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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM MESTRADO MARIANA MIRANDA MÁXIMO DOS SANTOS TRAÇADOS EM POÉTICA: DIÁLOGOS NA LITERATURA INFANTOJUVENIL CUIABÁ 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO

EM ESTUDOS DE LINGUAGEM – MESTRADO

MARIANA MIRANDA MÁXIMO DOS SANTOS

TRAÇADOS EM POÉTICA: DIÁLOGOS NA LITERATURA INFANTOJUVENIL

CUIABÁ

2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM (MeEL)

MARIANA MIRANDA MÁXIMO DOS SANTOS

TRAÇADOS EM POÉTICA: DIÁLOGOS NA LITERATURA INFANTOJUVENIL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em

Estudos de Linguagem, do Instituto de Linguagens da

Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial

para a obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem.

Área de concentração: Estudos Literários

Linha de pesquisa: Literatura, outras artes, memórias e fronteiras

Orientadora: Profª Drª Célia Maria Domingues da Rocha Reis

CUIABÁ

2014

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FICHA CATALOGRÁFICA S237t Santos, Mariana Miranda Máximo dos.

Traçados em poética : diálogos na literatura infantojuvenil / Mariana Miranda

Máximo dos Santos. – 2014.

92 f. : il. color.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Célia Maria Domingues da Rocha Reis. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Mato Grosso, Instituto de

Linguagens, Pós-Graduação em Estudos de Linguagem, Área de Concentração:

Estudos Literários, Linha de Pesquisa: Literatura, Outras Artes, Memórias e Fronteiras, 2014.

Bibliografia: f. 83-86. Inclui anexos.

1. Literatura infantojuvenil brasileira. 2. Literatura e ilustração. 3. Literatura infantojuvenil – Texto e imagem. 4. Literatura infantojuvenil – Interface artística.

5. Análise literária. 5. Mello, Roger, 1965-. I. Título.

CDU –821.134.3(81)-93.09

Ficha elaborada por: Rosângela Aparecida Vicente Söhn – CRB-1/931

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Porque Deus amou ao mundo de tal maneira, que deu o seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.

João, 3:16

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Em memória de minha mãe Soraiha Miranda de Lima, pedagoga de coração, instigadora de mim por sua humanidade, humildade, coragem, força, lealdade, esperança, luta, sensibilidade, valor, ideal. “[...] pois há tempo para todo propósito e para toda obra.”

Eclesiastes, 3:17

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DEDICATÓRIA

A meu Pai celestial Yeshua, Deus, Jesus e Espírito Santo, trindade que me trouxe o caminho, a verdade e a

vida, fôlego de vida, e o sentido da vida. Ao aprender pelos passos de Jesus a carregar a cruz diária vou

conhecendo novos sentimentos, reais no Reino do Pai, paz, alegria, amor, perdão, justiça. Pela Graça, amor e

misericórdia incondicionais do Pai tenho Tudo. Criador, transformador e restaurador de mim.

A meu pai Antonio Carlos, educador das lutas diárias, do tempo e da razão. Meu porto seguro. Insistente de

mim.

Ao meu marido Wender Carlos, tempestade do bem, caminho de horizontes, raio de sol, minha luz,

esperança, amigo, amante e sacerdote, poeta no olhar. Minha visão. Meu coração. Estendo ao nosso Pedro

Henrique.

À minha filha Lara, arara-azul, ávida de vida, repleta de horizontes e alegria no olhar, de sorriso furta cor.

Confidente de bonecas, mostra olhares que já esqueci, me chama de criança e não gosta de crescer (apenas na

altura, claro). Minha eterna companheira. Minha vida.

Uma me deu a Luz, a outra também

Eles (que) A mantém

Ao meu irmão Ulisses, menino de alma verde, tranquilo, perspicaz, de olhares particulares. Meu orgulho.

Futuro.

À minha irmã Sofia, dos cachos dourados e risada macia. Menina de tocar o ar e marcar a areia, de pegar no

som e desfazer os nós. Personificação dos espirais da vida.

À minha madrasta Renata, base da nossa família moderna nos últimos 11 anos. Pelos aprendizados, de

braçais a intelectuais, auxílios indescritíveis de variados. Estendo a Carol e Karine.

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AGRADECIMENTOS

À CAPES.

Ao MeEL/UFMT: à Profª. Divanize Carbonieri, coordenadora, pela confiança e auxílio; aos

professores, com os quais realizei inúmeras trocas de experiências, em especial à Profª Maria Rosa Petroni que

me acolheu carinhosamente e firmemente desde a graduação em Rondonópolis; e Prof. Mário Cezar Leite, por

sua crença em meu trabalho.

Aos colegas, com quem dividi as angústias particulares deste momento de travessia: da linguística

destaco Karla - que sustentou-me com suas orações, grande amiga, Jean, Diego, Renata e Paulo; e da literatura:

Iara, flor da Serra, minha irmã; Luana, favo de mel, minha parceira; Adriana, meu Sol (ADD forever), minha

luz azul; Heloísa, irmã de orientação e parente de Miradas; Domingos, razão; João, coração; Sheila, carisma e

Soraya, sorriso. Estendo ao João Paulo, colega que me apoiou e direcionou em momentos de angústia da escrita

e da vida.

À Profa. Célia Reis, orientadora desta pesquisa e da vida, possibilitou evolução pessoal, intelectual, a

qual pretendo sempre partilhar, fazendo destes aprendizados um ciclo de reflexões sobre o ser humano e suas

relações, e são sempre complexas, mas necessárias para uma vida saudável e plena. Aprendi sobre as limitações

do corpo, da mente e da alma, sobre as disciplinas e os pensamentos, bem como aprimorar minhas linguagens.

Descobriu antes de mim, sobre minhas inclinações para a literatura infantil e infantojuvenil. Agradeço sua

paciência para comigo, sempre, e generosidade, permitindo que eu percebesse que é possível aprender com

cada situação que experiencio. Trocamos linguagens, sons, texturas e cores, inclusive maneira de me portar.

Por sua doação, muito obrigada.

À banca, por se debruçar sobre o meu texto e dar-lhe novas direções, mesmo com o tempo escasso;

Prof. Dr. Aroldo Abreu que dialogou comigo, trazendo amplas visões e novas direções; e Profa. Franceli Mello,

para sempre Fran, que acompanha minha trajetória desde a infância, minha admiração e apreço.

À Graça Lima, pela disposição na troca de ideias; Helen Nakao e Daniela Franco, da Cia de Letras,

pelo atendimento prestativo.

À Prof. Eliane Moura, pelo auxílio com teorias e ludicidades.

À Prof. Maria de Jesus Patatas, por se constituir num firme suporte, meu agradecimento incondicional.

À escritora Anna Claudia Ramos, uma das primeiras a suscitar em mim o desejo de estudar literatura

infantil, inclusive disponibilizando um grande acervo de livros de sua autoria.

Ao meu primo-irmão, Lima-Limão, pela tradução do resumo para a Língua Inglesa.

Aos colegas de trabalho do CEJA Cesário Neto que dialogaram comigo nas horas de intervalo,

especialmente às professoras Joanice, Priscilla, Eliane, Eunice, Divânea e Jacirema, por seus olhares.

Aos colegas da SME, em nome do secretário da época, Permínio Filho e a Eliane Quinhone que, além

de pesquisadora e disseminadora da literatura infantil, viabilizou condições para que eu iniciasse o mestrado

até conseguir a bolsa.

Aos meus alunos que diariamente fazem com que eu modifique meu modo de pensar. “Aprender para

Ensinar é tão real quanto Ensinar para Aprender” (Soraiha Miranda de Lima).

À Família, que agradeço em nome da minha tia Suhilde, mãe e madrinha de fé, pelo apoio na logística

e cuidado para que pudesse me dedicar ao estudo, e retomar o caminho,

À minha nova família: meu marido, que não permitiu que eu abandonasse este projeto, e acalmou meu

coração nos momentos de desespero; à minha Lara que tem crescido e me auxiliado, não só em honrar seus

compromissos escolares, como nas tarefas rotineiras.

A cada um que, pacientemente, parou para vivenciar uma palavra comigo, muito obrigada. Cada

palavra ressoa; aprendo em tudo que vivo, sinto, ouço, sonho e falo.

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RESUMO

Neste trabalho objetivamos analisar recursos retóricos e visuais da obra de literatura infantojuvenil

brasileira contemporânea, Vizinho, Vizinha (2002), observando que os autores, ao fazerem a

representação das personagens, partem de seu isolamento socioindividual, gostos pessoais,

tendências, mas acabam compondo, com sutileza, relações de unicidade, culminando na valorização

da pessoa humana e de sua interação. Para compreender este percurso dos personagens, do

individualismo à socialização, desenvolvemos a análise considerando a natureza de interface artística

da obra, literatura e ilustração, principalmente o efeito de qualidade e complementação gerado pelo

diálogo entre estas linguagens, além de abarcar o contexto sociocultural em que foi produzida.

Considerando algumas dúvidas geradas no decorrer da pesquisa, fizemos um estudo inicial sobre a

produção direcionada ao público em formação como gênero e suas terminologias, bem como o

público a que se destina, verificando que o mercado é decisivo nesse campo.

Palavras-chave: Literatura infantojuvenil, literatura e ilustração, individualismo e individualidade.

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ABSTRACT

In this study we aimed to assess rhetorical and visual resources of the work of contemporary children

and youth Brazilian literature1, Vizinho, Vizinha (2002), noting that the authors, to make the

representation of characters, start from their socioindividual isolation, personal tastes, trends, but end

up composing, subtly, uniqueness relations, culminating in the value of the human person and of their

interaction. To understand this route of the characters, from the individualism to the socialization, we

developeded the analysis considering the nature of artistic interface of the work, the literature and the

illustration, particularly the effect of quality and completion generated by the dialogue among these

languages, besides embracing the sociocultural context in which it was produced. Considering some

questions generated during the research, we made an initial study on the production directed to the

public in formation as gender and their terminology and the public it is intended, finding that the

market is crucial in this field.

Keywords: Children and youth literature, literature and illustration, individualism and individuality.

1 Na Fundação Biblioteca Nacional a tradução para Literatura infantojuvenil está registrada como “children's literature”,

todavia, como abordaremos definições deste gênero literário e questões de terminologia, utilizaremos “children and

youth Brazilian literature”.

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SUMÁRIO

RESUMO...........................................................................................................................................09

INTRODUÇÃO..................................................................................................................................12

CAPÍTULO 1. FORMA E CONTEÚDO: ALUMAS NOTAS SOBRE A TERMINOLOGIA DO

GÊNERO............................................................................................................................................16

CAPÍTULO 2. TRAÇO E POÉTICA................................................................................................26

2.1. Literatura e ilustração em diálogo....................................................................................26

2.2. A ilustração de Vizinho, Vizinha........................................................................................32

CAPÍTULO 3. EM TEXTO E IMAGEM: INDIVIDUALISMO E INDIVIDUALIDADE................43

3.1. O individualismo e as individualidades: solidão e semelhanças.......................................43

3.2. O pertencimento e a unicidade: brinquedos, brincadeiras, comunidades..........................70

CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................................81

BIBLIOGRAFIA................................................................................................................................83

WEBGRAFIA....................................................................................................................................86

APÊNDICE........................................................................................................................................87

ANEXO..............................................................................................................................................90

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INTRODUÇÃO

Nesta dissertação defendemos que a literatura infantojuvenil2 é arte, por direito, como toda

literatura, pois, em acordo com Lígia Cademartori (1995, p. 21), o adjetivo infantojuvenil apenas

indica o público a que se destina a obra, assim sendo, independente do adjetivo que receba, literatura

é arte. Trabalhamos literatura como fruição, como o despertar da sensibilidade do leitor não apenas

para as linguagens verbal e não verbal, mas como espaço que se ocupa das vivências do homem e

leva o leitor a refletir acerca das necessidades reais da vida – suas próprias experiências.

Ao promover a junção de texto e imagem, a literatura infantojuvenil revela um olhar apurado

às circunstâncias humanas, pois são linguagens diferentes, de onde naturalmente emergem pontos de

vista diversos sobre um mesmo assunto e, desta forma, atrai o leitor.

A obra pode se adensar quando há uma parceria entre autores e ilustradores voltados à

produção de uma mesma história, o que tem sido feito com alguma frequência contemporaneamente,

imprimindo uma dinâmica diferenciada ao enredo, às personagens. A criação em parceria agrega

múltiplos valores à obra, à sua composição, maior criticidade na elaboração dos elementos estruturais,

o que certamente exige mais do leitor, de sua atenção para os detalhes e para o todo, no processo de

fruição. É também por esse modo de produção criadora que a literatura abre portas para discutir

questões que, provenientes do mundo externo, encontram ressonâncias no seu mundo interno, fictício,

como os relacionamentos, a interação e a convivência entre as pessoas.

Neste campo, chamou-nos a atenção a composição de Vizinho, Vizinha (2002), de Roger

Mello, Graça Lima e Mariana Massarani, dentre as muitas obras lidas – o primeiro passo em nosso

percurso metodológico, que consistiu no levantamento e leitura lúdica de obras literárias

infantojuvenis, para seleção do corpus de análise da pesquisa.

Este livro nos foi apresentado por Roger Mello e Mariana Massarani, quando participaram de

uma mesa redonda que ocorreu no Sesc Arsenal, em Cuiabá, no ano de 2012. Nesta mesa os dois

falaram acerca da sua visão sobre a ilustração de livros para o público em formação, destacando a

importância do trabalho do ilustrador como ponto de vista particular e artístico, até mesmo

privilegiado, pois é o primeiro leitor a ter contato com o texto, tendo a possibilidade de apresentar

sua interpretação, acrescentando novos sentidos ao texto com as imagens.

O livro apresentado, Vizinho, Vizinha, tem como enredo a representação da rotina de dois

personagens não nomeados, apenas denominados “Vizinho” e “Vizinha”. Eles moram em

apartamentos, um de frente ao outro, no mesmo prédio, mas não se conhecem. Roger Mello ilustra o

corredor e compõe o texto; Graça Lima ilustra a “Vizinha”; Mariana Massarani ilustra o “Vizinho”.

2 Manteremos a junção dos termos, de acordo com a nova ortografia. O hífen será colocado quando o termo constar nas

citações, em publicações anteriores à mudança ortográfica.

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O leitor tem oportunidade, então, ao folhear o livro, de ver as personagens e seus respectivos espaços

separados e, também, juntos, como num mosaico, em três planos (nas duas páginas do livro aberto):

o interior dos dois apartamentos, cada apartamento em uma extremidade, um de frente para o outro –

a Vizinha, à direita do livro, o Vizinho, à esquerda, e o corredor ao meio.

Tal procedimento de organização despertou-nos vários questionamentos: como se deu a

concepção do conteúdo (texto e ilustração); sobre a opção pelo tema condutor; sobre como foi o

processo de montagem, a colocação de elementos verbais e pictóricos provenientes dos diferentes

estilos dos artistas, elementos construídos por estilos diferentes que, na obra, não foram fundidos,

mas mantidos na sua diferença; sobre o diálogo que texto e ilustração mantêm entre si etc. Em

entrevista posterior (v. Apêndice), Graça Lima nos deu algumas respostas a essas questões, que

consideramos importantes para o aprofundamento da análise. Mas o que nos instigou – e essa é a

questão que neste trabalho pretendemos investigar, é o modo como texto e ilustração, nas suas

configurações específicas, contribuem, complementam e ampliam o sentido da obra, com seus

elementos próprios de realização, para a expressão de um comportamento específico das personagens,

a solidão, o individualismo, num ambiente citadino.

Para desenvolvermos esta investigação, optamos por desenvolver a dissertação em três

capítulos, sendo que os dois últimos são subdivididos em duas sessões.

No primeiro capítulo, “Forma e conteúdo: Algumas notas sobre terminologia do gênero”,

abordaremos especificidades da literatura infantojuvenil, caracterizando-a frente a outras literaturas,

conteúdo que teve origem no momento em que observamos a catalogação da obra como “literatura

infantojuvenil”, o que nos levou a buscar respostas para duas perguntas: se há uma literatura

infantojuvenil propriamente dita, inclusive porque a teoria não apresenta grandes distinções ou

delimitações entre literatura infantil e infantojuvenil, e qual o público específico deste gênero. A fim

de tentar compreender essas questões, fizemos um breve panorama histórico social da literatura

infantojuvenil, refletindo sobre os contextos de produção e evolução deste gênero, com base em Nelly

Novaes Coelho (1991, 1993), que discute sobre literatura infantil e infantojuvenil, levando em

consideração o contexto, inclusive traçando a história deste gênero literário, abordando a literatura e

sua relação com a educação desde os seus primórdios; Jesualdo Sosa (1978), que questiona a

classificação literária “infantil”, defendendo que não há uma literatura específica para este público,

mas algumas características voltadas para eles; Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2007) que

apresentam um trabalho detalhado acerca da literatura infantil, trazendo a história deste gênero. Essas

autoras escreveram este livro quando começaram a surgir discussões sobre a literatura infantil no

Brasil, e apresentam algumas obras para exemplificar a evolução deste gênero. Também Lúcia

Pimentel Góes (2010), que traz sua pesquisa sobre a literatura para crianças e jovens, mostrando uma

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perspectiva atual sobre essa categoria; Maria da Glória Bordini (1986), que debate sobre a poesia

infantil especificamente, demonstrando seu incômodo com a nomenclatura infantil, que por vezes é

pejorativa, e faz uma classificação geral da poesia infantil brasileira até a década de 80, data de

publicação da obra.

No segundo capítulo, “Traço e poética” iniciamos o diálogo entre a literatura e as artes

plásticas, abordando a ilustração e sua relação com a literatura infantojuvenil, ressaltando os

momentos de simbiose entre elas. Este capítulo foi dividido em dois itens, “Literatura e ilustração em

diálogo”, no qual observamos a tessitura da ilustração com a prosa poética, em harmonia dialógica.

Apresentamos também um pouco das experiências dos autores do livro e sua relação, demonstrando

a importância do processo de produção e da sintonia de ideias para que um trabalho em parceria

autoral culmine numa obra como esta. No segundo item, “A ilustração de Vizinho, Vizinha”, iniciamos

a análise da obra, considerando a sua natureza de interface artística, literatura e ilustração, e o contexto

sociocultural em que foi produzida. Neste capítulo fizemos uso de estudos de Israel Pedrosa (2010),

que apresenta um estudo das cores, desde a percepção dos olhos humanos para a cor, até a simbologia

das cores; Modesto Farina (1990), que trata das cores relacionadas à comunicação, a influência que a

primeira exerce sobre a segunda, haja vista que atinge a parte sensorial do ser humano; Fayga

Ostrower (1983), que apresenta elementos básicos e primordiais das artes plásticas, em um livro que

foi fruto de um curso para operários, no qual aborda algumas especificidades da arte como traço,

volume, profundidade, cor; Luís Camargo (1995), estudioso da ilustração brasileira, que mostra a

evolução da ilustração, desde o momento em que era apenas descritiva até sua autonomia, e apresenta

figuras de linguagem usadas nas ilustrações; Ricardo Azevedo (1993), que procura formas de

organizar, ou classificar as recorrências de ilustrações em diálogo com o texto, de maneira flexível,

pois não há como ser rígido neste aspecto; ele debate também acerca da ilustração e arte na sociedade

capitalista e defende a autoria do ilustrador.

No terceiro capítulo, “Em texto e imagem: individualismo e individualidades”, analisamos a

obra sob alguns aspectos do momento histórico em que está situada, a contemporaneidade, bem como

as relações interpessoais. O capítulo foi subdividido em dois tópicos: “O individualismo e as

individualidades: solidão e semelhanças” e “O pertencimento e a unicidade: brinquedos, brincadeiras,

comunidades”, mostrando visões diferentes da realidade, pela perspectiva de adultos, homem e

mulher, bastante distintas entre si, e de crianças, menino e menina, dadas como confluentes,

semelhantes. Como fundamentação teórica serão feitas discussões sobre a vida na contemporaneidade

com Zygmunt Bauman (2007, 2009) que, comparando a vida nos dias atuais com a modernidade,

afirma que estamos vivendo uma segunda fase desta, à qual ele se refere como “líquida”, sendo que

a primeira seria “sólida”. O autor defende que o indivíduo está vivendo impulsionado pelo mercado,

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em uma constante mudança de personalidade, sendo artista em sua própria vida; fala sobre o

consumismo e a felicidade, insiste que a felicidade não está na matéria, propõe alguns caminhos;

Octavio Paz (1982, 2005) crítico literário, defende o valor da poesia nos tempos atuais, no mundo

fragmentado, valoriza o ser humano e sua ligação harmoniosa com a natureza, algo que ele vê em

maior grau nas miudezas do cotidiano, e afirma que não há mais uma grande diferença entre o poeta

e o leitor, pois ambos vivem uma mesma insegurança; Tizuko Morchihda Kishimoto (1996, 2002)

que traz, por meio de uma seleção de artigos, pesquisas variadas sobre o brinquedo, a brincadeira e

os jogos para as crianças, por meio de abordagens da filosofia, psicanálise e sociologia, além de

apresentar estudos voltados para a educação e a importância da brincadeira no processo de

desenvolvimento da criança.

As considerações finais foram pautadas tanto no estudo teórico quanto em experiências de

vida, pois aos poucos fomos aprendendo a “enxergar” a obra por meio da vida e vice-versa, a ligação

grandiosa entre a literatura, a ilustração, com o ser humano. Octavio Paz (2005, p. 310) afirma que

não há poesia sem sociedade, haja vista que estão em uma “[...] conversão mútua: poetizar a vida

social, socializar a palavra poética. Transformação da sociedade em comunidade criadora, em poema

vivo; e do poema em vida social, em imagem encarnada.”

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CAPÍTULO 1. FORMA E CONTEÚDO: ALUMAS NOTAS SOBRE A TERMINOLOGIA

DO GÊNERO

Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no universo...

Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer,

Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não do tamanho da minha altura...

Nas cidades a vida é mais pequena

Que aqui na minha casa no cimo deste outeiro.

Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,

Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,

Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,

E tornam-nos pobre porque a nossa única riqueza é ver.

(PESSOA, 1994, p. 77)

Neste capítulo abordaremos especificidades da literatura para crianças e jovens,

caracterizando-a frente a outras literaturas; sua função e seu estatuto de arte; e um breve panorama

históricocultural. Isto porque visualizamos a importância da contextualização para compreensão,

análise e interpretação de uma obra literária, que abrange em suas entranhas as particularidades e

visões de mundo recorrentes em uma determinada época. De acordo com Antônio Cândido (2006, p.

13, 14), só é possível entender a obra fundindo texto e contexto, pois o externo torna-se interno

quando desempenha um certo papel na constituição da estrutura da obra.

O objetivo de nossa pesquisa é fazer análise e interpretação da obra Vizinho, Vizinha (2002),

uma produção com predomínio de imagens e pouco texto (algumas frases), com registro na ficha

catalográfica como “Literatura infantojuvenil”3, o que nos chamou a atenção e nos instigou a

investigar a questão da terminologia do gênero. Este livro entrou para o acervo do Programa Nacional

Biblioteca da Escola (PNBE), do Ministério da Educação (MEC), em 2012, que avalia e seleciona

livros para as escolas públicas, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, incluindo Educação de

Jovens e Adultos, todavia, diferente da catalogação da editora, esta obra foi indicada para as crianças

da pré-escola.

Apresentaremos, então, alguns aspectos contextuais, buscando resposta para dois

questionamentos básicos acerca do gênero literatura infantojuvenil. O primeiro é verificar se há uma

literatura infantojuvenil propriamente dita, bem como investigar se há uma distinção entre literatura

infantil e infantojuvenil, pois os teóricos ainda debatem a respeito dessas questões. O segundo é

pensar que, assim denominada, essa literatura pode dizer respeito a uma faixa etária específica de

leitores. Em decorrência, perguntamos se há um leitor, um público específico de literatura infantil e

3 Foram consultadas três reimpressões deste livro, a 3ª, de 2005, a 4ª, de 2006 e a 7ª, de 2011, sendo que esta última segue

as novas regras do acordo ortográfico. O termo “infanto-juvenil” foi grafado com hífen nas duas primeiras reimpressões,

hífen suprimido na 7ª reimpressão. Levaremos em consideração a 7ª, atualizada.

