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 125 Revista PRAIA VERMELHA  / Rio de Janeiro / v . 19 nº 1 / p. 125-128 / Jan-Jun 2010 RESENHA Recebido em 20.10.2008. Aprovado em 17.03.2009. O escritor francês Gustave Flaubert (1995: 94), no seu mordaz  Dicionário das Idéias Fei tas, sen- tenciou: “há romances escritos com a ponta de um  bisturi”. O livro de Marildo Menegat, professor e  pesquisador vinculado à Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, assíduo colaborador dos movimentos sociais organizados, não é propriamente um romance, não obstante tra- tar um bom romance como um acontecimento para a teoria, nos moldes do crítico literário marxista Roberto Schwarz (1987), conforme comprovam seus momentos de crítica da ideologia e da cultu- ra. Composto de nove artigos, distribuídos em três  partes distintas (porém comunicantes), encaixa-se uentemente na sentença de Flaubert: parece, sim, ter sido escrito com a ponta de um bisturi, dada toda a sua radicalidade constitutiva, responsável  pela recusa em transigir com o “triunfo” da socia- lização pela mercadoria. Com a derrocada do “socialismo” (realmen- te existente), o mundo imantou-se pela lógica do capital, reduzindo-se a um espaço sistêmico, ime- diatamente funcional aos seus imperativos de mul- tiplicação desvairada. No lugar de prosperidade e harmonia, propaladas pelos arautos da democracia de mercado, uma espiral de precarização e belico- O olho da barbárie Felipe Brito* ESS/UF RJ sidade. Contudo, desmoronando- se o “socialismo” (realmente existente), desmoronou-se também a verve crítica de grande número de indivíduos, en- gajados, outrora, em diferentes níveis e plataformas sublevatórias. Como desdobramento veio a (re)con- ciliação com a ordem, através de três perspectivas  básicas: envolvendo- se em algum tipo de tentativa de “humanizar” o horror, segundo os parâmetros da democracia de mercado; descambando para um niilismo, contíguo à misantropia; ou, até mesmo, através da conversão em operadores mais ou me- nos diligentes do capital. Lastreando tal concilia- ção, encontram-se os impulsos ontologiza dores do Iluminismo burguês, sustentáculos da ideologia do  progresso, cujo ressurgimento implacável (em no- vas roupagens, geralmente) feriu a capacidade for- mulativa dos antigos adversários da ordem, sorven- do o reservatório de negatividade. Nesses termos, esvaiu-se a crença na possibilidade de transcender o  presente; a “p oesia” do futu ro passou a co nsistir na assimilação categorial do presente, com possíveis “ajustes” (não categoriais), no máximo. Mercado, Estado e trabalho reproduzem-se, assim, como fun- damentos sociais inatacáveis, mesmo revelando de- crepitude objetiva, em meio ao contexto geral de crise da forma capitalista de socialização. RESENHA: O olho da barbárie MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006. BOOK REVIEW: The barbarism eye MENEGAT, Marildo. The barbarism eye. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

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7/18/2019 Maril Do

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Revista PRAIAVERMELHA / Rio de Janeiro / v. 19 nº 1 / p. 125-128 / Jan-Jun 2010

RESENHA

Recebido em 20.10.2008. Aprovado em 17.03.2009.

O escritor francês Gustave Flaubert (1995: 94),

no seu mordaz Dicionário das Idéias Feitas, sen-

tenciou: “há romances escritos com a ponta de um

 bisturi”. O livro de Marildo Menegat, professor e

 pesquisador vinculado à Escola de Serviço Social

da Universidade Federal do Rio de Janeiro, assíduo

colaborador dos movimentos sociais organizados,não é propriamente um romance, não obstante tra-

tar um bom romance como um acontecimento para

a teoria, nos moldes do crítico literário marxista

Roberto Schwarz (1987), conforme comprovam

seus momentos de crítica da ideologia e da cultu-

ra. Composto de nove artigos, distribuídos em três

 partes distintas (porém comunicantes), encaixa-se

uentemente na sentença de Flaubert: parece, sim,

ter sido escrito com a ponta de um bisturi, dada

toda a sua radicalidade constitutiva, responsável

 pela recusa em transigir com o “triunfo” da socia-lização pela mercadoria.

