mario joaquim dos santos neto

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3º SEMINÁRIO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA ABRI HIDROPOLÍTICA E HEGEMONIA NA BACIA DO PRATA: O CASO DO COMPLEXO HIDRELÉTRICO BINACIONAL GARABI-PANAMBI MARIO JOAQUIM DOS SANTOS NETO UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FLORIANOPOLIS, 29 E 30 DE SETEMBRO DE 2016

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3º SEMINÁRIO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA ABRI

HIDROPOLÍTICA E HEGEMONIA NA BACIA DO PRATA: O CASO DO COMPLEXO

HIDRELÉTRICO BINACIONAL GARABI-PANAMBI

MARIO JOAQUIM DOS SANTOS NETO

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FLORIANOPOLIS, 29 E 30 DE SETEMBRO DE 2016

RESUMO: A partir da década de setenta, a celebração de acordos entre Brasil e Argentina para

realização de projetos energéticos binacionais na Bacia do Prata foi decisiva para o avanço do

processo de integração regional da América do Sul. Porém, a trajetória da cooperação

transfronteiriça entre os países sul-americanos tem passado por altos e baixos, sendo marcada

pela existência de controvérsias sobre a construção de novas usinas hidrelétricas em cursos de

água internacionais. A existência de cooperação entre países não significa a ausência de

conflitos. A análise do contexto político e econômico da cooperação entre os países ribeirinhos

pode revelar a existência de assimetrias de poder estruturais que determinam a variação do

grau de cooperação entre eles ao longo do tempo. Jan Selby, Mark Zeitoun, Jeroen Warner,

Naho Mirumachi, Ana Elisa Cascão e Filippo Menga propõem um quadro teórico alternativo com

base no marco teórico neogramsciano de Relações Internacionais (RI) para analisar como a

hegemonia e as assimetrias de poder em múltiplos níveis influenciam o desenvolvimento das

águas transfronteiriças. Nesta perspectiva, o conceito de “hidro-hegemonia” é utilizado para

identificar a liderança de um país incentivado pela comunidade internacional sobre os assuntos

hídricos regionais. A hegemonia assegura a conformidade dos atores estatais e não-estatais

subordinados aos interesses de desenvolvimento dos recursos hídricos compartilhados. Por

outro lado, atores subordinados podem utilizar estratégias contra-hegemônicas para mudar uma

situação de injustiça na distribuição da água. Neste artigo, analisamos a evolução da

cooperação entre Brasil e Argentina para construção do Complexo Hidroelétrico Binacional

Garabi-Panambi no Rio Uruguai como exemplo da existência de contradições na cooperação

interestatal. O objetivo deste estudo é compreender a repercussão das lutas da sociedade civil

e das populações afetadas do Brasil e da Argentina por justiça social e ambiental no futuro da

cooperação transfronteiriça entre os países.

PALAVRAS-CHAVE: águas transfronteiriças; hegemonia; Brasil; Argentina

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INTRODUÇÃO

Em 2013 centenas de argentinos se aliaram a brasileiros para marchar por “rios livres” durante

seis dias de peregrinação por várias cidades das províncias argentinas de Missiones e

Corrientes. O propósito dessa campanha era exigir o cumprimento de uma Lei da província

argentina que prevê a realização de consulta popular vinculante sobre a construção de

hidrelétricas. Segundo o diário argentino Página12, esses manifestantes protestavam contra a

construção das barragens do Complexo Hidrelétrico Binacional Garabi-Panambi na faixa de

fronteira entre o Brasil e a Argentina no Rio Uruguai, um dos três principais afluentes do rio do

Prata (ANDRADA, 2013).

A bacia do rio da Prata é o quinto maior sistema hidrográfico do mundo e segundo da América

do Sul depois da bacia Amazônica. O rio da Prata se origina da confluência dos rios Paraná,

Paraguai e Uruguai e desagua no oceano Atlântico. A bacia platina atravessa o território de

cinco países dessa região - Paraguai, Bolívia, Brasil, Argentina e Uruguai e sua área de

drenagem é ocupada por metade da população dos países ribeirinhos, formando um importante

núcleo econômico regional (PORCHAT, 2011; SAE, 2013).

