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Verinotio - Revista On-line de Educaccedilatildeo e Ciecircncias Humanas Nordm 3 Ano II Outubro de 2005 periodicidade semestral ndash ISSN 1981-061X
MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
Ana Selva Castelo Branco Albinati [1]
Resumo
O artigo pretende apresentar a leitura que Marx faz da filosofia da natureza
de Epicuro na qual ele destaca o princiacutepio da auto-consciecircncia como sendo o
elemento central do pensamento epicurista elemento que o distingue do
atomismo mecanicista de Demoacutecrito na medida em que permite pensar a
liberdade humana facultando o tracircnsito da fiacutesica egrave eacutetica Ao analisar a filosofia de
Epicuro ao mesmo tempo que o qualifica como o grande iluminista da Antiguidade
Marx jaacute indica os limites de uma concepccedilatildeo atomiacutestica dos indiviacuteduos e de uma
liberdade do indiviacuteduo singular abstrato
Palavras-chave epicurismo ndash materialismo ndash eacutetica ndash auto-consciecircncia
Marx reader of Democrito and Epicuro
Abstract
The article intends to present Karl Marxs interpretation of Epicuros
philosophy of nature In that work he appoints the principle of auto-conscience as
the central element of the epicurist thought and distinguishes it from Democritos
mechanistic atomism as Epicuros principle permits to conceive human liberty
making possible a transit from physics to ethics While analyzes the philosophy of
Epicuro parallel to qualify him as the great illuminist from antiquity Marx indicates
the limits of an atomistic conception of the individuals and of a liberty of the
singular abstract individual
Key-words epicurism ndash materialism ndash ethics ndash auto-conscience
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A Tese Doutoral de Marx cujo tiacutetulo eacute Diferenccedilas entre as filosofias da
natureza de Demoacutecrito e Epicuro eacute um texto sobre a fiacutesica dos dois filoacutesofos
ressaltando as diferenccedilas entre as duas concepccedilotildees e sustentando uma
superioridade filosoacutefica do trabalho de Epicuro o que jaacute eacute uma interpretaccedilatildeo
original na medida em que tradicionalmente Epicuro era tido como um mero
continuador ou mesmo um deturpador da teoria atomiacutestica de Demoacutecrito
Marx se refere em seu trabalho agraves leituras feitas por Ciacutecero e Plutarco
entre os antigos leituras nas quais Epicuro eacute tido como um deturpador da fiacutesica de
Demoacutecrito e leituras a partir das quais grande parte dos comentadores se reporta
ou ainda a Hegel dizendo que este natildeo teria tido o devido cuidado na
consideraccedilatildeo do conjunto das filosofias heleniacutesticas tendo se referido a este
conjunto apenas em grandes delineamentos sem maiores detalhes acrescendo-
se o fato de que ldquoa ideacuteia que Hegel tinha do que chamava o especulativo por
excelecircncia natildeo permitia a este gigantesco pensador reconhecer nestes sistemas a
grande importacircncia que revestem para a histoacuteria da filosofia grega e para o
espiacuterito grego em geralrdquo
Ao definir o objeto da dissertaccedilatildeo Marx observa que as filosofias poacutes-
aristoacuteteacutelicas satildeo considerados como ldquoum complemento incongruente sem
nenhuma relaccedilatildeo com seus vigorosos antecessoresrdquo ou ainda que essas filosofias
satildeo ldquovinculadas agrave filosofia alexandrina dando-lhes uma aparecircncia de ecletismo
estreito e tendenciosordquo
Assim a filosofia epicurista eacute normalmente reduzida a ldquoum agregado
sincreacutetico da fiacutesica de Demoacutecrito e da moral cirenaicardquo
Dessa forma a intenccedilatildeo original de Marx era fazer um estudo da filosofia
poacutes- aristoteacutelica do qual a tese doutoral seria apenas um iniacutecio projeto justificado
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exatamente pelo fato de que a filosofia heleniacutestica teria sido ateacute entatildeo
apresentada tatildeo somente como o momento de decliacutenio da filosofia grega
Interpretaccedilatildeo questionada por Marx que reconhece uma importacircncia histoacuterica a
esses sistemas que satildeo afinal ldquoa forma sob a qual a Greacutecia emigra para Romardquo E
se propotildee numa obra futura nunca realizada a examinar a conexatildeo desses
sistemas filosoacuteficos com a filosofia grega anterior a partir do reconhecimento de
um aspecto singular desses sistemas que eacute por um lado o retorno a uma fiacutesica
preacute-socraacutetica no caso do epicurismo a atomiacutestica de Demoacutecrito e por outro a
conciliaccedilatildeo dessa fiacutesica com uma eacutetica de inspiraccedilatildeo socraacutetica no caso o
hedonismo cirenaico
Ele coloca como tese a ser demonstrada que se a filosofia grega anterior
a estes sistemas eacute mais rica do ponto de visto do conteuacutedo os sistemas poacutes-
aristoteacutelicos satildeo no entanto mais significativos para o estudo ldquoda forma subjetiva
do caraacuteter essencial dessa filosofiardquo ou ainda do ldquosuporte espiritualrdquo desses
sistemas aspecto ateacute entatildeo desconsiderado
Dessa forma ele se refere agraves escolas heleniacutesticas como ldquomomentos da
autoconsciecircnciardquo dizendo que no seu conjunto o epicurismo o estoicismo e o
ceticismo integrariam ldquoa estrutura completa da autoconsciecircnciardquo (TD 21)
Embora esse projeto de Marx tenha sido abandonado muito cedo eacute
significativa a indicaccedilatildeo do autor sobre o propoacutesito de seu trabalho o interesse
pelo tema da auto-consciecircncia o que o coloca em consonacircncia com os interesses
e propoacutesitos proacuteprios do idealismo ativo A proacutepria sugestatildeo do tema teria sido de
acordo com vaacuterios comentadores da obra de Marx como Rossi por exemplo de
Bruno Bauer
De fato o Marx que nesse momento pretende se dedicar ao estudo do
conjunto das filosofias poacutes-aristoteacutelicas no intuito de ressaltar a sua importacircncia
no deciframento da forma subjetiva dessas filosofias ou em outras palavras do
reconhecimento desses sistemas como figuraccedilotildees histoacutericas da emergecircncia da
consciecircncia-de-si numa referecircncia oacutebvia agrave indicaccedilatildeo presente na Fenomenologia
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do Espiacuterito o faz no interior de um instrumental idealista afirmado por ele como
ldquonatildeo simplesmente uma quimera mas uma verdaderdquo na dedicatoacuteria ao seu futuro
sogro Ludwig von Westphalen mas natildeo apenas na postura de um idealista mas
adjetivando melhor na de um idealista neo-hegeliano de esquerda para quem a
questatildeo pungente de sua eacutepoca se refere agrave problemaacutetica entre a consciecircncia e a
substacircncia ou em outras palavras entre a filosofia e o mundo E compreende-se
entatildeo a passagem presente em seu proacutelogo de que a ldquoideacuteia do especulativordquo em
Hegel o impedia de reconhecer a importacircncia desses sistemas afirmaccedilatildeo que se
esclarece no decorrer de sua tese quando Marx se distancia da posiccedilatildeo hegeliana
que concilia ao final consciecircncia e substacircncia pela ecircnfase que Marx daacute agrave
autoconsciecircncia a partir da filosofia de Epicuro
O ponto de partida de Marx eacute a observaccedilatildeo de que embora os dois
filoacutesofos Demoacutecrito e Epicuro professem a mesma ciecircncia o atomismo eles se
distinguem radicalmente no que diz respeito agrave verdade agrave possibilidade do
conhecimento agrave relaccedilatildeo entre o pensamento e a realidade e ao proacuteprio sentido
da ciecircncia diferenccedilas apontadas na primeira parte da tese
A segunda parte eacute dedicada a um esmiuccedilamento dos princiacutepios dos dois
filoacutesofos ressaltando nos detalhes a origem de posiccedilotildees tatildeo contraacuterias
Observaccedilotildees na primeira parte faltam parte do IV capiacutetulo e todo o
capiacutetulo V sendo que a parte do cap IV figura no mais das vezes nas notas que
acompanham o corpo da tese seguida dos cadernos de anotaccedilotildees feitas pelo
autor
Na primeira parte Marx expotildee o objeto de estudo apresenta uma revisatildeo
da literatura a respeito da questatildeo e expotildee no capiacutetulo III as diferenccedilas gerais
entre os dois filoacutesofos
Em Demoacutecrito haacute segundo Marx passagens contraditoacuterias sobre a
possibilidade de certeza do conhecer e essa posiccedilatildeo democritiana se daacute em
funccedilatildeo da relaccedilatildeo que ele estabelece entre a essecircncia (o aacutetomo) e o fenocircmeno
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Haveria em Demoacutecrito uma separaccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno que culminaria
na impossibilidade de se conhecer a essecircncia De acordo com Demoacutecrito citado
por Marx ldquoos verdadeiros princiacutepios satildeo os aacutetomos e o vazio o demais eacute opiniatildeo
aparecircnciardquo (TD 24)
Na concepccedilatildeo de Demoacutecrito a essecircncia de todas as coisas satildeo os aacutetomos
e o vazio No entanto noacutes natildeo podemos conhecer a essecircncia das coisas mas
apenas as qualidades que resultam dos compostos de aacutetomos como a cor o
cheiro o frio o quente que satildeo proacuteprios dos fenocircmenos que entatildeo satildeo
percebidos pelos sujeitos Mas esses fenocircmenos com essas qualidades satildeo
apenas aparecircncias que natildeo dizem verdadeiramente da essecircncia dos seres Numa
palavra satildeo opiniatildeo Enquanto opiniotildees natildeo podem ser elevados agrave categoria de
verdade Os sentidos nos levam a perceber o fenocircmeno mas este eacute instaacutevel e natildeo
verdadeiro Sendo assim Demoacutecrito descarta os sentidos como fonte do
verdadeiro conhecimento o que soacute seria possiacutevel pela razatildeo
Isto faz com que Demoacutecrito assuma uma postura a princiacutepio contraditoacuteria
que eacute a de se dedicar extremamente agrave ciecircncia no seu aspecto investigativo
colecionador de dados mas essa coletacircnea natildeo se converte jamais em verdade
A ciecircncia soacute pode fornecer dados que podem ser acumulados manipulados
podem se mostrar eficientes mas que natildeo remetem agrave verdade do ser
No dizer de Marx essa concepccedilatildeo de Demoacutecrito se traduz na sua postura
ao mesmo tempo ceacutetica e no entanto de ativa pesquisa empiacuterica
Ele diraacute a respeito desta distacircncia que Demoacutecrito estabelece entre o
fenocircmeno e a essecircncia que ldquoO saber que ele tem por verdadeiro carece de
conteuacutedo e o que lhe daacute conteuacutedo carece de verdaderdquo (TD 25)
O extremo desta insatisfaccedilatildeo segundo Marx se manifestaria no suposto
ato de Demoacutecrito de se cegar para o mundo para alcanccedilar a verdade da razatildeo
liberta dos sentidos ldquo Dizem que Demoacutecrito se privou da visatildeo para que a luz
sensiacutevel do olho natildeo empanasse nele a agudeza do espiacuteritordquo (TD 25-6)
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A este espiacuterito insatisfeito e angustiado de Demoacutecrito que nos eacute
apresentado (e que segundo Joseacute Ameacuterico Pessanha em seu texto Marx e os
atomistas gregos seria uma visatildeo injusta de Demoacutecrito por parte de Marx) Marx
contrapotildee o espiacuterito tranquumlilo e confiante de Epicuro Contrariamente a Demoacutecrito
Epicuro eacute qualificado como um filoacutesofo e um dogmaacutetico confiante no
conhecimento da verdade a partir dos sentidos poreacutem despreocupado da ciecircncia
empiacuterica
Satildeo estas posiccedilotildees contraacuterias assumidas por filoacutesofos que partem dos
mesmos princiacutepios que chamam a atenccedilatildeo de Marx no sentido de investigar nos
pormenores a razatildeo dessa diferenccedila tatildeo gritante
A razatildeo estaria na forma como os dois compreendem a relaccedilatildeo entre a
essecircncia e o fenocircmeno Se em Demoacutecrito a aparecircncia nos engana para Epicuro
os sentidos satildeo uma fonte segura do saber
Segundo Demoacutecrito ldquoO uno natildeo resulta na verdade de muitos aacutetomos
mas sim mediante a combinaccedilatildeo dos aacutetomos parece tudo ser unordquo (TD 24)
Para Demoacutecrito entatildeo todo conhecimento a partir dos sentidos eacute apenas
aparecircncia sendo assim o mundo sensiacutevel apenas uma aparecircncia subjetiva
Jaacute para Epicuro o mundo sensiacutevel eacute um fenocircmeno objetivo jaacute que os
sentidos para ele ldquosatildeo arautos do verdadeirordquo (TD 24)
Marx vai trabalhar esta diferenccedila nos dois autores a partir da noccedilatildeo de
antinomia ou seja da diferenccedila entre fenocircmeno e essecircncia tal como eacute colocada
por eles Para tanto ele vai descer a detalhes que permitem detectar na sua
origem a razatildeo de tal contraposiccedilatildeo entre os dois filoacutesofos Eacute o que ele faz na
segunda parte do trabalho
Seraacute preciso aqui reconstruir resumidamente o que eacute a teoria atomiacutestica
segundo Demoacutecrito e segundo Epicuro de acordo com o que Marx nos apresenta
para que as diferenccedilas sejam ressaltadas
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Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a
todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos
aacutetomos por Epicuro
De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos
de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave
formaccedilatildeo dos compostos
Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros
comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os
aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees
Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no
qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as
direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria
decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em
Epicurordquo
Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto
que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha
reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa
querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no
universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a
formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)
De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam
determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito
eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois
afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e
Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer
opostordquo (TD 28)
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Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a
possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural
Aqui haacute duas questotildees a serem vistas
1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute
presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito
por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo
em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do
clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma
hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a
presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que
formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas
apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx
que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do
clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do
proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)
2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute
importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo
movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o
movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a
possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos
Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio
O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao
desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos
Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos
difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo
(TD 30)
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Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do
aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa
e natildeo absoluta)
No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na
medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade
Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda
natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia
que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua
singularidaderdquo
Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra
isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo
Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos
contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu
movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem
prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas
como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma
pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos
visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si
mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)
Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois
momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que
corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal
que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre
que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda
relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo
Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que
Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele
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afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo
existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa
vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)
(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz
ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como
senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para
ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute
inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo
naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)
1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a
accedilatildeo por vontade proacutepria
2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de
Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma
superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute
melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo
humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por
obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo
Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito
de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do
acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a
capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta
Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o
modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata
deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo
constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)
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A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx
apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de
Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua
afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de
Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo
A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de
vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros
critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que
ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No
entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de
negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda
maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua
superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas
reconhecido por Lucreacutecio
Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto
historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da
filosofia epicurista
Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela
de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza
deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a
possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na
esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute
explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a
causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de
todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por
conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)
Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no
conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A
declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No
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entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa
natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que
Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a
forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa
antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se
compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do
conhecimento
Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da
natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para
que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de
todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os
aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a
liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o
levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar
o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a
igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se
compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria
a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)
O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas
as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto
como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas
natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos
possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de
compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso
Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto
isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o
princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a
todo o pensamento epicurista
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Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista
Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro
satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica
Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua
existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a
filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam
representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a
independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade
do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a
ataraxiardquo (TD 34)
Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao
movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a
responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e
mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer
essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma
existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja
todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a
forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)
Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os
aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade
esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade
imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que
ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave
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consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
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estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
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realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
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6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
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fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
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tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
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de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
A Tese Doutoral de Marx cujo tiacutetulo eacute Diferenccedilas entre as filosofias da
natureza de Demoacutecrito e Epicuro eacute um texto sobre a fiacutesica dos dois filoacutesofos
ressaltando as diferenccedilas entre as duas concepccedilotildees e sustentando uma
superioridade filosoacutefica do trabalho de Epicuro o que jaacute eacute uma interpretaccedilatildeo
original na medida em que tradicionalmente Epicuro era tido como um mero
continuador ou mesmo um deturpador da teoria atomiacutestica de Demoacutecrito
Marx se refere em seu trabalho agraves leituras feitas por Ciacutecero e Plutarco
entre os antigos leituras nas quais Epicuro eacute tido como um deturpador da fiacutesica de
Demoacutecrito e leituras a partir das quais grande parte dos comentadores se reporta
ou ainda a Hegel dizendo que este natildeo teria tido o devido cuidado na
consideraccedilatildeo do conjunto das filosofias heleniacutesticas tendo se referido a este
conjunto apenas em grandes delineamentos sem maiores detalhes acrescendo-
se o fato de que ldquoa ideacuteia que Hegel tinha do que chamava o especulativo por
excelecircncia natildeo permitia a este gigantesco pensador reconhecer nestes sistemas a
grande importacircncia que revestem para a histoacuteria da filosofia grega e para o
espiacuterito grego em geralrdquo
Ao definir o objeto da dissertaccedilatildeo Marx observa que as filosofias poacutes-
aristoacuteteacutelicas satildeo considerados como ldquoum complemento incongruente sem
nenhuma relaccedilatildeo com seus vigorosos antecessoresrdquo ou ainda que essas filosofias
