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São Paulo! comoção de minha vida… MÁRIO DE ANDRADE SELETA ORGANIZADA POR Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo

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São Paulo! comoção

de minha vida…

Antologia inédita de prosa e poesia de Mário de Andrade, este livro revela a ligação visceral do escritor com sua cidade. Irônico com sua obra, seu país e seu tempo, versan-do as contradições do progresso, as injusti-ças sociais e a inelutável solidão do homem, sua literatura revela-se de impressionante atualidade.

Coleção De Mão em MãoEste projeto procura incentivar o gosto

pela leitura. Consiste em distribuir livros gratuitamente em locais de ampla circula-ção. O leitor poderá levar as publicações sem registrar a retirada, com o compromisso de entregar as obras em pontos de devolução para, assim, compartilhá-las com outros fu-turos leitores.

mário de andrade | SÃo Paulo! Com

oção de minha vida…

MÁRIO DE ANDRADE

SELETA ORGANIZADA PORTelê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo

CIRCULAÇÃO GRATUITA

VENDA PROIBIDA

4

9 7 8 8 5 3 9 3 0 2 5 4 3

ISBN 978-85-393-0254-3

Sao_Paulo_comocao_de_minha_vida_CAPA_grafica.indd 1 09/08/12 14:57

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Uma campanha de fomento à leitura da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em parceria com a Fundação Editora da Unesp e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

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Comissão Editorial

Carlos Augusto Calil Carlos Roberto Campos de Abreu Sodré

Heloisa Jahn Jézio Hernani Bomfim Gutierre

José de Souza Martins Luciana Veit

Samuel Titan Jr. Sérgio Vaz

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São Paulo!comoção de minha

vida…

MáRIO dE AndRAdE

seleta organizada porTelê Ancona Lopez

Tatiana Longo Figueiredo

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Editora afiliada:

© 2012 Editora Unesp

Fundação Editora da Unesp (FEU) Praça da Sé, 108

01001 ‑900 – São Paulo – SP Tel.: (0xx11) 3242 ‑7171 Fax: (0xx11) 3242 ‑7172

www.editoraunesp.com.br www.livrariaunesp.com.br

[email protected]

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Rua da Mooca, 1921, Mooca 03103‑902 – São Paulo – SP

Sac: 0800‑0123‑401 [email protected]

[email protected] www.imprensaoficial.com.br

CIP — Brasil. Catalogação na fonte Sindicato nacional dos Editores de Livros, RJ

A565sAndrade, Mário de, 1893‑1945 São Paulo! comoção de minha vida... / Mário de Andrade; seleta organizada por Telê Ancona Lopez, Tatiana Longo Figueiredo. – São Paulo: Ed. Unesp: Prefeitura Municipal: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012. 176p. (Projeto de Mão Em Mão)

Inclui bibliografia ISBn 978‑85‑393‑0254‑3 (Unesp) ISBn 978‑85‑401‑0086‑2 (Imprensa Oficial)

1. Andrade, Mário de, 1893‑1945. 2. Poesia brasileira. 3. Conto brasileiro. 4. Modernismo (Literatura) ‑ Brasil. I. Lopez, Telê Ancona. II. Figueiredo, Tatiana Longo. III. Título. IV. Série.

12‑5093. Cdd: 869.91 CdU: 821.134.3(81)‑1

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de Mão Em Mão

Com a distribuição de livros gratuitamente em locais de ampla circulação, este projeto procura incentivar o gos‑to pela leitura.

O leitor poderá levar as publicações, sem necessida‑de de registro de retirada, com o compromisso de que as obras serão entregues em pontos de devolução e assim partilhadas com futuros leitores. A iniciativa se insere dentro das ações da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo que buscam a efetivação das políticas de leitura e informação, permitindo que todos os cidadãos tenham acesso a atividades culturais.

Conheça os pontos de distribuição dos livros “de Mão Em Mão” no site www.projetodemaoemmao.com.br.

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Sumário

Sobre este livro: São Paulo! 11 comoção de minha vida…

I. A poesia 15

Inspiração 17 Os cortejos 18 O rebanho 19 Tietê 20 Paisagem no 1 21 Ode ao burguês 22 domingo 24 Anhangabaú 26 noturno 27 Tu 30 Colloque sentimental 32 Paisagem no 4 34 XIII – “Seis horas lá em S. Bento.” 35 XVII – “Mário de Andrade, 37 intransigente pacifista […]”

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XXII – “A manhã roda 39 macia a meu lado” XXXIII – “Meu gozo profundo 40 ante a manhã sol” Sambinha 41 Paisagem no 5 42 I – descobrimento 43 II – “Meu cigarro está aceso.” 44 V – “Aquele quarto me sufoca,” 46 Momento 48 Toada 49 V – dor 50 Momento 52 “Minha viola bonita,” 53 “São Paulo pela noite.” 54 “Garoa do meu São Paulo,” 55 “Vaga um céu indeciso 56 entre nuvens cansadas.” “Ruas do meu São Paulo,” 57 “O bonde abre a viagem,” 58 “Eu nem sei se vale a pena” 59 “O céu claro tão 61 largo, cheio de calma na tarde,” “na rua Barão de Itapetininga” 62 “Beijos mais beijos,” 63 “A catedral de São Paulo” 64 “na rua Aurora eu nasci” 65 “Quando eu morrer quero ficar,” 66 A meditação sobre o Tietê 68

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II. A ficção 81 nas terras do igarapé Tietê 83 Túmulo, túmulo, túmulo 89 Primeiro de Maio 105 Balança, Trombeta e Battleship 117 ou o descobrimento da alma

III. O poeta por ele mesmo 145 Eu sou trezentos… 147

notas/Glossário 149 Bibliografia 159 Endereços úteis 161

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Sobre este livro

“São Paulo! comoção de minha vida…”

Este verso de Mário de Andrade (1893 ‑1945), composto em 1922, resume a ligação essencial do escritor paulista‑no com uma cidade por ele transfigurada em sua cria‑ção de artista. São Paulo perpassa a poesia e a prosa do modernista que foi capaz de estender as fronteiras estéti‑cas do modernismo de programa, afirmando ‑se moderno na ironia do olhar sobre a própria obra, sobre seu país e sobre seu tempo; na denúncia das injustiças sociais e das contradições do progresso, assim como na constatação da angústia e da inelutável solidão do homem. Sem esquecer o riso, na consciência da precariedade da arte e da vida. Estruturou um projeto literário renovador, muitas vezes visionário, moldado em três vertentes – estética, ideológi‑ca e linguística. O poeta, romancista e contista que pôde tocar verdades humanas está atualmente traduzido em diversos idiomas.

São Paulo, musa e espaço arlequinal, microcosmo per‑corrido pelo eu lírico e pela narrativa de multiplicado

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mário de andrade

foco, reflete a experimentação dirigida pelo crivo crítico das vanguardas europeias e por meditadas lições do pas‑sado, no anseio de ser brasileiro e assim contribuir para o “contingente universal”. A Pauliceia mariodeandra‑diana não admite a modernolatria alienada, o bairrismo eufórico ou o nacionalismo ufanista. no mundo de hoje, mostra ‑se, por vezes, de impressionante atualidade.

na presente seleta, São Paulo demora ‑se na poesia des‑de Pauliceia desvairada, 1922, marco em nosso modernis‑mo; e em textos que caminham até “A meditação sobre o Tietê”, poema concluído poucos dias antes de Mário falecer, em fevereiro de 1945. na prosa, abrange a rapsó‑dia Macunaíma, Os contos de Belazarte, os Contos novos e a novela inacabada Balança, Trombeta e Battleship, situando ‑se na década de 1920 e nos anos que a seguiram, até a morte do escritor.

Esta edição acata o vocabulário e a sintaxe os quais, tanto na prosa como na poesia escolhidas, manifestam‑‑se na língua portuguesa falada no país, enquanto arti‑fício resultante da pesquisa empreendida por aquele que chegou a trabalhar em uma Gramatiquinha da fala bra‑sileira. Ao pôr em prática a atualização ortográfica dos textos pela norma vigente, a seleta não se furtou a cum‑prir, paralelamente, a grafia fonética de determinadas palavras e expressões, compartilhando a preocupação com a prosódia e o sentido, o que, na parcela linguística do nacionalismo do modernista, responde por idiossio‑crasias ortográficas. Ao acatar essas formas e o discurso “oral” de Belazarte (“Belazarte me contou”) ou o canto do narrador rapsodo em Macunaíma, o estabelecimento do texto respeitou a sonoridade e o ritmo da frase, ques‑tões de importância estilística capital, assim como a pon‑tuação. Formas como si, milhor, quasi, rúim, viada, ólio,

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sobre este livro

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dezanove, engulia, há ‑de, já ‑hoje, de ‑tarde, diz ‑que, cai‑xadóclos, malestar, senvergonha, a ‑pé e outras, garantem a fidelidade decalcada em manuscritos e tiragens realiza‑das durante a vida do autor.

Cabe lembrar que o ingresso desta coletânea da obra literária de Mário de Andrade no projeto de Mão Em Mão vale como o eco que consolida a democratização do saber pela qual este lúcido intelectual lutou, entre 1935 e 1938, à frente do departamento de Cultura da Municipalidade de São Paulo. E o livro termina, aberto a novas dimensões nos versos de “Eu sou trezentos…”.

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I. A poesia

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Inspiração*

“Onde até na força do verão haviatempestades de ventos e frios de

crudelíssimo inverno.”Fr. Luís de Sousa1

São Paulo! comoção de minha vida…Os meus amores são flores feitas de original!…Arlequinal!… Traje de losangos… Cinza e ouro…Luz e bruma… Forno e inverno morno…Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes…Perfumes de Paris… Arys!2

Bofetadas líricas no Trianon…3 Algodoal!…

São Paulo! comoção de minha vida…Galicismo4 a berrar nos desertos da América!

* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias, 1941.

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mário de andrade

Os cortejos*

Monotonias das minhas retinas…Serpentinas de entes frementes a se desenrolar…Todos os sempres das minhas visões! “Bon giorno, caro”.

Horríveis as cidades!Vaidades e mais vaidades…nada de asas! nada de poesia! nada de alegria!Oh! os tumultuários das ausências!Pauliceia – a grande boca de mil dentes;e os jorros dentre a língua trissulcade pus e de mais pus de distinção…

Giram homens fracos, baixos, magros…Serpentinas de entes frementes a se desenrolar…

Estes homens de São Paulo,todos iguais e desiguais,quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,parecem ‑me uns macacos, uns macacos.

* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922.

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A poESIA

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O rebanho*

Oh! minhas alucinações!Vi os deputados, chapéus altos,sob o pálio vesperal,5 feito de mangas ‑rosas,saírem de mãos dadas do Congresso…Como um possesso num acesso em meus aplausosaos salvadores do meu estado amado!…

desciam, inteligentes, de mãos dadas,entre o trepidar dos táxis vascolejantes,a rua Marechal deodoro…Oh! minhas alucinações!Como um possesso num acesso em meus aplausosaos heróis do meu estado amado!…

E as esperanças de ver tudo salvo!duas mil reformas, três projetos…Emigram os futuros noturnos…E verde, verde, verde!…Oh! minhas alucinações!Mas os deputados, chapéus altos,mudavam ‑se pouco a pouco em cabras!Crescem ‑lhes os cornos, descem ‑lhes as barbinhas…E vi que os chapéus altos do meu estado amado,com os triângulos de madeira no pescoço,nos verdes esperanças, sob as franjas de ouro da tarde,se punham a pastarrente do palácio do senhor presidente…6

Oh! minhas alucinações!

* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias, 1941.

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mário de andrade

Tietê*

Era uma vez um rio…Porém os Borbas ‑Gatos7 dos ultranacionais [esperiamente!8

Havia nas manhãs cheias de sol do entusiasmoas monções9 da ambição…E as gigânteas vitórias!As embarcações singravam rumo do abismal [descaminho…Arroubos… Lutas… Setas… Cantigas… Povoar!Ritmos de Brecheret!…10 E a santificação da morte!Foram ‑se os ouros!… E o hoje das turmalinas!…11

– nadador! vamos partir pela via dum Mato ‑Grosso?– Io! Mai!… (Mais dez braçadas.Quina Migone.12 Hat Stores.13 Meia de seda.)Vado a pranzare con la Ruth.

* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922.

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A poESIA

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Paisagem no 1*

Minha Londres das neblinas finas!Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.Há neve de perfumes no ar.Faz frio, muito frio…E a ironia das pernas das costureirinhasparecidas com bailarinas…O vento é como uma navalhanas mãos dum espanhol. Arlequinal!…Há duas horas queimou sol.daqui a duas horas queima sol.

Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos,um tralalá… A guarda ‑cívica! Prisão!necessidade a prisãopara que haja civilização?Meu coração sente ‑se muito triste…Enquanto o cinzento das ruas arrepiadasdialoga um lamento com o vento…

Meu coração sente ‑se muito alegre!Este friozinho arrebitadodá uma vontade de sorrir!E sigo. E vou sentindo,à inquieta alacridade14 da invernia,como um gosto de lágrimas na boca…

* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias, 1941.

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mário de andrade

Ode ao burguês*

Eu insulto o burguês! O burguês ‑níquel,15

o burguês ‑burguês!A digestão bem feita de São Paulo!O homem ‑curva! o homem ‑nádegas!O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,é sempre um cauteloso pouco ‑a ‑pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!que vivem dentro de muros sem pulos;e gemem sangues de alguns milréis fracospara dizerem que as filhas da senhora falam o francêse tocam o Printemps16 com as unhas!

Eu insulto o burguês ‑funesto!O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!Fora os que algarismam os amanhãs!Olha a vida dos nossos setembros!Fará sol? Choverá? Arlequinal!Mas à chuva dos rosaiso êxtase fará sempre sol!

Morte à gordura!Morte às adiposidades cerebrais!Morte ao burguês ‑mensal!ao burguês ‑cinema! Ao burguês ‑tílburi!17 →

* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias, 1941.

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A poESIA

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Padaria Suíça!18 Morte viva ao Adriano!“– Ai, filha, que te darei pelos teus anos?– Um colar… – Conto e quinhentos!!!Mas nós morremos de fome!”

Come! Come ‑te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!Oh! purée de batatas morais!Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!Ódio aos temperamentos regulares!Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia!Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,sempiternamente as mesmices convencionais!de mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!dois a dois! Primeira posição! Marcha!Todos para a Central19 do meu rancor inebriante!

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!Morte ao burguês de giolhos,20

cheirando religião e que não crê em deus!Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!…

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mário de andrade

domingo*

Missas de chegar tarde, em rendas,e dos olhares acrobáticos…Tantos telégrafos sem fio!Santa Cecília regorgita de corpos lavadose de sacrilégios picturais…Mas Jesus Cristo nos desertos,mas o sacerdote no Confiteor…21 Contrastar!– Futilidade, civilização…

Hoje quem joga?… O Paulistano.22

Para o Jardim América das rosas e dos pontapés!Friedenreich23 fez gol! Corner! Que juiz!Gostar de Bianco? Adoro. Qual Bartô…E o meu xará maravilhoso!…24

– Futilidade, civilização…

Mornamente em gasolinas… Trinta e cinco contos!Tens dez milréis? Vamos ao corso…25

E filar cigarros a quinzena inteira…Ir ao corso é lei. Viste Marília?E Filis? Que vestido: pele só!Automóveis fechados… Figuras imóveis…O bocejo do luxo… Enterro.E também as famílias dominicais por atacado,entre os convenientes perenemente…– Futilidade, civilização.

* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922.

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A poESIA

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Central. drama de adultério.A Bertini26 arranca os cabelos e morre.Fugas… Tiros… Tom Mix!27

Amanhã fita alemã… de beiços…As meninas mordem os beiços pensando em fita [alemã…As romas de Petrônio…28

E o leito virginal… Tudo azul e branco!descansar… Os anjos… Imaculado!As meninas sonham masculinidades…– Futilidade, civilização.

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mário de andrade

Anhangabaú*

Parques do Anhangabaú nos fogaréus da aurora…Oh larguezas dos meus itinerários!…Estátuas de bronze nu correndo eternamente,num parado desdém pelas velocidades…O carvalho votivo escondido nos orgulhosdo bicho de mármore parido no Salon…29

Prurido de estesias perfumando em rosaiso esqueleto trêmulo do morcego…nada de poesia, nada de alegrias!…E o contraste boçal do lavradorque sem amor afia a foice…

Estes meus parques do Anhangabaú ou de Paris,onde as tuas águas, onde as mágoas dos teus sapos?“– Meu pai foi rei!– Foi. – não foi. – Foi. – não foi.”30

Onde as tuas bananeiras?Onde o teu rio frio encanecido31 pelos nevoeiros,contando histórias aos sacis?…

Meu querido palimpsesto32 sem valor!Crônica em mau latimcobrindo uma écloga33 que não seja de Virgílio!…

* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922

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A poESIA

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noturno*

Luzes do Cambuci pelas noites de crime…34

Calor!… E as nuvens baixas muito grossas,feitas de corpos de mariposas,rumorejando na epiderme das árvores…

Gingam os bondes como um fogo de artifício,sapateando nos trilhos,cuspindo um orifício na treva cor de cal…

num perfume de heliotrópios35 e de poçasgira uma flor ‑do ‑mal… Veio do Turquestã;e traz olheiras que escurecem almas…Fundiu esterlinas entre as unhas roxasnos oscilantes de Ribeirão Preto…

– Batat’assat’ô furnn!…36

Luzes do Cambuci pelas noites de crime!…Calor… E as nuvens baixas muito grossas,feitas de corpos de mariposas,rumorejando na epiderme das árvores…

Um mulato cor de ouro,com uma cabeleira feita de alianças polidas…Violão! “Quando eu morrer…” Um cheiro pesado de [baunilhasoscila, tomba e rola no chão…Ondula no ar a nostalgia das Baías…

* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias, 1941.

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mário de andrade

E os bondes passam como um fogo de artifício,sapateando nos trilhos,ferindo um orifício na treva cor de cal…

– Batat’assat’ô furnn!…

Calor!… Os diabos andam no arcorpos de nuas carregando…As lassitudes37 dos sempres imprevistos!e as almas acordando às mãos dos enlaçados!Idílios sob os plátanos!…E o ciúme universal às fanfarras gloriosasde saias cor ‑de ‑rosa e gravatas cor ‑de ‑rosa!…

Balcões na cautela latejante, onde florem Iracemaspara os encontros dos guerreiros brancos…38 Brancos?E que os cães latam nos jardins!ninguém, ninguém, ninguém se importa!Todos embarcam na Alameda dos Beijos da Aventura!Mas eu… Estas minhas grades em girândolas39 de [jasmins,enquanto as travessas do Cambuci nos livresda liberdade dos lábios entreabertos!…Arlequinal! Arlequinal!As nuvens baixas muito grossas,feitas de corpos de mariposas,rumorejando na epiderme das árvores…Mas sobre estas minhas grades em girândolas de [jasmins,o estelário delira em carnagens de luz,e meu céu é todo um rojão de lágrimas!…

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A poESIA

29

E os bondes riscam como um fogo de artifício,sapateando nos trilhos,jorrando um orifício na treva cor de cal…

– Batat’assat’ô furnn!…

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mário de andrade

Tu*

Morrente chama esgalga,40

mais morta inda no espírito!Espírito de fidalga,que vive dum bocejo entre dois galanteiose de longe em longe uma chávena41 da treva bem forte!

Mulher mais longaque os pasmos alucinadosdas torres de São Bento!Mulher feita de asfalto e de lamas de várzea,toda insultos nos olhos,toda convites nessa boca louca de rubores!

Costureirinha de São Paulo,ítalo ‑franco ‑luso ‑brasílico ‑saxônica,gosto dos teus ardores crepusculares,crepusculares e por isso mais ardentes,bandeirantemente!

Lady Macbeth42 feita de névoa fina,pura neblina da manhã!Mulher que és minha madrasta e minha irmã!Trituração ascencional dos meus sentidos!Risco de aeroplano entre Moji e Paris!Pura neblina da manhã!

* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias, 1941.

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A poESIA

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Gosto dos teus desejos de crime turcoe das tuas ambições retorcidas como roubos!Amo ‑te de pesadelos taciturnos,Materialização da Canaã do meu Poe!43

never more!44

Emílio de Menezes insultou a memória do meu Poe…45

Oh! Incendiária dos meus aléns sonoros!tu és o meu gato preto!Tu te esmagaste nas paredes do meu sonho!este sonho medonho!…

E serás sempre, morrente chama esgalga,meio fidalga, meio barregã,46

as alucinações crucificantesde todas as auroras de meu jardim!

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mário de andrade

Colloque sentimental*

Tenho os pés chagados nos espinhos das calçadas…Higienópolis!… As Babilônias dos meus desejos [baixos…Casas nobres de estilo… Enriqueceres em tragédias…Mas a noite é toda um véu ‑de ‑noiva ao luar…

A preamar dos brilhos das mansões…O jazz ‑band da cor… O arco ‑íris dos perfumes…O clamor dos cofres abarrotados de vidas…Ombros nus, ombros nus, lábios pesados de adultério…E o rouge – cogumelo das podridões…Exércitos de casacas eruditamente bem talhadas…Sem crimes, sem roubos o carnaval dos títulos…Se não fosse o talco adeus sacos de farinha!Impiedosamente…

– Cavalheiro… – Sou conde! – Perdão.Sabe que existe um Brás, um Bom Retiro?

– Apre! respiro… Pensei que era pedido.Só conheço Paris!

– Venha comigo então.Esqueça um pouco os braços da vizinha…

– Percebeu, hein! dou ‑lhe gorjeta e cale ‑se.O sultão tem dez mil… Mas eu sou conde!

* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias, 1941.

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A poESIA

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– Vê? Estas paragens trevas de silêncio…nada de asas, nada de alegria… A lua…

A rua toda nua… As casas sem luzes…E a mirra47 dos martírios inconscientes…

– deixe ‑me pôr o lenço no nariz.Tenho todos os perfumes de Paris!

– Mas olhe, embaixo das portas, a escorrer…– Para os esgotos! Para os esgotos!

– … a escorrer,um fio de lágrimas sem nome!…

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mário de andrade

Paisagem no 4*

Os caminhões rodando, as carroças rodando,rápidas as ruas se desenrolando,rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos…E o largo coro de ouro das sacas de café!…

na confluência o grito inglês da São Paulo Railway…48

Mas as ventaneiras da desilusão! a baixa do café!…As quebras, as ameaças, as audácias superfinas!…Fogem os fazendeiros para o lar!… Cincinato Braga!…49

Muito ao longe o Brasil com seus braços cruzados…Oh! as indiferenças maternais!…

Os caminhões rodando, as carroças rodando,rápidas as ruas se desenrolando,rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos…E o largo coro de ouro das sacas de café!…

Lutar!A vitória de todos os sozinhos!…As bandeiras e os clarins dos armazéns abarrotados…Hostilizar!… Mas as ventaneiras dos braços cruzados!…

E a coroação com os próprios dedos!Mutismos presidenciais, para trás!Ponhamos os (Vitória!) colares de presas inimigas!Enguirlandemo ‑nos de café ‑cereja!Taratá! e o peã50 de escárnio para o mundo!

Oh! este orgulho máximo de ser paulistamente!!!

* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias, 1941.

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XIII*

Seis horas lá em S. Bento.Os lampiões fecham os olhos de repenteÀ voz de comando do sino.A madrugada imensamente escuraAbafa as arquiteturas da praça.E a estátua de Verdi51 também, graças a deus!

Mãos nos bolsosGrupinhos entanguidosEncafuados nas socavas dos andaimesOs reservistas que nem malfeitores.

dlem! dlem!…“SAnT’AnA”

Vem vindo a procissão com tocheiros e luzes.E principia o assalto agitado sem vozes.

Anticlericais!Fora estandartes andores!

desaparecem os padres da noite.As filhas ‑de ‑Maria das neblinasEspavoridas pelo Anhangabaú… →

* Poema publicado em Losango cáqui ou afetos militares de mistu‑ra com os porquês de eu saber alemão, 1926. Obra escrita em 1922, ano no qual o autor, como reservista do exército, realiza exercícios militares. O título Losango foi recortado do traje arlequinal do poeta em Pauliceia desvairada, escolhida a cor cáqui dos unifor‑mes militares à época. deve ‑se notar, em determinados poemas de Losango cáqui, a organização gráfica que concretiza, na página, um desenho ligado ao tema, poesia visual, como nos Calligram‑mes de Appolinaire (1880 ‑1918), na vanguarda francesa.

