maria teresa maia gonzalez - o guarda da praia[pt]

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O GUARDA DA PRAIA Maria Teresa Maia Gonzalez Para a minha mãe e também para o Luís, poeta e bicho do mar Índice Capítulo I - CARTA DE DESPEDIDA ......... 7 Capítulo II - O PRIMEIRO ENCONTRO ...... 11 Capítulo III - A CONCHA ................ 17 Capítulo IV - O CONVITE ................ 23 Capítulo V - A AULA DE MERGULHO ........ 27 Capítulo VI - UM CESTO DE MAÇÃS ........ 32 Capítulo VII - UMA GAIVOTA NA NOITE .... 37 Capítulo VIII - NO POSTO MÉDICO ........ 43 Capítulo IX BICHOS DO MAR .............. 49 Capítulo X - O VELHO DA MATA ........... 57 Capítulo XI - A TROCA .................. 67 Capítulo XII - NA ESQUADRA ............. 73 Capítulo XIII - PALAVRAS æ BEIRA-MAR ... 81 Capítulo XIV - A VISITA ................ 87 Capítulo XV - UMA FOGUEIRA NA PRAIA ... 101 Capítulo XVI - A DUNA SECRETA ......... 108 Capítulo XVII - PASSADO E FUTURO ...... 117 Capítulo XVIII - O INCÊNDIO ........... 123 Capítulo XIX - CONTANDO ESTRELAS ...... 127 Capítulo XX - LIÇÃO DE GEOGRAFIA ...... 137 Capítulo XXI - NO FUNDO DO MAR ........ 141 Capítulo I CARTA DE DESPEDIDA Foi hoje, À hora mais pesada do dia, quando o Sol mergulhava inteiro na linha recta do mar, de olhos a fecharem-se para a Terra, que eu soube a verdade. O Dunas foi-se embora. Partiu finalmente para a América, como ele próprio previra há um ano atrás. E eu fiquei sem o meu sol. * * * Quando cheguei À casinha branca entre as palmeiras, um pescador de rosto sulcado pelas marés arrastava as redes para o quintal, com o pouco À-vontade de proprietário recente.

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O GUARDA DA PRAIAMaria Teresa Maia Gonzalez

Para a minha mãee também para o Luís,poeta e bicho do mar

Índice

Capítulo I - CARTA DE DESPEDIDA ......... 7Capítulo II - O PRIMEIRO ENCONTRO ...... 11Capítulo III - A CONCHA ................ 17Capítulo IV - O CONVITE ................ 23Capítulo V - A AULA DE MERGULHO ........ 27Capítulo VI - UM CESTO DE MAÇÃS ........ 32Capítulo VII - UMA GAIVOTA NA NOITE .... 37Capítulo VIII - NO POSTO MÉDICO ........ 43Capítulo IX BICHOS DO MAR .............. 49Capítulo X - O VELHO DA MATA ........... 57Capítulo XI - A TROCA .................. 67Capítulo XII - NA ESQUADRA ............. 73Capítulo XIII - PALAVRAS æ BEIRA-MAR ... 81Capítulo XIV - A VISITA ................ 87Capítulo XV - UMA FOGUEIRA NA PRAIA ... 101Capítulo XVI - A DUNA SECRETA ......... 108Capítulo XVII - PASSADO E FUTURO ...... 117Capítulo XVIII - O INCÊNDIO ........... 123Capítulo XIX - CONTANDO ESTRELAS ...... 127Capítulo XX - LIÇÃO DE GEOGRAFIA ...... 137Capítulo XXI - NO FUNDO DO MAR ........ 141

Capítulo I

CARTA DE DESPEDIDA

Foi hoje, À hora mais pesada do dia, quando o Sol mergulhavainteiro na linha recta do mar, de olhos a fecharem-se para aTerra, que eu soube a verdade. O Dunas foi-se embora. Partiufinalmente para a América, como ele próprio previra há um anoatrás. E eu fiquei sem o meu sol.

* * *

Quando cheguei À casinha branca entre as palmeiras, umpescador de rosto sulcado pelas marés arrastava as redes parao quintal, com o pouco À-vontade de proprietário recente.Viu-me passar o portão branco e parou a olhar-me, como setivesse sido apanhado em flagrante.- Vinha para a Dona Sara? Olhe que já cá não mora, senhora,foi-se no primeiro de Julho. Deu-lhe as febres, sabe....

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- E o rapaz? - perguntei, já quase sem esperança.- O neto teve de se ir daqui. Já se vê, um garoto sozinhonão se governa. A avó tinha-o criado, agora o ppai que o

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acabe, lá nas Américas. Que ele parece que até vingou poraquelas terras, casou com uma amaricana, o garoto é que nãosei como se haverá com a língua de trapos que aquela gentefala.Senti o coração descer-me aos pés. Encostei-me ao portão atérecuperar o alento para perguntar:- E a mãe?- Essa continua na cidade. Com ela não me ralo eu, quesempre soube governar-se. Dizem que trabalha no turismo,naquelas coisas das viagens e dos hotéis, mas... Olhe que nemveio ao enterro da velhota que Deus tenha. Bem sei que já nãolhe era nada, mas, c'os diabos, tomou-lhe conta do filho estesanos todos. C'os diabos! A velha tinha lá as suas manias, mascurou muita gente da aldeia. Muita gente! O cemitério estava Àcunha, só visto! - Depois, antes de entrar em casa, olhou-melongamente e inquiriu: - A senhora não lhe era nada.- Não. Nada...- Então, com sua licença, vou fazer a janta. Até depois.entrou, fechando a porta atrás de si. Eu continueiestupidamente parada, colada ao portão, como se esperasse atodo o momento uma rectificação qualquer. Pus-me a olhar delonge as paredes da casa, À procura dum sinal, um aviso, e foientão que me lembrei de ir ao sítio.

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* * *

O local secreto do Dunas, segundo me recordava de umaexpedição que ambos fizéramos, ficava atrás da duna grande, naponta mais distante da ilhota. Corri para lá, de sapatos namão, com uma certeza súbita de que algo me aguardaria. Acorreria cansou-me e deixei-me cair pesadamente na areia seca.O Sol estava a pôr-se, trémulo e triste como nunca.Ajoelhei-me atrás da duna e desatei a escavar desenfreadamenteno lugar dos picos, as plantas agrestes que sinalizavam oesconderijo. De vez em quando, parava e olhava o Sol. Pareciaque teria de estar tudo acabado antes do fim do dia. Como umasina. Uma maldição. Voltei a desgrenhar a areia até as mãos medoerem. Por fim, senti uma dureza uniforme e lisa de madeira.Mergulhei ambas as mãos e icei o cofre. Soprei os grãozinhosda tampa e vi que tinha a chave na fechadura. O coração voltoua descer-me aos pés gelados. Então, levantei-me e aproximei-meda beira-mar com a caixa nas mãos. Do Sol apenas se via umanesga laranja a tracejado, um aceno. Respirei fundo e abri acaixa. Uma folha de caderno dobrada, sem envelope, um búzio,duas penas de galo-da-Índia, uma lupa e uma perna deestrela-do-mar.Pousei o cofre e sentei-me na areia fria e húmida. Desdobreia folha e li:

Querida concha, Não posso avisar-te e tenho de ir, não dápara esperar que chegues. Vou voar para a América! Ter com omeu pai. Amanhã, apanho a camioneta para a cidade e depois vouver os aviões, no aeroporto.

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O homem que veio buscar-me disse que eu vou num dos grandes,com dois andares, cinema e coca-cola que não se paga. Deixoaqui o cofre, que agora é para ti. As coisas que aqui estãotambém são para ti. Levo a tua concha comigo. Sei que vai darsorte. Agora, vou conhecer a América. Depois, hei-de voltar econtar-te tudo. Prometo. Não te esqueças de mim e acaba o teulivro depressa para eu o ler quando voltar.Um beijo do

Luís

Voltei a dobrar a folha e guardei-a no cofre, que fechei Àchave. O mar chamou-me bem perto dos pés. Olhei em frente atéme perder na linha azul ao fundo, À procura do sol que seescondera. Definitivamente.

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Capítulo II

O PRIMEIRO ENCONTRO

Quando aqui cheguei, faz hoje precisamente um ano e um mês,o meu único propósito era o de encontrar a paz e o sossego deque precisava para acabar o meu romance. Uns amigos haviam-mefalado da aldeia com as casinhas brancas a espreitar o mar, ea ilhota onde só se chega de barco. Pareceu-me ideal,sobretudo por se tratar de um local ainda pouco invadido porturistas estrangeiros, sempre tão estridentes e volumosos, atirar-nos as vistas e os lugares nos restaurantes. Por sorte,a casa que aluguei era praticamente isolada, com um terraçogeneroso a poucos metros da praia dos pescadores, que eufrequentava bem mais do que a própria casa. Pouco ventoso noVerão, o quadrado branco murado era uma varanda sobre o mar;uma varanda donde não se vislumbravam vizinhos, e os poucostranseuntes que passavam na estradinha empedrada ficavam atrásdo muro, incógnitos, como eu queria ser.

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Neste alheamento total do resto da aldeia, depois decontemplar as vistas do terraço, pus a chave À porta, entrei epousei a mala e a máquina de escrever no vestíbulo.A casa, quase nua, tinha uma frescura que me arrepiou. Nacozinha, apenas o essencial, bem como no quarto e na sala.Tive a sensação estranha de que aquelas paredes rugosas ebrancas me conheciam já; de facto, por um momento, senti-ascoladas À minha roupa, como se o pequeno corredor seestreitasse para me dar um abraço de boas-vindas, umamanifestação de apreço pelo meu regresso. O silêncio erahúmido e experimentei um assobio. A casa, receptiva,devolveu-me o gracejo. Foi nesse momento que percebi que nãopoderia ser outra casa. Nunca resisti a um eco, desde ostempos mais recuados da infância e logo me imaginei a trinarárias famosas pela manhã, sem ter de me conter por qualquerrazão.

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Nesse primeiro dia, fui eu e a casa. Um reconhecimentomútuo, uma troca de olhares fácil como quem revê um velhoamigo que sempre nos acompanhou dentro da memória. Deitei-mesem jantar, sem sequer desfazer a mala. Retirei as cortinas dajanela do quarto e estendi-me sobre a cama de madeira pintada,de cor consumida pelo sopro ácido do mar.

* * *

Na manhã seguinte, já perto do meio-dia, levantei-me com obem-estar de um recém-nascido feliz. O Sol entrava branco pelajanela despida, e o terraço amplo e vazio chamava-me. Saídescalça e respirei a brisa salgada. Uma fome que há muitonão sentia lembrou-me que não tinha o que comer em casa. Meiahora depois, estava na aldeia, À procura de uma mercearia.Soube então que a praça, o sítio ideal para todas as compras,já nada tinha para vender Àquela hora e tive de contentar-mecom meia-dúzia de latas e pacotes que o merceeiro, de olharcrítico, me colocou no saco. Depois de pagar, perguntei-lhetimidamente onde poderia alugar uma bicicleta. Riu-se.- Vai ficar por muito tempo? - perguntou, de testa franzida.- Ainda não sei.- Bom, então, se quer mesmo uma bicicleta - e voltou arir-se -, tem mas é de ir À cidade.A cidade ficava a cinquenta quilómetros, e a minha fomereclamava um almoço com a maior brevidade. Assim, voltei a pépara casa, cozinhei À pressa uma sopa instantânea, esverdeada,dessas que sabem a comida de astronauta, comi um pacoteinteiro de batatas fritas (que já estavam fora do prazo) e saípara apanhar a camioneta que me levaria À civilização.Ao fim da tarde, cheguei finalmente a casa, mais morta queviva, depois de pedalar desde a estrada poeirenta onde acamioneta me deixara. Deixei a bicicleta na varanda e entreiem casa, pronta para desfazer a mala e tomar um duche. Depoisdo banho, uma moleza quente apoderou-se de mim e fui deitar-mepara descansar um pouco.

* * *

Só acordei na manhã seguinte, com os primeiros raios de Sola entrarem-me sem filtro pelo quarto.

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Subitamente, ouvi um ruído na varanda e levantei-me de umsalto. Da janela vi então, para meu espanto, um rapaz loiro,magro, de pele doirada, que montava a minha bicicleta emgrande euforia, fazendo manobras de circo. Na minhaindignação, não fui capaz de sair para a varanda e ralhar-lhe.A sua descontracção era visível. Pedalava de peito aberto parao vento, ziguezagueando pelo terraço como se o mundo inteirolhe pertencesse. Em dado momento, a velocidade que atingiuimpossibilitou-o de travar a tempo e saltou o muro, deixando abicicleta caída no terraço, de rodas a girar em falso. Saí acorrer do quarto, descalça e de coração apertado. Espreiteipor cima do muro branco e vi-o lá em baixo, já em pé, asacudir a poeira das calças de ganga. Dando finalmente pela

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minha presença, olhou-me de baixo e, ao contrário do que euimaginava, não deu mostras da menor perturbação. Contudo,vendo que ele sangrava do braço esquerdo, rapidamente meesqueci da minha indignação perfeitamente justificável eperguntei-lhe, debruçada no muro:- Está a doer muito?- Não - respondeu a sorrir, mas acenando afirmativamente coma cabeça.- Vem cá para eu ver isso melhor - ordenei-lhe.Quando o vi entrar em casa, percebi imediatamente que já alitinha estado, mas preferi não fazer perguntas. Fui ao armáriobuscar o estojo de primeiros-socorros, lavei-lhe o braçoferido, desinfectei-lho com álcool e coloquei-lhe um penso commercurocromo.- Au! Arde!- O que arde cura.- Eu vou tirar isto. A minha avó depois põe-me aqui umapomada que ela faz - explicou.- Não senhor. Deixa-te estar com o penso. Estás vacinadocontra o tétano?Riu-se. O riso mais lindo que eu alguma vez tinha visto.Branco. Inteiro.- Uma vez tomei uma injecção no posto. Fui com os outros láda escola. Mas a minha avó não achou bem, porque disse que eunão estava doente e proibiu-me de ir outra vez levar injecçõesao posto.Fiquei perplexa.- A tua avó é... médica?- É - respondeu sem hesitar. Depois, reflectiu um pouco eacrescentou: - Quero dizer, ela sabe curar as doenças todas.Uma vez até curou a professora, que andava sempre com dores decabeça e tinha uns ataques.- Ataques?...- Sim, ficava com muito calor assim de repente e tinha de sesentar, senão caía.- E a tua avó curou-a como?- Não sei, mas a professora ficou boa. Até deixou de gritare tudo!O Sol já ia alto no céu e eu ainda de pijama.- Tenho de ir arranjar-me - disse-lhe. - Se quiseres, podesesperar-me para tomarmos o pequeno-almoço.Voltou a rir-se, fitando-me os pés descalços.- Eu não tenho fome.Dito isto, saiu para o terraço e só voltei a vê-lo dois diasmais tarde.

