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  • 7/23/2019 Mario Losano - Direito e Geografia o Espaco Do Direito e o Mundo Da Geografia - Trad. a. Flores - Rev. Direito Just

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    Os contedos deste peridico de acesso aberto esto licenciados sob os t ermos da Licena

    Creative Commons Atribuio-UsoNoComercial-ObrasDerivadasProibidas 3.0 Unported.

    Direito & Justiav. 40, n. 1, p. 84-93, jan./jun. 2014

    Diit ggaa:

    pa iit mun a ggaa1

    Law and geography: the laws space and the world of the geography

    Mario Giuseppe Losano2

    Professor emrito de Filosoa do Direito na Universidade do Piemonte Oriental Amedeo Avogadro (Itlia)

    Tau:

    Alfredo de J. Flores(PPGDir UFRGS)

    RESUMO: O direito tende ao isolamento, como possvel ver no positivismo radical de Kelsen ao explicar o direito atravs

    do direito, e rejeitar qualquer forma de investigao interdisciplinar. Pelo contrrio, o direito precisa interagir com outroscampos cientcos e, portanto, o presente texto traa um amplo panorama da interao entre direito e geograa. O DireitoPblico, por exemplo, precisa da geograa a m de denir tanto as fronteiras externas de um Estado em relao a outrosEstados, e as fronteiras internas de regies, provncias, etc. Direito, geograa e poltica desempenharam um papel importantedurante as ditaduras europeias do sculo XX: Geopoltica no era apenas um objeto de pesquisa cultural, mas tambmuma justicao relevante da conquista militar do espao vital. Na mesma poca, em paralelo com a Geopoltica, umanova disciplina foi criada Geojurisprudncia, mas com um sucesso muito menor. Aps a Segunda Guerra Mundial,a geopoltica estava de fato abandonada, sendo considerada um ingrediente ideolgico das ditaduras e substituda peloestudo das relaes internacionais: outro nome para quase o mesmo assunto. Hoje, o estigma gerado pela ditadura estsuperado, e a geopoltica retorna como uma disciplina cientca. Um dos motivos desse renascimento se deve ao fato deque a globalizao mudou a percepo do espao tambm no mundo jurdico. As fronteiras dos Estados no so maisrelevantes para as empresas multinacionais, Internet, satlites, ecologia, problemas atmicos ou poluio, etc. A tecnologiaespacial transformou o espao areo em um lugar semelhante ao espao da Terra com implicaes econmicas e militaresgigantescas. No campo legal, as empresas multinacionais esto elaborando regras supraestatais o chamadosoft law comuma forte, embora no estatal, fora vinculante. O conito entre a globalizao e o tradicional, geogracamente delimitadoDireito Estatal, uma das causas da atual crise econmica mundial. Por isso, abre-se a discusso sobre a necessidade de sevoltar s normas jurdicas originadas e territorialmente vinculadas ao Estado, e tambm para re-inventar uma limitao dosoft lawcorporativo, apesar de ser gerado pelo Estado por meio do hard law.Palavras-chave: Fronteiras; Geopoltica; Globalizao; Direito Pblico; Soft Law.

    ABSTRACT: Law tends to isolation, as can be seen in Kelsens radical positivism explaining law through law, and rejectingany form of interdisciplinary research. On the contrary, law needs to interact with other scientic elds and therefore thepresent text traces a broad overview of the interaction between law and geography. Public Law, for instance, needs geographyin order to dene both the outside borders of a State in comparison with other States, and the internal borders of regions,provinces etc. Law, geography and politics played a seminal role during the European dictatorships of the 20thcentury:Geopolitics was not only a subject of cultural research, but also a relevant justication of the military conquest of vitalspace. In the same era, paralleling with Geopolitics a new discipline was created Geo-jurisprudence, but with a far

    lesser success. After World-War 2 geopolitics was de facto abandoned, being considered an ideological ingredient of thedictatorships, and substituted by the study of international relations: another name for almost the same subject. Todaythe dictatorship-originated stigma is overruled and geopolitics comes back as a scientic discipline. One of the reasons ofthis renaissance is due to the fact that globalization has changed the space perception also in the legal world. State bordersare not any more relevant for multinational enterprises, Internet, satellites, ecology, atomic or pollution problems etc. Thespace technology transformed the heaven space in a place similar to the earth space with gigantic economical and militaryimplications. In the legal eld, the multinational enterprises are elaborating over-statual rules the so called soft law witha strong, although non-statual binding force. The conict between globalization and traditional, geographically delimitatedState law is one of the causes of the present economical world crisis. Therefore it opens the discussion on the need of comingback to State originated and territorially vinculated legal norms, also to re-invent a limitation of the corporate soft lawthough a State-generated hard law.Keywords:Borders; Geopolitics; Globalization; Public Law; Soft Law.

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    PREMISSA

    Trata-se de texto que apresentei no dia 28 dejaneiro de 2010 por ocasio de recebimento de ttulode Doutor honoris causa por parte da Faculdade deDireito da Universidade Carlos III de Madrid. Naquelemomento, convidei os presentes a percorrer comigo o

    itinerrio que vincula o direito geograa, buscandouma resposta ao quesito sobre como adaptar o direitoatual, nascido dentro dos limites do Estado nacionaloitocentesco, a um mundo sem fronteiras, tecnolgicoe globalizado. J as ditaduras europeias falavam degeojurisprudncia; hoje se fala de geo-direito e para o futuro so anunciados inquietantes cenrios:qual seja, a substituio do direito rgido (produto deum Estado democrtico) por um direito malevel (softlaw, resultante das empresas, que por sua natureza soautocrticas, e das organizaes multinacionais, que no

    so algo melhor). Antecipo a minha concluso: tenhopor necessrio o retorno a um direito rgido tambmpara empresas multinacionais; sou favorvel a um hardlawestatal ou supranacional (mas democrtico), e noa umsoft lawempresarial.

    As severas previses para o futuro, com que seconclui o ltimo pargrafo, foram formuladas no anode 2009 e, naquele ento, poderiam talvez parecerexcessivas: infelizmente, o colapso econmico de 2011demonstra que aquelas consideraes eram ditadas nodesde um infundado pessimismo, mas desde um sadiorealismo.

    1 A BAIXA INTERDISCIPLINARIDADEDO DIREITO

    O direito opera no mundo fsico, ou seja, naquiloque os gegrafos chamam de espao; contudo, tendea tom-lo em considerao o menos possvel. O direito,sustentam os juristas, se ocupa somente das relaesentre pessoas, como se as pessoas no estivessem comos ps no cho, ou seja, no espao.

