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:: Verinotio - Revista On-line de Educação e Ciências Humanas. Nº 3, Ano II, Outubro de 2005, periodicidade semestral – ISSN 1981-061X. MARX, LEITOR DE DEMÓCRITO E EPICURO Ana Selva Castelo Branco Albinati [1] Resumo O artigo pretende apresentar a leitura que Marx faz da filosofia da natureza de Epicuro, na qual ele destaca o princípio da auto-consciência como sendo o elemento central do pensamento epicurista, elemento que o distingue do atomismo mecanicista de Demócrito, na medida em que permite pensar a liberdade humana, facultando o trânsito da física è ética. Ao analisar a filosofia de Epicuro, ao mesmo tempo que o qualifica como o grande iluminista da Antiguidade, Marx já indica os limites de uma concepção atomística dos indivíduos e de uma liberdade do indivíduo singular abstrato. Palavras-chave: epicurismo – materialismo – ética – auto-consciência. Marx, reader of Democrito and Epicuro Abstract The article intends to present Karl Marx's interpretation of Epicuro's philosophy of nature. In that work, he appoints the principle of auto-conscience as the central element of the epicurist thought and distinguishes it from Democrito's mechanistic atomism, as Epicuro's principle permits to conceive human liberty, making possible a transit from physics to ethics. While analyzes the philosophy of Epicuro, parallel to qualify him as the great illuminist from antiquity, Marx indicates the limits of an atomistic conception of the individuals and of a liberty of the singular abstract individual. Key-words: epicurism – materialism – ethics – auto-conscience 1

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Verinotio - Revista On-line de Educaccedilatildeo e Ciecircncias Humanas Nordm 3 Ano II Outubro de 2005 periodicidade semestral ndash ISSN 1981-061X

MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

Ana Selva Castelo Branco Albinati [1]

Resumo

O artigo pretende apresentar a leitura que Marx faz da filosofia da natureza

de Epicuro na qual ele destaca o princiacutepio da auto-consciecircncia como sendo o

elemento central do pensamento epicurista elemento que o distingue do

atomismo mecanicista de Demoacutecrito na medida em que permite pensar a

liberdade humana facultando o tracircnsito da fiacutesica egrave eacutetica Ao analisar a filosofia de

Epicuro ao mesmo tempo que o qualifica como o grande iluminista da Antiguidade

Marx jaacute indica os limites de uma concepccedilatildeo atomiacutestica dos indiviacuteduos e de uma

liberdade do indiviacuteduo singular abstrato

Palavras-chave epicurismo ndash materialismo ndash eacutetica ndash auto-consciecircncia

Marx reader of Democrito and Epicuro

Abstract

The article intends to present Karl Marxs interpretation of Epicuros

philosophy of nature In that work he appoints the principle of auto-conscience as

the central element of the epicurist thought and distinguishes it from Democritos

mechanistic atomism as Epicuros principle permits to conceive human liberty

making possible a transit from physics to ethics While analyzes the philosophy of

Epicuro parallel to qualify him as the great illuminist from antiquity Marx indicates

the limits of an atomistic conception of the individuals and of a liberty of the

singular abstract individual

Key-words epicurism ndash materialism ndash ethics ndash auto-conscience

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A Tese Doutoral de Marx cujo tiacutetulo eacute Diferenccedilas entre as filosofias da

natureza de Demoacutecrito e Epicuro eacute um texto sobre a fiacutesica dos dois filoacutesofos

ressaltando as diferenccedilas entre as duas concepccedilotildees e sustentando uma

superioridade filosoacutefica do trabalho de Epicuro o que jaacute eacute uma interpretaccedilatildeo

original na medida em que tradicionalmente Epicuro era tido como um mero

continuador ou mesmo um deturpador da teoria atomiacutestica de Demoacutecrito

Marx se refere em seu trabalho agraves leituras feitas por Ciacutecero e Plutarco

entre os antigos leituras nas quais Epicuro eacute tido como um deturpador da fiacutesica de

Demoacutecrito e leituras a partir das quais grande parte dos comentadores se reporta

ou ainda a Hegel dizendo que este natildeo teria tido o devido cuidado na

consideraccedilatildeo do conjunto das filosofias heleniacutesticas tendo se referido a este

conjunto apenas em grandes delineamentos sem maiores detalhes acrescendo-

se o fato de que ldquoa ideacuteia que Hegel tinha do que chamava o especulativo por

excelecircncia natildeo permitia a este gigantesco pensador reconhecer nestes sistemas a

grande importacircncia que revestem para a histoacuteria da filosofia grega e para o

espiacuterito grego em geralrdquo

Ao definir o objeto da dissertaccedilatildeo Marx observa que as filosofias poacutes-

aristoacuteteacutelicas satildeo considerados como ldquoum complemento incongruente sem

nenhuma relaccedilatildeo com seus vigorosos antecessoresrdquo ou ainda que essas filosofias

satildeo ldquovinculadas agrave filosofia alexandrina dando-lhes uma aparecircncia de ecletismo

estreito e tendenciosordquo

Assim a filosofia epicurista eacute normalmente reduzida a ldquoum agregado

sincreacutetico da fiacutesica de Demoacutecrito e da moral cirenaicardquo

Dessa forma a intenccedilatildeo original de Marx era fazer um estudo da filosofia

poacutes- aristoteacutelica do qual a tese doutoral seria apenas um iniacutecio projeto justificado

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exatamente pelo fato de que a filosofia heleniacutestica teria sido ateacute entatildeo

apresentada tatildeo somente como o momento de decliacutenio da filosofia grega

Interpretaccedilatildeo questionada por Marx que reconhece uma importacircncia histoacuterica a

esses sistemas que satildeo afinal ldquoa forma sob a qual a Greacutecia emigra para Romardquo E

se propotildee numa obra futura nunca realizada a examinar a conexatildeo desses

sistemas filosoacuteficos com a filosofia grega anterior a partir do reconhecimento de

um aspecto singular desses sistemas que eacute por um lado o retorno a uma fiacutesica

preacute-socraacutetica no caso do epicurismo a atomiacutestica de Demoacutecrito e por outro a

conciliaccedilatildeo dessa fiacutesica com uma eacutetica de inspiraccedilatildeo socraacutetica no caso o

hedonismo cirenaico

Ele coloca como tese a ser demonstrada que se a filosofia grega anterior

a estes sistemas eacute mais rica do ponto de visto do conteuacutedo os sistemas poacutes-

aristoteacutelicos satildeo no entanto mais significativos para o estudo ldquoda forma subjetiva

do caraacuteter essencial dessa filosofiardquo ou ainda do ldquosuporte espiritualrdquo desses

sistemas aspecto ateacute entatildeo desconsiderado

Dessa forma ele se refere agraves escolas heleniacutesticas como ldquomomentos da

autoconsciecircnciardquo dizendo que no seu conjunto o epicurismo o estoicismo e o

ceticismo integrariam ldquoa estrutura completa da autoconsciecircnciardquo (TD 21)

Embora esse projeto de Marx tenha sido abandonado muito cedo eacute

significativa a indicaccedilatildeo do autor sobre o propoacutesito de seu trabalho o interesse

pelo tema da auto-consciecircncia o que o coloca em consonacircncia com os interesses

e propoacutesitos proacuteprios do idealismo ativo A proacutepria sugestatildeo do tema teria sido de

acordo com vaacuterios comentadores da obra de Marx como Rossi por exemplo de

Bruno Bauer

De fato o Marx que nesse momento pretende se dedicar ao estudo do

conjunto das filosofias poacutes-aristoteacutelicas no intuito de ressaltar a sua importacircncia

no deciframento da forma subjetiva dessas filosofias ou em outras palavras do

reconhecimento desses sistemas como figuraccedilotildees histoacutericas da emergecircncia da

consciecircncia-de-si numa referecircncia oacutebvia agrave indicaccedilatildeo presente na Fenomenologia

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do Espiacuterito o faz no interior de um instrumental idealista afirmado por ele como

ldquonatildeo simplesmente uma quimera mas uma verdaderdquo na dedicatoacuteria ao seu futuro

sogro Ludwig von Westphalen mas natildeo apenas na postura de um idealista mas

adjetivando melhor na de um idealista neo-hegeliano de esquerda para quem a

questatildeo pungente de sua eacutepoca se refere agrave problemaacutetica entre a consciecircncia e a

substacircncia ou em outras palavras entre a filosofia e o mundo E compreende-se

entatildeo a passagem presente em seu proacutelogo de que a ldquoideacuteia do especulativordquo em

Hegel o impedia de reconhecer a importacircncia desses sistemas afirmaccedilatildeo que se

esclarece no decorrer de sua tese quando Marx se distancia da posiccedilatildeo hegeliana

que concilia ao final consciecircncia e substacircncia pela ecircnfase que Marx daacute agrave

autoconsciecircncia a partir da filosofia de Epicuro

O ponto de partida de Marx eacute a observaccedilatildeo de que embora os dois

filoacutesofos Demoacutecrito e Epicuro professem a mesma ciecircncia o atomismo eles se

distinguem radicalmente no que diz respeito agrave verdade agrave possibilidade do

conhecimento agrave relaccedilatildeo entre o pensamento e a realidade e ao proacuteprio sentido

da ciecircncia diferenccedilas apontadas na primeira parte da tese

A segunda parte eacute dedicada a um esmiuccedilamento dos princiacutepios dos dois

filoacutesofos ressaltando nos detalhes a origem de posiccedilotildees tatildeo contraacuterias

Observaccedilotildees na primeira parte faltam parte do IV capiacutetulo e todo o

capiacutetulo V sendo que a parte do cap IV figura no mais das vezes nas notas que

acompanham o corpo da tese seguida dos cadernos de anotaccedilotildees feitas pelo

autor

Na primeira parte Marx expotildee o objeto de estudo apresenta uma revisatildeo

da literatura a respeito da questatildeo e expotildee no capiacutetulo III as diferenccedilas gerais

entre os dois filoacutesofos

Em Demoacutecrito haacute segundo Marx passagens contraditoacuterias sobre a

possibilidade de certeza do conhecer e essa posiccedilatildeo democritiana se daacute em

funccedilatildeo da relaccedilatildeo que ele estabelece entre a essecircncia (o aacutetomo) e o fenocircmeno