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Capítulo III

A CONCHA

Tinha acabado de tomar o indispensável café depois do almoçoe preparava-me para retomar a escrita. Sentada no terraço,coloquei a folha na máquina de escrever e, talvez porque ocalor me toldava as ideias e o café ainda não fizera efeito,recostei-me na cadeira de lona e fechei os olhos, inspirando a

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brisa salgada. De repente, uma sombra arrefeceu-me a cara e,quando abri os olhos, ali estava de novo o invasor depropriedade alheia, descontraído como sempre.- Que é que vais escrever ali? - perguntou-me, apontando amáquina.Endireitei-me na cadeira, franzi o sobrolho e respondi:- Uma história, ou melhor, a continuação de uma história quecomecei há muito tempo.- Uma história sobre quê?Não tive vontade de contar-lhe, afinal, ainda mal nosconhecíamos.

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- A história de uma mulher que vivia sozinha num prédio altode uma cidade escura.Torceu o nariz em total desaprovação.- Porque é que não escreves antes sobre o mar ou sobre umaviagem?- Ouve,... como é o teu nome?- Tenho dois: Luís é o que está no bilhete, Dunas é comotodos me chamam.- Ouve, Dunas...- Se preferes esse é lá contigo. Eu também não me importavade me chamar Homero.Sorri.- Conheces a história de Homero?- Foi a minha avó quem ma contou. Ela sabe muitas histórias.Se quiseres, podes ir pedir-lhe para te contar uma e depoisescreve-la na tua máquina.- Obrigada, mas eu costumo escrever apenas as histórias queme saem da cabeça, percebes?- Só que Às vezes não saem, não é?Era perspicaz, aquele Homero improvisado. E atrevido também.- Olha, Dunas, eu tenho mesmo de trabalhar. Não estou deférias. Preciso de sossego, não me leves a mal.- Eu fico só a ver.Não pedia nada. Não se desculpava. Apenas participava.Comecei então a olhar o imenso branco entalado no rolo negroe, por mais que tentasse, não conseguia que os dedosacertassem nas teclas empedernidas da imaginação.- Era melhor escreveres sobre o mar - insistiu, descarado.- Eu não sei quase nada sobre o mar, Dunas. Nem sequer gostoespecialmente de ondas, peixes e praia, entendes? - retorquinum tom de voz zangado.- Então que vieste aqui fazer? - perguntou, olhando-me com amaior estranheza.- Vim procurar paz e sossego, mas, pelos vistos, não estoucom sorte nenhuma...Afastou-se em silêncio e saltou o muro sem olhar para trás.Quis chamá-lo, pedir-Lhe desculpas pelos maus modos, mas amoleza que o calor me emprestava deixou-me num mutismo paradode cacto. Decididamente, aquela não era a hora ideal para aescrita. O ar estava carregado de luz que banhava a folha depapel e me encandeava as ideias. Levantei-me e fui À cozinhafazer uma limonada. Quando regressei ao terraço, aproximei-medo muro, de copo na mão, e pus-me a olhar a praia. Sozinho no

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mar, o Dunas era um peixe amarelo a deslizar veloz pelaságuas, furando as ondas intrepidamente. Pareceu-me atéimpossível que estivesse a respirar, pois a cabeça mantinha-sesubmersa por tempos infindáveis que me faziam suster arespiração. Os rochedos ali tão perto e ele debaixo de água,avançando sem hesitações. O coração apertou-se-me de angústiae resolvi ir sentar-me para não me afligir mais.Cerca de uma hora mais tarde, ao levantar a cabeça doteclado, estremeci. O meu visitante aparecera novamente sem sefazer notar, saído do nada, de cabelo a pingar na pedra doterraço.- Ainda só escreveste isso?! - indignou-se.Confesso que corei.- Hoje não estou muito inspirada. Há dias assim...

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Então, sem pedir licença, dirigiu-se À porta da casa, entroue, pouco depois, estava de volta com um copo de água na mão.Achei que era altura de pôr cobro Àquela falta de cerimónia.- Ouve lá, não te ensinaram a pedir antes de fazer?- De fazer o quê? - inquiriu com o ar mais calmo do mundo.- Por exemplo, antes de entrar numa casa que não é tua.- Mas esta casa já foi minha. Só que foi há muito tempo...E sentou-se no chão, ao lado da minha cadeira, a beber oresto da água. Os olhos voltaram-se para baixo e eu tive asensação de ter tocado num assunto proibido. Contudo, acuriosidade foi mais forte do que eu:- Foi tua quando?- Quando eu vivia com a minha mãe e o meu pai. Ainda erapequenino - respondeu sem tirar os olhos do chão.Olhei-o então com uma ternura acabada de nascer. Tivevontade de fazer-lhe uma festa nos cabelos molhados, mascontive-me por algum receio estúpido. Foi nesse momento quereparei numa concha que ele trazia presa aos calções por umcordel cor de nada.- Essa concha aí foste tu que a apanhaste?- Fui, uma vez que andava com o meu pai a passear na praia.Algo despertou a minha atenção naquela concha que me pareciatão familiar. Levantei-me de um salto, corri a casa, entrei noquarto e retirei da gaveta da mesa-de-cabeceira o meu fio deprata com a concha que a minha mãe me dera quando eu tinhadez anos. Voltei com o fio para o terraço, mas encontrei-ovazio. Procurei o Dunas por todo o lado, chamei-o repetidasvezes, mas em vão. Desanimada, voltei a sentar-me em frente damáquina e, inesperadamente, comecei a escrever com a alma naponta dos dedos.

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Capítulo IV

O CONVITE

A terceira aparição deu-se quase uma semana mais tarde,quando eu chegava a casa, vinda das compras que fizera naaldeia. O Dunas estava sentado no parapeito da janela do meu

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quarto, de pernas a balouçar. Viu-me chegar e deixou-se ficaronde estava, sem nada dizer. Pousei o garrafão de água minerale o saco da mercearia na cozinha e dirigi-me ao quarto.- Essa tua mania de entrares sem pedir licença está acomeçar a irritar-me - disse-lhe em tom crítico.Ignorando as minhas palavras e sem tirar os olhos doterraço, observou:- Já é a terceira que aqui passa. E esta é das gordas.Aproximei-me da janela e espreitei o terraço. Uma lagartixaenorme repousava colada ao muro branco. Arrepiei-me.- Há muitas por aqui, há?

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- É o que cá não falta - respondeu, orgulhoso. - E osgas elouva-a-deus e salamandras, centopeias...- Estou a ver. Mas não costumam entrar nas casas, pois não?- balbuciei a medo.- Só Às vezes - disse, parecendo lamentar o facto. - No anopassado, consegui apanhar uma aranha de cruz, nas costas daminha cama! Deu-me imensa sorte! Há muito tempo que não vianenhuma. Pode ser que este ano apareça outra. Depois trago-ta.Senti o coração gelar-me no peito.- Bom, agora salta daí e vem ajudar-me a arrumar as comprasque fiz.Seguiu-me até À cozinha e juntos colocámos tudo no armáriode madeira. Depois, ofereci-lhe um chocolate que tinha trazidoe fomos para o terraço.- Tu também gostas de chocolate?! - estranhou.- Muito. Como um por dia, pelo menos...- E a tua história?- Vai andando - retorqui, colocando a máquina sobre a mesa.- Eu cá gosto é de histórias do mar - lembrou-me.- Já sei, já me tinhas dito, Dunas. Mas o meu livro nãotrata do mar.- É pena... Nesse caso, não vou lê-lo.Olhei-o sem saber que pensar daquela admoestação. Foi entãoque reparei novamente na concha presa À presilha dos calçõespor um cordel. Puxei do fio que trazia e mostrei-lhe a minhaconcha de prata.- É igual À minha - comentou sem dar importância Àconstatação.- Deixa ver.E, tirando o fio, encostei a concha À dele. Eramimpressionantemente iguais. O mesmo tamanho, a mesma forma. Sóo material era diferente. Sobressaltei-me:- É espantoso!- Não. Não é - foi tudo o que disse.Eu, que sempre me ri das coincidências contadas tãoentusiasticamente pelos outros, não conseguia deixar de mesurpreender, confirmando vezes sem conta a total semelhançaentre as duas conchas.- É incrível!O Dunas, porém, já estava absorto, olhando o mar.- Queres ir dar um mergulho das rochas? - desafiou-me.- Hoje, não. Desculpa.- Porquê?

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- Porque tenho de continuar o meu livro e porque ainda nãofiz a digestão do almoço e ainda porque...- Porque tens medo. Morres de medo de mergulhar - concluiusem dó nem piedade.- Também por isso - retorqui com um certo embaraço.- Mas não foi isso que eu te perguntei. Eu disse Porquê,porque tu disseste Desculpa. Desculpo o quê?Confundiu-me por um instante.- Pedi desculpa para que não ficasses ofendido comigo,entendes? No outro dia...- Está bem. Noutro dia eu ensino-te.- A mergulhar?! - exclamei, quase em pânico.- É fácil, vais ver. Toda a gente sabe. Na minha escola atéos mais novos sabem dar mergulhos. Só que alguns não chegam aopé das rochas...

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- Ouve lá, Dunas, a propósito, tu gostas de ir À escola?- De ir e de vir. De ficar lá é que nem por isso.Ri-me.- Castigam-te?Ergueu o sobrolho.- Só a minha avó, Às vezes. Mas não dói nada, porque ela játem pouca força.- Mas, mesmo assim, tu gostas mesmo muito dela, não é?Levantou-se devagar e foi até ao muro, encher o peito devento. Dispus-me então a retomar a escrita, porém,subitamente, o Dunas aproximou-se e inquiriu:- E tu? De quem é que gostas mesmo muito?Levantei a cabeça na sua direcção, respirei fundo, pensei umpouco e, quando ia finalmente responder-lhe, o meu esquivovisitante afastou-se e saltou o muro.

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Capítulo V

A AULA DE MERGULHO

Levantara-me cedo, na esperança de poder aproveitar asprimeiras horas da manhã para escrever. Quando cheguei pertoda minha mesa de trabalho, no terraço, encontrei uma folhapresa no rolo da máquina. Estava escrita. Tirei-a e li:Estou na praia. Se vieres, ensino-te a mergulhar.Parei a olhar a folha que ainda segurava nas mãos. Depois,aproximei-me do muro e espreitei o mar. O Dunas estava sentadonuma rocha, de costas para o areal, fitando sabe-se lá quenuvem. Uma brisa mais ácida fez-me arrepiar. Por um lado,morria de medo, como ele tão rapidamente percebera, por outro,não queria decepcioná-lo nem deixá-lo a pensar que eu eracovarde. Olhei a máquina de escrever e achei que a escritapoderia ficar para depois da aula de mergulho, se conseguissesobreviver...

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Fui vestir o fato de banho e desci para a praia. Quando lácheguei, não vi ninguém. Olhei em todas as direcções e, quandoestava quase a vir-me embora, vislumbrei uma cabeça a flutuarlá longe, atrás da formação das ondas. Acenei-lhe na esperançade ser vista. O Dunas reparou em mim e nadou em direcção Àbeira-mar. Deslizava com uma rapidez olímpica, um À-vontadeque me deixava sem fôlego.- Anda! - gritou-me, de braço no ar, perto da rocha queparecia um vulcão.Um arrepio invadiu-me novamente, mas não era o momento derecuar.Entrei lentamente na água, tentando adaptar-me À temperatura(gélida, Àquela hora), esforçando-me por acalmar o coração,que desvairava de indignação. Quando perdi o pé, comecei anadar bruços (o estilo em que melhor me desenvencilhava) efui-me aproximando da rocha, tentando a todo o custo evitar arebentação forte, que me assustava cada vez mais. O Dunassentou-se sobre o vulcão e esperou-me, com cara de troça.- Mais depressa! Pareces uma alforreca... - E ria abandeiras despregadas.Lá cheguei por fim ao rochedo e agarrei-me o melhor quepude, embora os limos o tornassem escorregadio como peleviscosa.- E agora? - inquiri, temendo o pior.- Agora, vês-me mergulhar duas vezes com atenção. A seguir,sobes para aqui e atiras-te - declarou, como se se tratasse dacoisa mais simples do mundo.O coração começou a bater novamente num ritmo alucinante. ODunas levantou-se e, sem vacilar, assumiu a posição correctapara um mergulho de cabeça - esticou os braços, elevou-se nosares entre a névoa da manhã e fendeu o azul a pique, como umgolfinho, sem fazer saltar uma única gota de água. Observei-o,impassível, tentando registar todos os seus movimentos, paranão fazer má figura quando chegasse a minha vez. O segundomergulho foi idêntico ao primeiro, mas tão rápido que quasenão pude seguir-lhe a trajectória. No fim da sessão dedemonstração, colocou-se ao lado da rocha e incitou-me:- Vá, sobe! Viste como se faz, não viste?Acenei-lhe afirmativamente, embora estivesse consciente deque iria ser um autêntico desastre. Contudo, subi a custo parao rochedo, apoiei os pés com toda a força para não escorregare, quando me senti finalmente direita, parei, sustendo arespiração. Aquilo era uma perfeita loucura. Eu só podia estardemente. Não havia sequer um banheiro que pudesse virsalvar-me, caso tudo desse para o torto, como era de prever. ODunas, sempre vigilante, leu-me os pensamentos e quistranquilizar-me:- Vá lá! Eu estou aqui!Fechei os olhos, respirei o mais fundo que pude, tão fundoque senti o mar inteiro invadir-me a alma. Recordo que rezeimentalmente uma oração curta que inventei na altura e estiqueios braços. No instante seguinte, estava debaixo de água,lutando para voltar À superfície. Quando consegui abrir osolhos, senti um ardor intenso no peito e na barriga.- Que grande chapão! - riu-se o meu instrutor. - Entrastemal. Agora tens de repetir.Estava demasiado atordoada para falar e nem ousei

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contrariá-lo ou ralhar-lhe pela falta de cortesia.