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mário de andrade

Assaltantes equilibrados nos estribos.Estilhaço me fere nos olhos o sangue da aurora.Risadas.

Chamados.Cigarros acesos.

Incêndio!Extermínio!

Vitória completa…

Faz frio de geada esta manhã…

A gente se encosta nos outros, pedindoUma esmolinha de calor.E o bonde abala sapateando nos trilhosEm busca das casernas sinistras cor ‑de ‑chumbo.

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XVII*

Mário de Andrade, intransigente pacifista, internacio‑nalista amador, comunica aos camaradas que bem con‑travontade, apesar da simpatia dele por todos os homens da Terra, dos seus ideais de confraternização universal, é atualmente soldado da República, defensor interino do Brasil.

E marcho tempestuoso noturno.Minha alma cidade das greves sangrentas,Inferno fogo InFERnO em meu peito,Insolências blasfêmias bocagens na língua.

Meus olhos navalhando a vida detestada.

A vista renasce na manhã bonita.Pauliceia lá embaixo epiderme ásperaAmbarizada pelo sol vigoroso,Com o sangue do trabalho correndo nas veias das ruas.

Fumaça bandeirinha.Torres.Cheiros.BarulhosE fábricas…naquela casa mora,Mora, ponhamos: Guaraciaba…A dos cabelos fogaréu!…Os bondes meus amigos íntimosQue diariamente me acompanham pro [trabalho… →

* Poema publicado em Losango cáqui, 1926 e em Poesias, 1941.

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mário de andrade

Minha casa…Tudo caiado de novo!

É tão grande a manhã!É tão bom respirar!

É tão gostoso gostar da vida!…

A própria dor é uma felicidade…

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A poESIA

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XXII*

A manhã roda macia a meu ladoEntre arranha ‑céus de luzConstruídos pelo melhor engenheiro da Terra.

Como ele deixou longe as renascenças do sr. dr. Ramos [de Azevedo!52

de que valem a Escola normal o Théatre Municipal de [l’OpéraE o sinuoso edifício dos Correios ‑e ‑TelégrafosCom aquele relógio ‑diadema made inexpressively?

na Pauliceia desvairada das minhas sensaçõesO Sol é o sr. engenheiro oficial.

* Poema publicado em Losango cáqui, 1926.

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mário de andrade

XXXIII*

“Prazeres e dores prendem a alma no cor‑po como com um prego. Tornam ‑a corporal… Consequentemente é impossível a ela chegar pura nos Infernos.”

Platão

Meu gozo profundo ante a manhã sola vida carnaval…

AmigosAmores

RisadasOs piás imigrantes me rodeiam pedindo retratinhos de [artistas de cinema, desses que vêm [nos maços de cigarros.Me sinto a Assunção de Murilo!53

Já estou livre da dor…Mas todo vibro da alegria de viver.

Eis porque minha alma inda é impura.

* Poema publicado em Losango cáqui, 1926 e em Poesias, 1941.

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Sambinha*

Vêm duas costureirinhas pela rua das Palmeiras.Afobadas, braços dados, depressinha,Bonitas, Senhor! que até dão vontade pros homens da rua.As costureirinhas vão explorando perigos…Vestido é de seda.Roupa ‑branca é de morim.54

Falando conversas fiadasAs duas costureirinhas passam por mim.– Você vai?

– não vou não!Parece que a rua parou pra escutá ‑las.nem os trilhos sapecasJogam mais bondes um pro outro.E o sol da tardinha de abrilEspia entre as pálpebras crespas de duas nuvens.As nuvens são vermelhas.A tardinha é cor ‑de ‑rosa.

Fiquei querendo bem aquelas duas costureirinhas…Fizeram ‑me peito batendoTão bonitas, tão modernas, tão brasileiras!Isto é…Uma era ítalo ‑brasileira.Outra era áfrico ‑brasileira.Uma era branca.Outra era preta.

* Poema publicado em Clã do jabuti, 1927 e em Poesias, 1941.

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mário de andrade

Paisagem no 5*

de ‑dia um solzão de matar taperá55

Passeou na cidade o fogo de deus.Os paulistas andaram que nem caçaremas56 tontasdaqui pra ali buscando as sombras de mentira.Mas agorinha mesmo deram as vinte horas.de já ‑hoje quando a noite agarrou empurrando a luz [quente pra trás do horizonteBrisou uma friagem de inverno refrescando os pracianos [e a cidade rica.As famílias pararam de suar.Janelas abertas e portas abertas em todas as casas.Se boia,57 se conversa descansado.nas varandas portas terraços escurosAcende apagam os vaga ‑lumes dos cigarros.

Todas as bulhas se ajuntam num riso feliz.

Faz gosto a gente andar assim à toaReparando na calma da sua cidade natal.

* Poema publicado em Clã do jabuti, 1927.

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A poESIA

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I descobrimento*

Abancado à escrivaninha em São Paulona minha casa da rua Lopes Chavesde supetão senti um friúme por dentro.Fiquei trêmulo, muito comovidoCom o livro palerma olhando pra mim.

não vê que me lembrei que lá no norte, meu deus! muito [longe de mim,na escuridão ativa da noite que caiu,Um homem pálido, magro, de cabelo escorrendo nos [olhos,depois de fazer uma pele com a borracha do dia,Faz pouco se deitou, está dormindo.

Esse homem é brasileiro que nem eu…

* Parte I de “dois poemas acreanos”, publicados em Clã do jabuti, 1927 e em Poesias, 1941.

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mário de andrade

II*

Meu cigarro está aceso.O fumo esguicha,O fumo sobe,

O fumo sabe ao bem e ao mal…O bem e o mal, que coisas sérias!

Riqueza é bem.Tristeza é mal.

desastressanguetirosdoença

dança!…

O elevador subiu aos céus, ao nono andar,O elevador desce ao subsolo,Termômetro das ambições.

O açúcar sobe.O café sobe.

Os fazendeiros vêm do lar.Eu danço!

Tudo é subir.Tudo é descer.

Tudo é dançar!O Esplanada58 grugrulha.Todos os homens vão no cinema.Lindas mulheres nos camarotes.

Leves mulheres a passar…

* Poema publicado na parte “danças” de Remate de males, 1930 e em Poesias, 1941. Explora graficamente o movimento da fumaça.

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A poESIA

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não frequento cafés ‑concertos,Mas tenho as minhas aventuras…

desventurados os coiós!A vida é farta.

O mundo é grande.Tem muito canto onde esconder!

Subúrbioscasaspensõestáxis…

Vejo sonâmbulos ao luarBeijando moças estioladas.

Tolos! a poeira sobe no ar…O fumo sobe e morre no ar…

Eu vivo no ar!dançarinar!…

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mário de andrade

V*

Aquele quarto me sufoca,Prefiro ar livre,não voltarei.

Ar livre, ar leve que dança, dança!dançam as rosas nos rosais!

São flores vermelhasSão botões perfeitosSão rosas abertas, gritos de prazer!

São Paulo é um rosal!São Paulo é um jardim!Morena, tem pena,Tem pena de mim!

A rosa ‑riso dança nos teus lábiosvermelhosmordidos…

Volúpias alegres…O mundo não vê?

nós nos separamos.nós nos ajuntamos.O bonde passou,O amigo passou…

O mundo não vê?

* Poema publicado na parte “danças” de Remate de Males, 1930 e em Poesias, 1941.

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A vida é tão curta!Quem tem certeza do amanhã!

Lourenço de Medicis?…59

Florença delira.Paris queima,

Viena valsa,Berlim ri…

E new York abençoa o jazz universal.negros de cartolaTurcos de casaca

Montecarlo e Caldas e CopacabanaTudo é um caxambu!

EU dAnÇO!dança do amor sem sentimento?dança das rosas nos rosais!…

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mário de andrade

Momento*

ninguém ignora a inquietação do clima paulistano…Pois tivemos hoje uma arraiada fresca de neblina.

depois do calorão duma noite maldita, sem sono,Uma neblina leviana desprendeu das nuvens lisasE pousou um momentinho sobre o corpo da cidade.Ôh como era boa, e o carinho que teve pousando!não espantou, não bateu asa, não fez nenhuma bulha,Veio, que nem beijo de minha mãe se estou enfezadoVem mansinho, sem medo de mim, e pousa em [minha testa.Assim neblina fez, e o sopro dela acalmou as penasdesta cidade histórica, desta cidade completa,Cheia de passado e presente, berço nobre onde nasci.Os beijos de minha mãe são tal ‑e ‑qual a neblina [madruga…Meu pensamento é tal ‑e ‑qual São Paulo, é histórico [e completo,É presente e passado e dele nasce meu ser verdadeiro…Vem, neblina, vem! Beija ‑me, sossega ‑me o meu [pensamento!

* Escrito em novembro de 1925, publicado na parte “Marco de vira‑ção” de Remate de males, 1930.

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A poESIA

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Toada*

no outro lado da cidade,não sei o quê, foi o vento,O vento me dispersou.

Viajei por terras estranhasEntre flores espantosas,Tive coragem pra tudono outro lado da cidade,Sem tomar cuidado em mim.Passeava com tais perícias,Punha girafas na esquina,Quantos milagres na viagem,Meu coração de ninguém!E pude estar sem perigoPor entre aconchegos pagos,Em que o carinho mais velhoInda guardava agressão.Busquei São Paulo no mapa,Mas tudo, com cara nova,duma tristeza de viagem,Tirava fotografia…E o meu cigarro na tardeBrilhava só, que nem deus.Fiquei tão pobre, tão tristeQue até meu olhar fechou.

no outro lado da cidadeO vento me dispersou.

* Poema datado de 1932; publicado na parte “A costela do Grã Cão” de Poesias, 1941.

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mário de andrade

V – dor*

A cidade está mais agitada a meidia.As ruas devastam minha virgindadeE os cidadãos talvez marquem encontro nos meus lábios.Minha boca é o peixe macho e derramo núcleos de amor [pelas ruas.Que irão fecundar os ovários da vida algum dia.

Eu venho das altas torres, venho dos matos alagados,Com meus passos conduzidos pelo fogo do Grã Cão!Mas pra viver na cidade de São Paulo escondi na [corrente de prataA inútil semente do milho, a maniva,60

E enroupei de acerba61 seda o arlequinal do meu dizer…

E agora apontai ‑me, janelas do Martinelli,62

Calçadas, ruas, ruas, ladeiras rodantes, viadutos,Onde estão os judeus de consciência lívida?Os tortuosos japoneses que flertam São Paulo?Os ágeis brasileiros do nordeste? os coloridos?Onde estão os coloridos italianos? onde estão os [turcomanos?Onde estão os pardais, madame la Françoise,63

Ergo, ego, Ega,64 égua, água, iota, calúnia e notícias,Balouçantes nas marquesas dos roxos arranha ‑céus?…

não vos trago a fala de Jesus nem o escudo de Aquiles,65

nem a casinha pequenina ou a sombra do jatobá. →

* Poema datado de 15 de outubro de 1933; publicado na parte “Grã Cão do outubro” de Poesias, 1941.

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Tudo escondi no caminho da corrente de prata.Mas eu venho das altas torres trazido ao facho do Grã Cão,Lábios, lábios para o encontro em que cantareis [fatalmente,Ameaçados pela fome que espia detrás da coxilha,A dor, a caprichosa dor desocupada que desde milhões [de existênciasBusca a razão de ser.

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mário de andrade

Momento*

O vento corta os seres pelo meio.Só um desejo de nitidez ampara o mundo…Faz sol. Fez chuva. E a ventaniaEsparrama os trombones das nuvens no azul.

ninguém chega a ser um nesta cidade,As pombas se agarram nos arranha ‑céus, faz chuva.Faz frio. E faz angústia… É este vento violentoQue arrebenta dos grotões da terra humanaExigindo céu, paz e alguma primavera.

* Poema datado de abril de 1937; publicado na parte “Grã Cão do outubro” de Poesias, 1941.

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A poESIA

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Minha viola bonita,*

Bonita viola minha,Cresci, cresceste comigo

nas Arábias.

Minha viola namorada,namorada viola minha,Cantei, cantaste comigo

Em Granada.

Minha viola ferida,Ferida viola minha,O amor fugiu para leste

na borrasca.

Minha viola quebrada,Raiva, anseios, lutas, vida,Miséria, tudo passou ‑se

Em São Paulo.

* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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mário de andrade

São Paulo pela noite.*

Meu espírito alertaBaila em festa e metrópole.

São Paulo na manhã.Meu coração abertodilui ‑se em corpos flácidos.

São Paulo pela noite.O coração alçadoSe expande em luz sinfônica.

São Paulo na manhã.O espírito cansadoSe arrasta em marchas fúnebres.

São Paulo noite e dia…

A forma do futurodefine as alvoradas:Sou bom. E tudo é glória.

O crime do presenteEnoitece o arvoredo:Sou bom. E tudo é cólera.

* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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Garoa do meu São Paulo,*

– Timbre triste de martírios –Um negro vem vindo, é branco!Só bem perto fica negro,Passa e torna a ficar branco.

Meu São Paulo da garoa,– Londres das neblinas finas –Um pobre vem vindo, é rico!Só bem perto fica pobre,Passa e torna a ficar rico.

Garoa do meu São Paulo,– Costureira de malditos –Vem um rico, vem um branco,São sempre brancos e ricos…

Garoa, sai dos meus olhos.

* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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mário de andrade

Vaga um céu indeciso entre nuvens cansadas.*

Onde está o insofrido? O mal das almasQuase parece um bem na linha das calçadas,A palavra se inutiliza em brisas calmas

de andantes, onde estou! no entanto é dia claro…Toda forma de ação se esvai numa atonia,Há desamparo e aceitação do desamparo.

– Essa história de amar quando começa o dia…

* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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Ruas do meu São Paulo,*

Onde está o amor vivo,Onde está?

Caminhos da cidade,Corro em busca do amigo,Onde está?

Ruas do meu São Paulo,Amor maior que o cibo,66

Onde está?

Caminhos da cidade,Resposta ao meu pedido,Onde está?

Ruas do meu São Paulo,A culpa do insofrido,Onde está?

Há ‑de estar no passado,nos séculos malditos,Aí está.

* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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mário de andrade

O bonde abre a viagem,*

no banco ninguém,Estou só, stou sem.

depois sobe um homem,no banco sentou,Companheiro vou.

O bonde está cheio,de novo porémnão sou mais ninguém.

* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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Eu nem sei se vale a pena*

Cantar São Paulo na lida,Só gente muito iludidaLimpa o goto e assopra a avena,67

Esta angústia não serena,Muita fome pouco pão,Eu só vejo na funçãoMiséria, dolo,68 ferida,

Isso é vida?

São glórias desta cidadeVer a arte contando história,A religião sem memóriade quem foi Cristo em verdade,Os chefes nossa amizade,Os estudantes sem textos,Jornalismo no cabresto,Tolos cantando vitória,

Isso é glória?

divórcio pra todo o lado,As guampas fazem furor,Grã ‑finos do despudor,no gasogênio69 empestado,das moças do operariadoSão os gozosos mistérios,Isso de ter filho, néris,E se ama seja o que for,

Isso é amor?

* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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mário de andrade

Mas o pior desta naçãoE ter fábrica de gásQue donos ‑da ‑vida fazIanques e ingleses de ação,Tudo vem de convulsãoEnquanto se insulta o Eixo,70

Lights, Tramas, Corporation,71

E a gente de trás pra trás,Isso é paz?

Pois nada vale a verdade,Ela mesma está vendida,A honra é uma suicida,nuvem a felicidade,E entre rosas a cidade,Muito concha e relambória,72

Sem paz, sem amor, sem glória,Se diz terra progredida,

Eu pergunto:Isso é vida?

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A poESIA

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O céu claro tão largo, cheio de calma na tarde,*

É ver uma criança adormecidaBaixando as pálpebras sem pensamentoSobre um mundo que ainda não viveu.

Luzes suaves e certas, luzes até nas sombras,doçura em tudo. Os homens estão mais longe,São apenas recordações mansas pousandonum sentimento sem temor.

Os ruídos se amaciam quase envelhecidos,doçura em tudo. O chão é vagarento,O ar se esquece. A tensão do insofrido se abrandaComo a firmeza das continuações.

Eu te guardo, homem do meu caminho…Ôh espelhos, Pireneus, caiçaras insistentes,73

Porque não sereis sempre assim!Abril…

* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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mário de andrade

na rua Barão de Itapetininga*

O meu coração não sabe de si,não se vê moça que não seja linda,Minha namorada não passeia aqui.

na rua Barão de ItapetiningaMinha aspiração não aguenta mais,A tarde caindo, a vida foi longa,Mas a esperança já está no cais.

na rua Barão de ItapetiningaMinha devoção quebra duma vez,Porque a mulher que eu amo está longe,É… a princesa do império chinês.

na rua Barão de Itapetininganoite de São João qualquer mês terá,Em mil labaredas de fogo e sangueBandeira ardente tremulará.

na rua Barão de ItapetiningaMinha namorada vem passear.

* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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A poESIA

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Beijos mais beijos,*

Milhões de beijos preferidos,Venho de amores com a minha amada,Insaciáveis.

Rosas mais rosas,Milhões de rosas paulistanas,Venho de sustos com a minha amiga,Implacáveis.

Luzes mais luzes,Luzes perdidas na garoa,Trago tristezas no peito vivo,Implacáveis.

Ideais, ideais,Ideais raivosos do insofrido,Trago verdades novas na boca,Insaciáveis.

Jornais, jornais,notícias que enchem e esvaziam,– Me dá uma bomba sem retardamento,Implacável!

Horas mais horas,Rio do meu mistério esquivo,– Me dá violetas pelos meus dedosInsaciáveis…

* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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mário de andrade

A catedral de São Paulo*

Por deus! que nunca se acaba– Como minha alma.

É uma catedral horrívelFeita de pedras bonitas– Como minha alma.

A catedral de São Paulonasceu da necessidade.– Como minha alma.

Sacro e profano edifício,Tem pedras novas e antigas– Como minha alma.

Um dia há ‑de se acabar,Mas depois se destruirá– Como o meu corpo.

E a alma, memória triste,Por sobre os homens arisca,Sem porto.

* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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A poESIA

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na rua Aurora eu nasci*

na aurora de minha vidaE numa aurora cresci.

no largo do PaiçanduSonhei, foi luta renhida,Fiquei pobre e me vi nu.

nesta rua Lopes ChavesEnvelheço, e envergonhadonem sei quem foi Lopes Chaves.74

Mamãe! me dá essa lua,Ser esquecido e ignoradoComo esses nomes da rua.

* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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mário de andrade

Quando eu morrer quero ficar,*

não contem aos meus inimigos,Sepultado em minha cidade, Saudade.

Meus pés enterrem na rua Aurora,no Paiçandu deixem meu sexo,na Lopes Chaves a cabeça Esqueçam.

no Pátio do Colégio afundemO meu coração paulistano:Um coração vivo e um defunto Bem juntos.

Escondam no Correio o ouvidodireito, o esquerdo nos Telégrafos,Quero saber da vida alheia, Sereia.

O nariz guardem nos rosais,A língua no alto do IpirangaPara cantar a liberdade. Saudade…

Os olhos lá no JaraguáAssistirão ao que há ‑de vir,O joelho na Universidade, Saudade…

* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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A poESIA

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As mãos atirem por aí,Que desvivam como viveram,As tripas atirem pro diabo,Que o espírito será de deus. Adeus.

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mário de andrade

A meditação sobre o Tietê*

água do meu Tietê,Onde me queres levar?– Rio que entras pela terraE que me afastas do mar…

É noite. E tudo é noite. debaixo do arco admirávelda Ponte das Bandeiras o rioMurmura num banzeiro de água pesada e oliosa.É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,Soturnas sombras, enchem de noite tão vastaO peito do rio, que é como se a noite fosse água,água noturna, noite líquida, afogando de apreensõesAs altas torres do meu coração exausto. de repenteO ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,É um susto. E num momento o rioEsplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam75

Agora, arranha ‑céus valentes donde saltamOs bichos blau e os punidores gatos verdes,Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,Luzes e glória. É a cidade… É a emaranhada formaHumana corrupta da vida que muge e se aplaude.E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam →

* Último poema; versões escritas entre 30 de novembro de 1944 e 12 de fevereiro de 1945; Mário de Andrade morre no dia 25 do mes‑mo mês. Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].

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num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho [de morte.É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastadoÉ um rumor de germes insalubres pela noite insone [e humana.

Meu rio, meu Tietê, onde me levas?Sarcástico rio que contradizes o curso das águasE te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,Onde me queres levar?…Por que me proíbes assim praias e mar, por queMe impedes a fama das tempestades do AtlânticoE os lindos versos que falam em partir e nunca mais [voltar?Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra,Me induzindo com a tua insistência turrona paulistaPara as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!…

Já nada me amarga mais a recusa da vitóriado indivíduo, e de me sentir feliz em mim.Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante,E fui por tuas águas levado,A me reconciliar com a dor humana pertinaz,E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens.Eu que decido. E eu mesmo me reconstituí árduo na dorPor minhas mãos, por minhas desvividas mãos, porEstas minhas próprias mãos que me traem,Me desgastaram e me dispersaram por todos os [descaminhos,Fazendo de mim uma trama onde a aranha insaciadaSe perdeu em cisco e pólen, cadáveres e verdades [e ilusões.

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mário de andrade

Mas porém, rio, meu rio, de cujas águas eu nasci,Eu nem tenho direito mais de ser melancólico e frágil,nem de me estrelar nas volúpias inúteis da lágrima!Eu me reverto às tuas águas espessas de infâmias,Oliosas, eu, voluntariamente, sofregamente, sujadode infâmias, egoísmos e traições. E as minhas vozes,Perdidas do seu tenor, rosnam pesadas e oliosas,Varando terra adentro no espanto dos mil futuros,À espera angustiada do ponto. não do meu ponto final!Eu desisti! Mas do ponto entre as águas e a noite,daquele ponto leal à terrestre pergunta do homem,de que o homem há ‑de nascer.

Eu vejo, não é por mim, o meu verso tomandoAs cordas oscilantes da serpente, rio.Toda a graça, todo o prazer da vida se acabou.nas tuas águas eu contemplo o Boi PaciênciaSe afogando, que o peito das águas tudo soverteu.Contágios, tradições, brancuras e notícias,Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas, [fechado, mudo,Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga [e devora.

destino, predestinações… meu destino. Estas águasdo meu Tietê são abjetas76 e barrentas,dão febre, dão a morte decerto, e dão garças e antíteses.77

nem as ondas das suas praias cantam, e no fundodas manhãs elas dão gargalhadas frenéticas,Silvos de tocaias e lamurientos jacarés.Isto não são as águas que se beba, conhecido, isto sãoáguas do vício da terra. Os jabirus e os socós →

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Gargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes [e os ingás,depois morrem. Sobra não. nem sequer o Boi PaciênciaSe muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!… [e os corposPodres envenenam estas águas completas no bem [e no mal.

Isto não são águas que se beba, conhecido! Estas águasSão malditas e dão morte, eu descobri! e é por issoQue elas se afastam dos oceanos e induzem à terra dos [homens,Paspalhonas. Isto não são águas que se beba, eu descobri!E o meu peito das águas se esborrifa, ventarrão vem, [se encapelaEngruvinhado de dor que não se suporta mais.

Me sinto o Pai Tietê! ôh força dos meus sovacos!Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda!nordeste de impaciente amor sem metáforas,Que se horroriza e enraivece de sentir ‑sedemagogicamente tão sozinho! Ôh força!Incêndio de amor estrondante, enchente magnânima [que me inunda,Me alarma e me destroça, inerme78 por sentir ‑medemagogicamente tão só!