As barragens hidrelétricas são projetos de grande escala operada por um “consórcio” que se

constitui como entidade social, econômica e política que articula o capital internacional e

nacional sob a supervisão de diferentes Estados nacionais e de organizações supranacionais

em um contexto regulamentado (RIBEIRO, 1991 apud ROCHA, 2012). Segundo Latta e Sasso

(2014) os megaprojetos hídricos revelam a dinâmica da hegemonia e contra-hegemonia no

tecido de relações econômicas, sociais, ecológicas e culturais que moldam essas dinâmicas.

Essa seria, segundo Conca (2006), a principal forma de conflito relacionado a água que ocorre

globalmente. O impacto social e ecológico das represas provoca conflitos entre os

empreendedores consorciados e aqueles que se opõem a sua construção em virtude das

desigualdades na distribuição dos custos e benefícios socioeconômicos do modelo desse

desenvolvimento.

Para analisar situações em que a liderança de um ente político no controle das águas

compartilhadas é determinada pelas assimetrias nas relações com os outros ribeirinhos, Warner

e Zeitoun (2006) conceberam junto com outros pesquisadores do London Water Research

Group o conceito de hidro-hegemonia. Esse conceito supõe que a cooperação e o conflito

coexistem nas relações entre Estados numa bacia hidrográfica compartilhada. Desse modo, em

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contextos assimétricos, os acordos, regimes ou instituições criadas pelos ribeirinhos podem

favorecer uma das partes.

A hegemonia pode ser percebida como o conjunto da estrutura social, econômica e política que

“se expressa em normas, instituições e mecanismos universais que estabelecem regras gerais

de comportamento para os Estados e para as forças da sociedade civil que atuam além das

fronteiras nacionais - regras que apoiam o modo de produção dominante” (COX, 2007, P. 118-

119). Nesse sentido, pode-se definir a hidro-hegemonia como “o êxito de um ribeirinho em

impor um discurso que preserva seus interesses e evita mudanças no controle dos recursos

hídricos compartilhados” (MENGA, 2016). A hegemonia significa a capacidade de um grupo

dominante exercer influência de uma maneira que seus interesses particulares são identificados

como sendo os interesses de toda sociedade (SENEDDON, 2013). Assim, a orientação da

política externa de um país é o resultado de uma estrutura e um compromisso de classe,

baseado no modelo de desenvolvimento regulado por instituições (WARNER, 2010, P. 124).

Os atores hegemônicos utilizam a sua capacidade e o maior poder relativo nas negociações

entre as partes para influenciar os discursos, estabelecer instituições e definir a forma como a

água é alocada através de estratégias de consenso e coerção. Mirumachi (2015) observa que

os agentes hegemônicos obtêm a conformidade das partes mais fracas de várias formas. Eles

podem capturar os recursos e impedir o acesso dos outros ribeirinhos, manter a assimetria na

bacia através dos tratados e estabelecer regimes nos quais a parte fraca não participa ou é

marginalizada. Por outro lado, atores subordinados podem assumir um perfil contra hegemônico

desafiar esse domínio influenciando a política externa de um estado hegemônico e mudar seu

comportamento deles através do lobby, organização de protestos, processos judiciais e

articulação com aliados internacionais para pressionar os governos a mudar seu

comportamento (CASCÃO; ZEITOUN, 2010; WARNER E ZAWHARI, 2012).

A rivalidade histórica entre Brasil e Argentina na Bacia do Prata e a disparidade de peso

econômico e na dimensão territorial e em relação aos seus vizinhos põe em evidência o papel

de liderança dos dois maiores países platinos na institucionalização do regime e na governança

dos recursos hídricos compartilhados. O avanço da integração entre Brasil e Argentina

desaguou na criação da União das Nações Sul Americanas (UNASUL) em 2008 com a

ascensão de governos progressistas da América do Sul. Saguier (2012) observa que esse

processo de integração regional “pós-hegemônico” se orienta pela dependência da exploração

dos recursos naturais e a coexistência de políticas neodesenvolvimentistas na economia política

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regional. Para ele, a integração dirigida a exploração dos recursos naturais está relacionada

com a proliferação de conflitos socioambientais por toda região causadas pelos impactos

prejudiciais dessas políticas ao meio de vida das comunidades locais.