    De fato, o direito no pode esquivar-se de ocupar-se

    do espao geogrco, seja no interior do Estado-nao,seja nas relaes entre os Estados, seja, hoje, no aindano delimitado espao csmico. O exemplo talvezmais clssico de amlgama entre direito e espao sejao Tratado de Tordesilhas de 1494, que dividia entreEspanha e Portugal o mundo em parte ento conhecido.Curioso documento sobre as relaes entre direito e es-pao: uma pessoa que no era o proprietrio o Papa atribua a dois Estados soberanos o direito de proprie-dade sobre um bem indeterminado, isto , sobre terrasque eram em parte conhecidas e em parte a descobrir. Odireito, como bem se v, no tinha em conta a geograa.

    No sc. XIX, a formao dos Estados nacionaiseuropeus pode ser lida como uma verdadeira e prpriaepopeia geogrca; antes: geopoltica. Discutia-sese a Alemanha deveria tornar-se um Estado unitrio,segundo um modelo gro-deutsch (ou seja, com-preendendo tanto a Prssia como as monarquiasdanubianas da ustria e da Baviera) ou klein-deutsch

    (ou seja, sem a ustria e sob o comando da Prssia).Nesta discusso, falava-se de religio, de tradies, deeconomia, mas no de geograa.

    Na Itlia, o processo de unicao da pennsulaexigia a soluo de problemas territoriais e institucionais:monarquia ou repblica? Estado centralizado oufederao? As montanhas e o Mediterrneo parecemdenir melhor as fronteiras da Itlia que as dos seteEstados oitocentistas. O historiador ingls DennisMack Smith abre o seu livro sobre a Itlia com estaconstatao: pois com a geograa que deve comear

    a histria italiana. [...] As montanhas no podem serremovidas, nem pela f3.Mas deixemos esses exemplos para ver de que

    modo a tradicional relao entre direito e espao seencontra hoje em crise, como consequncia de doisfenmenos que esto colocando em crise o Estadonacional: a multiplicao de estruturas supranacionaise a globalizao econmica.

    2 A GEOGRAFIA NO DIREITO PBLICO

    Antes de tudo, delimitemos as noes em uso daparte dos juristas recorrendo s clssicas enciclopdiasjurdicas. No incio do sc. XX, uma voz dedicada Soberania e outra ao Territrio do Estado; contudo,no se fala de Espao. Depois de 1950, dedicam-se vozes ao Territrio do Estado e Soberania;somente a armao da aeronutica impe introduzir avoz Sobrevoo do territrio; por m, com a competioaeroespacial, surgem as vozes Espao areo eEspao extraterrestre. Uma outra enciclopdia falade Territrio do Estado, de Territorialidade e deEspao areo. Para encontrar alguma voz geogrca,

    preciso abandonar as enciclopdias jurdicas e passars polticas; no Staatslexikon se encontram tantoGeographie como Geopolitik: conceito, este lti-mo, sobre o qual voltarei mais adiante, pois estcarregado de histria e de perigos.

    Examinemos agora a relao clssica entre direitoe geograa, limitando-nos aqui ao Direito pblico. ODireito administrativo, no interior de um particularEstado, determina as suas fronteiras internas entreregies e provncias. Mas os polticos e os juristasno sentiram quase nunca a necessidade de escutar oparecer dos gegrafos.

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    No Direito constitucional, a noo de territrio essencial para denir um Estado, tanto em si comotambm com respeito aos outros Estados: juridicamente,no concebvel um Estado sem territrio (como noo seria sem populao ou sem soberania; mas veremosque hoje essa construo jurdica apresenta algumasbrechas). Ademais, a delimitao recproca dos terri-

    trios estatais d origem aos limites, sfronteiras, umdos conceitos fundamentais da geopoltica clssica.

    No Direito internacional, esses limites ou fron-teiras nacionais so objeto de tratados e de rene-gociaes, sobretudo como consequncia de umaguerra. As fronteiras podem ser modicadas porconquista (o Tratado de Versalhes, em 1919, modicavaas fronteiras de quase toda a Europa centro-oriental)ou por aquisio. Por exemplo, os Estados Unidosadquiriram o Alaska dos russos no dia 30 de marode 1867 por 7,2 milhes de dlares. Os Estados

    Unidos conseguiram assim a excluso da Rssia docontinente americano; reforaram a Doutrina Monroe(Amrica para os americanos); e, ademais, com oprolongamento de sua prpria soberania at as ilhasAleutianas, os EUA criaram o fundamento para suaquase-supremacia martima no Pacco setentrional.Quase-supremacia que, num intervalo de tempo,tornou-se em supremacia de todo o Pacco: e oPacco, faz uma dcada, substituiu ao Atlntico comorea estratgico-econmica.

    Antes de deixar estas consideraes gerais sobreas relaes entre direito e espao geogrco, necessrio um alerta contra o nosso quase inevitveleurocentrismo.

    A concepo europeia de espao jurdico estvinculada s fronteiras nacionais, que circunscrevema soberania do Estado. Desde essa nossa viso dasoberania do Estado, derivam-se duas consequncias.

    A primeira consequncia se refere ao fato deque a soberania do Estado nacional foi vista como aprincipal fonte das guerras. Contudo, depois das duasguerras mundiais na Europa, os Grandes imprios sefragmentaram em pequenos Estados: e isso aumentou

    a extenso das fronteiras e, portanto, as causas deconito. Viu-se isso depois da queda dos Grandesimprios em 1919, com a fragmentao do ImprioAustro-hngaro e do Imprio Otomano; viu-se de novodepois da queda do ltimo imprio, ou seja, aqueleEstado supranacional que foi a Unio Sovitica, com aproliferao de Estados menores na rea ex-soviticae, sobretudo, nos Blcs. O federalismo terico, oEstado mundial, a civitas maxima e, em concreto,a cinquentenria tentativa de federao europeia apresentam-se como remdios para a periculosidadedas fronteiras nacionais.

    A segunda consequncia tem relao com o fatode que, em nossa viso ocidental, as pessoas que seencontram dentro de um certo Estado esto sujeitasao direito interno desse Estado. Em outras palavras,o direito do Estado se aplica a quem se encontra noterritrio desse Estado. Essa coincidncia entre espaogeogrco e espao jurdico parece bvia para ns

    europeus; mas no necessariamente assim.A concepo islmica do espao jurdico est ligada

    f da pessoa, independentemente de sua pertena aum Estado nacional ou de sua presena no territriodeste. Todo crente islmico est sujeito ao direitoislmico, onde quer que se encontre geogracamente;alm disso, ao encontrar-se geogracamente dentrode um certo Estado, estar sujeito tambmao direitodesse Estado. Esse pluralismo jurdico gera situaesjurdico-geogrcas incompatveis com nossa visoocidental, mas normais num contexto islmico.