satildeo ldquovinculadas agrave filosofia alexandrina dando-lhes uma aparecircncia de ecletismo
estreito e tendenciosordquo
Assim a filosofia epicurista eacute normalmente reduzida a ldquoum agregado
sincreacutetico da fiacutesica de Demoacutecrito e da moral cirenaicardquo
Dessa forma a intenccedilatildeo original de Marx era fazer um estudo da filosofia
poacutes- aristoteacutelica do qual a tese doutoral seria apenas um iniacutecio projeto justificado
2
exatamente pelo fato de que a filosofia heleniacutestica teria sido ateacute entatildeo
apresentada tatildeo somente como o momento de decliacutenio da filosofia grega
Interpretaccedilatildeo questionada por Marx que reconhece uma importacircncia histoacuterica a
esses sistemas que satildeo afinal ldquoa forma sob a qual a Greacutecia emigra para Romardquo E
se propotildee numa obra futura nunca realizada a examinar a conexatildeo desses
sistemas filosoacuteficos com a filosofia grega anterior a partir do reconhecimento de
um aspecto singular desses sistemas que eacute por um lado o retorno a uma fiacutesica
preacute-socraacutetica no caso do epicurismo a atomiacutestica de Demoacutecrito e por outro a
conciliaccedilatildeo dessa fiacutesica com uma eacutetica de inspiraccedilatildeo socraacutetica no caso o
hedonismo cirenaico
Ele coloca como tese a ser demonstrada que se a filosofia grega anterior
a estes sistemas eacute mais rica do ponto de visto do conteuacutedo os sistemas poacutes-
aristoteacutelicos satildeo no entanto mais significativos para o estudo ldquoda forma subjetiva
do caraacuteter essencial dessa filosofiardquo ou ainda do ldquosuporte espiritualrdquo desses
sistemas aspecto ateacute entatildeo desconsiderado
Dessa forma ele se refere agraves escolas heleniacutesticas como ldquomomentos da
autoconsciecircnciardquo dizendo que no seu conjunto o epicurismo o estoicismo e o
ceticismo integrariam ldquoa estrutura completa da autoconsciecircnciardquo (TD 21)
Embora esse projeto de Marx tenha sido abandonado muito cedo eacute
significativa a indicaccedilatildeo do autor sobre o propoacutesito de seu trabalho o interesse
pelo tema da auto-consciecircncia o que o coloca em consonacircncia com os interesses
e propoacutesitos proacuteprios do idealismo ativo A proacutepria sugestatildeo do tema teria sido de
acordo com vaacuterios comentadores da obra de Marx como Rossi por exemplo de
Bruno Bauer
De fato o Marx que nesse momento pretende se dedicar ao estudo do
conjunto das filosofias poacutes-aristoteacutelicas no intuito de ressaltar a sua importacircncia
no deciframento da forma subjetiva dessas filosofias ou em outras palavras do
reconhecimento desses sistemas como figuraccedilotildees histoacutericas da emergecircncia da
consciecircncia-de-si numa referecircncia oacutebvia agrave indicaccedilatildeo presente na Fenomenologia
3
do Espiacuterito o faz no interior de um instrumental idealista afirmado por ele como
ldquonatildeo simplesmente uma quimera mas uma verdaderdquo na dedicatoacuteria ao seu futuro
sogro Ludwig von Westphalen mas natildeo apenas na postura de um idealista mas
adjetivando melhor na de um idealista neo-hegeliano de esquerda para quem a
questatildeo pungente de sua eacutepoca se refere agrave problemaacutetica entre a consciecircncia e a
substacircncia ou em outras palavras entre a filosofia e o mundo E compreende-se
entatildeo a passagem presente em seu proacutelogo de que a ldquoideacuteia do especulativordquo em
Hegel o impedia de reconhecer a importacircncia desses sistemas afirmaccedilatildeo que se
esclarece no decorrer de sua tese quando Marx se distancia da posiccedilatildeo hegeliana
que concilia ao final consciecircncia e substacircncia pela ecircnfase que Marx daacute agrave
autoconsciecircncia a partir da filosofia de Epicuro
O ponto de partida de Marx eacute a observaccedilatildeo de que embora os dois
filoacutesofos Demoacutecrito e Epicuro professem a mesma ciecircncia o atomismo eles se
distinguem radicalmente no que diz respeito agrave verdade agrave possibilidade do
conhecimento agrave relaccedilatildeo entre o pensamento e a realidade e ao proacuteprio sentido
da ciecircncia diferenccedilas apontadas na primeira parte da tese
A segunda parte eacute dedicada a um esmiuccedilamento dos princiacutepios dos dois
filoacutesofos ressaltando nos detalhes a origem de posiccedilotildees tatildeo contraacuterias
Observaccedilotildees na primeira parte faltam parte do IV capiacutetulo e todo o
capiacutetulo V sendo que a parte do cap IV figura no mais das vezes nas notas que
acompanham o corpo da tese seguida dos cadernos de anotaccedilotildees feitas pelo
autor
Na primeira parte Marx expotildee o objeto de estudo apresenta uma revisatildeo
da literatura a respeito da questatildeo e expotildee no capiacutetulo III as diferenccedilas gerais
entre os dois filoacutesofos
Em Demoacutecrito haacute segundo Marx passagens contraditoacuterias sobre a
possibilidade de certeza do conhecer e essa posiccedilatildeo democritiana se daacute em
funccedilatildeo da relaccedilatildeo que ele estabelece entre a essecircncia (o aacutetomo) e o fenocircmeno
4
Haveria em Demoacutecrito uma separaccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno que culminaria
na impossibilidade de se conhecer a essecircncia De acordo com Demoacutecrito citado
por Marx ldquoos verdadeiros princiacutepios satildeo os aacutetomos e o vazio o demais eacute opiniatildeo
aparecircnciardquo (TD 24)
Na concepccedilatildeo de Demoacutecrito a essecircncia de todas as coisas satildeo os aacutetomos
e o vazio No entanto noacutes natildeo podemos conhecer a essecircncia das coisas mas
apenas as qualidades que resultam dos compostos de aacutetomos como a cor o
cheiro o frio o quente que satildeo proacuteprios dos fenocircmenos que entatildeo satildeo
percebidos pelos sujeitos Mas esses fenocircmenos com essas qualidades satildeo
apenas aparecircncias que natildeo dizem verdadeiramente da essecircncia dos seres Numa
palavra satildeo opiniatildeo Enquanto opiniotildees natildeo podem ser elevados agrave categoria de
verdade Os sentidos nos levam a perceber o fenocircmeno mas este eacute instaacutevel e natildeo
verdadeiro Sendo assim Demoacutecrito descarta os sentidos como fonte do
verdadeiro conhecimento o que soacute seria possiacutevel pela razatildeo
Isto faz com que Demoacutecrito assuma uma postura a princiacutepio contraditoacuteria
que eacute a de se dedicar extremamente agrave ciecircncia no seu aspecto investigativo
colecionador de dados mas essa coletacircnea natildeo se converte jamais em verdade
A ciecircncia soacute pode fornecer dados que podem ser acumulados manipulados
podem se mostrar eficientes mas que natildeo remetem agrave verdade do ser
No dizer de Marx essa concepccedilatildeo de Demoacutecrito se traduz na sua postura
ao mesmo tempo ceacutetica e no entanto de ativa pesquisa empiacuterica
Ele diraacute a respeito desta distacircncia que Demoacutecrito estabelece entre o
fenocircmeno e a essecircncia que ldquoO saber que ele tem por verdadeiro carece de
conteuacutedo e o que lhe daacute conteuacutedo carece de verdaderdquo (TD 25)
O extremo desta insatisfaccedilatildeo segundo Marx se manifestaria no suposto
ato de Demoacutecrito de se cegar para o mundo para alcanccedilar a verdade da razatildeo
liberta dos sentidos ldquo Dizem que Demoacutecrito se privou da visatildeo para que a luz
sensiacutevel do olho natildeo empanasse nele a agudeza do espiacuteritordquo (TD 25-6)
5
A este espiacuterito insatisfeito e angustiado de Demoacutecrito que nos eacute
apresentado (e que segundo Joseacute Ameacuterico Pessanha em seu texto Marx e os
atomistas gregos seria uma visatildeo injusta de Demoacutecrito por parte de Marx) Marx
contrapotildee o espiacuterito tranquumlilo e confiante de Epicuro Contrariamente a Demoacutecrito
Epicuro eacute qualificado como um filoacutesofo e um dogmaacutetico confiante no
conhecimento da verdade a partir dos sentidos poreacutem despreocupado da ciecircncia
empiacuterica
Satildeo estas posiccedilotildees contraacuterias assumidas por filoacutesofos que partem dos
mesmos princiacutepios que chamam a atenccedilatildeo de Marx no sentido de investigar nos
pormenores a razatildeo dessa diferenccedila tatildeo gritante
A razatildeo estaria na forma como os dois compreendem a relaccedilatildeo entre a
essecircncia e o fenocircmeno Se em Demoacutecrito a aparecircncia nos engana para Epicuro
os sentidos satildeo uma fonte segura do saber
Segundo Demoacutecrito ldquoO uno natildeo resulta na verdade de muitos aacutetomos
mas sim mediante a combinaccedilatildeo dos aacutetomos parece tudo ser unordquo (TD 24)
Para Demoacutecrito entatildeo todo conhecimento a partir dos sentidos eacute apenas
aparecircncia sendo assim o mundo sensiacutevel apenas uma aparecircncia subjetiva
Jaacute para Epicuro o mundo sensiacutevel eacute um fenocircmeno objetivo jaacute que os
sentidos para ele ldquosatildeo arautos do verdadeirordquo (TD 24)
Marx vai trabalhar esta diferenccedila nos dois autores a partir da noccedilatildeo de
antinomia ou seja da diferenccedila entre fenocircmeno e essecircncia tal como eacute colocada
por eles Para tanto ele vai descer a detalhes que permitem detectar na sua
origem a razatildeo de tal contraposiccedilatildeo entre os dois filoacutesofos Eacute o que ele faz na
segunda parte do trabalho
Seraacute preciso aqui reconstruir resumidamente o que eacute a teoria atomiacutestica
segundo Demoacutecrito e segundo Epicuro de acordo com o que Marx nos apresenta
para que as diferenccedilas sejam ressaltadas
6
Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a
todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos
aacutetomos por Epicuro
De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos
de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave
formaccedilatildeo dos compostos
Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros
comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os
aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees
Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no
qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as
direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria
decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em
Epicurordquo
Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto
que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha
reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa
querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no
universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a
formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)
De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam
determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito
eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois
afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e
Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer
opostordquo (TD 28)
7
Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a
possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural
Aqui haacute duas questotildees a serem vistas
1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute
presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito
por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo
em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do
clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma
hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a
presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que
formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas
apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx
que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do
clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do
proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)
2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute
importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo
movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o
movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a
possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos
Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio
O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao
desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos
Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos
difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo
(TD 30)
8
Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do
aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa
e natildeo absoluta)
No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na
medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade
Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda
natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia
que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua
singularidaderdquo
Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra
isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo
Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos
contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu
movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem
prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas
como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma
pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos
visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si
mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)
Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois
momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que
corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal
que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre
que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda
relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo
Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que
Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele
9
afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo
existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa
vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)
(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz
ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como
senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para
ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute
inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo
naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)
1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a
accedilatildeo por vontade proacutepria
2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de
Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma
superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute
melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo
humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por
obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo
Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito
de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do
acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a
capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta
Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o
modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata
deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo
constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)
10
A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx
apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de
Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua
afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de
Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo
A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de
vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros
critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que
ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No
entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de
negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda
maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua
superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas
reconhecido por Lucreacutecio
Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto
historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da
filosofia epicurista
Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela
de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza
deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a
possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na
esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute
explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a
causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de
todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por
conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)
Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no
conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A
declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No
11
entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa
natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que
Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a
forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa
antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se
compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do
conhecimento
Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da
natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para
que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de
todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os
aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a
liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o
levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar
o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a
igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se
compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria
a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)
O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas
as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto
como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas
natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos
possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de
compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso
Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto
isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o
princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a
todo o pensamento epicurista
12
Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista
Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro
satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica
Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua
existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a
filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam
representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a
independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade
do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a
ataraxiardquo (TD 34)
Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao
movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a
responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e
mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer
essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma
existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja
todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a
forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)
Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os
aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade
esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade
imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que
ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave
13
consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
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estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
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realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
18
6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
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fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
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tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
exatamente pelo fato de que a filosofia heleniacutestica teria sido ateacute entatildeo
apresentada tatildeo somente como o momento de decliacutenio da filosofia grega
Interpretaccedilatildeo questionada por Marx que reconhece uma importacircncia histoacuterica a
esses sistemas que satildeo afinal ldquoa forma sob a qual a Greacutecia emigra para Romardquo E
se propotildee numa obra futura nunca realizada a examinar a conexatildeo desses
sistemas filosoacuteficos com a filosofia grega anterior a partir do reconhecimento de
um aspecto singular desses sistemas que eacute por um lado o retorno a uma fiacutesica
preacute-socraacutetica no caso do epicurismo a atomiacutestica de Demoacutecrito e por outro a
conciliaccedilatildeo dessa fiacutesica com uma eacutetica de inspiraccedilatildeo socraacutetica no caso o
hedonismo cirenaico
Ele coloca como tese a ser demonstrada que se a filosofia grega anterior
a estes sistemas eacute mais rica do ponto de visto do conteuacutedo os sistemas poacutes-
aristoteacutelicos satildeo no entanto mais significativos para o estudo ldquoda forma subjetiva
do caraacuteter essencial dessa filosofiardquo ou ainda do ldquosuporte espiritualrdquo desses
sistemas aspecto ateacute entatildeo desconsiderado
Dessa forma ele se refere agraves escolas heleniacutesticas como ldquomomentos da
autoconsciecircnciardquo dizendo que no seu conjunto o epicurismo o estoicismo e o
ceticismo integrariam ldquoa estrutura completa da autoconsciecircnciardquo (TD 21)
Embora esse projeto de Marx tenha sido abandonado muito cedo eacute
significativa a indicaccedilatildeo do autor sobre o propoacutesito de seu trabalho o interesse
pelo tema da auto-consciecircncia o que o coloca em consonacircncia com os interesses
e propoacutesitos proacuteprios do idealismo ativo A proacutepria sugestatildeo do tema teria sido de
acordo com vaacuterios comentadores da obra de Marx como Rossi por exemplo de
Bruno Bauer
De fato o Marx que nesse momento pretende se dedicar ao estudo do
conjunto das filosofias poacutes-aristoteacutelicas no intuito de ressaltar a sua importacircncia
no deciframento da forma subjetiva dessas filosofias ou em outras palavras do
reconhecimento desses sistemas como figuraccedilotildees histoacutericas da emergecircncia da
consciecircncia-de-si numa referecircncia oacutebvia agrave indicaccedilatildeo presente na Fenomenologia
3
do Espiacuterito o faz no interior de um instrumental idealista afirmado por ele como
ldquonatildeo simplesmente uma quimera mas uma verdaderdquo na dedicatoacuteria ao seu futuro
sogro Ludwig von Westphalen mas natildeo apenas na postura de um idealista mas
adjetivando melhor na de um idealista neo-hegeliano de esquerda para quem a
questatildeo pungente de sua eacutepoca se refere agrave problemaacutetica entre a consciecircncia e a
substacircncia ou em outras palavras entre a filosofia e o mundo E compreende-se
entatildeo a passagem presente em seu proacutelogo de que a ldquoideacuteia do especulativordquo em
Hegel o impedia de reconhecer a importacircncia desses sistemas afirmaccedilatildeo que se
esclarece no decorrer de sua tese quando Marx se distancia da posiccedilatildeo hegeliana
que concilia ao final consciecircncia e substacircncia pela ecircnfase que Marx daacute agrave
autoconsciecircncia a partir da filosofia de Epicuro
O ponto de partida de Marx eacute a observaccedilatildeo de que embora os dois
filoacutesofos Demoacutecrito e Epicuro professem a mesma ciecircncia o atomismo eles se
distinguem radicalmente no que diz respeito agrave verdade agrave possibilidade do
conhecimento agrave relaccedilatildeo entre o pensamento e a realidade e ao proacuteprio sentido
da ciecircncia diferenccedilas apontadas na primeira parte da tese
A segunda parte eacute dedicada a um esmiuccedilamento dos princiacutepios dos dois
filoacutesofos ressaltando nos detalhes a origem de posiccedilotildees tatildeo contraacuterias
Observaccedilotildees na primeira parte faltam parte do IV capiacutetulo e todo o
capiacutetulo V sendo que a parte do cap IV figura no mais das vezes nas notas que
acompanham o corpo da tese seguida dos cadernos de anotaccedilotildees feitas pelo
autor
Na primeira parte Marx expotildee o objeto de estudo apresenta uma revisatildeo
da literatura a respeito da questatildeo e expotildee no capiacutetulo III as diferenccedilas gerais
entre os dois filoacutesofos
Em Demoacutecrito haacute segundo Marx passagens contraditoacuterias sobre a
possibilidade de certeza do conhecer e essa posiccedilatildeo democritiana se daacute em
funccedilatildeo da relaccedilatildeo que ele estabelece entre a essecircncia (o aacutetomo) e o fenocircmeno
4
Haveria em Demoacutecrito uma separaccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno que culminaria
na impossibilidade de se conhecer a essecircncia De acordo com Demoacutecrito citado
por Marx ldquoos verdadeiros princiacutepios satildeo os aacutetomos e o vazio o demais eacute opiniatildeo
aparecircnciardquo (TD 24)
Na concepccedilatildeo de Demoacutecrito a essecircncia de todas as coisas satildeo os aacutetomos
e o vazio No entanto noacutes natildeo podemos conhecer a essecircncia das coisas mas
apenas as qualidades que resultam dos compostos de aacutetomos como a cor o
cheiro o frio o quente que satildeo proacuteprios dos fenocircmenos que entatildeo satildeo
percebidos pelos sujeitos Mas esses fenocircmenos com essas qualidades satildeo
apenas aparecircncias que natildeo dizem verdadeiramente da essecircncia dos seres Numa
palavra satildeo opiniatildeo Enquanto opiniotildees natildeo podem ser elevados agrave categoria de
verdade Os sentidos nos levam a perceber o fenocircmeno mas este eacute instaacutevel e natildeo