Assim, este trabalho analisa a trajetória histórica de cooperação bilateral entre Brasil e

Argentina na bacia platina focalizando no caso do Complexo Hidrelétrico Binacional Garabi-

Panambi na sub-bacia do Rio Uruguai. Esse grande empreendimento binacional começou a ser

planejado pelos dois países na década de setenta, mas só na década de oitenta, após a

solução da controvérsia sobre a barragem de Itaipu no rio Paraná com a celebração do acordo

tripartite, ele voltou a pauta da cooperação bilateral entre os governos argentino e brasileiro. O

megaprojeto foi interrompido novamente da década de noventa, mas foi retomado em 2011,

como parte do plano de Integração da Infraestrutura da América do Sul (IIRSA) e do Programa

de Aceleração do Crescimento (PAC) do Brasil. Em 2015, o empreendimento foi paralisado

novamente, desta vez em virtude da ameaça dos impactos socioambientais e da contestação

de oposição de movimentos populares nos países ribeirinhos.

O texto é dividido em duas seções. A primeira seção aborda a rivalidade histórica entre Brasil e

Argentina no uso das águas superficiais da Bacia do Prata e a evolução da cooperação entre

eles após a solução da controvérsia sobre a construção da usina binacional de Itaipu no rio

Paraná. Na segunda seção vamos analisar o caso do Complexo Hidrelétrico Binacional Garabi-

Panambi, desde a sua concepção na década de oitenta até o momento atual, a fim de identificar

os atores e as contradições existentes na cooperação intergovernamental na bacia platina à luz

do conceito de “hidro-hegemonia”.

O estudo faz parte de uma pesquisa de mestrado em andamento e se baseou no levantamento

exploratório da literatura nacional e estrangeira sobre o assunto e em fontes secundárias

obtidas mediante pesquisa bibliográfica e documental.

RIVALIDADE NA BACIA DO PRATA

A rivalidade entre o Brasil e Argentina é um legado da colonização europeia na Bacia do Prata e

das disputas entre as grandes potências mundiais que influenciaram a região depois da

independência. A disputa entre os impérios português e espanhol pelo controle e acesso aos

territórios coloniais e suas fontes de água se refletiu na configuração das relações entre os

países ribeirinhos durante o processo de formação dos Estados. Os conflitos militares no Cone

Sul que ocorreram durante o século XIX na região bacia do Prata são caracterizados pela

influência de potências europeias como a Grã-Bretanha. Os rios da bacia do Prata eram as

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principais artérias de circulação e transporte utilizadas para acessar o interior do continente

através da navegação fluvial. Neste contexto, a posição geográfica dos Estados que se

formaram ao longo da bacia platina é importante para compreender as relações entre eles. A

localização dos países influenciou as diferentes visões geopolíticas, os interesses econômicos e

a busca pela liderança no controle dos recursos da bacia hidrográfica.

Segundo Lima (2013) a situação de interdependência assimétrica foi um dos fatores que,

historicamente, despertaram hostilidades e controvérsias entre os países platinos. Por se situar

a jusante a Argentina e o Uruguai estão em uma posição que permite controlar o acesso a foz

do rio da Prata, principal eixo de comunicação fluvial e acesso ao oceano Atlântico do Paraguai

e a Bolívia que estão encravados no continente. Já o Brasil se encontra a montante na bacia

hidrográfica e conta com as cabeceiras dos três principais rios da bacia situadas em seu

território.