A culpa é tua, Pai Tietê? A culpa é tuaSe as tuas águas estão podres de felE majestade falsa? A culpa é tuaOnde estão os amigos? onde estão os inimigos?Onde estão os pardais? e os teus estudiosos e sábios, eOs iletrados? →

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Onde o teu povo? e as mulheres! dona Hircenuhdis [Quiroga!E os Prados e os crespos e os pratos e os barbas e os gatos [e os línguas79

do Instituto Histórico e Geográfico, e os mu ‑seus e a Cúria, e os senhores chantres80 reverendíssimos,Celso nihil estate varíolas gide memoriam,Calípedes flogísticos81 e a Confraria Brasiliense82

[e Clima83

E os jornalistas e os trustkistas e a Light e asnovas ruas abertas e a falta de habitações eOs mercados?… E a tiradeira divina de Cristo!…

Tu és demagogia. A própria vida abstrata tem vergonhade ti em tua ambição fumarenta.És demagogia em teu coração insubmisso.És demagogia em teu desequilíbrio anticéptico84

E antiuniversitário.És demagogia. Pura demagogia.demagogia pura. Mesmo alimpada de metáforas.Mesmo irrespirável de furor na fala reles:demagogia.Tu és enquanto tudo é eternidade e malvasia:85

demagogia.Tu és em meio à (crase) gente pia:demagogia.És tu jocoso86 enquanto o ato gratuito se esvazia:demagogia.És demagogia, ninguém chegue perto!nem Alberto, nem Adalberto nem dagobertoEsperto Ciumento Peripatético e CeciE Tancredo e Afrodísio e também ArmidaE o próprio Pedro e também Alcibíades,87 →

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ninguém te chegue perto, porque tenhamos o pudor,O pudor do pudor, sejamos verticais e sutis, bemSutis!… E as tuas mãos se emaranham lerdas,E o Pai Tietê se vai num suspiro educado e sereno,Porque és demagogia e tudo é demagogia.

Olha os peixes, demagogo incivil! Repete os [carcomidos peixes!São eles que empurram as águas e as fazem servir de [alimentoÀs areias gordas da margem. Olha o peixe dourado sonoro,Esse um é presidente, mantém faixa de crachá no peito,Acirculado de tubarões que escondendo na fuça rotundaO perrepismo88 dos dentes, se revezam na rota solene,Languidamente presidenciais. Ei ‑vem o tubarão ‑marteloE o lambari ‑spitfire. Ei ‑vem o boto ‑ministro.Ei ‑vem o peixe ‑boi com as mil mamicas imprudentes,Perturbado pelos golfinhos saltitantes e as tabaranasEm zás ‑trás dos guapos Pêdêcês e Guaporés.Eis o peixe ‑baleia entre os peixes muçuns lineares,E os bagres do lodo oliva e bilhões de peixins japoneses;Mas é asnático o peixe ‑baleia e vai logo encalhar [na margem,Pois quis engolir a própria margem, confundido [pela facheada.Peixes aos mil e mil, como se diz, brincabrincandode dirigir a corrente, com ares de salva ‑vidas.E lá vem por debaixo e por de ‑banda os interrogativos [peixesInternacionais, uns rubicundos sustentados de mosca,E os espadartes a trote chique, esses são espadartes! [e as duas →

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Semanas Santas se insultam e odeiam, na lufa ‑lufa [de ganharno bicho o corpo do Crucificado. Mas as águas,As águas choram baixas num murmúrio lívido, [e se difundemTecidas de peixe e abandono, na mais incompetente [solidão.

Vamos, demagogia! eia! sus! aceita o ventre e investe!Berra de amor humano impenitente,Cega, sem lágrima, ignara, colérica, investe!Um dia hás ‑de ter razão contra a ciência e a realidade,E contra os fariseus e as lontras luzidias.E contra os guarás e os elogiados. E contra todos os peixes.E também os mariscos, as ostras e os trairões fartos [de equilíbrio ePundhonor.89

Pum d’honor.Quedê as Juvenilidades [Auriverdes!

Eu tenho medo… Meu coração está pequeno, é tantaEssa demagogia, é tamanha,Que eu tenho medo de abraçar os inimigos,Em busca apenas dum sabor,Em busca dum olhar,Um sabor, um olhar, uma certeza…

É noite… Rio! meu rio! meu Tietê!É noite muito!… As formas… Eu busco em vão as formasQue me ancorem num porto seguro na terra dos homens.É noite e tudo é noite. O rio tristementeMurmura num banzeiro de água pesada e oliosa.água noturna, noite líquida… Augúrios90 mornos afogamAs altas torres do meu exausto coração. →

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Me sinto esvair no apagado murmulho das águas.Meu pensamento quer pensar, flor, meu peitoQuereria sofrer, talvez (sem metáfora) uma dor irritada…Mas tudo se desfaz num choro de agoniaPlácida. não tem formas nessa noite, e o rioRecolhe mais esta luz, vibra, reflete, se aclara, refulge,E me larga desarmado nos transes da enorme cidade.

Se todos esses dinossauros imponentes de luxo e [diamante,Vorazes de genealogias e de arcanos,Quisessem reconquistar o passado…Eu me vejo sozinho, arrastando sem músculoA cauda do pavão e mil olhos de séculos,Sobretudo os vinte séculos de anticristianismoda por todos chamada Civilização Cristã…Olhos que me intrigam, olhos que me denunciam,da cauda do pavão, tão pesada e ilusória.não posso continuar mais, não tenho, porque os homensnão querem me ajudar no meu caminho.Então a cauda se abriria orgulhosa e reflorescentede luzes inimagináveis e certezas…Eu não seria tão somente o peso deste meu desconsolo,A lepra do meu castigo queimando nesta epidermeQue encurta, me encerra e me inutiliza na noite,Me revertendo minúsculo à advertência do meu rio.Escuto o rio. Assunto estes balouços em que o rioMurmura num banzeiro. E contemploComo apenas se movimenta escravizada a torrente,E rola a multidão. Cada onda que abrolhaE se mistura no rolar fatigado é uma dor. E o surtoMirim dum crime impune.

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Vem de trás o estirão. É tão soluçante e tão longo,E lá na curva do rio vêm outros estirões e mais outros,E lá na frente são outros, todos soluçantes e presosPor curvas que serão sempre apenas as curvas do rio.Há ‑de todos os assombros, de todas as purezas e martíriosnesse rolo torvo das águas. Meu deus! meuRio! como é possível a torpeza da enchente dos homens!Quem pode compreender o escravo machoE multimilenar que escorre e sofre, e mandado escorreEntre injustiça e impiedade, estreitadonas margens e nas areias das praias sequiosas?Elas bebem e bebem. não se fartam, deixando com desesperoQue o resto do galé aquoso ultrapasse esse dia,Pra ser represado e bebido pelas outras areiasdas praias adiante, que também dominam, [aprisionam e mandamA trágica sina do rolo das águas, e dirigemO leito impassível da injustiça e da impiedade.Ondas, a multidão, o rebanho, o rio, meu rio, um rioQue sobe! Fervilha e sobe! E se adentra fatalizado, [e em vezde ir se alastrar arejado nas liberdades oceânicas,Em vez se adentra pela terra escura e ávida dos homens,dando sangue e vida a beber. E a massa líquidada multidão onde tudo se esmigalha e se iguala,Rola pesada e oliosa, e rola num rumor surdo,E rola mansa, amansada imensa eterna, masno eterno imenso rígido canal da estulta91 dor.

Porque os homens não me escutam! Por que os [governadoresnão me escutam? Por que não me escutam →

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Os plutocratas92 e todos os que são chefes e são fezes?Todos os donos da vida?Eu lhes daria o impossível e lhes daria o segredo,Eu lhes dava tudo aquilo que fica pra cá do gritoMetálico dos números, e tudoO que está além da insinuação cruenta da posse.E se acaso eles protestassem, que não! que não desejamA borboleta translúcida da humana vida, porque preferemO retrato a ólio das inaugurações espontâneas,Com béstias do operário e do oficial, imediatamente [inferior,E palminhas, e mais os sorrisos das máscaras e a [profunda comoção,Pois não! Melhor que isso eu lhes dava uma felicidade [deslumbrantede que eu consegui me despojar porque tudo sacrifiquei.Sejamos generosíssimos. E enquanto os chefes e as fezesde mamadeira ficassem na creche de laca e lacinhos,Ingênuos brincando de felicidade deslumbrante:nós nos iríamos de camisa aberta ao peito,descendo verdadeiros ao léu da corrente do rio,Entrando na terra dos homens ao coro das quatro estações.

Pois que mais uma vez eu me aniquilo sem reserva,E me estilhaço nas fagulhas eternamente esquecidas,E me salvo no eternamente esquecido fogo de amor…Eu estalo de amor e sou só amor arrebatadoAo fogo irrefletido do amor.… eu já amei sozinho comigo; eu já cultivei tambémO amor do amor, Maria!93

E a carne plena da amante, e o susto várioda amiga, e a confidência do amigo… Eu já amei →

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Contigo, Irmão Pequeno, no exílio da preguiça elevada, [escolhidoPelas águas do túrbido rio do Amazonas, meu outro sinal.94

E também, ôh também! na mais impávida glóriadescobridora da minha inconstância e aventura,desque me fiz poeta e fui trezentos,95 eu ameiTodos os homens, odiei a guerra, salvei a paz!E eu não sabia! Eu bailo de ignorâncias inventivas,E a minha sabedoria vem das fontes que eu não sei!Quem move meu braço? Quem beija por minha boca?Quem sofre e se gasta pelo meu renascido coração?Quem? senão o incêndio nascituro do amor?…Eu me sinto grimpado no arco da Ponte das Bandeiras,Bardo mestiço, e o meu verso vence a cordada caninana sagrada, e afina com os ventos dos ares, [e enrouqueceÚmido nas espumas da água do meu rio,E se espatifa nas dedilhações brutas do incorpóreo Amor.

Por que os donos da vida não me escutam?Eu só sei que eu não sei por mim! sabem por mim as fontesda água, e eu bailo de ignorâncias inventivas.Meu baile é solto como a dor que range, meuBaile é tão vário que possui mil sambas insonhados!Eu converteria o humano crime num baile mais densoQue estas ondas negras de água pesada e oliosa,Porque os meus gestos e os meus ritmos nascemdo incêndio puro do amor… Repetição. Primeira voz [sabida, o Verbo.Primeiro troco. Primeiro dinheiro vendido. Repetição [logo ignorada.Como é possível que o amor se mostre impotente assimAnte o ouro pelo qual o sacrificam os homens, →

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Trocando a primavera que brinca na face das terras,Pelo outro tesouro que dorme no fundo baboso do rio!

É noite! é noite!… E tudo é noite! E os meus olhos são [noite!Eu não enxergo sequer as barcaças na noite.Só a enorme cidade. E a cidade me chama e pulveriza,E me disfarça numa queixa flébil e comedida,Onde irei encontrar a malícia do Boi PaciênciaRedivivo. Flor. Meu suspiro ferido se agarra,não quer sair, enche o peito de ardência ardilosa,Abre o olhar, e o meu olhar procura, flor, um tilintarnos ares, nas luzes longe, no peito das águas,no reflexo baixo das nuvens.

São formas… Formas que fogem, formasIndivisas, se atropelando, um tilintar de formas fugidiasQue mal se abrem, flor, se fecham, flor, flor, informes, [inacessíveis,na noite. E tudo é noite. Rio, o que eu posso fazer!…Rio, meu rio… mas porém há ‑de haver com certezaOutra vida melhor do outro lado de láda serra! E hei ‑de guardar silêncio!O que eu posso fazer!… hei ‑de guardar silênciodeste amor mais perfeito do que os homens?…

Estou pequeno, inútil, bicho da terra, derrotado.no entanto eu sou maior… Eu sinto uma grandeza [infatigável!Eu sou maior que os vermes e todos os animais.E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos,Maior… Maior que a multidão do rio acorrentado,Maior que a estrela, maior que os adjetivos, →

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mário de andrade

Sou homem! vencedor das mortes, bem ‑nascido além [dos dias,Transfigurado além das profecias!

Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança.Eu me acho tão cansado em meu furor.As águas apenas murmuram hostis, água vil mas [turrona paulistaQue sobe e se espraia, levando as auroras represadasPara o peito dos sofrimentos dos homens.… e tudo é noite. Sob o arco admirávelda Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca,Uma lágrima apenas, uma lágrima,Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.

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II. A ficção

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nas terras do igarapé Tietê*

[…]Porém entrando nas terras do igarapé Tietê adonde o

burbom vogava e a moeda tradicional não era mais cacau, em vez, chamava arame contos contecos milréis borós tos‑tão duzentorréis quinhentorréis, cinquenta paus, noven‑ta bagarotes, e pelegas cobres xenxéns caraminguás selos bicos ‑de ‑coruja massuni bolada calcáreo gimbra siridó bicha e pataracos, assim, adonde até liga pra meia nin‑guém comprava nem por vinte mil cacaus. Macunaíma ficou muito contrariado. Ter de trabucar, ele, herói!… Murmurou desolado:

– Ai! que preguiça!…Resolveu abandonar a empresa, voltando pros pagos de

que era imperador. Porém Maanape falou assim:– deixa de ser aruá, mano! Por morrer um carangueijo

o mangue não bota luto não! que diacho! desanima não que arranjo as coisas!

Quando chegaram em São Paulo, ensacou um pouco do tesouro pra comerem e barganhando o resto na Bol‑sa apurou perto de oitenta contos de réis. Maanape era

* Excerto de “Piaimã”, capítulo 5 da rapsódia modernista Macunaí‑ma, o herói sem nenhum caráter, 1928 (1ª. ed.).

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feiticeiro. Oitenta contos não valia muito mas o herói refletiu bem e falou pros manos:

– Paciência. A gente se arruma com isso mesmo, quem quer cavalo sem tacha anda de a ‑pé…

Com esses cobres é que Macunaíma viveu.E foi numa boca ‑da ‑noite fria que os manos toparam

com a cidade macota de São Paulo esparramada a beira‑‑rio do igarapé Tietê. Primeiro foi a gritaria da papagaiada imperial se despedindo do herói. E lá se foi o bando sara‑pintado volvendo pros matos do norte.

Os manos entraram num cerrado cheio de inajás ouri‑curis ubuçus bacabas mucajás miritis tucumãs trazendo no curuatá uma penachada de fumo em vez de palmas e cocos. Todas as estrelas tinham descido do céu branco de tão molhado de garoa e banzavam pela cidade. Macunaí‑ma lembrou de procurar Ci. Êh! dessa ele nunca pode‑ria esquecer não, porque a rede feiticeira que ela armara pros brinquedos fora tecida com os próprios cabelos dela e isso torna a tecedeira inesquecível. Macunaíma campeou campeou mas as estradas e terreiros estavam apinhados de cunhãs tão brancas tão alvinhas, tão!… Macunaíma gemia. Roçava nas cunhãs murmurejando com doçura: “Mani! Mani! filhinhas da mandioca…” perdido de gosto e tanta formosura. Afinal escolheu três. Brincou com elas na rede estranha plantada no chão, numa maloca mais alta que a Paranaguara. depois, por causa daquela rede ser dura, dormiu de atravessado sobre os corpos das cunhãs. E a noite custou pra ele quatrocentos bagarotes.

A inteligência do herói estava muito perturbada. Acor‑dou com os berros da bicharia lá embaixo nas ruas, dis‑parando entre as malocas temíveis. E aquele diacho de sagui ‑açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho em que dormira… Que mundo de bichos! que despropósito

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de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos nas socavas nas cordas dos morros furados por grotões donde gentama saía muito branquinha bran‑quíssima, de certo a filharada da mandioca!… A inteli‑gência do herói estava muito perturbada. As cunhãs rindo tinham ensinado pra ele que o sagui ‑açu não era saguim não, chamava elevador e era uma máquina. de ‑manhãzi‑nha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máqui‑na. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curua‑tás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios ‑luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés… Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo cala‑do. de vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel escutando assuntando maquinando numa cisma assom‑brada. Tomou ‑o um respeito cheio de inveja por essa deu‑sa de deveras forçuda, Tupã famanado que os filhos da mandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira que a Mãe ‑d’água, em bulhas de sarapantar.

Então resolveu ir brincar com a Máquina pra ser tam‑bém imperador dos filhos da mandioca. Mas as três cunhãs deram muitas risadas e falaram que isso de deu‑ses era uma gorda mentira antiga, que não tinha deus não e que com a máquina ninguém não brinca porque ela mata. A máquina não era deus não, nem possuía os dis‑tintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com fumo, os homens aproveitando as forças da natureza. Porém jacaré acreditou? nem o herói!

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Se levantou na cama e com um gesto, esse sim! bem guaçu de desdém, tó! batendo o antebraço esquerdo dentro do outro dobrado, mexeu com energia a munheca direita pras três cunhãs e partiu. nesse instante, falam, ele inventou o gesto famanado de ofensa: a pacova.

E foi morar numa pensão com os manos. Estava com a boca cheia de sapinhos por causa daquela primeira noi‑te de amor paulistano. Gemia com as dores e não havia meios de sarar até que Maanape roubou uma chave de sacrário e deu pra Macunaíma chupar. O herói chupou chupou e sarou bem. Maanape era feiticeiro.

Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina. A Máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máqui‑na… Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da máquina sem mistério sem querer sem fastio, incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, sus‑penso no terraço dum arranha ‑céu com os manos, Macu‑naíma concluiu:

– Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta. Há empate.

não concluiu mais nada porque inda não estava acos‑tumado com discursos porém palpitava pra ele muito embrulhadamente muito! que a máquina devia de ser um deus de que os homens não eram verdadeiramente donos só porque não tinham feito dela uma Iara explicável mas apenas uma realidade do mundo. de toda essa embru‑lhada o pensamento dele sacou bem clarinha uma luz: Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens. Macunaíma deu uma grande gargalhada. Per‑cebeu que estava livre outra vez e teve uma satisfa mãe.

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Virou Jiguê na máquina telefone, ligou pros cabarés enco‑mendando lagosta e francesas.

[…]

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Túmulo, túmulo, túmulo*

Belazarte me contou:Caso triste foi o que sucedeu lá em casa mesmo… Eu

sempre falo que a gente deve ser enérgico, nunca desani‑mar, que se entregar é covardia, porém quando a coisa desanda mesmo não tem vontade, não tem paciência que faça desgraça parar.

Um tempo andei mais endinheirado, com emprego bom e inda por cima arranjando sempre uns biscates por aí, que me deixavam viver à larga. dinheiro faz cócega em bolso de brasileiro, enquanto não se gasta não há meios de sossegar, pois imaginei ter um criado só pra mim. Achava gostoso esses pedaços de cinema: o dono vai saindo, vem o criado com chapéu e bengala na mão, “Prudêncio, hoje não boio em casa, querendo sair, pode. Té logo”. “Té logo, seu Belazarte.”

Veio um criado mas eu não simpatizava com ele não. Sei lá si percebeu? uma noite pediu a conta e dei graças. Levei uns pares de dias assim, até que indo ver uns ter‑renos longe, estava no mesmo banco do bonde um tiziu

* Texto publicado em Os contos de Belazarte, 1934 (1ª ed.), ali datado de 1926; corresponde, de fato, à reescrita de 1934, refundida em 1943 ‑1944. neste livro, o autor transfigura alguns traços autobio‑gráficos.

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extraordinário de simpático. Que olhos sossegados! você não imagina. Adoçavam tudo que nem verso de Rilke.96 desci matutando, vi os terrenos, peguei o bonde que vol‑tava. Instinto é uma curiosidade: quando o condutor veio cobrar a passagem e percebi que era o mesmo da ida, tive a certeza que o negrinho havia de estar no carro. Olhei para trás, pois não é que estava mesmo! Encontrei os olhos dele, dito e feito: senti uma doçura por dentro uma calma lenta, pensei: está aí, disso é que você carece pra criado. Mudei de banco e meio juruviá puxei conversa:

– Me diga ũa coisa, você não sabe por acaso de algum moço que queira ser meu criado? Mas quero brasileiro e preto.

Riu manso, apalpando a vista com a pálpebra. Me olhou, respondendo com voz silenciosa, essa mesma de gente que não pensa nem viveu passado:

– Tem eu, sim senhor. O senhor querendo…– Eu, eu quero sim, por que não havia de querer? Quan‑

to você pede?Etc. E ele entrou pro meu serviço.Quando indaguei o nome dele, falou que chamava Ellis.Ellis era preto, já disse… Mas uma boniteza de pretura

como nunca eu tinha visto assim. Como linhas até que não era essas coisas, meio nhato,97 porém aquela cor elevava o meu criado a tipo ‑de ‑beleza da raça tizia. Com dezenove anos sem nem um poucadico de barba, a epiderme de Ellis era um esplendor. não brilhava mas não brilhava nada mesmo! nem que ele estivesse trabalhando pesado, suor corria, ficava o risco da gota feito rastinho de lesma e só. Bastava que lavasse a cara, pronto: voltava o preto opaco outra vez. Era doce, aveludado o preto de Ellis… A gente se punha matutando que havia de ser bom passar a mão naquela cor humilde, mão que andou todo o dia apertando

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passe ‑bem de muito branco emproado e filho ‑da ‑mãe. Ellis trazia o cabelo sempre bem roçado, arredondando o coco. Pixaim fininho, tão fofo que era ver piri de beira‑‑rio.98 Beiço, não se percebia, negro também. Só mesmo o olhar amarelado, cor de ólio de babosa, é que descansa‑va no meio daquela igualdade perfeita. É verdade que os dentes eram brancos, mas isso raramente se enxergava, porque Ellis tinha um sorriso apenas entreaberto. Estava muito igualado com o movimento da miséria pra andar mostrando gengiva a cada passo. A gente tinha impressão de que nada o espantava mais, e que Ellis via tudo preto, do mesmo preto exato da epiderme.

Como criado, manda a justiça contar que ele não foi inteiramente o que a gente está acostumado a chamar de criado bom. não é que fosse rúim não, porém tinha seus carnegões, moleza chegou ali, parou. Limpava bem as coi‑sas mas levava uma vida pra limpar esta janela. E depois deu de sair muito, não tinha noite que ficasse em casa. Mas no sentido de criado moral, Ellis foi sublime. de inteira confiança, discreto, e sobretudo amigo. Quando eu aspe‑rejava com ele, escutava tudo num desaponto que só ven‑do. Sei que eu desbaratava, ia desbaratando, ia ficando sem assunto pra desbaratar, meio com dó daquele tão humilde que, a gente percebia, não tinha feito nada por mal. Aca‑bava sendo eu mesmo a discutir comigo:

– Sei bem que de tanto lavar copo vem um dia em que um escapole da mão… Está bom, veja si não quebra mais, ouviu?

– Sei, seu Belazarte.E ficava esperando, jururu que fazia dó. Eu é que enca‑

fifava. Com aquele olho ‑de ‑pomba me seguindo, arru‑lhando pelo meu corpo numa bulha penarosa de carinho batido, eu nem sabia o que fazer. Pegava numa gravata,

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reparando que tinha pegado nela só pra gesticular, largava da gravata, arranja cabelo, arranja não ‑sei ‑o ‑quê, acabava sempre descobrindo poeira na roupa, ũa mancha, qual‑quer coisa assim:

– Ellis, me limpe isto.Ele vinha chegando meio encolhido e limpava. Então

olho ‑de ‑babosa pousava em minha justiça, tremendo:– Está bom assim, seu Belazarte?– Está. Pode ir.Ia. Porém ficava rondando. Mesmo que fosse lá no andar

térreo trabalhar, me levava no pensamento, ia imaginando um jeito de me agradar. E não tinha mais parada nos agra‑dinhos discretos enquanto eu não ria pra ele. Então gengiva aparecia. Quando chegava de noite já sabe, vinha pedindo pra ir no cinema, eu tinha pena, deixava. E quantas vezes ainda não acabei dando dinheiro pro cinema!

nesse andar é lógico que eu mesmo estava fazendo arte de ficar sem criado. Foi o que sucedeu. Ellis tomou conta de mim duma vez. Piorar, piorou não, mas já estava difícil de dizer quem era o criado de nós dois. Sim, porque, afinal das contas quem que é o criado? quem serve ou quem não pode mais passar sem o serviço, digo mais, sem a compa‑nhia do outro?

– Ellis, você já sabe ler?… Uhm… acho que vou ensi‑nar francês pra você, porque si um dia eu for pra Europa, não vou sem você.