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infantojuvenil.

Façamos, antes, algumas inferências sobre o fenômeno “literatura”.

Literatura é um fenômeno de linguagem plasmado por uma experiência vital/cultural

direta ou indiretamente ligada a determinado contexto social [...] Literatura é arte e,

como tal, as relações de aprendizagem e vivência, que se estabelecem entre ela e o

indivíduo, são fundamentais para que esta alcance sua formação integral (Eu + Outro

+ Mundo), em harmonia dinâmica. (COELHO, 1993, p. 8. Grifos da autora)

Nelly Novaes Coelho afirma que literatura é, antes de tudo, um fenômeno de linguagem

sedimentado por uma experiência com dada cultura, em determinado contexto. Como arte, conecta o

sujeito ao mundo, a outras pessoas pela via de diferentes interpretações, ampliando sua visão das

emoções e sofrimentos humanos, propiciando-lhe instrumentos para pensar de maneira diversa as

suas vivências próprias. A literatura é a arte mais importante posto que a matéria utilizada pelos

autores é a palavra, o pensamento, a imaginação, meios que também compõem as nossas

especificidades humanas: nossas sensações, nossos pensamentos são materializados em palavras,

além de nos dizer quem somos, provoca e revela sentimentos.

Cada ser humano tem suas especificidades. Se a literatura é uma linguagem específica que

expressa uma determinada experiência humana, em dado momento, sob específicas condições

estéticoculturais, ela não pode ser definida com exatidão. Então, conhecer tais condições é como

conhecer a singularidade dos diversos momentos da humanidade em sua evolução. No caso específico

da literatura destinada às crianças de cada época, significa compreender o que permaneceu da

tradição, os costumes arraigados e os avanços, o que é valorizado ou desvalorizado socialmente.

Fenômeno visceralmente humano, a criação literária será sempre tão complexa,

fascinante, misteriosa e essencial, quanto a própria condição humana. Em nossa

época de transformações estruturais, a noção de literatura que vem predominando

entre os estudiosos das várias áreas de conhecimento é a de identificá-la como um

dinâmico processo de produção/recepção que, conscientemente ou não, se converte

em favor de intervenção sociológica, ética ou política. Nesta ‘intervenção’ está

implícita a transformação das noções já consagradas de tempo, espaço, personagem,

ação, linguagem, estruturas poéticas, valores éticos ou metafísicos, etc., etc.

(COELHO, 1993, p. 25. Grifos da autora)

A autora faz uma ligação direta entre a literatura e o ser humano. Ao falar sobre a literatura

como um “dinâmico processo de produção/recepção” ela se refere a uma literatura que exige do leitor

participação interativa para que a narrativa aconteça. A própria estrutura das obras tem se construído

dessa forma, exigindo não mais aquele leitor passivo, mas um leitor que intervém no texto, inclusive

alterando-o. Tal intervenção se coloca também como uma necessidade de alteração de noções sociais,

éticopolíticas de acordo com as necessidades comunitárias, culturais, reveladas na superação do

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sentido convencional de construção dos elementos estruturais narrativos – personagem, narrador,

tempo, espaço, enredo, também de diagramação, paginação, enfim, do conjunto físico da obra. Isso

ocorre de modo mais acentuado na literatura destinada às faixas etárias mais baixas. Isso nos leva a

refletir se há uma especificidade da literatura dita “infantil”. Vejamos algumas opiniões sobre o

assunto.

Para Jesualdo Sosa (1978, p. 19-20), estudioso da área amplamente citado por muitos e

renomados pesquisadores, tem-se convencionalmente denominado “literatura infantil”, uma das

vertentes da literatura que apresenta características específicas, com “personalidade própria e

definida”. Mas ele se pergunta se a literatura infantil teria mesmo essa “personalidade” e se haverá

que correspondam integramente à intimidade da criança. Não reconhecendo essa natureza absoluta,

peculiar, ele afirma que o que existiriam seriam “certos valores, elementos ou caracteres, dentro da

expressão literária geral, escrita ou não para crianças, que respondem às exigências de sua psique

durante o processo de conhecimento e de apreensão, que se ajustam ao ritmo de sua evolução mental,

e em especial ao de determinadas forças intelectivas. (SOSA, 1978, p. 14-16. Grifo do autor). Na

defesa que faz, o autor admite que, para atender às exigências e expectativas do público, o que inclui

os anseios dos pequenos leitores, a literatura não precisa de qualquer rótulo.

Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2007, p. 10, 11), assim como Lígia Cademartori (1994,

p. 07 - 10) defendem que o adjetivo “infantil” traz um peso circunstancial para a expressão, definindo

a destinação da obra, o que leva em consideração uma comparação entre a literatura infantil e a não-

infantil, pois o termo “infantil” não está determinando uma adequabilidade do público, simplesmente,

mas demonstra um diálogo entre as literaturas, infantil e não-infantil. As autoras defendem que ambas

as literaturas compartilham da mesma natureza de produção simbólica ao utilizar a linguagem como

matéria prima e o livro como veículo preferencial. Todavia, é importante ressaltar que o adjetivo

“infantil” não pode interferir na literariedade do texto.

Lígia Cademartori (1995, p. 8, 9, 21) aborda o fato de essa literatura destinada às crianças,

ser escrita, empresariada, divulgada e comprada por adultos, revela que, para além de ser uma

literatura para crianças, é uma visão do adulto sobre a infância, que pressupõe quais linguagens e

temáticas são apropriadas, o que indica que o adulto já saiba o que interessa ao público infantil. A

autora afirma que esta relação adulto/criança pode gerar uma ausência de correspondência entre o

autor e o leitor. Maria da Glória Bordini (1986, p. 06-13) também levanta esta questão ao tratar de

poesia infantil, defendendo que a infância é um enigma para o adulto, pois este apresenta nos textos,

não somente a sua visão sobre a infância, mas a lembrança obscurecida que ele traz da própria

infância, o adulto está fora do momento. Talvez por este motivo haja literatura que não tenha sido

pensada para a criança, mas a atrai sobremaneira, inclusive porque textos produzidos com o intuito

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de facilitar a leitura, muitas vezes resulta num “infantilismo”. Aí está um dos motivos pelos quais o

público nem sempre aprova o texto rotulado. Coelho (1993) também compartilha desta opinião,

afirmando que a literatura infantil poderia ser catalogada após a leitura do público, haja vista que o

receptor é o único que pode revelar se a obra atingiu suas expectativas.

Se o que determina a Literatura dita “infantil” é o público, e consequentemente, valores,

elementos ou características específicas dentro do texto, é possível estabelecer uma fronteira entre

esta e a “infantojuvenil”?

Nelly Novaes Coelho sugere alguns “princípios orientativos” (1993, p. 28) para a escolha de

livros adequados a cada categoria de leitor, utilizando as etapas de desenvolvimento da criança.

Assim, apresenta cinco etapas: O pré-leitor, dividido entre primeira infância (dos 15/17 meses aos 3

anos), e a segunda infância (a partir dos 2/3 anos); o leitor iniciante (a partir dos 6/7 anos); o leitor

em processo (a partir dos 8/9 anos); o leitor fluente (a partir dos 10/11 anos) e o leitor crítico (a partir

dos 12/13 anos). No entanto, embora propondo essa categorização, a autora reconhece a sua limitação

teórica

[...] a inclusão do leitor em determinada ‘categoria’ depende não apenas de sua faixa

etária, mas principalmente da inter-relação existente entre sua idade cronológica,

nível de amadurecimento biopsíquico-afetivo-intelectual e grau ou nível de

conhecimento/domínio do mecanismo da leitura. Daí que as indicações de livros para

determinadas ‘faixas etárias’ sejam sempre aproximativas. (COELHO, 1993, p. 28)

Vemos então que não é simples definir as especificidades do gênero. A professora Lúcia

Pimentel Góes (2010, p. 61 e 62) admite a existência de diferentes fases de leitura, mas ressalta que

“O leitor não nasce pronto; precisa ser conquistado e construído, passando pelos diferentes e

progressivos momentos no seu percurso [...].” Então esse desenvolvimento depende das vivências

desse indivíduo, sua história, as oportunidades que terá em sua vida, nos vários ambientes que estiver,

familiar, cultural, escolar, entre outros.

Coelho (1993), em uma nota introdutória, registra esta polêmica “questão de terminologia”, e

utiliza em seu livro o rótulo geral “Literatura Infantil ou Infantil/Juvenil” para indicar tanto os livros

infantis, como os infantojuvenis e juvenis. A autora ressalta a dificuldade real de encontrar um termo

que seja abrangente e “não falseie a matéria por ele nomeada” e reconhece a dificuldade dos que

trabalham com a literatura não-adulta acerca das terminologias. Por este mesmo motivo, a autora

também utiliza o termo “criança” para indicar todo pequeno leitor. Lígia Cademartori (1995, p. 60)

também defende que as faixas etárias para leitores devem ser apenas uma sugestão, haja vista não ser

possível estabelecer a maturidade de um leitor apenas pela idade cronológica.

Enquanto o campo acadêmico coleta dados, produz, estuda os fenômenos, há o mercado

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editorial, que não tem preocupações teóricas, mas praticidade, e muitas vezes é decisivo nas

classificações e nomenclaturas. Acrescente-se que tais nomenclaturas, constantes nas fichas

catalográficas, ficam registradas na Biblioteca Nacional4. A obra em análise, Vizinho, Vizinha, está

classificada como “literatura infantojuvenil”. Procuramos a editora – Companhia das Letras, e nos

informamos com o setor de catalogação de obras, sobre o critério utilizado por eles para diferenciar

uma obra literária como infantil ou infantojuvenil. Em resposta, Daniela Franco5 indicada pela editora

Helen Nakao, respondeu com obviedade: “aqui na editora não há um critério entre infantil e

infantojuvenil. Catalogamos todos os livros dos selos Companhia das letrinhas e Seguinte como

literatura infantojuvenil.” Deste modo percebemos que, embora os teóricos discutam esta

terminologia, a palavra final acaba sendo do mercado, da editora, o que escancara o fato de que o

livro infantil/ infantojuvenil é uma mercadoria, aliás, a própria criança nasce para a sociedade como

mercadoria (chupeta, mamadeira, livro), está inserida no capitalismo.

De acordo com Marisa Lajolo e Regina Zilberman (2007, p. 16-18), as primeiras obras

publicadas para o público infantil aparecem no mercado na primeira metade do século XVIII, surgem

no mesmo século marcado pela industrialização, tecnologias inovadoras e invenções, movimento que

gera a urbanização. Neste cenário a burguesia se consolida como classe social, e duas instituições

passam a ser fundamentais, a família e a escola, pois a criança passa a ter um novo papel na sociedade,

o que culmina em uma preservação da infância, o indivíduo começa a ser percebido. A criança vista

como frágil e dependente precisava ser preparada para a vida em sociedade, então a escola passa a

ser este mediador. Assim, a literatura infantil assume, desde o início, a condição de mercadoria,

consequentemente, surge atrelada à educação, haja vista que, para adquirir os livros, era necessário

que a criança pudesse lê-los. Por este motivo também existem as categorias ligadas às faixas etárias

e às etapas de desenvolvimento da criança, pois esta vai amadurecendo aos poucos, algo que o

mercado precisa respeitar, sob pena de estagnar o consumo.

O livro, afirma Cademartori (1995, p. 17-19), é objeto de mercado, seus produtores inserem-

se na dinâmica capitalista. E a educação formal vê na literatura infantil um instrumento para expansão

do “domínio linguístico dos alunos”.

[...] se analisarmos as grandes obras que através dos tempos se impuseram como

‘literatura infantil’, veremos que pertencem simultaneamente a essas duas áreas

distintas (embora limítrofes e, as mais das vezes, interdependentes): a da Arte e a da

Pedagogia. Sob esse aspecto, podemos dizer que, como ‘objeto’ que provoca

emoções, dá prazer ou diverte e, acima de tudo, ‘modifica’ a consciência-de-mundo

de seu leitor, a Literatura infantil é Arte. Por outro lado, como ‘instrumento’

4 Registro da obra Vizinho, Vizinha (2002) encontra disponível em: http://acervo.bn.br/sophia_web/index.html 5 Estagiária do Departamento de Produção da Companha das Letras há dois anos, responsável pelo controle e emendas

das reimpressões mensais e também pelos ISBNs e fichas catalográficas, além de auxiliar na marcação de originais.

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manipulado por uma intenção ‘educativa’, ela se inscreve na área da pedagogia.

(COELHO, 1993, p. 42)

Coelho (1993, p. 42-44) explica sobre a ligação indissociável entre a “intenção artística” e a

“educativa”, incorporadas às raízes da literatura infantil. Por vezes, uma das duas acaba prevalecendo

sobre a outra, o que gera excessos e equívocos sobre este gênero. Todavia, tem havido um equilíbrio

ultimamente, pois há uma produção de qualidade, defende a autora, que nos leva a uma literatura que

diverte, emociona e ensina, ao mesmo tempo, formas de ver o mundo, superar situações, criar, reagir.

Lajolo e Zilberman (1994, p. 20) também defendem que, apesar de ser instrumento de formação da

criança, a literatura infantil equilibra e até supera essa inclinação, pois incorpora ao texto o universo

afetivo da criança.

Cademartori (1995, p. 23-25) afirma que tradicionalmente, por determinação pedagógica, a

literatura infantil apresentou-se com discurso monológico, pré-estabelecido, convencional. Todavia,

com o entrecruzamento de vozes, as do leitor e as do autor, que permite a relatividade de respostas,

ocorre uma abertura para o diálogo. Percebemos, então, a importância de relativizar estas relações,

tanto entre o autor e o leitor, entre os diferentes autores, entre os personagens e seus conflitos, como

em Vizinho, Vizinha, que apresentam simbolicamente vários índices de abertura, conforme veremos

adiante.

Coelho (1991 p 237, 264, 267) afirma que o valor literário deve ser considerado pela

consciência do fazer literário e por sua adequação às forças renovadoras mais atuantes no momento

de sua produção, afirmando que, acima dos valores estabelecidos, a literatura deve propor “projetos

de ação”, estimular a reflexão e criticidade de seus leitores, para que eles possam encontrar uma

direção e um sentido para a vida. Entretanto, para que um livro seja considerado renovador e

atualizado literariamente é preciso que o contexto se transfigure em arte.

Em uma vista ampla das obras “criativas”, que apresentam “valor literário original”, elas

podem ser divididas em duas áreas, de acordo com Coelho (1993, p. 133, 134), a do “questionamento”

e a da “representação”. Segundo a autora, as obras da primeira área são classificadas como

“inovadoras” e da segunda “continuadoras”. Como ambas podem atingir um nível autêntico de

literariedade, a diferença é a intencionalidade que as move. Enquanto as inovadoras questionam o

mundo, tentando estimular os leitores a modificá-lo futuramente, as continuadoras representam o

mundo, mostrando caminhos e comportamento que devem ser assumidos ou evitados para que os

leitores tenham uma vida mais plena e justa. A obra em análise está no limiar das duas áreas citadas,

pois representa a vida cotidiana atual, e também questiona essa representação no momento em que

traz para a história a participação de duas crianças que modificam o enredo.

Coelho (1993, p. 134) sustenta que “o valor literário” de cada obra depende da coerência entre

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a visão de mundo e as soluções estruturais escolhidas pelo autor, o que é determinado também pelo

momento em que se escreve. A literatura está ligada à função de “atuar sobre as mentes” desde sua

origem, pois é na mente que as vontades e ações são decididas, onde se ampliam as emoções e todos

os sentimentos, de forma que não há intensidade igual em nenhuma outra atividade. É no encontro

com a literatura, com a arte, afirma Coelho (1993, p. 25), que as pessoas têm a oportunidade de

ampliar, transformar, enriquecer suas experiências de vida. Assim, a autora defende que toda leitura

em sintonia com a essência do texto, seja consciente ou não, resulta na formação de uma “consciência

de mundo”, pois

[...] resultará na representação de determinada realidade ou valores que tomam corpo

em sua mente. Daí se deduz o poder de fecundação e de propagação de idéias,

padrões ou valores que é inerente ao fenômeno literário, e que através dos tempos

tem servido à humanidade engajada no infindável processo de evolução que a faz

avançar sempre e sempre [...]. É portanto, de uma relação que se estabelece entre o

eu e o outro (= tudo que não seja o próprio eu) que nasce a consciência, e desta

resulta o Conhecimento. E porque a consciência nos leva ao conhecimento, ela nos

impõe como fator essencial da obra literária. (COELHO, 1993, p. 45).

Pelo exposto, compreendendo a relatividade dos “princípios orientativos” de leitura propostos

por Coelho; que, conforme Jesualdo, não há propriamente uma literatura infantil, como foi dito, mas

“certos valores, elementos, dentro da expressão literária geral, escrita ou não para crianças, que

respondem às exigências de sua psique [...]”, faremos referência ao gênero, no âmbito de nossa

pesquisa, como literatura infantojuvenil, gênero literário abrangente, relativamente direcionado a

crianças e jovens, não havendo uma fronteira bem marcada entre eles. Ressaltamos, no entanto, que

ao trazer citações de teóricos sobre o assunto, lançaremos mão da terminologia que eles utilizam na

respectiva obra teórica consultada, bem como consideraremos que os estudos feitos sobre Literatura

infantil sejam também concernentes ao juvenil.

Em relação ao público específico para essa produção, num estudo que mostra as diferentes

respostas elaboradas ao longo do tempo sobre a infância, diante de um panorama de perspectivas

históricas sobre a criança, ressaltaremos o que propõe a contemporaneidade: a infância tida como

um momento de formação, com direitos legalmente preservados, embora quase sempre não levados

em conta, com condições de participação social, em circunstâncias que, no geral, conclamam para a

preservação do ambiente, do respeito à pessoa humana; considerando o dito de Jesualdo (1978), sobre

uma pretensa literatura escrita para crianças, nas suas supostas condições psíquicas, não lhe

despertarem o interesse, optamos por utilizar o termo leitor, em sua generalidade, aquele que

consome esta literatura, seja criança, adolescente ou jovem. Minimizamos assim, os graus e efeitos

da divisão da literatura e do público consumidor, não tendo condições teóricas de fugir totalmente

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das diferentes terminologias.

O importante é refletir que a literatura infantojuvenil, ao adquirir o estatuto de gênero, ganha

autonomia em relação às outras literaturas, podendo ser avaliada com critérios relativos às suas

especificidades, e não derivados de outros padrões, que lhe são alheios, conforme diz Barbara Jane

Necyk:

O reconhecimento da literatura infantil como gênero específico é necessário para o

entendimento de que esse tipo de edição ganha autonomia em relação aos parâmetros

norteadores de outras edições ilustradas. O livro infantil contemporâneo é uma peça

única, sem igual no campo da literatura e das artes visuais. Seu modo de leitura

também se faz distinto em relação a outros tipos de edições ilustradas. (NECYK,

2007, p. 17)

Principalmente na atualidade, em que esta literatura vem ganhando mais espaço, tanto de

reconhecimento de sua qualidade, pelos autores, destacados nacional e internacionalmente, quanto

pelos leitores do público em geral, pela questão estética e por revelarem questões profundas da

existência. Desta forma vemos que é imprescindível conhecer um pouco da trajetória histórica e social

deste gênero, por ocasião, literatura infantojuvenil, que foi, juntamente com a noção de infância,

abarcando diferentes perspectivas ao longo do tempo.

Ao relatar o caminho percorrido pela literatura infantil, Coelho (1991, p. 13) diz que a grande

importância da linguagem literária está no registro da tendência natural da mente ou espírito humano,

que tenta explicar o real, nem sempre “explicável”, por meio dos símbolos, metáforas, de maneira

que a comunicação entre os seres humanos é inerente à sua própria natureza. A autora conclui que

“[...] O impulso de contar estórias deve ter nascido no homem no momento em que ele sentiu

necessidade de comunicar aos outros certa experiência sua, que poderia ter significação para todos”.

Nesta mesma linha de raciocínio, Walter Benjamin (2012) ressalta que o ato de narrar está

pautado na relevância que um fato terá para o próprio ouvinte/leitor, fato advindo de suas experiências

próprias ou de outras pessoas das quais tenha conhecimento, e seja dividida com o seu interlocutor,

abrindo um verdadeiro diálogo. Assim, a narração fará sentido real para a vida dos dois, pois

estabelece-se uma relação, não somente de troca, mas de partilha, de interação.

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num meio de artesão - no campo, no

mar e na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma forma artesanal de

comunicação. Ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada

como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador

para em seguida retira-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador,

como a mão do oleiro na argila do vaso. (BENJAMIN, 2012, p.125)

Foi nesta concepção de interação e partilha de experiências que a obra em análise, Vizinho,

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Vizinha, foi criada. Processo de mergulho na história do outro; quando Roger Mello escreve o texto e

leva até Graça Lima e Mariana Massarani, há um momento de plena interação, pois a narrativa criada

por Mello, pautada nas experiências dele, foi partilhada com as ilustradoras e, a partir de então novas

dimensões para o texto são criadas, isto porque a história dos “vizinhos” também permeia a vida das

autoras e, assim, tem significado em suas vidas. No entanto, mesmo que partilhem de ideias parecidas,

pois os três vivenciam o mesmo momento histórico de produção, cada autor tem uma experiência

particular, o que surge no texto com os respectivos e diferentes traços, estilos, compondo uma obra

híbrida, plurissignificativa. O “Vizinho”, de Mariana Massarani, leva a vida de uma maneira mais

calma e busca novas experiências nas viagens que faz ao redor do mundo. “Ele já viajou o mundo

inteiro” (MELLO, 2002, p. 08),

A “Vizinha”, de Graça Lima tem uma vida mais agitada, na medida que faz caminhada todos

os dias, ensaia clarineta, costura, inventa, mas suas vivências estão mais pautadas nos livros, que

ocupam um vasto espaço em seu apartamento, “Ela tem uma estante de livros do tamanho do mundo”

(MELLO, 2002, p. 09). O corredor, ilustração especial do próprio escritor do texto, Roger Mello, vai

sendo delineado conforme a história dos vizinhos caminha, surgindo como espaço tanto de separação,

quanto de encontro das personagens. Neste capítulo, no qual estudamos questões de leitor e leituras,

temos uma narrativa construída em torno de personagens que se organizam existencialmente ao redor

de livros, uma certa metalinguagem da leitura, seus efeitos e implicações.

Em Vizinho, Vizinha, o leitor se depara com circunstâncias enraizadas no cotidiano, mas

Figura 1. (MELLO, 2002, p. 08, 09)

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tratadas ficcionalmente de modo lúdico, emotivo, expressando um respeito à humanidade das pessoas.

Tais itens, fundados no real, têm suas barreiras removidas para a emergência da fantasia em situações

cotidianas (COELHO, 1993, p. 141).

Obras em que a fronteira entre Realidade e Imaginário se diluem, fundindo-se as

diferentes áreas para dar lugar a uma terceira realidade, onde as possibilidades de

vivências são infinitas e imprevisíveis. Situações centradas no cotidiano comum,

onde irrompo algo ‘estranho’, que é visto ou vivido com a maior naturalidade pelas

personagens. É das diretrizes mais atraentes para os leitores contemporâneos.

(COELHO, 1993, p. 141)

Há no enredo, então, uma transcendência de fronteiras entre o real e o imaginário, como a

máquina de chover que o vizinho inventou e o rinoceronte que a vizinha alimenta e guarda debaixo

da pia (MELLO, 2002, p. 17, 18). Este livro representa uma realidade, ao mesmo tempo em que

critica algumas posturas da nossa sociedade, tratando de maneira sutil uma temática relevante e atual

para o nosso mundo, a solidão.