No século XX, após o estabelecimento dos limites territoriais do Uruguai na “Guerra contra o

Império do Brasil” e a derrota do Paraguai pela Tríplice Aliança, a relação bilateral entre a

Argentina e o Brasil vai ser marcada pela busca do equilíbrio através de uma cooperação

contraditória sob influência do pan-americanismo estadunidense na América Latina (GRANATO,

2012). Assim, é importante observar como as mudanças na ordem mundial tiveram impacto na

política e nos conflitos na bacia do Prata.

Até a década de 1930 a Argentina influenciava os países menores da bacia do Prata em razão

da sua posição geográfica e da prosperidade econômica dependente das relações que

mantinha com do império britânico. Contudo, o crescimento da influência brasileira no Paraguai

fez a Argentina desconfiar das pretensões hegemônica do país na região. A preponderância

argentina começou a ser desafiada quando o Brasil começou a se modernizar e industrializar e

passou a priorizar como combustível do desenvolvimento econômico o barramento dos cursos

de água fronteiriços da bacia platina e sua utilização como fonte de energia renovável.

A Declaração de Montevideo (Resolução LXXII) sobre o aproveitamento rios internacionais,

aprovada pelos países platinos na Sétima Conferência Internacional Americana em 1933

estabeleceu o direito de cada Estado de aproveitar as águas sob sua jurisdição sem prejudicar

o vizinho. A partir de então as controvérsias entre o Brasil e a Argentina sobre a utilização das

águas do Prata que vão condicionar a cooperação entre eles vai vão dar em torno do princípio

da “consulta prévia” que havia sido inserido em um tratado que o governo argentino firmou com

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o Uruguai em 1946 para construção da hidrelétrica binacional de Salto Grande na faixa de

fronteira do Rio Uruguai.

O rio Uruguai é um dos três tributários do rio da Prata que nasce no território brasileiro. Esse rio

se origina na Serra Geral, no estado brasileiro de Santa Catarina e se forma a partir da

confluência dos rios Canoas e Pelotas na divisa de Santa Catarina com o estado do Rio Grande

do Sul. Esse curso d’água define a faixa de fronteira do Brasil com a Argentina e Argentina com

o Uruguai até desembocar no rio da Prata. O relevo acidentado dessa sub-bacia platina propicia

que o fluxo das águas seja aproveitado para a produção de energia. Esse potencial hidrelétrico

tem sido explorado desde a década de sessenta, sobretudo no território brasileiro, onde hoje se

encontra instalada a maior densidade de barragens.

Os países consorciados procuraram obter o consentimento brasileiro para construção da

hidrelétrica binacional ainda que o trecho que seria modificado pelo barramento daquele rio se

localizasse fora da jurisdição territorial brasileira. Em 1960 os governos dos três países

firmaram uma declaração conjunta. O Brasil deu anuência a obra no rio Uruguai, mas se

reservou o direito de pedir indenização por eventuais danos que sofresse no seu território. A

declaração conjunta reconheceu o direito de o Brasil utilizar livremente o trecho do rio Uruguai

no seu território e em contrapartida ele se comprometeu em consultar os outros dois ribeirinhos

no caso da manipulação do rio na parte de cima causar danos aos vizinhos (LIMA, 2013).

Em 1961 os presidentes argentino e brasileiro Arturo Friondizi e Jânio Quadros se reuniram em

Uruguaiana e discutiram a possibilidade do aproveitamento conjunto do Rio Paraná. Segundo

Candeas (2005), aproximação com a Argentina era uma das diretrizes da Política Externa

Independente do período Quadros e Goulart, mas a iniciativa não foi adiante por causa da

resistência argentina (CANDEAS, 2005). Segundo Queiroz (2012), o presidente João Goulart

havia proposto ao presidente paraguaio Alfredo Stroessener um plano conjunto de

aproveitamento hidráulico do rio Paraná meses antes de sofrer o golpe civil-militar.