    Basta recordar o exemplo da condenao mortede Salman Rushdie por seus Versos satnicos. UmAiatol iraniano decreta uma fatwa que condena morte um indiano, cidado ingls, que vive na Gr-Bretanha, onde cometeu o delito/pecado de escreverum livro blasfemo. Essa condenao bate de frentecontra todos os nossos princpios jurdicos ocidentais(baseados na concepo territorialdo direito), mas ,por outro lado, uma consequncia direta da concepojurdica islmica (baseada na concepo da sujeiopessoalao direito). Rushdie, como islmico, est sujeitoao direito islmico independentemente do lugar em quese encontre: para o Ocidente, uma situao aberrante,porque conduz ao conito entre dois ordenamentos;para o Isl, normal, porque o direito islmico deorigem divina e, por conseguinte, superior a qualquerordenamento humano.

    As duas concepes jurdicas a ocidental e aislmica, a territorial e a pessoal so inconciliveis.Os mal-entendidos nascem do fato de que os europeuspensam o Estado, a soberania e as fronteiras segundoo seu modelo, enquanto que os islmicos o fazem deacordo com o seu.

    Entretanto, antes de rejeitar a concepo islmicado direito, necessrio recordar que tambm noOcidente estamos nos separando de uma conceporigorosamente territorial do direito. Basta pensarna cada vez mais frequente presena de normas queatribuemjurisdio universala um Estado particular.Um promotor pblico belga, por exemplo, pode abrirum procedimento contra uma pessoa que tenha violadoos direitos humanos na sia ou na Amrica do Sul. Oproblema , pois, a aplicao desta norma individual:deve-se voltar ao princpio da presena do acusado noespao geogrco do Estado de onde emana a denncia.

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    Isso no signica que os direitos ocidentais estose islamizando; signica somente que os direitosocidentais esto se afastando do princpio da rgidaterritorialidade na aplicao do direito. E precisamentea esse tema que retorno aps o excurso islmico.

    3 ESPAO, ESPAO VITAL,GRANDE ESPAO

    O espao geogrco um elemento essencial paradeterminar o conceito de Estado. Contudo, enquantoque o espao geogrco estvel salvo nos grandesmovimentos geolgicos o espao estatal, ou seja, asua fronteira, est em contnuo movimento, seja emvista de acordos paccos, seja por enfrentamentosblicos com outros Estados. Ademais, ainda que asfronteiras fsicas do Estado permaneam invariveis, possvel, entretanto, que mude o que o Estado pode

    fazer dentro de seus limites: com a introduo doEuro, por exemplo, os Estados da Unio Europeia jno podem exercitar a sua prpria poltica monetriadentro dos limites nacionais; ou ainda, com os tratadosde direito penal universal, o Estado nacional estende asua jurisdio a todo o mundo.

    Fiquemos agora na mutao das fronteiras nacio-nais. Pode-se fazer o registro das fronteiras tal comoso agora: a geograa poltica descreve assim, porexemplo, os limites estatais da Europa. Mas um polticopode desejar a expanso territorial do prprio Estado:seu projeto se apresentar ento como uma poltica dageograa, como uma geopoltica, ou seja, como umaproposta de modicao de fronteiras por meio depactos polticos ou, eventualmente, tambm com aqueleprosseguimento da poltica por outros meios, que aguerra. A geograa poltica esttica; a geopoltica di-nmica. A geograa poltica descreve os limites como so;a geopoltica descreve os limites como deveriam ser.

    Pode ocorrer que uma elite poltica, pelas maisvariadas razes, no esteja satisfeita com suas prpriasfronteiras nacionais. Ento se mobilizar para modic-las de maneira pacca ou violenta. Essa presso para

    modicar (em vantagem prpria) as fronteiras buscafrequentemente valer-se de argumentos apresentadoscomo cientcos: e a cincia a que se apela ageograa. Por isso, o gegrafo francs Yves Lacosteintitulou a um de seus livros de A geograa, serve

    primeiro para fazer a guerra4. Para mudar a geograapoltica de um continente, recorre-se assim a um usopoltico da geograa, a uma poltica da geograa, auma geopoltica (cujo m ltimo uma modicaotambm jurdica das fronteiras).

    Entre o m do sc. XIX e incio do sc. XX, estapoltica da geograa foi organizada como cincia: a

    Geopoltica. Nela, a concepo do espao estatal vem aser enriquecida com um perigoso conceito: o espao setransformou em vital. Os acontecimentos das ditaduraseuropeias demonstraram que o uso poltico da teoria doespao vital tem consequncias mortais.

    Inicialmente, a noo de espao vital era cientca etinha a sua origem na togeograa e na zoogeograa. De

    fato, explicam os gegrafos e os bilogos, que todo servivo planta, animal ou ser humano tem necessidadede um mnimo de espao que lhe permita sobreviver. Osproblemas comeam, porm, quando o espao vitalse une concepo darwinista da luta pela vida: o serque se encontra num espao no-vital deve conquistaro espao vital ainda que seja com a luta, ou seja, coma violncia5. Carl Schmitt teorizou exemplarmenteessa concepo agressiva do espao6. Se, pois, comoocorreu na Alemanha nacional-socialista ao espaovital darwinisticamente entendido, acrescenta-se a

    concepo de que essa luta pela vida conduzida emnome da armao de uma raa superior, chega-se saberraes que caracterizaram as guerras de conquistaem torno da metade do sc. XX.

    Depois da Primeira Guerra Mundial, a originriaconcepo do espao vital foi recebida por umaAlemanha dessangrada por causa das reparaesblicas, espoliada de seus territrios minerais e privadade suas colnias. As mutilaes provocadas peloTratado de Versalhes lhe haviam retirado o espaovital necessrio para uma grande potncia. E assim,a cincia do espao vital se transformou numageopoltica a servio de uma poltica de expanso.

    O drama vem porm com o advento do nacional-socialismo ao poder, o qual decidiu reconquistarmediante a guerra o espao vital que faltava a seupovo. Mas aqui entrou em jogo o elemento racial,ignorado pela geopoltica clssica: aquele povo embusca de seu espao vital no era um povo qualquer:era umHerrenvolk, uma raa superior.