Segundo Lúcia Pimentel Góes (2010, p. 37- 41), para influenciar na educação, comportamento

e pensamento dos leitores é preciso tato, é preciso educar para a sensibilidade deles, por este motivo,

a primeira função da literatura para crianças e jovens é a “estético-formativa”, pois a ligação entre a

beleza da palavra e das imagens, é a “qualidade de emoção”. A autora apresenta a qualidade estética

como sendo o cuidado com a apresentação do livro e com a ilustração. É uma das exigências para

que um livro seja bom, pois os livros infantis devem ser artísticos.

Por pensar neste estatuto de arte, dedicamos o próximo capítulo à literatura e artes plásticas,

texto e traço em diálogo, com um destaque especial à ilustração, pois que ela está tão incorporada à

literatura infantojuvenil que parece “desenhar uma segunda natureza” do gênero (LAJOLO e

ZILBERMAN, 1994, p. 13).

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CAPÍTULO 2. TRAÇO E POÉTICA

A arte tem fôlego infinito: a cada dia se transfigura para acompanhar

o homem em sua longa jornada. (PEDROSA, 2010, p. 137)

De acordo com Diderot, o traço dá forma à personagem, bem como a cor lhe dá vida: são eles

o “sopro divino” que a animam: “C’est dessin qui donne la forme auxêtres; c’est la couleur qui leur

donne la vie. Voilá le souffle divin que les anime.”6 (DIDEROT apud PEDROSA, 2010, p. 119). O

artista faz menção ao texto bíblico, Gênesis 2:7, especificamente na parte em que o Criador molda o

homem com o barro e sopra-lhe nas narinas, dando-lhe uma alma vivente. Diderot valoriza, equipara

cor e traço ao “sopro”, a partir do qual o personagem ganha existência, uma inteireza.

Na obra em estudo, o “sopro” é coletivo: três ilustradores. O escritor coloca seu pensamento

em Verbo, e os ilustradores, interpretando o texto, dão o traço, a forma visual ao pensamento,

materializando as palavras, caracterizando novas dimensões. Para alcançar o efeito de “animar” a

personagem é preciso que o trabalho tenha comprometimento com o conteúdo e com a forma, no

sentido de estimular emoções, causar prazer, divertir e propiciar o amadurecimento da “consciência-

de-mundo de seu leitor”, conforme disse Coelho (1993, p. 42), referida anteriormente.

De acordo com Lajolo e Zilberman (1994, p. 14), na vida contemporânea e tecnológica o

visual tem ganho cada vez mais espaço, por isso consideramos imprescindível discutir sobre a

ilustração em si e a sua relação com a palavra. Intencionamos identificar momentos de simbiose entre

as artes, literatura infantojuvenil e artes plásticas que, como parceiras, oferecem ao leitor

possibilidades interpretativas complementares.

2.1. Literatura e ilustração em diálogo

Dada a predominância da ilustração na obra em análise - e constituindo a ilustração uma das

propriedades fundamentais do gênero literatura infantojuvenil, entendemos ser importante

desenvolver um estudo sobre essa modalidade de comunicação. Vale a pena observar a tessitura da

literatura com a ilustração pois, como vimos, o traço e a cor conferem visualidade às ideias,

pensamentos, palavras.

Paul Valéry (1991) afirma que o pensamento humano é regido pela linguagem verbal,

contudo, suas vivências exteriores são regidas pela imagem; nossas construções, em sua maioria,

acontecem pelo sentido da visão. Captamos o mundo por meio das retinas e das sensações que ela

produz, sistematizamos estes conteúdos e sensações no pensamento, todavia, em outra linguagem, a

6 “O desenho dá a forma ao ser; a cor lhes dá a vida. Aí está o sopro divino que os anima.” (tradução nossa).

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verbal. Desta forma podemos dizer que estamos, a todo o momento, traduzindo vivências,

interpretando, mas no âmbito da transposição semiótica, haja vista que procuramos signos em outra

linguagem para traduzir o que vimos, que, por sua vez, também tem um sistema de signos. Em sendo

diferentes estas duas linguagens, não podemos supor que haja uma fidelidade objetiva neste processo.

É possível que esteja neste lugar a importância, e o sucesso, da ilustração na literatura infantojuvenil,

pois proporciona, ao mesmo tempo, as duas linguagens, o que preenche as lacunas e organiza um

diálogo entre imagem e palavra, acrescentando significados na mente do leitor que, por sua vez,

preenche-os com suas próprias vivências.

Fayga Ostrower (1983) defende que tudo o que nos afeta subjetivamente, experiências de vida,

seja de maneira profunda ou de superfície, adquire uma imagem espacial. Desta forma, não é possível

visualizar uma imagem apenas a partir de descrições verbais, não de forma unânime, pois o indivíduo

compreende a palavra com o pensamento que tem, que, por sua vez é composto de suas próprias

vivências. Todavia, a imagem é um movimento visual, sensível à apreciação dos olhos em suas linhas,

dando forma ao pensamento que é abstrato. A autora ressalta que qualquer marca visual, qualquer

elemento tem uma função: “Em toda obra de arte, a forma incorpora o conteúdo de tal maneira que

se tornam uma só identidade” (1983, p. 30). A partir deste momento não há mais como desassociar o

texto da imagem e vice-versa, pois aquela palavra, abstrata no pensamento, já encontrou uma forma

visual, portanto “quando se dá outra forma a um conteúdo, modifica-se o conteúdo” (1983, p. 43-45).

Da mesma maneira que as formas são expressões de uma realidade vivida por alguém

“[...] o espaço constitui o único mediador que temos entre nossa experiência

subjetiva e a conscientização dessa experiência. Tudo aquilo que nos afeta

intimamente em termos de vida precisa assumir uma imagem espacial para poder

chegar ao nosso consciente.” (OSTROWER, 1983, p. 30. Grifo nosso)

Na obra em análise, os autores trabalham simultaneamente com subjetividade e objetividade

complementando-se. Na cena em que “A vizinha guarda coisas velhas que depois não encontra”

(MELLO, 2002, p. 06), a ilustração reforça, de maneira objetiva, esta cena, complementando-a e

extrapolando a informação, pois nos deparamos com a vizinha quase perdida em meio às muitas

coisas que acumula.

O professor Aguinaldo José Gonçalves afirma que os signos da arte têm uma amplificação

dos limites, ao ponto de haver significado em uma folha de papel em branco. Em relação à

composição literária poética, ele afirma que a poesia significa desde sua estrutura composicional,

distribuição no espaço (materialidade do discurso poético), dimensão gráfica, universo sonoro, de

forma que a participação do leitor é decisiva (1997, p. 63, 67).

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Para Picasso, “a arte não é a aplicação de uma regra de beleza, mas daquilo que o instinto e

o cérebro podem conceber além de qualquer regra” (apud PEDROSA, 2010, p. 136), por isto ela pode

revelar sobre as substâncias, essências, subjetividades, particularidades, sensações, sentimentos

profundos. Não sabemos se há outro campo tão vário entre os saberes estabelecidos pelos homens

que valorize a própria essência do ser como a arte. E cada obra de arte expressa uma visão de mundo,

do ser humano e de suas interações.

Ao abordarmos a literatura relacionada à ilustração, estamos lidando com duas linguagens

artísticas que, por si só, já são vigorosas. A literatura, arte da palavra, explora o verbo em cada

miudeza, os sons, as combinações morfológicas, sintáticas. Os escritores lançam mão de uma palavra

que está saturada na comunicação em geral, e retomam, restauram seu sentido fonte. A partir de então

eles vão lapidando-a, e tecendo um texto com outros sabores sonoro e gráfico. Nas artes plásticas, os

autores lançam mão de outras ferramentas, traços, cores, efeitos de luz, profundidade, volume, sendo

que cada um deles provoca uma sensação diferente, e, no conjunto, uma explosão de significados, de

ressonâncias, de intertextualidades.

As cores, reveladoras de emoções, são capazes de trazer vida aos traços, movimentos,

expressões, sensações. Modesto Farina7, estudioso da influência e emprego das cores em

comunicação e propaganda, afirma que as cores expressam “uma sensação visual que nos oferece a

natureza através dos raios de luz irradiados em nosso planeta” (1990, p. 21), podendo gerar

sentimentos psicológicos profundos. Defende ainda que “nas artes visuais, a cor não é apenas um

elemento decorativo ou estético. É o fundamento da expressão. Está ligada à expressão de valores

sensuais e espirituais” (FARINA, 1990, p. 23).

Se já é possível notar que há particularidades importantes em cada linguagem que

escolhemos para dialogar neste trabalho, e a importância de cada uma delas, por sua complexidade,

podemos falar brevemente sobre a ilustração na literatura, aqui trazida marcadamente como literatura

infantojuvenil, que já é reconhecida no Brasil desde 1908.

Segundo Luiz Camargo, os estudos sobre ilustração começaram a aparecer na década de

1950, e grande parte devido aos estímulos da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ),

no Rio de Janeiro, e do Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil (CELIJU), em São Paulo.

O autor defende a importância da integração entre prática e teoria no âmbito das ilustrações, haja vista

que a prática oferece ao professor estímulos para utilização do livro de imagem e ilustrado em sala

de aula, enquanto a teoria oferece mecanismos para a sistematização de correntes, conceitos,

pesquisas, que contribuem tanto para o ilustrador, para o editor desta literatura, como para o editor de

7 Doutor em literatura pela Universidade Oriental de Nápoles, fundador do curso de publicidade e Propaganda da ECA

USP, primeiro livre-docente da área no Brasil

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arte, além de oferecer ao estudioso do gênero pistas para abordagem da ilustração e suas relações com

o texto (CAMARGO, 1995, p. 11)

Camargo define ilustração como toda imagem que acompanha um texto (1995, p. 33). Coelho

(1993, p. 171, 172) também defende esta posição, afirmando que a ilustração depende do texto e a

imagem é autônoma, pois traz significado completo em si mesma. Desta forma compreendemos que

ilustração não é qualquer imagem, mas toda imagem que acompanha um texto verbal. Não é nossa

intenção aqui reduzir a ilustração em detrimento do texto verbal, mas ressaltar sua importância.

Defendemos que o trabalho interartes ressalta a qualidade da obra. Assim, também visualizamos a

importância tanto do ilustrador quanto do escritor, pois um tende a melhorar e acrescentar elementos

à visão do outro. O ilustrador não deve apenas descrever o que está posto na escrita, o que acontecia

em maior escala anteriormente, mas realçar detalhes, acrescentar pontos de vista, colaborar com o

texto verbal.

O ilustrador, com suas ferramentas e linguagem própria utiliza traços e cores para dialogar

com o leitor, enquanto o escritor o faz com a palavra. Há materiais diferentes para trazer, de um

mesmo tema, perspectivas diversas, e isto contribui para a reflexão, para a visão crítica do leitor, que

poderá ativar seus sentidos e percepções, seja pelo impacto ou suavidade da cor, pelo traço ondulado

ou firme, pela palavra objetiva ou abstrata, pelos sons que o texto traz, ou pela expressão do

personagem.

A leitura transita mesmo no terreno das suposições, pois está sempre esperando ser efetivada,

e este papel é do leitor que, para isso, conta com todo o arsenal de leituras e imagens guardados na

memória. Camargo também defende que o uso de técnicas diferentes enriquece o universo visual da

criança, estimulando sua percepção, apreciação estética e sua própria criação plástica (1995, p. 52).

Fayga Ostrower (1983, p. 17, 18) afirma que, para se avaliar objetivamente o fenômeno da

arte, é preciso compreender os conteúdos expressivos a partir de critérios de linguagem artística. A

autora reconhece que há outros critérios, “extra-artísticos”, todavia eles não são determinantes para a

qualidade das obras, pois não captam o essencial do fenômeno da criação artística. Diz ainda que os

significados artísticos ampliam nossa sensibilidade e nosso ser consciente diante do mundo.

Gonçalves explica que os estudos interartes adquirem uma identidade própria. Ressalta que o

objeto de nossa busca é a linguagem artística, suas formas entre e inter comunicacionais, que são

fontes proliferadoras de mistério, de sentidos escondidos, ainda não desvendados pelos mecanismos

operacionais, que procuram uma relação entre os referentes do mundo e a tentativa de apreensão da

natureza da obra. Todavia nós não estamos adaptados a ver, temos uma imobilidade do nosso

pensamento perante as artes. O professor defende a necessidade de termos consciência da mobilidade

que vem à tona a partir de quando começamos a obedecer determinados procedimentos distintos que

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se inter-relacionam em uma construção de imagens. A seguir, há uma singularização do objeto e é

possível estabelecer relações analógicas, homológicas e associativas (GONÇALVES, 1997, p. 56,

57).

Os estudos comparados em literatura passaram a ser utilizados como reduto daquilo que não

se pode classificar, estabelecendo relações analógicas imediatas, simplistas, evidentes, explica

Gonçalves. Ele informa que é preciso compreender que os traços analógicos entre dois objetos de

pesquisa são portas fundamentais para que se possam alcançar camadas mais sutis. O autor afirma

que buscar equivalências homológicas entre sistemas distintos é verificar possíveis correspondências

entre tais procedimentos e também verificar as diferenças de operacionalização de recursos. Ele

ressalta que os signos da arte são imateriais, enquanto os outros são materiais, característica que lhe

confere a verdadeira unidade, um sentido inteiramente espiritual. Aproximar os signos da arte à

essência é interpretar relações humanas por meio da obra de arte (1997, p. 59, 60).

Essa é a intenção deste trabalho, não sobrepor uma arte à outra, pelo contrário, procurar

perceber as relações subjetivas, sutis, intrínsecas à obra em estudo, de maneira que possamos,

analisando traços e versos, ressaltar os significados que a relação entre eles provocam no leitor, aliás,

suscitam, pois cada leitor, dotado de suas próprias experiências de vida é que pode realizar o sentido

pleno da obra.

Por um bom tempo, as ilustrações se restringiam à descrição, uma reprodução fiel do texto

verbal, pois o seu papel era o de exemplificar o conteúdo dele. Dessa maneira, a compreensão surgia

apenas do texto verbal. Maria Alexandre Oliveira (2008, p. 66, 67) conta que, no contexto tradicional,

quase não havia ilustrações. As existentes eram pouco coloridas, figurativas, redundantes, mas

propiciando, já naquela época, uma comunicação que escapava à linearidade, caráter próprio da

linguagem imagética. O nome do ilustrador não constava na capa do livro, o que já indicava a falta

de apreço pela linguagem imagética. “Tudo se passava como se fosse parte do texto escrito; aliás,

essa era a função das ilustrações em livros naquela época: descrever e documentar o que foi escrito.”

Jesualdo fala da importância que há na apresentação de um livro para crianças, não só no

formato do livro, mas também na riqueza dos tipos utilizados para impressão, encadernação, atrativos

agradáveis. Ele afirma de maneira concludente que uma literatura para crianças com pretensão a

alcançar sua finalidade completamente não pode estar desvinculada de sua feição material, e

especialmente a ilustração, pois “decoração, cor e jogo de formas” são elementos que não podem ser

menosprezados, ao contrário, devem ser preocupação do autor, bem como dos editores (JESUALDO,

1978, p. 201). Afinal,

A criança compreende, melhor do que qualquer outra linguagem, a das belas

estampas, e estas, coloridas, sem necessidade sequer da presença da palavra, devem

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ser o seu primeiro livro de leitura. Nada há que se marque tão profundamente na

alma da criança como as imagens gráficas. Contam-se por centenas os testemunhos

da perdurabilidade das lembranças gravadas mediante esse recurso técnico.

(JESUALDO, 1978, p. 202)

Neste sentido a produção editorial tem buscado um equilíbrio entre as diversas linguagens

atuais, das áreas artísticas e tecnológicas, o que gerou um salto qualitativo em relação às primeiras

obras voltadas para o público infantil. O livro de imagens, muitas vezes, é visto pelo adulto como

produto reservado para crianças que não têm o domínio da linguagem verbal. No entanto é preciso

que haja uma consciência de que essa linguagem oferece muitas possibilidades de leitura, conforme

já foi dito, de acordo com as referências culturais e emocionais de cada leitor, pois a imagem é uma

linguagem que estimula apreensões tanto pela forma quanto pela cor.

O livro de imagem não é um mero livrinho para crianças que não sabem ler. Segundo

a experiência de vida de cada um e as perguntas que cada leitor faz às imagens, ela

pode se tornar o ponto de partida de muitas leituras, que podem significar um

alargamento do campo da consciência: de nós mesmos, de nosso medo, de nossa

cultura e do entrelaçamento da nossa com outras culturas, no tempo e no espaço.

(CAMARGO, 1995, p. 79)

Luiz Camargo aponta algumas funções da ilustração naqueles livros com texto e ilustração e

no livro de imagem, no qual a ilustração é a única linguagem, baseadas nos estudos das funções de

linguagem de Roman Jakobson (1970). São elas: descritiva (é a que predomina), narrativa, simbólica

(representa uma ideia), expressiva ou ética, estética, lúdica ou metalinguística, funções que serão

estudadas mais adiante, no momento da análise da obra (1995, p. 33-40). Neste sentido, o livro

ilustrado poderá colaborar para a construção de novos conceitos.

Ricardo Azevedo (1993, p. 02) problematiza algumas questões essenciais para nossa análise,

como a fidelidade ao texto por parte do ilustrador, que, muitas vezes tem sua autoria cerceada. O

autor ressalta que o termo “fiel ao texto” denota uma interpretação única e exata, o que implicaria em

uma ilustração meramente descritiva. Será que esta objetividade é mesmo possível? De acordo com

o autor, a ilustração de uma árvore para um livro didático de botânica necessita ser objetiva. O

ilustrador é um artista que dá sua visão, interpretação visual a determinado texto, o que não é pouco,

nem simples. O escritor defende que todo ilustrador interfere no texto, isto ocorre porque as palavras

tendem a ser imprecisas, são abstratas, dando condições para que sejam variadas as leituras na medida

em que desperta, em diferentes leitores, diferentes sensações.

Segundo Azevedo, o melhor caminho para um ilustrador diante do texto só pode ser

determinado de acordo com alguma premissa, pois ao modificar a expectativa, outras ideias surgem.

Com efeito, nos textos didáticos nos quais há necessidade de ilustrar algo novo para o leitor, uma

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informação referencial, concreta, clara, objetiva, há que utilizar uma linguagem neutra para diminuir

as margens de interpretações. Já na obra literária, há outra expectativa, e outras premissas, neste caso,

[...] O comprometimento é com a ficção e com a poesia. O texto pode se dar ao luxo

de ser ambíguo, emocional, introspectivo, subjetivo e arbitrário. Pode ser simbólico

ou mágico. Se quiser, cria palavras. Se quiser, inventa um mundo inexistente ou

aborda o impossível. (AZEVEDO, 1993, p. 03)

Desta forma o ilustrador precisa definir, tomar partido, optar dentro de um mundo de

possibilidades geradas por cenas abstratas. Essa é a dificuldade e a maravilha do ilustrador de ficção

e poesia, afirma Azevedo (1993, p. 04), de maneira que ele revela sua “criatividade, sua cultura, sua

técnica, seu corpo de idéias e sua visão de mundo” ao construir uma visão sobre o texto, e oferece ao

leitor o seu próprio imaginário.

Há uma polêmica que se instaura nas ilustrações de livros para crianças, posto que muitas

pessoas pensam que devem ser literais, obedientes em maior grau ao texto que acompanha, revela

Azevedo (1993). Quanto aos livros didáticos, diz-se que as ilustrações devem primar pela

objetividade e tomar as coisas em seu sentido literal. Imagina-se que a sincronia rígida, mecânica e

lógica entre texto e imagem seja imprescindível, mas o autor discorda e defende que as crianças que

já dominaram a leitura têm acesso a sistemas narrativos complexos antes de serem alfabetizadas.

Estes leitores esperam imagens enriquecedoras, surpreendentes, que ampliem o montante de

significações do livro como um todo.

2.2. A ilustração de Vizinho, Vizinha

Pelo exposto até aqui, se formos categorizar a obra Vizinho, Vizinha (2002) fazendo uso da

divisão proposta por Azevedo (2004, p. 02-04), com base na multiplicidade de livros ilustrados e na

condição plurissignificativa dos textos literários, abertos a diferentes leituras, ela pode ser

considerada um “livro misto”: texto escrito e imagem estão colocados em pé de igualdade e atuam de

forma dialógica, não sendo possível sua dissociação. As demais categorias são: “livros-textos” (sem

imagens, salvo a capa, geralmente dirigidos ao público adulto); “livros texto-imagem” (texto

acompanhado de imagens, que são secundárias; “livros imagem-texto” (imagens vem acompanhadas

de texto escrito, que são secundários; “livros imagem” (sem texto escrito, enredo criado e construído

exclusivamente através de imagens. O autor admite que se trata de uma proposta redutora e

esquemática, pois as fronteiras entre os grupos de livros nem sempre são claras e podem não existir

outras vezes. Todavia, levar em conta a existência de diferentes graus de relação entre texto visual e

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texto verbal pode contribuir para uma compreensão melhor do complexo mundo que é o livro

ilustrado.

Há um grau maior de complexidade quando a ilustração de uma mesma obra é feita por mais

de um autor, o que indica diferentes pontos de vista e necessidade de transposição de códigos

linguísticos com maior cuidado. Vizinho, Vizinha (2002) é uma obra produzida por três autores, sendo

que Roger Mello é o autor do texto e também ilustrador do “corredor”, Mariana Massarani ilustra o

“Vizinho”, e Graça Lima, a “Vizinha”.

É perceptível na obra que os estilos não se misturam. Sobre isso, Graça Lima comenta em

entrevista, disponível no apêndice, que Mariana Massarani, Roger Mello e ela mantêm estreito

contato e têm o hábito de “conversar muito sobre arte, literatura, teatro, cinema, enfim, todas as

linguagens em artes, e isso facilita muito um entrosamento de realizar um trabalho que respeita o

traço e a visão de cada um” [LIMA, 2014. Informação verbal]. Lima diz que a ideia dessa produção foi

de Roger Mello.

Segundo Azevedo (1998, p. 03), é preciso considerar os três sistemas narrativos entrelaçados,

o texto escrito, as ilustrações e o projeto gráfico, sendo que em alguns livros estes sistemas são

“autoconscientes”, e buscam associar-se. Embora a ilustração da obra em estudo tenha sido criada de

modo separado, há uma unidade no conjunto, conforme veremos na análise. Lima revela que foi feita

uma “boneca para orientação” e cada um desenvolveu o trabalho individualmente, juntando tudo

depois. As personagens, criadas textualmente por Roger Mello, tiveram o visual dado com liberdade

por cada um. A montagem foi feita pela designer Helen Nakao8, capista da Cia das Letras. Lima faz

questão de ressaltar que há no grupo “uma identificação e respeito de trabalho muito grande que flui

sem palavras e mais com ações e no caso, fomos definindo sem combinar nada” [LIMA, 2014.

Informação verbal].

Com o trabalho desenvolvido desta maneira, em que cada ilustrador tem seu espaço de criação

específico, percebemos um perfil diferenciado para cada personagem e ambiente. O estilo das

ilustrações é o conjunto de determinados traços formais próprios de um autor ou grupo, que

apresentam uma determinada visão de mundo, pois expressam valores desse grupo (CAMARGO,

1995).

Sobre a visão e os valores, Graça Lima explica que o pensamento do grupo esteve sempre no

próprio livro e na variedade de linguagens que ele poderia render, como texto, imagem e projeto

8 Graça Lima definiu-a como uma “designer incrível”. Em outra ocasião, que não a da entrevista, em conversa por meio de uma rede

social, Graça Lima se refere à Nakao como “a melhor profissional do livro do mundo”. Nakao é formada em editoração pela Escola de

Comunicação e Artes (ECA-USP) e pós-graduada em design gráfico (Senac). Desenvolve projetos gráficos de capa e miolo, bem como

supervisiona a produção de livros infantis, juvenis e quadrinhos na editora Companhia das Letras, desde 1998. Começou a atuar no

mercado editorial em 1994 e, antes disso, desenvolvia projetos de divulgação para exposições no Museu de Arte Contemporânea MAC-

USP (1993-1994). A boa relação com Helen Nakao abriu espaço para a interação das duas linguagens artísticas.