Após o golpe militar o governo brasileiro firmou um acordo com o Paraguai em 1966 visando a

exploração do potencial hidrelétrico da faixa compartilhada por esses países no rio Paraná. O

Brasil então mudou de posição e rejeitou a Declaração de Montevideo de 1933 alegando não

possuir caráter vinculante. A “Ata de Iguacu” ou “Ata das Cataratas” solucionou a antiga

contenda fronteiriça com o Paraguai e reconheceu a soberania compartilhada de ambos sobre o

rio Paraná estabelecendo que a energia que eventualmente fosse produzida do trecho do Salto

Guairá/Sete Quedas a seria dividida em partes iguais entre eles.

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Assim, o Brasil adotou a “Doutrina Harmon” e rejeitou a consulta prévia a argentina sob o

argumento de ser uma espécie de poder de veto à sua atuação soberana (LIMA, 2013). Desde

então o Brasil passou a se opor a constituição de um regime internacional que diminuísse sua

capacidade explorar ao máximo os recursos hídricos que estavam localizados no seu território.

Assim, nas décadas de sessenta e setenta a região austral do subcontinente onde se localizava

a parte mais industrializada do país passou a ser o território de disputa da corrida pela

construção de barragens para geração de energia.

A fim de estimular negociações multilaterais os cinco países da bacia decidiram estabelecer em

1967 o Comitê Intergovernamental Coordenador (CIC) da Bacia do Prata, cujo Estatuto

aprovado ano seguinte. Este estatuto dispõe que o objetivo desse organismo é coordenar e

acompanhar as ações de desenvolvimento do aproveitamento dos recursos da bacia platina e o

desenvolvimento harmônico e equilibrado da região. O Estatuto também institucionalizou a

realização de reuniões anuais dos ministros das relações exteriores dos países ribeirinhos. Em

uma reunião extraordinária realizada em 1969 na cidade de Brasília foi celebrado o “Tratado da

Bacia do Prata”, que entrou em vigor em 1970.

O Tratado da Bacia do Prata de 1969 serviu como um acordo-quadro que permitiu que os

países vizinhos firmassem acordos bilaterais sobre o aproveitamento de rios contíguos para

produção de energia. Em 1973 foram firmados os tratados de Itaipu (Brasil e Paraguai), Corpus

(Argentina e Paraguai) e Yaciretá (Argentina e Uruguai). Os acordos bilaterais de

aproveitamento dos rios contíguos para produção de energia foram cruciais para formar

alianças e alavancar a cooperação entre eles a integração regional sul-americana. Nesse

sentido, Porchat (2011) nota que o foco das coalizões parciais na bacia nas duas primeiras

décadas depois da celebração do tratado foi voltado essencialmente para o aproveitamento

hidrelétrico.

A “Declaração de Assunção”, aprovada pelos países platinos em 1971, estabeleceu dois

princípios contraditórios sobre o significado de “soberania partilhada”. No caso dos rios

contíguos (fronteiriços) foi definido o princípio de acordo prévio entre os países ribeirinhos. Já

em relação aos rios sucessivos prevaleceu o princípio de “não causar dano significativo” ao país

vizinho. Considerando que no rio Paraná a Argentina se adequava ao segundo princípio, o

Brasil entendia que só deveria notificar o vizinho sobre a construção de Itaipu quando fosse

conveniente e não considerou necessário obter o seu consentimento prévio para realizar a obra

(CAUBET, 2006).

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O impacto que seria causado rio abaixo pela hidrelétrica brasiguaia preocupou a Argentina em

relação ao prejuízo que isso teria para navegação e viabilidade dos projetos hidrelétricos de

Corpus e Yaciretá no Rio Paraná. Como estratégia de oposição a ação unilateral brasileira

Argentina buscou internacionalizar a controvérsia jurídica sobre a consulta prévia por meio de

da diplomacia de contestação nas Nações Unidas, com países do terceiro mundo e na opinião

pública.

A controvérsia entre o Brasil e a Argentina pautou a conferência das Nações Unidas sobre Meio

Ambiente realizada em Estocolmo em 1972. O desacordo entre Brasil e Argentina sobre

princípio aplicável ao uso dos recursos naturais no direito fluvial impediu um acordo sobre esse

ponto que foi então levado para a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU). Na sessão de

setembro 1972 da AGNU foi alcançado um acordo entre os dois países na Resolução 2995.