    O passo sucessivo foi organizar o espao vitalconquistado em Grandes Espaos, quase precursores(s que antidemocrticos) das formaes supraestatais

    hodiernas. O grande espao alemo compreendiatambm toda a URSS; aquele japons se estendia atCingapura; o italiano se dirigia frica. intil falardisso agora: o eplogo da teoria dos Grandes Espaosj foi escrito pela histria.

    4 UMA CINCIA ESQUECIDA:A GEOJURISPRUDNCIA

    A sorte da geopoltica no ambiente poltico,militar e acadmico em que se movia Karl Haushoferinduziu em 1928 o jovem jurista Manfred Langshans-

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    Ratzeburg a elaborar uma geojurisprudncia, a saber,uma cincia que, para o direito, queria ser anloga aaquilo que a geopoltica era para a geograa7.

    Seu manual de geojurisprudncia foi publicadonos cadernos que acompanhavam a revista Geopolitikde Haushofer. Ali se constatava que j era o momentode pensar tambm na colaborao entre a geograa e

    o direito. A geojurisprudncia que nasce desta fusointerdisciplinar denida como o ramo da cinciajurdica que busca explicar ou ilustrar os resultadosda investigao jurdica mediante um tratamentogeogrco e cartogrco (p. 09). A cartograa sepresta de modo especial a ilustrar o mbito de validadeespacial dos fenmenos jurdicos (p. 10).

    Para Langhans, a geojurisprudncia uma dis-ciplina auxiliar do direito e, como tal, faz parte dodireito, j que este ltimo que deve determinar os seusobjetivos. Se o ponto de partida da geojurisprudncia

    o direito, ento possvel identicar algumas subseesdesta em funo das clssicas subdivises do direito.Em particular, o Direito pblico geogrco remete

    diretamente geopoltica e a seus autores: aqui se citaantes de tudo aos pais da geopoltica, Ratzel e Kjelln,junto com os juspublicistas que haviam demonstradomaior abertura para os temas geogrcos. J Ratzel con-siderava que para muitos juspublicistas, como tambmpara muitos historiadores, o Estado est suspenso noar; para ele, entretanto, o Estado estava vinculado aosolo e esta sua concepo, continuada por Haushofer,suscitou crticas e promoveu novas investigaes.

    Entre as crticas, contam-se as da escola francesa eas da pequena minoria guiada por Hans Kelsen, queconsidera o territrio como elemento fsico irrelevantedesde o ponto de vista jurdico; contudo, a concepodo Estado que est na base de nossas asseres precisaLanghans-Ratzeburg situa-se no extremo oposto comrespeito da escola de Kelsen (p. 26).

    Em outros termos, mais que ao formalismojurdico, a geojurisprudncia preferia apelar ao juristaque sustentava que precisamente em nossa poca, osproblemas da geograa poltica e da geopoltica so de

    grande importncia para a doutrina do Estado: assim osustentava Otto Koellreutter, destinado a converter-seem um dos juristas nacional-socialistas mais radicais.Tambm a geojurisprudncia tem portanto relao comos juristas: e que juristas! Os terrveis juristas de IngoMller8.

    A geojurisprudncia teve uma sorte limitada nosanos das ditaduras europeias. Foi criticada tambmpelos juristas coevos. Por m, terminou sendo es-quecida por completo: e suponho que a evocao quefao hoje seja a primeira desde o nal da SegundaGuerra Mundial.

    5 DO MATERIAL AO IMATERIAL:O GEO-DIREITO

    A armao da globalizao est pondo em tela,entre os juristas, a concepo tradicional do espao.J se viu que o espao foi considerado como o suportefsico do ordenamento jurdico: de fato, o limite

    espacial do Estado (a fronteira) assinalava tambm olimite da eccia de seu ordenamento jurdico. At queponto pode adaptar-se esta doutrina jurdica tradicionalao mundo hodierno, em cujos limites espaciais no somais rigidamente circunscritos?

    Uma resposta a essa pergunta sobre a relao entredireito e espao foi proposta em 2001 num ensaio deNatalino Irti, que aqui no possvel analisar 9: nelese examinavam as relaes entre direito, economia epoltica, afrontando neste contexto tambm o problemados direitos humanos.

    A noo de geo-direito no vem explicitamentedenida, mas se extrai do contexto que delineia asrelaes entre o espao e o direito. O prexo geoindica o espao em que se estende a atividade estatalou econmica (mas no o ambiente), enquanto que odireito em singular entendido na sua totalidade,isto , como ordenamento jurdico. Radical portantoa diferena do geo-direito de Irti com respeito geojurisprudncia de Langhans: esta ltima se apresentacomo uma cincia auxiliar de um direito positivo emparticular ou de grupos de direitos positivos, enquantoque o geo-direito de Irti se apresenta como umateoria geral do direito (entendido este ltimo comoordenamento jurdico global).

    Dos grandes espaos de Schmitt se passa assimaos novos espaos determinados pela globalizao(e, portanto, pela desterritorializao) da economia.

    Os dois autores at aqui examinados ilustraramas relaes entre espao e direito desde especcospontos de vista: a geojurisprudncia de Langhansest vinculada aos conceitos nacional-socialistas deespao vital e de Grandes Espaos; o geo-direito deNatalino Irti est vinculado aos conceitos neoliberais

    da globalizao, sobretudo a econmica.Agora necessrio passar destes dois autoresexemplares a consideraes mais gerais. Estas ltimasdevem reduzir-se a alguns acenos, porque o debatesobre o direito, o espao e a globalizao j estocupando uma biblioteca inteira.

    6 EM BUSCA DO ESPAO PERDIDO

    Na segunda metade do sc. XX, a geopoltica ea geojurisprudncia, como seu ramo menor, foramexcludas do debate cientco por duas razes. De

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    um lado, a geopoltica era vista como a justicaoideolgica das guerras de agresso nazi-fascistas,e era percebida, portanto, como uma disciplinaideologicamente comprometida. De outro lado, como m da Segunda Guerra Mundial, as fronteirasterritoriais (melhor dito, geopolticas em seusentido neutral original) haviam sido substitudas

    pelas fronteiras ideolgicas entre liberalismo e comu-nismo.

    Hoje, a redescoberta do espao geogrco estconectada ao m daquele mundo bipolar e globalizaoeconmica: e, visto que o direito inuenciado pelaeconomia, e este, por sua vez, plasma a economia, nodebate jurdico, o espao volta ao primeiro plano e emtermos novos.

    Dito brevemente: o m da dicotomia ideolgicaentre liberalismo e comunismo, prprio da GuerraFria, e o incio da globalizao econmica, prpria do

    neoliberalismo, levaram os juristas a constatar que oespao do direito de hoje j no mais o espao dodireito de um sculo atrs.