verdadeiro Sendo assim Demoacutecrito descarta os sentidos como fonte do
verdadeiro conhecimento o que soacute seria possiacutevel pela razatildeo
Isto faz com que Demoacutecrito assuma uma postura a princiacutepio contraditoacuteria
que eacute a de se dedicar extremamente agrave ciecircncia no seu aspecto investigativo
colecionador de dados mas essa coletacircnea natildeo se converte jamais em verdade
A ciecircncia soacute pode fornecer dados que podem ser acumulados manipulados
podem se mostrar eficientes mas que natildeo remetem agrave verdade do ser
No dizer de Marx essa concepccedilatildeo de Demoacutecrito se traduz na sua postura
ao mesmo tempo ceacutetica e no entanto de ativa pesquisa empiacuterica
Ele diraacute a respeito desta distacircncia que Demoacutecrito estabelece entre o
fenocircmeno e a essecircncia que ldquoO saber que ele tem por verdadeiro carece de
conteuacutedo e o que lhe daacute conteuacutedo carece de verdaderdquo (TD 25)
O extremo desta insatisfaccedilatildeo segundo Marx se manifestaria no suposto
ato de Demoacutecrito de se cegar para o mundo para alcanccedilar a verdade da razatildeo
liberta dos sentidos ldquo Dizem que Demoacutecrito se privou da visatildeo para que a luz
sensiacutevel do olho natildeo empanasse nele a agudeza do espiacuteritordquo (TD 25-6)
5
A este espiacuterito insatisfeito e angustiado de Demoacutecrito que nos eacute
apresentado (e que segundo Joseacute Ameacuterico Pessanha em seu texto Marx e os
atomistas gregos seria uma visatildeo injusta de Demoacutecrito por parte de Marx) Marx
contrapotildee o espiacuterito tranquumlilo e confiante de Epicuro Contrariamente a Demoacutecrito
Epicuro eacute qualificado como um filoacutesofo e um dogmaacutetico confiante no
conhecimento da verdade a partir dos sentidos poreacutem despreocupado da ciecircncia
empiacuterica
Satildeo estas posiccedilotildees contraacuterias assumidas por filoacutesofos que partem dos
mesmos princiacutepios que chamam a atenccedilatildeo de Marx no sentido de investigar nos
pormenores a razatildeo dessa diferenccedila tatildeo gritante
A razatildeo estaria na forma como os dois compreendem a relaccedilatildeo entre a
essecircncia e o fenocircmeno Se em Demoacutecrito a aparecircncia nos engana para Epicuro
os sentidos satildeo uma fonte segura do saber
Segundo Demoacutecrito ldquoO uno natildeo resulta na verdade de muitos aacutetomos
mas sim mediante a combinaccedilatildeo dos aacutetomos parece tudo ser unordquo (TD 24)
Para Demoacutecrito entatildeo todo conhecimento a partir dos sentidos eacute apenas
aparecircncia sendo assim o mundo sensiacutevel apenas uma aparecircncia subjetiva
Jaacute para Epicuro o mundo sensiacutevel eacute um fenocircmeno objetivo jaacute que os
sentidos para ele ldquosatildeo arautos do verdadeirordquo (TD 24)
Marx vai trabalhar esta diferenccedila nos dois autores a partir da noccedilatildeo de
antinomia ou seja da diferenccedila entre fenocircmeno e essecircncia tal como eacute colocada
por eles Para tanto ele vai descer a detalhes que permitem detectar na sua
origem a razatildeo de tal contraposiccedilatildeo entre os dois filoacutesofos Eacute o que ele faz na
segunda parte do trabalho
Seraacute preciso aqui reconstruir resumidamente o que eacute a teoria atomiacutestica
segundo Demoacutecrito e segundo Epicuro de acordo com o que Marx nos apresenta
para que as diferenccedilas sejam ressaltadas
6
Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a
todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos
aacutetomos por Epicuro
De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos
de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave
formaccedilatildeo dos compostos
Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros
comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os
aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees
Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no
qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as
direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria
decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em
Epicurordquo
Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto
que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha
reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa
querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no
universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a
formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)
De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam
determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito
eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois
afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e
Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer
opostordquo (TD 28)
7
Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a
possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural
Aqui haacute duas questotildees a serem vistas
1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute
presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito
por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo
em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do
clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma
hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a
presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que
formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas
apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx
que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do
clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do
proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)
2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute
importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo
movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o
movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a
possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos
Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio
O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao
desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos
Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos
difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo
(TD 30)
8
Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do
aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa
e natildeo absoluta)
No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na
medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade
Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda
natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia
que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua
singularidaderdquo
Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra
isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo
Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos
contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu
movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem
prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas
como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma
pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos
visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si
mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)
Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois
momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que
corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal
que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre
que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda
relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo
Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que
Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele
9
afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo
existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa
vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)
(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz
ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como
senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para
ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute
inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo
naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)
1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a
accedilatildeo por vontade proacutepria
2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de
Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma
superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute
melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo
humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por
obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo
Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito
de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do
acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a
capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta
Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o
modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata
deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo
constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)
10
A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx
apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de
Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua
afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de
Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo
A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de
vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros
critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que
ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No
entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de
negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda
maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua
superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas
reconhecido por Lucreacutecio
Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto
historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da
filosofia epicurista
Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela
de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza
deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a
possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na
esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute
explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a
causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de
todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por
conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)
Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no
conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A
declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No
11
entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa
natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que
Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a
forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa
antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se
compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do
conhecimento
Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da
natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para
que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de
todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os
aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a
liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o
levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar
o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a
igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se
compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria
a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)
O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas
as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto
como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas
natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos
possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de
compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso
Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto
isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o
princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a
todo o pensamento epicurista
12
Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista
Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro
satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica
Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua
existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a
filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam
representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a
independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade
do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a
ataraxiardquo (TD 34)
Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao
movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a
responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e
mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer
essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma
existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja
todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a
forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)
Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os
aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade
esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade
imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que
ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave
13
consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
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estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
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realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
18
6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
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fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
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tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
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de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
do Espiacuterito o faz no interior de um instrumental idealista afirmado por ele como
ldquonatildeo simplesmente uma quimera mas uma verdaderdquo na dedicatoacuteria ao seu futuro
sogro Ludwig von Westphalen mas natildeo apenas na postura de um idealista mas
adjetivando melhor na de um idealista neo-hegeliano de esquerda para quem a
questatildeo pungente de sua eacutepoca se refere agrave problemaacutetica entre a consciecircncia e a
substacircncia ou em outras palavras entre a filosofia e o mundo E compreende-se
entatildeo a passagem presente em seu proacutelogo de que a ldquoideacuteia do especulativordquo em
Hegel o impedia de reconhecer a importacircncia desses sistemas afirmaccedilatildeo que se
esclarece no decorrer de sua tese quando Marx se distancia da posiccedilatildeo hegeliana
que concilia ao final consciecircncia e substacircncia pela ecircnfase que Marx daacute agrave
autoconsciecircncia a partir da filosofia de Epicuro
O ponto de partida de Marx eacute a observaccedilatildeo de que embora os dois
filoacutesofos Demoacutecrito e Epicuro professem a mesma ciecircncia o atomismo eles se
distinguem radicalmente no que diz respeito agrave verdade agrave possibilidade do
conhecimento agrave relaccedilatildeo entre o pensamento e a realidade e ao proacuteprio sentido
da ciecircncia diferenccedilas apontadas na primeira parte da tese
A segunda parte eacute dedicada a um esmiuccedilamento dos princiacutepios dos dois
filoacutesofos ressaltando nos detalhes a origem de posiccedilotildees tatildeo contraacuterias
Observaccedilotildees na primeira parte faltam parte do IV capiacutetulo e todo o
capiacutetulo V sendo que a parte do cap IV figura no mais das vezes nas notas que
acompanham o corpo da tese seguida dos cadernos de anotaccedilotildees feitas pelo
autor
Na primeira parte Marx expotildee o objeto de estudo apresenta uma revisatildeo
da literatura a respeito da questatildeo e expotildee no capiacutetulo III as diferenccedilas gerais
entre os dois filoacutesofos
Em Demoacutecrito haacute segundo Marx passagens contraditoacuterias sobre a
possibilidade de certeza do conhecer e essa posiccedilatildeo democritiana se daacute em
funccedilatildeo da relaccedilatildeo que ele estabelece entre a essecircncia (o aacutetomo) e o fenocircmeno
4
Haveria em Demoacutecrito uma separaccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno que culminaria
na impossibilidade de se conhecer a essecircncia De acordo com Demoacutecrito citado
por Marx ldquoos verdadeiros princiacutepios satildeo os aacutetomos e o vazio o demais eacute opiniatildeo
aparecircnciardquo (TD 24)
Na concepccedilatildeo de Demoacutecrito a essecircncia de todas as coisas satildeo os aacutetomos
e o vazio No entanto noacutes natildeo podemos conhecer a essecircncia das coisas mas
apenas as qualidades que resultam dos compostos de aacutetomos como a cor o
cheiro o frio o quente que satildeo proacuteprios dos fenocircmenos que entatildeo satildeo
percebidos pelos sujeitos Mas esses fenocircmenos com essas qualidades satildeo
apenas aparecircncias que natildeo dizem verdadeiramente da essecircncia dos seres Numa
palavra satildeo opiniatildeo Enquanto opiniotildees natildeo podem ser elevados agrave categoria de
verdade Os sentidos nos levam a perceber o fenocircmeno mas este eacute instaacutevel e natildeo
verdadeiro Sendo assim Demoacutecrito descarta os sentidos como fonte do
verdadeiro conhecimento o que soacute seria possiacutevel pela razatildeo
Isto faz com que Demoacutecrito assuma uma postura a princiacutepio contraditoacuteria
que eacute a de se dedicar extremamente agrave ciecircncia no seu aspecto investigativo
colecionador de dados mas essa coletacircnea natildeo se converte jamais em verdade
A ciecircncia soacute pode fornecer dados que podem ser acumulados manipulados
podem se mostrar eficientes mas que natildeo remetem agrave verdade do ser
No dizer de Marx essa concepccedilatildeo de Demoacutecrito se traduz na sua postura
ao mesmo tempo ceacutetica e no entanto de ativa pesquisa empiacuterica
Ele diraacute a respeito desta distacircncia que Demoacutecrito estabelece entre o
fenocircmeno e a essecircncia que ldquoO saber que ele tem por verdadeiro carece de
conteuacutedo e o que lhe daacute conteuacutedo carece de verdaderdquo (TD 25)
O extremo desta insatisfaccedilatildeo segundo Marx se manifestaria no suposto
ato de Demoacutecrito de se cegar para o mundo para alcanccedilar a verdade da razatildeo
liberta dos sentidos ldquo Dizem que Demoacutecrito se privou da visatildeo para que a luz
sensiacutevel do olho natildeo empanasse nele a agudeza do espiacuteritordquo (TD 25-6)
5
A este espiacuterito insatisfeito e angustiado de Demoacutecrito que nos eacute
apresentado (e que segundo Joseacute Ameacuterico Pessanha em seu texto Marx e os
atomistas gregos seria uma visatildeo injusta de Demoacutecrito por parte de Marx) Marx
contrapotildee o espiacuterito tranquumlilo e confiante de Epicuro Contrariamente a Demoacutecrito
Epicuro eacute qualificado como um filoacutesofo e um dogmaacutetico confiante no
conhecimento da verdade a partir dos sentidos poreacutem despreocupado da ciecircncia
empiacuterica
Satildeo estas posiccedilotildees contraacuterias assumidas por filoacutesofos que partem dos
mesmos princiacutepios que chamam a atenccedilatildeo de Marx no sentido de investigar nos
pormenores a razatildeo dessa diferenccedila tatildeo gritante
A razatildeo estaria na forma como os dois compreendem a relaccedilatildeo entre a
essecircncia e o fenocircmeno Se em Demoacutecrito a aparecircncia nos engana para Epicuro
os sentidos satildeo uma fonte segura do saber
Segundo Demoacutecrito ldquoO uno natildeo resulta na verdade de muitos aacutetomos
mas sim mediante a combinaccedilatildeo dos aacutetomos parece tudo ser unordquo (TD 24)
Para Demoacutecrito entatildeo todo conhecimento a partir dos sentidos eacute apenas
aparecircncia sendo assim o mundo sensiacutevel apenas uma aparecircncia subjetiva
Jaacute para Epicuro o mundo sensiacutevel eacute um fenocircmeno objetivo jaacute que os
sentidos para ele ldquosatildeo arautos do verdadeirordquo (TD 24)
Marx vai trabalhar esta diferenccedila nos dois autores a partir da noccedilatildeo de
antinomia ou seja da diferenccedila entre fenocircmeno e essecircncia tal como eacute colocada
por eles Para tanto ele vai descer a detalhes que permitem detectar na sua
origem a razatildeo de tal contraposiccedilatildeo entre os dois filoacutesofos Eacute o que ele faz na
segunda parte do trabalho
Seraacute preciso aqui reconstruir resumidamente o que eacute a teoria atomiacutestica
segundo Demoacutecrito e segundo Epicuro de acordo com o que Marx nos apresenta
para que as diferenccedilas sejam ressaltadas
6
Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a
todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos
aacutetomos por Epicuro
De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos
de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave
formaccedilatildeo dos compostos
Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros
comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os
aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees
Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no
qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as
direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria
decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em
Epicurordquo
Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto
que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha
reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa
querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no
universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a
formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)
De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam
determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito
eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois
afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e
Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer
opostordquo (TD 28)
7
Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a
possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural
Aqui haacute duas questotildees a serem vistas
1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute
presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito
por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo
em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do
clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma
hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a
presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que
formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas
apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx
que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do
clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do
proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)
2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute
importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo
movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o
movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a
possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos
Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio
O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao
desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos
Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos
difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo
(TD 30)
8
Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do
aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa
e natildeo absoluta)
No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na
medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade
Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda
natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia
que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua
singularidaderdquo
Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra
isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo
Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos
contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu
movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem
prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas
como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma
pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos
visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si
mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)
Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois
momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que
corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal
que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre
que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda
relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo
Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que
Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele
9
afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo
existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa
vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)
(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz
ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como
senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para
ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute
inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo
naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)
1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a
accedilatildeo por vontade proacutepria
2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de
Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma
superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute
melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo
humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por
obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo
Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito
de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do
acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a
capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta
Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o
modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata
deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo
constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)
10
A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx
apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de
Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua
afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de
Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo
A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de
vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros
critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que
ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No
entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de
negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda
maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua
superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas
reconhecido por Lucreacutecio
Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto
historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da
filosofia epicurista
Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela
de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza
deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a
possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na
esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute
explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a
causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de
todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por
conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)
Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no
conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A
declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No
11
entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa
natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que
Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a
forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa
antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se
compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do
conhecimento
Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da
natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para
que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de
todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os
aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a
liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o
levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar
o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a
igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se
compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria
a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)
O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas
as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto
como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas
natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos
possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de
compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso
Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto
isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o
princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a
todo o pensamento epicurista
12
Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista
Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro
satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica
Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua
existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a
filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam
representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a
independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade
do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a
ataraxiardquo (TD 34)
Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao
movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a
responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e
mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer
essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma
existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja
todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a
forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)
Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os
aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade
esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade
imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que
ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave
13
consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
14
estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
17
realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
18
6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
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fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
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tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
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de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
Haveria em Demoacutecrito uma separaccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno que culminaria
na impossibilidade de se conhecer a essecircncia De acordo com Demoacutecrito citado
por Marx ldquoos verdadeiros princiacutepios satildeo os aacutetomos e o vazio o demais eacute opiniatildeo
aparecircnciardquo (TD 24)
Na concepccedilatildeo de Demoacutecrito a essecircncia de todas as coisas satildeo os aacutetomos
e o vazio No entanto noacutes natildeo podemos conhecer a essecircncia das coisas mas
apenas as qualidades que resultam dos compostos de aacutetomos como a cor o
cheiro o frio o quente que satildeo proacuteprios dos fenocircmenos que entatildeo satildeo
percebidos pelos sujeitos Mas esses fenocircmenos com essas qualidades satildeo
apenas aparecircncias que natildeo dizem verdadeiramente da essecircncia dos seres Numa
palavra satildeo opiniatildeo Enquanto opiniotildees natildeo podem ser elevados agrave categoria de
verdade Os sentidos nos levam a perceber o fenocircmeno mas este eacute instaacutevel e natildeo
verdadeiro Sendo assim Demoacutecrito descarta os sentidos como fonte do
verdadeiro conhecimento o que soacute seria possiacutevel pela razatildeo
Isto faz com que Demoacutecrito assuma uma postura a princiacutepio contraditoacuteria
que eacute a de se dedicar extremamente agrave ciecircncia no seu aspecto investigativo
colecionador de dados mas essa coletacircnea natildeo se converte jamais em verdade
A ciecircncia soacute pode fornecer dados que podem ser acumulados manipulados
podem se mostrar eficientes mas que natildeo remetem agrave verdade do ser
No dizer de Marx essa concepccedilatildeo de Demoacutecrito se traduz na sua postura
ao mesmo tempo ceacutetica e no entanto de ativa pesquisa empiacuterica
Ele diraacute a respeito desta distacircncia que Demoacutecrito estabelece entre o
fenocircmeno e a essecircncia que ldquoO saber que ele tem por verdadeiro carece de
conteuacutedo e o que lhe daacute conteuacutedo carece de verdaderdquo (TD 25)
O extremo desta insatisfaccedilatildeo segundo Marx se manifestaria no suposto
ato de Demoacutecrito de se cegar para o mundo para alcanccedilar a verdade da razatildeo
liberta dos sentidos ldquo Dizem que Demoacutecrito se privou da visatildeo para que a luz
sensiacutevel do olho natildeo empanasse nele a agudeza do espiacuteritordquo (TD 25-6)
5
A este espiacuterito insatisfeito e angustiado de Demoacutecrito que nos eacute
apresentado (e que segundo Joseacute Ameacuterico Pessanha em seu texto Marx e os
atomistas gregos seria uma visatildeo injusta de Demoacutecrito por parte de Marx) Marx
contrapotildee o espiacuterito tranquumlilo e confiante de Epicuro Contrariamente a Demoacutecrito
Epicuro eacute qualificado como um filoacutesofo e um dogmaacutetico confiante no
conhecimento da verdade a partir dos sentidos poreacutem despreocupado da ciecircncia
empiacuterica
Satildeo estas posiccedilotildees contraacuterias assumidas por filoacutesofos que partem dos
mesmos princiacutepios que chamam a atenccedilatildeo de Marx no sentido de investigar nos
pormenores a razatildeo dessa diferenccedila tatildeo gritante
A razatildeo estaria na forma como os dois compreendem a relaccedilatildeo entre a
essecircncia e o fenocircmeno Se em Demoacutecrito a aparecircncia nos engana para Epicuro
os sentidos satildeo uma fonte segura do saber
Segundo Demoacutecrito ldquoO uno natildeo resulta na verdade de muitos aacutetomos
mas sim mediante a combinaccedilatildeo dos aacutetomos parece tudo ser unordquo (TD 24)
Para Demoacutecrito entatildeo todo conhecimento a partir dos sentidos eacute apenas
aparecircncia sendo assim o mundo sensiacutevel apenas uma aparecircncia subjetiva
Jaacute para Epicuro o mundo sensiacutevel eacute um fenocircmeno objetivo jaacute que os
sentidos para ele ldquosatildeo arautos do verdadeirordquo (TD 24)
Marx vai trabalhar esta diferenccedila nos dois autores a partir da noccedilatildeo de
antinomia ou seja da diferenccedila entre fenocircmeno e essecircncia tal como eacute colocada
por eles Para tanto ele vai descer a detalhes que permitem detectar na sua
origem a razatildeo de tal contraposiccedilatildeo entre os dois filoacutesofos Eacute o que ele faz na
segunda parte do trabalho
Seraacute preciso aqui reconstruir resumidamente o que eacute a teoria atomiacutestica
segundo Demoacutecrito e segundo Epicuro de acordo com o que Marx nos apresenta
para que as diferenccedilas sejam ressaltadas
6
Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a
todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos
aacutetomos por Epicuro
De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos
de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave
formaccedilatildeo dos compostos
Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros
comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os
aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees
Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no
qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as
direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria
decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em
Epicurordquo
Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto
que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha
reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa
querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no
universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a
formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)
De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam
determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito
eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois
afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e
Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer
opostordquo (TD 28)
7
Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a
possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural
Aqui haacute duas questotildees a serem vistas
1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute
presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito
por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo
em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do
clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma
hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a
presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que
formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas
apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx
que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do
clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do
proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)
2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute
importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo
movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o
movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a
possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos
Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio
O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao
desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos
Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos
difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo
(TD 30)
8
Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do
aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa
e natildeo absoluta)
No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na
medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade
Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda
natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia
que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua
singularidaderdquo
Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra
isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo
Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos
contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu
movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem
prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas
como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma
pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos
visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si
mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)
Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois
momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que
corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal
que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre
que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda
relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo
Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que
Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele
9
afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo
existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa
vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)
(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz
ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como
senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para
ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute
inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo
naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)
1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a
accedilatildeo por vontade proacutepria
2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de
Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma
superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute
melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo
humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por
obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo
Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito
de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do
acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a
capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta
Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o
modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata
deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo
constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)
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A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx
apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de
Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua
afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de
Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo
A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de
vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros
critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que
ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No
entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de
negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda
maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua
superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas
reconhecido por Lucreacutecio
Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto
historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da
filosofia epicurista
Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela
de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza
deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a
possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na
esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute
explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a
causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de
todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por
conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)
Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no
conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A
declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No
11
entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa
natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que
Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a
forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa
antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se
compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do
conhecimento
Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da
natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para
que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de
todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os
aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a
liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o
levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar
o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a
igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se
compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria
a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)
O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas
as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto
como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas
natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos
possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de
compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso
Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto
isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o
princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a
todo o pensamento epicurista
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Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista
Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro
satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica
Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua
existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a
filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam
representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a
independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade
do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a
ataraxiardquo (TD 34)
Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao
movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a
responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e
mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer
essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma
existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja
todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a
forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)
Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os
aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade
esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade
imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que
ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave
13
consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
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estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
15
Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
16
representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
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realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
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6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
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fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
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tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
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de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
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Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
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portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
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- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
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A este espiacuterito insatisfeito e angustiado de Demoacutecrito que nos eacute
apresentado (e que segundo Joseacute Ameacuterico Pessanha em seu texto Marx e os
atomistas gregos seria uma visatildeo injusta de Demoacutecrito por parte de Marx) Marx
contrapotildee o espiacuterito tranquumlilo e confiante de Epicuro Contrariamente a Demoacutecrito
Epicuro eacute qualificado como um filoacutesofo e um dogmaacutetico confiante no
conhecimento da verdade a partir dos sentidos poreacutem despreocupado da ciecircncia
empiacuterica
Satildeo estas posiccedilotildees contraacuterias assumidas por filoacutesofos que partem dos
mesmos princiacutepios que chamam a atenccedilatildeo de Marx no sentido de investigar nos
pormenores a razatildeo dessa diferenccedila tatildeo gritante
A razatildeo estaria na forma como os dois compreendem a relaccedilatildeo entre a
essecircncia e o fenocircmeno Se em Demoacutecrito a aparecircncia nos engana para Epicuro
os sentidos satildeo uma fonte segura do saber
Segundo Demoacutecrito ldquoO uno natildeo resulta na verdade de muitos aacutetomos
mas sim mediante a combinaccedilatildeo dos aacutetomos parece tudo ser unordquo (TD 24)
Para Demoacutecrito entatildeo todo conhecimento a partir dos sentidos eacute apenas
aparecircncia sendo assim o mundo sensiacutevel apenas uma aparecircncia subjetiva
Jaacute para Epicuro o mundo sensiacutevel eacute um fenocircmeno objetivo jaacute que os
sentidos para ele ldquosatildeo arautos do verdadeirordquo (TD 24)
Marx vai trabalhar esta diferenccedila nos dois autores a partir da noccedilatildeo de
antinomia ou seja da diferenccedila entre fenocircmeno e essecircncia tal como eacute colocada
por eles Para tanto ele vai descer a detalhes que permitem detectar na sua
origem a razatildeo de tal contraposiccedilatildeo entre os dois filoacutesofos Eacute o que ele faz na
segunda parte do trabalho
Seraacute preciso aqui reconstruir resumidamente o que eacute a teoria atomiacutestica
segundo Demoacutecrito e segundo Epicuro de acordo com o que Marx nos apresenta
para que as diferenccedilas sejam ressaltadas
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Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a
todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos
aacutetomos por Epicuro
De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos
de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave
formaccedilatildeo dos compostos
Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros
comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os
aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees
Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no
qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as
direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria
decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em
Epicurordquo
Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto
que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha
reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa
querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no
universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a
formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)
De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam
determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito
eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois
afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e
Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer
opostordquo (TD 28)
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Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a
possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural
Aqui haacute duas questotildees a serem vistas
1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute
presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito
por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo
em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do
clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma
hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a
presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que
formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas
apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx
que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do
clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do
proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)
2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute
importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo
movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o
movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a
possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos
Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio
O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao
desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos
Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos
difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo
(TD 30)
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Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do
aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa
e natildeo absoluta)
No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na
medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade
Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda
natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia
que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua
singularidaderdquo
Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra
isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo
Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos
contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu
movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem
prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas
como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma
pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos
visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si
mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)
Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois
momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que
corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal
que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre
que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda
relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo
Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que
Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele
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afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo
existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa
vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)
(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz
ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como
senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para
ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute
inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo
naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)
1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a
accedilatildeo por vontade proacutepria
2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de
Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma
superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute
melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo
humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por
obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo
Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito
de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do
acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a
capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta
Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o
modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata
deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo
constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)
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A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx
apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de
Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua
afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de
Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo
A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de
vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros
critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que
ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No
entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de
negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda
maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua
superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas
reconhecido por Lucreacutecio
Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto
historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da
filosofia epicurista
Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela
de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza
deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a
possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na
esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute
explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a
causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de
todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por
conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)
Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no
conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A
declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No
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entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa
natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que
Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a
forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa
antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se
compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do
conhecimento
Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da
natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para
que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de
todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os
aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a
liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o
levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar
o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a
igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se
compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria
a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)
O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas
as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto
como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas
natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos
possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de
compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso
Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto
isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o
princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a
todo o pensamento epicurista
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Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista
Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro
satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica
Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua
existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a
filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam
representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a
independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade
do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a
ataraxiardquo (TD 34)
Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao
movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a
responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e
mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer
essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma
existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja
todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a
forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)
Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os
aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade
esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade
imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que
ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave
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consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
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estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
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realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
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6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
21
fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
25
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
Entre as diferenccedilas apontadas a principal delas que daacute sustentaccedilatildeo a
todo o sistema epicurista eacute o movimento de declinaccedilatildeo da linha reta atribuiacutedo aos
aacutetomos por Epicuro
De acordo com Demoacutecrito os aacutetomos apresentariam apenas dois tipos
de movimentos a queda em linha reta e a repulsatildeo entre os aacutetomos que levaria agrave
formaccedilatildeo dos compostos
Nesse ponto natildeo haacute concordacircncia entre a posiccedilatildeo de Marx e outros
comentadores da obra de Demoacutecrito segundo os quais o filoacutesofo afirmava que os
aacutetomos se moveriam como partiacuteculas num feixe de luz em todas as direccedilotildees
Em Marx e os atomistas gregos Pessanha cita o trabalho de Burnet no
qual este afirma que ldquoo movimento dos aacutetomos seria originariamente em todas as
direccedilotildees como a poeira que flutua no ar A movimentaccedilatildeo em linha reta seria
decorrecircncia de uma concepccedilatildeo de peso do aacutetomo que existiria apenas em
Epicurordquo
Natildeo tendo Demoacutecrito atribuiacutedo aos aacutetomos a qualidade do peso aspecto
que o proacuteprio Marx reconhece natildeo haveria porquecirc afirmar a queda em linha
reta(mas eacute assim que aparece na tese doutoral embora essa ldquoquedardquo possa
querer indicar o ldquomovimentordquo em todas as direccedilotildees jaacute que natildeo haacute centro no
universo infinito De qualquer forma ainda que natildeo seja queda isso explicaria a
formaccedilatildeo dos compostos mas natildeo a gecircnese ontoloacutegica da liberdade)
De acordo com Marx os dois movimentos admitidos por Demoacutecrito seriam
determinados pela mecacircnica natural Marx enfatiza que toda a fiacutesica de Demoacutecrito
eacute pautada pela categoria da necessidade Em suas palavras ldquoPodemos pois
afirmar como algo historicamente certo que Demoacutecrito emprega a necessidade e
Epicuro o acaso e que cada um deles rechaccedila com aspereza polecircmica o parecer
opostordquo (TD 28)
7
Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a
possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural
Aqui haacute duas questotildees a serem vistas
1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute
presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito
por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo
em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do
clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma
hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a
presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que
formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas
apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx
que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do
clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do
proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)
2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute
importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo
movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o
movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a
possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos
Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio
O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao
desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos
Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos
difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo
(TD 30)
8
Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do
aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa
e natildeo absoluta)
No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na
medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade
Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda
natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia
que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua
singularidaderdquo
Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra
isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo
Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos
contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu
movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem
prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas
como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma
pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos
visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si
mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)
Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois
momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que
corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal
que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre
que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda
relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo
Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que
Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele
9
afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo
existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa
vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)
(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz
ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como
senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para
ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute
inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo
naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)
1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a
accedilatildeo por vontade proacutepria
2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de
Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma
superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute
melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo
humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por
obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo
Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito
de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do
acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a
capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta
Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o
modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata
deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo
constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)
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A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx
apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de
Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua
afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de
Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo
A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de
vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros
critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que
ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No
entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de
negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda
maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua
superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas
reconhecido por Lucreacutecio
Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto
historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da
filosofia epicurista
Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela
de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza
deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a
possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na
esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute
explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a
causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de
todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por
conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)
Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no
conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A
declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No
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entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa
natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que
Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a
forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa
antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se
compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do
conhecimento
Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da
natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para
que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de
todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os
aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a
liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o
levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar
o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a
igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se
compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria
a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)
O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas
as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto
como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas
natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos
possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de
compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso
Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto
isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o
princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a
todo o pensamento epicurista
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Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista
Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro
satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica
Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua
existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a
filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam
representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a
independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade
do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a
ataraxiardquo (TD 34)
Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao
movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a
responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e
mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer
essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma
existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja
todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a
forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)
Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os
aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade
esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade
imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que
ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave
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consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
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estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
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realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
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6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
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fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
23
A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
24
Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
25
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
Epicuro acrescenta o movimento de declinaccedilatildeo que significa a
possibilidade do desvio da linha reta e portanto do determinismo natural
Aqui haacute duas questotildees a serem vistas
1) De acordo com Quartim esse movimento de declinaccedilatildeo natildeo estaacute
presente nos textos de Epicuro mas seria um desenvolvimento feito
por Lucreacutecio Dessa forma Marx estaria se apoiando em Lucreacutecio e natildeo
em Epicuro Mais do que isso a hipoacutetese da declinaccedilatildeo ou do
clinamen para usar o termo tal como aparece em Lucreacutecio eacute uma
hipoacutetese desnecessaacuteria para explicar a liberdade uma vez que a
presenccedila da liberdade pode ser explicada a partir dos aacutetomos sutis que
formam a alma (Natildeo entraremos no meacuterito dessa discussatildeo mas
apenas referiremos aqui que isso natildeo passa desapercebido por Marx
que afirma em passagem do caderno I de anotaccedilotildees a respeito do
clinamem ldquo Lucreacutecio pode ter tomado ou natildeo essa explicaccedilatildeo do
proacuteprio Epicuro Isso natildeo afeta em nada a questatildeordquo)
2) Ao dizer que Epicuro acrescenta um terceiro movimento eacute
importante entender que ele supotildee natildeo um terceiro mas um segundo
movimento ou seja a declinaccedilatildeo da linha reta eacute o que possibilita o
movimento de repulsatildeo ou seja o choque entre os aacutetomos que cria a
possibilidade de formaccedilatildeo dos compostos
Citando Marx ldquoEpicuro admite um triplo movimento dos aacutetomos no vazio
O primeiro movimento eacute o da queda em linha reta o segundo se produz ao
desviar-se o aacutetomo da linha reta o terceiro se deve agrave repulsatildeo dos muitos aacutetomos
Demoacutecrito compartilha com Epicuro a hipoacutetese do primeiro e terceiro movimentos
difere dele no entanto quanto agrave declinaccedilatildeo do aacutetomo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo
(TD 30)
8
Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do
aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa
e natildeo absoluta)
No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na
medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade
Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda
natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia
que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua
singularidaderdquo
Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra
isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo
Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos
contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu
movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem
prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas
como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma
pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos
visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si
mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)
Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois
momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que
corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal
que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre
que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda
relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo
Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que
Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele
9
afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo
existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa
vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)
(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz
ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como
senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para
ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute
inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo
naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)
1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a
accedilatildeo por vontade proacutepria
2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de
Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma
superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute
melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo
humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por
obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo
Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito
de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do
acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a
capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta
Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o
modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata
deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo
constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)
10
A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx
apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de
Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua
afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de
Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo
A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de
vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros
critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que
ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No
entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de
negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda
maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua
superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas
reconhecido por Lucreacutecio
Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto
historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da
filosofia epicurista
Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela
de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza
deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a
possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na
esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute
explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a
causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de
todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por
conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)
Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no
conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A
declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No
11
entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa
natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que
Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a
forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa
antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se
compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do
conhecimento
Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da
natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para
que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de
todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os
aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a
liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o
levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar
o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a
igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se
compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria
a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)
O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas
as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto
como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas
natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos
possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de
compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso
Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto
isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o
princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a
todo o pensamento epicurista
12
Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista
Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro
satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica
Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua
existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a
filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam
representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a
independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade
do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a
ataraxiardquo (TD 34)
Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao
movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a
responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e
mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer
essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma
existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja
todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a
forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)
Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os
aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade
esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade
imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que
ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave
13
consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
14
estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
17
realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
18
6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
21
fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
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tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
Segundo Epicuro a queda em linha reta se daria em funccedilatildeo do peso do
aacutetomo (entendendo que para ele essa noccedilatildeo de alto e baixo eacute uma noccedilatildeo relativa
e natildeo absoluta)
No entanto a queda em linha reta faz equivaler todas os aacutetomos na
medida em que os torna simples pontos retirando assim a sua individualidade
Com efeito ldquotodo corpo enquanto eacute considerado no movimento da queda
natildeo eacute pois mais que um ponto que se move um ponto privado de sua autonomia
que num ser-aiacute determinado ndash a linha reta que descreve ndash perde a sua
singularidaderdquo
Nesse caso estariacuteamos no terreno do total determinismo natural Eacute contra
isso que Epicuro introduz a ideacuteia do movimento de declinaccedilatildeo
Segundo Marx Epicuro atribui ao conceito de aacutetomo dois momentos
contraditoacuterios poreacutem inter-relacionados ldquo temos que o aacutetomo enquanto seu
movimento eacute a linha reta se acha determinado puramente pelo espaccedilo tem
prescrito um modo de ser relativo e sua existecircncia eacute puramente material Mas
como temos visto um dos momentos do conceito de aacutetomo consiste em ser forma
pura negaccedilatildeo de toda relatividade de toda relaccedilatildeo com outra existecircncia E temos
visto tambeacutem como Epicuro objetiva estes dois momentos contraditoacuterios entre si
mas que se acham impliacutecitos no conceito de aacutetomordquo (TD 32)
Portanto temos em Epicuro que o conceito de aacutetomo conteacutem dois
momentos a determinaccedilatildeo material expressa na queda em linha reta que
corresponde agrave forma da existecircncia material dos aacutetomos e a determinaccedilatildeo formal
que enquanto autodeterminaccedilatildeo se expressa num movimento incausado e livre
que eacute a declinaccedilatildeo Esta determinaccedilatildeo formal significa a ldquo negaccedilatildeo de toda
relatividaderdquo ou seja a afirmaccedilatildeo da ldquosingularidade purardquo
Com esse procedimento Epicuro nega o determinismo total que
Demoacutecrito admite no mundo natural Em uma passagem da carta a Menequeu ele
9
afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo
existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa
vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)
(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz
ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como
senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para
ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute
inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo
naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)
1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a
accedilatildeo por vontade proacutepria
2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de
Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma
superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute
melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo
humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por
obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo
Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito
de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do
acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a
capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta
Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o
modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata
deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo
constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)
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A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx
apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de
Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua
afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de
Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo
A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de
vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros
critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que
ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No
entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de
negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda
maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua
superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas
reconhecido por Lucreacutecio
Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto
historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da
filosofia epicurista
Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela
de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza
deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a
possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na
esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute
explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a
causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de
todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por
conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)
Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no
conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A
declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No
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entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa
natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que
Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a
forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa
antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se
compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do
conhecimento
Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da
natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para
que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de
todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os
aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a
liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o
levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar
o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a
igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se
compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria
a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)
O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas
as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto
como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas
natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos
possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de
compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso
Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto
isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o
princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a
todo o pensamento epicurista
12
Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista
Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro
satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica
Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua
existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a
filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam
representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a
independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade
do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a
ataraxiardquo (TD 34)
Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao
movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a
responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e
mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer
essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma
existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja
todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a
forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)
Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os
aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade
esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade
imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que
ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave
13
consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
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estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
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realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
18
6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
19
ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
20
que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
21
fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
25
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
afirma ldquoA necessidade que alguns apresentam como senhora absoluta natildeo
existe mas sim algumas coisas satildeo fortuitas e outras dependem da nossa
vontaderdquo (EPICURO apud MARX TD 27)
(Observaccedilatildeo O texto de Epicuro eacute ao se referir ao saacutebio ele diz
ldquoFinalmente ele proclama que o destino introduzido por alguns filoacutesofos como
senhor de tudo eacute uma crenccedila vatilde e afirma que algumas coisas acontecem
necessariamente outras por acaso e que outras dependem de noacutes porque para
ele eacute evidente que a necessidade gera a irresponsabilidade e o acaso eacute
inconstante e as coisas que dependem de noacutes satildeo livremente escolhidas e satildeo
naturalmente acompanhadas de censura e louvorrdquo)
1- Marx natildeo se refere agrave necessidade mas se empolga com o acaso e a
accedilatildeo por vontade proacutepria
2- Aqui haacute uma concepccedilatildeo de liberdade bastante diferente da de
Demoacutecrito pois comporta uma responsabilidade pela accedilatildeo e uma
superioridade pelo fato de ser livre ldquoEle crecirc que o infortuacutenio do saacutebio eacute
melhor que a prosperidade do insensato pois acha melhor numa accedilatildeo
humana o fracasso daquilo que eacute bem escolhido que o sucesso por
obra do acaso daquilo que eacute mal escolhidordquo
Voltando agrave anaacutelise de Marx Ao admitir esses dois momentos no conceito
de aacutetomo Epicuro introduz no domiacutenio da natureza fiacutesica a possibilidade do
acaso e da liberdade A auto-determinaccedilatildeo eacute apresentada no aacutetomo como a
capacidade deste de se recusar ao determinismo representado pela linha reta
Desta forma ldquo a existecircncia relativa com a qual o aacutetomo se enfrenta o
modo de existecircncia que este tem que negar eacute a linha reta A negaccedilatildeo imediata
deste movimento eacute outro movimento que representado por si mesmo no espaccedilo
constitui a declinaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave linha retardquo (TD 32)
10
A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx
apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de
Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua
afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de
Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo
A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de
vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros
critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que
ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No
entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de
negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda
maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua
superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas
reconhecido por Lucreacutecio
Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto
historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da
filosofia epicurista
Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela
de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza
deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a
possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na
esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute
explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a
causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de
todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por
conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)
Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no
conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A
declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No
11
entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa
natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que
Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a
forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa
antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se
compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do
conhecimento
Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da
natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para
que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de
todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os
aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a
liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o
levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar
o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a
igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se
compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria
a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)
O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas
as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto
como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas
natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos
possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de
compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso
Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto
isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o
princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a
todo o pensamento epicurista
12
Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista
Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro
satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica
Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua
existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a
filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam
representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a
independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade
do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a
ataraxiardquo (TD 34)
Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao
movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a
responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e
mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer
essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma
existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja
todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a
forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)
Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os
aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade
esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade
imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que
ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave
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consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
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estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
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realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
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6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
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fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
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tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
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de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
A declinaccedilatildeo eacute afirmada por Epicuro segundo o entendimento de Marx
apoiado em parte na anaacutelise de Lucreacutecio a quem considera o melhor inteacuterprete de
Epicuro entre os antigos como o movimento da singularidade pura em sua
afirmaccedilatildeo contra o determinismo mecanicista da natureza Usando os termos de
Lucreacutecio pode-se dizer que a declinaccedilatildeo rompe com os ldquolaccedilos da fatalidaderdquo
A hipoacutetese do movimento de declinaccedilatildeo foi objeto de criacuteticas por parte de
vaacuterios estudiosos da filosofia de Epicuro Marx observa que Ciacutecero entre outros
critica o fato de que a declinaccedilatildeo possa ocorrer sem causa e acrescenta que
ldquo para um fiacutesico natildeo pode ocorrer nada mais denegridor que istordquo (TD 39) No
entanto essa criacutetica natildeo observa que o objetivo de Epicuro era justamente o de
negar a necessidade natural uma vez que ela poderia se tornar um jugo ainda
maior sobre a liberdade do que os temores de fundo religioso A sua
superioridade reside justamente no fato de ser incausada aspecto apenas
reconhecido por Lucreacutecio
Em sua anaacutelise Marx daacute ecircnfase agrave autodeterminaccedilatildeo enquanto
historiadores a partir de Ciacutecero enfatizam o acaso como o ponto problemaacutetico da
filosofia epicurista
Haacute declaradamente em Epicuro a resistecircncia a toda ldquofatalidaderdquo seja ela
de fundo religioso ou mesmo cientiacutefico uma vez que o conhecimento da natureza
deve servir agrave libertaccedilatildeo dos temores Nesse sentido a declinaccedilatildeo surge como a
possibilidade de resguardar o espaccedilo da liberdade e da autodeterminaccedilatildeo na
esfera da proacutepria natureza A aparente gratuidade do movimento de declinaccedilatildeo eacute
explicada por Marx ldquoInquirir a causa desta determinaccedilatildeo equivale a inquirir a
causa que erige o aacutetomo em princiacutepio indagaccedilatildeo que evidentemente carece de
todo sentido para quem considera o aacutetomo como a causa de tudo e por
conseguinte como algo carente por si mesmo de causardquo (TD 35)
Ao atribuir ao aacutetomo o movimento de declinaccedilatildeo Epicuro reconhece no
conceito de aacutetomo dois momentos contraditoacuterios entre si como jaacute vimos A
declinaccedilatildeo eacute o movimento de autodeterminaccedilatildeo oriunda da forma pura No
11
entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa
natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que
Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a
forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa
antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se
compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do
conhecimento
Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da
natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para
que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de
todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os
aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a
liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o
levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar
o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a
igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se
compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria
a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)
O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas
as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto
como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas
natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos
possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de
compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso
Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto
isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o
princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a
todo o pensamento epicurista
12
Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista
Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro
satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica
Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua
existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a
filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam
representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a
independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade
do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a
ataraxiardquo (TD 34)
Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao
movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a
responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e
mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer
essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma
existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja
todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a
forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)
Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os
aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade
esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade
imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que
ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave
13
consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
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estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
15
Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
17
realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
18
6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
19
ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