Todavia, o novo governo argentino que tomou posse em 1973 denunciou o Acordo de Nova

York alegando prejuízo causado pela não conformidade do Brasil em notificar a Argentina sobre

o preenchimento do reservatório da barragem de Ilha Solteira. Mas a tática argentina de tentar

deter a ação unilateral brasileira por meio da contestação internacional não foi suficiente para

constranger o governo brasileiro no projeto da barragem de Itaipu (CAUBET, 1991; LIMA, 2013)

Segundo Lima (2013) o Brasil assumiu um perfil hegemônico na sua política externa em relação

a seus dois vizinhos para atingir o objetivo de construir a barragem de Itaipu no rio Paraná, pois

empregou sua capacidade econômica e política, bem como a combinação de recompensas e

coerção para forçar a adesão dos países platinos a um regime favorável aos seus interesses na

exploração dos recursos da bacia.

A tensão nas relações entre os dois países platinos provocada pela construção da barragem de

Itaipu aumentou o poder de barganha dos países periféricos da bacia. Para contrabalancear a

hegemonia dos dois maiores países platinos o grupo dos países menores - Uruguai, Paraguai e

Bolívia – haviam se reunido em 1963 no bloco URUPABOL. No entanto, a triangulação das

relações do Paraguai com o Brasil e Argentina no rio Paraná faz com que ele optasse por

abandonar o grupo dos países menores. Assim, o Paraguai se aproveitou da disputa entre as

potências platinas para obter vantagens econômicas e políticas por meio da diplomacia

“pendular” do governo Stroessner (CAUBET, 1991).

A medida em que o Paraguai aumentava o preço da lealdade entre as potências rivais a

manutenção do conflito se tornava mais cara. A existência dessa controvérsia internacional

prejudicou a obtenção de crédito pelos países consorciados junto às agências financeiras

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multilaterais levando a uma política fiscal de endividamento insustentável. Assim, no final da

década de setenta, a controvérsia de Itaipu se dirigiu para debate um sobre a possibilidade de

compatibilização das barragens consecutivas (LIMA, 2013).

No entanto, as relações entre os dois maiores países platinos haviam se deteriorado durante o

governo de Ernesto Geisel no Brasil. Com a mudança do governo brasileiro em 1979 houve a

reaproximação entre os dois países. O presidente João Batista Figueiredo retomou as

negociações tripartite entre Brasil, Argentina e Paraguai que haviam sido interrompidas no

governo anterior e em outubro daquele ano os três países encerraram o conflito no rio Paraná

com a assinatura do “Acordo de Itaipú-Corpus”.

A mudança estrutural do sistema internacional do pós-guerra fria e a redemocratização na

política doméstica dos países do Cone Sul a partir da década de oitenta levou os rivais a se

tornarem parceiros de um projeto comum de integração (ESPÓSITO, 2013). Essa parceria abriu

uma nova fase de cooperação visando a integração no mundo capitalista globalizado. Em 1980,

os presidentes Jorge Rafael Videla, argentino, e João Batista Figueredo, brasileiro, celebraram

uma série de acordos que estabeleceram a base da cooperação entre os países nas áreas

nuclear, de infraestrutura energética e integração econômica regional. A reaproximação dos

dois foi intensificada nos governos dos presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín. O avanço do

processo de cooperação bilateral entre os dois países se relaciona ainda com o processo de

globalização neoliberal da década de noventa e a eleição dos presidentes Collor e Menem

incentivou coordenação e a integração pela via do mercado que repercutiu na formação do

bloco econômico Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) em 1991 e, em 1997, na formação de

uma “aliança estratégica”.