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Haveria em Demoacutecrito uma separaccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno que culminaria

na impossibilidade de se conhecer a essecircncia De acordo com Demoacutecrito citado

por Marx ldquoos verdadeiros princiacutepios satildeo os aacutetomos e o vazio o demais eacute opiniatildeo

aparecircnciardquo (TD 24)

Na concepccedilatildeo de Demoacutecrito a essecircncia de todas as coisas satildeo os aacutetomos

e o vazio No entanto noacutes natildeo podemos conhecer a essecircncia das coisas mas

apenas as qualidades que resultam dos compostos de aacutetomos como a cor o

cheiro o frio o quente que satildeo proacuteprios dos fenocircmenos que entatildeo satildeo

percebidos pelos sujeitos Mas esses fenocircmenos com essas qualidades satildeo

apenas aparecircncias que natildeo dizem verdadeiramente da essecircncia dos seres Numa

palavra satildeo opiniatildeo Enquanto opiniotildees natildeo podem ser elevados agrave categoria de

verdade Os sentidos nos levam a perceber o fenocircmeno mas este eacute instaacutevel e natildeo

verdadeiro Sendo assim Demoacutecrito descarta os sentidos como fonte do

verdadeiro conhecimento o que soacute seria possiacutevel pela razatildeo

Isto faz com que Demoacutecrito assuma uma postura a princiacutepio contraditoacuteria

que eacute a de se dedicar extremamente agrave ciecircncia no seu aspecto investigativo

colecionador de dados mas essa coletacircnea natildeo se converte jamais em verdade

A ciecircncia soacute pode fornecer dados que podem ser acumulados manipulados

podem se mostrar eficientes mas que natildeo remetem agrave verdade do ser

No dizer de Marx essa concepccedilatildeo de Demoacutecrito se traduz na sua postura

ao mesmo tempo ceacutetica e no entanto de ativa pesquisa empiacuterica

Ele diraacute a respeito desta distacircncia que Demoacutecrito estabelece entre o

fenocircmeno e a essecircncia que ldquoO saber que ele tem por verdadeiro carece de

conteuacutedo e o que lhe daacute conteuacutedo carece de verdaderdquo (TD 25)

O extremo desta insatisfaccedilatildeo segundo Marx se manifestaria no suposto

ato de Demoacutecrito de se cegar para o mundo para alcanccedilar a verdade da razatildeo

liberta dos sentidos ldquo Dizem que Demoacutecrito se privou da visatildeo para que a luz

sensiacutevel do olho natildeo empanasse nele a agudeza do espiacuteritordquo (TD 25-6)

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A este espiacuterito insatisfeito e angustiado de Demoacutecrito que nos eacute

apresentado (e que segundo Joseacute Ameacuterico Pessanha em seu texto Marx e os

atomistas gregos seria uma visatildeo injusta de Demoacutecrito por parte de Marx) Marx

contrapotildee o espiacuterito tranquumlilo e confiante de Epicuro Contrariamente a Demoacutecrito

Epicuro eacute qualificado como um filoacutesofo e um dogmaacutetico confiante no

conhecimento da verdade a partir dos sentidos poreacutem despreocupado da ciecircncia

empiacuterica

Satildeo estas posiccedilotildees contraacuterias assumidas por filoacutesofos que partem dos

mesmos princiacutepios que chamam a atenccedilatildeo de Marx no sentido de investigar nos

pormenores a razatildeo dessa diferenccedila tatildeo gritante

A razatildeo estaria na forma como os dois compreendem a relaccedilatildeo entre a

essecircncia e o fenocircmeno Se em Demoacutecrito a aparecircncia nos engana para Epicuro

os sentidos satildeo uma fonte segura do saber

Segundo Demoacutecrito ldquoO uno natildeo resulta na verdade de muitos aacutetomos

mas sim mediante a combinaccedilatildeo dos aacutetomos parece tudo ser unordquo (TD 24)

Para Demoacutecrito entatildeo todo conhecimento a partir dos sentidos eacute apenas

aparecircncia sendo assim o mundo sensiacutevel apenas uma aparecircncia subjetiva

Jaacute para Epicuro o mundo sensiacutevel eacute um fenocircmeno objetivo jaacute que os

sentidos para ele ldquosatildeo arautos do verdadeirordquo (TD 24)

Marx vai trabalhar esta diferenccedila nos dois autores a partir da noccedilatildeo de

antinomia ou seja da diferenccedila entre fenocircmeno e essecircncia tal como eacute colocada

por eles Para tanto ele vai descer a detalhes que permitem detectar na sua

origem a razatildeo de tal contraposiccedilatildeo entre os dois filoacutesofos Eacute o que ele faz na

segunda parte do trabalho

Seraacute preciso aqui reconstruir resumidamente o que eacute a teoria atomiacutestica

segundo Demoacutecrito e segundo Epicuro de acordo com o que Marx nos apresenta

para que as diferenccedilas sejam ressaltadas

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Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a

todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos

aacutetomos por Epicuro

De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos

de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave

formaccedilatildeo dos compostos

Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros

comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os

aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees

Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no

qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as

direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria

decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em

Epicurordquo

Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto

que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha

reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa

querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no

universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a

formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)

De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam

determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito

eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois

afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e

Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer

opostordquo (TD 28)

7

Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a

possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural

Aqui haacute duas questotildees a serem vistas

1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute

presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito

por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo

em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do

clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma

hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a

presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que

formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas

apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx

que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do

clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do

proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)

2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute

importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo

movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o

movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a

possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos

Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio

O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao

desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos

Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos

difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo

(TD 30)

8

Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do

aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa

e natildeo absoluta)

No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na

medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade

Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda

natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia

que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua

singularidaderdquo

Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra

isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo

Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos

contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu

movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem

prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas

como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma

pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos

visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si

mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)

Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois

momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que

corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal

que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre

que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda

relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo

Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que

Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele

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afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo

existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa

vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)

(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz

ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como

senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem

necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para

ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute

inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo

naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)

1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a

accedilatildeo por vontade proacutepria

2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de

Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma

superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute

melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo

humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por

obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo

Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito

de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do

acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a

capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta

Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o

modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata

deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo

constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)

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A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx

apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de

Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua

afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de

Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo

A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de

vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros

critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que

ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No

entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de

negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda

maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua

superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas

reconhecido por Lucreacutecio

Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto

historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da

filosofia epicurista

Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela

de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza

deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a

possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na

esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute

explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a

causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de

todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por

conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)

Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no

conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A

declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No

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entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa

natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que

Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a

forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa

antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se

compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do

conhecimento

Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da

natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para

que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de

todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os

aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a

liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o

levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar

o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a

igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se

compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria

a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)

O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas

as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto

como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas

natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos

possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de

compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso

Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto

isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o

princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a

todo o pensamento epicurista

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Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da

moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista

Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro

satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica

Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua

existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a

filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam

representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a

independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade

do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a

ataraxiardquo (TD 34)

Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia

epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao

movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a

responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e

mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada

ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer

essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre

os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser

produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma

existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja

todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu

objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a

forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)

Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os

aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade

esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade

imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que

ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave

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consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

14

estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

15

Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

16

representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

A Tese Doutoral de Marx cujo tiacutetulo eacute Diferenccedilas entre as filosofias da

natureza de Demoacutecrito e Epicuro eacute um texto sobre a fiacutesica dos dois filoacutesofos

ressaltando as diferenccedilas entre as duas concepccedilotildees e sustentando uma

superioridade filosoacutefica do trabalho de Epicuro o que jaacute eacute uma interpretaccedilatildeo

original na medida em que tradicionalmente Epicuro era tido como um mero

continuador ou mesmo um deturpador da teoria atomiacutestica de Demoacutecrito

Marx se refere em seu trabalho agraves leituras feitas por Ciacutecero e Plutarco

entre os antigos leituras nas quais Epicuro eacute tido como um deturpador da fiacutesica de

Demoacutecrito e leituras a partir das quais grande parte dos comentadores se reporta

ou ainda a Hegel dizendo que este natildeo teria tido o devido cuidado na

consideraccedilatildeo do conjunto das filosofias heleniacutesticas tendo se referido a este

conjunto apenas em grandes delineamentos sem maiores detalhes acrescendo-

se o fato de que ldquoa ideacuteia que Hegel tinha do que chamava o especulativo por

excelecircncia natildeo permitia a este gigantesco pensador reconhecer nestes sistemas a

grande importacircncia que revestem para a histoacuteria da filosofia grega e para o

espiacuterito grego em geralrdquo

Ao definir o objeto da dissertaccedilatildeo Marx observa que as filosofias poacutes-

aristoacuteteacutelicas satildeo considerados como ldquoum complemento incongruente sem

nenhuma relaccedilatildeo com seus vigorosos antecessoresrdquo ou ainda que essas filosofias

satildeo ldquovinculadas agrave filosofia alexandrina dando-lhes uma aparecircncia de ecletismo

estreito e tendenciosordquo

Assim a filosofia epicurista eacute normalmente reduzida a ldquoum agregado

sincreacutetico da fiacutesica de Demoacutecrito e da moral cirenaicardquo

Dessa forma a intenccedilatildeo original de Marx era fazer um estudo da filosofia

poacutes- aristoteacutelica do qual a tese doutoral seria apenas um iniacutecio projeto justificado