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fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
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tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
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de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
entanto essa autodeterminaccedilatildeo se concretiza numa existecircncia material Eacute nessa
natureza exteriorizada que se verifica a contradiccedilatildeo com a forma pura O que
Demoacutecrito cindia o fenocircmeno como aparecircncia subjetiva e a essecircncia como a
forma pura inatingiacutevel pelos sentidos Epicuro concilia ao reconhecer essa
antinomia presente no proacuteprio conceito de aacutetomo Dessa forma pode-se
compreender as diferenccedilas entre os dois filoacutesofos no tocante agrave possibilidade do
conhecimento
Marx observa que aleacutem da introduccedilatildeo da autodeterminaccedilatildeo no campo da
natureza o movimento de declinaccedilatildeo era tido por Epicuro como necessaacuterio para
que se desse o encontro entre os aacutetomos e consequumlentemente a formaccedilatildeo de
todas as coisas De acordo com Marx ldquoEpicuro supunha que inclusive no vazio os
aacutetomos declinavam um pouco da linha reta e daiacute provinha segundo ele a
liberdade Observemos de passagem que natildeo foi esse o uacutenico motivo que o
levou a inventar o movimento da declinaccedilatildeo se valeu deste tambeacutem para explicar
o encontro dos aacutetomos pois se deu conta de que supondo que se movessem a
igual velocidade em linhas retas projetadas de cima para baixo jamais poderia se
compreender que chegassem a se encontrar e deste modo o mundo natildeo chegaria
a se produzir Era pois necessaacuterio que se desviassem da linha retardquo (TD 31-2)
O que se depreende a partir desta citaccedilatildeo eacute que a constituiccedilatildeo de todas
as coisas surge como consequumlecircncia da declinaccedilatildeo dos muitos aacutetomos portanto
como consequumlecircncia dos movimentos singulares frutos da autodeterminaccedilatildeo Mas
natildeo apenas isso uma vez que a declinaccedilatildeo expressatildeo espiritual dos aacutetomos
possibilita a repulsatildeo choque entre os aacutetomos com consequumlente formaccedilatildeo de
compostos ou natildeo entatildeo sobra uma parcela tambeacutem ao acaso
Marx chama atenccedilatildeo para o fato de que a declinaccedilatildeo natildeo eacute um aspecto
isolado da fiacutesica de Epicuro mas ao contraacuterio eacute o centro de sua filosofia eacute o
princiacutepio de afirmaccedilatildeo da consciecircncia de si singular abstrata que vai dar corpo a
todo o pensamento epicurista
12
Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista
Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro
satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica
Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua
existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a
filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam
representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a
independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade
do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a
ataraxiardquo (TD 34)
Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao
movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a
responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e
mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer
essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma
existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja
todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a
forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)
Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os
aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade
esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade
imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que
ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave
13
consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
14
estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
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realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
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6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
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fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
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tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
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- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
Com efeito o conceito de declinaccedilatildeo na fiacutesica se estende ao campo da
moral e ao ideal de vida perseguido pela filosofia epicurista
Aliaacutes natildeo se pode perder de vista que a canocircnica e a fiacutesica para Epicuro
satildeo apenas meios para a compreensatildeo da eacutetica
Marx observa que ldquodo mesmo modo que o aacutetomo se libera de sua
existecircncia relativa da linha reta abstraindo-se dela desviando-se dela toda a
filosofia epicurista se desvia do ser-aiacute restritivo onde quer que sejam
representados em sua existecircncia o conceito da singularidade abstrata a
independecircncia e a negaccedilatildeo de toda relaccedilatildeo com outra coisa Assim a finalidade
do fazer eacute a abstraccedilatildeo a repulsa da dor e de tudo que possa nos extraviar a
ataraxiardquo (TD 34)
Portanto a declinaccedilatildeo vai ganhando novos sentidos dentro da filosofia
epicurista Ela indica um momento no conceito de aacutetomo que corresponde ao
movimento da forma pura da pura autodeterminaccedilatildeo ela eacute apresentada como a
responsaacutevel pelo encontro entre os aacutetomos e consequumlente formaccedilatildeo do mundo e
mais que isso ela natildeo se limita ao domiacutenio da natureza mas pode ser relacionada
ao ideal de ataraxia conceito central da filosofia epicurista Continuando a tecer
essa relaccedilatildeo entre a declinaccedilatildeo no plano natural e o movimento de encontro entre
os homens o Marx da Tese Doutoral acrescenta que ldquoo homem soacute deixa de ser
produto da natureza quando o outro com quem se relaciona natildeo tem uma
existecircncia distinta mas sim eacute tambeacutem um homem singular ainda que natildeo seja
todavia o espiacuterito Mas para que o homem como homem se converta em seu
objeto real e singular tem que haver superado em si sua existecircncia relativa a
forccedila dos apetites e da mera naturezardquo (TD 35)
Portanto se no plano da fiacutesica a declinaccedilatildeo permite o encontro entre os
aacutetomos e a consequumlente formaccedilatildeo de todas as coisas no plano da sociabilidade
esse desviar-se refere-se agrave superaccedilatildeo dos aspectos proacuteprios agrave naturalidade
imediata do homem pelo domiacutenio dos apetites e das paixotildees Marx ainda diraacute que
ldquoa repulsatildeo eacute a primeira forma da auto-consciecircncia corresponde portanto agrave
13
consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
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estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
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Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
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realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
18
6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
21
fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
23
A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
24
Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
25
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
consciecircncia de si que se concebe como o ser imediato como o singular abstratordquo
(TD 35)
A consciecircncia de si comeccedila a emergir da filosofia de Epicuro como o
elemento central atraveacutes do qual se faz possiacutevel a liberdade dos determinismos
seja no campo da pura natureza seja no campo da sociabilidade Essa relaccedilatildeo
fica mais evidenciada se atentarmos agrave afirmaccedilatildeo de Marx de que ldquoem Epicuro
encontramos formas mais concretas da repulsatildeo no poliacutetico eacute o contrato e no
social a amizaderdquo (TD 36) O que haveria de comum a essas duas relaccedilotildees eacute que
elas satildeo instauradas pelo movimento de autodeterminaccedilatildeo dos homens singulares
satildeo portanto relaccedilotildees constituiacutedas pela vontade livre no seu movimento de
abandono do elemento natural no interior de uma concepccedilatildeo atomiacutestica na qual
os proacuteprios indiviacuteduos satildeo tidos como aacutetomos independentes
Considerando o acaso tambeacutem presente no momento da repulsatildeo isso
acarreta uma consequumlecircncia na consideraccedilatildeo de Epicuro quanto agraves relaccedilotildees
sociais que eacute o fato de que as relaccedilotildees sociais carreguem algo de fortuito de
natildeo-necessaacuterio ao contraacuterio do que sustenta a filosofia estoacuteica por exemplo
Aqui um parecircntesis enquanto para os epicuristas as relaccedilotildees sociais
carregam algo de fortuito para os estoacuteicos estas espelham uma ordem universal
necessaacuteria em relaccedilatildeo agrave qual soacute resta a aceitaccedilatildeo No trecho citado um pouco
acima quando Marx se refere agrave relaccedilatildeo entre os homens na qual estes superam o
elemento da pura naturalidade passando a reconhecer-se como consciecircncia de si
singular a primeira forma da auto-consciecircncia reconhece-se a origem dessa
tematizaccedilatildeo na Fenomenologia do espiacuterito sobretudo quando Marx afirma que
nesse momento ainda natildeo estaacute presente de forma consciente o conceito de
Espiacuterito pois o atomismo epicurista natildeo se reconhece totalmente na realidade
alienada de si Seria assim uma primeira figuraccedilatildeo da consciecircncia-de-si singular e
abstrata
Na Fenomenologia Hegel natildeo se refere ao epicurismo No entanto em
sua Liccedilotildees sobre a Histoacuteria da filosofia ele se refere agrave antiacutetese epicurismo-
14
estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
15
Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
17
realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
18
6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
20
que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
21
fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
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tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
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de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
estoicismo antiacutetese superada historicamente pelo ceticismo Maacuterio Rossi sugere
que ldquoMarx interpreta o terceiro movimento o da repulsatildeo utilizando o movimento
da dialeacutetica senhor-escravordquo o que eacute uma hipoacutetese interessante na medida em
que vocecirc teria ali a expressatildeo da consciecircncia-de-si epicurista que eacute duplicada eacute
senhora na determinaccedilatildeo formal e no entanto escrava na medida em que em sua
determinaccedilatildeo material se submete agrave falta de conceito da natureza exteriorizada e
natildeo se reconhece enquanto liberdade singular nessa alienaccedilatildeo de si
Torna-se compreensiacutevel a partir dessa primeira abordagem dos aspectos
envolvidos na hipoacutetese da declinaccedilatildeo o entusiasmo com que o Marx da eacutepoca se
dedica ao estudo de Epicuro De fato ele se refere a Epicuro como o grande
iluminista da antiguidade na medida em que procurou libertar os homens dos
temores da supersticcedilatildeo religiosa e do determinismo atraveacutes da introduccedilatildeo da
liberdade que se expressa a partir do proacuteprio campo da natureza A anaacutelise que
Marx realiza no texto de Epicuro vai pouco a pouco revelando a autoconsciecircncia
como o nuacutecleo de sua filosofia e atraveacutes de uma interpretaccedilatildeo bastante original
consegue sustentar essa autoconsciecircncia como ldquosuprema divindaderdquo (TD 18)
diante da qual nenhum determinismo eacute tolerado
No entanto a autodeterminaccedilatildeo a autoconsciecircncia natildeo eacute a uacutenica
determinaccedilatildeo presente no aacutetomo Epicuro admite uma contraditoriedade entre a
forma pura e a expressatildeo material dos aacutetomos que ele procura explicar a partir da
consideraccedilatildeo sobre as qualidades dos aacutetomos Segundo Marx ldquomediante as
qualidades o aacutetomo adquire uma existecircncia que contradiz o seu conceito
concebe-se como existecircncia alienada diferente de sua essecircncia Esta contradiccedilatildeo
eacute a que interessa fundamentalmente a Epicurordquo (TD 37)
De acordo com Marx em relaccedilatildeo a Demoacutecrito haacute divergecircncia entre os
comentadores no que se refere agrave posiccedilatildeo do filoacutesofo em relaccedilatildeo agraves qualidades
dos aacutetomos segundo alguns (Simpliacutecio e Filopono) Demoacutecrito admitiria como
qualidades dos aacutetomos apenas o tamanho e a forma Jaacute em Aristoacuteteles encontra
passagens pouco claras em relaccedilatildeo a esta questatildeo em que ora se afirma que
15
Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
16
representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
17
realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
18
6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
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fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
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tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
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de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
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Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
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portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
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- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
Demoacutecrito atribui ao aacutetomo a qualidade do peso ora se refere a outras
propriedades a forma a situaccedilatildeo e o arranjo( Metafiacutesica livro VII) natildeo se
referindo ao peso
Marx considera que a questatildeo das qualidades dos aacutetomos natildeo seja uma
questatildeo tratada por Demoacutecrito com relaccedilatildeo agrave essecircncia dos aacutetomos mesmo mas
que estas qualidades apenas interessem na medida em que permitem a
compreensatildeo das diferenccedilas dos compostos ou seja do mundo dos fenocircmenos
Jaacute Epicuro vai reconhecer qualidades nos proacuteprios aacutetomos tamanho
forma e peso Em relaccedilatildeo aos compostos de aacutetomos ele se refere agrave forma e ao
arranjo
O exame que Marx faz da forma como Epicuro afirma as qualidades dos
aacutetomos eacute uma segunda formulaccedilatildeo dialeacutetica da relaccedilatildeo jaacute tratada entre forma e
mateacuteria
Ele afirma que Epicuro ao reconhecer qualidades aos aacutetomos vai fazecirc-
lo de tal modo que atribui qualidades aos aacutetomos para negaacute-las em seguida
recuperando o aacutetomo em seu conceito uma vez que as qualidades por serem
mutaacuteveis contradizem o conceito de aacutetomo em sua imutabilidade
Assim ele reconhece o tamanho mas natildeo qualquer tamanho e sim a
negaccedilatildeo do tamanho que seria a pequenez infinita
Quanto agrave forma ele diz que Epicuro afirma as diferenccedilas de forma entre
os aacutetomos mas que estas diferenccedilas satildeo a rigor indeterminaacuteveis e mais que
isso que natildeo haacute tantas formas quanto o nuacutemero de aacutetomos
Em relaccedilatildeo ao peso Marx observa que eacute aiacute que se objetiva no interior do
aacutetomo a contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria
Os aacutetomos devem possuir peso de tal forma que justifique a sua
representaccedilatildeo material ldquoUma vez que os aacutetomos satildeo transportados ao mundo das
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representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
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realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
18
6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
21
fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
24
Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
25
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
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de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
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Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
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portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
representaccedilotildees eacute necessaacuterio que tenham pesordquo Jaacute vimos que no primeiro
capiacutetulo Marx se refere agrave queda em linha reta como a representaccedilatildeo da
existecircncia material dos aacutetomos
Mas o peso eacute uma contradiccedilatildeo no conceito de aacutetomo porque o aacutetomo eacute
uma singularidade em si enquanto que na sua representaccedilatildeo material eacute o seu
peso que eacute tido como elemento da singularidade Mas pelo peso o movimento
que eacute determinado ao aacutetomo eacute a queda em linha reta que eacute o movimento de
supressatildeo de sua singularidade
Enquanto ponto que cai todos os aacutetomos se equivalem e eacute meacuterito do
proacuteprio Epicuro afirmar que a diferenccedila entre os pesos dos aacutetomos em sua
alienaccedilatildeo na relaccedilatildeo com o vazio natildeo altera a velocidade da queda Em relaccedilatildeo
ao vazio a determinaccedilatildeo do peso se anula Tal qualidade soacute existe na
consideraccedilatildeo do conjunto de aacutetomos como diferenccedilas entre aacutetomos
Em relaccedilatildeo a si mesmo enquanto determinaccedilatildeo formal o aacutetomo se
afirma enquanto singularidade negando a determinaccedilatildeo material do peso atraveacutes
do movimento de declinaccedilatildeo
Ao final desse capiacutetulo temos que Marx considera que atraveacutes da anaacutelise
das qualidades dos aacutetomos ldquo Epicuro objetiva a contradiccedilatildeo entre essecircncia e
existecircncia inerente ao conceito de aacutetomordquo (TD 40)
Uma terceira formulaccedilatildeo dessa mesma duplicidade presente no aacutetomo
noacutes a temos no capiacutetulo III quando Marx trata dos conceitos de aacutetomo-elemento e
aacutetomo-princiacutepio Esta questatildeo eacute abordada por Marx para quem esta
diferenciaccedilatildeo se coloca em Epicuro no proacuteprio interior do conceito de aacutetomo e natildeo
pelo estabelecimento de duas coisas distintas
A contradiccedilatildeo entre existecircncia e essecircncia transparece atraveacutes das
qualidades na forma como o aacutetomo se manifesta no mundo sensiacutevel Embora o
aacutetomo com qualidades seja uma alienaccedilatildeo da essecircncia eacute aiacute que o aacutetomo se
17
realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
18
6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
21
fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
25
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
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Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
realiza no mundo ldquoCom essa passagem do mundo da essecircncia ao mundo do
fenocircmeno manifesta-se a contradiccedilatildeo contida no conceito de aacutetomo na sua mais
diaacutefana realizaccedilatildeo Pois o aacutetomo eacute enquanto seu conceito a forma absoluta e
essencial da natureza Esta forma absoluta se degrada agora ao plano da mateacuteria
absoluta do substrato carente de forma do mundo fenomecircnicordquo (TD 43)
Ateacute aqui temos a caracterizaccedilatildeo do pensamento de Epicuro ao feitio da
dialeacutetica hegeliana compartilhada por Marx naquele momento como aquele que
enuncia a contraditoriedade entre essecircncia e existecircncia enquanto princiacutepio do ser
uma vez que a localiza no interior do princiacutepio de todas as coisas - o aacutetomo
O que segundo a anaacutelise de Marx remete o fenocircmeno agrave essecircncia na
filosofia de Epicuro eacute o tempo questatildeo tratada no capiacutetulo IV
Tanto Epicuro quanto Demoacutecrito consideram que o tempo natildeo pode fazer
parte do mundo da essecircncia jaacute que este se caracteriza por princiacutepio por sua
completude e sua consequumlente imutabilidade Mas para Demoacutecrito de acordo com
Marx ldquoo tempo excluiacutedo do mundo da essecircncia eacute relegado agrave autoconsciecircncia do
sujeito filosoacutefico e nada tem a ver com o mundo mesmordquo (TD 45) O tempo natildeo
faz parte do mundo da essecircncia nem sequer do mundo do fenocircmeno mas se
encontra na autoconsciecircncia como algo semelhante a uma condiccedilatildeo da
percepccedilatildeo Para Epicuro diferentemente ldquoo tempo se converte na forma absoluta
do fenocircmenordquo (TD 45) pois considera que a composiccedilatildeo espacial dos aacutetomos eacute a
forma passiva enquanto o tempo eacute a forma ativa do fenocircmeno O tempo eacute
determinado como ldquoacidente do acidenterdquo na medida em que eacute ldquoa transformaccedilatildeo
refletida em si a mudanccedila enquanto mudanccedila Esta forma pura do mundo
fenomecircnico eacute precisamente o tempordquo(TD 45) O tempo eacute na filosofia de Epicuro
de acordo com a dissertaccedilatildeo de Marx o elemento de desvelamento da essecircncia
Uma vez que Epicuro considera a contradiccedilatildeo entre essecircncia e fenocircmeno como
constituinte do ser o fenocircmeno se apresenta no tempo como uma alienaccedilatildeo da
essecircncia Mas ldquoo tempo eacute a chama da essecircncia que devora eternamente o
fenocircmeno e lhe imprime o selo da dependecircncia e da natildeo-essencialidaderdquo (TD 45-
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6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
19
ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
20
que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
21
fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
22
a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
23
A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
24
Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
25
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
6) Eacute o tempo a marca do fenocircmeno que ao transformar-se rumo a auto-
aniquilaccedilatildeo retorna ao seu ser para si
Marx conclui que com a anaacutelise do tempo na filosofia epicurista aliada a
todos os elementos jaacute expostos que diferenciam este pensamento do de
Demoacutecrito pode-se tirar as seguintes conclusotildees ldquoEm primeiro lugar Epicuro faz
da contradiccedilatildeo entre mateacuteria e forma o caraacuteter da natureza fenomecircnica Em
segundo lugar Epicuro eacute o primeiro que concebe o fenocircmeno como fenocircmeno
quer dizer como uma alienaccedilatildeo da essecircncia que por sua vez se reafirma em sua
realidade como tal alienaccedilatildeordquo (TD 45)
A diferenccedila que eacute enfatizada por Marx entre Epicuro e Demoacutecrito eacute a de
que no segundo estatildeo separados o fenocircmeno e a essecircncia o fenocircmeno eacute tido
como uma ilusatildeo construiacuteda pelos sentidos que natildeo tem uma relaccedilatildeo necessaacuteria
com a essecircncia Assim o aacutetomo eacute pensado apenas como um substrato material e
o fenocircmeno se daacute como percepccedilatildeo derivada dos compostos de aacutetomos arranjos
exteriores aos proacuteprios aacutetomos Se o fenocircmeno se distingue radicalmente
da essecircncia Demoacutecrito estabelece entatildeo dois mundos um perceptiacutevel pelos
sentidos o da ciecircncia positiva que segundo Marx ldquolhe fornece os conteuacutedos
mas carece de verdaderdquo e outro somente penetraacutevel pela razatildeo que ldquolhe fornece
a verdade mas carece de conteuacutedosrdquo (TD 25)
Jaacute Epicuro pensa o aacutetomo em seus dois atributos como princiacutepio
essencial de todas as coisas (determinaccedilatildeo formal) e como elemento formador de
todas as coisas (determinaccedilatildeo material) Sendo assim eacute possiacutevel estabelecer
uma relaccedilatildeo de cognoscibilidade entre fenocircmeno e essecircncia vale dizer conceber
o ldquofenocircmeno como fenocircmenordquo ou seja como manifestaccedilatildeo sensiacutevel e
contraditoacuteria da essecircncia Dessa forma Epicuro pode afirmar os sentidos como
criteacuterios vaacutelidos para o mundo sensiacutevel que atraveacutes de conteuacutedos mutaacuteveis
percebem o fenocircmeno enquanto tal
Expostas aqui as caracteriacutesticas baacutesicas do atomismo epicurista
salientam-se dois aspectos enfatizados pelo estudo de Marx a apreensatildeo da
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ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
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que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
21
fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
22
a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
23
A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
24
Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
25
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
ldquoalma contraditoacuteriardquo do mundo e a emergecircncia da autoconsciecircncia como princiacutepio
de todas as coisas
O segundo aspecto eacute melhor determinado por Marx no capiacutetulo sobre os
meteoros Ateacute entatildeo a autoconsciecircncia jaacute surgia como princiacutepio formal do aacutetomo
atraveacutes do movimento de declinaccedilatildeo que significa como vimos a possibilidade
de recusar a necessidade natural expressa no princiacutepio material Epicuro introduz
a declinaccedilatildeo como um movimento incausado fruto da autodeterminaccedilatildeo dos
aacutetomos singulares A tensatildeo entre esses dois princiacutepios tambeacutem referidos pelos