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gráfico. Ela teoriza que “o ilustrador deve ter um universo de muitas possibilidades em seu repertório.

Deve estar se alimentando de conteúdos artísticos o tempo todo para poder interpretar de maneira

criativa e individualizada cada história”. É nesse senso que elogia Roger Mello, ao falar que ele tem

“um cérebro que parece uma esponja, absorve tudo que está aí pra ser transformado em arte”.

A história se ambienta em uma cidade e mostra, de entrada, o distanciamento entre as pessoas.

Nem mesmo os vizinhos se conhecem. Este é um paradoxo para quem teve uma infância, diz

nostalgicamente Graça Lima, “num bairro residencial na zona norte do Rio”, “em ruas arborizadas e

muitas casas”, com “famílias, praça, festas de bairro e muita solidariedade e carinho”. Os brinquedos

foram poucos, “porque os brinquedos eram os amigos e brincar era na rua”. Criar um espaço “de rua”

no interior do prédio será uma solução dada ao enredo de Vizinho, Vizinha, conforme veremos adiante.

Um outro ponto importante que ela levanta tem referência com o baixo consumo de livros. Ela

desenvolveu o hábito de leitura estimulada pela mãe, que lia para os filhos todos os dias. “Ganhar

livro era uma honra, pois não havia essa farra de consumo e os livros além de caros eram poucos.

Agora as crianças ficam aterrorizadas em dar ou ganhar livros, pois isso não faz parte do status do

grupo”. A personagem “Vizinha”, que ela criou, de algum modo homenageia o livro: sua casa está

preenchida de livros das mais variadas áreas nos vários cômodos, livros grandes, pequenos, de todas

as cores; livros dos quais saem personagens, monstros e fadas, entre outras situações.

Roger Mello, brasiliense, mas residente no Rio de Janeiro há muitos anos, é artista plástico,

formado em Desenho Industrial e Programação Visual pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro

(UERJ). No início de sua carreira trabalhou ao lado de Ziraldo dedicando-se ao desenho animado,

trabalhou também no SENAC, na UERJ e no grupo Animation, com a equipe do National Film Board,

do Canadá. Na televisão, fez as vinhetas de encerramento da novela Vamp, para a TV Globo, além de

diversas participações na TV Educativa do Rio de Janeiro, nos programas Canta Conto e Um salto

para o futuro. Tem conquistado diversos prêmios por seus trabalhos como ilustrador, autor de livros

de imagem e livros para criança, e também como dramaturgo. Em 2002, Meninos do Mangue foi o

grande destaque nos concursos literários, recebendo, da Câmara Brasileira do Livro, dois prêmios

Jabuti (de melhor ilustração e de melhor livro juvenil) e, da Fondation Espace Enfants (FEE), Suiça,

o Grande Prêmio Internacional. Ilustrou aproximadamente 100 livros para outros autores, dentre eles,

22 livros escritos por ele mesmo. Foi o primeiro brasileiro a ganhar o prêmio Hans Christian

Andersen9 na categoria ilustração, o mais importante prêmio do mundo dedicado à literatura para o

9 O prêmio Hans Christian Andersen acontece desde 1956, mas desde 1966 premia-se um escritor e também um ilustrador,

e é organizado pelo IBBY, International Boards of Books for Young People, organismo internacional mais respeitado

mundialmente na produção de qualidade de livros infantis e juvenis. É concedido a cada dois anos e é a terceira vez que

o Brasil é contemplado. Em 1982 foi dado para a escritora Lygia Bojunga e, em 2000, para Ana Maria Machado. Na lista

geral, nomes como Astrid Lindgren, Gianni Rodari e Maurice Sendak. Em 2014 foi a japonesa Nahoko Uehashi que ficou

com o prêmio para escritor. Ela é’ conhecida pela coleção Moribito, lançada aqui pela WMF Martins Fontes.

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público em formação, sendo esta sua terceira indicação. A premiação foi anunciada na Feira do Livro

de Bolonha, Itália, em 24 de março de 2014, o prêmio foi entregue em 10 de setembro de 2014 durante

o Congresso do International Board on Books for Young People (IBBY), na Cidade do México,

momento em que o júri declarou que as ilustrações do artista são inovadoras e inclusivas e incorporam

imagens que promovem a tolerância e o respeito pelas culturas e tradições do mundo. Roger Mello

começou a colher os frutos da premiação com uma exposição no Chihiro Art Museum, dedicado à

ilustração, nas Ilhas Nami, um pequeno paraíso cultural perto de Seul, na Coreia do Sul, Japão10. Esta

exposição já esteve na Internationale Jugend bibliothek, no Castelo de Blutenburg, em Munique

(Alemanha), com curadoria da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), e apresenta

originais de livros e objetos pessoais do artista. Dentre os livros, está inclusa a obra Vizinho, Vizinha,

em tamanho real, retratando os apartamentos com suas personagens dentro, para quem quiser entrar

na história e na vida dos dois.

Mello afirma que se identifica com as ideias da instituição, pela busca pela paz no mundo por

meio da ficção, e é nesta representação da literatura que o autor acredita. Ele explica que o

reconhecimento do mérito da obra promove um novo olhar do mundo para o Brasil, para o fato de

que o nosso país também produz artes visuais e narrativas de qualidade. O autor diz sentir-se

representante de uma geração que é fruto de uma história que começou há muito tempo, na primeira

metade do século 20, com grandes ilustradores brasileiros como Calazans Neto11 e Potty Lazzarotto12.

[MELLO, 2014. Informação verbal13]

Em palestra na Coreia, disponível no site Capadura em Cingapura14 (criado junto com Graça

Lima e Mariana Massarani), Roger diz que a palavra também é uma imagem, e não há diferença entre

elas, ambas podem ser desenhadas. Problematiza o fato de nós pararmos de desenhar quando

começamos a dominar as palavras. Para ilustrar o que diz, mostra seu livro João por um fio (2006),

no qual os desenhos também são feitos de palavras. Ele monta seus livros e faz questão de participar

de todo o processo.

Graça Lima, que gentilmente tem mantido contato conosco, é carioca, formada em

Comunicação Visual pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),

fez o Mestrado em Design na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), é

doutoranda e professora na Escola de Belas Artes (EBA) da UFRJ. Há mais de 100 livros publicados

com seus trabalhos. Ganhou vários prêmios, entre eles os da FNLIJ: Prêmio Luis Jardim, Prêmio

10 Ver fotos no Anexo. 11 Ilustrador baiano, fundador da Editora Macunaíma e ilustrador de livros de Jorge Amado 12 Ilustrador e gravador curitibano, fez Grande Sertão: Veredas, Capitães de Areia, entre outros. 13 Entrevista concedida em 31 de março de 2014. Disponível emhttp://esconderijos.com.br/ 14http://capaduraemcingapura.blogspot.com.br/

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Malba Tahan, Prêmio O melhor para o Jovem, entre outros. Foi indicada entre as finalistas para o

prêmio Jabuti muitas vezes e recebeu-o em 82, 84 e 2003 na categoria de ilustração. Fora do Brasil

recebeu quatro vezes a Menção White Ravens, da Biblioteca de Munique, na Alemanha. Alguns de

seus trabalhos já viajaram por outros países e foram publicados em catálogos internacionais, como o

Catálogo de Ilustradores da Feira de Barcelona, na Espanha; o da Feira de Frankfurt, na Alemanha;

o da Feira da Bratslávia e o Catálogo Brazil a bright blend of colours, feito pela FNLIJ para divulgar

o trabalho dos ilustradores brasileiros.

Mariana Medeiros Massarani, ilustradora carioca, já ilustrou mais de cento e cinquenta livros

infantis de diversos autores, além de oito livros que ela mesma escreveu. Trabalhou durante 13 anos

como ilustradora no Jornal do Brasil, criando charges. Ganhou o Prêmio Jabuti de Literatura em 1997

e 2003, na categoria ilustração de livros infantis e juvenis e seu trabalho já foi exposto e incluído em

catálogos e em mostras de ilustração nacionais e internacionais. Gosta de combinar desenhos, pinturas

e colagens em suas ilustrações. Também trabalha com estampas e ilustração digital, por isso seu

trabalho pode ser visto não só em livros, jornais e revistas, mas também em diversos produtos de arte

aplicada, como capas de almofadas. Esta autora têm um traço bem particular, seus desenhos têm

curvas, espirais fantasiosas, e ela sempre traz um toque de magia aos livros que ilustra.

Cada um dos três ilustradores, com a sua maneira de dar contorno às ideias, definem a história

Vizinho, Vizinha. O desenho do “Vizinho”, de Mariana Massarani, não apresenta acabamento exato e

mostra pouca preocupação com texturas e sombras. A mistura de cores é casual, sem detalhamento

de combinações. O cenário no qual ele está colocado não apresenta muitos elementos, se comparado

aos demais. Tais recursos condizem com a personalidade que ele apresenta no enredo, de ser um

personagem mais tranquilo, espontâneo, que deixa a barba por fazer, usa bermuda larga e esportiva,

é um pouco obeso.

Ao contrário, os traços da “Vizinha” e do seu ambiente são mais sofisticados, o que não

significa nenhum juízo de valor. É apresentada com um perfil esguio, com linhas tortuosas que

indicam o seu constante movimento. Percebe-se um estudo minucioso de cores e formas geométricas,

num cenário cuidadosamente projetado com uma infinidade de objetos, móveis, livros etc, que

reforçam o espírito ativo que ela demonstra, de quem acorda cedo para correr, toca clarineta, está

sempre bem arrumada, com visual moderno.

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O corredor, que é humanizado, apresenta nuances de antiguidade e paredes esguias, coloridas,

mas suaves. Mello traz para o corredor um local de passagem aconchegante, com piso desenhado em

círculos, como antigos azulejos portugueses; a escada, ao final do corredor, em caracol, causa uma

impressão de profundidade, tanto para o fundo, quanto na vertical, com os traços alinhados (em

linhas) das paredes. Apresenta uma influência da arquitetura de Antoni Gaudí15, presente na casa de

Batlló, situada na Ilha da Discórdia, em Barcelona.

Lembramos também que Roger Melo cresceu em Brasília, cidade planejada, que ostenta os

15 Famoso arquiteto catalão e figura de ponta do Modernismo catalão, suas obras estão em sua maioria na cidade de

Barcelona. Obra disponível em: http://www.casabatllo.es/en/.

Figura 2. (MELLO, 2002, p. 04, 05)

Figura 3. (MELLO, 2002, p. 04, 05) e escadaria da Casa de Batló.

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projetos de arquitetura modernos de Oscar Niemeyer, repletas de curvas, em época de ditadura militar.

Segundo Mello, as crianças daquele tempo, período de silenciamento da ditatura, tiveram, por esse

motivo, que ir aprendendo a ler as imagens, as suas entrelinhas.

Esta história se desenvolve dentro dos apartamentos da “Vizinha”, do “Vizinho” e do corredor

que os separa, ou melhor, que os aparta. De acordo com o dicionário Houaiss (HOUAISS E VILLAR,

ano, p. 247) apartamento é: 1. Apartação (ato ou efeito); 2. Separação, afastamento de pessoas que

vivem juntas ou costumam estar sempre juntas; divórcio; 4. Isolamento (de alguém); retiro, solidão;

6. Cerca ou parede divisória; muro. Verificamos também a raiz da palavra, “apartar”, que traz ainda

dois outros significados diferentes: 1. Separa-se ou separar o que está unido por natureza, por afeição

ou por circunstância; afastar-se, desunir-se; 4. Servir de instrumento de separação entre; separar.

Por serem apartados um do outro, os vizinhos e os apartamentos, a sequência das cenas pode

ser observada, via de regra, em duas páginas, cada um ocupa o seu lugar, em oposição ao outro,

entretanto, as páginas só podem ser compreendidas se estiverem abertas, e assim transformam-se em

apenas uma, pois, as imagens contidas em ambas completam a situação que as envolve.

A “guarda” do livro, termo de Graça Lima, ou “folhas de guarda”, por Edna Lucia Cunha

Lima (2011, p. 31), são páginas que unem a capa dura ao corpo do livro, protegendo-o. Quando são

folhas decoradas com temas da obra, como é o caso do livro em análise, elas devem ser iguais antes

e depois do texto impresso.

Graça Lima revela que quem ilustrou a cidade foi Massarani. “O traço é dela”, afirma. A

autora defende a importância da “guarda” do livro como “preâmbulo da história, uma pausa, uma

cortina de teatro, um primeiro contato silencioso”. Essa é uma história urbana, onde há muito é

comum morar em prédio e não conhecer o vizinho. “Só dar bom dia e boa tarde e morrer de

curiosidade sobre o outro”, por isto os autores resolveram utilizar este espaço para ambientar o leitor

na própria cidade onde acontece a história [LIMA. 2014. Informação verbal].

Notamos que, para além de ser uma simples cidade, nas páginas da guarda temos indicativos

de que a história se passa em uma metrópole urbana com muitos prédios, morros e favelas. Alguns

detalhes lembram o Rio de Janeiro, outros, a grande São Paulo. Contudo, sendo ficção, nós a

consideraremos uma metrópole brasileira.

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A imagem da guarda do livro, é uma introdução para a história, todavia aparece como um

contraste da própria obra, haja vista que esta é extremamente colorida, enquanto a cidade está

ilustrada em preto e branco. Vemos que a metrópole é exatamente o oposto da vida tranquila, além de

ser o ambiente que determina o individualismo dos seres humanos, haja vista que as individualidades

desaparecem, pois é a cidade que torna todos os seres humanos em indivíduos, números, mercadorias,

consumidores, principalmente em se tratando da nossa época, contemporânea. Há dois personagens

adultos que conduzem a história.

Os elementos que a obra fornece aos leitores não mostram rotinas de trabalho, mas que eles

têm suas próprias regras e horários. A individualidade dos ambientes e a particularidade das

personagens são marcadas tanto pelo texto verbal quanto pelo não verbal. A vida dos protagonistas

se organiza de modo isolado e eles não têm com quem partilhar suas vivências, suas artes, nem mesmo

a "máquina de fazer chover". Desta maneira vemos o contraste entre a guarda do livro e o interior,

pois dentro de seus apartamentos os vizinhos podem manter sua individualidade, suas criatividades,

vontades, seu próprio eu.

Aparentemente, criaram um mundo para si com níveis diferentes de consciência: a Vizinha

apresenta maior articulação com o cotidiano, pois caminha todos os dias, faz compras, apresenta

repertório variado de leitura – uma ocasião sobe as escadas lendo um livro de química, lê muito,

mostra erudição e gosto pela arte, o que se vê, por exemplo, por objetos como o quadro do Nascimento

de Vênus, de Sandro Botticelli (MELLO, 2002, p. 13), em sua sala de estar, ver anexo. Por outro lado,

temos o Vizinho, que constrói "cidades de papel" (MELLO, 2002, p. 16), e é desenhado com traços

Figura 4. Folha de guarda do livro.

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pontilhados, o mesmo traço com que ele desenha, que demonstram um indivíduo mais imerso na

imaginação, nas histórias em quadrinhos que ele lê, perdendo a noção do tempo, enquanto rega flores

vestido com seu escafandro (MELLO, 2002, p. 10). Vemos que ele vivencia uma realidade própria de

sua imaginação: mesmo que conheça o mundo todo, o Vizinho transfigura suas viagens em momentos

de fantasia dentro do apartamento.

Figura 5. (MELLO, 2002, p. 18, 19)

Há um terceiro personagem – o responsável pela limpeza do prédio – que compõe um núcleo

narrativo próprio. Sua história evolui à parte das demais, e confere uma certa dinâmica, para o leitor,

Figura 6. (MELLO, 2002, p. 10, 11)

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que o retira da monótona rotina do Vizinho e da Vizinha. De algum modo ele se mistura com o

corredor pela mesma técnica de preenchimento usada na parede do corredor em seu uniforme – traços

coloridos na vertical, na camisa, e, na calça, tais traços são atravessados por linhas horizontais. Sua

atuação se dá em duas sequências de ações: na primeira, logo no início da história, vemo-lo pelas

pernas, carregando um balde, descendo o corredor; após, de joelhos e cotovelo direito no chão,

esfregando-o com a mão esquerda, tendo ao seu redor o balde, uma vassoura e um recipiente com

líquido de limpeza; folgado, tranquilo, não se sabe se após concluído o serviço, deita-se no chão com

os braços cruzados atrás do pescoço para ouvir a execução de uma música pela Vizinha. A

representação material dos sons da música que estavam se propagando é impressa em notas musicais

no tapete colocado na porta da casa dela (MELLO, 2002, p. 11). Nas outras páginas essas notas não

aparecem. É interessante observar que são muitos os tapetes da Vizinha, colocados de acordo com

suas ações e sentimentos, havendo, inclusive, cenas em que não há tapetes na porta, por exemplo,

quando um cômodo da casa aparece sem ela na ilustração.

Na segunda sequência, já ao final da história, o funcionário aparece dançando, na ponta do pé,

fazendo evoluções com a vassoura, sob um cenário cujas paredes têm menos cores. Projeta-se de seu

corpo e da vassoura uma sombra, apresentado misteriosamente pela expressão “O Silêncio ensaiou

meia dúzia de passos de dança” (MELLO, 2002, p 29). Nesta cena, os vizinhos, cada qual em seu

apartamento, estão em posição de reflexão, de lembrança um do outro. O tapete aparece composto de

triângulos retângulos coloridos, que podem ser observados aos pares, compondo retângulos. São

índices de prolepse, de antecipação de uma possível união amorosa entre eles.

Figura 7. (MELLO, 2002, p. 28, 29)

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Segundo Fayga Ostrower (1983, p. 30), “o espaço constitui o único mediador que temos entre

nossa experiência subjetiva e conscientização dessa experiência”. Por isto a perspectiva de onde

observamos é importante, e a ilustração também é, ela concretiza o que está subjetivo. As ilustrações

se colocam de tal modo que o leitor pode visualizar simultaneamente toda a rotina dos dois

personagens, de forma onisciente.

No próximo capítulo aprofundaremos a análise da obra de forma direcionada a uma temática

fundamental da obra: o ser humano em sua individualidade e individualismo e o pertencimento

inerente às interações sociais.

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CAPÍTULO 3. EM TEXTO E IMAGEM: INDIVIDUALISMO E INDIVIDUALIDADE

[...]

(estará equipado?)

A dificílima dangerosíssima viagem

De si a si mesmo:

Pôr o pé no chão

Do seu coração

Experimentar

Colonizar

Civilizar

Humanizar

O homem

Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas

A perene, insuspeitada alegria

De con-viver.

(ANDRADE, 1978, p. 20-22)

Neste capítulo desenvolveremos um estudo da obra Vizinho, Vizinha (2002), considerando a

sua natureza de interface artística, literatura e ilustração, sobre um dos principais temas que os

recursos nela empregados expressam – o individualismo, no contexto sociocultural em que foi

produzida.

Vizinho, Vizinha é uma narrativa que abarca assuntos atuais, como as muitas informações a

que cada um de nós está exposto, o acúmulo de objetos sem utilidade pelo excesso de consumo, a

diminuição do tempo das relações presenciais e aumento das virtuais; o desejo das pessoas

construírem suas vidas sozinhas, como nos apartamentos, uma individualidade que cresce e afasta as

pessoas do convívio social. Os autores criticam essa ordem atual estabelecida na sociedade,

confrontando-a, subliminarmente, com a valorização da interação entre indivíduos.

3.1. O individualismo e as individualidades: solidão e semelhanças

O silêncio ensaiou meia dúzia de passos de dança.

(MELLO, 2002, p. 29)

A leitura de Vizinho, Vizinha é rápida e convidativa. O texto é praticamente monofrástico, com

frases curtas, condensadas. Tais frases podem ser pensadas como versos, como poesia, “por seu poder

evocativo superior”, “por seu poder de criar imagens” (JESUALDO, 1978, p. 105 e 106). Nesse

sentido, apresenta um ritmo externo, da ação e dos pensamentos dos personagens, e interno,

estrutural: “Ele inventou uma máquina de fazer chover, e a vizinha não sabe”; “Ela alimenta um

rinoceronte debaixo da pia, e o vizinho nem desconfia” (MELLO, 2002, 18,19). São versos compostos

por orações coordenadas, metafóricas, que trazem o fantástico como elemento de composição, e uma

instigação ao leitor – confidencia-lhe o narrador que um não tem conhecimento do que o outro faz.

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No contexto desse desconhecimento social, a poesia se coloca como uma “porta para o sensível”

(GÓES, 2010, p. 243), um canal para a saída dos automatismos dos sentimentos cotidianos, da língua,

preenchendo os vazios existenciais.

As personagens são paradoxais em sua existência, é o que vemos nas similitudes e oposições

demarcadas nos informes que vamos tendo de seu ser e fazer. Eles preenchem seu espaço e tempo

com artes, utensílios, animais, discos, livros, que recorrem às memórias, à imaginação, em um mundo

que criaram para si, em seus apartamentos.

As similitudes podem ser apontadas nos versos acima, centrados no fazer (“inventou”,

“alimenta”) e no não saber (“não sabe”, “nem desconfia”). Em outros versos: “O vizinho coleciona

discos da Velha Guarda”, “A vizinha guarda coisas velhas que depois não encontra” (MELLO, 2002,

p. 06, 07). Os verbos “coleciona” e “guarda”, e o trocadilho “Velha Guarda” e “guarda coisas velhas”

demonstram semanticamente uma aproximação entre as personagens. Este tipo de estrutura se repete

em quase todo a obra – a mesma situação é colocada para ambos os vizinhos, mas cada um na sua

particularidade, cada um na sua própria página. A mudança na configuração frasal ocorrerá quando

duas crianças entrarem na história, conforme será visto, quando então os versos vão se misturar

significativamente.

No exemplo dado, ambos colecionam coisas, o Vizinho e seus vinis, e a vizinha com seus

muitos objetos. Os discos demonstram a ligação do Vizinho com a música, tanto em ouvir, como

cantar, pois na ilustração vemos, consoante Celia Abicalil Belmiro (2010, p. 406, 407), que ele está

cantando de maneira performática, em um ambiente propício, íntimo, ainda de pijamas, e há um

quadro ao fundo retratando um violeiro. A Vizinha, neste momento, está praticamente misturada com

as coisas que ela tirou do lugar em busca de algo que não encontra. Na ilustração vemos uma

variedade de objetos espalhados pela casa, em posição contrária à convencional: um chapéu dentro

do forno, vaso de plantas e xícara com pires no chão, almofada na cozinha. Há ainda: manequim com

plumas; recipiente parecido com a lâmpada mágica do “gênio da lâmpada”; regador; carrinho de

brinquedo; pá; cesta de vime; caixa decorada com guarda-chuva dentro; balde de alumínio; jornais;

uma joaninha presa em uma haste; mais caixas decoradas (sempre com coisas dentro); jarra; papéis;

instrumentos de costura; vinis; livros; pintura; gavetas fora do lugar; instrumentos para pintura –

tesoura, aquarela; máquina fotográfica antiga e sapo. A Vizinha aparece levantando o tapete,

demonstrando que não há mais onde procurar (MELLO, 2002, p. 06, 07).

Neste momento também fica claro que, embora os dois colecionem/guardem objetos, tenham

esta ligação com coisas antigas, o Vizinho é sistemático e organizado, consoante o que socialmente

se valoriza como padrão de organização – a determinação do lugar onde os objetos devem ser

colocados. A Vizinha, ao contrário, perde-se em meio às coisas que tem, revelando um modo peculiar

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de organização – e aqui vemos uma crítica ao socialmente determinado: quem pode dizer o que é

certo e o que é errado em termos de organização do espaço? Na porta de sua casa há um tapete com

escrita eufórica (contrária ao que poderia ser considerado como disfórico na representação do interior

do apartamento): “Doce lar”. Vimos anteriormente a simbologia da ilustração dos tapetes. Neste caso,

temos um conceito legitimado do que a personagem entende como “lar”.