2

exatamente pelo fato de que a filosofia heleniacutestica teria sido ateacute entatildeo

apresentada tatildeo somente como o momento de decliacutenio da filosofia grega

Interpretaccedilatildeo questionada por Marx que reconhece uma importacircncia histoacuterica a

esses sistemas que satildeo afinal ldquoa forma sob a qual a Greacutecia emigra para Romardquo E

se propotildee numa obra futura nunca realizada a examinar a conexatildeo desses

sistemas filosoacuteficos com a filosofia grega anterior a partir do reconhecimento de

um aspecto singular desses sistemas que eacute por um lado o retorno a uma fiacutesica

preacute-socraacutetica no caso do epicurismo a atomiacutestica de Demoacutecrito e por outro a

conciliaccedilatildeo dessa fiacutesica com uma eacutetica de inspiraccedilatildeo socraacutetica no caso o

hedonismo cirenaico

Ele coloca como tese a ser demonstrada que se a filosofia grega anterior

a estes sistemas eacute mais rica do ponto de visto do conteuacutedo os sistemas poacutes-

aristoteacutelicos satildeo no entanto mais significativos para o estudo ldquoda forma subjetiva

do caraacuteter essencial dessa filosofiardquo ou ainda do ldquosuporte espiritualrdquo desses

sistemas aspecto ateacute entatildeo desconsiderado

Dessa forma ele se refere agraves escolas heleniacutesticas como ldquomomentos da

autoconsciecircnciardquo dizendo que no seu conjunto o epicurismo o estoicismo e o

ceticismo integrariam ldquoa estrutura completa da autoconsciecircnciardquo (TD 21)

Embora esse projeto de Marx tenha sido abandonado muito cedo eacute

significativa a indicaccedilatildeo do autor sobre o propoacutesito de seu trabalho o interesse

pelo tema da auto-consciecircncia o que o coloca em consonacircncia com os interesses

e propoacutesitos proacuteprios do idealismo ativo A proacutepria sugestatildeo do tema teria sido de

acordo com vaacuterios comentadores da obra de Marx como Rossi por exemplo de

Bruno Bauer

De fato o Marx que nesse momento pretende se dedicar ao estudo do

conjunto das filosofias poacutes-aristoteacutelicas no intuito de ressaltar a sua importacircncia

no deciframento da forma subjetiva dessas filosofias ou em outras palavras do

reconhecimento desses sistemas como figuraccedilotildees histoacutericas da emergecircncia da

consciecircncia-de-si numa referecircncia oacutebvia agrave indicaccedilatildeo presente na Fenomenologia

3

do Espiacuterito o faz no interior de um instrumental idealista afirmado por ele como

ldquonatildeo simplesmente uma quimera mas uma verdaderdquo na dedicatoacuteria ao seu futuro

sogro Ludwig von Westphalen mas natildeo apenas na postura de um idealista mas

adjetivando melhor na de um idealista neo-hegeliano de esquerda para quem a

questatildeo pungente de sua eacutepoca se refere agrave problemaacutetica entre a consciecircncia e a

substacircncia ou em outras palavras entre a filosofia e o mundo E compreende-se

entatildeo a passagem presente em seu proacutelogo de que a ldquoideacuteia do especulativordquo em

Hegel o impedia de reconhecer a importacircncia desses sistemas afirmaccedilatildeo que se

esclarece no decorrer de sua tese quando Marx se distancia da posiccedilatildeo hegeliana

que concilia ao final consciecircncia e substacircncia pela ecircnfase que Marx daacute agrave

autoconsciecircncia a partir da filosofia de Epicuro

O ponto de partida de Marx eacute a observaccedilatildeo de que embora os dois

filoacutesofos Demoacutecrito e Epicuro professem a mesma ciecircncia o atomismo eles se

distinguem radicalmente no que diz respeito agrave verdade agrave possibilidade do

conhecimento agrave relaccedilatildeo entre o pensamento e a realidade e ao proacuteprio sentido

da ciecircncia diferenccedilas apontadas na primeira parte da tese

A segunda parte eacute dedicada a um esmiuccedilamento dos princiacutepios dos dois

filoacutesofos ressaltando nos detalhes a origem de posiccedilotildees tatildeo contraacuterias

Observaccedilotildees na primeira parte faltam parte do IV capiacutetulo e todo o

capiacutetulo V sendo que a parte do cap IV figura no mais das vezes nas notas que

acompanham o corpo da tese seguida dos cadernos de anotaccedilotildees feitas pelo

autor

Na primeira parte Marx expotildee o objeto de estudo apresenta uma revisatildeo

da literatura a respeito da questatildeo e expotildee no capiacutetulo III as diferenccedilas gerais

entre os dois filoacutesofos

Em Demoacutecrito haacute segundo Marx passagens contraditoacuterias sobre a

possibilidade de certeza do conhecer e essa posiccedilatildeo democritiana se daacute em

funccedilatildeo da relaccedilatildeo que ele estabelece entre a essecircncia (o aacutetomo) e o fenocircmeno

4

Haveria em Demoacutecrito uma separaccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno que culminaria

na impossibilidade de se conhecer a essecircncia De acordo com Demoacutecrito citado

por Marx ldquoos verdadeiros princiacutepios satildeo os aacutetomos e o vazio o demais eacute opiniatildeo

aparecircnciardquo (TD 24)

Na concepccedilatildeo de Demoacutecrito a essecircncia de todas as coisas satildeo os aacutetomos

e o vazio No entanto noacutes natildeo podemos conhecer a essecircncia das coisas mas

apenas as qualidades que resultam dos compostos de aacutetomos como a cor o

cheiro o frio o quente que satildeo proacuteprios dos fenocircmenos que entatildeo satildeo

percebidos pelos sujeitos Mas esses fenocircmenos com essas qualidades satildeo

apenas aparecircncias que natildeo dizem verdadeiramente da essecircncia dos seres Numa

palavra satildeo opiniatildeo Enquanto opiniotildees natildeo podem ser elevados agrave categoria de

verdade Os sentidos nos levam a perceber o fenocircmeno mas este eacute instaacutevel e natildeo

verdadeiro Sendo assim Demoacutecrito descarta os sentidos como fonte do

verdadeiro conhecimento o que soacute seria possiacutevel pela razatildeo

Isto faz com que Demoacutecrito assuma uma postura a princiacutepio contraditoacuteria

que eacute a de se dedicar extremamente agrave ciecircncia no seu aspecto investigativo

colecionador de dados mas essa coletacircnea natildeo se converte jamais em verdade

A ciecircncia soacute pode fornecer dados que podem ser acumulados manipulados

podem se mostrar eficientes mas que natildeo remetem agrave verdade do ser

No dizer de Marx essa concepccedilatildeo de Demoacutecrito se traduz na sua postura

ao mesmo tempo ceacutetica e no entanto de ativa pesquisa empiacuterica

Ele diraacute a respeito desta distacircncia que Demoacutecrito estabelece entre o

fenocircmeno e a essecircncia que ldquoO saber que ele tem por verdadeiro carece de

conteuacutedo e o que lhe daacute conteuacutedo carece de verdaderdquo (TD 25)

O extremo desta insatisfaccedilatildeo segundo Marx se manifestaria no suposto

ato de Demoacutecrito de se cegar para o mundo para alcanccedilar a verdade da razatildeo

liberta dos sentidos ldquo Dizem que Demoacutecrito se privou da visatildeo para que a luz

sensiacutevel do olho natildeo empanasse nele a agudeza do espiacuteritordquo (TD 25-6)

5

A este espiacuterito insatisfeito e angustiado de Demoacutecrito que nos eacute

apresentado (e que segundo Joseacute Ameacuterico Pessanha em seu texto Marx e os

atomistas gregos seria uma visatildeo injusta de Demoacutecrito por parte de Marx) Marx

contrapotildee o espiacuterito tranquumlilo e confiante de Epicuro Contrariamente a Demoacutecrito

Epicuro eacute qualificado como um filoacutesofo e um dogmaacutetico confiante no

conhecimento da verdade a partir dos sentidos poreacutem despreocupado da ciecircncia

empiacuterica

Satildeo estas posiccedilotildees contraacuterias assumidas por filoacutesofos que partem dos

mesmos princiacutepios que chamam a atenccedilatildeo de Marx no sentido de investigar nos

pormenores a razatildeo dessa diferenccedila tatildeo gritante

A razatildeo estaria na forma como os dois compreendem a relaccedilatildeo entre a

essecircncia e o fenocircmeno Se em Demoacutecrito a aparecircncia nos engana para Epicuro

os sentidos satildeo uma fonte segura do saber

Segundo Demoacutecrito ldquoO uno natildeo resulta na verdade de muitos aacutetomos

mas sim mediante a combinaccedilatildeo dos aacutetomos parece tudo ser unordquo (TD 24)

Para Demoacutecrito entatildeo todo conhecimento a partir dos sentidos eacute apenas

aparecircncia sendo assim o mundo sensiacutevel apenas uma aparecircncia subjetiva

Jaacute para Epicuro o mundo sensiacutevel eacute um fenocircmeno objetivo jaacute que os

sentidos para ele ldquosatildeo arautos do verdadeirordquo (TD 24)

Marx vai trabalhar esta diferenccedila nos dois autores a partir da noccedilatildeo de

antinomia ou seja da diferenccedila entre fenocircmeno e essecircncia tal como eacute colocada

por eles Para tanto ele vai descer a detalhes que permitem detectar na sua

origem a razatildeo de tal contraposiccedilatildeo entre os dois filoacutesofos Eacute o que ele faz na

segunda parte do trabalho

Seraacute preciso aqui reconstruir resumidamente o que eacute a teoria atomiacutestica

segundo Demoacutecrito e segundo Epicuro de acordo com o que Marx nos apresenta

para que as diferenccedilas sejam ressaltadas

6

Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a

todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos

aacutetomos por Epicuro

De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos

de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave

formaccedilatildeo dos compostos

Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros

comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os

aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees

Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no

qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as

direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria

decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em

Epicurordquo

Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto

que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha

reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa

querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no

universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a

formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)

De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam

determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito

eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois

afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e

Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer

opostordquo (TD 28)

7

Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a

possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural

Aqui haacute duas questotildees a serem vistas

1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute

presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito

por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo

em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do

clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma

hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a

presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que

formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas

apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx

que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do

clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do

proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)

2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute

importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo

movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o

movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a

possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos

Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio

O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao

desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos

Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos

difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo

(TD 30)

8

Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do

aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa

e natildeo absoluta)

No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na

medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade

Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda

natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia

que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua

singularidaderdquo

Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra

isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo

Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos

contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu

movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem

prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas

como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma

pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos

visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si

mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)

Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois

momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que

corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal

que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre

que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda

relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo

Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que

Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele

9

afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo

existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa

vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)

(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz

ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como

senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem

necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para

ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute

inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo

naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)