Com a derrocada do “socialismo” (realmen-

te existente), o mundo imantou-se pela lógica do

capital, reduzindo-se a um espaço sistêmico, ime-

diatamente funcional aos seus imperativos de mul-

tiplicação desvairada. No lugar de prosperidade e

harmonia, propaladas pelos arautos da democracia

de mercado, uma espiral de precarização e belico-

O olho da barbárie

Felipe Brito*

ESS/UF RJ

sidade. Contudo, desmoronando-se o “socialismo”

(realmente existente), desmoronou-se também a

verve crítica de grande número de indivíduos, en-

gajados, outrora, em diferentes níveis e plataformas

sublevatórias. Como desdobramento veio a (re)con-

ciliação com a ordem, através de três perspectivas

 básicas: envolvendo-se em algum tipo de tentativade “humanizar” o horror, segundo os parâmetros

da democracia de mercado; descambando para um

niilismo, contíguo à misantropia; ou, até mesmo,

através da conversão em operadores mais ou me-

nos diligentes do capital. Lastreando tal concilia-

ção, encontram-se os impulsos ontologizadores do

Iluminismo burguês, sustentáculos da ideologia do

 progresso, cujo ressurgimento implacável (em no-

vas roupagens, geralmente) feriu a capacidade for-

mulativa dos antigos adversários da ordem, sorven-

do o reservatório de negatividade. Nesses termos,esvaiu-se a crença na possibilidade de transcender o

 presente; a “poesia” do futuro passou a consistir na

assimilação categorial do presente, com possíveis

“ajustes” (não categoriais), no máximo. Mercado,

Estado e trabalho reproduzem-se, assim, como fun-

damentos sociais inatacáveis, mesmo revelando de-

crepitude objetiva, em meio ao contexto geral de

crise da forma capitalista de socialização.

RESENHA: O olho da barbárie

MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

BOOK REVIEW: The barbarism eye

MENEGAT, Marildo. The barbarism eye. São Paulo: Expressão Popular, 2006.

7/18/2019 Maril Do

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126   Felipe Brito

Revista PRAIAVERMELHA / Rio de Janeiro / v. 19 nº 1 / p. 125-128 / Jan-Jun 2010

O livro O olho da barbárie, ao contrário, de-

monstra que existe vida para além da conciliação.

Mais: de que ainda existem aqueles que se negam

a calar sobre aquilo de que é difícil falar . Merca-

do, Estado e trabalho não saem incólumes. Mene-

gat propõe a avaliação segundo o qual o colapso

da experiência “socialista” (realmente existente)representa, na verdade, um indelével episódio do

 processo de crise global da sociedade burguesa,

 por não ter suplantado, a rigor, os horizontes ca-

tegoriais do capital. A propalada vitória do capital,

nesse registro, é tratada como um traço da sua pró-

 pria decadência, e o resultado disso é um mundo

unicado pela catástrofe. Diante desse cenário de

horror, Menegat desencadeia uma profunda rede

de problematizações direcionada aos cânones do

“marxismo tradicional”, do “marxismo realmente

existente”, empenhando-se em sustentar uma re-serva de negatividade, para fornecer contribuições

 possíveis à construção de uma práxis anti-sistêmi-

ca. Ainda em nome de tais contribuições, também

 problematiza a capacidade das leituras pós-mo-

dernas, a despeito de suas pretensões constituírem

uma crítica radical do projeto da modernidade.

Ao longo dos artigos que compõem o livro, a

barbárie consiste em um o condutor conceitu-

al para analisar e expor a armação histórica da

modernidade capitalista, de modo a problematizar

as expectativas otimistas que correlacionam ime-

diatamente progresso social e desenvolvimento

das forças produtivas.  O autor não se restringe,

 portanto, a um ímpeto adjetivador lançado aos

horrores da socialização burguesa: empenha-se

em fornecer um estatuto conceitual à barbárie.

Diante de todas as catástrofes técnico-cientícas

do século XX (corporicadas, no seu paroxismo,

em Auschwitz e nas bombas atômicas jogadas em

Hiroshima e Nagasaki), tornou-se insustentável

tematizá-la como um resquício pré-moderno ouuma interrupção abrupta da “normatividade civi-

lizatória” do capital. Nesse registro, o fenômeno

da barbárie não é tomado como um conjunto de

ações e idéias patológicas que invadem e corroem

as bases da “dinâmica civilizatória ordinária”, tal

qual os cupins o fazem com as mobílias de madei-

ra. A barbárie emerge do seio da própria raciona-

lidade vigente que, plasmada no interior de uma

forma-social fetichizada – inconsciente, portanto,

 perante si mesma – objetiva-se como expediente

de dominação das naturezas “externa” e “interna”

(reduzidas a objetos de domínio), incapacitando-

se para desenvolver uma auto-reexão, um auto-

esclarecimento. Perante a metafísica secularizada

do capital, a razão que se fez mundo perpetua-se

vocacionada a “produzir monstros”. Daí, o trata-

mento da barbárie como a teleologia da históriaem curso. Mais especicamente, assinalou o ex-

cesso civilizatório como o propulsor da barbárie,

num hediondo processo no qual o “arcaico” não

representa um freio ao “moderno”, mas é engen-

drado pelo “moderno” na sua forma social “mais

 pura” – a violência.