A obra apresenta tessitura detalhada, de tal forma que texto e imagens se complementam, não

se podendo dizer que um seja principal e o outro, secundário. Ostrower (1983, p. 30) diz que, uma

vez dada uma imagem às palavras, constrói-se um sentido que se fixa na mente do leitor. É por este

ângulo que observamos que a complementaridade entre texto e imagens na obra não é dada no sentido

exato do termo, pois as informações do plano verbal oram diferem, ora só dizem de um aspecto, ora

ampliam aquelas do plano visual. Juntas, ampliam muito as possibilidades de leitura. De acordo com

Ricardo Azevedo (1998, p. 07), há situações, inclusive, que não devem ser ilustradas, para permitir a

construção pela imaginação do leitor. Isto ocorre porque cada leitor cria determinadas relações frente

ao texto literário, um sentimento, em decorrência de uma construção simbólica, por meio da ficção e

linguagem poética, que só pode gerar uma ilustração marcada por subjetividades, plurissignificação,

enfoque poético e linguagem metafórica.

Belmiro (2010, p. 406, 407) analisou brevemente esta obra pelo aspecto do estilo, no intuito

de demonstrar a “multimodalidade” dos livros que estão acessíveis aos professores na escola e

contribuir para a formação deles. A autora ressalta que, ainda que haja significados subjacentes nas

palavras e nas imagens, é na contribuição mútua entre as duas linguagens que está a ligação

Figura 8. (MELLO, 2002, p. 06, 07)

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significativa da existência dos personagens.

Uma dominante na proposta do livro é a complementaridade permanente entre a

imagem e o texto em forma de legenda; muito do que dizem as imagens não tem

paralelo no texto escrito, e vice- versa. Todavia, outra proposta igualmente relevante

é o diálogo entre as imagens, como que demarcando, pela descrição constante, as

personagens, seus modos de ser, seus atributos físicos e psicológicos, enfim, uma

composição visual que ultrapassa a transcrição denotativa do texto verbal e amplia

as conotações e implicações assumidas pela plasticidade das imagens. (BELMIRO,

2010, p. 406)

A ilustração é imprescindível para a compreensão plena da obra, de acordo com Ricardo

Azevedo (1998, p. 03), ilustrar é interpretar, por isto todas as atitudes do ilustrador vão “[...] alterar,

acrescentar informações e interferir na leitura e no significado do texto”.

Por exemplo, na página 04, o texto verbal “A vizinha do 102 já voltou da maratona”, indica

que ela havia saído para correr e retornou ao apartamento, mas a ilustração mostra a Vizinha tomando

banho, o que já pressupõe um percurso narrativo, pois, se ela voltou de uma maratona, certamente irá

direto para o banho. É desse modo que o leitor conhece a Vizinha, personagem ativa, que acorda, sai

para correr. Assim, enquanto o Vizinho acaba de acordar e ainda toma lentamente seu café, vendo

gravuras de bichos, ela já está saiu, voltou e está terminando o banho.

Quanto às cores, para Farina (1990, p. 23), elas proporcionam uma sensação visual que é

espiritual, podendo gerar sentimentos profundos. Os autores de Vizinho, Vizinha optaram por utilizar

duas cores de base no livro, cores que percorrem as páginas, como uma legenda: rosa, para o Vizinho,

e amarelo, para a Vizinha.

Figura 9. (MELLO, 2002, p. 04, 05)

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Israel Pedrosa (2010, p. 20) explica que a cor é a junção de sensação com estímulo, pois os

estímulos causam as sensações cromáticas, por isto a luz é determinante para o aparecimento da cor,

e sua melhor expressão ocorre diante da luz solar. Portanto, pode existir uma variação nas cores, de

acordo com a iluminação existente.

A capa de Vizinho, Vizinha se compõe quase toda em amarelo (céu, prédios da direita e

esquerda), ao centro, um prédio rosa. Esse tom de rosa, mais claro, indica um local alegre, rosa da

infância.

Folheando a obra, primeiramente vemos duas páginas com fundo rosa pink, um tom mais

forte que perdurará por toda a obra, sendo que a página da direita é a folha de rosto. As duas páginas

seguintes estão em amarelo. Em uma delas há o texto verbal. Há, então, uma espécie de dialética de

cores.

Para Israel Pedrosa, é possível perceber a simbologia, sensualidade e mobilidade das cores.

O amarelo é cor primária, primitiva, quente, é a mais clara das cores, aproximando-se do branco; traz

em si um caráter contraditório – símbolo da discórdia, pois remete-nos ao sol, aos deuses em seus

desejos insaciáveis e buscas, ao ouro, ao fruto maduro. Também pode remeter ao desespero por ser

intenso, ofuscante. Tem característica expansiva, parecendo ser sempre maior, transbordando os

limites; demonstra calor, energia, claridade, impaciência, além de sabedoria, virtude e constância

(PEDROSA, 2010, p. 121).

Figura 10. (MELLO, 2002, p. 02, 03)

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A frase “Quem passa pela rua do Desassossego, número 38, nem percebe, mas...”, aparece

como uma apresentação da história, mostrando aos leitores o ambiente em que a narrativa se

desenrolará. Notamos que a página, totalmente iluminada com a cor amarela, dialoga com o nome da

rua em questão, “Rua do Desassossego”, isto pois a cor amarela, cor forte, colocada em abundância,

tomando as duas páginas, causa uma sensação de desconforto por sua claridade ofuscante, a ponto de

parecer que se espalhará para fora das páginas, sensação que condiz com ausência de paz, de

tranquilidade, de sossego. A palavra “desassossego” aparece para demonstrar que há muita energia

em um só local, energia em expansão, que diz da criatividade, do intelecto, das memórias, muitas

vivências que deverão ser partilhadas e estão guardadas em forma de mosaico - o modo como se

constituem os apartamentos, sobretudo o da Vizinha, abarrotado de móveis e inúmeros objetos

guardados, e até mesmo escondidos “debaixo da pia”, como o rinoceronte criado por ela (MELLO,

2002, p. 19). Como afirmou Góes (2010, p. 37 e 41), no texto para o público em formação, a função

da literatura que deve predominar é a “estético-formativa”, sendo que é a subjetividade, a emoção, o

elemento de ligação entre as palavras e as imagens, o que notamos desde o início desta obra.

É interessante lembrar que a questão do “desassossego” é tomada por importantes autores

da literatura, como Fernando Pessoa, que escreveu o Livro do desassossego (2006). Por meio do

heterônimo Bernardo Soares, ele faz questionamentos acerca da vida, do sentido da vida, da solidão

e do individualismo. Ele fala também sobre o amarelo, sensação calorífica, que envolve as pessoas e

lhes tira o conforto.

Invejo a todas as pessoas o não serem eu. Como de todos os impossíveis, esse sempre

me pareceu o maior de todos, foi o que mais se constituiu minha ânsia quotidiana, o

meu desespero de todas as horas tristes. Uma rajada baça de sol turvo queimou nos

meus olhos a sensação física de olhar. Um amarelo de calor estagnou no verde preto

das árvores. O torpor. (PESSOA, 2006, p. 38)

Egocêntrico, Soares mostra o seu desespero nas horas tristes, por não encontrar alguém que

seja como ele. Fala sobre o momento em que percebe claramente sua própria existência, como se

antes estivesse cego, e agora pudesse ver. “É tão difícil descrever o que se sente quando se sente que

realmente se existe, e que a alma é uma entidade real, que não sei quais são as palavras humanas com

que possa defini-lo.” (PESSOA, 2006, p. 39). Diz que essa nova percepção é como acordar de um

sonho, pois “todos dormem”. Com esta metáfora, o autor revela que a sociedade não tem consciência

sequer de ter uma consciência. O único sentido da vida é dormir, dormir acordado, resignado. Talvez

seja este um aspecto do ser humano contemporâneo. Dormência registrada na guarda do livro, vista

no capítulo anterior, no qual a cidade é retratada em preto e branco, espaço onde somos todos

igualados, onde é necessário “dormir” para sobreviver à vida materializada, consumista, desenfreada,

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desmotivada de sentidos plenos da alma humana, mas respaldada nas necessidades forjadas pelo

sistema capitalista.

Nesta obra, Pessoa (2006, p. 312) escreve também que “a rua é um livro” e que palavras não

mostram, mas deixam transparecer. Provavelmente a rua a que ele se refere seja o próprio Livro do

desassossego (2006), um livro que é também local de percorrer, atravessar sensações, sentimentos e

reflexões acerca dos seres humanos. Nas mãos de Roger Mello, volta a ser rua, Livro-rua, “rua do

Desassossego”, em tom de amarelo, revelando-nos, por um lado, o “torpor” a que se referiu Pessoa,

um “sentimento de mal-estar caracterizado pela diminuição da sensibilidade e do movimento”,

“indiferença ou apatia moral” (HOUAISS, VILLAR, 2004, p. 2739), estado turvo de quem não vê ao

seu redor, adormecido em sua vida solitária, na mesmice.

Era difícil dizer se o céu tinha nuvens ou antes névoa. Era um torpor baço, aqui e ali

colorido, um acinzentamento imponderavelmente amarelado, salvo onde se

esboroava em cor-de-rosa falso, ou onde estagnava azulescendo, mas aí não se

distinguia se era o céu que se revelava, se era outro azul que o encobria. (PESSOA,

2006, p. 385)

Desconhecimento, isolamento são índices característicos de uma sociedade voltada para a

produção, a fim de aumentar o poder aquisitivo e consumir mais, consumir bens e tecnologias,

enquanto abre mão de um modo de viver mais preocupado com o convívio social, familiar. Zygmunt

Bauman (2010, p. 17), ao tratar de uma pós-modernidade “líquida”, explica que “o desejo de

compensar e redimir a culpa impulsiona o pecador a buscar substitutos compráveis mais caros para

aquilo que não é mais oferecido às pessoas com quem ele convive, e assim a gastar ainda mais horas

longe delas a fim de ganhar mais dinheiro”. Há também uma resistência na criação de vínculos, que

exigem tempo e uma certa responsabilidade. Percebemos nos dias de hoje, nos relacionamentos, por

exemplo, que um compromisso é válido enquanto há satisfação, não havendo investimentos na sua

manutenção para que resista às adversidades, não há disposição para assumir riscos (BAUMAN,

2009). Assim como as relações no mercado, relações de consumo, entre os compradores e

vendedores. Esta lógica também se aplica às comunidades, ou grupos de pertencimento, haja vista

que esses grupos geralmente são conservadores, “atuam para conservar, estabilizar, impor rotinas,

preservar” e ao mesmo tempo em que o indivíduo ganha força, “segurança da aprovação social

autenticado por uma comunidade (ou por comunidades) de referência, a tensão é muito grande, pois

ele passa a pedir renúncia ao indivíduo, escolher um grupo é afastar outro”. Autoconfinar-se, prender-

se a “um conjunto de valores e padrões comportamentais autocontidos, por outro lado, é cada vez

mais visto como signo de inferioridade ou privação sociocultural.” (BAUMAN, 2009, p. 147). Em

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tempos de liberdade, qualquer vínculo aprisiona e pode colocar em prejuízo a individualidade do

homem, o que compreendemos como individualismo.

No entanto, por outro lado, o amarelo de Vizinho, Vizinha se alterna com o pink, inserido

inicialmente na obra, entre a guarda do livro e as primeiras páginas.

As cores pink e a amarelo estão presentes do início ao fim, desde a capa do livro, nas páginas

iniciais – totalmente tomadas por estas cores, e como fundo do texto verbal – espécie de legenda para

as personagens, reiterando que o pink é sempre correspondente ao texto que se refere ao Vizinho e o

amarelo, à Vizinha, demonstrando dialogicamente o que os aproxima e distancia.

Sobre a cor rosa, Pedrosa (2010, p. 118) afirma que é o vermelho dessaturado, ou menos

saturado16, pela mistura com o branco, sendo uma cor eminentemente alegre e juvenil, o que nos

remete ao ser e fazer dos personagens, que vivem em seu próprio mundo sem horários, com muita

fantasia. Devemos lembrar que não é um tom de rosa claro, “bebê”, mas sim uma tonalidade forte,

marcante, hoje conhecida como “pink”, mas antes como “rosa maravilha”, a cor do maravilhoso, que

não remete à “idade cor de rosa”, mas ao mundo maravilhoso, fantástico, que ocorre dentro dos

apartamentos, na vida de cada personagem.

Já que a cor rosa é mistura da cor vermelha com a branca, vejamos as duas cores.

O vermelho é uma cor fundamental, primitiva como o amarelo, com elevado grau de

cromaticidade (vista facilmente). Sobre o fundo branco torna-se escuro. Tem por caráter ser a mais

contraditória das cores (o amarelo tem sido bem contraditório também), é um ponto intermediário

entre o amarelo (quente) e o azul (frio); o vermelho (claro e quente), tem certa analogia com o amarelo

16 A saturação ocorre quando não há mistura de branco ou preto em uma cor, é a cor pura. (FARINA, 1990, p. 87)

Figura 11. (MELLO, 2002, p. 01 – folha de rosto)

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médio – força, ímpeto, decisão, alegria, triunfo; cor do fogo e do sangue (ligada ao princípio da vida);

cor da alma, libido, coração; sinônimo da juventude, saúde, riqueza, amor; harmonia, prosperidade,

e também perigo, acusação, defesa, julgamento, agressividade, erotismo (PEDROSA 2010, p. 118-

120). Quanto ao branco, é uma mistura de todos os tons17 do espectro solar, a soma das cores, sempre

o ponto extremo de qualquer escala: parte (inicial) da luminosidade em direção às trevas, infinita

linha do horizonte, cor das mutações e transições do ser, morte e nascimento ou ressurreição ― “O

branco age sobre nossa alma como o silêncio absoluto [...] É um nada pleno de alegria juvenil ou,

para dizer melhor, um nada antes de todo nascimento, antes de todo começo”, segundo a visão

espiritual de Kandisky (apud PEDROSA, 2010, p. 131). Reino das possibilidades infinitas;

significação simbólica da pureza, inocência, verdade, esperança, felicidade e paz (PEDROSA, 2010,

p. 120-132).

Parece-nos que a familiaridade entre estas três cores é a facilidade que elas têm em transitar

nas diferentes esferas da discordância, tanto para uma gama quanto para outra. O amarelo pode se

assemelhar ao branco, embora ainda seja a cor mais clara e quente. O branco misturado ao vermelho,

para produzir o rosa, delineia o tom jovial e alegre, e por ser mais saturado (havendo uma tonalidade

em maior grau vermelha, em oposição ao branco), o maravilhoso; por este ângulo parece-nos que

estão ligadas à vida em maior grau que à morte, que têm mais energia, harmonia e alegria que

agressividade e trevas. O amarelo talvez possa estar em contraponto com o rosa no intuito de

claridade, luminosidade, espaço, energia.

Vemos que o caráter jovial está presente tanto na cor vermelha, quanto na branca, de maneira

que a alegria juvenil está realmente presente na cor rosa. A ligação desta cor com o Vizinho,

provavelmente se dá porque ele aparenta ser um adulto com tendências de juventude, solteiro, sem

responsabilidades, não tem conhecimento das coisas práticas da vida, como cozinhar por exemplo

(MELLO, 2002, p. 20), e vive pautado em suas criações, criações de um mundo próprio dentro de

seu apartamento, como as cidades de papel que cria baseado nas lembranças das viagens que realiza

pelo mundo (MELLO, 2002, p. 08, 16). Vive imerso em suas próprias fantasias, como quando lê gibis

vestido com um escafandro (MELLO, 2002, p. 10). Segundo Bauman (2009, p. 137) “Há tanto poder

de pretensão num ‘valor absoluto’ escolhido para nos servir de guia de vida e juiz supremo daquilo

que nossa existência tem produzido quanto há obstinação em nossa dedicação, determinação

duradoura em nossa escolha, e persistência em nosso esforço.”

A ligação do Vizinho com o mundo real se dá, além das viagens que faz, com suas relações

com a natureza, pois há um canarinho em sua casa, que voa livre pelos cômodos, já visitou a “serra

17 Tom é o que denominamos de cor, pode ser um matiz (na fusão com o branco), um sombreado (na fusão com o preto)

ou tonalidade (na fusão com o cinza). (FARINA, 1990, p. 87)

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da capivara”, o que nos remete a um espírito aventureiro. O estilo deste personagem é de quem não

se interessa muito pela moda, ou com a maneira de vestir, mas que prefere estar sempre confortável,

de pijamas, descalço, tênis ou com camisetas e shorts largos (MELLO, 2002, p. 06, 12, 20).

O amarelo, cor ligada à Vizinha, tem como referência maior a luminosidade do sol, remete-

nos a um mundo menos fantasioso, o que podemos visualizar na desenvoltura, na energia da Vizinha

que acorda cedo, sai para caminhar, costura, entende de arte – clássica e moderna, lê jornais e revistas

(MELLO, 2002, p. 05, 13, 21). Todavia, ela também apresenta momentos de transcendência, pois

ensaia clarineta dentro do apartamento como se estivesse em um concerto, com vestes de gala e colar

de pérola, alimenta um rinoceronte debaixo da pia, e suas vivências estão sempre pautadas nos livros

que lê o tempo todo (MELLO, 2002, p. 09, 11, 13, 19). Esta personagem está sempre ligada às

correntes da moda, usa roupas clássicas e despojadas, coloridas, quando sai de casa usa vestido curto,

bolsa florida, sapato e óculos escuros (MELLO, 2002, p. 13).

Podemos perceber que os dois têm inclinações para a fantasia, e deleitam-se com as artes, pois

o Vizinho tem uma coleção de discos da Velha Guarda, gosta de ver gravuras de bichos e ler gibi,

além de expandir sua cultura com as viagens que realiza pelos diversos países, enquanto a Vizinha

tem coleções de quadros em seu apartamento, Boticelli, Picasso, Chagall, conhece as correntes

artísticas, como a Pop Art18, está ligada às questões de astrologia e alquimia, pois lê Alchemie &

Mystik, e o Manual do químico moderno, gosta de incenso, tem um tapete pintado à semelhança do

universo.

Conforme dito antes, o espaço é o mediador entre nossa experiência subjetiva e a

conscientização dessa experiência (OSTROWER, 1983), por isto a perspectiva de onde observamos

é importante:

[...] as visões de espaço sempre se referem ao homem, pois nas imagens sempre o

plano frontal de um espaço figurado indica implicitamente a posição do espectador.

Nas correspondências de plano frontal e posição do espectador, toda imagem de

espaço absorve o observador numa imagem refletida. (OSTROWER, 1983, p.85)

As ilustrações se colocam de tal modo que o leitor pode visualizar simultaneamente toda a

rotina dos dois personagens, de forma onisciente, esse é o mistério e a graça em trabalhar com a

página dupla, sempre teremos uma visão ampliada – do todo, e neste caso, uma visão comparada

também. Então só é possível compreender um personagem em comparação com o outro. Se o leitor

é imagem refletida da obra, também identificamos que um vizinho é reflexo do outro, como uma

18 Os artistas utilizavam imagens da sociedade de consumo e da cultura popular, criticavam o modo de vida dos

americanos através das histórias em quadrinhos, propagandas e os objetos produzidos em massa, como os enlatados. Um

ícone muito utilizado era o rosto da Marilyn Monroe, que foi impresso várias vezes com colorações diferentes (ver anexo).

No Brasil o movimento ocorre durante a ditadura militar. Muito utilizada na publicidade.

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imagem no espelho, invertida, porque cada vizinho está em um extremo da página – com as duas

páginas abertas), mas ao fechar o livro, um torna-se a imagem refletida e invertida do outro.

Percebemos que o Vizinho é sistemático e organizado com seus pertences, enquanto a Vizinha

é mais desorganizada, conforme dito anteriormente, de acordo com a visão da sociedade sobre

organização. Percebemos que o Vizinho gosta de criar a partir das suas imaginações, de maneira

manual, artesanal; a Vizinha utiliza materiais industrializados, e/ou sofisticados. Por exemplo, na

página 06 vemos a Vizinha perdida no meio das tantas coisas, artefatos que adquiriu sem necessidade,

acumulando coisas de tal maneira que depois não encontra o que precisa (MELO, 2002, p. 07), o que

nos remete ao consumismo exacerbado, sem necessidade. Já o Vizinho mantém seus discos

organizados na prateleira, utiliza escalas e réguas para construir sua cidade de papel (MELLO, 2002,

p. 06, 16).

Bauman (2009, 16-19, 130,131) ressalta que os mercados lucram com os sentimentos

humanos, com o impulso do auto sacrifício, do amor e da amizade. O mercado consegue transferir o

desejo da felicidade do indivíduo para o desejo de adquirir mercadorias, desejo de consumo, o que se

torna um consumismo (o sufixo “ismo” indica doença, como reumatismo). De acordo com o autor,

para que a compra de mercadorias seja equiparada à felicidade, é necessário que este objetivo nunca

seja alcançado, o que transforma as pessoas em “corredores”, ou maratonistas, como é o caso da

Vizinha, sempre em busca de algo. Não sendo possível atingir a felicidade, o que pode manter os

indivíduos felizes é a eterna busca por ela. Com esta mudança de perspectiva, ao alterar o sonho de

Figura 12. (MELLO, 2002, p. 06, 07)

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felicidade, os mercados substituem constantemente suas mercadorias, então a vida “plena e

satisfatória”, almejada pelos “corredores” também é alterada constantemente. O mercado altera a

direção do consumo, retirando o ressentimento e a revolta de um modo discursivo – “você deve” usar

aquela marca para “você merece”, você deseja, você é capaz de conseguir, “nutrindo a auto-estima

eternamente insaciada e encoraja a exploração do inexplorado”.

Esta situação, manipulada pela sociedade consumista, que envolve a Vizinha, é onde ela está

inserida. Ela faz parte da sociedade de acordo com o que o mercado dita, por exemplo, mesmo quando

sai para consertar o relógio, deixa-o de lado para comprar um novo livro.

Contrário à manipulação social mercadológica está o Vizinho, que tem uma vida mais

simples, dedicada às suas fantasias.

Uma vez que os bens capazes de tornar a vida mais feliz começam a se afastar dos

domínios não-monetários para o mercado de mercadorias, não há como os deter; o

movimento tende a desenvolver um impulso próprio e se torna autopropulsor e auto-

acelerador, reduzindo ainda mais o suprimento de bens que, pela sua natureza, só

podem ser produzidos pessoalmente e só podem florescer em ambientes de relações

humanas intensas e íntimas. (BAUMAN, 2009, p. 17)

Esse é o risco do indivíduo que adquire a consciência desta situação, percebendo que a

almejada felicidade não está diretamente relacionada com a matéria, com o consumo de bens e

serviços, mas sim em atitudes pessoais. De acordo com Bauman (2009, 14, 15), o “orgulho pelo

trabalho bem feito”, uma das tarefas que era vital para a felicidade do ser humano, foi terceirizada

pelo cartão de crédito, e o ser humano foi perdendo a “destreza, astúcia e habilidade, pela realização

de uma tarefa assustadora, a superação de um obstáculo inexpugnável”, e assim habilidades

importantes vão se perdendo, a longo prazo, como a “própria capacidade de aprender a dominar novas

habilidades”, perde-se a “alegria de satisfazer o instinto de artífice, essa condição vital para a auto-

estima, tão difícil de ser substituída, juntamente com a felicidade oferecida pelo respeito por si

mesmo”. O artífice, é, segundo o dicionário Houaiss, o que cria algo com arte (2004, p.308). Há um

prazer especial em realizar um trabalho bem feito, usando suas próprias habilidades e dedicação

(BAUMAN, 2009, p. 32).