O COMPLEXO HIDRELÉTRICO BINACIONAL GARABI-PANAMBI

O plano de construir uma usina hidrelétrica binacional na faixa de fronteira do Brasil com a

Argentina no rio Uruguai começou no ano 1972 quando foi firmado um Convênio entre a

empresa Agua y Energía Elétrica (AyE) e Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobrás) para o

estudo conjunto do trecho limítrofe do rio Uruguai e seu afluente Peri-Guaçu. Nessa época

foram inventariadas a construção de três usinas: Garabi, São Pedro e Roncador

(ELETROBRÁS, 2010). Mas a realização desse plano foi frustrada pelo governo do general

Rafael Videla que suspendeu os projetos hidrelétricos binacionais no rio Uruguai argumentando

que eles favoreciam mais o Brasil do que a Argentina enquanto não fosse solucionado o

contencioso das barragens de Itaipu e Corpus (BANDEIRA, 2010).

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A exploração do potencial energético do fragmento fluvial entre Brasil e Argentina integra o

regime estabelecido no Tratado da Bacia do Prata e é inspirado no modelo do Tratado de Itaipu

e nos princípios da Declaração de Assunção (SAE, 2013). No “Tratado para o Aproveitamento

dos Recursos Hídricos Compartilhados dos Trechos Limítrofes do Rio Uruguai e de seu afluente

o rio Peri-Guaçu” celebrado em 1980 entre Figueiredo e Videla foi prevista a realização de

estudos e obras pelas Eletrobrás e a AyE. A empresa argentina foi sucedida posteriormente

pela Empreendimentos Energéticos Binacionales S.A. (EBISA), uma sociedade anônima de

capital estatal cuja titularidade de 99% das ações pertence ao governo argentino e 1% a

Nuceoelétrica Argentina S.A.

Um novo estudo de aproveitamento e o projeto básico da usina de Garabi foi concluído em

1986. Contudo, esse novo plano de construir a barragem novamente não saiu do papel em

razão da crise econômica que assolava os países na época e a resistência popular à

construção da barragem. É interessante notar que a intensificação da política da ditadura civil-

militar brasileira de expansão da infraestrutura elétrica e de construção de barragens na década

de setenta na região do Alto Uruguai, localizada no estado brasileiro de Santa Catarina, fez

surgir em contraposição a mobilização da população ribeirinha afetada pelos empreendimentos

de Itá, Machadinho e Foz do Chapecó.

A mobilização social contra a construção de barragens hidrelétricas pela Eletrosul, subsidiária

da Eletrobrás, deu origem ao Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) cuja atuação

assumiu dimensão transnacional. Nos anos noventa o MAB participou como membro da

Comissão Mundial de Barragens (1988-2000), constituída pelo Banco Mundial, contribuindo

assim para o estabelecimento de salvaguardas de novos empreendimentos financiados pela

instituição financeira multilateral.

As negociações bilaterais entre o Brasil e a Argentina sobre a construção das barragens no rio

Uruguai foram retomadas em 2007 quando esses países firmaram um “Protocolo Adicional ao

Tratado de 1980” criando uma “Comissão Técnica Mista”. O então presidente Luís Inácio Lula

da Silva e a presidente argentina Cristina Kirchner manifestaram na época o interesse em

concretizar o empreendimento. Em 2008, a Eletrobrás e a EBISA firmaram o Convênio de

Cooperação para execução conjunta de estudos de inventário do Rio Uruguai na Fronteira entre

Brasil e a Argentina e o estudo de viabilidade de um aproveitamento hidrelétrico.

No ano seguinte, as duas empresas que formam a Unidade Executiva (UnE) Garabi Panambi

firmaram outro convênio destinado a definir um segundo aproveitamento do Rio Uruguai. Nesse

10

mesmo ano foi contratado um consórcio formado por empresas brasileiras e argentinas para

realizar os Estudos de Inventário Hidroelétrico cujo resultado foi a aprovação de dois

aproveitamentos: Garabi e Panambi - com capacidade total estimada de 2.200 MW (Fig.1).

Figura 1. Localização do Complexo Binacional Garabi-Panambi (FONTE: EBISA, 2016).