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Nadei até À rocha, subi com uma força nova (nascida toda dodespeito que acabara de sentir), coloquei-me em posição esaltei. Sem preparação psicológica. Sem me dar tempo aqualquer arrependimento.- Foi um bocado melhor - disse-me, quando me viu irromperdas profundezas. - Mas os pés não estavam juntos.Irritei-me:- Olha lá, Dunas, não achas que já chega de críticas?! Eunão sou como tu. Nunca fiz isto na vida! Só saltei de pranchasem piscinas municipais e foi há muito tempo, tanto que já nemme lembro.Porém, o Dunas já não ouviu a última frase, mergulhounovamente e aproximou-se de mim por baixo de água. Depois,ergueu-se como um peixe voador e deu uma gargalhada:- Grande cagaço, hã? Nem abriste os olhos nem nada...Era verdade, mas eu tinha esperanças de que ele não tivessereparado.- Nunca abro os olhos debaixo de água. Faz-me impressão -expliquei.Resolvemos então regressar À praia, mas, quando olhei o mar,sobressaltei-me. As ondas tinham aumentado consideravelmente eera preciso passá-las para chegar À areia.- Dunas! - chamei-o, em pânico.- Que foi? - perguntou, sem parar de nadar.- Tu já viste aquelas ondas?...- Que é que têm?Perante aquela desfaçatez, dispus-me a segui-lo, agora emcrawl para ver se não o deixava afastar-se demasiado. Apassagem pelo Bojador foi um autêntico pesadelo. Engoli tantaágua que me doía a garganta. Chapadas de espuma varriam-me oscabelos, e eu sem tempo para parar e poder exprimir todo ohorror que me congelava as ideias.Cheguei À praia exausta. Atirei-me para a areia molhada edeixei-me ficar, como um náufrago. De todos os meus sentidossó funcionava a audição. Ouvia o chiar das ondas e o risogostoso do meu instrutor, numa tal mistura de vozes que setornava impossível distingui-las. Talvez fosse apenas opróprio mar a rir-se de mim.Quando finalmente consegui levantar-me, vi o Dunas ao longe,a vasculhar na areia seca. Foi então que olhei o mar que euhavia heroicamente atravessado. Pareceu-me estranhamentecalmo. Talvez a turbulência que eu sentira tivesse sidosomente fruto do meu medo. E, subitamente, senti-me vencedoraao olhar o rochedo em forma de vulcão. No momento seguinte,uma mão quente poisou no meu ombro molhado.- Pega, é para ti - disse, entregando-me um búzio. - Nãofoste lá grande coisa, mas, pelo menos, tentaste. Amanhãensino-te outro salto. Da rocha do pontão.Peguei no búzio e, instintivamente, colei-o À orelha.- É mudo este búzio - reclamei, provavelmente para me vingardos risos que ouvira.- Os búzios não falam, ora!- Claro que falam. Conheço búzios que falam pelos cotovelos

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- retorqui, olhando-o a sorrir. - Este é que deve ter apanhadotal susto que perdeu a voz...

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Rimo-nos ambos e deitámo-nos sobre a areia a aquecer ocorpo.- Já não tens medo? - perguntou-me em voz baixa, de rostoquieto, paralelo ao céu.- Que te parece?- Que sim, mas que não vais confessar...

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Capítulo VI

UM CESTO DE MAÇÃS

Tinha acertado nos condimentos, as amêijoas estavam umadelícia. Como a noite caía quente e sem pressas, resolvijantar no terraço, saboreando tranquilamente o meu petisco(que me levara horas a preparar), regado com um vinho brancoque trouxera da aldeia. De repente, uma mão atrevida puxou-meos cabelos presos com um elástico.- Já jantaste, Dunas?- Já. Lá em casa janta-se cedo. - Depois, fitando o meuprato, exclamou, profundamente indignado: - Tu comes amêijoas!- Sim, onde é que está o mal? Não há cá nenhuma lei contra oconsumo de amêijoas, ou há?- Não, infelizmente, não há...- Infelizmente porquê? São óptimas! Não queres provar?- Não! Eu nunca comeria os meus amigos!

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Pousei o garfo e a faca.- Os teus amigos?!- Sim, os seres do mar são meus amigos. Nado todos os diasao pé deles. Eles não me comem. Achas que poderia comê-los?!Estava realmente chocado. Senti-me embaraçada.- Nunca tinha pensado nisso, Dunas. Na cidade onde vivocome-se de tudo, percebes? Até carne de minhoca, emhamburgers. Ninguém pensa assim como tu.- É pena.- Por outro lado - continuei, arranjando coragem para acabaro meu pitéu -, temos de comer alguma coisa, não é?- Mas não os bichos do mar!Falou com tal autoridade que comecei a sentir-me enjoada.Afastei o prato para um canto da mesa e peguei numa maçã.Quando ia a perguntar-lhe se também queria, já o Dunas estavaa dar uma dentada ruidosa na maçã mais verde da taça.- Fazes sempre isso! É de propósito, não é?- O quê?- Antecipas-te sempre. Nunca pedes nada.Afastou-se lentamente e foi encostar-se ao muro, roendo amaçã, de olhos postos no mar. Os cabelos loiríssimosvoavam-lhe sobre a testa.

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- Está mar-chão. A Lua deitou-se na água. Nem se mexe! Estáaqui está a dormir. Chiu...

* * *

Na manhã seguinte, quando entrei na cozinha para fazer opequeno-almoço, encontrei, sobre o parapeito da janela, umcesto cheio de maçãs bravo-de-esmolfe, as minhas preferidas,que só raramente apareciam na cidade. Aproximei-me e descobri,debaixo do cesto, um desenho a lápis de cera que representavaa nossa praia, com o farol ao fundo, a escarpa e os rochedos;sobre as águas, um Sol imenso e alaranjado esborrachava-se noazul, encharcado de mar e luz.Procurei o Dunas, descalça, pelo terraço, mas em vão. Tivevontade de pedir-Lhe desculpas pela minha atitude quando ovira, na véspera, tirar uma maçã da minha mesa sem pedirlicença. Senti-me minúscula perante aquela prova degenerosidade. O Dunas não parava de dar-me lições e eu, bichourbano e individualista, tinha muito que aprender. Ele era,tive a certeza naquele momento, a pessoa indicada para meensinar as coisas mais importantes da vida; as coisas que eudesaprendera com o passar dos anos e com a falta desolidariedade tão comum entre os que vivem nas grandescidades.Naquele dia, não voltei a vê-lo. Não queria, por certo, queeu lhe agradecesse, ou talvez tivesse previsto que eu mesentiria encabulada. De qualquer forma, foi melhor assim, poisnão saberia mesmo que dizer de um gesto que me reduzia Àpequenez de um micróbio. Um micróbio absolutamente anónimo.

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Capítulo VII

UMA GAIVOTA NA NOITE

Dois dias após ter recebido a oferta das maçãs e do desenho,o Dunas visitou-me pela tardinha. Apareceu silencioso, comosempre, trazendo os calções do costume e a concha presa napresilha por um cordel cor de nada. Eu estava a escrever o meuromance e acabei a frase sem que ele me interrompesse. Depois,olhei-o com um sorriso e agradeci:- As maçãs são óptimas e o desenho já está pendurado no meuquarto. Gostei muito. Obrigada...- Ainda falta muito para acabares o teu livro?- Sim, falta bastante.- E pensas ganhar muito dinheiro?- Com a venda do livro?- Pois.- Não sei, Dunas. Mas não escrevo só por isso, embora odinheiro faça falta a toda a gente.

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- O meu pai, uma vez, mandou dinheiro da América, dentro deum envelope, com uma carta para a minha avó. E depois aindaescreveu outra vez, há um ano, e também mandou dinheiro, só

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que a minha avó achou que o melhor era pô-lo no banco, navila. É dinheiro americano, vale muito! Mas eu não preciso, aminha avó dá-me tudo.- E tu, costumas escrever ao teu pai?- Não... Só escrevi uma vez, no Natal. Mandei-lhe unsversos, só que não rimavam e acho que ele não deve ter gostadoporque não disse nada quando escreveu À minha avó.Olhei-o com vontade de abraçá-lo, aquela mesma vontade quejá sentira e ainda não conseguira concretizar. Limitei-me asorrir e perguntei-lhe:- Tu tens irmãos, Dunas?- Tenho uma meia... - Riu-se. - Meia-irmã. Vive com a minhamãe. - E acrescentou, erguendo o sobrolho: - Ainda é umacriança.- Ah...- E tu?- Eu tenho quatro irmãos, mas também nenhum vive perto demim. Olha lá, Dunas, tu tens amigos, assim... da tua idade?- Tenho de todas as idades. Uns são verdes e um bocadomoles, outros são duros e redondos, outros têm escamas,outros...- Referia-me a rapazes e raparigas.- Ah, esses andam lá na escola comigo. Jogamos À bola nosrecreios.- E não há assim nenhum especial?- Especial?- Sim, com quem converses mais.Reflectiu por um instante e retorquiu:- Não. Espera... havia um, o Filipe, mas foi-se embora paraoutra terra quando ainda estávamos na primária. Às vezesalmoçávamos os dois na cantina.- E nunca tens saudades dele?- Saudades? Não. Já não é importante. E agora tu estásaqui...Sorrimos. Quanto a amigos tudo estava dito. O presente, parao Dunas, era muito mais importante do que o passado. Então,olhou a folha que estava na máquina de escrever e comentou:- Essa máquina não é lá muito tua amiga, não.- Porque é que dizes isso?- Porque não escreve as coisas importantes.Olhei a folha meia escrita e, franzindo a testa, inquiri:- Que coisas?!- Então tu não viste o que deu na televisão?- Sabes que não há nenhuma nesta casa, Dunas, e eu não vouao café só para ver televisão.- Mais uma maré negra... Aquilo do petróleo que fica no marquando um navio vai ao fundo. E não foi longe daqui! Qualquerdia...De facto, era importante. Envergonhei-me de nunca ter tocadono assunto em nenhum dos meus livros, tal a expressão séria domeu interlocutor.- Isso é um problema grave, Dunas. Mas pode ser que nuncachegue À tua praia. Esperemos que não!- Não, que eu vou estar lá todos os dias, como sempre, e, sevir algum petroleiro a afundar-se, chamo logo a polícia paramandar apanhar tudo o que sujar a água. Eles que levem opetróleo pelo ar, por avião.

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Não levam gente e bombas para as guerras? Então! Metam látambém os garrafões de petróleo, debaixo dos assentos, ounoutro sítio qualquer, que os peixes não têm culpa nenhuma deos homens andarem de automóvel!A indignação subia-lhe ao rosto pelas veias claras ecrispava-lhe a pele lisa.- Nada disso é tão fácil como te parece, Dunas.- Não me interessa! Eles que se arranjem, lá os árabes e osoutros que andam por aí a sujar o mar. Cá na minha praia é queeles não pôem os pés, isso é limpinho. Eu até já pensei no quevou fazer se vir algum petroleiro perto da costa, mas ésegredo, não vou dizer-te, porque tu, sem querer, podesdescair-te e contar por aí a alguém. Mas já está decidido.Barco que se ponha para aí a deitar petróleo está feitocomigo! Que eu tramo-os, e bem tramados!