    Os mapas geojurdicos voltaram a ser utilizados. Em1992, veio luz umAtlas de direito privadocomparadoeditado por Francesco Galgano. Esto se multiplicandoos atlas histricos que apresentam tambm muitosmapas geo-histricos: e no esqueamos que JaimeVicens Vives havia rebatizado como geo-histriaaquela geopoltica que tinha praticado at 1950.Desde os anos noventa, multiplicam-se os estudoscom o prexo geo- em mbitos at ento raros: oslsofos Massimo Cacciari e Gilles Deleuze afrontama geolosoa. Esboa-se no s uma geolosoa dodireito, seno tambm uma geolosoa do mar e umada paisagem. Em 2009, a revista Limes publicandoum nmero dedicado ao Vaticano como potnciamundial, inaugurou, de fato, uma geoteologia ou umateopoltica.

    Entretanto, entre os estudiosos, so, sobretudo,os juristas aqueles que parecem andar em busca doespao perdido, porque a globalizao fez saltaras fronteiras nacionais, as quais, para os juristas,

    constituam um limite, mas tambm uma certeza. Nosnovos livros circulam frmulas aterradoras para umjurista tradicional. O direito se apresenta agora comoum direito global, mas sem Estado: Direito globalsem Estado como se intitula um livro de Teubner. Ogrande volume alemo, Espao e Direito, redene anoo de espao em quase todos os setores jurdicos.Outros autores falam de direito sem fronteiras, deespao jurdico global, de retirada do Estado, eassim sucessivamente at as leges prter legem,formulao que leva desesperao qualquerjuspositivista ortodoxo.

    O elenco dos juristas em busca do espaoperdido aumenta dia a dia. Pode-se tentar traar umahistria desta recherche10 desde os temas tericosmais gerais at aqueles jurdicos mais especcos partindo da diferena entre o liberalismo de Hayek e oneoliberalismo da Escola de Chicago, para aprofundardepois a relao entre democracia e direito na ps-

    modernidade, tal como aparece na polmica jurdico-poltica entre os herdeiros da Escola de Frankfurt,Franz von Neumann e Jrgen Habermas. Enm, nombito mais estritamente jurdico, engrossam-se osescritos em que os especialistas de particulares setoresdo direito positivo se interrogam sobre as novas regrasque a mundializao introduziu em cada setor jurdico.

    Entre as inumerveis contribuies recentes, re-cordo somente que, em 2004, no congresso da IVR11

    em Granada, no poucos juristas voltaram aotema; tanto foi assim que suas contribuies foram

    compiladas depois num nico volume. E cada um dostextos citados reenviava a uma bibliograa to copiosacomo pertinente.

    Ante essa imponente massa bibliogrca, limitar-me-ei a indicar os temas que atualmente me parecemmais cruciais12.

    7 A DILATAO DO ESPAO: DO ESPAOTERRESTRE AO ESPAO CELESTE

    O espao estatal o antigo territrio do Estado est hoje superado, no somente pelas regras de origemno-estatal (o assim chamado soft law, entendido nosentido mais lato), seno tambm pelas exignciasgeopolticas de natureza energtica ou militar.

    A geopoltica do petrleo est redesenhando novasalianas e novos conitos territoriais: nestes, os discursosdo poder ideolgico ou poltico se entrecruzam comas presses e as regras das companhias petrolferas.A previsvel insucincia de alimentos est levandoa China a adquirir terras na frica. A crise da guaconduz a tenses entre Estados nacionais quando umdestes constri diques sobre rios, bloqueando assim

    a gua para outros Estados; mas, ao mesmo tempo,os lobbiese osoft lawdas multinacionais de bebidasesto empurrando em direo a uma privatizao dagua: um bem do mercado seguro e inexaurvel. Todasestas presses visam restringir sempre mais o mbitodo direito de origem estatal: e se considera direitotambm o direito produzido por rgos supraestatais,mas democrticos, isto , nascidos de eleies demo-crticas.

    As relaes entre direito nacional e regrassupraestatais se esto fazendo sempre mais uidas ouassimtricas: considere-se, por exemplo, a partio da

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    Antrtida e o uso do espao extraterrestre. A Antrtidaest, de fato, subdividida em esferas de inuncia devrios Estados, enquanto que, desde 1959, o Tratadoda Antrtida a declara patrimnio da humanidade e,por isso, subtrada das soberanias nacionais; setedestas, contudo, mantm pretenses territoriais sobrealguma de suas pores. O espao extraterrestre

    desde faz tempo objeto de uma astropoltica e de umaregulamentao jurdica, porque j se converteu numarea de explorao econmica e de interesse militar.

    Em suma, a poltica de cada Estado j se projetapara alm das prprias fronteiras nacionais, ao menosna mesma medida em que se desempenha no interiordestas. Abre-se assim o dilema de se estas atividadesfora do espao estatal devem abandonar-se s regrasdas entidades supraestatais (empresas multinacionais,organismos vrios), ou se tambm a poltica do Estado,mais alm do prprio territrio, deve fundar-se em

    normas jurdicas tradicionais por exemplo, de direitointernacional pblico para no gerar tenses e nodegenerar em conitos militares.

    8 UM RETORNO AO DIREITO ESTATALPARA EVITAR NOVAS CATSTROFES?

    A concepo dominante entre os juristas reconhececomo direito positivo somente as normas que soproduzidas pelo rgo estatal delegado para tanto, ouquando muito as regras externas a este ordenamento,contanto que explicitamente demandadas por este: porexemplo, os usos comerciais. Fora deste mbito, nose fala de direito (em sentido tcnico), mas sim deregras, costumes, estatutos internos de empresas ou deorganizaes internacionais ou no governamentais, eassim por diante. Entretanto, para o jurista, s o direitopositivo pode denir-se como direito: para ele, a pedrade toque o shibboleth13 a justiciabilidadede uma norma, ou seja, o fato de que o cidado possapretender que um tribunal lhe reconhea um direito seufundado nesta norma.

    O tradicional direito estatal (estruturado hierar-

    quicamente desde a Constituio at a sentena) seapresenta como insuciente. De fato, como constatavaTeubner em 1997, a globalizao rompe este marco14,porque a economia globalizada est pressionando paraum direito global que no tenha legislao15, isto ,que impe abandonar o modelo hierrquico (a pirmidenormativa kelseniana) por uma norma heterrquica16,nascida, pois, na sociedade, na periferia do sistemajurdico17, num processo de produo de regras porgovernos privados18,19: frase decididamente alarmanteno somente para os juristas, seno tambm para osdefensores da democracia.