Finalmente, as presidentes Dilma Roussef, do Brasil, e Cristina Kirchner, da Argentina, se

comprometeram em 2011 a acelerar a construção das usinas cujo investimento estimado era de

5,2 bilhões de dólares. O Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)

figura como o financiador de 70% do empreendimento que foi inserido entre os projetos do

catálogo da IIRSA e do PAC (FOCO, 2014).

O inventário divulgado pela Eletrobrás em 2010 registra que o projeto original foi modificado

para atender as exigências ambientais e sociais que não existiam na época da concepção

original do projeto. No que diz respeito aos impactos ecológicos, as represas vão desmatar e

inundar uma extensa área de reserva ambiental e unidades de conservação do Brasil e da

Argentina, havendo ainda o risco de atingir o Parque Estadual do Turvo no Brasil e os Saltos

Maconã/Yucumã que é uma importante atração turística da região. A construção das represas

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também afetará áreas urbanas e rurais de diversos municípios brasileiros e argentinos da

fronteira1 e mais de 12 mil pessoas. Além disso, o empreendimento ainda pode atingir sítios

arqueológicos e, indiretamente, terras e povos indígenas que estão situadas próximos às áreas

diretamente afetadas (ELETROBRÁS, 2010).

Em 2012 a “Unión Transitoria de Empresas”, consórcio constituído por duas empresas

brasileiras e quatro argentinas2 venceu a licitação internacional e foi contratada para fazer os

estudos de engenharia, meio ambiente e o plano de comunicação social a fim de preparar a

licitação de construção das hidrelétricas.

Após a retomada do projeto de construção das barragens a população voltou a protestar

novamente contra a construção das barragens em virtude da ameaça de desalojamento das

populações ribeirinhas, violação aos direitos humanos e os custos ecológicos e

socioeconômicos que eles terão que arcar. Para promover o processo de participação pública

dos interessados o consórcio responsável pela etapa de estudos de viabilidade do projeto junto

com os governos dos municípios e províncias se empenham desde 2013 em realizar reuniões

com a população e disponibilizar informação em Centros de Informação e Participação Pública

(CIPP) para convencer a população afetada da importância e dos benefícios do

empreendimento. Para Cibim (2012), a paradiplomacia de atores estatais subnacionais e não

estaias junto com a participação da sociedade civil caracterizam o processo de governança

desse trecho do rio Uruguai.

Entretanto, os estudos de viabilidade técnica das licenças ambientais do aproveitamento de

Garabi que estavam feitos foram suspensos em 2015 graças a uma ação judicial proposta pelo

Ministério Público Federal brasileiro após a mobilização da sociedade civil. Na argentina, as

populações das províncias afetadas pelo empreendimento também continuam mobilizadas

demandando dos governos provinciais a realização de consulta popular.

A retomada do projeto de instalação do Complexo Hidrelétrico Garabi-Panambi sugere o

protagonismo político e a preponderância dos interesses do setor elétrico de utilização dos

cursos de água internacionais como fonte de energia renovável e do capital transnacional na

integração da infraestrutura na região sul-americana. Nesse contexto, notamos o protagonismo

1 Garruchos, Azara, San Javier, Itaucaruré e Porto Xavier, Alba Posse, Porto Mauá.

2 Consular S.A., Grupo Consultor Mesopotámico S.R.L., Iatasa e Latinoconsult S.A.; Engevix Engenharia S.A. e Intertechne S.A

12

do setor elétrico brasileiro e dos consórcios transnacionais entre os formuladores da política

externa dos países platinos. Por outro lado, os movimentos de libertação dos rios como o MAB

no Brasil e seus companheiros argentinos continuam resistindo a esse projeto de

desenvolvimento através de diversas estratégias de contestação aos empreendimentos.

REFERÊNCIAS

Andrada, D. Marcha por los ríos libres. Página12, Buenos Aires, 28 set.2013

Bandeira, L. A. M. Brasil, Argentina e Estados Unidos: conflito e integração na América do Sul

(Da Tríplice Aliança ao Mercosul). Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2012

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