– Si seu Belazarte for, eu vou também.Sempre com o mesmo respeito. Às vezes eu chegava

em casa sorumbático,99 moído com a trabalheira do dia, Ellis não falava nada, nem vinha com amolação, porém não arredava pé de mim, descobrindo o que eu queria pra fazer. Foi uma dessas vezes que escutei ele falando no por‑tão pra um companheiro:

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– Hoje não, seu Belazarte carece de mim.Até achei graça. E principiei verificando que aquilo não

tinha jeito mais, Ellis não trabalhava. Estava tomando um lugar muito grande em minha vida. Pois então vamos fazer alguma coisa pelo futuro dele, decidi. Entramos os dois numa explicação que me abateu, por causa dos sentimen‑tos desencontrados que me percorreram. Ellis me con‑fessou que pensava mesmo em ser chofer, mas não tinha dinheiro pra tirar a carta. Tive ciúmes, palavra. Secreta‑mente eu achava que ele devia só pensar em ser meu cria‑do. Mas venci o sentimento besta e falei que isso era o de menos, porque eu emprestava os cobres. Só que não pude vencer a fraqueza e, com pretexto de esclarecer, ajuntei:

– Você pense bem, decida e volte me falar. Chofer é bom, dá bem, só que é ofício perigoso e já tem muito cho‑fer por aí. Muitas vezes a gente imagina que faz um giro e faz mas é um jirau. Enfim, tudo isso é com você. Já falei que ajudo, ajudo.

Foi então que ele me confessou que precisava ganhar mais porque estava com vontade de casar.

– Ellis, mas que idade você tem, Ellis!– dezanove, sim senhor.– Puxa! e você já quer casar!deu aquele sorriso entreaberto, sossegado:– Gente pobre carece casar cedo, seu Belazarte, sinão

vira que nem cachorro sem dono.não entendi logo a comparação. Ellis esclareceu:– Pois é: cachorro sem dono não vive comendo lixo

dos outros?…Meio que me despeitava também, isso do Ellis gos‑

tar de mais outra pessoa que do patrão, porém já sei me livrar com facilidade destes egoísmos. Perguntei quem era a moça.

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– É tizia que nem eu mesmo, seu Belazarte. Se chama dora.

Encabulou, tocando na namorada. Falei mais uma vez pra ele pensar bem no que ia fazer e me comunicasse.

dias depois ele veio:– Seu Belazarte… andei matutando no que o senhor me

falou, semana atrás…– Resolveu?– Pois então a gente pode fazer uma coisa: espero o dia‑

‑dos ‑anos do senhor e depois saio.Tive um despeito machucando. decerto fui duro:– Está bom, Ellis.não se mexeu. depois de algum tempo, muito baixinho:– Seu Belazarte…– O que é.– Mas… seu Belazarte… eu quero sair por bem da

casa do senhor… até a dora me falou que… me falou que decerto o senhor aceitava ser nosso padrinho…

Custou ele falar de tanta comoção. Olhei pra ele. O ólio de babosa destilava duas lágrimas negras no pretume liso. Me comovi também.

– Sai por bem, é lógico! não tenho queixa nenhuma de você.

– Quando o senhor quiser alguma coisa, me chame que eu venho fazer. O senhor foi muito bom para mim…

– não fui bom, Ellis, fui como devia porque você tam‑bém foi direito.

Botei a mão no ombro dele pra sossegar o comovido soluçante, estava engasgado, o pobre!… Sem se esperar, rápido, virou a cara de lado, encolheu o ombro, beijou minha mão, partiu fechando a porta.

Já me sentava outra vez, pensando naquele bei‑jo que fazia a minha mão tão recompensada por toda a

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humanidade, a porta abriu de leve. E ele, não se mostran‑do:

– Seu Belazarte, o senhor não falou que aceitava…Até me ri.– Aceito, Ellis! Quando que você casa?– Si arranjar licença logo, caso no 8 de dezembro, sim

senhor, dia da Virgem Maria.não me logrou, porém logrou a Virgem Maria. Saiu de

casa dias depois do meu aniversário,100 e nem bem dona República fez anos,101 casou com a dora, num dia claro que parecia querer durar a vida inteira. Cheguei do casamento com uma felicidade artística dentro de mim. Você não ima‑gina que coisa mais bonita Ellis e dora juntos! Mulatinha lisa, lisa, cor de ouro, isto é, cor de ólio de babosa, cor dos olhos de Ellis! E nos olhos então todo esse pretume impos‑sível que o medo põe na cor do mato à noite. Você decerto que já reparou: a gente vê uns olhos de menina boa e jura: “Palavra que nunca vi olho tão preto”, vai ver? quando mui‑to olho é cor de fumo de mapinguim.102 É o receio da gente que bota escureza temível nos olhos desses nossos peca‑dos… Que gostosa a dora! Era uma pretarana de cabelo acolchoado e corpo de potranquinha independente. Tinha um jeito de não ‑querer, muito fiteiro, um dengue meio fati‑gado oscilando na brisa, tinha uma fineza de S espichado, que fazia ela parecer maior do que era, uma graça flexível… nem sei bem o que é que o corpo dela tinha, só sei que espantava tanto o desejo da gente, que desejo ficava de boca aberta, extasiado, sem gesto, deixando respeitosamente ela passar por entre toda a cristandade… dora linda!

Ellis desapareceu uns meses e me esqueci dele. A vida é tão bondosa que nunca senti falta de ninguém. Reapare‑ceu. Foi engraçado até. Me levantei tarde, desci pra beber meu mate, Ellis no hol, encerando.

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– Bom ‑dia, seu Belazarte.– Ué! quê que você está fazendo aqui!– dona Mariquinha103 me chamou pra limpar a casa.– Mas você não está trabalhando então!– Trabalho, sim senhor, mas a vida anda mesmo dura,

seu Belazarte, a gente carece de ir pegando o que acha.A fúria de casar borrara os sonhos do chofer. Vivia

de pedreiro. Mamãe encontrou com ele e se lembrou de dar esse dinheiro semanal pro mendigo quasi. Um Ellis esmolambado, todo sujo de cal. dora andava com mui‑to enjoo, coisa do filho vindo. não trabalhava mais. Ellis com pouco serviço. Estava magro e bem mais feio. de repente uma semana não apareceu. Que é, que não é, afi‑nal veio uma conhecida contar que Ellis tinha adoeci‑do de resfriado, estava tossindo muito, aparecendo uns caroços do lado da cara. Quando vi ele até assustei, era um caroção medonho, parecendo abscesso. Foi no den‑tista, não sei… dentista andou engambelando Ellis um sem ‑fim de tempo, começou aparecendo novo caroço do outro lado da cara. Mamãe imaginou que era anemia. Mandamos Ellis no médico de casa, com recomendação. Resultado: estava fraquíssimo do peito e si não tomasse cuidado, bom!

Calvário começou. Ele não sabia bem o que havia de fazer, eu também não podia estar recolhendo dois em casa. Inda mais doentes! Vacas magras também estavam pastando no meu campo nesse tempo… Foi uma tristeza. Ellis andou de cá pra lá, fazendo tudo e não fazendo nada. Mandou buscar a mãe, que vivia numa chacrinha empres‑tada em Botucatu, foram morar todos juntos na lonjura da Casa Verde, diz ‑que pra criar galinha e por causa do ar bom. não arranjaram nada com as galinhas nem com os ares. Vieram pra cidade outra vez. Foram morar perto de

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casa, num porão, depois eu vi o porão, que coisa! Todos morando no buraco de tatu, Ellis, dora, a mãe dele e mais dois gafanhotinhos concebidos de passagem.

Ellis voltara pra pedreiro, encerava nossa casa e outras que arranjamos, andou consertando esgotos, depois na Companhia de Gás… não tinha parada, emagrecendo, não se descobriu remédio que acabasse inteiramente com os caroços.

Meio rindo, meio sério, nem eram bem sete da manhã, um dia apareceu contando que era pai. Vinha participar e:

– Seu Belazarte, vinha também saber si o senhor que‑ria ser padrinho do tiziu, o senhor já está servindo de meu tudo mesmo.

Falei que sim, meio sem gostar nem desgostar, estava já me acostumando. dei vinte milréis. Mamãe, que era a madrinha, andou indo lá no porão deles, arranjando rou‑pas de lã pro desgraçadinho novo.

nem semana depois, chego em casa e mamãe me con‑ta que dora tinha adoecido. Pedi pra ela ir lá outra vez, ela foi. Mandamos médico. dora piorou do dia pra noite, e morreu quem a gente menos imaginava que morresse. número um.

Agora sim, e a criança? É verdade que a mãe do Ellis tinha inda filho de peito, desmamou o safadinho que já estava errando língua portuguesa, e o leite dela foi mudan‑do de porão.

O dia do batizado, sofri um desses desgostos, fatigan‑tes pra mim que vivo reparando nas coisas. Primeiro quis que o menino se chamasse Benedito, nome abençoado de todos os escravos sinceros, porém a mãe do Ellis resmun‑gou que a gente não devia desrespeitar vontade de morto, que dora queria que o filho chamasse Armando ou Luís Carlos. Então pus autoridade na questão e cedendo um

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pouco também, acabamos carimbando o desgraçadinho com o título de Luís.

Havia muita lembrança de dora naquilo tudo, há só dois dias que ela adormecera. Fizemos logo o batizado porque o menino estava muito aniquiladinho.

Engraçado o Ellis… Até hoje não me arrisco a entender bem qual era o sentimento dele pela dora. Quando veio me comunicar a morte da pobre, até parecia que eu gosta‑va mais dela, com este meu jeito de ficar logo num pasmo danado, sucedendo coisa triste.

– dora morreu, seu Belazarte.– Morreu, Ellis!nem posto explicar com quanto sentimento gritei. Ellis

também não estava sossegado não, mas parecia mais inca‑pacidade de sofrer que tristeza verdadeira. O amarelão dos olhos ficara rodeado dum branco vazio. dora ia fazer falta física pra ele, como é que havia de ser agora com os desejos? Isso é que está me parecendo foi o sofrimento per‑guntado do Ellis. E pra decidir duma vez a indecisão, ele vinha pra mim cuja amizade compensava. E seria mesmo por amizade? Aqui nem a gente pode saber mais, de tanto que os interesses se misturavam no gesto, e determina‑vam a fuga de Ellis pra junto de mim. Eu era amigo dele, não tinha dúvida, porém numa ocasião como aquela não é muito de amigo que a gente precisa não, é mais de pessoa que saiba as coisas. Eu sabia as coisas, e havia de arranjar um jeito de acomodar a interrogação.

… e quem diz que na amizade também não existe esse interesse de ajutório?… Existe, só que mais bonito que no amor, porque interesse está longe do corpo, é mistério da vida silenciosa espiritual. depois, amor… É inútil os pernósticos estarem inventando coisas atrapalhadas pra encherem o amor de trezentas auroras ‑boreais ou caem

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no domínio da amizade, que também pode existir entre bigode e seios, ou então principiam sutilizando os ges‑tos físicos do amor, caem na bandalheira. Observando, feito eu, amor de sem ‑educação, a gente percebe mesmo que nele não tem metafísica: uma escolha proveniente do sentimento que a babosa recebe dum corpo estranho, e em seguida furrum ‑fum ‑fum. A força do amor é que ele pode ser ao mesmo tempo amizade. Mas tudo o que existe de bonito nele, não vem dele não, vem da amizade gruda‑da nele. Amor quando enxerga defeito no objeto amado, cega: “não faz mal!” Mas o amigo sente: “Eu perdoo você.” Isso é que é sublime no amigo, essa repartição contínua de si mesmo, coisa humana profundamente, que faz a gen‑te viver duplicado, se repartindo num casal de espíritos amantes que vão, feito passarinhos de voo baixo, pairando rente ao chão sem tocar nele…

dora era corpo só. E uma bondade inconsciente. Eu não tinha corpo mas era protetor. E principalmente era o que sabia as coisas. desta vez amor não se uniu com amizade: o amor foi pra dora, a amizade pra mim. natu‑ral que o Ellis procedesse dessa forma, sendo um frouxo.

Batizado fatigante. não paga a pena a gente imaginar que todos somos iguais, besteira! Mamãe, por causa da muita religião, imagina que somos. Inventou de convi‑dar Ellis, mãe e tutti quanti104 pra comer um doce em nossa casa, vieram. Foi um ridículo oprimente pra nós os superiores, e deprimente pra eles os desinfelizes. Esta‑vam esquerdos, cheios de mãos, não sabendo pegar na xicra. E eu então! Qualquer gesto que a gente faz, pegar no pão, na bolacha, pronto: já é diferente por classe da maneira, igualzinha muitas vezes, com que o pobre pega nessas coisas. Parece lição. A gente fica temendo rebaixar o outro e também já não sabe pegar na xicra mais. Custei

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pra inventar umas frases engraçadas, depois reparei que não tinham graça nenhuma por causa da dora se depen‑durando nelas, não deixando a graça rir. de repente fui‑‑me embora.

não levou nem semana, o desgraçadinho pegou mir‑rando mais, mirrando e esticou. número dois.

Ellis nem pôde tratar do enterro. não é que estivesse penando muito, mas o caroço tinha dado de crescer no lado esquerdo agora. na véspera tivera uma vertigem, nin‑guém sabe por que, junto do filho morrendo. Foi pra cama com febrão de quarenta ‑e ‑um no corpo tremido.

Era a tuberculose galopante que, sem nenhum respeito pelas regras da cidade, estava fazendo cento ‑e ‑vinte por hora na raia daquele peito apertado. Quando Ellis soube, virou meu filho duma vez. Mandava contar tudo pra mim. Mas não sei por que delicadeza sublime, por que invenção de amizade, descobriu que não me dou bem com a tísica. O certo é que nunca me mandou pedir pra ir vê ‑lo. Fui. Fui, também uma vez só, de passagem, falando que esta‑va na hora de ir pro trabalho. Mas não deixei faltar nada pra ele. nada do que eu podia dar, está claro, leite de vacas magras.

durou três meses, nem isso, onze semanas em que me parece foi feliz. Sim, porque virara criança, e talvez pela primeira vez na vida, inventava essas pequenas faceirices com que a gente negaceia o amor daqueles por quem se sabe amado. Mantimento, remédios, roupa, tudo minha mãe é que providenciava pra ele, conforme desejo meu. Pois de supetão vinha um pedido engraçado, que Ellis queria comer sopa da minha casa, que si eu não podia mandar pra ele ũa meia igualzinha àquela que usara no batizado do desgraçadinho, com lista amarela, outra roxa até em cima… Uma feita mandou pedir de emprestado a

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almofada que eu tinha no meu estúdio e que, ele mandou dizer, até já estava bem velha. É lógico que almofada foi, porém dadinha duma vez.

da minha parte era tudo agora gestos mecânicos de protetor, meu deus! como a vida esperada se mecaniza… não sei… Ellis creio que não, mas eu já fazia muito que estava acostumado a sentir Ellis morto. E aquela espera da morte já pra mim era bem ũa morte longa, um andar na gandaia dentro da morte, que não me dava mais que uma saudade cômoda do passado. Era amigo dele, juro, mas Ellis estava morto, e com a morte não se tem direito de contar na vida viva. Ele, isso eu soube depois, ele sim, estava vivendo essa morte já chegada, numa contemplação sublime do passado, única realidade pra ele. dora tinha sido uma função. A vida prática não fora sinão comer, dormir, trabalhar. no que se agarraria aquele morto em férias? Em mim, é lógico. Isso eu sube depois… Levava o dia falando no amigo, pensando no amigo. E todas aquelas faceirices de pedidos e vontadinhas de criança, não passa‑vam de jeitos de se recordar mais objetivamente de mim. de se aproximar de mim, que não ia vê ‑lo.

Cheguei em casa pra almoçar, a mãe do Ellis viera dizer que ele estava me chamando, não gostei nada. Si agora ele principiava pedindo mais isso, eu que tenho um bruto horror de tísica… Enfim mandei a criada lá, que depois do almoço ia.

Quando cheguei na porta, os uivos da mãe dele me deram a notícia inesperada. Sim, inesperada, porque já estava acostumado a ficar esperando e perdera a noção de que o esperado havia mesmo de vir. Entrei. Estavam uma italianona vermelha de tanto choro por tabela e dois tizius fumando.

– Morreu!

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mário de andrade

– Ahm, su Beladzarte, tanto que o povero está chaman‑do o sinhore!

 – Mas já morreu, é!– Que esperandza! desde manhãzinha está cham…– Onde ele está?Um dos tizius.– Está lá dentro, sim senhor.Jogou o cigarro e foi mostrando caminho. Segui atrás.

Pulei por cima dos uivos saindo duma furna que nunca viu dia, e lá numa sala mais larga, com entrada em arco sem porta dando pro quintal interior, num canto invisível, cho‑rava uma vela, era ali. Ellis vasquejava com as borlas dos caroços dependurados pros lados, medonho de magro. Esta‑va morrendo desde manhã, sempre chamando por mim.

– Mas por que não me avisaram!Eram não sei quantas vezes que agarravam a vela nas

mãos dele já em cruz, pra sempre fantasiadas de morte. de repente soluço parava. O moribundo engulia em seco e pegava me chamando outra vez. Afinal parara de chamar fazia mais de hora. Parece que a coisa estava chegando. Falei baixo, sem querer, me acomodando com o silêncio da morte:

– Ellis… ôh Ellis!nada. Só o respiro serrando na madeira seca da gar‑

ganta. Os outros me olhavam, esperando o bem que eu ia fazer pro coitado. Até parecia que o importante ali era eu. Insisti, lutando com a amizade da morte, mais unifor‑me que a minha. Com mentira e tudo, até me parece que eu insistia mais pra vencer a predominância da morte, e aqueles assistentes não me verem perder numa luta. Botei a mão na testa morna de Ellis, havia de me sentir.

– Ellis! sou eu, Ellis!… Sossegue que já cheguei, ouviu! Estou juntinho de você, ouviu!… Ellis!

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O soluço parou.– Pronto! Ansim que está fatchendo desde de manhán,

ô povero!… Tira áa vela, Maria!– deixe a vela, ôh Ellis!Ellis abriu as pálpebras, principiou abrindo, parecia

que não parava mais de as abrir. Ficaram escancaradas, mas ólio de babosa não vê que escorrendo mais! pupilas fixas, retas, frechando o teto preto. Pus minha cara onde elas me focalizassem.

– Estou aqui, Ellis! não tenha medo! você está me enxergando, hein!

– Está sim, seu Belazarte. Viu! desde manhã que está de olho fechado. Ele queria muito be… bem o senhor! tam‑bém… também o senhor tem sido muito bom pro coita‑do… de meu filho, ai!… aaai! meu filho está morrendo, ahn! ahn! ahn!…

– Ellis! você está precisando de alguma coisa, hein! Eu faço!

A gelatina me recebia sem brilhar. As pálpebras foram cerrando um bocado. Instintivamente apressei a fala, pra que os olhos inda recebessem meu carinho:

– Eu faço tudo pra você! não quero que te falte nada, ouviu bem!

Os olhos se esconderam de todo com muita calma.– Meu filho morreu! ai, ai!… Aaai!…Tive um momento de desespero porque Ellis não dava

sinal de me sentir. Insisti mais, ajoelhando junto da cama.– Ora, o que é isso, Ellis!…– ahan… só falava no senhor, ahn… ontem mesmo

disse pra mim, ahan, que, ahn, milhorando cavava um poço… fundo, aáin… pra enterrar todos os mi… micró‑bios pra despois, pedir pra morar, ahn… no porão da casa do senhor… aai!

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– Levem ela! não vale a pena ele estar escutando esse choro!

Transportaram os uivos. Estaria escutando ainda? Insisti numa esperança exacerbada pela anedota da negra, sem querer, perverso, voz pura, doce de carícia:

– Ellis! você não me responde mesmo!Abriu um pouco os olhos outra vez. Me via!… foi tão humilde que nem teve o egoísmo de sustentar

contra mim a indiferença da morte. O olhar dele teve uma palpitação franca pra mim. Ellis me obedecia ainda com esse olhar. Fosse por amizade, fosse por servilismo, obe‑deceu. Isso me fez confundir extraordinariamente com os manejos da vida, a morte dele. desapareceu mistério, fata‑lidade, tudo o que havia de grandioso nela. Foi ũa mor‑te familiar. Foi ũa morte nossa, entre amigos, direitinho aquele dia em que resolvemos, meu aniversário passado, ele ir buscar o casamento e a choferagem de ganhar mais.

Cerrava os olhos calmo. Pesei a mão no corpo dele pra que me sentisse bem. Ao menos assim, Ellis ficava seguro de que tinha ao pé dele o amigo que sabia as coisas. Então não o deixaria sofrer. Porque sabia as coisas…

número três.

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Primeiro de Maio*

no grande dia Primeiro de Maio, não eram bem seis horas e já o 35 pulara da cama, afobado. Estava muito bem‑‑disposto, até alegre, ele bem afirmara aos companheiros da Estação da Luz que queria celebrar e havia de celebrar. Os outros carregadores mais idosos meio que tinham caçoado do bobo, viesse trabalhar que era melhor, traba‑lho deles não tinha feriado. Mas o 35 retrucara com altivez que não, não carregava mala de ninguém, havia de cele‑brar o dia deles. E agora tinha o grande dia pela frente.

dia dele… Primeiro quis tomar um banho pra ficar bem digno de existir. A água estava gelada, ridente, cele‑brando, e abrira um sol enorme e frio lá fora. depois fez a barba. Barba era aquela penuginha meia loura, mas foi assim mesmo buscar a navalha dos sábados, herdada do pai, e se barbeou. Foi se barbeando. nu só da cintura pra cima por causa da mamãe por ali, de vez em quando a distância mais aberta do espelhinho refletia os múscu‑los violentos dele, desenvolvidos desarmoniosamente nos braços, na peitaria, no cangote, pelo esforço cotidiano de carregar peso. O 35 tinha um ar glorioso e estúpido. Porém

* Texto publicado em Contos novos, edição póstuma, 1947; escrito entre 1934 e 1942.

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ele se agradava daqueles músculos intempestivos, fazen‑do a barba.

Ia devagar porque estava matutando. Era a esperança dum turumbamba macota,105 em que ele desse uns socos formidáveis nas fuças dos polícias. não teria raiva espe‑cial dos polícias, era apenas a ressonância vaga daquele dia. Com seus vinte anos fáceis, o 35 sabia, mais da leitu‑ra dos jornais que de experiência, que o proletariado era uma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado que se esperava grandes “motins” do Primeiro de Maio, em Paris, em Cuba, no Chile, em Madri.

O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri, no Chile que ele não tinha bem lembrança se ficava na América mesmo, era a gente dele… Uma piedade, um bei‑jo lhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, ia parar em terras não sabidas, mas era a gente dele, defen‑der, combater, vencer… Comunismo?… Sim, talvez fosse isso. Mas o 35 não sabia bem direito, ficava atordoado com as notícias, os jornais falavam tanta coisa, faziam tama‑nha misturada de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o 35 infantil estava por demais machucado pela experiência pra não desconfiar, o 35 desconfiava. Preferia o turum‑bamba porque não tinha medo de ninguém, nem do Car‑nera, ah, um soco bem nas fuças dum polícia… A navalha apressou o passo outra vez. Mas de repente o 35 não imagi‑nou mais em nada por causa daquele bigodinho de cinema que era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrou aquela moça do apartamento, é verdade, nunca mais tinha passado lá pra ver se ela queria outra vez, safada! Riu.

Afinal o 35 saiu, estava lindo. Com a roupa preta de luxo, um nó errado na gravata verde com listinhas bran‑cas e aqueles admiráveis sapatos de pelica amarela que não pudera sem comprar. O verde da gravata, o amarelo dos

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sapatos, bandeira brasileira, tempos de grupo escolar… E o 35 se comoveu num hausto forte,106 querendo bem o seu imenso Brasil, imenso colosso gigan ‑ante, foi andando depressa, assobiando. Mas parou de supetão e se orientou assustado. O caminho não era aquele, aquele era o cami‑nho do trabalho.

Uma indecisão indiscreta o tornou consciente de novo que era o Primeiro de Maio, ele estava celebrando e não tinha o que fazer. Bom, primeiro decidiu ir na cidade pra assuntar alguma coisa. Mas podia seguir por aquela dire‑ção mesmo, era uma volta, mas assim passava na Estação da Luz dar um bom ‑dia festivo aos companheiros traba‑lhadores. Chegou lá, gesticulou o bom ‑dia festivo, mas não gostou porque os outros riram dele, bestas. Só que em seguida não encontrou nada na cidade, tudo fechado por causa do grande dia Primeiro de Maio. Pouca gente na rua. deviam de estar almoçando já, pra chegar cedo no maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar o grande dia. Tinha mas era muito polícia, polícia em qual‑quer esquina, em qualquer porta cerrada de bar e de café, nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nas casas de loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra vez.