Belmiro (2010, p. 407) compara a simplicidade do Vizinho com o exagero da Vizinha, que

acumula objetos. Se levarmos em consideração as ponderações de Bauman, notamos que o Vizinho

é artífice, e é construindo seu mundo próprio, como as cidades de papel, a máquina de fazer chover,

mergulhando demoradamente nas histórias em quadrinho usando um escafandro, ou decorar, com

seus próprios traços, seu apartamento, que ele se realiza. A Vizinha também cria – em determinada

cena ela aparece costurando. De qualquer forma, ela está mais inserida no contexto contemporâneo

do que o Vizinho. Essa é a diluição entre o real e a imaginação a que se referia Coelho (1993, p. 141),

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também nas situações inusitadas como o rinoceronte debaixo da pia, mas principalmente na mistura

das duas realidades, que resulta em uma vivência completa para o leitor, havendo a possibilidade de

apreender novas visões de mundo no momento de fruição.

Na capa do livro há insinuações sobre essa perspectiva do real e fantasioso, pois a Vizinha

está iniciando sua maratona diária, correndo livre para o mundo, com um espaço aberto à sua frente,

iluminada de Sol, amarelo, enquanto o Vizinho, ao ir com sua gigante mala para as viagens, segue

para o desconhecido, porque está no limite da página, está a ponto de sumir, vai para onde imagina,

locais que, mesmo reais - existentes no mapa mundial, são momentos de fantasia para ele, ou de viver

uma outra realidade para sair do seu cotidiano, ter uma nova aventura, como dos quadrinhos que lê,

ou explorar a natureza, e ver pessoalmente os bichos de suas gravuras, ou as gravuras pictóricas do

tempo das cavernas na Serra da capivara.

Assim, notamos que eles mantêm sua individualidade, sua personalidade, mas também, esta

individualidade acaba tornando-se solidão, individualismo, pois o Vizinho só tem a companhia de seu

canarinho, e o peixe que divide espaço com ele dentro do capacete do escafandro quando lê gibi. A

Vizinha tem um gato preto, um sapo, dois aquários e um rinoceronte, ainda, os monstros e borboletas

de seus livros. Os maiores companheiros dos vizinhos, na verdade, são as artes, suas músicas, suas

leituras, por meio das quais eles sublimam a ausência de outro ser humano com quem possam partilhar

suas vivências.

Gaston Bachelard (1993) defende que a imagem poética, consciência individual, reconstitui

as subjetividades das imagens, desta maneira é possível analisar as moradas de nosso pensamento,

Figura 13. Capa - frente e verso.

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bem como as moradas que têm representação em nosso pensamento. Descreve a importância da casa

para o ser humano, sua referência no mundo e sua ligação também com os sentimentos. Diz que nossa

experiência com a casa materna na infância permanece no inconsciente, e os espaços das nossas

solidões no passado são determinantes para a nossa relação com esse sentimento, pois é a casa que

abriga o devaneio solitário. Ao analisar a casa em sua verticalidade, destaca o sótão e o porão,

relacionando o porão às relações mais profundas e conectadas à terra, está ligado em maior grau à

racionalidade do ser humano. O o seu paradoxo é o sótão, local elevado, distante das raízes do chão,

local de maiores devaneios e sonhos, onde há maior ligação com o céu, com o celeste, com a fantasia

No porão o homem é prudente, racional, domina suas próprias atitudes, mas no sótão, traz a mais

tranquila solidão, sonhamos, local onde subimos mais vezes.

Toda a perspectiva da casa é reduzida pela perspectiva dos prédios. Bachelard (1993, p. 44,

45) fala sobre os prédios, “caixas sobrepostas”, lugar geométrico, onde entulhamos de objetos, como

um “buraco convencional”19 e “armários dentro de armários”, o número da rua e do andar é que fixam

o local desta moradia que não tem “espaço ao seu redor nem verticalidade em si mesma”, pois estão

fixadas acima do chão, do asfalto, sem ligação com a terra, com as raízes, e também não têm porão,

“da calçada ao teto” são peças amontoadas, assim já não há mais as relações do ser humano com a

natureza e “as relações da moradia com o espaço tornam-se artificiais. Tudo é máquina e a vida íntima

foge por todos os lados. [...] a casa já não conhece mais os dramas do universo”. É uma opinião

rigorosa que leva em conta o modo como as sociedades estão se organizando nas cidades. Bachelard

descreve essa situação em solo francês, mas ela se aplica ao Brasil, onde as pessoas saem da zona

rural e precisam se adaptar à urbana, à cidade, aos apartamentos, elas sempre trazem uma lembrança

do campo, como uma pequena planta, pois a ligação do brasileiro com a casa está – em maior grau –

ligada ao quintal e às plantas, à vida rural, do que a francesa (sótão e porão). O Vizinho aparenta uma

maior ligação com o campo, pois tem algumas plantas em casa e aparece molhando-as enquanto lê

gibi. Este é o universo urbano de Vizinho, Vizinha.

Ao pensar sob a ótica da comparação entre os vizinhos, percebemos que sempre há uma

ligação entre eles, indicada pelos versos. Aliás, o texto verbal demonstra mais similitudes, enquanto

o não verbal, mais oposições: “O vizinho do 101 toma café enquanto observa gravuras de bichos”

(MELLO, 2002, p. 04); “A vizinha do 102 já voltou da maratona” (MELLO, 2002, p. 05). É possível

identificar a comparação pelo termo “já”, que demostra, não só a rapidez e energia da Vizinha, como

a vagarosidade, calma e tranquilidade do Vizinho.

A produção literária infantojuvenil contemporânea traz peculiaridades temáticas e formais,

como a presença de “personagens-tipo” sendo substituídas por individualidades, sem dimensão de

19 Expressão de Paul Claudel (apud BACHELARD, 1993 p. 44)

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superioridade, como uma “personagem-coletiva”; o ato de contar, o ritmo se faz mais presente e

consciente na narrativa; o tempo e o espaço são variáveis; há a intenção de realismo e verdade;

multiplicam-se os recursos de apelo ao visual (desenhos, ilustrações, cores, técnicas de colagem,

composição, diagramação, montagens, materiais para impressão...), entre outros. (COELHO, 1993,

p. 135 - 138)

Os vizinhos são exemplos desses personagens coletivos, pois não têm nome próprio, são

conhecidos somente por Vizinho e Vizinha, pois sua identidade na obra é essa, diz da categoria de

morar próximo a outrem, o que demonstra que esses personagens também podem ser qualquer ser

humano que tenha um vizinho. São, no entanto, personagens coletivos que mantêm sua personalidade.

As pessoas, há algum tempo atrás, conheciam os moradores próximos à sua residência, até mesmo da

rua, ou do bairro, elas interagiam e, inclusive, eram referência um para o outro. Atualmente, com o

individualismo exacerbado, qualquer vínculo pode ameaçar o espaço da liberdade pessoal, portanto

não conhecemos mais os nossos vizinhos, como mostra a obra em estudo. Percebe-se que a

caraterística que diferencia os dois, a priori, é a do sufixo que marca o gênero: “inho”, “inha”, a partir

do qual vão sendo apresentadas as suas contradições, o que não diminui as chances de haver unidade

entre eles.

De acordo com Ian Watt (2010. p.13, 18, 19), o indivíduo surge antes do século XVI,

consolidando-se no século XVIII. Ele defende que o romance é a forma literária que reflete mais

plenamente essa orientação individualista e inovadora”, diferenciando-se dos outros modos narrativos

pela “individualização das personagens e detalhada apresentação de seu ambiente.”. Ele afirma que

essas personagens eram vistas como pessoa particular, não como personagem tipo, comum. Vemos

que em Vizinho, Vizinha, obra que apresenta elementos de narratividade, há expressão de

individualidade por meio de personagens comuns, inclusive sem nome, como os vizinhos. Essa

mudança causa reflexão: vemos o individualismo compondo as camadas sociais, pois mesmo sem

nome, os protagonistas mantêm sua individualidade.

Outra maneira de diferenciá-los é pelo número do apartamento, 101 e 102. Eles são

numerados, como dois entre tantos outros, ou como os produtos industrializados, produzidos em

massa, como o ser humano robotizado, imerso nesse sistema mercadológico O filme Tempos

Modernos20 de Charles Chaplin (1936), ilustra bem essa imersão do personagem no sistema, quando

Carlitos, de tanto apertar parafusos em uma fábrica, sobe na esteira de produção e cai dentro da

máquina. Sem perceber o que aconteceu, e mesmo dentro da engrenagem, ele, além de compor o

sistema, continua a apertar os parafusos das rodas que o levam ainda mais para dentro da máquina.

20 Filme disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=1_tiScux_hg

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Notamos também que o ambiente é determinante para a caracterização das personagens, de

forma que a personalidade de cada um é delineada também por sua moradia, “morar em apartamento

e não conhecer o vizinho”, como disse Graça Lima [2014. Informação verbal].

Ao acrescentar a ilustração aos versos acima citados, percebemos os detalhes do ambiente que

retratam a solidão do Vizinho, que tem uma cafeteira italiana sobre a mesa da sala, cafeteira seleta

que faz a quantia exata de xícaras de café que se pretende ingerir, geralmente uma ou duas xícaras, e

evita desperdício. O Vizinho não tem pressa, toma lentamente seu café, sentado em sua poltrona

confortável, de pijamas, descalço, vendo suas gravuras, espalhadas pelo tapete. E a Vizinha está no

banho, pois voltou de uma maratona, indício de que seu dia já está em pleno vapor.

Outra aproximação, e ao mesmo tempo contradição, entre os protagonistas ocorre por meio

do uso da palavra “mundo”: “Ele já viajou o mundo inteiro”, “Ela tem uma estante de livros do

tamanho do mundo”. No texto percebemos que ele conhece o mundo pelas viagens que faz, enquanto

ela – leitora, tem uma estante de livros que ocupa grande parte do espaço destinada ao apartamento

dela. De tão grande, vê o mundo além da realidade que encontra quando sai para a maratona, por

meio das leituras que faz. Nesta cena o Vizinho está vestido com traje indiano, turbante, sapatos e

bigode fino, é retratado em seu quarto lembranças de todos os lugares que já visitou pessoalmente:

pirâmides do Egito em miniatura, com camelo junto; réplica de um castelo medieval; cartaz com

arquitetura chinesa e Chinês; camiseta com desenho da torre Eiffel e bandeira francesa no topo,

grafado Paris; máscara africana; quadro retratando um índio com cocar; cachecol; pinguim; mala

gigante e bota com flechas dentro. A Vizinha está sentada na escada que dá acesso ao topo da estante

de livros, lendo com uma lanterna (pequena, de leitura) acoplada em sua cabeça, como uma tiara.

Além dos livros, ela tem por companhia monstros e borboleta. A imagem da escada da estante, por

ser longa, invade o espaço do texto verbal, separando o texto em: “Ela tem uma”, depois “estante de

livros do tamanho do mundo”, este espaço provocado dentro da frase abre lugar para um diálogo bem

claro com a ilustração, pois nos leva a subir o olhar para a imagem antes mesmo de terminar de ler a

frase.

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No momento seguinte, novamente a legenda de um dialoga com a do outro: “Ele molha as

plantas no parapeito, vestido com um escafandro, / E quando lê quadrinhos, sempre perde a noção

das horas” e “Ela ainda vai aprender a tocar clarineta, / E seu relógio não funciona há muito tempo”

(MELLO, 2002, p. 10, 11), o segundo verso das duas frases faz menção ao tempo, ao modo como

compreendem/vivem o tempo: pois ele se esquece do tempo quando lê quadrinhos e ela, quando toca

clarineta. São mencionadas três modalidades de arte aqui: literatura, artes plásticas e música. Há um

estranhamento em ver o Vizinho vestido com um escafandro, inclusive com um peixe dentro do seu

capacete de mergulho, mas percebemos que ele está imerso em sua leitura, e todo este verso indica

este mergulho na história, inclusive a própria água que ele utiliza para molhar as plantas. “Ele molha

as plantas”, e com a água do regador, vai regando sua viagem para dentro da história do gibi; as

plantas estão no parapeito, um ambiente externo para quem mora em apartamento – sem quintal ou

terra para pisar. Esta nos parece ser a ligação do Vizinho com o mundo real, que ele só visita se estiver

aparelhado, preparado para uma aventura, pois sabe que somente em seu apartamento há segurança,

onde pode criar e levar a vida conforme deseja, seja morando em uma cidade de papel ou fazendo

uma máquina de produzir chuva. A palavra “parapeito” também é peculiar nesta cena, pois indica um

local onde o “peito para”, um “aparador”, grade de segurança, que o impede de cair, todavia, aqui,

esta grade não serve somente para impedir o Vizinho de cair do prédio, mas de cair em sua própria

fantasia, arriscar-se tanto a ponto de não encontrar mais a saída, que está diretamente ligada ao peito,

ou sentimento, ao coração. Lembra-nos o conto da menina que entra no bastidor (COLASANTI,

2005, P. 07-09), escorregando pela linha do bordado, e vai compor a própria imagem que criou; o

Figura 14. (MELLO, 2002, p. 08, 09)

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Vizinho corre esse belo risco, de ser aprisionado em seu mundo quadriculado. Aparentemente, assim

como a Vizinha que convive com os monstros de sua literatura, o Vizinho deve ter uma leitura

arriscada, como quem se entrega de tal maneira que já não reconhece mais o limite entre o real e a

imaginação, por isto, perante as fortes emoções que vive nos quadrinhos com seus heróis, é realmente

preciso estar preparado, com parapeito e escafandro, que ele veste para poder mergulhar sem medo

de ficar sem ar. O Vizinho realmente se entrega às narrações do gibi.

Nesta cena conhecemos o animal de estimação do Vizinho, um canário, que está voando

alegremente, acompanhando seu dono no momento do mergulho nas leituras. O canário é uma ave

que impressiona pela beleza, cor forte e por seu canto, o que reforça aos leitores o gosto do Vizinho

por música e canto, além da natureza. O passarinho está completamente ligado ao seu dono, o que é

possível perceber nas expressões do animal, que voa alegre quando o Vizinho lê gibis, ou quando a

sobrinha vem visitá-los, mas quando seu dono se entristece, ele fica tentando animá-lo. Ele é levado

para passear, é a ligação do Vizinho com o mundo externo, conforme indica a simbologia da cor

amarela, que nos remete à realidade - Sol, mas também porque o Vizinho só sai do seu apartamento

para levar o pássaro para seu passeio diário. No mais, em suas viagens, que são realidades

momentâneas, passageiras, e, por isto, não podem refletir diretamente o/no cotidiano desta

personagem.

A frase que descreve a Vizinha, indica que “ela ainda vai aprender a tocar clarineta”, como se

estivesse estudando - ainda não soubesse tocar, todavia, notamos - pela ilustração - que ela toca

confortavelmente, até mesmo de olhos fechados, deleitando-se com o próprio som que provoca com

seu sopro e dedilhados. Este ato nos impulsiona a pensar que ela está sempre disposta a aprender

coisas novas, até mesmo por sua maneira de ser, ativa, enérgica, não consegue ficar parada, precisa

sempre de uma atividade. O estranhamento ocorre porque, para este momento de “aprendizado”, a

personagem se prepara como se fosse a um grande concerto: com vestido verde, elegante; colar de

pérolas e sapatilhas. Não parece que está em um ensaio, mas no próprio sarau. Ela toca e ao mesmo

tempo faz passos de ballet – saltê longe, a partitura está na sua frente, aberta sobre um pedestal (ou

estante para partituras), todavia a personagem está de olhos fechados. As notas musicais que saem da

clarineta atravessam as paredes e se materializam no tapete em frente a porta de sua casa - vermelho

com cinco colcheias desenhadas. O sapo, que conhecemos na página 06 está presente no concerto,

saltando como a própria Vizinha, imitando-a, num deleite musical. Veremos mais adiante a ligação

desta personagem com o sapo que, como o canário para o Vizinho, aparenta ser seu companheiro.

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O segundo verso das duas frases nos remete ao tempo, pois o Vizinho “sempre perde a noção

das horas” ao ler quadrinhos, e o relógio da Vizinha “não funciona há muito tempo”, levando em

consideração que os dois deleitam-se com as artes, o Vizinho e seu gibi, a Vizinha e sua música,

imaginamos que ambos se esquecem do tempo quando em contato com elas. O tempo aqui

mencionado indica que, normalmente, as pessoas deveriam viver de acordo com o relógio,

impulsionados pelos horários estabelecidos socialmente, ou com o “tempo de agenda” (CARVALHO,

2003, p. 49), entretanto os vizinhos não seguem essas rotinas de trabalho, o que é um contraste com

a sociedade capitalista atual. Em Tempos Modernos, retomando a referência, Chaplin mostrava, de

maneira cômica, a vida na sociedade industrializada, que para ser feliz é preciso ter casa e comida,

mas para conseguir o conforto é preciso trabalhar, ele liga a vida do ser humano com o relógio, pois

o pagamento pelo trabalho é baseado no tempo de produção, e o controle é árduo, as indústrias

procuram várias alternativas para minimizar os momentos em que seus funcionários precisam parar,

por exemplo, para suas necessidades fisiológicas. O ser humano passa a cumprir funções de máquina,

e com o tempo integram-se a ela, ao aparelho dominante.

Graça Lima, em entrevista anexa, registra que os animais deste enredo são “coisas aleatórias

que surgiram dentro do processo criativo”. Ela afirma: “Não acho que haja nada para dizer sobre eles,

são apenas personagens de uma narrativa. As figuras de um texto são muitas vezes um encadeamento

de ideias inusitadas e que podem ser divertidas”. Todavia, no exercício da análise, podemos perceber

a importância desses personagens para a compreensão da história.

O sapo da Vizinha é um animal peculiar para ser criado em um apartamento, aliás, para ser

criado de maneira doméstica em geral. Ele aparece em dois momentos: quando a Vizinha está

procurando algo que não encontra e quando está deleitando-se com a música de sua clarineta. Esse

Figura 15. (MELLO, 2002, p. 10, 11)

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animal nos causou um estranhamento, e levou-nos a refletir sobre sua relação com a Vizinha. Para

compreender sua presença no enredo é preciso levantar algumas evidências sobre a Vizinha. Sabemos

que esta personagem é leitora assídua, e divide sua estante de livros com monstros e borboletas,

sabemos que ela lê livros de alquimia, química e exotéricos, e que tem um sapo e um gato preto como

acompanhantes. Apesar de a Vizinha ser bonita e simpática, ela traz características da bruxa

“clássica”, como o queixo e o nariz alongados (só faltou a verruga no nariz), tem o cabelo sempre em

pé, além dos outros detalhes, pois a bruxa é uma alquimista da Idade Média, o que corresponde à

química nos dias atuais, e sempre está acompanhada de sapos (até porque sempre havia partes de

bichos como ingredientes das poções, como “olho de sapo”) e de um gato preto. Graça Lima pode

não perceber a ligação existente entre os animais-personagens da narrativa, mas certamente ela

exteriorizou neste trabalho, as muitas bruxas com sapos que conheceu durante sua trajetória de leitora.

Há um outro ambiente que ainda não exploramos, imprescindível para a análise, o corredor.

Com um traço mais abstrato, em relação aos apartamentos, traz um contraste interessante para a obra,

fazendo o contraponto com os outros ambientes. O corredor está presente do início ao fim do livro,

demonstrando a distância que existe entre os vizinhos. Nas primeiras páginas vemos que o corredor

é ilustrado com um estilo mais clássico, provavelmente decorado com giz pastel, pois suas cores são

suaves. O ilustrador do corredor, o próprio escritor do texto, Roger Mello, utiliza-se apenas dos

matizes primários, as cores vermelho, amarelo e azul, que são bem definidas no azulejo do chão do

hall. Todavia, ao subirem para as paredes e escadaria em espiral, ao fundo, as três cores vão se

misturando, as paredes são traçadas com linhas verticais destas três cores, que, ao se misturarem

trazem nuances coloridas, de outros pigmentos como o verde, o laranja e o lilás - cores secundárias.

As linhas amarelas sobre os azulejos nos dão a impressão de profundidade, os azulejos lembram o

estilo clássico dos portugueses, ou espanhóis, com um pentágono vermelho no centro, de cada um,

de onde saem círculos azuis que vão se cruzando. A escadaria ao fundo, em espiral, conforme

comentamos anteriormente, é fruto da influência das arquiteturas modernas que abusa das curvas,

como as que usam os artistas Antoni Gaudí (espanhol, nascimento em 25 de junho de 1852,

falecimento em 10 de junho de 1926) e Oscar Niemeyer (brasileiro, nascimento em 15 de dezembro

de 1907, falecimento em 5 de dezembro de 2012), também são coloridas como as paredes, em linhas

horizontais, nada precisas, compondo um ambiente agradável, suave, que se contrapõe com as cores

mais vivas dos apartamentos. Bachelard (1993, p. 39) defende que o corredor está ligado ao

sofrimento de atravessá-lo, as escadas são o caminho familiar, pois a criança faz escaladas.

Nas páginas seguintes aparece um funcionário, como se fosse o zelador do prédio, responsável

pela limpeza do corredor. Em sua primeira aparição só é possível visualizar as suas pernas e o balde,

descendo a escadaria. O corredor ganha profundidade nesta cena, demostrando que o funcionário está

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longe. Em seguida, o personagem aparece limpando minuciosamente o chão com um pano, com os

joelhos e mãos no chão, vemos uma vassoura escorada na parede, um balde e um frasco com produto

de limpeza ao lado dele. Só o conhecemos de costas. Nesta cena, ele veste sempre um macacão verde.

No momento em que a Vizinha toca clarineta, o zelador aparece deitado no corredor, com as

mãos na cabeça, como se estivesse descansando, deleitando-se também com a música do apartamento

dela, e seus instrumentos de trabalho estão no chão, inclusive a vassoura, ele esboça um sorriso e está

de olhos fechados. Vemos que o rosto deste personagem não segue nenhum padrão, sequer parece um

rosto humano, é semelhante a uma sombra negra, porém suave. Esta cena indica que o corredor é

pouco utilizado, a ponto de ser possível que o funcionário pare o trabalho para descansar, deitado no

chão, como quem pretende tirar uma soneca. O único personagem que habita o corredor é ele mesmo,

por isso tanta tranquilidade.

Figura 17. (MELLO, 2002, p. 06, 07) Figura 16. (MELLO, 2002, p. 08, 09)

Figura 18. (MELLO, 2002, p. 10, 11)

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Nas páginas 12 e 13, os vizinhos preparam-se para sair de casa. O funcionário aparece

descendo as escadas, como quem percebe o momento de se retirar. Ele conhece os horários dos

moradores. Este é o momento de encontro dos vizinhos, a única hora do dia em que se encontram:

“Quatro e quarenta: ele sai com o canário para um passeio”, “Vinte para as cinco: ela finalmente leva

o relógio ao conserto”. O encontro ocorre, pois eles saem no mesmo horário, todavia, há uma

diferença marcada, que indica a visão diferente dos dois, ele sai “quatro e quarenta” e ela “vinte para

as cinco”, a forma diferente de falar as mesmas horas também se deve ao fato do Vizinho estar saindo

para um passeio descontraído, enquanto a Vizinha vai, finalmente, levar o relógio para consertar, e

também porque o Vizinho é mais sistemático. A palavra “finalmente” indica que a Vizinha deseja

consertar o relógio há um bom tempo, e não consegue, há uma simbologia entre o relógio e o tempo,

pois há realmente um relógio, objeto, que precisa de conserto, todavia o tempo está ligado à maneira

da Vizinha lidar com ele, talvez ela perceba a necessidade de estar mais conectada ao tempo de

relógio, por isto ela o leva para arrumar.

O vizinho se encontra vestido com short, tênis, camiseta da Serra da Capivara, confortável,

leva o seu passarinho amarrado em uma coleira, mostra, tanto pelo texto verbal quanto não verbal

que este personagem tem uma ligação com a natureza, o que também aparece nas várias plantas que

ele tem em casa e nos locais que visita. A Vizinha se arruma para sair com vestido preto curto,

sapatilha, bolsa florida e óculos escuros, descolada e dentro da moda, e carrega seu imenso relógio

antigo de parede com pêndulo no braço.