* * *

Quando a noite caiu, sentei-me na cadeira de lona no terraçoa apanhar banhos de luar com cheiro a maresia. O único ruídoque se ouvia era o suavíssimo murmúrio das ondas e um ou outrotrinado de cigarra ou grilo, escondidos entre os tufos derelva junto ao muro branco. Fechei os olhos e deixei-meadormecer, apesar da brisa fresca que corria.Ao sentir um aconchego de lã sobre os ombros e um fortearoma a mar, acordei. Sobressaltei-me. Ao meu lado, o Dunasespiava as estrelas, sorrindo.- Que estás aqui a fazer? - perguntei-lhe.- Estavas com frio...Não soube que dizer. Sentia um certo desconforto porperceber que o Dunas lia tão fundo dentro de mim. Sempre!- Que horas serão? - perguntei-me.- Esta noite há muitas estrelas! Repara!- É... E está lua cheia.- Os peixes devem estar assustados - continuou o meuvisitante, olhando o mar ao longe. - Ficam sempre agitadosquando é lua cheia. É por causa daquela luz toda que ficasobre o mar. Eles querem dormir e não conseguem... Tu dormesde luz acesa?Fiquei surpreendida com a pergunta.- Não, Dunas, não durmo de luz acesa. Por acaso, nunca tivemedo do escuro, nem mesmo quando era muito pequena. Os meusmedos são outros...- Eu tenho um bocado de medo do escuro, mas só no Inverno,quando me levanto para ir para a escola e ainda não há luznenhuma. Sabes, quando está muito escuro há muito maisbarulho. Se soubesses a quantidade de sons diferentes que euouço a caminho da escola no Inverno! É que eu venho pela mata,para ser mais rápido, e na mata há muitos bichos e, claro, ovelho...Tive logo vontade de perguntar-lhe pelo tal velho que, aoque parecia, tanto o assustava, mas pressenti de imediato queele não iria responder-me.- E que velho é esse?

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- Está a ficar tarde, ainda tenho de passar pela praia.Adeus.Ia dizer-lhe qualquer coisa, mas, como sempre, não me deutempo. Saltou o muro e seguiu em frente até ao areal. Fuiespreitá-lo À beira do terraço.

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Vi-o então encaminhar-se para o lado direito e parar juntoda rocha grande que aí se encontrava. Depois, vi-oacocorar-se, tirar qualquer coisa do bolso e foi nesse momentoque distingui o corpo claro de uma gaivota deitada na areiahúmida, junto À rocha. O Dunas ficou alguns minutos pertodela; em seguida, levantou-se, julgo que lhe fez uma festa eela voou. Espantada, verifiquei que voava sobre a cabeça loirado rapaz, em voos baixos e circulares, como um aviãozinho depapel. O Dunas afastou-se, e a gaivota dirigiu-se ao mar. Noinstante seguinte, deixei de a ver. E a ele também...Chamei-o vezes sem conta, queria por força fazer-lheperguntas sobre a gaivota, mas não voltei a vê-lo nessa noite.Decidi também retirar-me e fui para casa a pensar naquelemiúdo extraordinário que tinha encontros secretos com umagaivota e desaparecia tão repentinamente que pareciavolatilizar-se. Talvez fosse isso, talvez o meu jovemcompanheiro fosse uma espécie de ser fantasmagórico que seevaporasse ou se transformasse em espuma do mar...

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Capítulo VIII

NO POSTO MÉDICO

Os dias que se seguiram foram quase exclusivamente dedicadosÀ escrita. Aproveitando uma nova - e tão esperada - onda deinspiração, colei-me À máquina de escrever e consegui umenorme avanço no meu romance. Lembro-me que senti pouca fomedurante esses dias de entrega total ao meu trabalho. Bebiacopos de leite e comia fruta, para não ter de perder tempo nacozinha. As bolachas, minhas eternas companheiras de escrita,tinham acabado, facto de que apenas me apercebi ao cabo decinco dias, quando senti vontade de trincar qualquer coisadoce e estaladiça. Resolvi então montar na minha bicicleta eir À aldeia.Parei em frente da mercearia e, mal desmontei da bicicleta,avistei o meu amigo misterioso, que bebia água no chafariz doLargo. Acenei-lhe de longe, mas pareceu não ligar. Depois,vi-o correr em direcção a um grupo de rapazes que jogavadesenfreadamente À bola, e resolvi entrar na mercearia.

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Após pagar a conta, ouvi um enorme alarido vindo de fora evi o merceeiro a esbracejar À porta do pequenoestabelecimento. Acerquei-me dele para me inteirar do que seestava a passar e foi então que vi um círculo apertado derapazes que faziam gestos e gritavam sugestões.

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Instintivamente, larguei o saco das compras À porta damercearia e corri para o lugar onde a miudagem se encontravaem peso.- Deixem-me passar! - pedi, furando por entre a maralha.- É o Dunas - explicou um garoto de calções esfarrapados. -Teve outro ataque.Estremeci, mas continuei a furar até me encontrar no centrodo círculo humano, onde encontrei o Dunas, sentado no chão,sem forças para se levantar. Num ápice, mandei dispersar,ajudei-o a levantar-se e foi nesse momento que reparei como osseus olhos estavam congestionados do esforço imenso pararespirar. Então, vendo que ele não conseguia andar, peguei-lheao colo e corri para o merceeiro:- Por favor, telefone a chamar uma ambulância. O rapaz estácom uma crise de asma.- Isso é o cabo dos trabalhos - replicou o merceeiro.- Depressa! Não vê que ele não está bem?!- O melhor é levá-lo À avó, que ela trata-o. Foi assim dasoutras vezes. Até porque as ambulâncias demoram muito a chegaraqui. Só há bombeiros na vila.Quase À beira do desespero, lembrei-me de pedir ao merceeiroque me chamasse um carro de aluguer que pagaria a qualquerpreço, conforme esclareci.Enquanto esperávamos, sentei o Dunas no banquito damercearia e acocorei-me junto dele, tentando acalmá-lo.- O carro já vem. Tenta respirar o mais devagar queconseguires, está bem?Contudo, o Dunas parecia ir desfalecer a qualquer momento enem forças teve para dizer uma palavra que me tranquilizasse.À porta da mercearia, os colegas da bola esperavam também,agora em silêncio absoluto, um pouco assustados.- Foi da poeira que a gente alevantou da terra - explicou oque me pareceu mais velho. - Ele é alérgico ao pó, por isso éque a avó não quer que ele jogue com a gente.Subitamente, contendo uma vez mais a vontade de abraçá-lopor me parecer que talvez isso o embaraçasse um pouco emfrente dos amigos, agarrei com força na concha que ele traziapendurada no cordel atado À presilha dos calções. Então, paraminha surpresa, senti a mão do Dunas cair pesadamente sobre omeu pescoço e depois segurar uma madeixa do meu cabelo, emsinal de reconhecimento pela minha presença.Os minutos que se seguiram pareceram-me intermináveis equando, finalmente, o carro de aluguer parou em frente damercearia, peguei novamente no Dunas e sentei-o ao meu lado nobanco de trás. A viagem até ao posto médico da vila foi rápidae, À chegada, tive a agradável surpresa de ver o Dunas serimediatamente atendido por uma enfermeira simpática a quemcontei o que se tinha passado.O Dunas foi levado para a enfermaria, e eu fiquei aoguichet, onde me pediram que preenchesse uma papelada para aqual eu não tinha praticamente dado algum. Foi quandomencionei o facto de o Dunas (do qual sabia apenas o nome

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próprio) viver com a avó na ilhota, que a recepcionista fez umlongo Ah... e me dispensou de mais informações. Depois,

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adiantou, de sobrolho erguido:- Essa senhora é um problema, sabe? Teima que não quer que oneto leve as vacinas... Até da escola já lhe escreveram aexplicar que é obrigatório, mas qual quê! Enfim, sabe como éesta gente.Não, não sabia exactamente como era aquela gente, mas, poraquilo que já me fora dado conhecer pelo Dunas, podia calcularque se tratava de uma família muito especial.- Ele já aqui apareceu com um ataque de asma?perguntei.- Só quando era muito pequeno - contou a recepcionista. - Notempo em que vivia com os pais. Tinha várias crises nessaaltura. Recordo-me de uma vez em que foi o cabo dos trabalhospara o reanimar. Não havia oxigénio que lhe valesse. Nem seicomo aguentou!- E não voltou a ter crises dessas?- Que nós saibamos, não. Mas parece que a avó é que quertratar dele, diz que tem maneira de o curar sem precisar derecorrer a médicos... Sei lá, há quem diga aqui nas redondezasque a velhota tem poderes, sei lá, ouvi dizer que faz umasmezinhas quaisquer e, Às vezes, tem dado resultado. Não que euacredite nessas coisas, longe de mim, mas há quem acredite esó vá ter com ela para tratar os achaques. Ele há coisas!Fiquei parada a olhar o vazio da salinha de espera. Comopoderia a avó do Dunas fornecer-lhe oxigénio num caso comoaquele que ali me trouxera?! Que lhe faria ela?- E não há um médico que vá lá a casa do rapaz e explique Àavó que ele sofre de asma e que precisa de tratamente clínicoespecial? - perguntei ainda.- Oh... E de que serviria? Tempo perdido, era o que era. E,além do mais, o senhor doutor tem sempre muito que fazer. Sóvem Às terças e quintas, nos outros dias está de serviço nohospital da cidade. Só faz domicílios quando se trata de casossérios, percebe?Indignei-me, mas não disse mais nada. Tudo aquilo me pareciademasiado burlesco para ser verdade. Desde quando a asma nãoera um caso sério?!- Mas a senhora não se rale - continuou a recepcionista. -Não é da família, pois não? Deixe, que eles lá se entendem. Omelhor é a gente não se meter.Calei-me, mais indignada do que nunca e, para não ter deouvir mais, fui sentar-me no sofá de napa escura, junto a umamesa com uma jarra cheia de flores de plástico. Que acharia oDunas daquelas flores?, pensei, sorrindo para dentro.Uma hora mais tarde, a enfermeira apareceu na sala de esperatrazendo o doente, já com melhor cara.- Aqui o tem. Já está fino. - Depois, virando-se para oDunas: - E nada de correrias nem futeboladas, ouviste? Olhaque tu e o pó não se dão nada bem, como já viste...Senti uma pena imensa. Que poderia então o rapaz fazer?! Apraia, claro... Era das poucas coisas que não lhe estavamvedadas. Dei-Lhe a mão e saímos do posto muito mais unidos doque antes.- Já estás bem, não estás, Dunas?- Já. Mas... queria pedir-te uma coisa.

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- O quê? - quis saber, desejosa de poder ser-lhe útil.- Se alguma vez vires a minha avó, não lhe contes.- Que viemos aqui ao posto?- Sim.- Fica descansado, Dunas. É um segredo só nosso - respondi,com a cumplicidade de um criminoso que acaba de se envolvernum delito grave.- Prometes?- Claro.Só então sorriu, devolvendo aos olhos aquele brilho de águaque só uma criatura marinha poderia ter.

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Capítulo IX

BICHOS DO MAR

Dois dias volvidos, o meu companheiro apareceu no terraço,depois do almoço. Vinha de tronco nu e cabelo a pingar.- Estiveste na praia? - perguntei-lhe.- Hum-hum. - Depois, deu uma gargalhada espantosamentebonita e exclamou: - Apanhaste um cagaço, hein?!Não sabia exactamente a que se referia, por isso franzi osobrolho e inquiri:- Que cagaço?- No outro dia. Quando eu tive aquilo...- Ah, bem, não me assustei assim tanto como isso, pelo menosdepois de ver que foste bem atendido no posto.- Pensaste que eu ia morrer?Arrepiei-me.- Que ideia, Dunas! Não era caso para isso.

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Voltou a rir-se. Inexplicavelmente.- Eu vi que estavas com medo. É normal. A professora daprimária também ficava, quando eu começava a tossir muito lána aula.- Bem, claro que, a princípio, fiquei um pouco preocupada.- Pois foi. Eu, quando era mais pequeno, também apanheigrandes cagaços, mas agora já sei como é. Depois passa. Passasempre, foi a minha avó que me disse, e ela sabe. Ela diz queeu só vou morrer quando for muito velho, mais ainda do que ovelho da mata.De facto, a relação do Dunas com a avó era muito mais fortedo que eu podia imaginar. A confiança era total, como se deuma autoridade em medicina se tratasse.- Evidentemente que não vais morrer, Dunas. A asma é umadoença muito vulgar.- Não é uma doença. É que eu sou alérgico ao pó. A minha avódiz que é um micróbio da terra que me vem para a garganta e épor isso que começo a tossir muito, assim de repente, como sefosse vomitar as tripas, mas não vomito.Depois daquela explicação tão cabal, fiquei estranhamentetranquila.- Que sorte teres uma avó que percebe tanto dessas coisas,

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Dunas! Ainda bem.- Tu tens alguma avó?- Não. Já faleceram as duas.- Quê?- Eram muito velhinhas.- Essa palavra que disseste...- Faleceram?- Pois... Quer dizer que morreram, é?- Sim, Dunas.- É uma palavra gira, faleceram... Gosto!Acabei por sorrir.- Geralmente, os escritores conhecem muitas palavras, Dunas.Elas são o nosso material de trabalho.- Eu gostava que me ensinasses algumas palavras bonitasassim como faleceram.- Está bem. Mas então tens de estar muito atento para asfixares e perceberes o seu significado. Depois, vai ser bompoderes usá-las, quando falares ou escreveres.- Eu Às vezes escrevo. Escrevi um poema ao meu pai.- Já me contaste. Eu gostaria bem de ler um poema teu. Tenhomuita curiosidade!- Só que dou alguns erros...- Toda a gente dá erros, Dunas.Sorriu, agradecido, mas não convencido.- Tu não. Uma escritora não pode dar erros, pois não?- Se der, tem de aprender a corrigi-los, como toda a gente.- Queres vir À praia?- Agora? Acabei de almoçar.- E que é que isso tem?- Bom, tenho de dar tempo para fazer a digestão, não é?Nova gargalhada estrondosamente bonita. As gargalhadas, quesempre me haviam parecido descaradas e grosseiras, tornavam-seagora uma maravilha. O Dunas sabia rir como ninguém.- Então eu espero, mas só dez minutos - disse ele por fim,troçando do meu ritual de digestões.