E como não encontrasse mesmo um conhecido, com‑prou o jornal pra saber. Lembrou de entrar num café, tomar por certo uma média, lendo. Mas a maioria dos cafés estavam de porta cerrada e o 35 mesmo achou que era preferível economizar dinheiro por enquanto, porque ninguém não sabia o que estava pra suceder. O mais prá‑tico era um banco de jardim, com aquele sol maravilho‑so. nuvens? umas nuvenzinhas brancas, ondulando no ar feliz. Insensivelmente o 35 foi se encaminhando de novo para os lados do Jardim da Luz. Eram os lados que ele conhecia, os lados em que trabalhava e se entendia mais.

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de repente lembrou que ali mesmo na cidade tinha banco mais perto, nos jardins do Anhangabaú. Mas o Jardim da Luz ele entendia mais. Imaginou que a preferência vinha do Jardim da Luz ser mais bonito, estava celebrando. E continuou no passo em férias.

Ao atravessar a estação achou de novo a companhei‑rada trabalhando. Aquilo deu um malestar fundo nele, espécie não sabia bem, de arrependimento, talvez irritação dos companheiros, não sabia. nem quereria nunca decidir o que estava sentindo já… Mas disfarçou bem, passando sem parar, se dando por afobado, virando pra trás com o braço ameaçador, “Vocês vão ver!”… Mas um riso aqui, outro riso acolá, uma frase longe, os carregadores com‑panheiros, era tão amigo deles, estavam caçoando. O 35 se sentiu bobo, era impossível recusar, envilecido.107 Odiou os camaradas.

Andou mais depressa, entrou no jardim em frente, o primeiro banco era a salvação, sentou. Mas dali algum companheiro podia divisar ele e caçoar mais, teve raiva. Foi lá no fundo do jardim campear banco escondido. Já passavam negras disponíveis por ali. E o 35 teve uma ideia muito não pensada, recusada, de que ele também estava uma espécie de negra disponível, assim. Mas não esta‑va não, estava celebrando, não podia nunca acreditar que estivesse disponível e não acreditou. Abriu o jornal. Havia logo um artigo muito bonito, bem pequeno, falando na nobreza do trabalho, nos operários que eram também os “operários da nação”, é isso mesmo! O 35 se orgulhou todo comovido. Se pedissem pra ele matar, ele matava, roubava, trabalhava grátis, tomado dum sublime desejo de fraterni‑dade, todos os seres juntos, todos bons… depois vinham as notícias. Se esperava “grandes motins” em Paris, deu uma raiva tal no 35. E ele ficou todo fremente,108 quase sem

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respirar, desejando “motins” (devia ser turumbamba) na sua desmesurada força física, ah, as fuças de algum… polí‑cia? polícia. Pelo menos os safados dos polícias.

Pois estava escrito em cima do jornal: em São Paulo a Polícia proibira comícios na rua e passeatas, embora se falasse vagamente em motins de ‑tarde no Largo da Sé. Mas a polícia já tomara todas as providências, até metra‑lhadoras, estava em cima do jornal, nos arranha ‑céus, escondidas, o 35 sentiu um frio. O sol brilhante queima‑va, banco na sombra? Mas não tinha, que a Prefeitura, pra evitar safadez dos·namorados, punha os bancos só bem no sol. E ainda por cima era aquela imensidade de guardas e polícias vigiando que nem bem a gente punha a mão no pescocinho dela, trilo. Mas a Polícia permitira a grande reunião proletária, com discurso do ilustre Secre‑tário do Trabalho, no magnífico pátio interno do Palácio das Indústrias, lugar fechado! A sensação foi claramente péssima. não era medo, mas por que que a gente havia de ficar encurralado assim! É! é pra eles depois poderem cair em cima da gente, (palavrão)! não vou! não sou bes‑ta! Quer dizer: vou sim! desaforo! (palavrão), socos, uma visão tumultuária, rolando no chão, se machucava mas não fazia mal, saíam todos enfurecidos do Palácio das Indústrias, pegavam fogo no Palácio das Indústrias, não! a indústria é a gente, “operários da nação”, pegavam fogo na igreja de São Bento mais próxima que era tão linda por “drento”, mas pra que pegar fogo em nada! (O 35 chegara até a primeira comunhão em menino…), é melhor a gen‑te não pegar fogo em nada; vamos no Palácio do Gover‑no, exigimos tudo do Governo, vamos com o general da Região Militar, deve ser gaúcho, gaúcho só dá é farda, pegamos fogo no palácio dele. Pronto. Isso o 35 consentiu, não porque o tingisse o menor separatismo (e o aprendido

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no grupo escolar?) mas nutria sempre uma espécie de des‑peito por São Paulo ter perdido na revolução de 32. Sensa‑ção aliás quase de esporte, questão de Palestra ‑Coríntians, cabeça inchada, porque não vê que ele havia de se matar por causa de uma besta de revolução diz ‑que democrática, vão “eles”!… Se fosse o Primeiro de Maio, pelo menos… O 35 mal percebeu que se regava todo por “drento” dum espí‑rito generoso de sacrifício. Estava outra vez enormemente piedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida, envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo, tão moço. A moça do apartamento…

Salvou ‑se lendo com pressa, oh! os deputados traba‑lhistas chegavam agora às nove horas, e o jornal convida‑vam (sic) o povo pra ir na Estação do norte (a estação rival, desapontou) pra receber os grandes homens. Se levantou mandado, procurou o relógio da torre da Estação da Luz, ora! não dava mais tempo! quem sabe se dá!

Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído o sapato lindo na beirada de tijolo do canteiro, (palavrão), parou botando um pouco de guspe no raspão, depois engraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma vol‑tinha pra não passar pelos companheiros da Estação. Que alvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens. Tomou o outro bonde pro Brás. não dava mais tempo, ele percebia, eram quase nove horas quando chegou na cidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio da torre indicava nove e dez, mas o trem da Central sempre atrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui, não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal de congresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos tra‑balhistas, só falavam dum que insultava muito a religião e exigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moça do apartamento…), mas os jornais contavam que toda a

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gente achava graça no homenzinho, “Vós, burgueses”, e toda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo do tal de deputado. E o 35 acabou não achando mais graça nele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E ago‑ra estava quase torcendo pra não chegar com tempo na estação.

Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove e quinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multi‑dão que ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia alguns carregadores dali também e foi perguntar. não, não tinham reparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou na porta da estação, tirando fotografia. Aí outro carregador conferiu que eram os deputados sim, porque tinham toma‑do aqueles dois sublimes automóveis oficiais. nada feito.

Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde, mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem‑‑vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhando a rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia por dentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilu‑sões, de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estava tão desgradável, estava quase infeliz… Mas como perceber tudo isso se ele precisava não perceber!… O 35 percebeu que era fome.

decidiu ir a ‑pé pra casa, foi a ‑pé, longe, fazendo um esforço penoso para achar interesse no dia. Estava era com fome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por ser feriado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam tra‑balhando, de vez em quando um carrego, o mais eram conversas divertidas, mulheres de passagem, comenta‑das, piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só as bem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos sim‑patizavam logo com ele, ora por que que hoje me deu de lembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça

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morando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar o dia era uma ideia ir lá, com que pretexto?… devia ter ido em Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus con‑vite, mas o Primeiro de Maio… Recusara, recusara repe‑tindo o “não” de repente com raiva, muito interrogativo, se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Então conseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquele jogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficava ninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu ‑se muito triste, desamparado. É melhor tomo por esta rua. Isso o 35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficava bem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se con‑fessar mais que era pra não passar na Estação da Luz e os companheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deu com o coração cerrado de angústia indizível, com um ven‑to enorme de todo o ser assoprando ele pra junto dos com‑panheiros, ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar… E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronada celebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou sem fome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.

não eram bem treze horas e já o 35 desembocava no parque Pedro II outra vez, à vista do Palácio das Indús‑trias. Estava inquieto mas modorrento,109 que diabo de sol pesado que acaba com a gente, era por causa do sol. não podia mais se recusar o estado de infelicidade, a solidão enorme, sentida com vigor. Por sinal que o parque já se mexia bem agitado. dezenas de operários, se via, eram operários endomingados, vagueavam por ali, indecisos, ar de quem não quer. Então nas proximidades do palácio, os grupos se apinhavam, conversando baixo, com melan‑colia de conspiração. Polícias por todo lado.

O 35 topou com o 486, grilo quase amigo, que policia‑va na Estação da Luz. O 486 achara jeito de não trabalhar

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aquele dia porque se pensava anarquista, mas no fundo era covarde. Conversaram um pouco de entusiasmo semos‑tradeiro,110 um pouco de Primeiro de Maio, um pouco de “motins”. O 486 era muito valentão de boca, o 35 pen‑sou. Pararam bem na frente do Palácio das Indústrias que fagulhava de gente nas sacadas, se via que não eram ope‑rários, decerto os deputados trabalhistas, havia até moças, se via que eram distintas, todos olhando para o lado do parque onde eles estavam.

Foi uma nova sensação tão desagradável que ele deu de andar quase fugindo, polícias, centenas de polícias, mode‑rou o passo como quem passeia. nas ruas que davam pro parque tinha cavalarias aos grupos, cinco, seis, escondi‑dos na esquina, querendo a discrição não ostentar força e ostentando. Os grilos ainda não faziam mal, são uns (palavrão)! O palácio dava ideia duma fortaleza enfeitada, entrar lá drento, eu!… O 486 então, exaltadíssimo, descre‑via coisas piores, massacres horrendos de “proletários” lá dentro, descrevia tudo com a visibilidade dos medrosos, o pátio fechado, dez mil proletários no pátio e os polícias lá em cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.

Mas foi só quando aqueles três homens bem ‑vestidos, se via que não eram operários, se dirigindo aos grupos vagueantes, falaram pra eles em voz alta: “Podem entrar! não tenham vergonha! podem entrar!” com voz de man‑dando assim na gente… O 35 sentiu um medo franco. Entrar ele! Fez como os outros operários: era impossível assim soltos, desobedecer aos três homens bem ‑vestidos, com voz mandando, se via que não eram operários. Foram todos obedecendo, se aproximando das escadarias, mas o maior número, longe da vista dos três homens, torcia caminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do par‑que, mais longe.

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Esses movimentos coletivos de recusa, acordaram a covardia do 35. não era medo, que ele se sentia fortíssimo, era pânico. Era um puxar unânime, uma fraternidade, era carícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortes tão fracos que estavam ali também pra… pra celebrar? pra… O 35 não sabia mais pra quê. Mas o palácio era gran‑dioso por demais com as torres e as esculturas, mas aquela porção de gente bem ‑vestida nas sacadas enxergando eles (teve a intuição violenta de que estava ridiculamente ves‑tido), mas o enclausuramento na casa fechada, sem espaço de liberdade, sem ruas abertas pra avançar, pra correr dos cavalarias, pra brigar… E os polícias na maciota, encara‑pitados nas janelas, dormindo na pontaria, teve ódio do 486, idiota medroso! de repente o 35 pensou que ele era moço, precisava se sacrificar: se fizesse um modo bem visí‑vel de entrar sem medo no palácio, todos haviam de seguir o exemplo dele. Pensou, não fez. Estava tão opresso,111 se desfibrara tão rebaixado naquela mascarada de socialis‑mo, naquela desorganização trágica, o 35 ficou desolado duma vez. Tinha piedade, tinha amor, tinha fraternidade, e era só. Era uma sarça ardente, mas era sentimento só. Um sentimento profundíssimo, queimando, maravilhoso, mas desamparado, mas desamparado. nisto vieram uns cavalarias, falando garantidos:

– Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro, me’rmão! no parque ninguém não para não!

Cabeças ‑chatas…112 E os grupos deram de andar outra vez, de cá para lá, riscando no parque vasto, com vontade, com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. deu um ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava um bonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486, com ódio do 486, com ódio do Primeiro de Maio, quase com ódio de viver.

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O bonde subia para o centro mais uma vez. Os relógios marcavam quatorze horas, decerto a celebração estava principiando, quis voltar, dava muito tempo, três minu‑tos pra descer a ladeira, teve fome. não é que tivesse fome, porém o 35 carecia de arranjar uma ocupação senão arre‑bentava. E ficou parado assim, mais de uma hora, mais de duas horas, no Largo da Sé, diz ‑que olhando a multidão.

Acabara por completo a angústia. não pensava, não sentia mais nada. Uma vagueza cruciante, nem bem sen‑tida, nem bem vivida, inexistência fraudulenta, cínica, enquanto o Primeiro de Maio passava. A mulher de encar‑nado foi apenas o que lhe trouxe de novo à lembrança a moça do apartamento, mas nunca que ele fosse até lá, não havia pretexto, na certa que ela não estava sozinha. nada. Havia uma paz, que paz sem cor por “drento”…

Pelas dezessete horas era fome, agora sim, era fome. Reconheceu que não almoçara quase nada, era fome, e principiou enxergando o mundo outra vez. A multidão já se esvaziava, desapontada, porque não houvera nem uma briguinha, nem uma correria no Largo da Sé, como se esperava. Tinha claros bem largos, onde os grupos dos polícias resplandeciam mais. As outras ruas do centro, essas então quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe, tinham fechado, com o pretexto magnânimo de dar feria‑do aos seus “proletários” também.

E o 35 inerme, passivo, tão criança, tão já experiente da vida, não cultivou vaidade mais: foi se dirigindo num passo arrastado para a Estação da Luz, pra os companhei‑ros dele, esse era o domínio dele. Lá no bairro os cafés continuavam abertos, entrou num, tomou duas médias, comeu bastante pão com manteiga, exigiu mais manteiga, tinha um fraco por manteiga, não se amolava de pagar o excedente, gastou dinheiro, queria gastar dinheiro, queria

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perceber que estava gastando dinheiro, comprou uma maçã bem rubra, oitocentão! foi comendo com prazer até os companheiros. Eles se ajuntaram, agora sérios, curio‑sos, meio inquietos, perguntando pra ele. Teve um instin‑to voluptuoso de mentir, contar como fora a celebração, se enfeitar, mas fez um gesto só, (palavrão) cuspindo um muxoxo de desdém pra tudo.

Chegava um trem e os carregadores se dispersaram, agora rivais, colhendo carregos em porfia. O 35 encostou na parede, indiferente, catando com dentadinhas cui‑dadosas os restos da maçã, junto aos caroços. Sentia ‑se cômodo, tudo era conhecido velho, os choferes, os viajan‑tes. Surgiu um farrancho113 que chamou o 22. Foram subir no automóvel mas afinal, depois de muita gritaria, acaba‑ram reconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe, eram as duas velhas, cinco meninos repartidos pelos colos e o marido. Tudo falando: “Assim não serve não! As malas não vão não!” aí o chofer garantiu enérgico que as malas não levava, mas as maletas elas “não largaram não”, só as malas grandes que eram quatro. deixaram elas com o 22, gritaram a direção e partiram na gritaria. Mais cabeça‑‑chata, o 35 imaginou com muita aceitação.

O 22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aque‑las quatro malas pesadíssimas, preparou a correia, mas coçou a cabeça.

– deixa que te ajudo, chegou o 35.e foi logo escolhendo as duas malas maiores, que ergueu

numa só mão, num esforço satisfeito de músculos. O 22 olhou pra ele, feroz, imaginando que o 35 propunha rachar o ganho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no velhote, que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíram na risada os dois. Foram andando.

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Balança, Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma*

do nascimento até a chegada de Battleship na baía do Rio de Janeiro, medeiam poucas informações. Viveu por toda Londres num vagamundear de roubos e indiferen‑ças, até que a paciência lhe ditou como melhor meio de vida o pouco perigoso ofício de pickpocket.114 Aos doze anos já adotara o nome de Battleship; e até essa noite dos seus dezessete anos de idade só tivera duas prisões, quan‑do topou com uma festa sobre a qual estava escrito em letras luminosas: Café do Brazil. Vendo a bandeira por cima das letras que a iluminavam, Battleship teve uma sensação de repugnância por causa daquela mistura idio‑ta de verde com amarelo, mas a entrada era franca e Bat‑tleship estava enroupado como todos os ingleses deste mundo, sobretudo, boné, botinas fortes, entrou. dentro havia cartazes provando que o Brasil era admirável, um “Salve 15 de novembro”, era o dia 15 de novembro, e bas‑tante gente provando café do Brasil. Quando chegou a vez de Battleship, coisa que jamais sucedera na vida, os olhos dele até relampearam de gozo ao sabor da bebida incom‑parável, que delícia! E como o tumulto lhe estava sendo

* Edição póstuma, 1994.

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extraordinariamente propício, ainda ficou por ali, se esfre‑gando nos outros, olhando pras paredes ilustradas, até que julgou suficientemente farta a colheita, bebeu nova xicra e saiu. Mas que gosto ele trazia na boca, nem uísque!… Até o cigarro tomara alma nova, tão generoso em seus pra‑zeres que pela primeira vez na vida Battleship suspirou. não lhe valia de nada o que enxergara nas paredes, portos civilizados, grandes cidades do Brasil e gentes como Lon‑dres mesmo, via detrás dos olhos, era a já agora não repug‑nante mais, porém selvagíssima paisagem verde e amarela dum calor de esporte, índios, redes, palmeiras e ele rei sem medo. Mas foi só quando mais tarde porém, esboçando o riso da alegria ante a bolada boa colhida na festa, que nas‑ceu em Battleship o mando de ir para o Brasil.

no dia seguinte esteve sem trabalho, banzando no por‑to, a ver navios. O Brasil já se afastava aos poucos dele entre a bruma, na azáfama dos cais e aquela naviozada que partia pro mundo. Só permanecera firme o mando de partir por conciliar dentro do moço a fadiga de dezes‑sete anos monótonos com a liberdade de quem era só no mundo. na outra semana Battleship partiu rumo do Egi‑to. Esteve lá, esteve em Marselha, voltou pra Londres no outro inverno e caiu doente. Quando saiu do hospital, com a mocidade exausta de reagir sobre a moléstia que o queria matar, não tinha nada, estava na miséria, ao frio comple‑to de janeiro. Lhe vinham nostalgias do Sol que doíam, e se valendo da presença agradavelmente esbelta e sem a mais leve sombra de fio de barba, apesar dos dezeno‑ve, arranjou ‑se de steward115 num navio e foi pro Egito. Em Lisboa fugiu de bordo, roubou três portugueses, foi pra Madri, de lá pra Barcelona, com a intenção firme de ir pro Egito. Estava com bastante dinheiro espanhol no bolso do sobretudão que já pesava em plena primavera.

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Pôs o dinheiro dentro do boné, costume velho que lhe vinha dos tempos de menino e lhe dava sempre a sensação agradável de que era um pobrinho que os outros batiam, roubavam, e por isso carecia se esconder. Lembrou de dar o sobretudão pesado pra velha sentada no chão junto da casa de moda, porém, olhando, se enxergou bem refletido na vitrina, e aquela massa enorme de lã suspensa ao braço lhe compunha tão bem a esbeltez da figura, não deu não. Ia passar um sublime vapor italiano pra Buenos Aires. na Inglaterra, no Egito, em Marselha, e agora excessivamente na Espanha, Battleship sempre escutara o nome de Buenos Aires, comprou uma passagem pra lá.

Eis toda a vida sem mistério desse moço inglês, até o momento em que ele desembarcou no porto do Rio de Janeiro. Porque Battleship não foi pra Buenos Aires. Um dia, um marinheiro que simpatizara muito com ele, lhe contou que já estávamos nas costas do Brasil. Battleship teve um sobressalto. Lhe veio completinha aquela noite nunca mais lembrada em que entrara na festa do café do Brasil. Tinha decidido vir pro Brasil e no entanto Egito, Marselha, Egito, Londres, doença, Egito, Lisboa, Egito, puxa quanto Egito! e agora Buenos Aires, Brasil mesmo!… Battleship quase sorriu. O marinheiro estava caceteando muito ele porque arranjara uma saída pro dia de para‑da no Rio de Janeiro, pra visitar um fratello trabalhando de engraxate na Avenida. Convidava Battleship pra pas‑sear, que era lindo. desceram juntos. Era uma manhã de julho, dessas maravilhosas em que o Rio se dissolve numa névoa quentinha de Sol. Os brasileiros estavam todos rin‑do muito, que pessoal fácil da gente roubar, polícia nenhu‑ma, todos se abraçavam, ninguém se amolava dos outros encostarem. O marinheiro também estava caceteando muito ele e de repente, de repente Battleship concebeu o

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mando de ficar no Rio, pra se ver livre do marujo. Entrou num café com o pretexto de comprar cigarro, pediu pro outro esperar na porta, e enquanto o marinheiro se dis‑traía com a rua, foi sair na outra porta extrema, entrou no café pegado, foi se esconder no mictório. Ficou numa ansiedade medrosíssima, mais de uma hora ali, e o mari‑nheiro não veio. Resolveu sair e na rua o marinheiro não estava mais. Voltou pelo caminho andado, sempre cor‑tado de medos naquele perigo insinuante de topar com o marinheiro outra vez. Buscava as calçadas do outro lado da rua e uma esquisita nostalgia de sofrer lhe punha nos transeuntes a figura fatigante do companheiro. não pene‑trou no cais, foi seguindo por detrás dos armazéns até uma nesga de ruela por onde enxergava o casco alevanta‑do do navio. Os viajantes já voltavam dos seus passeios na cidade, embarcavam. Battleship ficou ali espreitando até que o navio foi embora.

Quem sabe a língua do Brasil?… Mas Battleship se arranjou. Há sempre algum speackenglish116 no cami‑nho e os brasileiros adivinham todas as línguas do mun‑do. Battleship se sentia perfeito naquele inverno carioca apesar do dinheiro estar finando aos poucos. Agora ele percebia, muito riso, muito abraço, todos eram ‑se ami‑gos íntimos, mas havia uma sensibilidade tal nos corpos que era raro Battleship poder roubar. Roubava assim mes‑mo, principalmente de algum estrangeiro civilizado do velho mundo, mas estes apareciam pouco na vertigem das multidões. Eram multidões feitas de brasileiros, e quando Battleship conseguia iludir a sensibilidade de algum cor‑po e surripiar uma carteira, era carteira mas não tinha nada dentro, dez milréis!… Mas Battleship era prudente. Quando percebeu que a semana seguinte seria difícil de viver, falavam tanto que os mineiros eram ricos, partiu pra

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Belo Horizonte. Mas aí as carteiras continham era abso‑lutamente nada dentro, nem dez milréis, e de resto, não havia multidões. Fez como os retirantes, num golpe de vista genial, buscou São Paulo.

depois de Moji das Cruzes na manhã, já não havia roça mais. Eram pequenas propriedades, bangalôs de recreio, Egito, fábricas, campinhos bem verdes com três vacas cada um, Battleship assuntara bem o companheiro de cabina guardar alguma coisa debaixo do travesseiro, agora não. Mas lá na suja estação de parada, aquela azá‑fama, valises, todos queriam descer primeiro do vagão, quando Battleship examinou a carteira, meia hora depois, naquele parque subindo pra arranha ‑céus em delírio, sem quase ninguém, eram três contos! Os paulistas deixavam‑‑se roubar.