1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a

accedilatildeo por vontade proacutepria

2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de

Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma

superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute

melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo

humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por

obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo

Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito

de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do

acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a

capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta

Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o

modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata

deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo

constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)

10

A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx

apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de

Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua

afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de

Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo

A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de

vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros

critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que

ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No

entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de

negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda

maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua

superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas

reconhecido por Lucreacutecio

Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto

historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da

filosofia epicurista

Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela

de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza

deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a

possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na

esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute

explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a

causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de

todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por

conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)

Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no

conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A

declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No

11

entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa

natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que

Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a

forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa

antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se

compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do

conhecimento

Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da

natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para

que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de

todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os

aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a

liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o

levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar

o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a

igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se

compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria

a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)

O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas

as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto

como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas

natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos

possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de

compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso

Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto

isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o

princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a

todo o pensamento epicurista

12

Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da

moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista

Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro

satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica

Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua

existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a

filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam

representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a

independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade

do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a

ataraxiardquo (TD 34)

Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia

epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao

movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a

responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e

mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada

ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer

essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre

os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser

produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma

existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja

todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu

objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a

forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)

Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os

aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade

esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade

imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que

ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave

13

consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

14

estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

15

Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

16

representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

exatamente pelo fato de que a filosofia heleniacutestica teria sido ateacute entatildeo

apresentada tatildeo somente como o momento de decliacutenio da filosofia grega

Interpretaccedilatildeo questionada por Marx que reconhece uma importacircncia histoacuterica a

esses sistemas que satildeo afinal ldquoa forma sob a qual a Greacutecia emigra para Romardquo E

se propotildee numa obra futura nunca realizada a examinar a conexatildeo desses

sistemas filosoacuteficos com a filosofia grega anterior a partir do reconhecimento de

um aspecto singular desses sistemas que eacute por um lado o retorno a uma fiacutesica

preacute-socraacutetica no caso do epicurismo a atomiacutestica de Demoacutecrito e por outro a

conciliaccedilatildeo dessa fiacutesica com uma eacutetica de inspiraccedilatildeo socraacutetica no caso o

hedonismo cirenaico

Ele coloca como tese a ser demonstrada que se a filosofia grega anterior

a estes sistemas eacute mais rica do ponto de visto do conteuacutedo os sistemas poacutes-

aristoteacutelicos satildeo no entanto mais significativos para o estudo ldquoda forma subjetiva

do caraacuteter essencial dessa filosofiardquo ou ainda do ldquosuporte espiritualrdquo desses

sistemas aspecto ateacute entatildeo desconsiderado

Dessa forma ele se refere agraves escolas heleniacutesticas como ldquomomentos da

autoconsciecircnciardquo dizendo que no seu conjunto o epicurismo o estoicismo e o

ceticismo integrariam ldquoa estrutura completa da autoconsciecircnciardquo (TD 21)

Embora esse projeto de Marx tenha sido abandonado muito cedo eacute

significativa a indicaccedilatildeo do autor sobre o propoacutesito de seu trabalho o interesse

pelo tema da auto-consciecircncia o que o coloca em consonacircncia com os interesses

e propoacutesitos proacuteprios do idealismo ativo A proacutepria sugestatildeo do tema teria sido de

acordo com vaacuterios comentadores da obra de Marx como Rossi por exemplo de

Bruno Bauer

De fato o Marx que nesse momento pretende se dedicar ao estudo do

conjunto das filosofias poacutes-aristoteacutelicas no intuito de ressaltar a sua importacircncia

no deciframento da forma subjetiva dessas filosofias ou em outras palavras do

reconhecimento desses sistemas como figuraccedilotildees histoacutericas da emergecircncia da

consciecircncia-de-si numa referecircncia oacutebvia agrave indicaccedilatildeo presente na Fenomenologia

3

do Espiacuterito o faz no interior de um instrumental idealista afirmado por ele como

ldquonatildeo simplesmente uma quimera mas uma verdaderdquo na dedicatoacuteria ao seu futuro

sogro Ludwig von Westphalen mas natildeo apenas na postura de um idealista mas

adjetivando melhor na de um idealista neo-hegeliano de esquerda para quem a

questatildeo pungente de sua eacutepoca se refere agrave problemaacutetica entre a consciecircncia e a

substacircncia ou em outras palavras entre a filosofia e o mundo E compreende-se

entatildeo a passagem presente em seu proacutelogo de que a ldquoideacuteia do especulativordquo em

Hegel o impedia de reconhecer a importacircncia desses sistemas afirmaccedilatildeo que se

esclarece no decorrer de sua tese quando Marx se distancia da posiccedilatildeo hegeliana

que concilia ao final consciecircncia e substacircncia pela ecircnfase que Marx daacute agrave

autoconsciecircncia a partir da filosofia de Epicuro

O ponto de partida de Marx eacute a observaccedilatildeo de que embora os dois

filoacutesofos Demoacutecrito e Epicuro professem a mesma ciecircncia o atomismo eles se

distinguem radicalmente no que diz respeito agrave verdade agrave possibilidade do

conhecimento agrave relaccedilatildeo entre o pensamento e a realidade e ao proacuteprio sentido

da ciecircncia diferenccedilas apontadas na primeira parte da tese

A segunda parte eacute dedicada a um esmiuccedilamento dos princiacutepios dos dois

filoacutesofos ressaltando nos detalhes a origem de posiccedilotildees tatildeo contraacuterias

Observaccedilotildees na primeira parte faltam parte do IV capiacutetulo e todo o

capiacutetulo V sendo que a parte do cap IV figura no mais das vezes nas notas que

acompanham o corpo da tese seguida dos cadernos de anotaccedilotildees feitas pelo

autor

Na primeira parte Marx expotildee o objeto de estudo apresenta uma revisatildeo

da literatura a respeito da questatildeo e expotildee no capiacutetulo III as diferenccedilas gerais

entre os dois filoacutesofos

Em Demoacutecrito haacute segundo Marx passagens contraditoacuterias sobre a

possibilidade de certeza do conhecer e essa posiccedilatildeo democritiana se daacute em

funccedilatildeo da relaccedilatildeo que ele estabelece entre a essecircncia (o aacutetomo) e o fenocircmeno

4

Haveria em Demoacutecrito uma separaccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno que culminaria

na impossibilidade de se conhecer a essecircncia De acordo com Demoacutecrito citado

por Marx ldquoos verdadeiros princiacutepios satildeo os aacutetomos e o vazio o demais eacute opiniatildeo

aparecircnciardquo (TD 24)

Na concepccedilatildeo de Demoacutecrito a essecircncia de todas as coisas satildeo os aacutetomos

e o vazio No entanto noacutes natildeo podemos conhecer a essecircncia das coisas mas

apenas as qualidades que resultam dos compostos de aacutetomos como a cor o

cheiro o frio o quente que satildeo proacuteprios dos fenocircmenos que entatildeo satildeo

percebidos pelos sujeitos Mas esses fenocircmenos com essas qualidades satildeo

apenas aparecircncias que natildeo dizem verdadeiramente da essecircncia dos seres Numa

palavra satildeo opiniatildeo Enquanto opiniotildees natildeo podem ser elevados agrave categoria de

verdade Os sentidos nos levam a perceber o fenocircmeno mas este eacute instaacutevel e natildeo

verdadeiro Sendo assim Demoacutecrito descarta os sentidos como fonte do

verdadeiro conhecimento o que soacute seria possiacutevel pela razatildeo

Isto faz com que Demoacutecrito assuma uma postura a princiacutepio contraditoacuteria

que eacute a de se dedicar extremamente agrave ciecircncia no seu aspecto investigativo

colecionador de dados mas essa coletacircnea natildeo se converte jamais em verdade

A ciecircncia soacute pode fornecer dados que podem ser acumulados manipulados

podem se mostrar eficientes mas que natildeo remetem agrave verdade do ser

No dizer de Marx essa concepccedilatildeo de Demoacutecrito se traduz na sua postura

ao mesmo tempo ceacutetica e no entanto de ativa pesquisa empiacuterica

Ele diraacute a respeito desta distacircncia que Demoacutecrito estabelece entre o

fenocircmeno e a essecircncia que ldquoO saber que ele tem por verdadeiro carece de

conteuacutedo e o que lhe daacute conteuacutedo carece de verdaderdquo (TD 25)

O extremo desta insatisfaccedilatildeo segundo Marx se manifestaria no suposto

ato de Demoacutecrito de se cegar para o mundo para alcanccedilar a verdade da razatildeo

liberta dos sentidos ldquo Dizem que Demoacutecrito se privou da visatildeo para que a luz

sensiacutevel do olho natildeo empanasse nele a agudeza do espiacuteritordquo (TD 25-6)

5

A este espiacuterito insatisfeito e angustiado de Demoacutecrito que nos eacute

apresentado (e que segundo Joseacute Ameacuterico Pessanha em seu texto Marx e os

atomistas gregos seria uma visatildeo injusta de Demoacutecrito por parte de Marx) Marx

contrapotildee o espiacuterito tranquumlilo e confiante de Epicuro Contrariamente a Demoacutecrito

Epicuro eacute qualificado como um filoacutesofo e um dogmaacutetico confiante no

conhecimento da verdade a partir dos sentidos poreacutem despreocupado da ciecircncia

empiacuterica

Satildeo estas posiccedilotildees contraacuterias assumidas por filoacutesofos que partem dos

mesmos princiacutepios que chamam a atenccedilatildeo de Marx no sentido de investigar nos

pormenores a razatildeo dessa diferenccedila tatildeo gritante

A razatildeo estaria na forma como os dois compreendem a relaccedilatildeo entre a

essecircncia e o fenocircmeno Se em Demoacutecrito a aparecircncia nos engana para Epicuro

os sentidos satildeo uma fonte segura do saber

Segundo Demoacutecrito ldquoO uno natildeo resulta na verdade de muitos aacutetomos

mas sim mediante a combinaccedilatildeo dos aacutetomos parece tudo ser unordquo (TD 24)