    Na esteira desta concepo, a lex mercatoriainfringe o insuportvel monoplio do Estado nacriao do direito20; toda empresa supranacionalproduz regras que so internas para a empresa, mas quetranscendem as fronteiras nacionais; por conseguinte,cada empresa constitui um ordenamento jurdico21:O Estado aparece, com efeito, como uma instituio

    subsidiria; o primeiro que surge no ordenamentojurdico positivo do Estado liberal so os direitos depropriedade e a liberdade contratual22,23. Neste ponto,aquele que tem a propriedade que estabelece o assimchamado direito extraestatal. Seria necessrio, emdenitivo, aceitar um sistema pluralista de normas, emque um dos subsistemas seria o direito positivo estatal.Um deles, repito. E sequer o mais importante.

    Anlises anlogas tm por objeto os processos que,por sua prpria natureza, no tomam em consideraoas fronteiras nacionais: o controle do clima, a difuso

    das telecomunicaes, os perigos da energia atmica, agesto da Internet, os casos de insolvncia internacional,as novas relaes de trabalho no mundo globalizado, aglobalizao dos direitos humanos, etc. E aqui convmdeter-se para tirar as contas, considerando o mundo emque vivemos e viveremos nos prximos anos, e no omundo de um futuro afastado.

    Para resumir de forma muito sinttica. Nas lti-mas dcadas, assistimos a uma euforia de fusesentre empresas, porque as grandes dimenses fo-ram consideradas mais adequadas para o mercadoglobalizado: no mercado mundial, tinha que operaruma empresa tambm mundial, ou seja, multinacional.

    As empresas globais alcanaram dimenses que oEstado nacional singular j no capaz de controlar,tambm porque sua legislao se detm nos limitesnacionais. Essa fronteira, contudo, no existe paraa empresa multinacional. A empresa multinacionalse move assim num espao juridicamente escassoe providencia por si mesma emanar regras de com-portamento, no s para ela mesma, mas tambm paraos outros. E aqui surgem as dvidas: quem determinao contedo destas regras? Se h um procedimento

    para produzi-las, quem garante que seja seguidocorretamente? Quem determina que instncia sejacompetente para julgar os eventuais conitos? Oquesito, pois, se tudo isso democrtico nem sequervem formulado: a empresa , por sua prpria natureza,autocrtica.

    Entretanto, esse gigantismo um dj vuhistrico,seja com todas as cautelas que exigem as comparaesentre pocas diversas. Os grandes monoplios da Itliafascista, osKonzerneda Alemanha nacional-socialistae os Zaibatsudo Japo militarista proporcionaram ainfraestrutura para a gesto industrial dos Grandes

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    Espaos imperiais, dos quais j falamos. AquelesGrandes Espaos foram o sustento econmico eblico das ditaduras at o ponto em que uma dasprimeiras medidas dos aliados vitoriosos consistiu emdesmembr-los em unidades menores, controlveis,assim, da parte do Estado nacional.

    Hoje, arma-se, a situao distinta. Os Estados no

    so ditatoriais, mas democrticos. As multinacionais seoutorgam cdigos ticos de conduta. As palavras soformosas, mas os fatos no o so tanto. As empresasmultinacionais inuem em Estados nacionais atravsdas manobras dos lobbies e do nanciamento dospartidos (ou diretamente dos polticos). Por isso,tambm na administrao pblica se fala cada vezmenos de governo (um dos trs poderes de Estado)e cada vez mais de governana24 (entidade menosestruturada que um ectoplasma). Quanto aos cdigosticos de conduta, a empresa que os produz no s

    a que os aplica, seno que tambm quem julga arespeito de sua correta aplicao. Posto que a empresamultinacional no conhece a diviso de poderes prpriado Estado nacional, esses cdigos ticos podem de-nir-se com razo o ttulo de um ensaio como umafolha de parreira25,26.

    Por detrs do movimento da desregulamentao27 ou seja, da dissoluo dos vnculos do Estado emrazo do livre desenvolvimento da economia estoas teorias econmicas do neoliberalismo (assim comonas ditaduras europeias se encontrava a doutrinaeconmica do corporativismo); no de outra maneira,as teorias neoliberais foram traduzidas em medidaspolticas por George Bush senior e por MargaretThatcher (mas aqui me detenho com os paralelismos,porque seriam no somente pouco generosos, senotambm falsos). Porm, no so esquecidas as novasideologias subjacentes aos fatos econmicos e jurdicoshodiernos.

    Ainda hoje, a economia segue vivendo sob o lemade menos Estado e mais mercado. A progressivadiminuio dos controles pblicos sobre a economiaprivada conduziu provavelmente maior crise

    econmica do sc. XX: esperemos os dados denitivospara saber se a presente maior que a de 1929.

    Neste ponto o vituperado Estado foi convidado aintervir com somas gigantescas para sanar as perdasproduzidas pelo mtico mercado. Onde estava a moinvisvel que deveria t-lo regulado? Em realidade,aquela mo invisvel porque simplesmente no existe.

    Assim, depois de ter assistido at os anos 80-90a uma gigantesca transferncia de riqueza desde asrendas baixas s altas, resulta que hoje essas mesmasrendas baixas esto chamadas a sanar com seusimpostos as dvidas devidas torpeza e avidez das

    grandes multinacionais. Estas ltimas, agora, guardam-se bem antes de pedir menos Estado e mais mercado;em troca, o castigo mais apropriado, ainda que muitocruel, seria precisamente a aplicao do capitalismoaos prprios capitalistas: a falncia.

    Mas em seguida surge a chantagem: o desempregoproduzido pela falncia de uma grande multinacional

    criaria, para o Estado nacional, um problema no seconmico, mas, sobretudo, social. E os desempregadosvotam. Assim, as classes de renda baixa que j foramempobrecidas nos decnios passados e que agorapagam as dvidas das multinacionais com a reduodos servios sociais e com seus impostos e os de seuslhos servem tambm como libi para uma nova egigantesca privatizao do dinheiro pblico.

    E, ao nal, este custoso salvamento pblico nogarante nada contra a repetio de um desastre anlogo:pelo contrrio, a julgar pelo que ocorre no mundo

    nanceiro, parece que tudo vai voltar a ser como antesda derrubada, e assim espera da prxima. O problema, pois, como sair de uma estrutura globalizada queest dando uma pssima imagem de si mesma, masque pretende ditar por si mesma as regras para auto-gestionar-se: o to elogiadosoft law.