Battleship só não foi pro Esplanada por civilização. Era pickpocket, trinta contos que tivesse, o lugar dele era lugar de pickpocket, foi pra um desses hoteizinhos de improviso do centro da capital. Mas gastava sem pensar, fez roupas de bom alfaiate, comprou dois bonés festivos, um cinza, um bege, e novo sobretudão que o fim de agosto estava duro. Sentiu ‑se em casa. Era completamente diferente, bem mais suave, mas havia um vago ar de Londres, mis‑turado com Marselha, um vago ar de Europa e Battleship estava em casa. Ficou logo tomado de paixão pelos enor‑mes polícias, limpos, esportivos, circulando com poses fotográficas, e deixando roubar. E os secretas então, glo‑riosamente visíveis, gordos, mucudos,117 todos uniforme‑mente negros de bengalão. Mas olhavam tanto pros bonés dele, aliás era no que toda a gente reparava nele, Battle‑ship descobriu logo, ninguém não desconfiava dele, mas todos desconfiavam do boné. desistiu dos bonés. Com‑prou chapéus de pano de fabrico paulista, duros, rijos

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como a lealdade, machucando a testa muito. Mas agora tudo ficara completamente fácil, não havia o boné, e só os camarões118 da Light and Power davam pra Battleship viver de vida sossegada. Só, só neste mundo, só de amigos, Battleship continuava em seus vinte anos imberbes, cor‑po de efebo,119 cara esmaltada, sapatões, vivendo só nes‑te mundo, estudando a linguagem brasileira nos jornais, comprando todas as revistas ilustradas, que lia em casa, se encharcando de café do Brasil, e fumando cigarros de palha, fortíssimos, que só tinham o defeito de enegrecer com rapidez os dentes. de ‑tarde saía da cama, raspava de leve os dentes com o limpador de unhas, se vestia em três segundos, se assoava bem, o que gostava muito de fazer só, no quarto, escutando os barulhos curiosos que lhe davam uma sensação cômoda da própria existência e da higiene. Saía pra trabalhar. Parava na esquina pra beber um café expresso, que não lhe agradava muito mas cuja vasta máquina de níquel brilhando, lhe dava sempre uma recordação sem saudades, feliz, da catedral de Londres.

Ora quando chegou o dia 7 de setembro que era de festa nacional, Battleship foi, como todos, ver a grande parada que se anunciara nos prados do Jockey Club. Battleship estava bem, com bastante dinheiro no bolso, não muito mas bastante, porém tinha o trabalho cotidiano. Foi no prado da Mooca e foi roubar, mas sempre com aquela seve‑ridade sem pensamentos dum velho professor de esco‑la pública, apenas porque era dia de multidão e ele tinha que trabalhar. Mas, está claro, tinha excessiva prática do ofício pra não perceber desde logo que a menina estava com intenção de o roubar. Uma única diretriz o domi‑nou, enorme raiva. Se em vez de menina fosse alguma mulher velha ou ladrão na força do homem, sem dúvida que o moço teria muito se divertido daquela coincidência

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de ladrão roubando ladrão, mas tinha apenas vinte anos e a menina presumivelmente quatorze pela indecisão ain‑da dos seios, daí a raiva. O instinto de prestígio que nós sempre sentimos diante dos que estão do mesmo lado da nossa idade, lhe mostrara imediato o horror que havia, não no ato puro e abstrato de roubar, mas daquela meni‑na roubar. Era uma estúpida, merecia castigo, e Battleship decidiu castigá ‑la.

Imediatamente sentiu que tinha muita pressa, o castigo devia ser agora já. Mas isso não derivava do tamanho da raiva, esta derivara pra aquela decisão aventurosa de cas‑tigar a menina – o que o deixara inteiramente divertido. A pressa vinha da sujeira da pequena, estava porca. naquela misturada matinal de gentes que a festa da independência levara ao prado da Mooca, tudo endomingado, a menina punha um gosto horrendo de fim de semana, suja, suja, maltrapilha, com apenas o vestidinho que nem tinha mais cor de vermelho, sobre o corpo repelente. Aqueles cabelos pingando irregularmente da maçaroca inviolável sobre a cara, o pescoço… devia ter muito bicho naqueles cabelos. Tudo na menina deixava Battleship violentamente sem conforto. Sempre ele fora discretamente higiênico, mesmo no tempo dos dez anos soltos em Londres, e agora então as vacas gordas o punham: numa resplandecente exigência de limpeza, álgido120 como a Lua da tarde. Carecia se des‑cartar daquela sórdida, pra voltar ao prazer de si mesmo.

Battleship fincou os olhos no longe do campo, inteira‑mente distraído de olhos, fácil da gente roubar. A menina apressada se aproximou, e não tirava os olhos da cara dele, ele bem via com o pensamento. Battleship estava outra vez com raiva, mas agora indignado, a estúpida nem sabia se distrair pra disfarçar! E eis que ela o toca no braço e com tanto peso que era impossível Battleship continuar

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na distração. Agarrou a mão dela, era mãozinha fria, sem prazer, e olhou com tanta força que a coitadinha teve um estremeção, ficou imóvel. Vinha do fundo dos seus olhos negros, agora abertos no medo, uma expressão de sofri‑mento tão quietinho que deixava a existência consolada. Battleship ficou surpreso. Pela primeira vez na vida teve a noção, noção muito longínqua, de que era um desgra‑çado também. Mas aqueles olhos negros lhe diziam tam‑bém que era indiferente ser desgraçado. Estavam os dois assim, um minuto, ela com medo, ele surpreso, quando se lembraram de si. E a menina, recuperada, continuou na intenção que o rapaz interceptara, pesou ‑lhe mais a mão no braço e murmurou, fingindo vasta ansiedade:

– Me dá esmola!Era esmola, não era roubo, Battleship ficou sem fim.

não tinha piedade, não tinha raiva, não tinha pressa mais, estava por tal forma sem razão, meia dificuldade em respirar tão inútil se achou. “Me dá esmola!” que ela repetia outra vez, certa da esmola agora, mais animada porque ele não apertava tanto mais o braço dela e a olhava sempre, mas sem aquela força de vista que a estarrecera pouco antes, e sim com olhos inertes, ainda por qualifi‑car. “Só um tostão!… pra pão!” ela insistia, animada cada vez mais; porém, como a resposta não vinha, a frase nova denunciava uma certa impaciência, enquanto a tradição, contradizendo a impaciência leal, teatralizava cada vez mais, com uma burrice que atingia o ridículo, a sua ati‑tude de fingir desgraça. Battleship não estava com míni‑ma intenção de dar esmola, estava literalmente aquó.121 E agora que examinara bem a cara da menina, aquela suji‑dade tão impregnada, tão conservada como um rito secu‑lar, se era menos repugnante assim, não lhe deixava lugar pro mais mínimo impulso de simpatia. Era apenas uma

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revelação surpreendente, Battleship ficara sarapantando. Já umas duas ou três pessoas olhavam algumas vezes pros dois, reparando, e o inglesinho era discreto. Mas ficara nele uma curiosidade fixa, Battleship estava com pressa outra vez, e, pra o normalizar inda mais nos projetos ante‑riores, uma raiva nova lhe bateu no ser. disse “não” frio, largou de golpe o braço da pequena, fincou os olhos no campo onde os soldados valsavam de focas de music ‑hall. E a menina foi ‑se embora.

Mas Battleship não a perdeu de vista mais. Ela andou por ali, colhendo esmola de um, recusa de outro, até que a parada acabou. dez mil pessoas se acossavam nas saídas mas Battleship não roubou ninguém, seguia a menina. Assuntou ‑a correr de bonde em bonde, jogar a mão den‑tro dos automóveis, parar senhores de cinquenta anos, e Battleship calculava nuns dez milréis a colheita quando se lembrou que estava em S. Paulo, na carteira de três contos e aumentou o cálculo pra vinte milréis. Afinal os bondes foram rareando, e os próprios vendedores de pastéis se arranjaram pra partir, tinha acabado a independência. A menina se orientou na rua. Mas Battleship estava preveni‑do agora que não tinha mais povo pro disfarçar, e ela não o enxergou. Amarrou a espécie de lenço em que aperta‑ra as moedas, e com uma no dedo foi comprar o doce do doceiro.

Agora ela partia mesmo. Battleship ia segui ‑la quando compreendeu de repente o que vale um doce. Jogou a moe‑dinha de milréis na cesta enjoativa do doceiro e recebeu dez doces num papel. Então seguiu atrás da menina. Ela tomara por umas ruelas sem calçamento que rodeavam o prado, depois atravessou um ajuntamento de casinhas novas, bordejando a linha de bonde. do outro lado era um campo aberto, inda sem destino como se aquele lado da

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cidade acabasse ali. Havia bosquetes esparsos de arvore‑tas plebeias, a faixa branca duma rodovia bem tratada, e além um mato baixo que pra Battleship figurou a jungla122 selvagem. A pequena tomou pela vereda que enfiava pelo mato e Battleship, já perto, deu um grito cuidadoso de paz, chamando. Ela virou mas em vão Battleship forçava a boca num riso e mostrava os doces na mão: nem percebeu quem era, a menina desatou na carreira mato dentro. Battleship correu também, sem refletir. O matinho acabava quase que ali mesmo, e quando o rapaz entrou por ele já não enxergou mais a menina, e apenas no fim do túnel sobrea‑do, a moeda violenta do céu. O coração dele cerrou num pressentimento de perda que doeu muito e desacostuma‑do de sofrer, Battleship arremeteu com desespero na dire‑ção da outra entrada da vereda. Chegado lá entreparou pra se orientar e teve um baque. Junto mesmo à entrada do matinho, à esquerda, no terreno que descia até o corpo desmanchado dum riacho pluvial, havia um rancho. no terreirinho de frente, descuidado, sujíssimo, estava uma menina, tão suja como o chão, como [que] fazendo comida num fogareiro miserável. Parara o gesto e o olhava, pasma. Sentada na porta estava ainda uma mulher velha, devia ser velhíssima, amulatada na cor, com uma enorme carapi‑nha embranquecida, fumando num cachimbo comprido. Atrás dela, de pé, se protegendo mais na entressombra do rancho que na velha, a menina da parada recuou mais assim que Battleship apareceu.

O moço abriu o papel e estendeu os dez doces como apresentação. A menina do fogareiro arregalou os olhos pro convite mas logo ficou sofridamente inquieta, olhou pros doces, olhou pra velha, olhou pro riso do moço, olhou pra velha outra vez… Mas a mulata que não perdera nada da sua calma virtuosíssima com a chegada do estranho,

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fez uma careta de fúria castigante pra pequena, e esta recomeçou a lidar com a panela sem saber. A velha voltou logo ao seu aspecto de perfeição, mas os olhinhos ávidos, piscando, estavam presos na direção dos doces, desmen‑tindo a calma. depôs lentamente o cachimbo no chão e arrimou ‑se no batente solto, pra se erguer. A que estava junto dela ajudou ‑a numa monotonia de obrigação. Era uma velha bem grande, que se reduzia à metade, magrís‑sima, engruvinhada por mil reumatismos. deu uns passos difíceis na direção de Battleship, e este, se compreenden‑do aceito, veio ao encontro dela, e lhe depôs os doces nas mãos trêmulas. A velha apertou o embrulho no peito que saía duma camiseta já sem cor. Battleship recebeu dela um fedor tão nítido de porqueira que, não pôde, recuou um passo. Então saiu da velha uma voz muito fina, muito, agradecendo. Voltou pra sentar de novo, mas lembrou que o moço estava ali e ela devia representar, chamou:

– Balança, minha filha venha cá.Isso a menina do fogareiro deu um pulo pra junto da

velha e estendeu a mão. A mulata olhou meio inquieta pros doces, tinha mesmo que se resolver, deu um. Balança, recebendo o doce, olhou pro moço, já sem nenhum medo. E os olhos dela bem falavam que ele visse como era aquela velha amaldiçoada, que só dava um doce tendo tantos. E Trombeta recebeu também seu doce de favor.

Estes nomes estrambólicos, Balança e Trombeta, Bat‑tleship veio a saber e a compreender só depois. Porque ele estava mesmo decidido a não sabia mais o que, de rumos tão impossíveis que tomara a aventura da para‑da. Mas tudo ainda estava decidido nele que tinha de haver qualquer coisa com a menina da parada, a Trombe‑ta. A velha sentou de novo, sem preocupação de limpeza, botou o papel inteiramente engordurado pelos doces no

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colo, e levantou do chão o cachimbo. não houve inde‑cisão nenhuma, porque todos percebiam que Battleship era só bom, nasceu uma conversação longa que Battle‑ship aguentou de pé, não tendo cadeira nem onde sentar. As meninas entravam na conversa, sem nenhum respeito pela velha, auxiliando as respostas.

Battleship fez umas perguntas e foi logo censurando a sordidez das meninas. Mas ninguém não compreendeu do que ele falava. não era a relativa dificuldade com que ele se expressava que trouxe a incompreensão, e sim a nenhuma ideia de sujeira que havia nas três, piores que irracionais. Viviam de esmolas. A velha, que as meninas chamavam de dona Maria, afirmava que Trombeta era filha dela, mas não havia entre ambas a mais mínima relação de pare‑cença. não se tratava porém duma mentira da velha, nem mesmo propriamente dum esquecimento, e de fato ela caducava bastante: se tratava sim duma espécie de aban‑dono do passado, em quem só vivera e por quase cem anos já, da exclusiva precisão do momento. Ela não sabia mais e Battleship logo percebeu que a mulatona inventava res‑postas, pela simples necessidade de responder. As meninas é que traziam alguma verdade à história daquelas três.

Fazia pouco tempo que viviam ali. Trombeta con‑tava que sempre, desde sempre, dona Maria esmolava lá na cidade puxando ela pelo bracinho de quatro, seis, oito anos. Moravam onde podiam, onde achavam no que morar, mas sempre nas barras da cidade. À medida que esta crescia, as duas eram enxotadas pra limites novos, pra ranchos abandonados de carvoeiros, pra restos de bilhe‑terias de circos idos, pra tábuas ficadas de algum acam‑pamento de cigano. Aos poucos dona Maria ia ficando encarangada,123 o que levou naturalmente Trombe‑ta a esmolar sozinha. Se deu logo um certo proveito de

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situação porque os oito anos sozinhos da pequena como‑viam mais que menina e velha juntas. Também Trom‑beta era inexperiente e se afoitava muito. A velha ficava sempre pelas barras da cidade em suas caminhadas de esmola. Batia nas chacras, nos mosqueiros124 de operá‑rios, nas vendinhas de beira ‑estrada. E eram restos de comida, farrapos sujos, algum raro tostão que recolhiam as duas. Trombeta, menos por ambição que curiosidade, principiou entrando pelos bairros, batucando os pezinhos miúdos por avenidas calçadas, e uma vez, desvairada de aventura e surpresa, subiu a ladeira do Carmo e chegou na Rua Quinze. Então foi presa. Quando ela percebeu que o soldado segurava no braço dela e a levava por um cami‑nho que ela não decidia, botou a boca no mundo e reu‑niu gente. Todos pediam pro soldado que deixasse ela ir embora que ela não fazia mais, e também o soldado esta‑va com enorme dó. deixou que ela partisse, no princípio devagar, sem coragem depois numa carreira entre lágri‑mas, porém o dó de todos lhe ajuntara quase oito milréis. não lhe interessavam tantos milréis e sim o medo horrível que tivera. Continuou esmolando pelas chacrinhas e bote‑quins sem polícia. A quase irracional momentaneidade da mulata já se infiltrara nela também. Uma lata de restos de almoço lhe interessava mais que oito milréis de alimentos por cozinhar ou panos pra costurar.

devia ter dez, quem ia supondo isso era Battleship, quando uma feita encontrou com outra menina na rua. Esta seria Balança depois, porque naqueles tempos elas se chamavam de “Chíu!” e “você”. Pois um dia Trombeta encontrou uma menina na estrada e as duas brigaram por‑que Trombeta ia com um ramo de árvore na mão, a outra menina chegou e disse:

– Esse pau é meu.

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Bateram bastante uma na outra, se puxaram os cabelos, contaram nomes feios e Trombeta seguiu seu caminho. no outro dia fez questão de passar por ali mas a menina não estava. Isto é, estava sim. Saiu de repente correndo pela porta duma casinhola de estrada que ficara mais pra trás, e se atirou aos tapas sobre Trombeta. Tornaram a se bater muito, só que não doía porque as duas não tinham força nenhuma, eram miserinhas de gente. Uma acabava tomada de medo e a outra ficava com gosto de superio‑ridade no instinto. Foi assim. A outra menina não tinha nada que a prendesse em casa, nem a mãe, uma italianona que batia às vezes, lhe agradava mais que a liberdade com que a inimiga Trombeta seguia por caminhos inventados e batia nos botequins. Um dia foi com Trombeta, dormiu no quase relento da tapera e não mais se lembrou da ita‑liana da mãe.

dona Maria tinha instintos. Uma das meninas pedia esmolas enquanto a outra ficava em casa, diminuindo o reumatismo da velha e fazendo comida, se tinha comi‑da pra cozinhar. Foi então que partiram pra mais longe e vieram topar com o rancho abandonado em que estavam agora. E eis que a zona era excelente por causa do Joc‑key Club que nos domingos proporcionava uma colheita regular de oito, nove milréis. E ali ficaram alguns anos até Battleship chegar.

Battleship olhou em torno. O matinho seguia até o ria‑cho e parava ali entre arvoretas esparsas. do outro lado continuava subindo o morro e se perdia no além. A uns trezentos metros no campo se percebia a casa branca duma chacra, com telhado de cottage,125 surgindo das ter‑ras plantadas. Havia um burro no campo. A manhã estava bem alta e Battleship olhou o relógio pulseira, meio ‑dia. Sentiu fome. As três mulheres já tinham comido na panela

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mesmo, o feijão cozido. Ele nem tivera que recusar por‑que não fora convidado, era rico. Então Battleship par‑tiu deixando mais cinco milréis pra mulata e um riso de despedida.

depois que entrou pela vereda do matinho ouviu um ruído de carreira atrás de si, virou. Era Trombeta sorrin‑do, sem compostura. Chegou junto dele, e contou que nem ela nem Balança chamavam dona Maria de “dona Maria” entre si, mas de “Juízo Final”. Era também outra palavra que elas tinham pegado do padre no dia em que entraram na tal capela e escutaram o sermão, e tinham se entrebatizado pelas palavras engraçadas que escutaram da boca do padre. Então ela ficara Trombeta, e a com‑panheira Balança. dona Maria, principiaram chamando de Juízo Final e achavam muita graça, mas um instinto impossível de respeito, não, uma reserva de superioridade por quem não era igual a elas, fizera com que não revelas‑sem nunca pra velha que a chamavam de Juízo Final. E, de fato, sem perigo nenhum, diante de dona Maria, uma falava pra outra:

– Balança.– Eu.– Juízo Final é isto, um palavrão.Ambas se riam.Pra Battleship a revelação não adiantara nada. não

imaginava o que fosse Juízo Final, nem balança, nem trombetas dum futuro vale da justiça. Mas olhou mais Trombeta, agora tão amiga dele, e uma simpatia gostosa, fez ele esboçar um gesto de proteção. Reforçou a mão dele um ar de pai que ia alisar os cabelos da menina, mas tudo ficou por fazer, interrompido pelo nojo. Battleship disse adeus e foi seguindo. no fim do matinho olhou pra trás. Mas Trombeta não estava mais.

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no bonde o moço ia completamente transformado, participando de tudo. Olhou a paisagem que deslizava entre amostras de atividade humana, muito rápida e des‑confortável. Mas só pôde ajuizar assim no primeiro minu‑to de visão, enquanto a preocupação de tomar o bonde, de pagar a passagem e tudo o deixavam ainda bem disponí‑vel, porque logo os olhos principiaram não vendo mais o que passava e parecia incrível pra Battleship que Balança e Trombeta vivessem assim. naquela sujeira. Imediata‑mente ele decidiu que ia na cidade comprar uns vestidos, sabões, toalhas pras duas, e foi decidido, mas as lojas todas estavam fechadas porque era mais um feriado. Battleship banzou muito desempregado. Mas quando foi de ‑tardi‑nha, a ideia fixa de arranjar bem limpas as meninas lhe fez conseguir uma carteira com cento ‑e ‑vinte milréis. Ligou logo a felicidade com o caso da manhã e decidiu que as meninas traziam sorte. Caiu uma chuvada braba e Bat‑tleship foi pro hotel. Fez café, deitou pra fumar e dormiu até o dia seguinte.

Quando acordou teve o bom ‑dia das meninas que ime‑diatamente lhe vieram no pensamento, sorriu. Levantou‑‑se apressado, levou todo o dinheiro que tinha consigo, podia bem gastar tudo porque as meninas davam sorte e de resto era a primeira vez que Battleship imaginava na possibilidade de faltar dinheiro como precisão constante, e não apenas como precaução imediata. Estava fazendo um frio úmido carregado de névoas claras. O rapaz enver‑gou o sobretudão e foi pra rua comprar roupas. Comprou muita coisa. Comprou até uma esponja cara, dessas que as pessoas limpas usam pra acarinhar o corpo no banho. E comprou também um vasto xale marrom pra mulatona. não tinha pensado nela até esse instante quando a ima‑ginação lhe trouxe as meninas bem higiênicas nos seus

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vestidinhos azuis e uma velha pitando com elas e suja des‑de nascer. não se lembrou de limpar a velha também que não lhe dava nenhuma raiva, mas a visão ficara inconfor‑tável e Battleship comprou o xale pra esconder a sujeira da velha.

Lá chegado, a velha estava sempre no mesmo lugar, só que tremendo por causa da umidade. no fundo do terreno o riacho nadava claro, refletindo as nuvens frouxas, muito aumentado com a chuva da véspera. Trombeta veio corren‑do, com o colo cheio de gravetos de cozinhar o feijão. Era a vez dela cozinhar, Balança não estava. A menina sorriu pra ele e Battleship teve uma comoção que ele julgou vio‑lentíssima porque, desacostumado a carinhos, o presente que trazia o impediu de falar, corou. Ficou mesmo encar‑nado até no longo pescoço alvo que afundava no sobretu‑dão, baixou os olhos aturdido porque essa era a primeira consciência de falta que lhe pousava no espírito. Tudo ficou suspenso assim, mas Battleship não podia aguentar com suplício tamanho. Principiou varrendo com o pé um naco de chão e Trombeta logo o ajudou, ajoelhada, varrendo o chão com as mãos. Ela fazia tudo, olhando pra ele e rindo, mas o moço bem quis, e não pôde sustentar os olhos dela. Sorriu amarelo, ajoelhou no chão, desrespeitando sua linha de limpo, e foi desatando os dois enormes embrulhos que trazia. A mulata parara de fumar olhando com avidez. Surgiu o xale que a cobriu. depois vieram roupas brancas, dois vastos pares de meia de lã, vestidinhos azuis, pentes, uma barra translúcida de sabão de coco, a esponja, toalhas de rosto, um pedaço comprido de fita de cetim preto que era pras meninas amarrarem os cabelos, e a tesourinha de unhas. Isso Battleship estava tão feliz! Os olhos dele se enchiam de lágrimas ignoradas que o moço logo limpava porque eram do vento frio. Trombeta se extasiava e não

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sabia qual dos vestidinhos escolher. Só a velha quando se convenceu de que nada mais era pra ela, retomou o pito. Lançou assim mesmo um olhar de ternura comovida sobre Trombeta que agora ia andar bem vestidinha, e recaiu na indiferença. Mas de repente a menina ficou muito inquieta e segurou forte no braço de Battleship.

– Pra mim!…– Hum ‑hum.– Com Balança?…– Hum ‑hum!Se arriscou a olhar pra menina outra vez. Trombeta

enfim compreendera. Ela já tinha atento o hábito de rece‑ber, que os doces da véspera assim como essa rouparia não passavam de esmolas pra ela. Era uma espécie de obriga‑ção do mundo, e ela recebia a tudo com indiferença de quem recebe o que tem que receber. Porém o excesso, os panos não usados, a dúvida de que tudo aquilo não pas‑sasse [de sonho], e ela não pensou, mas ela teve o senti‑mento nítido de que havia sonhos, ela a sem sonhos, e a dor insofismável126 de que havia burlas no mundo. Pra mim! É sim pra você, Trombeta, eu comprei tudo pra você, Trombeta, com sua companheira Balança; e ago‑ra tudo isso que eu comprei eu dou pra você, Trombeta, com sua companheirinha, Balança. A noção da dádiva brotou nela feito um Sol macio. E de fato o Sol rompia a frouxidão das nuvens e veio bater no terreiro. Battle‑ship olhou pra ela e enxergou um rosto novo. Trombeta não ria não porque os lábios estavam alastrados, fechadi‑nhos, rubros de natureza, guardando um riso interior de sublime festa. Os olhos estavam muito grandes, negros, rutilantes, pela primeira vez vivendo o sentido da gra‑tidão. E agora Battleship não podia mais tirar os olhos dela, nem ela os seus de Battleship, ambos se examinando

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numa paciência curiosa que era de perfeita simpatia. Eram iguais, sentiam ‑se iguais, companheiros de triste‑za. Esse era o descobrimento explosivo que acabavam de fazer. Brotara de tudo aquilo, arrebentando em escarcéus barulhentos que não pouco os aturdia, a noção da felici‑dade. Isto é, pelo contrário, a certeza de que nunca tinham sido felizes. Em vão Trombeta representara a desgraça, mentira pais doentes em casa, bancara de esfomeada, nos seus caminhos de esmola, tudo fora gesto de teatro, não lhe dera nunca a mínima inquietação, a mínima verdade. Mas agora um sentimento próprio, pela primeira vez exa‑tamente pessoal, e não nascido da paciência ou da pregui‑ça, ou do costume, como a espécie de amor que ligava as três mulheres, agora um sentimento dado a fundia com mais alguém. Era a simpatia, a camaradagem, o amor de amigo em toda a sua mais esplêndida integração. Pela pri‑meira vez, estimando e desejando possuir alguém, nas‑cia em Trombeta o instinto de comparação. Se comparou com o moço e descobriu que não fora nunca feliz, que era uma miserável desgraçada. Percebeu que estava feia. Percebeu que estava suja, não, não percebeu nada disso, a não ser como ilações127 necessárias mas não conscientes, da sua infelicidade.