Para Demoacutecrito entatildeo todo conhecimento a partir dos sentidos eacute apenas

aparecircncia sendo assim o mundo sensiacutevel apenas uma aparecircncia subjetiva

Jaacute para Epicuro o mundo sensiacutevel eacute um fenocircmeno objetivo jaacute que os

sentidos para ele ldquosatildeo arautos do verdadeirordquo (TD 24)

Marx vai trabalhar esta diferenccedila nos dois autores a partir da noccedilatildeo de

antinomia ou seja da diferenccedila entre fenocircmeno e essecircncia tal como eacute colocada

por eles Para tanto ele vai descer a detalhes que permitem detectar na sua

origem a razatildeo de tal contraposiccedilatildeo entre os dois filoacutesofos Eacute o que ele faz na

segunda parte do trabalho

Seraacute preciso aqui reconstruir resumidamente o que eacute a teoria atomiacutestica

segundo Demoacutecrito e segundo Epicuro de acordo com o que Marx nos apresenta

para que as diferenccedilas sejam ressaltadas

6

Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a

todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos

aacutetomos por Epicuro

De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos

de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave

formaccedilatildeo dos compostos

Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros

comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os

aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees

Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no

qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as

direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria

decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em

Epicurordquo

Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto

que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha

reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa

querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no

universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a

formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)

De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam

determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito

eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois

afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e

Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer

opostordquo (TD 28)

7

Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a

possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural

Aqui haacute duas questotildees a serem vistas

1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute

presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito

por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo

em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do

clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma

hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a

presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que

formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas

apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx

que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do

clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do

proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)

2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute

importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo

movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o

movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a

possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos

Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio

O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao

desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos

Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos

difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo

(TD 30)

8

Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do

aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa

e natildeo absoluta)

No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na

medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade

Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda

natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia

que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua

singularidaderdquo

Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra

isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo

Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos

contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu

movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem

prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas

como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma

pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos

visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si

mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)

Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois

momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que

corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal

que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre

que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda

relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo

Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que

Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele

9

afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo

existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa

vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)

(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz

ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como

senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem

necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para

ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute

inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo

naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)

1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a

accedilatildeo por vontade proacutepria

2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de

Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma

superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute

melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo

humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por

obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo

Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito

de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do

acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a

capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta

Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o

modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata

deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo

constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)

10

A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx

apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de

Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua

afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de

Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo

A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de

vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros

critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que

ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No

entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de

negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda

maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua

superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas

reconhecido por Lucreacutecio

Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto

historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da

filosofia epicurista

Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela

de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza

deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a

possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na

esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute

explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a

causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de

todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por

conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)

Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no

conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A

declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No

11

entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa

natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que

Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a

forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa

antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se

compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do

conhecimento

Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da

natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para

que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de

todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os

aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a

liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o

levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar

o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a

igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se

compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria

a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)

O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas

as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto

como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas

natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos

possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de

compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso

Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto

isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o

princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a

todo o pensamento epicurista

12

Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da

moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista

Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro

satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica

Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua

existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a

filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam

representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a

independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade

do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a

ataraxiardquo (TD 34)

Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia

epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao

movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a

responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e

mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada

ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer

essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre

os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser

produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma

existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja

todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu

objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a

forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)

Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os

aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade

esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade

imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que

ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave

13

consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

14

estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

15

Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

16

representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

do Espiacuterito o faz no interior de um instrumental idealista afirmado por ele como

ldquonatildeo simplesmente uma quimera mas uma verdaderdquo na dedicatoacuteria ao seu futuro

sogro Ludwig von Westphalen mas natildeo apenas na postura de um idealista mas

adjetivando melhor na de um idealista neo-hegeliano de esquerda para quem a

questatildeo pungente de sua eacutepoca se refere agrave problemaacutetica entre a consciecircncia e a

substacircncia ou em outras palavras entre a filosofia e o mundo E compreende-se

entatildeo a passagem presente em seu proacutelogo de que a ldquoideacuteia do especulativordquo em

Hegel o impedia de reconhecer a importacircncia desses sistemas afirmaccedilatildeo que se

esclarece no decorrer de sua tese quando Marx se distancia da posiccedilatildeo hegeliana

que concilia ao final consciecircncia e substacircncia pela ecircnfase que Marx daacute agrave

autoconsciecircncia a partir da filosofia de Epicuro

O ponto de partida de Marx eacute a observaccedilatildeo de que embora os dois

filoacutesofos Demoacutecrito e Epicuro professem a mesma ciecircncia o atomismo eles se

distinguem radicalmente no que diz respeito agrave verdade agrave possibilidade do

conhecimento agrave relaccedilatildeo entre o pensamento e a realidade e ao proacuteprio sentido

da ciecircncia diferenccedilas apontadas na primeira parte da tese

A segunda parte eacute dedicada a um esmiuccedilamento dos princiacutepios dos dois

filoacutesofos ressaltando nos detalhes a origem de posiccedilotildees tatildeo contraacuterias

Observaccedilotildees na primeira parte faltam parte do IV capiacutetulo e todo o

capiacutetulo V sendo que a parte do cap IV figura no mais das vezes nas notas que

acompanham o corpo da tese seguida dos cadernos de anotaccedilotildees feitas pelo

autor

Na primeira parte Marx expotildee o objeto de estudo apresenta uma revisatildeo

da literatura a respeito da questatildeo e expotildee no capiacutetulo III as diferenccedilas gerais

entre os dois filoacutesofos

Em Demoacutecrito haacute segundo Marx passagens contraditoacuterias sobre a

possibilidade de certeza do conhecer e essa posiccedilatildeo democritiana se daacute em

funccedilatildeo da relaccedilatildeo que ele estabelece entre a essecircncia (o aacutetomo) e o fenocircmeno

4

Haveria em Demoacutecrito uma separaccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno que culminaria

na impossibilidade de se conhecer a essecircncia De acordo com Demoacutecrito citado

por Marx ldquoos verdadeiros princiacutepios satildeo os aacutetomos e o vazio o demais eacute opiniatildeo

aparecircnciardquo (TD 24)

Na concepccedilatildeo de Demoacutecrito a essecircncia de todas as coisas satildeo os aacutetomos

e o vazio No entanto noacutes natildeo podemos conhecer a essecircncia das coisas mas

apenas as qualidades que resultam dos compostos de aacutetomos como a cor o

cheiro o frio o quente que satildeo proacuteprios dos fenocircmenos que entatildeo satildeo

percebidos pelos sujeitos Mas esses fenocircmenos com essas qualidades satildeo

apenas aparecircncias que natildeo dizem verdadeiramente da essecircncia dos seres Numa

palavra satildeo opiniatildeo Enquanto opiniotildees natildeo podem ser elevados agrave categoria de

verdade Os sentidos nos levam a perceber o fenocircmeno mas este eacute instaacutevel e natildeo

verdadeiro Sendo assim Demoacutecrito descarta os sentidos como fonte do

verdadeiro conhecimento o que soacute seria possiacutevel pela razatildeo

Isto faz com que Demoacutecrito assuma uma postura a princiacutepio contraditoacuteria

que eacute a de se dedicar extremamente agrave ciecircncia no seu aspecto investigativo

colecionador de dados mas essa coletacircnea natildeo se converte jamais em verdade

A ciecircncia soacute pode fornecer dados que podem ser acumulados manipulados

podem se mostrar eficientes mas que natildeo remetem agrave verdade do ser

No dizer de Marx essa concepccedilatildeo de Demoacutecrito se traduz na sua postura

ao mesmo tempo ceacutetica e no entanto de ativa pesquisa empiacuterica

Ele diraacute a respeito desta distacircncia que Demoacutecrito estabelece entre o

fenocircmeno e a essecircncia que ldquoO saber que ele tem por verdadeiro carece de

conteuacutedo e o que lhe daacute conteuacutedo carece de verdaderdquo (TD 25)

O extremo desta insatisfaccedilatildeo segundo Marx se manifestaria no suposto

ato de Demoacutecrito de se cegar para o mundo para alcanccedilar a verdade da razatildeo

liberta dos sentidos ldquo Dizem que Demoacutecrito se privou da visatildeo para que a luz

sensiacutevel do olho natildeo empanasse nele a agudeza do espiacuteritordquo (TD 25-6)

5

A este espiacuterito insatisfeito e angustiado de Demoacutecrito que nos eacute

apresentado (e que segundo Joseacute Ameacuterico Pessanha em seu texto Marx e os

atomistas gregos seria uma visatildeo injusta de Demoacutecrito por parte de Marx) Marx

contrapotildee o espiacuterito tranquumlilo e confiante de Epicuro Contrariamente a Demoacutecrito

Epicuro eacute qualificado como um filoacutesofo e um dogmaacutetico confiante no

conhecimento da verdade a partir dos sentidos poreacutem despreocupado da ciecircncia

empiacuterica

Satildeo estas posiccedilotildees contraacuterias assumidas por filoacutesofos que partem dos

mesmos princiacutepios que chamam a atenccedilatildeo de Marx no sentido de investigar nos

pormenores a razatildeo dessa diferenccedila tatildeo gritante

A razatildeo estaria na forma como os dois compreendem a relaccedilatildeo entre a

essecircncia e o fenocircmeno Se em Demoacutecrito a aparecircncia nos engana para Epicuro

os sentidos satildeo uma fonte segura do saber

Segundo Demoacutecrito ldquoO uno natildeo resulta na verdade de muitos aacutetomos

mas sim mediante a combinaccedilatildeo dos aacutetomos parece tudo ser unordquo (TD 24)

Para Demoacutecrito entatildeo todo conhecimento a partir dos sentidos eacute apenas

aparecircncia sendo assim o mundo sensiacutevel apenas uma aparecircncia subjetiva

Jaacute para Epicuro o mundo sensiacutevel eacute um fenocircmeno objetivo jaacute que os

sentidos para ele ldquosatildeo arautos do verdadeirordquo (TD 24)