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- Dez minutos não chegam!- Ora! Eu cá vou para o mar sempre que me apetece, eapetece-me sempre!- Mas eu não estou habituada a tomar banhos a seguir aoalmoço, percebes? Poderia sentir-me mal. Não quero arriscar.Riu-se outra vez.- Os peixes comem e continuam na água...- Mas eu não sou peixe, Dunas.- Pois, mas gostava que fosses...- Porquê?Não me respondeu. Afastou-se da minha mesa e foi encostar-seao muro do terraço a olhar o mar.- Se quiseres, vai andando - gritei-Lhe.Ele, no entanto, pareceu não me ouvir. Subitamente,acocorou-se e pôs-se a mirar qualquer coisa parada no chão.- Uma lagartixa! - E, sem me dar tempo a fugir, veio acorrer com o animal na mão para mo mostrar. - Olha! Ainda ébebé.Afastei um pouco a cadeira, discretamente, para ver se ele

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não notava, mas em vão...- Que engraçada...- Então por que é que puxaste a cadeira para trás?- Puxei? Pois foi! Sabes, é que eu não estou muitoacostumada a animais desses. Na cidade, felizmente, há poucos.- Deve ser chato viver na tua cidade. Olha, ontem À noiteencontrei uma osga enorme colada À janela do teu quarto, pelolado de fora.- Estiveste aqui ontem e não me disseste?!- Já estavas a dormir, foi por iso que não te mostrei aosga. As osgas são muito simpáticas, ficam quietinhas ao pé daluz. Não são como as lagartixas, que fogem mais depressa quesei lá o quê.Agradeci mentalmente o ter estado a dormir quando o Dunasencontrou a osga e disse apenas:- Ouve lá, tu deitas-te muito tarde, não deitas? A tua avónão diz nada?Riu-se.- Ela deita-se cedo, como tu... Só que depois levanta-seainda de noite e tu não... Tu és um bocado dorminhoca!Corei um pouco.- Só no Verão!- No Verão é que é bom levantar cedo!Tinha lógica o meu bicho do mar.- Isso é verdade, Dunas, mas, quando está calor, ficopreguiçosa.- Como as osgas...Não gostei da comparação, mas ele não iria compreender o meudesagrado. Foi outra vez colar-se ao muro, e eu fui À cozinhapara beber água. A conversa das osgas e lagartixas tinha-medeixado levemente nauseada.Quando regressei ao terraço, o Dunas já lá não estava.Aproximei-me do muro e espreitei a praia. Lá estava ele , anadar em direcção aos rochedos maiores, a uma velocidade degolfinho. Então, sem eu o ter chamado, ele virou-se para oareal, ergueu a cabeça e acenou-me , chamando-me com a mão.Não pude resistir. Ignorei a digestão, fui vestir o fato debanho e desci até À praia. Se me acontecesse alguma coisa,

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o Dunas lá estaria para impedir que eu morresse estupidamentede indigestão ou de cagaço.

* * *

Nessa noite, eram já horas de descansar o corpo e as ideias,preparava-me para arrumar a máquina de escrever, quando recebioutra visita do meu mais recente amigo, que vinha de cabelomolhado e cabisbaixo.- Que aconteceu? - perguntei-lhe, amontoando as folhas depapel já escritas.- Vieram cá esta tarde e sujaram tudo!- Quem?- Os turistas!Como depois me explicou, havia tardes em que aparecia uma

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camioneta cheia de estrangeiros que vinham de um aldeamentopróximo refrescar-se no mar.- Não são nada civilizados esses turistas, Dunas.- Eles são é uns porcos! Deixaram sacos de plástico no chãoe tudo. Logo, a minha gaivota não vai poder descansar nemnada!Seguidamente, contou-me a história da gaivota que vinhatodas as noites poisar junto da rocha no areal. Segundo oDunas, a gaivota era já muito velha e não aguentava a pedaladadas suas irmãs, de maneira que ia para ali repousar um pouco efalar com ele, mas nunca aparecia nos dias em que a praia erainvadida pelos ditos turistas do aldeamento que havia sidoconstruído havia pouco mais de um ano.- Dantes é que era bom. Não vinha para aqui ninguém. Só ospescadores, claro. Mas, desde o Verão passado, a meio dasemana, zás! É sempre a mesma porcaria.O que vale é que é só uma vez por semana e só À tarde. É queeles têm lá piscina no hotel. Eu cá é que não punha os pésnuma piscina!- Porquê?- Ora! Aquela água deve estar toda suja com aqueles rabostodos lá dentro e sempre a mesma água!Soltei uma gargalhada.- Mas as piscinas têm um filtro, um sistema de limpeza daágua, Dunas.- Qual quê! É uma porcaria! Ainda por cima, os turistas usamaqueles cremes para queimar e deixam óleo na água, nhac! Sãouns porcos.Não conseguindo demovê-lo, mudei de assunto:- Ouve lá, e essa tal gaivota, que sabes sobre ela?- Oh... tanta coisa!Depois, foi até ao muro olhar o mar. Segui-o em silêncio e,mesmo atrás dele, segredei-lhe:- Deixa lá, Dunas, a tua gaivota não se vai importar. É sóuma vez por semana. Tem os outros dias todinhos para te ver.Com uma voz de imensa tristeza, respondeu sem se voltar paramim:- Tu não percebes. Ela tem de vir todas as noites! Elaprecisa de vir! Não vês que assim não come?!Finalmente compreendi. A gaivota não tinha forças para lutarpela sobrevivência no meio das outras que se juntavam emgrande alarido sobre os barcos dos pescadores. E era o Dunasquem lhe levava alimento que ele próprio colhia do mar paralhe dar.

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Sem saber que mais dizer-lhe, coloquei-lhe a mão no ombro eficámos por muito tempo a olhar a rocha onde, de facto,nenhuma gaivota poisou nessa noite.

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Capítulo X

O VELHO DA MATA

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No dia seguinte, não vi o Dunas e confesso que senti a suafalta, embora nunca soubesse ao certo se ele viria ou a hora aque chegaria. Levantei-me mais cedo do que o costume, preenchia manhã com a escrita e, depois do almoço, pedalei até Àaldeia, pois, pela primeira vez desde que ali chegara, tivesaudades de um cafezinho antes de voltar ao trabalho.Havia apenas um café na aldeia, que tinha uma televisãoestrategicamente colocada numa prateleira pouco abaixo dotecto para que todos pudessem ver. O som estava altíssimo efoi difícil encontrar uma mesa vaga, mas o cafezinho soube-mebem, muito melhor do que os instantâneos que eu fazia em casa.Quando chamei o empregado para pagar, ele sorriu como se meconhecesse e, porque ficou tempo de mais a olhar-me, tive deperguntar-lhe se queria saber alguma coisa.

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- Nada, não senhora. É que... bem, a senhora é que levou omiúdo da ilhota ao posto, não foi?- Sim, fui eu - respondi, sem compreender aquele interessedo empregado.- É que aqui na aldeia sabe-se tudo, não leve a mal.- Não, não levo a mal. Por que haveria de levar a mal que sesoubesse uma coisa tão simples?- Simples?... Vê-se que a senhora não conhece a avó domiúdo. É fogo!- E o senhor acha que alguém vai contar-Lhe que o levei aoposto médico?- Não. Ninguém quer problemas com a velhota. Ela até é boapessoa, só que tem lá as manias dela. Julga que sabe tudo, quepode curar toda a gente.- E cura?- Bem, há quem diga que ela consegue fazer remédios que nãose vendem na farmácia...- Já me tinham dito.- Mas olhe que é muito ligada ao neto. Não tem mais ninguém,desde que o filho emigrou para a América.- Também já sabia. - Depois, achando que o falatório estavaa avançar demasiado, abreviei: - Se não se importa, faça-me aconta. Estou com alguma pressa. É o café, a água mineral e umpacote daquelas pastilhas verdes que estão ao lado da máquinaregistadora.O empregado fez a conta um pouco contrafeito. Queria esticara conversa, pelo que percebi pela lentidão com que fez o trocoe que me permitiu contar-lhe as nódoas da camisa.Chegada a casa, sentei-me na cadeirinha do terraço,descalcei as sapatilhas de lona e fiquei a saborear o sol datarde, respirando o perfume que vinha do mar e me lembrava oDunas.

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Acabei por adormecer no terraço, contrariando os meus planosde escrita. Acordei muito perto da hora do jantar, já o Solestava a pôr-se, embora muito devagar. Cozinhei qualquer coisaque não me soube a nada e voltei depressa ao terraço, naesperança de que o meu visitante aparecesse. Na realidade,

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habituara-me Às suas visitas inesperadas e Àquelas gargalhadasgostosíssimas que me invadiam a alma como onda em dia deturbulência. E fiquei a pensar naqueles risos todos que oDunas sabia fazer. E sorrisos, também. Era, sem dúvida, acriatura mais expressiva que eu jamais conhecera. Tudo no seurosto falava e, no entanto, só dizia as palavras que queriadizer, nunca se deixava pressionar para revelar o que quer quefosse. Senhor de si, controlava o rio perigoso das palavras damesma forma que controlava a respiração quando nadava, veloz,mar adentro. E era esse controlo que faltava À maioria daspessoas que eu conhecia, a mim inclusivamente. O Dunas tinhauma relação profunda e, ao mesmo tempo, estranha com anatureza e com as pessoas (Às vezes tão pouco naturais). Eraíntegro, incorruptível, vadio mas enraizado em qualquer lugarque eu ainda não descobrira, talvez na casa onde vivia com aavó, talvez naquela que eu viera ocupar e que dantes lhepertencera, na primeira infância, ou talvez a sua casa fossemesmo o mar, onde se movimentava com um À-vontade de animal.Como poderiam os pais tê-lo abandonado e deixado aos cuidadosde uma avó que não acreditava em vacinas?! Quantos não dariamtudo para ter um filho assim, exactamente assim? Como seria amãe dele? Porque não vinha vê-lo, saber notícias, ainda porcima sofrendo o filho de asma!

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Estas e outras perguntas deram-me volta À cabeça naquelatarde, e uma enorme vontade de conhecer a verdade começou aapoderar-se de mim, como Às vezes acontecia quando, a meio deum romance empolgante, tinha de ir espreitar as últimaspáginas para ficar tranquila. Onde estariam as páginas que merevelariam os segredos da vida daquele rapazinho a quem mesentia já tão intimamente ligada? E por que razão teria eleuma concha precisamente igual À que me dera a minha mãe quandoeu era criança?Enervava-me um pouco pensar que talvez nunca viesse a obterrespostas para as minhas perguntas. De facto, começava asentir uma certa ansiedade que me entusiasmava e,simultaneamente, me apertava o coração. Foi então que resolviir procurar o velho, o tal ser misterioso que vivia na mata eque, pelo que eu percebera, assustava o Dunas quando vinha acaminho da escola. Era isso mesmo! O velho deveria saberalguma coisa importante sobre o Dunas ou sobre a sua estranhafamília.

* * *

Deitara-me muito cedo na véspera e praticamente não pregaraolho a noite inteira a pensar no encontro com o homem da mata.Levantei-me mal vi os primeiros sinais de luz e tomei opequeno-almoço À pressa, como se estivesse atrasada para oemprego. Na realidade, cheguei a sorrir da velocidade queimprimi a todos os movimentos nessa manhã, eu que detestavaapressar-me de manhã!Antes de sair de casa, fui espreitar a praia, do terraço.O Dunas ainda não aparecera ou então estaria a dar osbons-dias Às algas e aos búzios ou, quem sabe, atrás de um

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rochedo a contar mexilhões.Montei na bicicleta e dirigi-me para sul, rumo À mata.Lembro-me do frio desusado que fazia nessa manhã, ou talvezfosse a minha ansiedade que me dava arrepios e me crispava apele da cara. A concha de prata que trazia pendurada no fiobatia-me no peito ao ritmo da pedalada frenética que,curiosamente, não me cansava. De facto, só quando parei, juntodas primeiras árvores, compreendi que já nem sentia as pernas,contudo, a respiração não estava ofegante - na verdade, não meouvia respirar, apenas sentia o rumorejar embalador da mata naqual entrava agora, pedalando suavemente. Um pássaro minúsculoe semelhante a um pardal veio poisar sobre a parte central doguiador e depois, tranquilamente , levantou voo e desapareceuentre a copa de um pinheiro bravo. A certa altura, deixou dehaver caminho, pelo que tive de me embrenhar na mata,ziguezagueando entre as árvores e os arbustos, afastando orosto para os cabelos não se emaranharem nas ramagens. Depois,cansada daquela luta, parei,. atei o cabelo atrás com um lençoque trazia ao pescoço e continuei a pedalar, sem saber aondeaquela viagem me levaria.Chegada a uma pequena clareira estaquei. Agora, podia ouvirclaramente a minha respiração e o batimento do coração,descompassado e confuso. E, antes de poder reflectir, vi-me depé, ao lado da bicicleta e comecei a caminhar como se os meuspés soubessem exactamente para onde se dirigiam.