Battleship violentamente recebera o mesmo sentimen‑to. Assim como Trombeta o julgava lindo, trabalhador, capaz de dar, bom, mas completamente igual a ela nalgu‑ma desgraça insabida, ele a examinava, simpática, ocu‑pada com a vida, tendo gentes em torno pra se unir. Ele não, era um sozinho maquinal, um estrangeiro, um sem família vivendo fora da pátria. A saudade de Londres o invadia. nunca fora mais que um miserável desgraçado.

Ficaram um minuto assim, vivendo sem pensar todas as suas poucas noções de desgraçados. As lágrimas

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corriam francamente pelas faces de Trombeta, mas agora Battleship continha com energia sua enorme vontade de chorar. Pouco antes suas lágrimas tinham sido por cau‑sa do vento, mas agora ele sabia que as lágrimas eram do choro, chorar não. E as suas violentas superioridades de homem dirigiram a cena.

Sorriu. Murmurou uma carícia em inglês, como se dis‑sesse “Bobinha!”, e desistiu de si mesmo pra adquirir uma funda piedade daquela pobrezinha suja.

– Você precisa se limpar, Trombeta.Ela imediatamente obedeceu. Olhou rápido em torno

se orientando, pegou numa das toalhas de rosto, na barra de sabão e disparou na direção do riacho. Battleship teve que sentar no chão, às gargalhadas. Trombeta desaparece‑ra entre as arvoretas e o moço ficou trocando umas pala‑vras com a velha.

Uns dez minutos depois Trombeta voltou. Tivera honestamente ideia de se limpar mas sujara toda a toa‑lha. A cabelaça era a mesma com uns pingos de água bri‑lhando. Limpara as pernas mas os pés vinham do barro. E nas mãos enrubescidas pela água inda fria, as unhas pretas agora enojavam mais. Battleship deu um risinho descontente. Levantou a cabelaça e viu uma orelha, infun‑dia horror. Mas Trombeta era mesmo bonitinha de cara e os nojos de Batlleship terminavam em simpatia, olhos tão doces, negros! Junto da gola do vestido trapo a rapi‑dez da limpeza deixara uns traços de sujeira no pescoço. A toalha estava suja mesmo, Battleship pegou na toalha e esfregou os traços com o que achou de limpo na toalha. Mas o limpo era pano seco e o cascão não saiu. Battleship ficou desesperado. Fazia tudo falando, ralhando já com a menina, como se ela fosse dele, e Trombeta estava muito triste porque não conseguia obedecer ao companheiro.

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– Vamos até o rio! que ele falou, se decidindo. Leva‑ram as roupas, a tesoura, os pentes. Lá Battleship tirou o sobretudão que já estava mesmo sobrando ao Sol, tirou o paletó, o colete, arregaçou as mangas, e depois de sacudir forte a arvoreta pra ver se a roupa dele não caía dos galhos, se orientou. Mas pra chegar na água corrente, tinha um metro e muito de lama, pra sujar Battleship. Além disso a própria água corrente era de chuva, barrenta, imagem de sujidão. não havia outra água, mas não havia outra vasi‑lha gamela na casa que não fosse a panelinha de cozinhar o feijão. Foram até lá no rancho pra ver se descobriam um jeito e encontraram a velha resmungando por causa de Trombeta não estar preparando a comida. A menina olhou pra Battleship enormemente desolada. Tudo aqui‑lo afinal a estava divertindo muito e a Battleship também. Então ele se lembrou, foi correndo até junto do riacho e voltou com uma tabuinha de cacau que destinava pras meninas. deu pra velha, que comesse em vez de feijão aquele dia, ela bem quis mas guspiu achando rúim. Então o moço ficou meio zangado e falou pra ela que fizesse fei‑jão ela mesma, o quê que tinha, um dia só! A velha obe‑deceu por causa do xale e porque também pela primeira vez despertara nela alguma coisa mais que o instante, e ela descobrira que por causa das meninas era capaz de ter um futuro risonho. Isto é, futuro sossegado, futuro de xale. O moço que fizesse o que quisesse contanto que [ela recebes‑se] xale e doces como os de ontem, cacau não.

Battleship entrou no rancho procurando. Encontrou uma caneca e no mato atrás da casa, havia duas tábuas aparelhadas, quem sabe quem tinha deixado ali! Leva‑ram as tábuas, levaram a caneca e Battleship se deci‑diu enfim a tirar os sapatos e ficar de pé no chão feito as meninas. Quando foi pra arregaçar as calças, teve pena,

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amarfanhava tudo. Tirou as calças, ficou de cuecas depois de olhar o horizonte. Mas as arvoretas apagariam qual‑quer vista vinda do além e não tinha gente no horizonte, só um burro branco no longe, comendo capim. Foram dispondo tudo e Battleship descobriu que lá pra dentro do matinho o riacho se estreitava mais, lá era melhor. Leva‑ram então as tábuas pra um lugar muito propício, onde elas ficaram de barranco a barranco, cinco centímetros fora d’água. Estava tudo alegre e a água era limpa na escu‑reza natural. O inglesinho sentia prazeres deliciados de estar de pé no chão no frio. Vencera a repugnância e estava só se rindo. Trouxeram tudo pra ali e Battleship mandou Trombeta entrar n’água. Mas uma surpresa amarga o fez exclamar. Se esquecera de comprar sapatos pras meninas, e agora as meias estavam ali pra quê! depois riu, ficavam descalças mesmo essas porcas.

Foi, sem cerimônia, desabotoando o trapo de Trom‑beta nos botões que sobravam, e a menina ficou nua. Ela se ajuntou todinha ao contato do ar frio e Battleship, se rindo, borrifou um pouco de água no corpinho escuro, fizeram as pazes. Foi uma limpeza em regra. Aos poucos desaparecera de ambos a noção de alegria, era um tra‑balho; e o trabalho se fez com convicção. Só interrom‑peu a seriedade, o fato de chegar Balança, que ficou logo indignada com aquilo tudo e chamou Trombeta de sen‑vergonha. Trombeta não sentiu nada porque o adjetivo era comum entre elas, embora só no momento parecesse ter sentido. Mas Battleship falou que Balança se aprontas‑se, que ele a lavaria também. Balança gritou que não, que não, seu isto! – uma palavra muito feia. Sentou numa raiz e ficou olhando de soslaio128 pros dois.

Trombeta ia ficando aos poucos outra gente. Saíra debaixo da sujeira quase um anjo claro, anjo brasileiro,

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é certo, de olhos e cabelos muito escuros, e um corpo copiado da mulataria na esbeltez. Mas, insexuada como os anjos, a sensação que Trombeta nos dava era a de grave segurança no pudor. Se ficava tão calmo, contemplando a menina, como deve ser o sentimento de paz depois de uma guerra comprida.

Assim Trombeta vinha saindo do riacho, esguia, quase um silvo, um silvo sim de cobra, eufônica129 junto dos mil ruidinhos que a natureza estava chorando naquele mato da manhã. não se destacava nem se impunha, pé de car‑rapicho, pé de flor sem nome, bonita feito folha que a chu‑va lavou.

Battleship, esse estava feliz completamente, sentindo as forças matemáticas do arquiteto. Contemplou um bocado a menina toda entregue em se esconder na roupa nova, mas tinha trabalho duro a completar. Se voltou, lançan‑do o braço:

– Agora você, Balança.A menina, enroscada num tronco áspero como ela,

estava espiando com desprezo, de soslaio sempre, aquela novidade que saíra da companheira, e tinha, tinha o dese‑jo enorme daquelas fazendas que ninguém nunca usara. Mas que transportes a tomavam desde o instante em que enxergara Trombeta nua e Battleship de cuecas, ambos imensamente nus, se contagiando! E como se analisar? saber o que sentia?… Se o que sentia era um mundo tão novo, onde faltava nome ao mais mínimo afeto?… Balan‑ça? Balança estava medonha por dentro, era medo, era desejos, ciúmes, despeitos, era uma cólera hirsuta.130 A mão de Battleship resvalou nela apenas. A menina deu de banda com uma delícia de ritmos, e desembestaram os dois matinho adentro, convertendo outra vez a existência num brinquedo marginal. O erro, talvez erro procurado,

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foi Balança buscar o limpo pra correr. no matinho Bat‑tleship não alcançava ninguém. doíam ‑lhe os pés desa‑costumados, se machucava muito, e a tristeza viria logo pousar no corpo do inglesinho algum gênero de lassi‑dão.131 Mas Balança, alcançado o limite do mato, junto ao riacho, parou olhando pra trás. Battleship saiu bem mais pra cima, na vereda, dez passos além. Olhou de cuecas pro mundo, e era o mesmo deserto, só o burro ocupado com o seu capim. Arrancou na disparada, Balança hesi‑tou no rumo e estava presa. Então bateu. Battleship foi aguentando, cheio de boas defesas, muito lorde no boxe, mas chegou a vez dum tapa que machucou. O branco não teve mais contemplação: com dois bofetes Balança parou chorando. Isso é que ele queria, sentiu prazer inesquecível, gosto de prolongar o sofrimento da vencida, foi ralhan‑do muito com ela, em inglês, chamando ela de “senver‑gonha” também, e outros nomes feios que escutara mais vezes por aí. E agora Balança nunca mais fugiria dos pul‑sos que a puxavam pro lugar do banho. Trombeta estava lá, toda de azul, se rindo. Mas foi só quando enxergou Trombeta que Balança compreendeu definitivamente: o banho era impossível mesmo. Se debateu de novo, Battle‑ship também era cabeçudo, e a briga de ambos tomou tais proporções, tanto ódio verdadeiro, que não era fácil mais adivinhar quem venceria. E os gritos de Balança haviam de chamar alguém, pelo menos a velha. Mas o pickpocket sentia um verdadeiro terror por qualquer ruído sem dis‑crição. de repente empurrou Balança pra longe, largou‑‑a, ela caiu na concha da vereda. Trombeta estava ficando enormemente séria por não compreender. Balança e Bat‑tleship arfavam,132 imóveis, se olhando com lumes diabó‑licos do olhar. Houve um momento incompreensível pros três, até que o deslumbramento chegou.

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Foi que, quando Battleship perguntou furioso porque ela não queria se lavar também, ficar linda, Balança, vai, recomeçando o choro, disse que estava com vergonha de Trombeta. E foi o deslumbramento.

– Eu viro, sua isto! desferiu Trombeta logo, botando a língua pra legítima “senvergonha” que pusera o mal na roda.

Balança também botou logo a língua, enquanto Trom‑beta lhe dava as costas mais que depressa, pra não receber o insulto em cheio sobre o olhar. Insulto de botar a língua era dos mais fortes entre elas, mas só enquanto se enxer‑gava o gesto da outra. “Ahan” Balança fez, reforçando o insulto com som, pra Trombeta escutar. Tudo mecânico, sem nenhuma convicção. Os três estavam longe, em que mundos não sabiam, por demais deslumbrados.

Mas Battleship imaginou que tudo era por causa das meninas estarem brigando, e alvitrou133 que pois então Trombeta podia voltar pro rancho, fazer a comida da velha. Trombeta partiu num rompante, mexendo a bun‑dinha com raiva, nada curiosa, mas sofrendo a ingratidão do amigo, meio disfarçando a primeira lágrima feminina dos seus olhos. deixara uma encabulação difícil nos dois sozinhos, o que era aquilo! eles pensaram sem nenhuma resposta do ser. Mas Battleship era menos completo, era homem:

– Venha agora, Balança…murmurou com mansidão, por não suportar mais tempo o malestar, isto é, a imediatez do mal que estava ali. Então Balança veio e ficou nua.

E para os olhos dos insetos se balouçando sobre as águas, nada eles puseram de mal nessa lavação. Apenas estavam muito sérios, e a alegria grátis, que nasce de si mesma, não dá nada e nada exige, essa devia andar por

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outros seres, noutros riachos, talvez apenas nalgum mato sem ninguém. Battleship, primeiro sentado, depois de cócoras na tábua, lavava sempre com vigor. A esponja procurava o corpo imóvel de Balança e se esmigalhava em jorros de água, enquanto aos poucos a sujeira se diluía listrando o corpo da menina em fios compridos. Os olhos dela fixavam atentos a vereda, temendo que Trombeta viesse. Battleship, imerso no trabalho, falava ralhos mei‑gos, de voz grave, que Trombeta era muito boazinha, que elas não deviam brigar tanto assim. Havia uma presen‑ça vermelha de Trombeta ali, uma presença insuportável. O corpo moreno de Balança emergia da limpeza parece que mais moreno, um ocre rutilante que as sombras do matinho acentuavam num quase negro, ao mesmo tem‑po que empalideciam mais o branco violento do torso de Battleship. E tudo pronto, depois dum tempo longo que surpreendeu os dois pela curteza, quando o inglesinho quis levantar pra se rever na obra pronta, ele percebeu que, erguido, havia de mostrar pra menina a indiscrição agu‑da em que se achava e teve um imenso dó. Agarrou sem brinquedo Balança pelo corpo e pelas pernas, suspendeu ‑a no colo e assim pôde se erguer n’água. Balança principiou chorando miúdo no ombro dele, e, patinhando n’água, depois no lamedo, e afinal marchando na terra firme, Bat‑tleship carregou a menina até a vereda, onde o vestido azul a esperava para disfarçar a virgindade que eles tinham perdido n’água.

dizei, ôh periquitos do ar e piabas d’água, onde nos fica a virgindade!… nem Battleship, nem Trombeta, nem Balança tinham abandonado aquela integridade físi‑ca que deixa os seres tão sem destino e pueris. Quanto a saber, sabiam de tudo. Balança, Trombeta e Battleship já eram sabidíssimos nesses caminhos da vida, nenhuma

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hesitação teriam no cumprir o ato do amor. Se diria que a virgindade não depende nem do corpo nem das saben‑ças do espírito, mas da consciência de um erro grande da natureza, de que somos todos vítimas… Trombeta, Balan‑ça bem que já podiam ter encontrado na várzea algum rapaz destorcido que as derrubasse no chão. Sairiam do sangue zangadíssimas, chamando de “senvergonha”, disto e mais aquilo, o rapagão se rindo. Continuariam virginais. E o mesmo com o pickpocket que olhava uma mulher de alto a baixo, distinguia as boas, comentava doenças, mas jamais não deixara que uma deusa de Londres lhe guar‑dasse os dedos mais que o tempo de um chequendes.134 O beijo? porcaria.

Pois com o espaço de um banho sério, ganha desde ontem a noção agradável das companheiragens, ago‑ra aqueles três tinham como a antecipação dolorosa de que a amizade havia de ser terrível pra eles, devido a ter a diferença de homens e mulheres neste mundo. não se compreendiam ainda, nem a ternura tivera espaço e expe‑riência pra aveludar aqueles três corações fechadinhos. Elas só o que tinham por enquanto era confiança no moço e batera em Battleship o desejo de prestígio e de apadri‑nhar, isso apenas.

Mas Balança estragara tudo por causa do temperamen‑to mais inventivo. num ímpeto primaveril de curiosidade, inventou a vergonha e sexuou todos. Eles não provinham mais nem do sal das águas nem do barro de deus: provi‑nham daquela vitória dos vivos que faz prevalecer, sobre o destino perverso das diferenças, o instinto da felicidade. E eles só viram então o presente, mui dourado e irregular, por detrás de uma dedicação exclusivista, aí está. Trom‑beta lá na panela mexendo, não escutava mesmo nada os ralhos da velha, deslumbrada. Balança no riacho limpa,

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enxergara sequer no espaço alguma libélula prateando, deslumbrada. Battleship, surpreso, ignorava se a limpeza fora total na menina. Se sentiam todos três jogados num turbilhão de ansiedades, desinfelizes todos os três, com uma pressa indestinada, muito inculta, muito grosseira, agora que estavam tão delicados por dentro, delicadíssi‑mos, só capazes de acarinhar. E assim um riacho de chuva levou a virgindade dos três.

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III. O poeta por ele mesmo

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Eu sou trezentos…*

(7 de junho de 1929)

Eu sou trezentos, sou trezentos ‑e ‑cinquenta,As sensações renascem de si mesmas sem repouso,Ôh espelhos, ôh Pireneus! ôh caiçaras!Se um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as melhores palavras,E os suspiros que dou são violinos alheios;Eu piso a terra como quem descobre a furtonas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios [beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos ‑e ‑cinquenta,Mas um dia afinal me encontrarei comigo…Tenhamos paciência, andorinhas curtas,Só o esquecimento é que condensa,E então minha alma servirá de abrigo.

* Poema publicado em Remate de males, 1930 e em Poesias, 1941.

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notas/Glossário

1. “Onde até na força do verão havia tempestades de ventos e frios de crudelíssimo inverno” Fr. Luís de Sousa: fragmento destacado do capítulo V, da Vida de Arcebispo, obra de Frei Luís de Sousa, cronista português (1555 ‑1632), conside‑rado um dos maiores escritores de língua portuguesa. na carta a Fernando Sabino, em 21 de março de 1942, Mário de Andrade inclui esse título entre as leituras fundamentais para a formação do intelectual.

2. Arys: o texto, ao incorporar marca de perfume feminino do gosto da elite, atende à literatura de circunstância no projeto literário do modernista. Eis o anúncio na revista A Cigarra: “Un JOUR VIEndRA/ Perfume d’Arys o mais luxuoso/ adoptado pelas pessoas elegantes/ o mais capti‑vante e penetrante./ […] ARYS, 3, rue de la Paix, Paris – em todas as perfumarias” (a. 6, no 125. São Paulo, 1o dez. 1919, p. 4).

3. Trianon: restaurante e confeitaria frequentado pela alta burguesia e pela intelectualidade paulistana, no início do decênio de 1920; local de banquetes de homenagem e de encontros amorosos furtivos. no banquete oferecido a Menotti del Picchia, em 9 de janeiro de 1921, Oswald de

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Andrade ali discursou lançando o modernismo. Mário de Andrade focalizou o acontecimento, em março de 1921, em sua crônica “de São Paulo”, na série homônima na revista carioca Ilustração Brasileira.

4. Galicismo: francesismo.5. Pálio vesperal: céu róseo, protegendo a cidade como um

guarda ‑sol litúrgico, no fim do dia.6. Presidente: na República Velha, os governadores dos esta‑

dos eram denominados presidentes.7. Borbas ‑Gatos: referência aos bandeirantes paulistas do

século XVII; metáfora a partir do nome Manoel de Borba Gato, integrante da grande bandeira chefiada por Fernão dias Paes Leme em busca de esmeraldas.

8. Esperiamente: neologismo que alude ao Canottieri Espé‑ria, o mais antigo clube de remo da cidade de São Paulo, fundado por italianos em 1899, para ironizar a idealização dos bandeirantes.

9. Monções: bandeiras que seguiam pelos rios nas capitanias de São Paulo e Mato Grosso, nos séculos XVII e XVIII.

10. Ritmos de Brecheret: metáfora vinculada ao Monumento às bandeiras do escultor Victor Brecheret (1894 ‑1955), parti‑cipante do grupo modernista de São Paulo.

11. Turmalinas: pedra verde, metáfora de um tempo sem grandiosidade, utilizando o engano do bandeirante Fer‑não dias Paes Leme, que morre desconhecendo que as esmeraldas, por ele descobertas, eram turmalinas sem valor. O poema de Olavo Bilac “O Caçador de Esmeral‑das” cria o delírio desse bandeirante.

12. Quina Migone: anúncio de tônico capilar, refletido no rio. no último poema de Mário, em 1945, “A meditação sobre o Tietê”, em 1945, São Paulo retorna espelhada no rio.

13. Hat Stores: anúncio da chapelaria de Serafino Chiodi, à Rua direita, no centro da cidade, espelhado no Tietê.

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14. Alacridade: alegria, vivacidade.15. Burguês ‑níquel: exemplo do uso de pares de substantivos,

ao invés de adjetivos, nas injúrias endereçadas ao burguês. O poeta assimila, assim, o Manifesto técnico da literatura futurista.

16. Printemps: a Canção sem palavras em lá maior para piano, op. 62, nº 6, de Felix Mendelssohn ‑Bartholdy (1809 ‑1847), conhecida como Canção da primavera ou Chanson de Printemps. Peça do repertório dos estudos de piano das moças da burguesia paulistana.

17. Tílburi: carro de duas rodas e dois assentos (condutor e passageiro), sem boleia, com capota, puxado por um só cavalo.

18. Padaria Suíça: naquela época, estabelecimento bastante conceituado, à rua Formosa.

19. Central: delegacia da Polícia, no Pátio do Colégio.20. Giolhos: joelhos, no português antigo.21. Confiteor: parte da missa destinada à confissão.22. Paulistano: time de futebol do Clube Atlético Paulistano,

fundado em 1900.23. Friedenreich: Arthur Friedenreich (1892 ‑1969), conside‑

rado pela crítica esportiva um dos maiores centroavantes do Brasil, pertenceu a vários times de futebol; entre eles o Paulistano.

24. Gostar de Bianco? Adoro. Qual Bartô…/ E o meu xará maravilhoso!…: na década de 1920, além de Friedenreich, Bianco, Bartô e Mário Andrada eram os craques do fute‑bol paulista.

25. Corso: programa da burguesia paulistana que se exibia desfilando em seus automóveis; propiciava namoros.

26. Bertini: Francesca Bertini (1892‑1985), grande atriz do cinema mudo italiano.

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27. Tom Mix: (1880 ‑1940) o mais famoso caubói do cinema norte ‑americano.

28. As romas de Petrônio: referência ao filme italiano Quo vadis, sucesso mundial do cinema mudo que, em 1913, recria o romance homônimo do escritor polonês H. Sien‑kiewicz (1846 ‑1916). dirigido por Enrico Guazzoni é tal‑vez o primeiro longa ‑metragem conhecido. na ação que se passa em Roma, no século I d.C., durante a resistência dos cristãos à perseguição movida por nero, destaca ‑se o personagem Petrônio, patrício romano e conselheiro do imperador, vivido pelo ator Gustavo Serena.

29. Bicho de mármore parido no Salon…: referência a escultura exibida no Salon d’Autonne, em Paris.

30. “– Meu pai foi rei!/ – Foi. – Não foi. – Foi. – Não foi.”: apro‑priação dos versos 30 ‑31 do poema de Manuel Bandeira “Os sapos”, lido na Semana de Arte Moderna, em feve‑reiro de 1922.

31. Encanecido: embranquecido.32. Palimpsesto: papiro ou pergaminho cujo texto primitivo

foi raspado, para dar lugar a outro.33. Écloga: referência aos poemas pastorais escritos pelo

romano Virgílio (70 ‑19 a.C.).34. Luzes do Cambuci pelas noites de crime…: no bairro do

Cambuci, localizava ‑se o presídio, inaugurado em 1922; demolido na Revolução de 1930.

35. Heliotrópios: flores da baunilha ‑de ‑jardins.36. – Batat’assat’ô furnn!…: pregão do vendedor de batata‑

‑doce assada, nas ruas paulistanas.37. Lassitudes: moleza, languidez.38. Balcões na cautela latejante, onde florem Iracemas/ para

os encontros dos guerreiros brancos…: alusão a persona‑gens do romance Iracema, de José de Alencar (1829 ‑1877).