    Um primeiro dado de fato de onde partir que j nose pode mais voltar para atrs: a globalizao um fatoirreversvel. Irreversvel mas dominvel: o que ocorre que at agora se fez pouco ou nada para domin-lo, porque a poltica era (e segue sendo) condicionadapor demasiados interesses associados economiaglobalizada. Se a crise no parece ter galvanizado ospolticos, espervel que sejam os cidados os que vogalvaniz-los com seu voto. A poltica talvez devessereduzir as dimenses das empresas multinacionais quej operam em regime de oligoplio ou de monoplio,assim como sucedeu com osKonzernee osZaibatsunonal da Guerra. Mas, sobretudo, necessrio introduzirecazes controles nacionais e supranacionais.

    Estes controles devero ser democrticos, isto ,devero passar atravs de uma legislao aprovadapor parlamentos nacionais ou supranacionais, mas em

    todo caso eleitos. O direito piramidal ou hierrquicovoltaria a exercitar sua funo reguladora, estandocontrolado e equilibrado mediante a diviso de poderes.Uma vez que a globalizao um fato irreversvel, seriailusrio tentar eliminar o arsenal de regras, disposiese autorregulamentaes que caem sob a rubrica desoftlaw: mas o Estado individual ou uma organizaosupraestatal devero dispor de instrumentos paracontrol-los. E a histria demonstra que isso possvel.

    Se se quer o controle da globalizao, no mbitodo direito dever repetir-se o que ocorreu faz sculosno direito comercial. A corporao medieval europeia

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    regulava os usos comerciais e julgava as controvrsiasque nasciam entre os mercadores. Daquela prticanasceu um direito comercial que se cristalizou emcdigos de comrcio, absorvidos depois nos cdigoscivis. Inclusive o rgido direito islmico se adequous exigncias do comrcio: aceitou a comenda, umnegcio que, em rigor, implicava um risco proibido pelo

    Alcoro, ou outros negcios teologicamente duvidosos.Contudo, no os aceitou de maneira informal: foipreciso que os experts em direito religioso osulemas declarassem legtimo um negcio porquefoi usado constantemente nas relaes e porqueas pessoas tm necessidade dele. Porque, ento, aatual lex mercatoriado mundo global, que remete aopassado at em seu nome latino, no poderia percorrero mesmo caminho e ser gradualmente recebida numhard law28?

    Se no se encontra uma via para controlar a

    globalizao a que foi mencionada antes s umadas possibilidades corre-se o risco de recair numanova crise globalizada. intil pedir previses aosexperts: deve-se aceitar o fato de que tambm aimprevisibilidade forma parte do destino humano.

    O verdadeiro risco que no mundo esto seacumulando problemas no s econmicos: a crisedo meio ambiente provocar instabilidade social;a proliferao atmica gerida por governos noconveis criar problemas de segurana internacional;a exportao de modelos polticos (tanto democrticoscomo teocrticos) gerar conitos militares; as crisesalimentares causaro migraes e reaes violentas.Se mais de uma destas crises potenciais se realizarem concomitncia com uma nova queda econmica,o colapso ser universal, assim como universal omundo criado por ns.

    At agora a sociedade mundial resistiu bastantebem a colapsos setoriais: mas alguns deles levaram desapario de civilizaes inteiras. Se no se querque Terra inteira termine como a civilizao dosmaias, dos vikings ou de outras culturas desaparecidas,como descreve Jared Diamond29, necessrio contro-

    lar a globalizao. E uma parte da soluo pode

    consistir no retorno a formas de direito rgido, de lawmas nadasoft.

    Sem um controle global, tambm a queda serglobal. To global que se que chega nem sequerterei a satisfao de poder dizer: Eu j havia ditoisso!.

    REFERNCIAS

    CUTLER, Claire. Globalization, the Rule of Law, and the ModernLaw Merchant: Medieval or Late Capitalist Associations?Constellations, 2001.

    DIAMOND, Jared. Collaps: How Societies Choose to Fail or toSucceed. New York: Viking Press, 2005.

    FRITSCH-OPPERMANN, Sybille; OPPERMANN, Berndt H.Verhaltenskodex fr Multinationale Konzerne: Feigeblatt derGlobalisierung? In: NAHAMOWITZ, Peter; VOIGT, Rdiger(Hrsg.). Globalisierung des Rechts II: Internationale Organisationenund Regelungsbereiche. Baden-Baden: Nomos-Verlag, 2002.

    IRTI, Natalino. Norma e luoghi: Problemi di geo-diritto, Roma/

    Bari: Laterza, 2006.LANGHANS-RATZEBURG, Manfred. Begriff und Aufgabender geographischen Rechtswissenschaft (Geojurisprudenz):Systematisches ber die Beziehungen der Rechtswissenschaftzur Geographie, Kartographie und Geopolitik. Berlin: VowinckelVerlag, 1928.

    LANGHANS-RATZEBURG, Manfred. Geopolitik und Geo-jurisprudenz. Jena: Fromann, 1932.

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    MLLER, Ingo. Furchtbare Juristen: Die unbewltigteVergangenheit unserer Justiz. Mnchen: Kindler, 1987.

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    SCHMITT, Carl. Vlkerrechtliche Grossraumordnung mitInterventionsverbot fr raumfremde Mchte: Ein Beitrag zumReichsbegriff im Vlkerrecht. Berlin: Deutscher Rechtsverlag,1939.

    SMITH, Dennis Mack. Italy: A Modern History. Ann Arbor/Michigan, USA: University of Michigan Press, 1959, p. 01 e ss.

    TEUBNER, Gunther (ed.). Global Law without a State. Aldershot,

    GB: Dartmouth, 1997.

    NOTAS1 Texto original em italiano: LOSANO, Mario G. Diritto e geograa:

    lo spazio del diritto e il mondo della geograa. Legal Roots: TheInternational Journal of Roman Law, Legal History and ComparativeLaw, 2012, n. 1, p. 05-21. Verso em espanhol, impressa: LOSANO,Mario G. Derecho y geografa: El espacio del derecho y el mundo de lageografa. Discurso de investidura como Doctor Honoris Causa por laUniversidad Carlos III de Madrid. In:Autonoma universitaria y libertadacadmica, Servicio de Relaciones Institucionales y Protocolo de laUniversidad Carlos III de Madrid, Boletn Ocial del Estado, Madrid,

    2010, p. 391-408. Verso eletrnica: LOSANO, Mario G. Derecho ygeografa El espacio del derecho y el mundo de la geografa. Disponvelem: . Agradece-se ao editor da revistaLegal Roots, Salvatore Randazzo, pela autorizao para publicao emlngua portuguesa.