A problemática da crise sistêmica da forma-

mercadoria de reprodução social, representada

no predomínio gigantesco do trabalho morto 

(MARX, 1988) sobre o trabalho vivo (Marx,

1988), é objeto privilegiado de atenção de Mene-gat, por alicerçar o conjunto de questões enfrenta-

das na coletânea de artigos. Compondo esse cená-

rio, encontra-se a crise de legitimação do Estado,

ao mesmo tempo base e efeito da disseminação

do neoliberalismo ao redor do mundo. A massa

de seres humanos descartáveis em meio ao esva-

ziamento da regulação social por via da política

 provoca uma explosiva combinação, controlada

 por um verdadeiro terrorismo de Estado, baseado

na articulação entre extermínio (em nome da lei)

e encarceramento galopantes. Para o autor, essa

conguração do Estado é considerada expediente

necessário para a sobre-vida das relações sociais

capitalistas, nessa cada vez mais rarefeita atmos-

fera de valorização do valor  (Marx, 1988). Daí,

falar em guerra civil , referindo-se tanto ao expe-

diente quanto aos catastrócos efeitos.

A articulação entre extermínio e encarceramen-

to, pautada na “racionalização-irracional” moderna

e capitalista, é capaz de conjugar o arcaico cassetete

e a sosticada metralhadora belga FN Herstal (queexecuta 200 disparos em cerca de 15 segundos), o

“pau-de-arara” com minuciosos métodos de deco-

dicação digital, revelando todo potencial de bar -

 bárie do “projeto civilizatório”. Enquanto prática

institucional cada vez mais assimilada, sustenta-se

numa implacável criminalização da pobreza, bem

examinada pelo autor, valendo-se, inclusive, dos

lemas e “gritos de guerra” das forças de repressão

 brasileiras, onde a identicação entre “bandido” e

“favelado” é automática1.

7/18/2019 Maril Do

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127O olho da barbárie

Revista PRAIAVERMELHA / Rio de Janeiro / v. 19 nº 1 / p. 125-128 / Jan-Jun 2010

Como notórias inuências do empenho de Me-

negat em fornecer um estatuto conceitual à barbá-

rie destacam-se questões e indicativos de respostas

elaborados por componentes da chamada Escola de

Frankfurt, como Adorno, Horkheimer, Benjamin e

Marcuse. A crítica da economia política de Marx,

 percorrida pela mediação central da crítica do  feti-chismo da mercadoria, costura a mobilização des-

sas inuências pelo autor, que não deixa de recor -

rer a outras fontes do pensamento marxista, como

Lukács, Mandel e Mészaros. O alcance teórico de

Menegat atinge destacados pensadores não-marxis-

tas, como Foucault e Bordieu, através de um reco-

nhecimento que não inibe diálogos tensionadores.

Perpassando os nove artigos encontra-se a pre-

ocupação em atualizar a advertência do  socialis-

mo ou barbárie, a ponto de mencionar um vigente

estado de crises sem m. Se, por um lado, não éinexorável um futuro emancipado, por outro, não

é inexorável a humanidade padecer sob os ditames

do capital. Menegat acredita nisso! Por conseguin-

te, sentimo-nos autorizados a tratar o Olho da Bar-

bárie como uma audaciosa diatribe, apontada para

as sufocantes vicissitudes pragmático-realistas que

depreciam ou, até mesmo, bloqueiam a gestação

de uma diversicada e generalizada intervenção

social anti-capitalista.

Referências Bibliográcas

MENEGAT, Marildo. O olho da barbárie. São Pau-

lo: Expressão Popular, 2006.

FLAUBERT, G. Dicionário das idéias feitas. São

Paulo: Nova Alexandria, 1995.

MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Po-

lítica. Livro I, Tomo I. São Paulo: Nova Cultural,

1988.

SCHWARZ, R. Pressupostos, salvo engano, de

“Dialética da Malandragem”  In: Que horas são? 

São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

Notas

1. “ A mãe dá a luz, a Rota apaga” (lema ocio-

so da ROTA – Rondas Ostensivas Tobias de

Aguiar – “tropa de elite” da Polícia Militar de

São Paulo); “o interrogatório é muito fácil de

 fazer, pega o favelado e dá porrada até doer.

O interrogatório é muito fácil de acabar, pega

o bandido e dá porrada até matar ” (“grito de

guerra” do BOPE – Batalhão de Operações

Especiais da Polícia Militar do Rio de Janei-

ro, cujo símbolo é uma caveira penetrada poruma faca).

* Felipe Brito é doutorando do Programa de Pós-

graduação em Serviço Social.

[email protected] 

7/18/2019 Maril Do

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