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39. Girândolas: fogos de artifício queimados em roda de madeira.

40. Esgalga: longa e esbelta.41. Chávena: xícara.42. Lady Macbeth: personagem da peça Macbeth de William

Shakespeare (1564 ‑1616).43. Poe: Edgar Allan Poe (1809 ‑1849), poeta norte ‑americano,

ficcionista e teórico da literatura.44. Never more!: “nunca mais!”, no refrão do poema de Edgar

Allan Poe “The Raven” (“O corvo”).45. Emílio de Menezes insultou a memória do meu Poe…: crí‑

tica à paráfrase do poema de Edgar Allan Poe, “O corvo”, feita, em 1917, pelo poeta parnasiano brasileiro Emílio de Menezes (1866 ‑1918), em Últimas rimas.

46. Barregã: prostituta.47. Mirra: essência vegetal usada para embalsamar mortos.48. São Paulo Railway: “The São Paulo’s Railway Company

Ltd”: empreendimento ferroviário formado em 1848 pelo Visconde de Mauá e seus sócios ingleses. Inaugurado em 1867, representou progresso para São Paulo.

49. Cincinato Braga: (1864 ‑1953), político e economista; destacou ‑se no Partido Republicano Paulista – PRP.

50. Peã: canto de celebração pública entre os gregos da Antiguidade.

51. Estátua de Verdi: escultura de Amadeo Zani (1869 ‑1944), no vale do Anhangabaú; presente da colônia italiana à cidade, em 1921.

52. Ramos de Azevedo: Francisco de Paula Ramos de Azevedo (1851 ‑1928) arquiteto e engenheiro; responsabilizou ‑se por diversas obras na cidade de São Paulo.

53. Assunção de Murilo: quadro do pintor espanhol Bartolomé Estebán Murillo (1617 ‑1682).

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54. Roupa ‑branca é de morim.: roupa de baixo de algodão barato.

55. Taperá: andorinha.56. Caçaremas: formigas dos cacaueiros.57. Se boia: come ‑se.58. Esplanada: hotel requintado, muito concorrido, sito atrás

do Teatro Municipal.59. Quem tem certeza do amanhã!/ Lourenço de Medicis?…: o

poeta se apropria do verso famoso “Di doman non c’è cer‑tezza” de Lorenzo de Medicis (1449 ‑1492), poeta e estadista do Renascimento.

60. Maniva: mandioca brava.61. Acerba: áspera.62. Martinelli: o segundo arranha ‑céu em São Paulo, cons‑

truído em 1928; o primeiro, o Sampaio Moreira, é de 1924.63. Madame la Françoise: possível referência à leitura das

memórias de Françoise Athenaïs, Marquesa de Montes‑pan (1641 ‑1707).

64. Ega: João da Ega, personagem de Os Maias, do romancista português Eça de Queirós (1845 ‑1900).

65. Aquiles: herói da mitologia grega, participante da guerra de Troia.

66. Cibo: sustento.67. Avena: flauta.68. Dolo: trapaça.69. Gasogênio: aparelho usado nos automóveis durante a

Segunda Guerra Mundial; produzia um substituto da gasolina, um gás resultante da combustão incompleta do carvão vegetal.

70. Eixo: aliança da Alemanha nazista com a Itália fascista e o Império do Japão na Segunda Guerra Mundial.

71. Lights, Tramas, Corporation: trocadilho visando a São Paulo Tramway Light and Power Company, companhia

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canadense responsável pelos bondes e pelos serviços de geração e distribuição de energia elétrica no município de São Paulo.

72. Relambória: sem graça, inexpressiva.73. Ôh espelhos, Pireneus, caiçaras insistentes,: retomada do

verso 3 do poema “Eu sou trezentos…” de Remate de males.74. Lopes Chaves: político paulista, Joaquim Lopes Chaves

(1833 ‑1909), destacou ‑se no Império e na República.75. Caxingam: coxeiam, mancam.76. Abjetas: desprezíveis, ignóbeis.77. Antíteses: figura de linguagem que demarca junção de

oposições.78. Inerme: indefeso.79. Línguas: intérpretes, tradutores.80. Chantre: diretor eclesiástico dos coros em igrejas e capelas.81. Celso nihil estate varíolas gide memoriam,/ Calípedes flo‑

gísticos: latim inventado, estapafúrdio, satírico.82. Confraria Brasiliense: por Livraria Brasiliense, ponto de

encontro de intelectuais em São Paulo; trocadilho.83. Clima: revista cultural paulistana (1941 ‑1944).84. Anticéptico: que nega a dúvida.85. Malvasia: tipo de uva e de vinho de sabor doce.86. Jocoso: engraçado, divertido.87. Nem Alberto, nem Adalberto nem Dagoberto/ Esperto Ciu‑

mento Peripatético e Ceci/ E Tancredo e Afrodísio e também Armida/ E o próprio Pedro e também Alcibíades: enumera‑ção tomando personagens da história e da literatura.

88. Perrepismo: posição política reacionária ligada ao Partido Republicano Paulista (PRP).

89. Pundhonor: ponto de honra.90. Augúrios: presságios.91. Estulta: estúpida.92. Plutocratas: os ricos.

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93. O amor do amor, Maria!: o poeta alude ao próprio lirismo amoroso, em “Tempo da Maria”, parte de seu livro Remate de males (1930).

94. Contigo, Irmão Pequeno, no exílio da preguiça elevada, escolhido/ Pelas águas do túrbido rio do Amazonas, meu outro sinal.: referido, pelo poeta, o seu “Rito do irmão pequeno” (1931).

95. Desque me fiz poeta e fui trezentos: o poeta refere ‑se ao seu poema “Eu sou trezentos…”.

96. Rilke: Rainer Maria Rilke (1875 ‑1926), poeta da língua alemã.

97. Nhato: pessoa com o maxilar inferior proeminente, queixudo.

98. Piri de beira ‑rio: matinho em terreno pantanoso.99. Sorumbático: triste.100. Dias depois do meu aniversário: Mário de Andrade nascera

em 9 de outubro, 1893.101. Nem bem dona República fez anos: alusão a 15 de novem‑

bro, Proclamação da República.102. Mapinguim: fumo muito apreciado, produzido no Sul e no

Sudeste; em Minas Gerais, principalmente.103. Dona Mariquinha: apelido da mãe de Mário de Andrade,

Maria Luísa de Moraes Andrade.104. Tutti quanti: expressão do idioma italiano, adotada em São

Paulo: todos, várias pessoas.105. Turumbamba macota: grande tumulto, confusão.106. Se comoveu num hausto forte: encheu o peito, tomou

fôlego.107. Envilecido: humilhado.108. Fremente: vibrante, entusiasmado.109. Modorrento: sonolento, amolecido.110. Semostradeiro: exibido.111. Opresso: oprimido.

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112. Cabeças ‑chatas: apelido pejorativo dado aos nordestinos.113. Farrancho: grupo que se dirige a uma festa.114. Pickpocket: no inglês, batedor de carteiras, ladrão.115. Steward: mordomo.116. Speackenglish: pessoa que fala a língua inglesa.117. Mucudos: que têm muque, musculosos.118. Camarões: bondes fechados, gíria.119. Efebo: jovem.120. Álgido: gélido.121. Aquó: sem ação.122. Jungla: selva, de jungle, no inglês.123. Encarangada: com dificuldade de andar.124. Mosqueiros: moradias pobres.125. Cottage: casa de campo inglesa.126. Insofismável: indiscutível.127. Ilações: relações.128. De soslaio: de esguelha, obliquamente.129. Eufônica: harmoniosa.130. Hirsuta: áspera.131. Lassidão: tédio, esgotamento.132. Arfavam: ofegavam.133. Alvitrou: julgou.134. Chequendes: aperto de mão; shakehands, no inglês.

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Bibliografia

AndRAdE, Mário de. Balança, Trombeta e Battleship ou o descobrimento da alma. Edição genética e crítica de Telê Ancona Lopez. São Paulo: Instituto Moreira Salles/ Insti‑tuto de Estudos Brasileiros, 1994.

. Clã do jabuti. São Paulo: Ed. do autor no Estabeleci‑mento Gráfico de Eugenio Cupolo, 1927.

. Os contos de Belazarte. 1ª ed., São Paulo: Editora Pira‑tininga, 1934; 2ª ed., Rio de Janeiro: Americ ‑Edit, 1944; nova ed.: estabelecimento do texto: Aline nogueira Mar‑ques. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

. Contos novos. Estabelecimento do texto: Hugo Camargo Rocha e Aline nogueira Marques. Rio de Janeiro: nova Fronteira, 2011.

. Lira paulistana seguida de O carro da Miséria. São Paulo: Livraria Martins Editora, [1946].

. Losango cáqui ou afetos militares de mistura com os porquês de eu saber alemão. São Paulo: Ed. do autor na Casa Editora A. Tisi, 1926.

. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. 1ª ed., São Paulo: Ed. do autor no Estabelecimento Gráfico de Euge‑nio Cupolo, 1928; 2ª ed., Rio de Janeiro: Livraria José

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Olympio Editora, 1937; nova ed.: estabelecimento de texto: Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancona Lopez. Rio de Janeiro: Agir, 2008.

. Pauliceia desvairada. São Paulo: Ed. do autor na grá‑fica da Casa Mayença, 1922.

. Poesias. São Paulo: Ed. do autor na Livraria Martins Editora, 1941.

. Poesias completas. Edição crítica de diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1987.

. Poesias completas. Estabelecimento de texto, intro‑dução e notas: Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancona Lopez. Rio de Janeiro: nova Fronteira, 2012 (no prelo).

. Remate de males. São Paulo: Ed. do autor no Estabe‑lecimento Gráfico de Eugenio Cupolo, 1930.

BOAVEnTURA, Maria Eugenia (Org.). 22 x 22: a Semana de Arte Moderna vista pelos seus contemporâneos. São Paulo: Edusp, 2001.

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Endereços úteis

Além dos pontos de distribuição da Coleção de Mão Em Mão, conheça também as unidades do Sistema Muni‑cipal de Bibliotecas, onde é possível consultar e emprestar livros e outros materiais, bem como usufruir de ampla programação cultural.

Para efetuar empréstimo em uma das unidades, basta se inscrever e obter seu cartão de leitor, levando documen‑to de identidade e comprovante de residência. Seu cartão do leitor valerá para todas as bibliotecas do Sistema. Con‑fira o regulamento de empréstimo no site ou em uma das unidades.

Para consultar o acervo disponível em cada biblioteca, a programação cultural e outras informações, acesse o site www.bibliotecas.sp.gov.br.

Toda a programação do Sistema Municipal de Biblio‑tecas é gratuita.

A seguir estão listados endereços de unidades vincula‑das à Secretaria Municipal de Cultura.

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Bibliotecas públicas descentralizadas

Ao todo, são 52 bibliotecas espalhadas pelos bairros da cidade. Oito delas fazem parte do projeto Bibliotecas Temáticas, que oferece acervo e atividades específicas nas suas áreas de atuação.

Adelpha FigueiredoPça. Ilo Ottani, 146, Canindé, tel.: 2292 ‑3439Afonso TaunayR. Taquari, 549, Mooca, tel.: 2292 ‑5126Afonso SchmidtAv. Elisio Teixeira Leite, 1470, Cruz das Almas, tel.: 3975 ‑2305Alceu Amoroso Lima – Temática em poesiaAv. Henrique Schaumann, 777, Pinheiros, tels.: 3082 ‑5023 / 3081 ‑6092Álvares de AzevedoPça. Joaquim José da nova, s/n, V. Maria, tel.: 2954 ‑2813Álvaro GuerraAv. Pedroso de Moraes, 1919, Pinheiros, tel.: 3031 ‑7784Amadeu AmaralR. José C. Castro, s/n, Jd. da Saúde, tel.: 5061 ‑3320Anne FrankR. Cojuba, 45, Itaim Bibi, tel.: 3078 ‑6352Arnaldo Magalhães Giácomo, Prof.R. Restinga, 136, Tatuapé, tel.: 2295 ‑0785Aureliano LeiteR. Otto Schubart, 196, Pq. São Lucas, tel.: 2211 ‑7716Belmonte – Temática em cultura popularR. Paulo Eiró, 525, Santo Amaro, tels.: 5687 ‑0408 / 5691 ‑0433Brito BrocaAv. Mutinga, 1425, Pirituba, tels.: 3904 ‑1444 / 3904 ‑2476

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endereços úteis

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Camila Cerqueira CésarR. Waldemar Sanches, 41, Butantã, tel.: 3731 ‑5210Cassiano Ricardo – Temática em músicaAv. Celso Garcia, 4200, Tatuapé, tel.: 2092 ‑4570Castro AlvesR. Abrahão Mussa, s/n, Jd. Patente, tel.: 2946 ‑4562Clarice LispectorR. Jaricunas, 458, Siciliano, tel.: 3672 ‑1423Cora CoralinaR. Otelo Augusto Ribeiro, 113, Guaianases, tel.: 2557 ‑8004Érico VeríssimoR. diógenes dourado, 101, Parada de Taipas, tel.: 3972 ‑0450Gilberto FreyreR. José Joaquim, 290, Sapopemba, tel.: 2143 ‑1811Hans Christian Andersen – Temática em contos de fadasAv. Celso Garcia, 4142, Tatuapé, tel.: 2295 ‑3447Helena SilveiraR. João Batista Reimão, 146, Campo Limpo, tel.: 5841 ‑1259Jamil Almansur HaddadR. Andes, 491 ‑A, Guaianases, tel.: 2557 ‑0067José de Anchieta, Pe.R. Antonio Maia, 651, Perus, tel.: 3917 ‑0751José Mauro de VasconcelosPça. Com. Eduardo Oliveira, 100, Pq. Edu Chaves, tels.: 2242 ‑8196 / 2242 ‑1072José Paulo PaesLgo. do Rosário, 20, Penha, tels.: 2295 ‑9624 / 2295 ‑0401Jovina Rocha Álvares PessoaAv. Pe. Francisco de Toledo, 331, Itaquera, tels.: 2741 ‑7371 / 2741 ‑0371Lenira FraccaroliPça. Haroldo daltro, 451, Vila Manchester, tel.: 2295 ‑2295

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mário de andrade

Malba TahanR. Brás Pires Meira, 100, Veleiros, tel.: 5523 ‑4556Marcos ReyAv. Anacê, 92, Jardim Umarizal, tel.: 5845 ‑2572Mário Schenberg – Temática em ciênciasR. Catão, 611, Lapa, tel.: 3672 ‑0456Menotti Del PicchiaR. São Romualdo, 382, Limão, tels.: 3966 ‑4814 / 3956 ‑5070Milton SantosAv. Aricanduva, 5777, Jardim Aricanduva, tel.: 2726 ‑4882Narbal FontesR. Cons. Moreira de Barros, 170, Santana, tel.: 2973 ‑4461Nuto Sant’AnnaPça. Tenório Aguiar, 32, Santana, tel.: 2973 ‑0072Paulo DuarteR. Arsênio Tavollieri, 45, Jabaquara, tels.: 5011 ‑8819 / 5011 ‑7445Paulo Sérgio MillietPça. Ituzaingó, s/n, Tatuapé, tel.: 2671 ‑4974Paulo SetúbalAv. Renata, 163, Vila Formosa, tels.: 2211 ‑1508 / 2211 ‑1507Pedro NavaAv. Eng. Caetano álvares, 5903, Mandaqui, tels.: 2973 ‑7293 / 2950 ‑3598Prestes Maia, Pref. (fechada para reforma, retomará as ativida‑des no 2º semestre de 2012)Av. João dias, 822, Santo Amaro, tel.: 5687 ‑0513Raimundo de MenezesAv. nordestina, 780, São Miguel Paulista, tel.: 2297 ‑4053Raul Bopp – Temática em meio ambienteR. Muniz de Sousa, 1155, Aclimação, tel.: 3208 ‑1895Ricardo RamosPça. Centenário de Vila Prudente, 25, Vila Prudente, tel.: 2273 ‑4860

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endereços úteis

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Roberto Santos – Temática em cinemaR. Cisplatina, 505, Ipiranga, tels.: 2273 ‑2390 / 2063 ‑0901Rubens Borba de MoraesR. Sampei Sato, 440, Ermelino Matarazzo, tel.: 2943 ‑5255Sérgio Buarque de HolandaR. Augusto C. Baumman, 564, Itaquera, tel.: 2205 ‑7406Sylvia OrthofAv. Tucuruvi, 808, Tucuruvi, tels.: 2981 ‑6264 / 2981 ‑6263Thales Castanho de AndradeR. dr. Artur Fajardo, 447, Freguesia do Ó, tel.: 3975 ‑7439Vicente de CarvalhoR. Guilherme Valência, 210, Itaquera, tel.: 2521 ‑0553Vicente Paulo GuimarãesR. Jaguar, 225, V. Curuçá, tels.: 2035 ‑5322 / 2034 ‑0646Vinicius de MoraesAv. Jardim Tamoio, 1119, Itaquera, tel.: 2521 ‑6914Viriato Corrêa – Temática em literatura fantásticaR. Sena Madureira, 298, V. Mariana, tels.: 5573 ‑4017 / 5574 ‑0389

Bibliotecas centrais

Tradicional instituição do país, a Biblioteca Mário de Andrade possui acervo expressivo com destaque para as coleções de artes, mapas, periódicos, obras raras e acervo da OnU.

Já a Biblioteca Infanto ‑Juvenil Monteiro Lobato reú‑ne significativo acervo de literatura brasileira, infantil e juvenil, acervo bibliográfico e museológico sobre Montei‑ro Lobato de textos teatrais.

Mário de AndradeAv. São Luis, 235, República, tel. 3256 ‑5270

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Monteiro LobatoR. Gal. Jardim, 485, V. Buarque, tel.: 3256 ‑4038

Bibliotecas do Centro Cultural São Paulo

Abrigam um dos mais significativos patrimônios bibliográficos do país.

na Biblioteca Sérgio Milliet destacam‑se obras nas áreas de literatura latino‑americana, filosofia, religião, ciências sociais e história. Possui seções especializadas em artes, hemeroteca, recursos audiovisuais e banco de peças teatrais.

A Biblioteca Louis Braille, planejada e equipada para atender a pessoas com deficiência visual, possui acervo em braile e áudio.

A Gibiteca Henfil tem mais de 8 mil títulos entre qua‑drinhos, fanzines, periódicos e livros sobre histórias em quadrinhos.

A discoteca Oneyda Alvarenga possui acervo especia‑lizado em música erudita e popular, nacional e estrangei‑ra, constituído por livros, partituras, discos de 33 e 78 rpm e Cds.

Centro Cultural São PauloR. Vergueiro, 1000, ParaísoBiblioteca Sérgio Milliet – tels.: 3397 ‑4003 / 3397 ‑4074 / 3397 ‑4075Biblioteca Louis Braille – tel.: 3397 ‑4088Gibiteca Henfil – tel.: 3397 ‑4090Discoteca Oneyda Alvarenga – tels.: 3397 ‑4071 / 3397 ‑4072

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Biblioteca do Centro Cultural da Juventude

A Biblioteca Jayme Cortez possui um acervo com mais de 10 mil exemplares entre livros, álbuns de HQ, mangás, periódicos e material audiovisual. Conta também com um Laboratório de Idiomas.

Biblioteca Jayme CortezAv. deputado Emílio Carlos, 3641, Cachoeirinha, tel.: 3984‑‑2466, ramal 24

Pontos de leitura

Espaços criados em bairros desprovidos de equipamen‑tos culturais ou de difícil acesso a Bibliotecas Públicas.

André VitalAv. dos Metalúrgicos, 2255, Cidade Tiradentes, tel.: 2282 ‑2562Carolina Maria de JesusR. Teresinha do Prado Oliveira, 119, Parelheiros, tel.: 5921 ‑3665Graciliano RamosR. Prof. Oscar Barreto Filho, 252 (Calçadão Cultural do Grajaú), Parque América – Grajaú, tel.: 5924 ‑9135Jardim LapennaR. Serra da Juruoca, s/n (Galpão da Cultura e Cidadania), Jar‑dim Lapenna, tel.: 2297 ‑3532Juscelino KubitschekAv. Inácio Monteiro, 55, Cidade Tiradentes, tel.: 2556 ‑3036OlidoAv. São João, 473, Centro, tel.: 3397 ‑0176Parque do PiqueriR. Tuiuti, 515, Tatuapé, tel.: 2092 ‑6524

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Parque do RodeioR. Igarapé da Bela Aurora, s/n, Cidade Tiradentes, tel.: 2555 ‑4276Praça do BambuzalR. da Colônia nova, s/n (Praça nativo Rosa de Oliveira – Praça do Bambuzal), Jardim Ângela, tel.: 5833 ‑3567São MateusR. Fortaleza de Itapema, 268, Jardim Vera Cruz – São Mateus, tel.: 2019 ‑1718Severino do RamoR. Barão de Alagoas, 340, Itaim Paulista, tels.: 2963 ‑2742 / 2568 ‑3329União dos moradores do Parque AnhangueraR. Amadeu Caego Monteiro, 209, Parque Anhanguera, tel.: 3911 ‑3394Vila MaraR. Conceição de Almeida, 170, São Miguel Paulista, tel.: 2586 ‑2526

Bosques de leitura

Ambientes culturais alternativos em parques da cidade. Abrem aos domingos e, em alguns endereços, também aos sábados. Confira os dias e horários de funcionamento no site www.bibliotecas.sp.gov.br ou pelo telefone 3675 ‑8096.

AnhangueraAv. Fortunata Tadiello natucci, 1000, PerusCarmoAv. Afonso de Sampaio Souza, 951, ItaqueraCidade de TorontoAv. Cardeal Motta, 84, Pirituba

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Esportivo dos TrabalhadoresR. Canuto Abreu, s/n, TatuapéIbirapueraAv. República do Líbano, 1151 – Portão 7A, MoemaJardim da LuzR. Ribeiro de Lima, 99, LuzLajeadoR. Antonio Thadeo, 74, LajeadoLions Clube TucuruviR. Alcindo Bueno de Assis, 500, TucuruviRaposo TavaresR. Telmo Coelho Filho, 200, Vila Albano – ButantãSanto DiasR. Jasmim da Beirada, 71, Capão Redondo

Ônibus‑biblioteca

Os ônibus ‑biblioteca levam livros, jornais, revistas, gibis e programação cultural às comunidades de bairros periféricos da cidade. Conta com paradas predetermina‑das para cada dia da semana. Confira os roteiros da sua região no site www.bibliotecas.sp.gov.br ou pelo telefone 2291 ‑5763.

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Títulos da coleção

1 ‑ Missa do galo e outros contosMachado de Assis

2 ‑ Contos PaulistanosAntônio de Alcântara Machado

3 ‑ A nova Califórnia e outros contosLima Barreto

4 ‑ São Paulo! comoção de minha vida…Mário de Andrade

5 ‑ Histórias de horrorVários autores

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EQUIPE dE REALIZAÇÃO

Estabelecimento dos textos Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo (Poesia)

Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo (Ficção: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter)

Aline nogueira Marques (Ficção: “Túmulo, túmulo, túmulo”) Hugo Camargo Rocha e Aline nogueira Marques

(Ficção: “Primeiro de Maio”) Telê Ancona Lopez (Ficção: Balança, Trombeta e Battleship)

Notas diléa Zanotto Manfio, Telê Ancona Lopez e

Tatiana Longo Figueiredo (Poesia) Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo (Ficção)

Edição de texto Fabiana Mioto (Preparação de original) Leandro Raniero Fernandes (Revisão)

Assistência Editorial Olivia Frade Zambone

Editoração Eletrônica Estúdio Bogari

Capa Estúdio Bogari

Imagem de capa “Painel de azulejos”, de Paulo von Poser.

Fotografia de Victor Tronconi.

Coordenação De Mão em Mão Ananda Stücker (Secretaria Municipal de Cultura)

Oscar d’Ambrosio (Editora Unesp)

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SOBRE O LIVRO

Formato: 12 x 21 cm Mancha: 18 x 37 paicas

Tipologia: Minion Pro 10/13,5 Papel: Lagenda 80 g/m² (miolo) Cartão triplex 250 g/m² (capa)

1ª edição: 2012

Impressão e acabamento CTP, Impressão e Acabamento

Imprensa Oficial do Estado de São Paulo