Marx vai trabalhar esta diferenccedila nos dois autores a partir da noccedilatildeo de

antinomia ou seja da diferenccedila entre fenocircmeno e essecircncia tal como eacute colocada

por eles Para tanto ele vai descer a detalhes que permitem detectar na sua

origem a razatildeo de tal contraposiccedilatildeo entre os dois filoacutesofos Eacute o que ele faz na

segunda parte do trabalho

Seraacute preciso aqui reconstruir resumidamente o que eacute a teoria atomiacutestica

segundo Demoacutecrito e segundo Epicuro de acordo com o que Marx nos apresenta

para que as diferenccedilas sejam ressaltadas

6

Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a

todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos

aacutetomos por Epicuro

De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos

de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave

formaccedilatildeo dos compostos

Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros

comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os

aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees

Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no

qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as

direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria

decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em

Epicurordquo

Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto

que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha

reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa

querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no

universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a

formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)

De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam

determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito

eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois

afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e

Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer

opostordquo (TD 28)

7

Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a

possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural

Aqui haacute duas questotildees a serem vistas

1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute

presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito

por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo

em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do

clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma

hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a

presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que

formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas

apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx

que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do

clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do

proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)

2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute

importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo

movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o

movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a

possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos

Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio

O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao

desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos

Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos

difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo

(TD 30)

8

Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do

aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa

e natildeo absoluta)

No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na

medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade

Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda

natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia

que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua

singularidaderdquo

Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra

isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo

Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos

contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu

movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem

prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas

como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma

pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos

visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si

mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)

Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois

momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que

corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal

que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre

que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda

relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo

Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que

Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele

9

afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo

existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa

vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)

(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz

ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como

senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem

necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para

ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute

inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo

naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)

1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a

accedilatildeo por vontade proacutepria

2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de

Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma

superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute

melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo

humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por

obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo

Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito

de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do

acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a

capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta

Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o

modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata

deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo

constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)

10

A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx

apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de

Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua

afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de

Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo

A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de

vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros

critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que

ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No

entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de

negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda

maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua

superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas

reconhecido por Lucreacutecio

Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto

historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da

filosofia epicurista

Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela

de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza

deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a

possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na

esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute

explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a

causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de

todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por

conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)

Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no

conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A

declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No

11

entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa

natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que

Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a

forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa

antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se

compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do

conhecimento

Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da

natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para

que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de

todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os

aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a

liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o

levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar

o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a

igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se

compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria

a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)

O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas

as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto

como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas

natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos

possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de

compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso

Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto

isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o

princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a

todo o pensamento epicurista

12

Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da

moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista

Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro

satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica

Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua

existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a

filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam

representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a

independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade

do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a

ataraxiardquo (TD 34)

Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia

epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao

movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a

responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e

mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada

ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer

essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre

os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser

produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma

existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja

todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu

objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a

forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)

Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os

aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade

esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade

imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que

ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave

13

consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

14

estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

15

Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

16

representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

Haveria em Demoacutecrito uma separaccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno que culminaria

na impossibilidade de se conhecer a essecircncia De acordo com Demoacutecrito citado

por Marx ldquoos verdadeiros princiacutepios satildeo os aacutetomos e o vazio o demais eacute opiniatildeo

aparecircnciardquo (TD 24)

Na concepccedilatildeo de Demoacutecrito a essecircncia de todas as coisas satildeo os aacutetomos

e o vazio No entanto noacutes natildeo podemos conhecer a essecircncia das coisas mas

apenas as qualidades que resultam dos compostos de aacutetomos como a cor o

cheiro o frio o quente que satildeo proacuteprios dos fenocircmenos que entatildeo satildeo

percebidos pelos sujeitos Mas esses fenocircmenos com essas qualidades satildeo

apenas aparecircncias que natildeo dizem verdadeiramente da essecircncia dos seres Numa

palavra satildeo opiniatildeo Enquanto opiniotildees natildeo podem ser elevados agrave categoria de

verdade Os sentidos nos levam a perceber o fenocircmeno mas este eacute instaacutevel e natildeo

verdadeiro Sendo assim Demoacutecrito descarta os sentidos como fonte do

verdadeiro conhecimento o que soacute seria possiacutevel pela razatildeo

Isto faz com que Demoacutecrito assuma uma postura a princiacutepio contraditoacuteria

que eacute a de se dedicar extremamente agrave ciecircncia no seu aspecto investigativo

colecionador de dados mas essa coletacircnea natildeo se converte jamais em verdade

A ciecircncia soacute pode fornecer dados que podem ser acumulados manipulados

podem se mostrar eficientes mas que natildeo remetem agrave verdade do ser

No dizer de Marx essa concepccedilatildeo de Demoacutecrito se traduz na sua postura

ao mesmo tempo ceacutetica e no entanto de ativa pesquisa empiacuterica

Ele diraacute a respeito desta distacircncia que Demoacutecrito estabelece entre o

fenocircmeno e a essecircncia que ldquoO saber que ele tem por verdadeiro carece de

conteuacutedo e o que lhe daacute conteuacutedo carece de verdaderdquo (TD 25)

O extremo desta insatisfaccedilatildeo segundo Marx se manifestaria no suposto

ato de Demoacutecrito de se cegar para o mundo para alcanccedilar a verdade da razatildeo

liberta dos sentidos ldquo Dizem que Demoacutecrito se privou da visatildeo para que a luz

sensiacutevel do olho natildeo empanasse nele a agudeza do espiacuteritordquo (TD 25-6)

5

A este espiacuterito insatisfeito e angustiado de Demoacutecrito que nos eacute

apresentado (e que segundo Joseacute Ameacuterico Pessanha em seu texto Marx e os

atomistas gregos seria uma visatildeo injusta de Demoacutecrito por parte de Marx) Marx

contrapotildee o espiacuterito tranquumlilo e confiante de Epicuro Contrariamente a Demoacutecrito

Epicuro eacute qualificado como um filoacutesofo e um dogmaacutetico confiante no

conhecimento da verdade a partir dos sentidos poreacutem despreocupado da ciecircncia

empiacuterica

Satildeo estas posiccedilotildees contraacuterias assumidas por filoacutesofos que partem dos

mesmos princiacutepios que chamam a atenccedilatildeo de Marx no sentido de investigar nos

pormenores a razatildeo dessa diferenccedila tatildeo gritante

A razatildeo estaria na forma como os dois compreendem a relaccedilatildeo entre a

essecircncia e o fenocircmeno Se em Demoacutecrito a aparecircncia nos engana para Epicuro

os sentidos satildeo uma fonte segura do saber

Segundo Demoacutecrito ldquoO uno natildeo resulta na verdade de muitos aacutetomos

mas sim mediante a combinaccedilatildeo dos aacutetomos parece tudo ser unordquo (TD 24)

Para Demoacutecrito entatildeo todo conhecimento a partir dos sentidos eacute apenas

aparecircncia sendo assim o mundo sensiacutevel apenas uma aparecircncia subjetiva

Jaacute para Epicuro o mundo sensiacutevel eacute um fenocircmeno objetivo jaacute que os

sentidos para ele ldquosatildeo arautos do verdadeirordquo (TD 24)

Marx vai trabalhar esta diferenccedila nos dois autores a partir da noccedilatildeo de

antinomia ou seja da diferenccedila entre fenocircmeno e essecircncia tal como eacute colocada

por eles Para tanto ele vai descer a detalhes que permitem detectar na sua

origem a razatildeo de tal contraposiccedilatildeo entre os dois filoacutesofos Eacute o que ele faz na

segunda parte do trabalho

Seraacute preciso aqui reconstruir resumidamente o que eacute a teoria atomiacutestica

segundo Demoacutecrito e segundo Epicuro de acordo com o que Marx nos apresenta

para que as diferenccedilas sejam ressaltadas

6

Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a

todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos

aacutetomos por Epicuro

De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos

de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave

formaccedilatildeo dos compostos

Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros

comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os

aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees

Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no

qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as

direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria

decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em

Epicurordquo

Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto

que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha

reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa

querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no

universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a

formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)

De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam

determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito

eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois

afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e

Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer

opostordquo (TD 28)

7

Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a

possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural

Aqui haacute duas questotildees a serem vistas

1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute

presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito

por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo

em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do

clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma

hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a

presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que

formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas

apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx

que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do

clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do

proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)

2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute

importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo

movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o

movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a

possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos

Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio

O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao

desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos

Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos

difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo

(TD 30)

8

Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do

aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa

e natildeo absoluta)

No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na

medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade

Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda

natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia

que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua

singularidaderdquo

Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra

isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo

Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos

contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu

movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem

prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas

como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma

pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos

visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si

mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)

Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois

momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que

corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal

que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre

que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda

relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo

Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que

Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele

9

afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo

existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa

vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)

(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz

ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como

senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem

necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para

ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute

inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo

naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)

1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a

accedilatildeo por vontade proacutepria

2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de

Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma

superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute

melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo

humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por

obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo

Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito

de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do

acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a

capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta

Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o

modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata

deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo

constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)

10

A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx

apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de

Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua

afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de

Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo

A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de

vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros

critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que

ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No

entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de

negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda

maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua

superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas

reconhecido por Lucreacutecio

Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto

historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da

filosofia epicurista

Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela

de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza

deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a

possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na

esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute

explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a

causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de

todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por

conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)

Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no

conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A

declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No

11

entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa

natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que

Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a

forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa

antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se

compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do

conhecimento

Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da

natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para

que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de

todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os

aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a

liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o

levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar

o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a

igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se

compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria

a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)

O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas

as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto

como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas

natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos

possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de

compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso

Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto

isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o

princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a

todo o pensamento epicurista

12

Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da

moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista

Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro

satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica

Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua

existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a

filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam

representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a

independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade

do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a

ataraxiardquo (TD 34)

Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia

epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao

movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a

responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e

mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada

ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer

essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre

os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser

produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma

existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja

todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu

objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a

forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)

Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os

aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade

esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade

imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que

ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave

13

consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

14

estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

15

Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

16

representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

A este espiacuterito insatisfeito e angustiado de Demoacutecrito que nos eacute

apresentado (e que segundo Joseacute Ameacuterico Pessanha em seu texto Marx e os

atomistas gregos seria uma visatildeo injusta de Demoacutecrito por parte de Marx) Marx

contrapotildee o espiacuterito tranquumlilo e confiante de Epicuro Contrariamente a Demoacutecrito

Epicuro eacute qualificado como um filoacutesofo e um dogmaacutetico confiante no

conhecimento da verdade a partir dos sentidos poreacutem despreocupado da ciecircncia

empiacuterica

Satildeo estas posiccedilotildees contraacuterias assumidas por filoacutesofos que partem dos

mesmos princiacutepios que chamam a atenccedilatildeo de Marx no sentido de investigar nos

pormenores a razatildeo dessa diferenccedila tatildeo gritante

A razatildeo estaria na forma como os dois compreendem a relaccedilatildeo entre a

essecircncia e o fenocircmeno Se em Demoacutecrito a aparecircncia nos engana para Epicuro

os sentidos satildeo uma fonte segura do saber

Segundo Demoacutecrito ldquoO uno natildeo resulta na verdade de muitos aacutetomos

mas sim mediante a combinaccedilatildeo dos aacutetomos parece tudo ser unordquo (TD 24)

Para Demoacutecrito entatildeo todo conhecimento a partir dos sentidos eacute apenas

aparecircncia sendo assim o mundo sensiacutevel apenas uma aparecircncia subjetiva

Jaacute para Epicuro o mundo sensiacutevel eacute um fenocircmeno objetivo jaacute que os

sentidos para ele ldquosatildeo arautos do verdadeirordquo (TD 24)

Marx vai trabalhar esta diferenccedila nos dois autores a partir da noccedilatildeo de

antinomia ou seja da diferenccedila entre fenocircmeno e essecircncia tal como eacute colocada

por eles Para tanto ele vai descer a detalhes que permitem detectar na sua

origem a razatildeo de tal contraposiccedilatildeo entre os dois filoacutesofos Eacute o que ele faz na

segunda parte do trabalho

Seraacute preciso aqui reconstruir resumidamente o que eacute a teoria atomiacutestica

segundo Demoacutecrito e segundo Epicuro de acordo com o que Marx nos apresenta

para que as diferenccedilas sejam ressaltadas

6

Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a

todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos

aacutetomos por Epicuro

De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos

de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave

formaccedilatildeo dos compostos

Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros

comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os

aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees

Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no

qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as

direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria

decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em

Epicurordquo

Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto

que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha

reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa

querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no

universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a

formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)

De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam

determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito

eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois

afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e

Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer

opostordquo (TD 28)

7

Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a

possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural

Aqui haacute duas questotildees a serem vistas

1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute

presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito

por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo

em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do

clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma

hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a

presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que

formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas

apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx

que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do

clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do

proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)

2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute

importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo

movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o

movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a

possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos

Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio

O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao

desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos

Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos

difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo

(TD 30)

8

Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do

aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa

e natildeo absoluta)

No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na

medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade

Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda

natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia

que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua

singularidaderdquo

Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra

isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo

Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos

contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu

movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem

prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas

como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma

pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos

visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si

mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)

Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois

momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que

corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal

que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre

que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda

relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo

Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que

Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele

9

afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo

existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa

vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)

(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz

ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como

senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem

necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para

ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute

inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo

naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)

1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a

accedilatildeo por vontade proacutepria

2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de

Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma

superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute

melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo

humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por

obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo

Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito

de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do

acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a

capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta

Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o

modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata

deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo

constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)

10

A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx

apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de

Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua

afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de

Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo

A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de

vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros

critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que

ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No

entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de

negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda

maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua

superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas

reconhecido por Lucreacutecio

Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto

historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da

filosofia epicurista

Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela

de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza

deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a

possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na

esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute

explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a

causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de

todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por

conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)

Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no

conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A

declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No

11

entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa

natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que

Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a

forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa

antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se

compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do

conhecimento

Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da

natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para

que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de

todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os

aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a

liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o

levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar

o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a

igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se

compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria

a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)

O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas

as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto

como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas

natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos

possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de

compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso

Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto

isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o

princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a

todo o pensamento epicurista

12

Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da

moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista

Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro

satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica

Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua

existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a

filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam

representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a

independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade

do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a

ataraxiardquo (TD 34)

Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia

epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao

movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a

responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e

mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada

ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer

essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre

os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser

produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma

existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja

todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu

objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a

forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)

Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os

aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade

esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade

imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que

ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave

13

consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

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estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a

todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos

aacutetomos por Epicuro

De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos

de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave

formaccedilatildeo dos compostos

Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros

comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os

aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees

Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no

qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as

direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria

decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em

Epicurordquo

Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto

que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha

reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa

querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no

universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a

formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)

De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam

determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito

eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois

afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e

Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer

opostordquo (TD 28)

7

Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a

possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural

Aqui haacute duas questotildees a serem vistas

1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute

presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito

por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo

em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do

clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma

hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a

presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que

formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas

apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx

que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do

clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do

proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)

2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute

importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo

movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o

movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a

possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos

Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio

O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao

desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos

Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos

difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo

(TD 30)

8

Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do

aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa

e natildeo absoluta)

No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na

medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade

Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda

natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia

que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua

singularidaderdquo

Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra

isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo

Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos

contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu

movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem

prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas

como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma

pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos

visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si

mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)

Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois

momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que

corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal

que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre

que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda

relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo

Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que

Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele

9

afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo

existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa

vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)

(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz

ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como

senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem

necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para

ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute

inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo

naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)

1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a

accedilatildeo por vontade proacutepria

2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de

Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma

superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute

melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo

humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por

obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo

Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito

de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do

acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a

capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta

Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o

modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata

deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo

constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)

10

A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx

apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de

Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua

afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de

Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo

A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de

vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros

critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que

ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No

entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de

negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda

maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua

superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas

reconhecido por Lucreacutecio

Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto

historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da

filosofia epicurista

Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela

de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza

deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a

possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na

esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute

explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a

causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de

todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por

conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)

Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no

conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A

declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No

11

entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa

natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que

Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a

forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa

antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se

compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do

conhecimento

Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da

natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para

que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de

todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os

aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a

liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o

levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar

o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a

igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se

compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria

a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)

O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas

as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto

como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas

natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos

possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de

compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso

Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto

isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o

princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a

todo o pensamento epicurista

12

Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da

moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista

Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro

satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica

Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua

existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a

filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam

representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a

independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade

do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a

ataraxiardquo (TD 34)

Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia

epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao

movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a

responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e

mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada

ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer

essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre

os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser

produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma

existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja

todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu

objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a

forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)

Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os

aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade

esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade

imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que

ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave

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consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

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estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

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realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a

possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural

Aqui haacute duas questotildees a serem vistas

1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute

presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito

por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo

em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do

clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma

hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a

presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que

formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas

apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx

que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do

clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do

proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)

2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute

importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo

movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o

movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a

possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos

Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio

O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao

desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos

Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos

difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo

(TD 30)

8

Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do

aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa

e natildeo absoluta)

No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na

medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade

Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda

natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia

que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua

singularidaderdquo

Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra

isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo

Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos

contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu

movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem

prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas

como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma

pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos

visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si

mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)

Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois

momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que

corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal

que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre

que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda

relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo

Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que

Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele

9

afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo

existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa

vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)

(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz

ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como

senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem

necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para

ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute

inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo

naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)

1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a

accedilatildeo por vontade proacutepria

2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de

Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma

superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute

melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo

humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por

obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo

Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito

de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do

acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a

capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta

Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o

modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata

deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo

constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)

10

A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx

apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de

Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua

afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de

Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo

A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de

vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros

critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que

ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No

entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de

negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda

maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua

superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas

reconhecido por Lucreacutecio

Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto

historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da

filosofia epicurista

Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela

de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza

deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a

possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na

esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute

explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a

causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de

todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por

conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)

Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no

conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A

declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No

11

entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa

natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que

Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a

forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa

antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se

compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do

conhecimento

Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da

natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para

que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de

todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os

aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a

liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o

levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar

o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a

igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se

compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria

a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)

O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas

as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto

como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas

natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos

possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de

compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso

Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto

isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o

princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a

todo o pensamento epicurista

12

Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da

moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista

Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro

satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica

Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua

existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a

filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam

representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a

independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade

do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a

ataraxiardquo (TD 34)

Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia

epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao

movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a

responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e

mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada

ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer

essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre

os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser

produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma

existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja

todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu

objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a

forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)

Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os

aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade

esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade

imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que

ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave

13

consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

14

estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

15

Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

16

representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do

aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa

e natildeo absoluta)

No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na

medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade

Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda

natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia

que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua

singularidaderdquo

Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra

isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo

Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos

contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu

movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem

prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas

como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma

pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos

visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si

mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)

Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois

momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que

corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal

que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre

que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda

relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo

Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que

Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele

9

afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo

existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa

vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)

(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz

ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como

senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem

necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para

ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute

inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo

naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)

1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a

accedilatildeo por vontade proacutepria

2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de

Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma

superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute

melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo

humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por

obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo

Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito

de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do

acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a

capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta

Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o

modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata

deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo

constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)

10

A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx

apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de

Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua

afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de

Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo

A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de

vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros

critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que

ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No

entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de

negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda

maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua

superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas

reconhecido por Lucreacutecio

Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto

historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da

filosofia epicurista

Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela

de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza

deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a

possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na

esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute

explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a

causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de

todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por

conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)

Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no

conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A

declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No

11

entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa

natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que

Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a

forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa

antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se

compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do

conhecimento

Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da

natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para

que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de

todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os

aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a

liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o

levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar

o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a

igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se

compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria

a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)

O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas

as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto

como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas

natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos

possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de

compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso

Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto

isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o

princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a

todo o pensamento epicurista

12

Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da

moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista

Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro

satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica

Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua

existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a

filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam

representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a

independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade

do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a

ataraxiardquo (TD 34)

Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia

epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao

movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a

responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e

mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada

ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer

essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre

os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser

produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma

existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja

todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu

objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a

forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)

Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os

aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade

esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade

imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que

ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave

13

consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

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estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo

existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa

vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)

(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz

ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como

senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem

necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para

ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute

inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo

naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)

1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a

accedilatildeo por vontade proacutepria

2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de

Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma

superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute

melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo

humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por

obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo

Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito

de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do

acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a

capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta

Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o

modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata

deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo

constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)

10

A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx

apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de

Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua

afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de

Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo

A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de

vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros

critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que

ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No

entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de

negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda

maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua

superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas

reconhecido por Lucreacutecio

Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto

historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da

filosofia epicurista

Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela

de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza

deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a

possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na

esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute

explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a

causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de

todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por

conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)

Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no

conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A

declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No

11

entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa

natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que

Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a

forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa

antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se

compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do

conhecimento

Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da

natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para

que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de

todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os

aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a

liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o

levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar

o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a

igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se

compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria

a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)

O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas

as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto

como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas

natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos

possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de

compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso

Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto

isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o

princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a

todo o pensamento epicurista

12

Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da

moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista

Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro

satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica

Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua

existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a

filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam

representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a

independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade

do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a

ataraxiardquo (TD 34)

Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia

epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao

movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a

responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e

mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada

ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer

essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre

os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser

produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma

existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja

todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu

objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a

forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)

Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os

aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade

esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade

imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que

ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave

13

consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

14

estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

15

Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

16

representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx

apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de

Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua

afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de

Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo

A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de

vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros

critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que

ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No

entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de

negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda

maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua

superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas

reconhecido por Lucreacutecio

Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto

historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da

filosofia epicurista

Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela

de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza

deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a

possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na

esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute

explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a

causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de

todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por

conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)

Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no

conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A

declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No

11

entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa

natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que

Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a

forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa

antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se

compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do

conhecimento

Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da

natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para

que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de

todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os

aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a

liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o

levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar

o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a

igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se

compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria

a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)

O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas

as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto

como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas

natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos

possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de

compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso

Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto

isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o

princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a

todo o pensamento epicurista

12

Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da

moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista

Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro

satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica

Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua

existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a

filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam

representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a

independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade

do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a

ataraxiardquo (TD 34)

Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia

epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao

movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a

responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e

mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada

ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer

essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre

os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser

produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma

existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja

todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu

objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a

forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)

Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os

aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade

esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade

imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que

ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave

13

consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

14

estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

15

Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

16

representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa

natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que

Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a

forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa

antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se

compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do

conhecimento

Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da

natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para

que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de

todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os

aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a

liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o

levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar

o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a

igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se

compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria

a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)

O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas

as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto

como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas

natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos

possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de

compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso

Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto

isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o

princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a

todo o pensamento epicurista

12

Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da

moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista

Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro

satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica

Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua

existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a

filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam

representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a

independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade

do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a

ataraxiardquo (TD 34)

Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia

epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao

movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a

responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e

mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada

ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer

essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre

os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser

produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma

existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja

todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu

objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a

forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)

Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os

aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade

esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade

imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que

ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave

13

consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

14

estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

15

Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

16

representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

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portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da

moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista

Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro

satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica

Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua

existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a

filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam

representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a

independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade

do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a

ataraxiardquo (TD 34)

Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia

epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao

movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a

responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e

mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada

ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer

essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre

os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser

produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma

existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja

todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu

objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a

forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)

Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os

aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade

esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade

imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que

ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave

13

consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

14

estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

15

Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo

(TD 35)

A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o

elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos

seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo

fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro

encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no

social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que

elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares

satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de

abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual

os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes

Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso

acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees

sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de

natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo

Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais

carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal

necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco

acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o

elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si

singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa

tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que

nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de

Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade

alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e

abstrata

Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em

sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-

14

estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

15

Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

16

representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere

que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento

da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em

que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute

senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua

determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e

natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si

Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos

envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se

dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande

iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos

temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da

liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que

Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia

como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original

consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)

diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado

No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica

determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a

forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da

consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as

qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito

concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo

eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)

De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os

comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades

dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como

qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra

passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que

15

Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

16

representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras

propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se

referindo ao peso

Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma

questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas

que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a

compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos

Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho

forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao

arranjo

O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos

aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e

mateacuteria

Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-

lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida

recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem

mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade

Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a

negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita

Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre

os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que

isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos

Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do

aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria

Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua

representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das

16

representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro

capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da

existecircncia material dos aacutetomos

Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute

uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu

peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento

que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de

supressatildeo de sua singularidade

Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do

proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua

alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo

ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na

consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos

Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se

afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes

do movimento de declinaccedilatildeo

Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise

das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e

existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)

Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo

noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e

aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta

diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo

pelo estabelecimento de duas coisas distintas

A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das

qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o

aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se

17

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

18

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do

fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais

diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e

essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria

absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)

Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da

dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que

enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser

uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo

O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na

filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV

Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer

parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua

completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com

Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do

sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo

faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se

encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da

percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta

do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a

forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute

determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo

refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo

fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro

de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia

Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como

constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da

essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o

fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-

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6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-

aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si

Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a

todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de

Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz

da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em

segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno

quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua

realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)

A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de

que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido

como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria

com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e

o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos

exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente

da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos

sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos

mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece

a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)

Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio

essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de

todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer

uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber

o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e

contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como

criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis

percebem o fenocircmeno enquanto tal

Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista

salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da

19

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio

de todas as coisas

O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os

meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo

atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade

de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz

a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos

aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos

termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as

coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel

Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute

desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia

epicurista

De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial

da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia

como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a

tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar

a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos

celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude

proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia

o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos

corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida

em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos

celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem

contradiccedilotildees

Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e

mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade

abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto

Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com

20

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a

aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto

princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa

para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na

medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e

forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma

assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto

deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo

como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das

determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a

consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)

Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem

na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute

exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que

torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia

singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para

Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia

singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no

jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo

Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a

tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes

Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de

Epicuro acerca dos corpos celestes

Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos

em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute

proporcionar o apaziguamento do espiacuterito

Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que

justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo

21

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas

as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos

Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo

que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se

alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a

abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do

objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para

Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem

necessaacuteria e superior

Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a

ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles

natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal

que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa

ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso

Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a

respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente

do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se

neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele

leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade

abstrata agrave universalidade

Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a

proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois

ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto

toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a

singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)

Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva

da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece

ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando

22

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

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  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas

com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave

autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)

Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o

estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na

sequumlecircncia

ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si

que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta

ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-

se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a

tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo

O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao

reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute

eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a

respeito

ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave

relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua

verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do

senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda

forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na

impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar

como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo

Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o

existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da

ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade

abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem

teme a cessaccedilatildeo da vida

23

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da

consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva

um espaccedilo para o fortuito e para a vontade

Concluindo

O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em

que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos

sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na

autoconsciecircncia

Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia

epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo

gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD

53)

O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito

no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro

ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade

representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era

compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na

anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos

celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da

consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo

celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia

Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por

Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio

de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade

abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro

de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado

isolado de cada indiviacuteduo

24

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que

era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os

seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo

como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da

autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que

possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da

autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas

vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito

do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da

limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da

distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que

ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o

espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave

base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe

nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia

necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e

acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente

daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)

Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo

enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo

do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo

no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele

se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a

liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas

natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia

Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo

hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima

imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que

vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento

25

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a

implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria

liberdade vivardquo

Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao

poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave

consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio

especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave

universalidade

Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a

auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e

a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social

temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como

exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave

autoconsciecircncia

A questatildeo eacute

De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave

luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos

concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a

autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute

entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da

natureza

No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter

individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx

indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia

epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e

abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos

eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia

26

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da

abstraccedilatildeo da realidade dada

Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os

materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute

aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior

Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do

aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos

grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa

amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA

sd 13)

Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa

questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia

dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente

nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute

alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que

esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do

ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas

Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua

tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande

conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel

se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito

do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata

de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira

ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma

construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou

natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o

ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra

hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo

reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de

Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)

27

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute

encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria

prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com

a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento

inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da

singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da

autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido

de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida

como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um

prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave

autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha

Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a

autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu

correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do

aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega

consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja

autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual

soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia

Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da

singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade

na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia

epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo

somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade

que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo

A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios

que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor

desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do

caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas

filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute

28

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

29

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

30

  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo

ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si

essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade

Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se

opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe

como constituinte e como negador da realidade

Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute

uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade

Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a

realidade

Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de

seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada

particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)

Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de

tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui

a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em

duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)

Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou

do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila

geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo

a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata

da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre

filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo

Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas

tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)

consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da

Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si

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da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

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  • MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO

da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a

primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo

Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio

texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave

sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa

consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo

Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal

forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em

Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de

uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se

torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o

princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular

da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo

[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -

Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes

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