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Deixei-me assim levar sem me importar com mais nada a nãoser encontrar o velho, que, sabia-o agora, estava perto comcerteza.Após uma caminhada que não sei quanto tempo durou, sentiqualquer coisa junto dos pés e, olhando para baixo, vi umesquilo. Baixei-me para o ver mais de perto, mas o bichinhologo desapareceu entre a folhagem e, mal voltei a erguer-me,ainda sem olhar em frente, pressenti que estava a serobservada. Quando finalmente levantei a cara, senti o coraçãoparar e as pernas a tremer.Quando abri os olhos novamente, estava deitada num colchãovelho, provavelmente recheado de palha, dentro de uma espéciede estrebaria. Olhei em volta, muito devagar, receandoencontrar qualquer coisa demasiado estranha que me assustasseainda mais. As paredes, de tijolos À mostra, eram quasenegras. No chão havia lenha empilhada em dois cantos, umapanela de ferro e, junto do colchão, uma manta cinzenta evermelha, comida pelas traças e pelo tempo. Antes de melevantar, reparei ainda num coto de vela, colado a um piresdesbotado, sobre um banco tosco. Não sabia o que fazia naquelelugar, mas tinha a certeza de que fora o velho que ali metrouxera.Mal consegui levantar-me, senti uma forte dor nas pernas eum ardor no braço direito, que estava arranhado, talvez daqueda de que eu não conseguia lembrar-me. Arrastei o corpoqueixoso até À porta aberta e olhei em redor. Foi então queele apareceu, vindo das traseiras da casita, arrastando ospés. Vestia umas calças cor de nuvem e uma camisa de flanelaaos quadrados que, em tempos, tivera certamente um colorido

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atraente. Sobre a camisa, um colete largo e esgaçado, sem cor.Aproximou-se lentamente e entrou na casa, passando por mim semnada me dizer. Segui-o então em silêncio e sentei-me nocolchão. O velho, por seu turno, retirou cuidadosamente a velado banquito de madeira e sentou-se. Foi então que pudeobservá-lo melhor, pois a porta continuava aberta e a luz damanhã era agora mais brilhante, iluminando-lhe o rosto, delado. Não era tão velho como eu pensara, teria talvez setentaanos, mas era difícil distinguir-lhe as linhas do rosto morenoescondido pela barba acinzentada que crescia em ponta. Os pés,metidos em sandálias de couro estalado, eram enormes, comoconvinha a um homem daquela estatura. Por fim, um poucoconstrangida por estar a olhá-lo com tão pouca discrição,baixei a cabeça e tentei quebrar o silêncio, forçando duastossidelas que, no entanto, em nada me ajudaram. Subitamente,ouvi-lhe estas palavras:- Podia ter partido o braço...A voz não era de um velho, mais parecia a de um jovem cheiode vigor e personalidade.- Devo ter... caído?Riu-se.- Foi o susto.Consegui finalmente levantar a cara e enfrentá-lo.- Que foi que me aconteceu? Desmaiei?Voltou a rir-se, mas de forma mais sóbria.- Grande estafa, hein?De facto, ainda mal sentia as pernas do esforço a que astinha obrigado.- Acho que vinha depressa de mais... - expliquei. - Devo tertido uma quebra de tensão.Esperava nova gargalhada, mas, em vez disso, o velho fez umacara muito séria, levantou-se e foi buscar um pacote detabaco.

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Depois, voltou a sentar-se, acendeu um cachimbo que retirou dobolso da camisa e inquiriu:- É turista, vê-se bem. Mas ainda nenhuma se tinhaaventurado por estas bandas. Na verdade, nunca aqui vemninguém.- Ninguém mesmo?- Ninguém.Por que razão estaria a mentir-me? Insisti:- Há um rapaz que vive na ilhota com a avó...- Ninguém! - interrompeu-me resolutamente e levantou-se parair buscar mais tabaco.Mudei de táctica. O melhor seria começar por outro lado.- Vive aqui há muito tempo?Sorriu vagarosamente, com um sorriso que me pareceu já tervisto. E, de repente, comecei a ver nele alguém que euconhecia. Aquele sorriso trouxe-me uma imagem que nãoconseguia descortinar, mas que estava no lugar bom da memória.Voltei a perguntar:- Nunca viveu noutro lugar?- Claro. Ninguém vive sempre no mesmo lugar.Começava a desesperar-me aquele velho que teimava em fugir

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sempre Às minhas perguntas.- E família?Sorriu muito amargamente. Um sorriso que eu nunca tinhavisto em parte alguma. Era absolutamente incolor, como o seucolete. Mais triste do que amargo. Depois, franziu o sobrolhoe eu compreendi que aquele era um assunto para mais tarde, setivesse sorte...- Bem, vou andando - disse-lhe, ao mesmo tempo que melevantava preguiçosamente do colchão.

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Obrigada por me ter trazido para sua casa. Se não tivesseaparecido, acho que morreria de susto ao acordar na mata,rodeada de bicharada que não conheço!Sorriu e levantou-se para me acompanhar até À saída e dar-mealgumas instruções:- Agora vá sempre por aquele carreiro da esquerda e, quandovir uma árvore alta que tem uma trepadeira enrolada ao tronco,a bailarina, siga pela direita. Deve levar uma meia hora até Àpraia.Agradeci e vim-me embora, seguindo as orientações do homemcujo nome não chegara a saber, mas com a convicção de queviria a conhecer mais tarde.Chegada À marginal, parei a olhar o mar. Não se via vivalmana praia, e os barcos dos pescadores descansavam sobre aságuas mansas, paralelamente À linha dourada do areal.Em casa, corri para o duche desejosa de um banho que mereconfortasse da manhã atribulada que passara. Então, para meuespanto, quando desabotoei a blusa, vi uma nódoa negra nolugar onde a minha concha batera desenfreadamente durante opercurso até À mata. Uma nódoa sobre o coração.

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Capítulo XI

A TROCA

Chovia serenamente naquela manhã. Não estava frio nem corriaponta de vento. O mar, estranhamente calmo, empurrava até Àpraia umas ondinhas que se desfaziam mansamente na areia, semforça para arrastar alga ou concha. Passeei por muito tempo Àbeira-mar, sob a chuva miudinha, respirando iodo e sal que secolava À pele, emprestando-me aquele cheiro de ser marinho,como o Dunas. Cansada da caminhada, acocorei-me na fronteiraentre a areia seca e a molhada e pus-me a mirar pedras polidaspelas águas, semienterradas no chão castanho e fofo. Derepente, umas pernas bronzeadíssimas e esguias chegaram pertodas minhas mãos e pararam. Levantei a cara e vi-o, de cabelo apingar, como sempre, e olhos de nevoeiro.- Até que enfim! - exclamei. - Pensei que nunca maisaparecesses...

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Sorriu, com um dos sorrisos que eu já lhe conhecia e que

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poderá descrever-se como uma das maravilhas do Universo.- Ainda não mergulhaste?- Com este tempo?!- Que é que tem?!- Mas eu nem trago fato de banho, Dunas.- Vai pô-lo e volta aqui!A voz era autoritária, sem me deixar margem para um não.Deveria ter-lhe dado uma desculpa convincente, mas não fuicapaz de lhe mentir. Corri a casa, vesti-me e voltei À praia,onde o avistei ao longe, no meio do mar, sentado numa daquelasrochas mais escorregadias do que gelo. Mal me viu, acenou-mepara que fosse ter com ele. Respirei fundo, olhei o céu, quecomeçara a escurecer, e meti-me na água. Ao chegar perto darocha, o Dunas desceu e começou a nadar em meu redor, gritandoque era um tubarão. Depois, agarrou-me um braço e abriu muitoos olhos de pestanas coladas pela água salgada.- Caíste?Referia-se aos arranhões que eu fizera na mata.- Caí, vê lá tu. Mas já não dói.- Onde?- Hã?- Onde é que caíste?- Bem, foi uma coisa sem importância.- Onde?!- Na mata...Ficou calado por momentos, depois, mergulhou e ficousubmerso por tanto tempo que me assustou. No entanto,contive-me e não gritei ao chamá-lo:- Dunas!Voltei a chamá-lo vezes sem conta, olhando À minha volta.Quando estava praticamente em pânico, avistei a sua figuraesguia ao longe, a nadar crawl já perto do areal. Barafusteisem ser ouvida e nadei para o alcançar, mas em vão. Já naareia, encontrei-o sentado À beira-mar a desenterrar um búziode cor rosada. Enfureci-me.- Ouve lá, afinal que é que tu queres?! - Perguntei. -Desapareces de um momento para o outro, não dás uma notíciasequer, desafias-me para ir nadar contigo e evaporas-te!Deixaste-me sozinha longíssimo da costa!Julguei que éramos amigos, Dunas. AMIGOS, estás aperceber.Será que também é uma palavra nova para ti?!Deixei-me cair na areia, exausta da natação e do discurso. Obraço arranhado começara a arder-me do sal, o vento acordoufurioso e desatou a varrer o areal, e o céu ameaçava desabarsobre as nossas cabeças. Contudo, faltaram-me as forças parame levantar e correr para casa.- Não tenhas medo - disse-me por fim, enrolando uma algafiníssima no meu braço ferido, como se de uma ligadura setratasse.- Tu Estás a apertar-me com isso, Dunas! - refilei ,afastando o braço.Ele levantou-se, farejou os ares e voltou a sentar-se ao meulado.- Agora vai começar a chover a sério - avisou.Mal acabou de falar, as nuvens, em perfeita sintonia com assuas palavras, despejaram uma carga de água que caía em gotasgrossas e pesadas. No entanto, sabia bem receber aquela água

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que tirava o sal dos corpos e lavava o espírito. Levantei-me eolhei o céu, sentindo a chuva picar-me a cara. Depois, veiouma sensação de bem-estar.

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O corpo estava leve e morno, exactamente À mesma temperaturado ar, como se fizesse parte do ar. Foi então que me apercebide que o braço já não ardia e, quando o olhei, aconteceu acoisa mais incrível: dos arranhões nem rasto. A pele,novamente lisa, não deixava adivinhar a mais pequenaarranhadela!- Foi da... alga? - arrisquei.- Não. Foi da chuva - disse o Dunas rindo.Fiquei perplexa. Numa fracção de segundo passaram-me pelacabeça as ideias mais disparatadas na tentativa de arranjaruma explicação para o sucedido: talvez a avó do Dunas Lhetivesse ensinado a curar feridas com certas algas e plantasraras; talvez fosse da maneira de colocar a alga sobre osarranhões; talvez o próprio sal do mar, talvez aquela chuvamorna e doce...- Desisto - desabafei. - Não sei o que fizeste, mas gostavaque me explicasses, Dunas. Por favor... Eu destesto ficar semcompreender o que se passa, sobretudo o que me diz respeito!Sorriu, de troça ou de pena da minha desorientação.- Os arranhões passam num instante. - Depois, acrescentou emvoz baixa: - Quando são na pele...A chuva abrandava, e o mar, mais calmo, espelhava agora asasde gaivotas. Sentei-me outra vez junto dele e respirei fundo.- Gostava de entender, Dunas, mas já vi que há muitas coisasque preferes não contar. É pena. Devemos confiar nos amigos...- Então porque não confias? - perguntou, levantando-se evirando-se para a marginal.

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Fiquei sem palavras. Mecanicamente, levantei-me também esegui com ele para minha casa, num silêncio que fazia eco - umruído surdo de búzio adormecido.Chegados ao terraço, preparava-me para entrar em casa quandoele me estendeu a mão onde pusera a concha que trazia semprepresa aos calções.- Toma. Esta não vai fazer-te nódoas negras.Fechei a concha na minha mão. Devagar. Como se ali estivessea alma daquele rapaz que eu não supunha existir em partealguma do planeta. Depois, tirei a concha de prata do meu fioe dei-lha, sem a solenidade que gostaria de ter imprimidoÀquele gesto. Ele fez passar a argola no cordel que traziaatado À presilha dos calções e olhou para mim, como se nada deespecial tivesse acontecido. Foi então que coloquei a suaconcha no meu fio e, felicíssima, corri para casa, adivinhandoque ele iria sumir uma vez mais sem dizer palavra. Nãosuportaria vê-lo ir-se embora uma vez mais sem me prometer quevoltaria em breve.

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Capítulo XII

NA ESQUADRA

Como o tempo continuava chuvoso, passei a manhã em casa, emfrente da máquina de escrever, À procura das palavras que nãovinham. Perto da hora do almoço, ouvi um burburinho na praia,mas não fui ao terraço. O céu tinha aberto e o barulho vinhacertamente dos turistas do aldeamento novo que apareciam umavez por semana. Não tive vontade de ir À praia. O Dunas deviaestar longe, para não ver a sua praia ser uma vez maisinvadida e conspurcada. E era bom que não tivesse vindo mesmo,porque a barulheira naquela manhã foi invulgarmente descarada. A seguir ao almoço, coloquei a minha máquina na mesinha brancado terraço e fui espreitar a praia. Já todos tinham partido edeixado no areal montes de lixo que pareciam ali ter sidocolocados de propósito. Indignei-me. Não era normal umasujeira daquelas. Dir-se-ia que os invasores tinham queridodeixar a sua marca bem visível na praia,

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e o mais curioso é que o lixo (latas vazias, pacotes, garrafase lenços de papel) estava estranhamente organizado emmontinhos aqui e ali como se o serviço de limpeza (que ali nãoexistia) tivesse começado o trabalho e parasse sem o terconcluído. Que diria o Dunas quando visse aquele espectáculo?Tive até vontade de ir eu própria apanhar todos aquelesresíduos de uma civilização incivilizada e estúpida, só paraevitar outro desgosto ao Dunas. No entanto, o sol começou abrilhar intensamente e achei melhor deixar a tarefa para o fimda tarde. Assim, arrumei a máquina e peguei na bicicleta parair À aldeia tomar um cafezinho.Quando me sentei À mesa, o empregado apareceu todo agitado aperguntar-me se eu sabia do sucedido.- Não. Não sei de nada - respondi, imaginando que seseguiria uma coscovilhice qualquer.- O garoto! Aquele que a senhora levou ao posto no outrodia...Sobressaltei-me.- Aconteceu alguma coisa ao Luís?- Se aconteceu! A esta hora ainda deve estar na esquadra.Devia haver qualquer equívoco.- Não pode ser! - disse, levantando-me imediatamente.- Então vá lá ver! Parece que houve bronca na praia.Disseram que o miúdo fez para lá das boas aos turistas. Armouuma cena dos diabos e dizem que foi um estrangeiro que otrouxe pelas orelhas À polícia.Não quis ouvir mais. Perguntei qual era o caminho mais curtopara a esquadra e dirigi-me para lá com o coração reduzido aum grão de areia.