Na casa da Vizinha avistamos pela primeira vez, e ao mesmo tempo, um gato preto que fica

estático na porta, aparecendo seus luminosos olhos amarelos, e um aquário no balcão que divide a

cozinha da sala de jantar, onde há uma mesa com vários papéis, jornais e revistas; livros empilhados;

reportagem sobre o universo; xícaras e pires empilhados e novamente no chão e um tapete que é a

imagem do universo, com planetas e estrelas. A partir daqui começamos a notar na Vizinha uma

tendência à astrologia. Na parede duas pinturas, O nascimento de Vênus, de Boticceli e um quadro de

Chagall. É possível perceber também que há uma mesa de estudo, com um computador. O gato preto

aparece apenas nesta cena, tão paralisado que temos a impressão de estar vendo uma estátua. Gatos

são animais místicos, sempre acompanhantes das bruxas, animal apropriado para a Vizinha, que gosta

de explorar químicas modernas. Esses animais também são autônomos, provavelmente por isto ele

só aparece uma vez.

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Em sequência temos o encontro dos dois no corredor, a cena está aproximada, com o corredor

em foco e com menos profundidade. O texto “Só se encontram a esta hora”, “No corredor: Boa tarde,

boa tarde, como tem passado? / Como está o tempo? E é só.” Indica que diariamente eles se encontram

a esta hora no corredor, e só se cumprimentam, educadamente, sem se conhecerem, sem maiores

interesses ou expectativas, indagando-se aleatoriamente sobre o tempo, sobre o clima, mas neste

contexto, inclusive porque a Vizinha está carregando seu relógio de parede no braço, lembra-nos

novamente do tempo fantasioso em que eles levam sua vida, que não condiz com o tempo de relógio.

Depois do encontro casual, eles saem, mas em torno de uma hora já retornaram ao

apartamento. “Vinte para as seis: ele está de volta, construindo uma cidade de papel”, “Seis e

pouquinho: ela trouxe um Manual do químico moderno. O conserto do relógio, paciência, ficou para

Figura 19. (MELLO, 2002, p. 12, 13)

Figura 20. (MELLO, 2002, p. 14, 15)

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amanhã”. Ele, precisamente está em casa “vinte para as seis”, e já está imerso em suas criações,

construindo uma cidade de papel, ainda com a mesma roupa do passeio. Ela não chega em um horário

preciso, talvez porque não tenha consertado o relógio, seu vínculo com o “tempo de agenda”, exemplo

de sua desorganização, ou despreocupação, não arrumou o relógio, mas passou na livraria e comprou

o “manual do químico moderno” e, ansiosa, sobe as escadas lendo o livro. Trouxe também uma

baguette para o lanche, dentro da bolsa. O conserto, “paciência, ficou para amanhã”, pela indicação

do texto, é algo que ela sempre tenta fazer, mas não consegue, arrumar o seu relógio, ou aprender a

lidar com o tempo, mas distrai-se facilmente quando se trata de livros e não se lembra de onde guardou

as coisas. A palavra “amanhã” merece destaque, pois indica um tempo inexistente, de algo que sempre

estamos adiando, algo que pensamos em fazer, mas só amanhã, expressão de um tempo abstrato, bem

como cronometrar o tempo da Vizinha com o tempo do relógio, pois o tempo para ela é marcado

pelos seus afazeres, ler livros, tocar clarineta, entre outros

Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua

dos Fanqueiros. Amanhã também eu a alma que sente e pensa, o universo que sou

para mim — sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas [...].

E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um

transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer. (PESSOA,

2006, p. 481)

Duas situações estranhas aparecem na obra, situações literárias que causam aquele

estranhamento familiar, referido por Sigmund Freud (1919): “Ele inventou uma máquina de fazer

chover, e a vizinha não sabe.”, “Ela alimenta um rinoceronte debaixo da pia, e o vizinho nem

Figura 21. (MELLO, 2002, p. 16, 17)

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desconfia." São cenas completamente fantasiosas, construir uma máquina que cria chuva e cuidar de

um rinoceronte que mora debaixo da pia de um apartamento. No final das frases-versos temos uma

comparação explícita. Aos poucos o próprio texto vai deixando claro para o leitor essa ligação entre

as personagens principais, “a vizinha não sabe” e “o vizinho nem desconfia”, fica claro também o

fato de não se conhecerem, eles não sabem o quanto têm em comum, em suas invenções diárias. O

Vizinho aparece, como sempre, sistemático, com suas ferramentas todas guardadas em

compartimentos separados; caixa e pote; a planta do projeto fixado na parede; e, precavido, com três

guarda chuvas pendurados em um porta-objetos. Vestido com um macacão alaranjado de trabalho, a

caráter, ele sempre mergulha no que faz, o que é indicado pelos trajes inclusive. A Vizinha aparece

ajoelhada no chão, colocando comida na boca do rinoceronte, é um grande rinoceronte azul, Abílio,

o único personagem que tem nome nesta história. Ele tem um babador próprio com seu nome

estampado e duas vasilhas de comida também com seu nome escrito, e a vizinha tem à sua disposição,

variados tipos de alimentos para lhe oferecer: frutas (mamão, cacho de uvas, peras, penca de bananas);

uma bandeja de iogurte de morango; cereais; sopa; folhas; comidas em caixas; enlatados, entre outros.

A máquina de fazer chover é uma invenção estranha porque não vemos a possibilidade de que

ela funcione, todavia, podemos tentar construí-la. Entretanto, ter um rinoceronte, animal africano,

grande, violento, guardado no armário debaixo da pia, realmente nos faz refletir. O Abílio é azul, com

aparência cansada e vemos seus olhos avermelhados enquanto é alimentado com tanta comida.

Percebemos uma grande influência do surrealismo nesta cena, pois foi esta corrente que trouxe os

absurdos para a realidade, movimento que sempre esteve ligado à psicanálise, pois as estranhezas que

Figura 22. (MELLO, 2002, p. 18, 19)

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apareciam estavam ligadas às repressões da mente, guardadas no inconsciente do autor. O

surrealismo, mais do que uma escola literária, é uma tentativa de atingir o espírito humano. André

Breton, no manifesto do surrealismo21 define-o como

Automatismo psíquico puro pelo qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por

escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado

do pensamento, na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda

preocupação estética ou moral. [...]. O surrealismo assenta na crença da realidade

superior de certas formas de associação negligenciadas até aqui, no sonho todo-

poderoso, no jogo desinteressado do pensamento. Tende a arruinar definitivamente

todos os outros mecanismos psíquicos e a substituir-se a eles na solução dos

principais problemas da vida. (BRETON, 1970, p. 191, 192)

O rinoceronte Abílio, é, com certeza, o animal mais intrigante nesta história, ele aparece de

forma surrealista, destacando-se no ambiente. Os rinocerontes são animais de outra cultura, a africana,

grandes e agressivos, mas a Vizinha o guarda no armário da pia, ou esconde, e o alimenta

excessivamente. No surrealismo sabemos que essas imagens causadoras de estranhamento, estão

ligadas ao inconsciente do artista (ou, neste caso, da personagem), que sublima algum sentimento,

bem como a Graça Lima que, mesmo não havendo escolhido os animais propositalmente para compor

seu texto, refletiu inconscientemente as muitas bruxas que viu a vida toda (FREUD,1996). O único

personagem que tem identidade própria nesta história, marcada por seu nome, é Abílio, o rinoceronte

azul. Abílio22 é um nome que tem sua origem no latim, unindo-se a partícula de negação “a”, com

“bílis” e “is”, que significa “mau humor, cólera, indignação”. Desta forma o nome significa “aquele

que não é vingativo”. O rinoceronte poderia estar indignado por ser mantido preso embaixo da pia,

mas ele aparece calmo enquanto a Vizinha o alimenta exageradamente. O azul, segundo Farina (1990

p. 114, 115) é a cor dos sonhos, da calma, ligada a águas tranquilas, e afetivamente à serenidade,

confiança, amizade, fidelidade, a sentimentos profundos, o que não condiz com um grande

rinoceronte23. Todavia, vemos que os olhos dele estão vermelhos. Entretanto, quando as crianças

brincam no corredor, Abílio está contente, saltando, e seus olhos não estão mais vermelhos, como se

antes estivesse cansado, talvez ele esteja cansado de ficar preso.

Que simbologias podem trazer o Abílio? Na perspectiva freudiana, se o rinoceronte é fruto do

21 Disponível em https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2012/10/breton-manifesto-do-surrealismo.pdf 22 Disponível em http://www.dicionariodenomesproprios.com.br/abilio/ 23 Os rinocerontes são mamíferos herbívoros que vivem em terra. O nome vem das palavras gregas rhino (nariz) e keros

(chifre). Os rinocerontes têm pele espessa, de até 7 cm, e também têm orelhas muito pequenas. Eles não enxergam bem,

porém tem ótima audição e olfato. Apesar do tamanho e peso, que variam de acordo com cada espécie, esses animais

podem atingir até 80 kg. Estes animais habitam as savanas e florestas tropicais da África e Ásia, pertencendo, na

terminologia do safári ao grupo de animais selvagens chamado de big five, correspondente aos cinco animais mais difíceis

de caçar. Disponível em http://www.infoescola.com/mamiferos/rinoceronte/

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surrealismo, também é fruto do inconsciente da Vizinha, que pode ser algum sentimento reprimido

que ela guarda, e alimenta, ou seja, não deixa passar, acabar, talvez uma mágoa, ou um amor perdido.

Vemos que é um sentimento grande, forte e até mesmo agressivo, mas ela o acalma, alimentando-o.

Como a própria amargura, que fica remoendo dentro do indivíduo, e ele não esquece, por isto é um

sentimento que sempre volta. Sentimento grande como esse só pode ficar bem preso, dentro de um

armário embaixo da pia. Lembramos também que no desenho Os flintstones, da família pré-histórica,

há um animal (porco) que faz o papel de triturador de lixos e fica debaixo da pia, comendo tudo que

deveria ser jogado fora (v. Anexo II). Pensamos que assim também ocorre com Abílio. Ele é um

sentimento que cresce, junto com um mal humor por sua existência, ou pelas lembranças que o

geraram no passado, todavia, ao alimentá-lo, a Vizinha o coloca em um estado inerte, e ele se torna

passivo, incapaz de vingar-se. Sua cor azul também nos remete aos sonhos, talvez a Vizinha tenha

um sonho, um desejo reprimido. Quantos sentimentos os seres humanos guardam na alma? Quantos

temos que esconder, controlar? Principalmente no mundo atual, em que o ser humano é impulsionado

a rever sua identidade periodicamente, em que é necessário seguir a moda para ser feliz - e esta muda

todos os dias, em que a felicidade tem sido gerada pela busca insaciável de adquirir algo fugaz.

Quantos sentimentos grandes estão guardados sob nossas pias, entulhados de lembranças, e desejos

de esquecer?

Nas páginas 20 e 21 é que descobrimos a diferença de idade dos dois vizinhos, pois “Ele tem

uma sobrinha quase da idade do neto dela” e “Ela tem um neto dois dedos menor que a sobrinha

dele”. Ele é tio, e ela, avó, e as crianças têm quase a mesma idade e tamanho. Neste texto continua

clara a comparação entre os dois, sendo que a Vizinha aparece no texto destinado ao Vizinho e

viceversa. Surge também, em maior grau, uma grande unidade entre eles, as crianças. Aparecem, nos

dois ambientes, as fotos das crianças, e ambos falam ao telefone, provavelmente combinando a visita.

O Vizinho está cozinhando um peixe, de maneira bem atrapalhada, temperando-o dentro da panela,

inteiro, com cabeça e rabo, quase caindo, de avental e tênis, segurando a colher de pau com o braço

enquanto fala ao telefone, vemos os utensílios de cozinha, uma galinha com ovos dentro, em cima da

geladeira e colheres para mexer os alimentos. A Vizinha está em seu escritório costurando e pintando

uma camisa e olhando para a foto de seu neto, com uma fita métrica no pescoço, tintas e café sobre a

mesa. Vemos presente um aparelho de som antigo, muitos cds, foto em preto e branco, outro aquário

e uma prancha de surfe. Eles estão se preparando para a chegada das crianças.

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3.2. O pertencimento e a unicidade: brinquedos, brincadeiras, comunidades

A obra em análise está no limiar das duas áreas citadas por Coelho (1993, p. 133-134), de

“questionamento” e de “representação, pois representa a vida cotidiana atual, e também questiona

essa representação, no momento em que traz para a história a participação de duas crianças que

modificam o enredo e provocam, a partir de então, novas visões e anseios aos seus parentes, que

passam a perceber, ou relembrar a necessidade humana de convivência, de partilha, e percebem que

a vida que criaram para si é de isolamento.

“Outro dia, a sobrinha do vizinho fez uma visita.”, “Justo no dia em que o neto veio passar o

dia com a vizinha”. São só essas as informações, mas já imaginamos que haverá um encontro, pois é

anunciada a “coincidência”: as crianças vêm visitá-los no mesmo dia. O termo “justo” indica que há

uma oportunidade presente. Quando as crianças chegam, tudo se modifica na obra, desde os

ambientes às personagens, até mesmo a pintura do corredor fica mais alegre. O Vizinho faz a barba,

pela primeira vez desde o início da história, e estende um tapete vermelho para a sobrinha entrar. Ele

a recepciona com bolo, balões, bandeirolas e decorou a casa toda com desenhos que ele mesmo fez.

Até o canarinho voa alegre nesta hora. Percebemos que o traço com que o Vizinho desenha na parede,

é o mesmo traço de sua própria imagem – aquele que a ilustradora usou para desenhá-lo. Por este

motivo vemos que ele é pura fantasia, que ele mesmo faz sua própria vida, pois vive nos mundos que

constrói para si mesmo. A sobrinha, muito parecida com ele, também usa tênis, mesmo com vestido.

Figura 23. (MELLO, 2002, p. 20, 21)

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A Vizinha não utiliza tanto seus dotes artesanais. Ela decorou a casa com enfeites artificiais,

industrializados, o que também indica um toque de sofisticação: pendurou sol e estrelas no teto -

como uma cortina; fez bolo, ou talvez o tenha comprado, milk-shake, sorvete; colocou no chão vários

livros infantis - a maioria sobre dinossauros, carrinhos de brinquedo, lagarto de borracha; homem de

brinquedo; armou uma barraca na sala; construiu uma cidade com palitos – provavelmente na

companhia de seu neto. Na cena, no momento em que a sobrinha do Vizinho chega, o neto já estava

no apartamento da Vizinha, em plena brincadeira, em cima de um skate, fantasiado com capacete,

botas e arma, atirando na avó, vestida à moda do Batman, ou Batwoman cor de rosa - com máscara,

capa e tudo, provavelmente foram esses trajes que ela costurou anteriormente. Ela tem este lado mais

consumista, materialista, pois neste momento temos o apartamento abarrotado de produto norte-

americanos, e o tapete é a representação da bandeira dos Estados Unidos.

Na hora prevista, em que os vizinhos saem de casa, “quatro e quarenta” ou “vinte para as

cinco”, o Vizinho vai passear com o canário e a Vizinha, enfim, levar o relógio para o conserto, “a

sobrinha espreita” e “o neto observa”. As crianças, diferente dos adultos, não se conformam em ficar

presas dentro de um apartamento, elas têm a necessidade de interagir mais latentes e agem para que

isso aconteça. Cada um está sozinho no apartamento do seu parente, desenhando, entretanto a

curiosidade fala mais alto e eles abrem as portas dos apartamentos, deparam-se um com o outro, eles

têm os mesmos anseios, desejo de companhia, de brincar, e têm diante de si um espaço vazio, pedindo

para ser preenchido.

Figura 24. (MELLO, 2002, p. 22, 23)

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As palavras “espreitar” e “observar” estão no vocabulário de quem ainda não tem necessidade

de seguir as convenções sociais, como as conversas educadas que ocorrem no corredor entre os

vizinhos, “como está o tempo?”. As crianças não têm medo de se arriscar, e para elas tudo pode ser

transformado, tudo vira brinquedo, brincadeira. Para Marina Marcondes Machado (1998, p. 11) a

brincadeira é a maneira que a criança tem de experimentar e construir o mundo e a si mesma.

Nas páginas seguintes o leitor se encontra frente a uma situação peculiar e definitiva para a

narrativa: as crianças modificam o rumo da história preenchendo o corredor com todos os objetos dos

apartamentos dos dois, sem distinção, misturam as coisas da Vizinha com as do Vizinho e tornam os

dois apartamentos – separados, fechados, apartados, um ambiente só, misturando seus estilos

diferentes. Não há mais um corredor que separa, mas que une os apartamentos, formando um único

espaço com os dois apartamentos abertos, espaço de interação, de criação, de brincadeira, de alegria,

diversão. De acordo com Jaques Lacan (1995, p. 34 apud KISHIMOTO, 2002, p. 161) “Todos os

objetos de jogos da criança são objetos transicionais.”, as crianças não precisam ganhar brinquedos,

já que os cria com tudo que aparece.

No texto verbal as palavras também se unem, misturam-se, de maneira que a ilustração é

extensão do que ocorre nos versos, e viceversa, pois algumas imagens também invadem o espaço do

texto escrito. Há apenas uma explicação: “As portas abertas e o convite irresistível:”. O autor marca

bem o momento, pela abertura das portas, que anteriormente sempre estiveram fechadas, preservando

a individualidade de cada um, agora estão abertas, e diante de uma porta aberta, as possibilidades são

infinitas. Para as crianças, é o convite que elas queriam: poder sair do apartamento, do local onde

Figura 25. (MELLO, 2002, p. 24, 25)

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estavam isoladas, brincando sozinhas; agora, em um novo ambiente, elas podem explorar tudo que

existe nos dois apartamento, além do amplo espaço do corredor, que começa a ser visto de outra

maneira – um local de interação. Após a frase explicativa, o texto verbal segue descrevendo o que

aconteceu depois que as portas foram abertas: “café com quadrinhos regador todos os livros do mundo

manual do químico moderno monte de coisas velhas plantas bichos clarineta discos da Velha Guarda

roupas de maratona máquina de fazer chover rinoceronte fotos do mundo inteiro gravuras gravuras

gravuras escafandro cidade de papel...”.

Mello recolhe os momentos descritos anteriormente para montar esse momento, criando um

mosaico de palavras. O texto, sem pontuação, propõe uma leitura muito rápida, e deixa clara a mistura

que aconteceu no corredor, inclusive pelas palavras que, unidas, formam novos objetos, como “Velha

Guarda” e “roupas de maratona”, geram “Guarda roupas”; “máquina de fazer chover” e “rinoceronte”,

formam “máquina de fazer chover rinoceronte”; a palavra “gravuras” repetida três vezes indica, não

apenas as muitas gravuras existentes, mas que tudo é gravura, porque são imagens, porque estão

gravadas na memória, porque escrevem uma nova história, porque surge um novo enredo a partir

daqui.

Ao juntar “escafandro” com “cidade de papel” temos a impressão de que haverá um dilúvio

sobre esta cidade, pois algo será transformado no interior das personagens. O texto faz menção à

água, como anteriormente indicamos. O Vizinho “mergulha” literalmente, com “escafandro” e “tudo

mais” nos quadrinhos que lê, e a presença da água nos indica uma travessia, a travessia de um rio,

que, por fluir, não pode parar. Assim também a travessia de um corredor, que, embora pequeno, é

enorme em se tratando de vencer as barreiras do individualismo para enveredar no desconhecido

mundo da interação. Segundo Octavio Paz (2005, p. 318), “o crescimento do eu ameaça a linguagem

em sua dupla função: como diálogo e como monólogo. O primeiro se fundamenta na pluralidade; o

segundo, na identidade”.

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A sociedade contemporânea está cada vez mais virtual. O ser humano dedica mais tempo às

conversas virtuais - chats, facebook, whatsapp, do que às presenciais. O espaço virtual traz o mundo

da fantasia para a vida das pessoas como uma realidade, todavia, o ser humano começa a se esquecer

do que realmente é interagir, da importância de olhar nos olhos do outro, de “observar” e “espreitar”

as pessoas que estão próximas, criando grandes barreiras, afastando-se, tornando-se solitário. Ao abrir

mão da interação com o outro em prol de sua individualidade (conhecida como liberdade) abre mão

de envelhecer na companhia de outro, de entrar em divergências importantes para a manutenção da

identidade, de conhecer coisas novas, ter visões diferentes, de agregar perspectivas e experiências.

Ele vai silenciando seu próprio diálogo. “A técnica se interpõe entre nós e o mundo, fecha toda

perspectiva à nossa mirada.” (PAZ, 2005, p.319).

Segundo Leny Magalhães Mrech (KISHIMOTO, 2002, p. 160-163), com base em Freud e

Lacan, a criança utiliza a brincadeira de forma parecida como os adultos utilizam-se da linguagem,

de maneira que o brincar revela a história de cada criança, bem como os efeitos de linguagem e fala

de cada sujeito, a autora afirma que o brinquedo e o brincar são os melhores representantes dos

processos interiores da criança, pois eles têm significação quando buscamos sentido nos atos das

crianças.

Ao brincar, a criança não se situa apenas no momento presente; mas também, no seu

passado e no seu futuro. O brincar, como atividade terapêutica, possibilita que a

criança supere a situação traumática. É simbolizando, falando e representando os

conteúdos que a perturbam que ela pode nomear e conhecer melhor as situações,

Figura 26. (MELLO, 2002, p. 26, 27)

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idéias, pessoas, coisas. (KISHIMOTO, 2002, p. 163).

Edda Bomtempo (1996, p. 61, 67), por meio dos estudos de Vygotsky, afirma que a criança

percebe o objeto de maneira diferente de como ele realmente é. Ela o vê como desejaria que aquele

objeto fosse, conferindo-lhe um novo significado, isto acontece porque brincar não é um aprendizado

formal, e assim os objetos perdem a sua “força determinadora”. Desta maneira, por meio deste “jogo

simbólico”, as crianças ligam realidade e fantasia.

É por meio da brincadeira das crianças que os vizinhos, e o leitor, reconhecem-se no outro,

“meu eu és tu” como disse Paz (2005, 318). É a valorização do outro, não só do reconhecimento

individual (BAUMAN, 2009), como buscam as pessoas, desde o momento em que foram

classificadas como indivíduos, pois são encorajados a encontrar a aceitação e respeito perante os

outros a partir de um parâmetro de comparação continua. Paz fala da tolerância e da “outridade”. Ele

defende que “A poesia é a descoberta da outridade” (PAZ, 2005, p. 318, 319). “Outridade” é, “antes

de mais nada a percepção de que somos outros sem deixarmos de ser quem somos, e que, sem

deixarmos de estar onde estamos, nosso verdadeiro ser está em outra parte. Somos outra parte.” (PAZ,

2005, p. 325)

Quando as crianças vão brincar no corredor, vemos que o Abílio não parece aquele animal

grande, agressivo, isto porque ele está solto, brincando, tempo de transcender. Indica a necessidade

que o ser humano tem de reprimir menos seus sentimentos, ou mesmo de perdoar mais, e aprender a

ser feliz com as coisas que possui no agora. As crianças não têm problemas com sentimentos

reprimidos, porque elas brincam, perdoam e a brincadeira para elas é a própria vida.