termos aacutetomo-princiacutepio e aacutetomo-elemento perpassa o movimento de todas as
coisas na sua realizaccedilatildeo no mundo sensiacutevel
Eacute no entanto na teoria dos meteoros de Epicuro que Marx encontraraacute
desnudado o princiacutepio da autoconsciecircncia como o fundamento central da filosofia
epicurista
De acordo com sua anaacutelise a teoria dos meteoros eacute um capiacutetulo essencial
da fiacutesica de Epicuro no sentido de revelar a determinaccedilatildeo da autoconsciecircncia
como ldquosuprema divindaderdquo Isso porque eacute ali que Epicuro ao contrariar toda a
tradiccedilatildeo grega no que se refere aos corpos celestes o faz no propoacutesito de afirmar
a supremacia da autoconsciecircncia Vejamos segundo a tradiccedilatildeo grega os corpos
celestes seriam corpos perfeitos e incorruptiacuteveis trazendo em si a completude
proacutepria dos seres divinos Epicuro vai se colocar energicamente contra essa ideacuteia
o que a princiacutepio parece ser uma contradiccedilatildeo uma vez que o sistema dos
corpos celestes poderia ser entendido como a ldquocuacutespide do sistemardquo na medida
em que aiacute estaria resolvida a tensatildeo entre essecircncia e existecircncia Os corpos
celestes seriam entatildeo seres nos quais a essecircncia se materializaria sem
contradiccedilotildees
Uma vez que nos corpos celestes se desse a reconciliaccedilatildeo entre forma e
mateacuteria teriacuteamos no dizer de Marx natildeo mais a mateacuteria como singularidade
abstrata mas sim como singularidade concreta como universal No entanto
Epicuro recusa esse ldquocoroamentordquo de seu sistema Segundo Marx o que faz com
20
que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
21
fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
22
a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
23
A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
24
Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
25
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
que Epicuro rejeite esta condiccedilatildeo de perfeiccedilatildeo aos corpos celestes eacute que a
aceitaccedilatildeo dessa teoria levaria a uma refutaccedilatildeo da autoconsciecircncia enquanto
princiacutepio supremo A realizaccedilatildeo sensiacutevel de uma singularidade concreta significa
para Epicuro consoante a anaacutelise de Marx um perigo para a autoconsciecircncia na
medida em que esta se manifesta justamente na contradiccedilatildeo entre mateacuteria e
forma Escreve Marx ldquoNo sistema celeste a mateacuteria recebe em si a forma
assimila a singularidade e cobra assim sua independecircncia Ao chegar a este ponto
deixa de ser uma afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia abstrata No mundo do aacutetomo
como no mundo do fenocircmeno a forma lutava contra a mateacuteria uma das
determinaccedilotildees cancelava a outra e era precisamente nesta contradiccedilatildeo que a
consciecircncia singular-abstrata objetivava sua naturezardquo (TD 52)
Enquanto no mundo terrenal a autoconsciecircncia se objetiva e se manteacutem
na contradiccedilatildeo entre a forma e a mateacuteria e o movimento de declinaccedilatildeo eacute
exatamente a accedilatildeo desta autoconsciecircncia no mundo celeste a conciliaccedilatildeo que
torna completamente efetiva a forma na mateacuteria faz com que a autoconsciecircncia
singular se cancele enquanto tal e se identifique ao universal Isso equivale para
Epicuro a se perder na universalidade na medida em que a autoconsciecircncia
singular natildeo se diferencia mais da autoconsciecircncia universal Isso seria recair no
jugo do misticismo e da supersticcedilatildeo
Eacute desse jugo que Epicuro quer libertar o homem Por isso ele recusa a
tradiccedilatildeo grega que afirma a eternidade e incorruptibilidade dos corpos celestes
Reportando-se agrave carta agrave Piacutetocles Marx nos lembra as observaccedilotildees de
Epicuro acerca dos corpos celestes
Primeiramente que natildeo haacute uma relevacircncia da teoria sobre esses corpos
em relaccedilatildeo agraves outras ciecircncias visto que o objetivo de todo conhecimento eacute
proporcionar o apaziguamento do espiacuterito
Mas a teoria dos corpos celestes apresenta algumas especificidades que
justificam o fato de que possa haver mais de uma explicaccedilatildeo para o mesmo
21
fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
22
a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
23
A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
24
Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
25
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
fenocircmeno Para Epicuro isso natildeo eacute problema pode-se aceitar todas
as hipoacuteteses como razoaacuteveis desde que natildeo firam a observaccedilatildeo dos sentidos
Nesse sentido qualquer explicaccedilatildeo serve para explicar os corpos celestes sendo
que pode ser vaacutelida mais do que uma uacutenica explicaccedilatildeo desde que ao final se
alcance o apaziguamento dos temores humanos Indo aleacutem Epicuro afirma que a
abundacircncia de explicaccedilotildees eacute bem-vinda na medida em que ldquosuprime a unidade do
objetordquo Contrariamente a Aristoacuteteles os movimentos dos corpos celestes para
Epicuro satildeo instaacuteveis justamente porque natildeo estatildeo submetidos a uma ordem
necessaacuteria e superior
Para Epicuro como ldquoa eternidade dos corpos celestes perturbaria a
ataraxia da autoconsciecircncia eacute uma consequumlecircncia necessaacuteria e imperiosa que eles
natildeo sejam eternosrdquo (TD 50) Eacute necessaacuterio negar portanto uma ordem universal
que se expressasse no movimento dos astros pois o reconhecimento dessa
ordem poderia abrir caminho para o misticismo e o temor supersticioso
Portanto por estranha que pareccedila a princiacutepio a posiccedilatildeo de Epicuro a
respeito dos corpos celestes Marx a entende como uma proclamaccedilatildeo consciente
do princiacutepio de sua filosofia que eacute a autoconsciecircncia singular abstrata Eacute como se
neste momento este princiacutepio se mostrasse plenamente na teoria de Epicuro Ele
leva ateacute agraves uacuteltimas consequumlecircncias uma consciente oposiccedilatildeo da individualidade
abstrata agrave universalidade
Haacute problemas nessa teoria que Marx se apressa em demonstrar a
proacutepria possibilidade da ciecircncia se vecirc comprometida pois
ldquoSe a autoconsciecircncia singular abstrata se postula como princiacutepio absoluto
toda ciecircncia verdadeira e real estaraacute cancelada certamente jaacute que a
singularidade natildeo impera na natureza mesma das coisas rdquo (TD 53)
Se haacute no entanto dificuldades no que se refere agrave possibilidade objetiva
da ciecircncia derivadas dessa concepccedilatildeo de Epicuro o meacuterito que Marx reconhece
ao filoacutesofo eacute que ele fecha as portas para o misticismo e a supersticcedilatildeo colocando
22
a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
23
A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
24
Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
25
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
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portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
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da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
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- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
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a autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio A esse respeito Marx conclui ldquoMas
com isso se derruba tambeacutem tudo o que se comporta de modo transcendente agrave
autoconsciecircncia humana e pertence portanto ao intelecto imaginativordquo (TD 53)
Nesse ponto haacute uma referecircncia de Marx agrave relaccedilatildeo entre o epicurismo e o
estoicismo que nos remete novamente agrave Fenomenologia Marx continua na
sequumlecircncia
ldquoSe pelo contraacuterio se constituir em princiacutepio absoluto a consciecircncia de si
que apenas se conhece sob a forma de universalidade abstrata abre-se a porta
ao misticismo supersticioso e servil A prova histoacuterica do que afirmamos encontra-
se na filosofia estoacuteica A consciecircncia universal abstrata tem com efeito a
tendecircncia a se afirmar nas coisas mesmas e ela soacute se afirma negando-asrdquo
O estoicismo representa esse momento da consciecircncia de si que ao
reconhecer uma universalidade o faz dissolvendo-se nessa universalidade que soacute
eacute percebida como universalidade abstrata como pensamento Hegel afirma a
respeito
ldquoEssa consciecircncia estoacuteica eacute por isso negativa no que diz respeito agrave
relaccedilatildeo de dominaccedilatildeo e escravidatildeo Seu agir natildeo eacute o do senhor que tem sua
verdade no escravo nem o do escravo que tem sua verdade na vontade do
senhor e em seu servir mas seu agir eacute livre no trono como nas cadeias e em toda
forma de dependecircncia de seu ser aiacute singular Seu agir eacute conservar-se na
impassibilidade que continuamente se retira do movimento do ser- aiacute do atuar
como do padecer para a essencialidade simples do pensamentordquo
Contrariamente ao ideal da apatia estoacuteica da indiferenccedila que nega todo o
existente e se recolhe agrave universalidade do pensamento o ideal epicurista eacute o da
ataraxia do desvio da fatalidade e da dor pela afirmaccedilatildeo de sua singularidade
abstrata Em carta a Menequeu encontramos ldquoo saacutebio natildeo renuncia agrave vida nem
teme a cessaccedilatildeo da vida
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A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
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Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
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tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
A posiccedilatildeo de Epicuro equivale a uma proposiccedilatildeo consciente da
consciecircncia de si singular que se opotildee agrave universalidade Por isso Epicuro reserva
um espaccedilo para o fortuito e para a vontade
Concluindo
O entusiasmo de Marx pelo autor eacute compreensiacutevel na medida em
que participa de um movimento de criacutetica aos fundamentos heterocircnomos
sobretudo oriundos da religiatildeo que tem como fundamento justamente a ecircnfase na
autoconsciecircncia
Em funccedilatildeo do reconhecimento desse elemento libertaacuterio na filosofia
epicurista eacute que Marx se referiraacute a Epicuro como o ldquomaior pensador do iluminismo
gregordquo e agrave sua atomiacutestica como ldquoa ciecircncia da natureza da autoconsciecircnciardquo (TD
53)
O centramento da filosofia epicurista na ldquoautoconsciecircncia singularrdquo eacute feito
no interesse de preservar a autonomia individual De fato a posiccedilatildeo de Epicuro
ressaltada por Marx eacute de contraposiccedilatildeo agrave ideacuteia de uma universalidade
representada pelos corpos celestes como singularidades concretas o que era
compreendido como a base de toda supersticcedilatildeo e de todo temor Isto fica claro na
anaacutelise de Marx do significado da recusa epicurista em reconhecer os corpos
celestes como incorruptiacuteveis e eternos O que eacute rejeitado eacute a dissoluccedilatildeo da
consciecircncia singular pressuposta na consideraccedilatildeo tradicional sobre o mundo
celestial na medida em que esta perturbaria o ideal perseguido a ataraxia
Os limites no entanto dessa concepccedilatildeo de Epicuro satildeo indicados por
Marx em algumas passagens nas quais ele reiteradamente coloca que o princiacutepio
de que nos fala Epicuro eacute a autoconsciecircncia ldquosob a forma da singularidade
abstratardquo (TD 53) ou seja a autoconsciecircncia humana eacute concebida por Epicuro
de forma anaacuteloga agrave sua concepccedilatildeo dos aacutetomos como um atributo acabado
isolado de cada indiviacuteduo
24
Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
25
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
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- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
Esta caracterizaccedilatildeo feita por Marx nos remete agrave sua intenccedilatildeo inicial que
era fazer um estudo da filosofia heleniacutestica no sentido de apresentar os
seus momentos mais significativos o epicurismo o estoicismo e o ceticismo
como momentos que integrariam a ldquoestrutura completa da
autoconsciecircnciardquo Como tal projeto foi abandonado natildeo haacute elementos que
possam indicar com certeza o rumo pelo qual Marx encaminharia a questatildeo da
autoconsciecircncia a partir do epicurismo No entanto a indicaccedilatildeo por diversas
vezes repetida do caraacuteter da autoconsciecircncia em Epicuro traz em si a despeito
do tratamento elogioso que ele dispensa ao filoacutesofo o reconhecimento da
limitaccedilatildeo de tal conceito Ele diraacute por exemplo numa passagem a respeito da
distinccedilatildeo que Epicuro faz entre o aacutetomo-princiacutepio e o aacutetomo- mateacuteria que
ldquoenquanto o aacutetomo se concebe conforme seu puro conceito sua existecircncia eacute o
espaccedilo vazio a natureza aniquilada quando ingressa na realidade descende agrave
base material que portadora de um mundo de muacuteltiplas relaccedilotildees natildeo existe
nunca aleacutem de suas formas indiferentes e externas E esta eacute uma consequumlecircncia
necessaacuteria toda vez que o aacutetomo se pressupotildee como o abstratamente individual e
acabado e natildeo pode afirmar-se como o poder idealizante e transcendente
daquela diversidade A singularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo (TD 43-4)
Se atentarmos a este trecho temos que o entendimento do aacutetomo
enquanto singularidade abstrata soacute pode desembocar numa atitude de negaccedilatildeo
do existente decorrente do reconhecimento da contraditoriedade de sua alienaccedilatildeo
no existente diante do qual soacute resta o desvio a ataraxia Eacute a isto que ele
se refere ao dizer que a ldquosingularidade abstrata eacute a liberdade da existecircncia natildeo a
liberdade na existecircnciardquo ou seja eacute a liberdade de se abstrair da existecircncia mas
natildeo de se reconhecer como liberdade realizada na existecircncia
Nesta citaccedilatildeo reconhecemos de forma inequiacutevoca a tematizaccedilatildeo
hegeliana da relaccedilatildeo singular-universal A linguagem de Marx se aproxima
imensamente da de Hegel que afirma a propoacutesito da consciecircncia estoacuteica o que
vale no caso tambeacutem para a consciecircncia epicurista ldquoA liberdade no pensamento
25
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
tem somente o puro pensamento por sua verdade e verdade sem a
implementaccedilatildeo da vida Por isso eacute ainda soacute o conceito da liberdade natildeo a proacutepria
liberdade vivardquo
Outro ponto a se destacar na citaccedilatildeo de Marx eacute quando ele se refere ao
poder idealizante e transcendente da diversidade que natildeo eacute facultado agrave
consciecircncia de si singular abstrata que ainda natildeo alcanccedilou pelo exerciacutecio
especulativo o reconhecimento de si na diversidade ou seja que natildeo se elevou agrave
universalidade
Lembrando que para Marx nesse momento sob a influecircncia de Bauer a
auto-consciecircncia era tida como o elemento necessaacuterio e suficiente para a criacutetica e
a superaccedilatildeo dos elementos considerados natildeo-racionais da realidade social
temos que o texto da tese doutoral eacute insuficiente no sentido de indicar como
exatamente Marx se situa em relaccedilatildeo agrave essa relevacircncia atribuiacuteda agrave
autoconsciecircncia
A questatildeo eacute
De fato a escavaccedilatildeo original que ele realiza no texto de Epicuro coloca agrave
luz a autoconsciecircncia como suprema divindade Nesse sentido poderiacuteamos
concluir que Marx se coloca inequivocamente no quadro teoacuterico que afirma a
autoconsciecircncia como princiacutepio absoluto da liberdade princiacutepio que possibilitaraacute
entatildeo a autonomia humana vislumbrada por Epicuro mesmo na esfera da
natureza
No entanto observam-se no texto de Marx vaacuterias referecircncias ao caraacuteter
individual e abstrato da autoconsciecircncia epicurista A despeito do fato de Marx
indicar na anaacutelise dos meteoros a justificativa para tal consideraccedilatildeo na filosofia
epicurista qual seja a necessidade da afirmaccedilatildeo da autoconsciecircncia singular e
abstrata como forma de garantir a libertaccedilatildeo dos temores e mistificaccedilotildees religiosos
eacute o proacuteprio Marx que nos indica tambeacutem a limitaccedilatildeo reservada agrave autoconsciecircncia
26
de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
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- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
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de Epicuro que apresenta como uacutenica forma de ser o recurso do desvio e da
abstraccedilatildeo da realidade dada
Pessanha observa a este respeito que ldquoao escrever a tese sobre os
materialistas antigos Marx reconhece que a liberdade alcanccedilada no epicurismo eacute
aquela possiacutevel numa filosofia da autoconsciecircncia uma liberdade somente interior
Eacute a liberdade compatiacutevel com uma filosofia do indiviacuteduo isolado da declinaccedilatildeo do
aacutetomo - e que se amplia apenas ateacute agraves dimensotildees da solidariedade dos pequenos
grupos privilegiados pela sabedoria agraves dimensotildees da serena e prazeirosa
amizade como na confraria do Jardim de Epicuro ou do Doktorklubrdquo (PESSANHA
sd 13)
Embora nos pareccedila apressada a sua conclusatildeo a respeito dessa
questatildeo no sentido de que a posiccedilatildeo criacutetica de Marx em relaccedilatildeo agrave relevacircncia
dada pelo idealismo ativo agrave autoconsciecircncia ainda natildeo se verifica concretamente
nesse momento parece-nos correta no entanto a observaccedilatildeo de que jaacute haacute
alguma restriccedilatildeo ao conceito epicurista ainda mais se atentarmos ao fato de que
esse era um passo inicial de Marx com vistas agrave uma anaacutelise mais completa do
ldquociclo completo da autoconsciecircnciardquo representado nas escolas heleniacutesticas
Rossi afirma a fidelidade de Marx ao meacutetodo hegeliano presente em sua
tese doutoral o mais hegeliano dos escritos de Marx bem como destaca o grande
conhecimento que Marx tinha da Fenomenologia do Espiacuterito obra na qual Hegel
se refere agraves escolas heleniacutesticas como momentos da autoconsciecircncia A respeito
do que seria a posiccedilatildeo de Marx em relaccedilatildeo agrave autoconsciecircncia singular e abstrata
de Epicuro Rossi reposiciona a questatildeo da seguinte maneira
ldquoNatildeo conhecemos - como em geral eacute indispensaacutevel no que se refere a uma
construccedilatildeo hegeliana - a continuaccedilatildeo desta dialeacutetica e se Marx teria ou
natildeo intenccedilotildees de apresentar nas partes projetadas sobre a filosofia grega o
ceticismo como siacutentese do epicurismo e do estoicismo de acordo com a letra
hegeliana ou se pelo contraacuterio o tom esquerdista inicial de seu hegelianismo
reconheciacutevel por enquanto na seleccedilatildeo do tema e na apreciaccedilatildeo do iluminismo de
Epicuro o destinava a colocar diferentes soluccedilotildeesrdquo (ROSSI 1971 39)
27
Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
30
- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
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Portanto natildeo haacute mais que indicaccedilotildees a respeito da limitaccedilatildeo que Marx jaacute
encontraria no conceito epicurista de autoconsciecircncia de tal forma que seria
prematuro afirmar a partir da tese doutoral se Marx se colocaria de acordo com
a anaacutelise hegeliana que considera a autoconsciecircncia singular como um momento
inicial a ser superado por uma compreensatildeo mais abrangente da relaccedilatildeo da
singularidade com a universalidade ou se Marx enfatizando a centralidade da
autoconsciecircncia singular alinha-se ao neo-hegelianismo de esquerda no sentido
de cobrar a racionalidade que deveria estar presente na realidade entendida
como realizaccedilatildeo da universalidade ou se mais que isso pode-se antever aqui um
prenuacutencio de sua criacutetica agrave relevacircncia atribuiacuteda pelo idealismo ativo agrave
autoconsciecircncia como elemento libertaacuterio como pretende Pessanha
Se como diz Marx a autoconsciecircncia de que fala Epicuro eacute a
autoconsciecircncia singular e abstrata e se o conceito de declinaccedilatildeo tem seu
correspondente no conceito de ataraxia teriacuteamos em Epicuro que a concepccedilatildeo do
aacutetomo singular abstrato quando transportado para o mundo humano carrega
consigo tambeacutem a consideraccedilatildeo do homem como um ser abstrato cuja
autoconsciecircncia apreende o mundo social como uma exterioridade diante da qual
soacute se afirma ao negaacute-lo atraveacutes da abstraccedilatildeo que leva agrave ataraxia
Tal inferecircncia nos parece pertinente a partir da qualificaccedilatildeo da accedilatildeo da
singularidade abstrata como uma ldquo liberdade da existecircnciardquo e natildeo uma ldquo liberdade
na existecircnciardquo feita por Marx o que caracteriza perfeitamente o ideal da ataraxia
epicurista Mas como nos adverte Rossi seria prematuro afirmar tal conclusatildeo
somente a partir do texto da tese doutoral uma vez que nos falta a continuidade
que Marx teria pretendido em relaccedilatildeo agrave essa questatildeo
A esse propoacutesito encontramos alguns elementos nos estudos preparatoacuterios
que acompanham a dissertaccedilatildeo de Marx sobretudo no caderno VI Ali o autor
desenvolve o que jaacute havia anunciado na introduccedilatildeo agrave dissertaccedilatildeo a respeito do
caraacuteter subjetivo das filosofias heleniacutesticas O caraacuteter das filosofias heleniacutesticas
filosofia de tempos de crise que se segue agrave grande sistematizaccedilatildeo aristoteacutelica eacute
28
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
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- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
-
portanto de acordo com Marx a forma subjetiva com que exprime a sua oposiccedilatildeo
ao mundo A autoconsciecircncia tal como determinada por Epicuro carrega em si
essa caracteriacutestica de ser ao mesmo tempo constituinte e negadora da realidade
Na filosofia epicurista Marx encontra dessa forma o elemento subjetivo que se
opotildee de forma dialeacutetica agrave realidade na medida em que esse elemento existe
como constituinte e como negador da realidade
Ele se refere agrave eacutepoca do epicurismo como uma eacutepoca titacircnica porque eacute
uma eacutepoca infeliz de separaccedilatildeo sem conciliaccedilatildeo entre a filosofia e a realidade
Nesse contexto a uacutenica ventura eacute o fato de que esses filosofias se voltem contra a
realidade
Marx diraacute entatildeo que ldquoas filosofias epicurista e estoacuteica foram a ventura de
seu tempo assim como a mariposa noturna que busca a luz da lacircmpada
particular quando jaacute se pocircs o sol universalrdquo (TD 132)
Ao se referir a essa eacutepoca o que ele tem em vista eacute o seu proacuteprio tempo de
tal forma que ele diraacute que assim se comporta agora a ldquofilosofia hegelianardquo (e aqui
a filosofia hegeliana a que ele se refere eacute a dos neo-hegelianos que se cinde em
duas escolas interpretativas da obra de Hegel a direita e a esquerda hegeliana)
Eacute interessante considerar quanto a esse aspecto a parte que se conservou
do capiacutetulo IV da primeira parte Embora o capiacutetulo tenha como tiacutetulo ldquoDiferenccedila
geneacuterica entre os princiacutepios das filosofias da natureza de Demoacutecrito e de Epicurordquo
a parte conservada faz uma criacutetica agraves criacuteticas dirigidas agrave filosofia hegeliana e trata
da questatildeo da realizaccedilatildeo da filosofia ou em outras palavras da relaccedilatildeo entre
filosofia e mundo ou entre consciecircncia e mundo
Referindo-se agrave cisatildeo entre os disciacutepulos de Hegel ele diraacute de duas
tendecircncias que se opotildeem a liberal e a positiva ldquoa atividade da primeira (a liberal)
consiste na criacutetica isto eacute no voltar-se-para-o-exterior da filosofia a atividade da
Segunda (a positiva) eacute a tentativa de filosofar ou seja o ato de se voltar-para-si
29
da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
Professora da Pucminas Grupo de Pesquisa Marxologia Filosofia e estudos confluentes
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- MARX LEITOR DE DEMOacuteCRITO E EPICURO
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da filosofia pois concebe o defeito como sendo imanente agrave filosofia enquanto a
primeira o concebe como defeito do mundo que eacute necessaacuterio tornar filosoacuteficordquo
Esse Marx idealista neo-hegeliano de esquerda (ainda que nesse proacuteprio
texto se encontre pontos de criacutetica aos proacuteprios neo-hegelianos no que se refere agrave
sua relaccedilatildeo com Hegel) encontra em Epicuro ou no epicurismo o germe dessa
consciecircncia que deve ser elevada a juiz do mundo
Se no tempo de Epicuro rompe-se o liame entre filosofia e poliacutetica de tal
forma que o desvio epicurista possa ser transcrito na maacutexima ldquoVive ignoradordquo em
Marx essa concepccedilatildeo da consciecircncia que se retrai ao jardim eacute apenas germe de
uma consciecircncia ativa que vai do jardim ao mundo Esse movimento marxiano se
torna mais claro nos artigos para a Gazeta renana nos quais ele exerce o
princiacutepio presente em sua tese de que ldquoeacute a criacutetica que mede a existecircncia singular
da essecircncia a realidade efetiva da ideacuteiardquo
[1] Professora do departamento de filosofia da Pucminas Doutoranda em Filosofia pela UFMG -
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