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Larguei a bicicleta e entrei esbaforida no posto da polícia.A esquadra era húmida e escura, um cenário de Dickens.Um bêbado ruminava uma lengalenga para a parede leprosa,

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sentado num banco corrido de madeira carunchosa. Pus-me atrásda cigana que era agora atendida ao guichet e, chegada a minhavez, pedi esclarecimentos sobre o que se tinha passado com oDunas. O polícia respondeu-me laconicamente, dizendo que, seeu não era da família, não podia dizer-me nada. Insisti entãoveementemente para o ver nem que fosse por cinco minutos,alegando que conhecia a avó e os familiares mais próximos. Ohomem não acreditou, mas, vendo o meu ar aflito, mandou chamaro rapaz, advertindo-me, porém, de que não poderia levá-lo dalisem a avó aparecer e mandou-me aguardar no banco onde o bêbadoestava agora praticamente deitado. Encostei-me À parede efiquei À espera, numa ansiedade crescente. Meia hora maistarde vieram chamar-me. Entrei para uma sala onde havia apenasuma mesa, duas cadeiras velhas e um candeeiro frágil suspensodo tecto. Olhei em volta sem conseguir pensar no que quer que fosse. A espera tornou-se longa, mas não fui capaz de mesentar. Passou mais meia hora até que, pela segunda porta dasala, vi entrar o meu amigo acompanhado por um guarda que moentregou, dizendo:- Tenho ordens para o vir buscar dentro de dez minutos. Jámandámos chamar a avó.quando ia a sair, o polícia voltou-se para mim e depoisacrescentou:- Esse garoto é maluco. Não sei se lhe é alguma coisa , mas,se o conhece, aconselhe-o a tomar juízo para o bem dele. -voltou a virar-se para a porta, mas não quis deixar de avisar:

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- E olhe, prepare-se, o que ele lhe vai contar é mentira.Essa miudagem dá-nos cabo da cabeça e depois mentem como cães,a dizer que a gente lhes bate.Quando finalmente vi sair o guarda, agarrei com força na mãodo Dunas e depois, ainda em silêncio, abracei-o demoradamente.A seguir ao abraço, reparei então na cara dele onde podiaclaramente ver-se um inchaço junto À orelha direita e umavermelhidão escura sob um dos olhos. Abracei-o novamente epedi-lhe depois que se sentasse ao meu lado e me contassetudo. Ao contrário do que eu calculara, o Dunas tinha estadona praia nesse dia e, vendo o lixo que os turistas estavam afazer na sua praia, resolvera dar-lhes uma lição, recolhendotudo num saco, como quem se dispõe a uma limpeza séria edepois, para comunicar de forma mais eloquente a sua mensagem,despejara pequenos montes de lixo sobre os veraneantes queestavam deitados a apanhar banhos de sol... Um deles,enfurecido, segurara-o com força pelo braço e trouxera-o Àesquadra para lhe darem uma lição de civismo.- O que é civismo? - perguntou-me então, com a voz maisserena do mundo.Suspirei longamente e voltei a abraçá-lo. Quando merecompus, apenas lhe disse:- Deixa lá, Dunas. Já passou. Vais ver que não voltam asujar a tua praia. Eu vou ter mais atenção e vou vê-los doterraço. Não te preocupes mais. A tua avó deve estar a chegare vai levar-te para casa. Tenho a certeza de que vai dizer aoguarda que te fez isso na cara que ele não tinha esse direito,e podes crer que eu vou também dizer-lhe umas verdades!

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- Não faz mal. Já não dói. A sério! Só doeu foi ter de sairda praia com o outro, o gigante alemão ou lá o que era, aagarrar-me o braço. Ele nem me aleijou, só que eu queriadar-lhe um pontapé e não consegui. Ele era mais alto do que omeu pai!- Já passou, Dunas. E daqui para a frente vai tudo correrbem, tenho a certeza - disse-Lhe, passando a mão sobre os seuscabelos loiríssimos e lisos como fios de seda doirada.- Agora é melhor ires-te embora. A minha avó já deve estarquase aí...- Está bem, Dunas, eu vou. Mas promete que, assim quepuderes, vais visitar-me.- Promete-me também uma coisa.- É só dizeres - pedi-Lhe, esforçando-me por lhe mostrar quequalquer coisa que eu pudesse fazer por ele me daria o maiorgosto.- É a gaivota...- Aquela que já não consegue procurar alimento e que vai tercontigo atrás da rocha grande?- Hum-hum...- Que posso fazer, Dunas? Diz!- É que os guardas vão dizer À minha avó para me pôr decastigo em casa, não sei quantos dias, percebes?Engoli em seco.- Percebo, Dunas, mas talvez a tua avó não faça isso. Talveznão.- Bom, ela come qualquer peixe, estás a ver? Carapau,sardinha, chicharro... Partes aos bocados e pões lá ao pé, masnão te chegues muito perto, que ela pode morder... Não é pormal, mas as gaivotas têm aqueles bicos muito duros e, semquerer, a brincar, percebes?

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- Fica descansado. Eu vou tratar da tua gaivota. Prometo.- Todos os dias até eu poder lá ir?- Todos os dias, Dunas. Já prometi...- Tens de ter cuidado por causa do cão amarelo, que apareceÀ mesma hora, mesmo ao fim da tarde, para roubar o peixe.- Eu tomo cuidado. Eu afasto o cão, se ele aparecer.Ficou mais tranquilo. Depois, levantei-me assim que o guardaapareceu na sala. O Dunas despediu-se de mim com um sorrisoque recompensava tudo o que me tinha pedido para fazer e muitomais. E saiu, sacudindo o ombro sob a mão possante do guarda.Antes de abandonar a esquadra, não pude deixar de manifestartoda a minha indignação pelos maus tratos que tinham infligidoao meu extraordinário amigo. De facto, exaltei-me e fui longede mais, de tal forma que o polícia que me atendera me pediuque me retirasse e me acalmasse.Cheguei a casa desfeita. Estendi-me sobre a cama e foi entãoque comecei a sentir um ardor intenso sobre o rosto, no mesmolado em que tinham batido ao Dunas. Fui ver-me ao espelho doguarda-fatos mas não notei qualquer marca. Então, sem saberporquê, sorri tranquila e feliz. Subitamente, olhei para o

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relógio e vi que eram horas de ir ao encontro da gaivota.Sobressaltei-me: não tinha peixe fresco em casa! Sem pensarduas vezes, meti duas notas no bolso dos calções, corri para abicicleta e voei para a aldeia. Tinha de chegar À praia atempo, para não desiludir o meu amigo.Na aldeia, a peixaria já tinha fechado, mas disseram-me quefosse bater a uma das casas dos pescadores, que lá haveriam dearranjar-me qualquer coisa. Voltei a voar na bicicleta e tivesorte, porque logo na primeira casa onde bati me disseram quepodiam dispensar-me algum peixe.- É para cozer ou assar? - perguntou a mulher do pescador.- É para... Eu como cru... Habituei-me com um japonês meuamigo - expliquei, tentando ser o mais discreta possível.A mulher franziu a testa e inquiriu:- Pescada ou carapau?- O carapau serve. - Então, como ela me olhasse com a maissincera expressão de nojo e estranheza acrescentei: - Eutempero-o, claro, com azeite e vinagre...A mulher encolheu os ombros, eu paguei e saí À velocidade daluz para chegar a tempo À praia.

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Capítulo XIII

PALAVRAS À BEIRA-MAR

Tal como havia previsto, o Dunas ficara de castigo três diasem casa, e nesses três dias não faltei ao prometido com agaivota velha a quem o meu fantástico amigo teimava emprolongar a existência.Ao quarto dia, quando cheguei ao terraço depois do almoçopara continuar a trabalhar no meu romance, encontrei uma folhaescrita entalada no rolo da máquina. Retirei-a cuidadosamente,com um receio parvo de a rasgar sem querer, e li:

Querida concha:

No mar existem muitas conchas. Umas bonitas e boas, e outrasmás e feias. Procurei as conchas boas, mas não as encontrei.Estavam partidas ou riscadas. Cortavam. Até que, um dia, amaré trouxe até mim uma concha.

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Colorida e transparente. Essa concha abriu-se e eu sentei-melá dentro. Para sempre.A gaivota continua bem. Vi-a da minha casa a voar emdirecção aos penhascos.

Li outra vez e mais outra até decorar todo o texto. Depois,sentei-me À mesa e tive vontade, pela primeira vez há muitotempo, de escrever um poema. Fechei os olhos sob o solgeneroso da tarde e escrevi mentalmente o que sentia naquelemomento. Não sei já exactamente que palavras acalentei nocoração para responder Àquela carta - a mais bonita que algumavez recebi. Mas sei o que senti: medo. Um medo terrível de não

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saber o que fazer com aquele sentimento grande que se tornavamaior do que eu. Medo de não estar À altura, de o desapontar.Medo de tudo não passar de um dos meus sonhos com coisasimprováveis. E, sobretudo, medo de o perder, embora tivesseagora a certeza do que aquele Para sempre significava.Levantei-me e aproximei-me do muro. Recordo claramente que,naquele momento, preferi fechar os olhos para não o ver lá embaixo na praia, onde calculei que estivesse. Na verdade nãosabia que dizer-lhe. E fiquei assim por muito tempo, apoiadano muro, de cabeça escondida entre os braços. Quando por fimabri os olhos, vi o Dunas no mar, deslizando suavemente emdirecção À praia. Ao ver-me, acenou-me atrás de uma onda. E euchorei. Não sei se de alegria ou de pena de não ser mesmo essaconcha transparente que ele pudesse transportar consigo nasfantásticas viagens através das ondas,

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entre algas e estrelas-do-mar. Na verdade, tive uma vontadesúbita de pertencer-lhe como objecto querido que trazemosconnosco em todas as ocasiões.Mas... como transformar um corpo grande e humano numa conchapequenina que se leva presa À cintura por um cordel cor denada?Quando dei por mim, estava na praia. Tirei os sapatos ecorri para a beira-mar. A água fria insistiu em acordar-me eeu não queria.- Está quentinha! - disse o Dunas, saindo do mar eborrifando-me os cabelos com gotas salgadas.- Está um gelo!Riu-se.- Senta-te aqui - pediu-me, puxando a dobra dos meuscalções.- Sabes, Dunas...- Encontrei um braço de lula gigante lá ao fundo - contou,eufórico, apontando a linha do horizonte.- Eu queria dizer-te que...- Deve ter havido luta com um tubarão.- Credo! Há tubarões por aqui!Gargalhada estrondosa.- Foi só para ver a tua cara! - E riu-se outra vez.- Olha, Dunas, eu...- Mas há raias gigantes. E lulas. E polvos de todos ostamanhos, lá ao fundo, claro.- Está bem, mas...- Eu encontro alguns, quando mergulho do barco de um amigodo Pedro, que também é pescador.- Estou a ver. Agora, o que eu queria dizer-te era...- Corais é que não há, e é pena.

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Impacientei-me:- Chiu! Importas-te de me deixar falar?Riu-se descaradamente, a desafiar-me.- Estás zangada?!- Por enquanto não, mas vou ficar, se não me deixares falar!

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Detesto que me interrompam.- Já sei tudo - atalhou com o maior descaramento.- Sabes o quê, afinal, hein?!- Ora, que gostaste do meu poema e que até o sabes de cor.Levantou-se para sacudir a areia dos calções ruços. Eufiquei boquiaberta, mas não me dei por vencida:- Por acaso enganaste-te. Não era isso que eu ia dizer-te,embora seja verdade...Com a ponta do pé atirou-me areia para o colo e voltou aenfrentar-me:- Era isso que me ias dizer, sim senhora. Eu sei.- Então não vale a pena dizer-te o resto, pronto. E, nessecaso, posso voltar para casa, não é?Novo pontapé de areia, desta vez para a blusa.- Se queres ir-te embora, vai. Não me importo.Irritou-me aquela desfaçatez e foi a minha vez de lhe atirarareia, mas, por azar, acertei-lhe em cheio na cara e nosolhos. O Dunas correu para o mar e eu fui atrás para lhe pedirdesculpa. Como ele mergulhou, mergulhei também e fui apanhá-loum pouco antes da rebentação.- Mostra os olhos! - pedi, receando tê-lo magoado com aareia.- Não faz mal...- Desculpa - disse em voz baixa, tremendo de frio.- Só se me disseres o que ias contar há bocado...

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Olhei para trás. As ondas começavam a aumentar de tamanho etive medo.- Podemos conversar antes na praia? - gritei-lhe, por causado barulho do mar.- Não! Aqui! - ordenou.Mergulhei para ganhar coragem e, quando vim À superfície,procurei-o, mas já se tinha evaporado. Depois, quando vinha anadar em direcção ao areal, uma mão gelada agarrou-me peloombro, imobilizando-me.- Ah-ha! Apanhei-te!Virei-me para ele. Os olhos, cheios de água, eram ecrãsenormes que me olhavam agora com a maior curiosidade.- O que eu ia dizer-te, Dunas, é que hoje compreendi...- Que gostas muito mais de mim do que dantes. Eu tambémgosto mais de ti.Baixei a cabeça, desolada.- Por que é que nunca me deixas acabar as frases?! Porquê!- Porque não é preciso.Viemos os dois a nadar até À praia. Depois, deixámo-nos cairsobre a primeira faixa de areia seca. Em seguida, o Dunaslevantou-se bruscamente e deitou-se noutra posição, de cabeçaem frente da minha, cabelos colados aos meus, e murmurou:- É tudo verdade.- O quê?- Aquilo que eu escrevi.

