme o

entendimento ndash poderatildeo tambeacutem demandar o responsaacutevel pelo ato lesivo para obter o

ressarcimento dos danos que lhes tiverem sido causados Pensamos por exemplo na situaccedilatildeo

mais comummente apresentada para apreciaccedilatildeo dos nossos Tribunais que eacute a de um cocircnjuge

ser viacutetima de um ato de terceiro que lhe causa graves lesotildees fiacutesicas que prejudicam a

convivecircncia marital nomeadamente o cumprimento do denominado deacutebito conjugal Trata-se

de uma constelaccedilatildeo faacutectica que se encontra subjacente ao Acoacuterdatildeo de Uniformizaccedilatildeo de

Jurisprudecircncia 62014 de 9 de janeiro de 2014 Sobre esta problemaacutetica e para referecircncias

bibliograacuteficas sobre o assunto vide o nosso Os danos natildeo patrimoniais (ditos) indiretos ndash uma

reflexatildeo ratione personae sobre a sua ressarcibilidade in Obra comemorativo dos 20 anos da

Faculdade de Direito da Universidade do Porto (no prelo)

341

abundantemente no estrangeiro a propoacutesito do estabelecimento da filiaccedilatildeo a

dos filhos que demandam pais que natildeo reconheceram o viacutenculo da paternidade

apesar de conhecerem informaccedilotildees suficientes para se convencerem da sua

paternidade a dos filhos que demandam as matildees por terem escondido a

verdade bioloacutegica sobre uma paternidade que permaneceu omissa ou que foi

indevidamente estabelecida em relaccedilatildeo a quem natildeo eacute o pai bioloacutegico ou ainda

a dos pais que peticionam agraves mulheres o ressarcimento de danos sofridos por

terem confiado na verdade bioloacutegica da sua paternidade que se encontra

juridicamente estabelecida e que as mulheres poderiam e deveriam ter

esclarecido736

VII Estaremos nos casos descritos ndash em todos os casos descritos ndash

perante bensinteresses merecedoras de tutela juriacutedica nomeadamente

ressarcitoacuteria Deveraacute o instituto da responsabilidade civil funcionar sem

quaisquer adaptaccedilotildees no acircmbito familiar Seratildeo as posiccedilotildees juriacutedico-

familiares reconduziacuteveis ao ldquodireito de outreacutemrdquo a que se refere o art 483ordm nordm

1 do CC Sendo as relaccedilotildees familiares relaccedilotildees que criam viacutenculos entre

pessoas determinadas podem ser assimiladas agraves relaccedilotildees obrigacionais

Poderaacute por consequecircncia aplicar-se a presunccedilatildeo de culpa do art 799ordm do CC

ao incumprimento dos deveres que delas emergem

VIII Muitas perguntas que para serem respondidas e que resultam da

tatildeo recente emergecircncia da visatildeo personalista da famiacutelia e da afirmaccedilatildeo

subjetiva que daiacute resulta Impotildee-se pois num outro momento uma reflexatildeo

profunda de todas estas questotildees que uma ldquoculturardquo de direitos surgidos no

contexto familiar gera

V OBSERVACcedilOtildeES CONCLUSIVAS

I O direito da famiacutelia apresenta-se como um dos continentes do mundo

juriacutedico cuja morfologia sofreu mais profundas alteraccedilotildees nas uacuteltimas

deacutecadas A metamorfose foi provocada em larga medida pela mudanccedila

operada no plano constitucional que ditou que tambeacutem no domiacutenio familiar

as ideias de igualdade e liberdade pontificassem

II A nova perspetivaccedilatildeo juriacutedica da famiacutelia para aleacutem de alteraccedilotildees

legislativas e de uma releitura de previsotildees normativas especiais que se tecircm

mantido formalmente inalteradas vem convocando a aplicaccedilatildeo agrave mateacuteria

familiar de institutos tiacutepicos de outros ramos do direito civil ndash por um lado a

736 Realidade subjacente ao diploma em discussatildeo na Alemanha e de que falaacutemos supra na

nota 699

342

autonomia privada nas suas vaacuterias manifestaccedilotildees nomeadamente as negociais

e por outro lado a responsabilidade civil

III O grande desafio que se coloca ao jurista eacute o de no novo quadro

juriacutedico garantir que na promoccedilatildeo da autonomia e no funcionamento da

responsabilidade natildeo se negligencia a especificidade que apesar daquela

mudanccedila continua a caracterizar a entidade familiar nem se prejudica a

particularidade que por isso devem ainda revestir as soluccedilotildees que para a sua

regulaccedilatildeo se encontrem no plano juriacutedico

Este trabalho eacute financiado por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT - Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do projeto laquoUIDDIR040362016raquo

Direitos HumanosCentro de Investigaccedilatildeo Interdisciplinar

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