    2 Professor emrito de Filosoa do Direito e de Introduo Informticajurdica na Faculdade de Direito da Universit del Piemonte OrientaleAmedeo Avogadro(Alessandria). Professor no Curso de Doutoradoem Direito e Instituies da Universit degli Studi di Torino. PrmioAlexander von Humboldt-Forschungspreis, 1995, Bonn, Alemanha.

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    Direito & Jusa,Porto Alegre, v. 40, n. 1, p. 84-93, jan./jun. 2014

    Doutorados honoris causa pela Gottfried Wilhelm Leibniz UniversittHannover(Alemanha, 2004), Universidad de la Repblica(Montevidu,Uruguai, 2008), Universidad Carlos III(Madrid, Espanha, 2009). O autorpossui inmeras publicaes em livros, artigos cientcos e captulos delivros. Tem textos traduzidos para 12 lnguas. Informaes: . E-mail: .

    3 SMITH, Dennis Mack. Italy: A Modern History. Ann Arbor/Michigan,USA: University of Michigan Press, 1959. p. 01. No original italiano dotexto, a citao est em ingls: Its is therefore with geography that Italianhistory must begin. [] Mountains may not be removed, even by faith.

    4 Nota de traduo: a expresso aparece em francs no original italianodo texto. Trata-se do livro: LACOSTE, Yves. La gographie, a sertdabord faire la guerre. Paris: Maspero, 1976.

    5 Para uma anlise mais detalhada destes conceitos LOSANO, MarioG. La geopolitica del Novecento: dai Grandi Spazi delle dittature alladecolonizzazione. Milano: Bruno Mondadori, 2011.

    6 SCHMITT, Carl. DieRaumrevolution.Das Reich, 29 de setembro de1940, p. 03; SCHMITT, Carl. Reich und Raum: Elemente eines neuenVlkerrechts. Zeitschrift der Akademie fr Deutsches Recht, 1941,p. 145-149; SCHMITT, Carl. Vlkerrechtliche Grossraumordnungmit Interventionsverbot fr raumfremde Mchte: Ein Beitrag zumReichsbegriff im Vlkerrecht. Berlin: Deutscher Rechtsverlag, 1939;cfr. LOSANO, Mario G. La geopolitica nazionalsocialista e il dirittointernazionale dei grandi spazi.Materiali per una storia della culturagiuridica, XXXV, 2005, n. 1, p. 05-63.

    7 LANGHANS-RATZEBURG, Manfred. Begriff und Aufgaben der

    geographischen Rechtswissenschaft (Geojurisprudenz): Systematischesber die Beziehungen der Rechtswissenschaft zur Geographie,Kartographie und Geopolitik. Berlin: Vowinckel Verlag, 1928. No texto,as pginas indicadas entre parnteses se referem a esta publicao. Cfr.LANGHANS-RATZEBURG, Manfred. Geopolitik und Geojurisprudenz.Jena: Fromann, 1932.

    8 MLLER, Ingo. Furchtbare Juristen: Die unbewltigte Vergangenheitunserer Justiz. Mnchen: Kindler, 1987.

    9 IRTI, Natalino. Norma e luoghi: Problemi di geo-diritto, Roma/Bari:Laterza, 2006. A primeira edio de 2001 foi publicada no mesmo anode seu artigo IRTI, Natalino. Geo-diritto.Rivista Italiana di Filosoadel Diritto, 2001, p. 461-468.

    10Nota de traduo: na verso original do texto, o autor utilizou a expressoem francs, que signica pesquisa.

    11Nota de traduo: trata-se da Associao Internacional deFilosoa do Direito (Internationale Vereinigung fr Rechts- undSozialphilosophie).

    12Nota de traduo: frase presente somente na verso espanhola do texto,lida na cerimnia do Doutorado honoris causamencionada anteriormente.

    13Nota de traduo: expresso de origem hebraica utilizada no originalitaliano do texto, no sentido de senha existe a forma xibolete nalngua portuguesa.

    14Nota de traduo: no original italiano do texto, a expresso est emingls: globalization breaks this frame.

    15Nota de traduo: no original italiano do texto, a expresso est emingls: is pressing for a global law that has no legislation.

    16Nota de traduo: no original italiano do texto, a expresso est emingls: heterarchical.

    17Nota de traduo: no original italiano do texto, a expresso est em

    ingls: in the periphery of the legal system.18 TEUBNER, Gunther (ed.). Global Law without a State. Aldershot, GB:

    Dartmouth, 1997. p. XIII-XV.19Nota de traduo: no original italiano do texto, a expresso est em

    ingls: rule-making by private governments.20Nota de traduo: no original italiano do texto, a expresso est em

    ingls: the unbearable monopoly of State law creation.21Nota de traduo: no original italiano do texto, a expresso est em

    ingls: each enterprise constitutes a legal order.22 MERTENS, Hans-Joachim. Lex mercatoria: A Self-applying System

    Beyond National Law? In: TEUBNER, Gunther. Global Law without aState, cit., p. 57.

    23Nota de traduo: no original italiano do texto, a expresso est emingls: The state effectively appears as a subsidiary institution: whatcomes rst in the positive legal order of the liberal state are propertyrights and liberty of contract.

    24Nota de traduo: no original italiano do texto, a expresso est emingls: governance, que traduzimos como governana ao portu-gus.

    25 FRITSCH-OPPERMANN, Sybille; OPPERMANN, Berndt H.Verhaltenskodex fr Multinationale Konzerne: Feigeblatt derGlobalisierung? In: NAHAMOWITZ, Peter; VOIGT, Rdiger (Hrsg.).Globalisierung des Rechts II: Internationale Organisationen undRegelungsbereiche. Baden-Baden: Nomos-Verlag, 2002. p. 357-380.

    26Nota de traduo: a expresso folha de parreira (que pode ser comoutras folhas, como a da gueira comum) faz aluso narrativa doGnesis bblico sobre o pudor de Ado e Eva.

    27Nota de traduo: no original italiano do texto, a expresso est emingls: deregulation, que traduzimos como desregulamentao aoportugus.

    28 CUTLER, Claire. Globalization, the Rule of Law, and the Modern LawMerchant: Medieval or Late Capitalist Associations?. Constellations,2001, p. 480-502.

    29 DIAMOND, Jared. Collaps: How Societies Choose to Fail or to Succeed.New York: Viking Press, 2005. p. 592.

    Recebido em: 22/04/2013; aceito em: 19/07/2013.