“Depois que a sobrinha e o neto foram embora”, “O silêncio ensaiou meia dúzia de passos de

dança.” No momento seguinte à brincadeira das crianças, surge uma cena paradoxal, de contraste,

completamente oposta à anterior. Saímos de um momento de divertimento, alegria, diálogo,

brincadeira e interação e nos deparamos novamente com o silêncio. Apenas por meio do texto verbal

é que sabemos que as crianças foram embora, pois não há representação ilustrativa sobre este

momento, porque, de acordo com Alfredo Bosi (2000, p. 60) “até do silêncio, que parece puro vazio,

ausência de som, o espírito arranca um mar de significados”. As crianças se foram e os vizinhos estão,

cada um em seu apartamento, com uma expressão que ainda não havíamos visto neles, expressão de

tristeza, desânimo. Eles procuram fazer o que gostam, ler, ouvir música, mas o pensamento remete-

os ao momento anterior. Há indícios da visita das crianças: na casa do Vizinho há o desenho que a

sobrinha fez dele; na casa da Vizinha, a máscara da Batwoman. O canário, ao lado de seu dono, tenta

animá-lo, em vão, e vemos um vinil caído no chão. A Vizinha, com um livro na mão, e sua recorrente

xícara de café – seu acompanhante nos momentos de leitura, não consegue ler. Neste momento ambos

percebem o valor da interação, e, por isto, por haverem sido despertados com a atitude espontânea

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das crianças, que não têm melindres, sentem em si uma vontade: ter companhia. Então, pela primeira

vez na obra, eles sentem o peso da escolha que fizeram (liberdade/individualidade).

Os dois vizinhos só percebem a proximidade um do outro pela iniciativa de interação das

crianças, pelo preenchimento do corredor com suas próprias coisas, o que não ocorria antes, porque

“[...] deixamos de nos reconhecer no que nos pertencia” (PAZ, 2005, p. 346). Retorna-lhes à memória

o brincar e interagir no comum, no social.

A visão das crianças modificou o enredo ao transformar em brinquedo coisas de seus parentes

e ocupar o espaço vazio que havia em comum entre eles. Após a saída das crianças, a “porta” da casa

de ambos fica aberta, porta de “comunicação” entre os adultos, que passam a desejar um encontro,

embora nenhum deles tenha atitude de falar com o outro, até o final do livro. Eles continuam com

suas atividades, entretanto, agora têm consciência da existência do outro. Lima observa que “O livro

é um objeto aberto, é isso que faz dele algo que transcende, que faz o indivíduo viajar. Se conseguimos

fazer a criança recriar o corredor, então estamos plenos.” [LIMA, 2014. Informação verbal].

O maior estranhamento que temos nesta figura 27 está no corredor. O corredor é um ambiente

coadjuvante na história, assim como o zelador. É o espaço de travessia das personagens, tanto para o

seu afastamento, quanto para a sua aproximação. Ele está presente desde o início, mas não é notado,

exceto no momento em que o silêncio nele reinante adquire um significado, é a percepção da solidão,

ou da necessidade de interação que os seres humanos têm. O silêncio, personificado, até mesmo

“ensaiou meia dúzias de passos de dança”. (MELLO, 2002, p. 28)

Figura 27. (MELLO, 2002, p. 28, 29)

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Podemos afirmar que os vizinhos estão absorvidos neste estranhamento. Freud defende que

“[...] o estranho seria sempre algo que não se sabe como abordar.” (1996, p. 277). O que terá causado

isso: o amor, o sexo oposto, o diálogo, a convivência com o outro? O relacionamento humano?

[...] se a teoria psicanalítica está certa ao sustentar que todo afeto pertencente a um

impulso emocional, qualquer que seja a sua espécie, transforma-se, se recalcado24,

em ansiedade, então, entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma

categoria em que o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo recalcado que

retorna. Essa categoria de coisas assustadoras construiria então o estranho; e deve

ser indiferente a questão de saber se o que é estranho era, em si, originalmente

assustador ou se trazia algum outro afeto. [...] esse estranho não é nada novo ou

alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente

se alienou desta através do processo de recalque. (1996, p. 300, 301)

O teórico mostra que todo afeto é gerado por um impulso emocional. Se não for expresso, se

não encontrar condições para se manifestar, fica recalcado e pode se transformar em ansiedade. Então,

o estranho não é uma situação nova, e sim familiar, porque está recalcado, inconscientemente, e

retorna (o que assusta), algo que não foi resolvido anteriormente e agora é lembrado/vivido,

possivelmente foi despertado pela atitude das crianças de preencher o vazio do corredor, ou da

interação por meio dos brinquedos, o que, finalmente, causaria estranheza. Freud fala que

“experiências estranhas” ocorrem quando sentimentos guardados são revividos “por meio de alguma

impressão” (1996, p. 310). Em relação ao silêncio, à solidão e à escuridão, diz o psicanalista “que

são realmente elementos que participam da formação da ansiedade infantil, elementos dos quais a

maioria dos seres humanos jamais se liberou inteiramente.” (1996, p. 314). Talvez, então, as

personagens da obra em análise relembrem algum medo de solidão. Os vizinhos são apresentados

como satisfeitos em suas tarefas diferentes, até que as crianças lembram a eles que estão vivendo

sozinhos. Mesmo que possam escolher o que fazer em qualquer hora do dia e o que for prazeroso,

ainda assim, há um espaço vazio.

A frase sonora em sibilante, “O silêncio ensaiou meia dúzia de passos de dança” (MELLO,

2002, p. 28), chama a atenção do leitor para o silêncio, um silêncio que significa. Assim como a

pausa, para a música, o silêncio tem sua importância. Neste momento é o ato reflexivo das

personagens principais. Os sons indicam uma música lenta, triste. O zelador dança com sua vassoura,

o que também demonstra solidão: é um ser sem par, dança um lento ballet. O estranhamento é causado

pelo que nos é familiar, de acordo com Freud (1996), e esta cena causa estranhamento, pois todos

24 No texto de Freud, indicado na referência bibliográfica, o termo utilizado é reprimido. Todavia, com a evolução das

pesquisas e a diferenciação entre recalque e repressão, os teóricos concluíram que o termo utilizado neste texto deveria

ser recalque, o que está apontado nas edições posteriores. (FREUD, 1996, p. 300)

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conhecemos a sensação de solidão, desde a infância. Descobrimos nestas páginas que o funcionário,

cuidador do corredor, nada mais é do que, ele próprio, o silêncio personificado.

Camargo afirma que o livro ilustrado, mais do que descrever, pode colaborar para a construção

de novos conceitos, o que podemos visualizar nesta cena em que o silêncio dança. O silêncio

humanizado, que em alguns momentos não é percebido, em outros desvalorizado, é necessário por

manter o corredor pronto para sua utilização, mas, quando dança é que demonstra sua existência

sublime, suave, pois mistura-se às cores do corredor, funde-se ao ambiente. Quando o silêncio

incomoda é ainda mais alto do que um grito que ecoa, que ressoa dentro do ser humano, revelando

sua própria solidão, o vazio de sua alma, a falta de novas expectativas, a acomodação diária na rotina

de relógio. Só o silêncio aqui traz à tona sentimentos profundos, guardados e esquecidos pelos

vizinhos, desejos de interação, de partilhar experiências, de companhia, cumplicidade, amizade, amor,

alegria. Há sensações que somente o grito pode explicar, todavia, o silêncio é pausa, e pausas geram

reflexão, somente por meio da reflexão é que a atitude e a mudança são possíveis. Como disse Castro

(1973, p. 08), “[...] o que não puder ser dito deve ficar em silêncio.

Em sequência, aparecem os vizinhos com uma expressão diferente, esperançosos. O leitor

deseja que um deles tenha a iniciativa de interagir, mas cada um espera que algo ocorra em seu próprio

apartamento. “Enquanto toma café, o vizinho imagina as coisas que existem do outro lado”, pois as

crianças promoveram aos dois um encontro diferente do que estavam acostumados, e eles puderam

perceber que têm coisas em comum, que não haviam visto antes. O Vizinho, de volta à sua rotina,

toma seu café, mas também imagina o que haverá no apartamento em frente, refletindo, “qualquer

Figura 28. (MELLO, 2002, p. 28, 29)

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dia desses ele convida a vizinha para entrar”. Assim como a palavra “amanhã”, ligada ao conserto do

relógio que não sabemos se aconteceu, o Vizinho ainda não decidiu se deve abrir sua porta para a

Vizinha. Ele deseja fazer isto, mas seu individualismo o faz refletir mais acerca desses planos, abrir

mão da solidão também pode ser abrir mão da vida que ele criou para si, de sua cidade de papel que

derreterá, ou dos momentos em que lê quadrinhos vestido com escafandro; sistemático, como é, ele

prefere pensar muito e pesar todas as alternativas antes de tomar alguma atitude a respeito. Ele está

inclinado a ir, literalmente, pois já colocou a chave na fechadura para destrancar a porta, mas aguarda

talvez a coragem chegar, ou ir embora.

“Se ele convidar, ela aceita”, a Vizinha fica à espreita na porta, aguardando o convite ansiosa,

mas, como indica a sociedade, não deve dar o primeiro passo, mas esperar que ele o faça, todavia ela

já organizou em sua casa um espaço: com tapete vermelho para intimidade, vídeo cassete – para o

filme, visual; almofada macia para o conforto; pipoca para o paladar; incenso para o olfato; além de

um baralho para distração e descontração; além de tudo isso, colocou o rinoceronte para dormir, para

sua tranquilidade, privacidade. Ela o aguarda com o ouvido colado na porta do seu apartamento, e

sua intenção se materializa no tapete da porta, onde vemos escrito “bem-vindo”.

Pela primeira vez na história o ângulo de visão do leitor é modificado, antes podíamos ver

os dois apartamentos de forma igualitária, sem indícios de um direcionamento do narrador, pois neste

caso ele é imparcial. Entretanto, nesta última cena, o leitor vê a ilustração a partir do ponto de vista

do Vizinho, pois seu apartamento está em evidência, inclusive vemos o interior da porta do

apartamento dele, o que indica que a atitude deve ser realmente dele. À Vizinha só resta esperar.

Ao perceber que falta preencher algo no corredor de si mesmos, os dois vizinhos desejam se

conhecer, aproveitar a oportunidade que surgiu com a interação das crianças, entretanto, por ser algo

difícil de abordar, não há uma atitude a respeito, a história se encerra sem uma resolução do problema

instaurado. O corredor ainda os separa e cada um está sozinho em seu apartamento, só que, agora,

pensando no outro, na possibilidade de acabar com a solidão, de ter coragem para enfrentar sua

ansiedade, escancarada pelas crianças e seus brinquedos no corredor.

Após a passagem das crianças pela rua do desassossego, número 38, depois que os adultos

percebem que podem arriscar-se para sair da solidão, vemos o rinoceronte, tranquilamente dormindo

na sala, simbolizando que questões de ordem pessoal dos vizinhos, trazidas à tona pelo preenchimento

do corredor e, posteriormente, para a consciência da solidão instaurada, possibilitaram um

melhoramento interno. O rinoceronte ainda está lá, grande e azul, mas sublimado, lembrança viva dos

processos e motivos que impulsionaram a mudança.

“Obras de arte revelam a experiência do artista, como indivíduo, diante de propostas e valores

que existem em sua sociedade”, disse Ostrower (1983, p. 35). Nesse sentido, também defende Coelho

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que os processos social, cultural e político agem sobre a criação e transformam, não só a “matéria

literária (em estrutura/forma/linguagem/gênero...)”, como a função do “produto literário” (COELHO,

1993, p. 25), levando o leitor a refletir criticamente, a estimular sua criatividade e percepção do

mundo e, desta forma, trazer para ele a sua complexa realidade, de modo que ele se situe, compreenda

e possa agir sobre essa realidade favoravelmente.

Um dos valores que Vizinho, Vizinha mais ressalta, como vimos, é o da individualidade, ou,

ao contrário, da interação, esta como um dos fatores responsáveis pela manutenção da vida.

Catalogada como literatura infantojuvenil, esta obra se apresenta com uma temática que transcende

limites de público e categorias, mostrando-se um texto literário abrangente.

Figura 29. (MELLO, 2002, p. 30, 31)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acerca da criação poética, Maria da Glória Bordini afirma que a poesia é de todos, pois o

povo cria a partir de valores autênticos do cotidiano, de ideologias históricas (1986, p. 41-43). E qual

outro motivo para criar se não houver aplicação e reflexão sobre a própria vida? O ser humano utiliza-

se da linguagem, da arte, para expressar sentimentos, sensações, experiências, registrar momentos.

Este ato precisa de um retorno, que é o papel do leitor/ouvinte. Este interlocutor é muito mais que um

mero receptor, ele é coautor da obra, pois, a partir dos seus valores, suas vivências, realizará a

interpretação da obra em significado com sua própria vida, sua trajetória de experiências espirituais

e dos sentidos físicos. No momento da leitura de um texto literário, o leitor se apropria daquele

material, experimenta as sensações novas que ele lhe provoca, e ressignifica-o em sua história.

Evidentemente a obra será bem aceita se houver uma identidade com o leitor, uma sintonia, para

suscitar reflexão e vivência. E, afinal, qual seria o papel da leitura senão o de suscitar sensações,

intimidade, apurar os sentidos, instigar o interesse por algo, auxiliar na descoberta e redescoberta do

mundo, de tocar o leitor profundamente em sua própria existência?

Livros com ilustração geralmente são destinados às crianças que ainda não sabem ler, para

lhes chamar a atenção, entendendo que ler imagens seja mais fácil que ler palavras. Todavia, o que

vemos, já há algum tempo, é uma literatura destinada a um público em formação apresentando

ilustrações cada vez mais elaboradas e críticas, que não se destinam somente à alfabetização e nem

são simplesmente descritivas, mas exigem que estejamos dispostos a nos deter reflexivamente sobre

elas. As imagens de Vizinho, Vizinha seriam suficientemente interessantes para se tornarem um livro,

mas é no encontro delas com o texto verbal que se constitui a verdadeira obra de arte, pois uma

complementa a outra em amplo diálogo. Esta obra obriga o leitor a estar atento, a ser ativo, a ter um

treino estético para mergulhar no seu enredo.

Roger Mello, Graça Lima e Mariana Massarani compõem um quadro baseado em uma

condição existencial que deve ser buscada por todos: a interação, permeada por vários outros temas,

que se opõem e convergem, como a solidão, o individualismo, a tolerância, a alegria de conviver, o

reconhecimento do outro etc. Afirma Paz que

O homem quer se identificar com suas criações, se reunir consigo mesmo e com seus

semelhantes: ser o mundo sem cessar de ser ele mesmo. Nossa poesia é consciência

da separação e tentativa de reunir o que foi separado. No poema, o ser e o desejo de

ser pactuam por um instante, como o fruto e os lábios. Poesia, momentânea

reconciliação: ontem, hoje, amanhã; aqui e ali; eu, eu, ele, nós. Tudo está presente:

será presença.” (PAZ, 2005, p. 347, 348)

É por este motivo que as artes revelam e ultrapassam este mundo, melhorando-o. Paz defende

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que o ser humano está hoje em “um espaço entulhado de objetos, mas desabitado de futuro” (2005,

p.314), imagem que nos remete à Vizinha em meio aos seus objetos, à procura de algo que não

encontra pelo acúmulo de coisas que guarda em seu apartamento, um buraco, enumerado.

Por meio da análise verbovisual da obra Vizinho, Vizinha, percebemos que nossas expectativas

transcenderam, pois além de constatar a importância do diálogo entre as artes, descobrimos que, nas

obras assim compostas, elas são indissociáveis, imprescindíveis uma para a outra. Assim como o ser

humano tem necessidade natural de diálogo, de interação, comunicação, vimos que as artes, como

fruto dos sentimentos humanos e maior representação sensorial de sua mente criativa, também têm

essa necessidade de completude natural, harmoniosa.

É importante reiterar que Vizinho, Vizinha foi produzida com a mesma proposta interacionista,

decorrente do árduo trabalho dos autores, que lhe deu o caráter de obra de arte, desde a ideia da

temática social, que suscita um questionamento aos autores, “Morar em prédio e não conhecer o

vizinho. Só dar bom dia e boa tarde e morrer de curiosidade sobre o outro.” [Lima, 2014. Informação

verbal], à discussão da arte, ao trabalho triplo em composição do mosaico-livro, à editoração, até o

leitor, respeitado em sua inteligência, criatividade, pois tem em mãos um projeto maior, uma obra

com a qual pode interagir e dialogar como coautor.

Propusemo-nos a fazer análise e interpretação de Vizinho, Vizinha, mas, para chegar até esse

ponto, fizemos um percurso de reconhecimento, tanto de literatura infantojuvenil, esse gênero, quanto

do público leitor desta literatura, além de buscar informações da contemporaneidade, do contexto em

que vivemos, e do modo como se deu a produção desta obra, que reflete tão bem a vida atual. Em

busca destes conhecimentos, percebemos que a arte e a vida estão muito próximas.

Os vizinhos têm cultura, têm imaginação, conhecem as mais variadas artes, literatura, música,

pintura, decoração, eles produzem arte, mas é por meio delas também que sublimam sua solidão

diária, escondem-se, aquecem seus corações com as aventuras alheias, deixando de realizar sua

própria aventura no mundo real, a sua verdadeira alegria que, de acordo com Drummond, é conviver

– ou “con viver” (1978, p. 20-22). É partilhar experiências, poder contar suas histórias e ser ouvido,

é reconhecer-se no outro, diferentemente do discurso capitalista que defende que o importante da vida

é ser reconhecido pelo outro, gerando uma competitividade, e para isso é necessário adquirir o produto

da moda.

Se a arte é representação da vida, que nós possamos, assim como as crianças do enredo,

atravessar os corredores diários, as barreiras da comunicação e buscar uma vida mais simples, ampla

e feliz.

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APÊNDICE

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Entrevista sobre o processo de criação (discursivo e visual) da obra Vizinho, Vizinha, de autoria

de Graça Lima, Mariana Massarani e Roger Mello.

Em diálogo, Graça Lima.

1) Como surgiu a ideia inicial para este trabalho e o que o envolve, o tema condutor, a ideia de

preservar o estilo de cada autor, de produzir uma obra em parceria, que fosse um encontro entre a

literatura e ilustração?

A ideia inicial veio do Roger que fez o texto e ilustra o corredor do prédio. Somos muito próximos e

costumamos conversar muito sobre arte, literatura, teatro, cinema, enfim todas as linguagens em artes,

e isso facilita muito um entrosamento de realizar um trabalho que respeita o traço e a visão de cada

um. Além disso como seriam ambientes diferentes, nada melhor do que traços e narrativas visuais

diferenciadas.

2) Como ocorreu o entrosamento entre os autores durante a composição desta obra? Haja vista que

o trabalho de produção geralmente ocorre individualmente, houve um processo coletivo de produção

ou isto ocorreu apenas durante a montagem (na seleção e edição)? Houve um pensamento conjunto

sobre cada personagem (e ambiente), seu estilo e quem seria o ilustrador? Como aconteceu a escolha

do personagem por cada autor?

Cada um fez seu trabalho em seu espaço individual, o apartamento do vizinho ficou com Mariana, o

da Vizinha comigo e o corredor com o Roger, depois juntamos. Antes fizemos uma boneca para

orientação. A montagem foi feita pela Helen da Cia das letras que é uma designer incrível. Os

personagens foram criados textualmente pelo Roger, mas o visual foi dado por cada um livremente.

Há entre nós uma identificação e respeito de trabalho muito grande que flui sem palavras e mais com

ações e no caso, fomos definindo sem combinar nada.

3) Há algum motivo específico para a escolha das cores rosa e amarelo “caminhando” pela narrativa

(desde a capa)?

Não. Na verdade o magenta, o amarelo e o cyan são pigmentos puros, primários sem mistura de

outros pigmentos e originam todas as outras cores. Roger optou pela luminosidade da cor e pelo fato

de fazer um contraponto com as cores das ilustrações.

4) Em algum momento houve a intenção de direcionar esta obra a um público-alvo? Qual é a sua

posição (ou do trio) a respeito?

Não pensamos nessa coisa de público alvo. O pensamento é no objeto livro e no quanto ele pode

render como uma variedade de linguagens – texto, imagem projeto gráfico. O ilustrador deve ter um

universo de muitas possibilidades em seu repertório. Deve estar se alimentando de conteúdos

artísticos o tempo todo para poder interpretar de maneira criativa e individualizada cada história. Se

eu penso num público eu reduzo as possibilidades do objeto. Já acho bem ruim chamar livro infantil,

porque o livro ilustrado não em idade. O encantamento da arte não tem idade. Pode ser uma imagem,

um texto, uma música .... ela vai sensibilizar as pessoas independente de ser este ou aquele público.

Publicidade é que tem público alvo, porque tem um produto pra ser consumido. Livro é muito mais

que isso e muito mais sofisticado, então tem de ser consumido pelo desejo e prazer.

5) Com relação à infância, especificamente à visão das crianças, que modificam o enredo quando

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demonstram que o espaço vazio do corredor pode ser também um local de interação, com seus

brinquedos (todas as coisas) e brincadeiras, qual é a sua posição?

O livro é um objeto aberto, é isso que faz dele algo que transcende, que faz o indivíduo viajar. Se

conseguimos fazer a criança recriar o corredor, então estamos plenos.

6) Gostaria de falasse um pouco sobre a sua relação com o espaço urbano (metrópole, prédios), bem

como o que ele suscita em nosso cotidiano, na sociedade atual, capitalista, como o consumismo

exacerbado e o individualismo.

Eu fui criada num bairro residencial na zona norte do Rio. Minha infância foi de ruas arborizadas e

muitas casas. Famílias, praça, festas de bairro e muita solidariedade e carinho. Não tive muitos

brinquedos quando pequena porque os brinquedos eram os amigos e brincar era na rua. Meu consumo

era muito reduzido se comparar com o que foi o de meus filhos ... e o deles também foi pequeno se

compararmos com outras crianças da mesma geração. Minha mãe lia para nós todos os dias e nos

incentivou ao habito de leitura. Ganhar livro era uma honra, pois não havia essa farra de consumo e

os livros além de caros eram poucos. Agora as crianças ficam aterrorizadas em dar ou ganhar livros

pois isso não faz parte do status do grupo ...

O urbano, a megalópole, prédios, etc isso faz parte de um processo e também de uma estética. Não é

o que me incomoda e sim a alienação.

7) Quem ilustrou a cidade (em sua visão panorâmica) e os prédios da capa? Há aí uma releitura da

arquitetura de Gaudí?

Quem ilustrou foi Mariana – é o traço dela. A guarda do livro é importante como o preambulo da

história, uma pausa, uma cortina de teatro, um primeiro contato silencioso. Nesse caso resolvemos

por ambientar na cidade onde ocorre a história. Essa é uma história urbana. Morar em prédio e não

conhecer o vizinho. Só dar bom dia e boa tarde e morrer de curiosidade sobre o outro.

8) Há relação da obra com O livro do desassossego, de Fernando Pessoa, composto por Bernardo

Soares (“Rua do Desassossego”)? Se sim, o que a motivou? Há algum motivo específico para a

numeração 38, do prédio, e numeração dos apartamentos, 101 e 102?

Olha o Pessoa faz parte de toda nossa alma, então tem relação. Especificamente o Roger ter se

inspirado não. O Roger, Mariana, é um gênio, ele produz ideias 24hs por dia. Ele em um cérebro que

parece uma esponja, absorve tudo que está ai pra ser transformado em arte. Quanto a numeração vc

teria de perguntar a ele, pq não sei.

9) Há dois personagens singularmente intrigantes na narrativa, o canário do Vizinho e o Abílio,

rinoceronte da Vizinha. O que poderia nos dizer sobre a presença deles?

Não acho que haja nada para dizer sobre eles, são apenas personagens de uma narrativa. As figuras

de um texto são muitas vezes um encadeamento de ideias inusitadas e que podem ser divertidas. Há

um texto do Cortázar que tem um urso no encanamento, um livro de Worf Erlbruch que fala de um

Melro e creio que foram coisas aleatórias que surgiram dentro do processo criativo.

Cuiabá - MT, 05 de dezembro de 2013.

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ANEXOS

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I. Fotos da exposição de Vizinho, Vizinha na Coréia

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II – Surrealismo e Pop Art

Figura 31. Foto da Marilyn Monroe reproduzida em massa.

Figura 30. Imagem dos flintstones, com um porco debaixo da pia.