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Capítulo XIV

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A VISITA

Os dias que se seguiram foram inteiramente dedicados aotrabalho que, afinal, me trouxera ali. O Dunas apareceudiariamente, mas só para dizer olá, visto que entendeuperfeitamente a minha necessidade de acabar o livro. Um dia,porém, não apareceu e eu estranhei e senti a sua falta. No diaseguinte, a mesma coisa, até que, no quarto dia de ausência,preocupada e saudosa, resolvi montar na bicicleta e dirigir-meÀ ilhota. Um barquito a remos, ancorado na pequena baía,convidou-me a entrar e eu lá fui, manejando os remos o melhorque podia até atracar do outro lado, onde se via uma alvíssimaorla de areia e, mais adiante, inúmeras dunas dondedespontavam plantas verde-seco. Ao fundo, entre pinheirosmagros, uma casinha branca, perfeitamente enquadrada napaisagem, fez-me sentir a proximidade do meu amigo.

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Bati À porta, de coração nas mãos. Uma figura alta e esguiade mulher, espreitou por entre as cortinas de renda e veioabrir-me a porta.- Boa tarde. Eu...- Faça o favor de entrar.- Obrigada. Eu, bem, ultimamente, tenho sofrido de insóniase, como me disseram na aldeia que a senhora vendia uns chásexcelentes...- Insónias, é? - perguntou, fazendo sinal para que mesentasse a uma mesa de pinho, junto da lareira extinta.Depois, virou-se para a prateleira que havia na parede do ladodireito, tirou de lá dois boiões de vidro e colocou-os sobre amesa. Então, devagar, começou a escolher algumas ervas de um eoutro frasco, que ia colocando sobre uma folha de papelvegetal.Sem me conter, perguntei:- A senhora é a avó do Luís, não é?O rosto manteve-se atento À tarefa de preparação das ervas enem para mim olhou quando, pouco depois, retorquiu:- Foi você que deu a concha de prata ao rapaz?- Foi uma troca... - respondi, sem querer dar maisexplicações sobre um dos mais bonitos momentos que tinhavivido com o Dunas.- Tem filhos?- Como?- Pergunto se tem filhos.- Não.- Então sugiro-Lhe que arranje um - replicou, com algumaagressividade.- O Du..., o Luís está em casa? - perguntei, assim quearranjei coragem.- Tem estado adoentado. Nada de grave.Sobressaltei-me.- Que aconteceu?- Uma febre. Já está a passar.- Não seria melhor chamar...- Um médico? - inquiriu com desprezo. - Só servem para

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assustar as pessoas e levar-lhes couro e cabelo.Não sabia que argumentar. A personalidade dela erafortíssima, via-se bem até pelas rugas finas e fundas emlocais do rosto onde só o mau génio pode fazer rugas. Deresto, tudo nela era peculiar: o cabelo, de um cinzento quenão vinha em nenhum catálogo, o vestido de ramagens preto ebranco, cujo feitio complicado não consegui descortinar, asmãos muito brancas e pigmentadas, invulgarmente bem tratadaspara quem não tem empregada, e o anel no dedo médio da mãodireita , de ouro finamente trabalhado donde sobressaía umapedra oval amarela. Sentia-me intimidada, como se perto delaeu não passasse de uma criança com receio de fazer má figura.No entanto, tinha de arriscar:- Eu... gostaria muito de vê-lo, se não se importar, claro.Não demoro nada, era só para lhe desejar as melhoras - pedi amedo.Foi nesse momento que se sentou À minha frente, do outrolado da mesa, a dobrar cuidadosamente o pacotinho ondecolocara as ervas. Respirei fundo para tentar sentir-me umpouco mais À-vontade. Um aroma intenso a plantas e a terrahúmida invadia a sala e contribuía para me estontear.- O meu neto tem tudo o que precisa, compreende?Tinha sérias dúvidas, mas respondi um sim atrofiado. Elaprosseguiu:

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- O meu único filho deixou-o aos meus cuidados, e sou eu queo tenho criado desde que o pai foi para a América.- Eu sei que ele está muito ligado a si.Sorriu, como se as minhas palavras fossem absolutamenteescusadas.- Quem foi que lhe indicou aquela casa?- A que eu aluguei na praia?- Sim.- Uma amiga que lá passou férias há uns anos.- O meu filho morou lá antes de se separar da mulher.- O Du..., quero dizer, o Luís contou-me que viveu lá emcriança, com os pais.Sorriu novamente, desta feita com ironia.- Ela não é a mãe dele.- Não?!- Viveu com ele três anitos e quis até ficar com a criança,depois do divórcio, mas eu não deixei, claro.Não percebi aquela lógica, mas, para não a contrariar,acenei cumplicemente com a cabeça. Depois, já maisdescontraída, perguntei:- E a mãe dele onde está?- Morreu ainda o meu neto era bebé de colo. Pneumonia...- Ah... E o Luís sabe essa história?- O pai contou-lhe, contra a minha vontade, bem entendido. Omeu filho era louco por essa rapariga. Conheceram-se um Verãona praia. Ela veio de fora, era bonita... Enfeitiçou-o.- Deve ter sido uma tragédia a morte dela.- O meu filho nunca mais foi o mesmo. Tornou-se caprichoso eagressivo, ele que era um paz-de-alma... Foi ela que o pôsassim! Até o obrigou a prometer-lhe que a enterraria na praia!

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Ela adorava praia...Arrepiei-me.- Na praia?! Na praia dos pescadores?- Pois!- E ele... cumpriu a promessa?- Tal e qual. No dia em que ela morreu, eu não deixei e eleobedeceu-me. Fez-se um funeral a sério, com missa e tudo antesde a levarmos para o cemitério da vila.- E então? - inquiri, sem compreender o que poderia tersucedido.- Então, louco como estava, coitado, foi de noite buscá-la Àcampa, embrulhou-a numa manta e trouxe-a para a praia, onde aenterrou sozinho num lugar que não revelou a ninguém, nem amim! Depois, ficou estendido na areia até amanhecer...Senti-me sufocar. O cheiro a ervas era agora praticamenteinsuportável.- O Luís não sabe isso, pois não?- Infelizmente... Não pudemos evitar que lhe contassem.Tive uma enorme vontade de chorar mas, em vez disso, desateia tossir desalmadamente.- É alergia. Eu trago-lhe um copo de água - disse ela, comuma doçura inesperada que me reconfortou por um instante.Bebi a água (que me soube a uma fruta que não conseguiidentificar) e levantei-me.- Por isso ele não sai daquela praia... - murmurei junto dajanela.

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- É impossível evitar que ele vá para lá! Só se eu andasseatrás dele, bem vê que não posso. Aquele diabrete anda-mesempre em correrias! E o meu reumatismo não me deixa em paz!Já vê que não posso impedi-lo de andar por aí, todo o diametido na água como um peixe. Não posso fazer nada...- Claro que não.- O meu neto é muito teimoso...- Eu sei - respondi-lhe sorrindo. Depois, voltei a arriscar:- Será que posso ir vê-lo num instante?Ela suspirou, encolheu os ombros e apontou-me a porta quedava para o quarto do neto.Entrei sem fazer barulho. O Dunas dormia o sono dos justos,e eu fiz por não o acordar, mas, mal me aproximei - em pontasdos pés - da cama de ferro branca, abriu os olhos e nãopareceu muito surpreendido por me ver ali.- Vieste no barco?- Hum-hum.- Sabes remar?!- Não, mas desenrasquei-me.Neste momento, a avó entrou no quarto, e ele, sentando-se nacama, pediu imediatamente:- Sai, avó, por favor. Não me dói nada. Podes sair?Contrafeita, ela saiu, olhando-me de soslaio.- Estiveste tempo de mais dentro de água, aposto -disse-lhe, forçando um sorriso para tapar a minha aflição denão poder abraçá-lo por uma eternidade.- Morreu...- Hã? Quem?

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- A minha gaivota...Então era isso...- Como foi?

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- Ia dar-Lhe comida, mas ela não conseguiu... Nem mereconheceu.Foi nesse momento que reparei no penso, certamente feitopela avó, que ele tinha no braço esquerdo.- E isso? Escorregaste em alguma rocha, está visto.Riu-se.- Está visto que tu vês mal. Foi o cão.- O amarelo?- Chegou-se perto de mais, para roubar o peixe que eulevava...Peguei-lhe no braço e fiz-lhe uma festa demorada. Depoissenti o coração descompassado ao pensar que o cão, vadio, nãodevia estar vacinado (nem o Dunas...). Lendo-me uma vez maisos pensamentos, tranquilizou-me:- A febre foi do sol. O cão não mordeu muito fundo. Estavamais interessado no carapau.Foi depois destas palavras que reparei numa ponta de cordelescondida sob a almofada e, sem pedir, puxei-o. Ele, porém,impediu-me de tocar na concha que vinha presa ao cordel efechou-a logo na mão.- Desculpa o meu atrevimento - pedi.Ele voltou a esconder a concha e o cordel debaixo daalmofada e rematou:- Agora podes ir. Amanhã já vou ter contigo. Quero dormir.Tenho um sonho para acabar.

* * *

Mal saí da casa do Dunas, dei uma corrida até ao areal e fizuma cova onde enterrei o saco das ervas.

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Só depois me meti novamente no barco e remei até À outramargem, onde a minha bicicleta estava no local em que adeixara. Montei e, quando pus os pés nos pedais, uma sombraagigantada surgiu ao meu lado, fazendo-me dar um salto quequase me desequilibrava. Olhei. Era o velho da mata. Que fariaali?- Ah, é o senhor... Assustei-me...Sorriu com o tal sorriso que eu já vira em alguém, meiodisfarçado pela barba hirsuta.- Vou À pesca. Quer vir?Não sabia que fazer.- Agora?- É uma boa hora. Melhor só À noite.- Para dizer a verdade, nunca pesquei.- Então há que aprender.O convite era simpático de mais para recusar, por outrolado, talvez fosse uma oportunidade de ouvir a história que eusabia que o velho guardava. Assim, desmontei da bicicleta e

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caminhei ao seu lado em silêncio até À extremidade esquerda doareal. Lá, ambos nos sentámos numa rocha polida e o velhocolocou o isco no anzol e lançou a cana com mestria deprofissional.- Foi pescador? - perguntei olhando o manto azul quieto aosmeus pés.- Como todos os da aldeia. Agora só pesco para mim...Fez-se silêncio e eu pude distinguir mil ruídos diferentesque vinham do céu, da terra e do mar. Depois, saiu-me umapergunta estúpida:- Não se sente sozinho Às vezes?

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Em vez de responder-me, passou-me a cana e acendeu ocachimbo que retirou do bolso da camisa aos quadrados. De canana mão, pareceu-me ficar mais perto dele, quase íntima, comose tivéssemos finalmente passado a barreira da cerimóniainicial.- Vim visitar o rapaz que vive na ilhota - contei-lhe.- Tem estado doente.Franziu a testa e, parecendo levemente consternado com anotícia, perguntou sem olhar para mim:- Coisa grave?- Parece que não. A avó disse que ele só tem tido febre eque está a passar.A consternação deu lugar a uma perturbação maior que eu nãotinha dados para compreender.- A Sara ainda me deixa morrer o miúdo, com as maniasdela...Percebi que conhecia bem a avó do Dunas e tive opressentimento de que a revelação que eu esperava devia estara rebentar.- Não sabia que a avó do rapaz se chama Sara. Achei-a...interessante.- Casmurra como uma mula...Não contive o riso.- Mas o neto gosta dela - continuei.- De quem é que ele haveria de gostar?!- O senhor... Como vive por estes lados conhece-os bem?- Bem de mais - respondeu tão baixo que, por um momento, mepareceu que a voz vinha do fundo do mar.Era difícil prosseguir a partir dali. A cana mexeu e eusobressaltei-me:- E agora! Que faço?

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- Puxe devagar e vá enrolando aí. Com força!Segui as instruções do velho e, para meu espanto, vielevar-se e contorcer-se sobre as águas um peixe cujo nomedesconhecia.- E agora? - tornei a perguntar, muito entusiasmada.- Pegue-o com cuidado e volte a deitá-lo À água. Vá,deite-o!- Como?!- Deite-o ao mar!

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Sem compreender, fiz o que ele me mandara, sentindo o peixedançar-me entre as mãos.- Não percebo. Porque é que não ficámos com o peixe?!- O primeiro que se pesca na vida deve ser devolvido Àsorigens - foi tudo o que ele me disse, sem explicar a razãodaquele ritual. Devolvi-lhe a cana, meio amuada, e elepassou-me o cachimbo.- E disso, já fumou?- Já. O meu avô também fumava cachimbo e uma vezexperimentei, Às escondidas. E sabe? Gostei, mas não tivecoragem de experimentar outra vez, porque rapidamente meviciaria e isso seria bizarro demais...- Agora pode voltar a experimentar, se quiser - disse,apontando o cachimbo com a maior delicadeza.- Olhe que vontade não me falta!Pegou no cachimbo, limpou-o com uma ponta da camisa ecolocou-mo na boca, sem dizer nada. Depois, tirou outraminhoca de dentro do saquito transparente, colocou acontorcionista no anzol e lançou a cana À água.- Por enquanto há cá peixe que chegue. Daqui a uns tempos,não se sabe... Com as coisas que eles andam a derramar nosmares, por esse mundo fora... Hão-de dar cabo de tudo, detudo...Uma lufada fresca de vento fez voar o meu chapéu de palhaque caiu como folha de Outono sobre a água e logo começou aafastar-se rapidamente, levado pela corrente.Então, sem me dar tempo a impedi-lo, o velho passou-me acana, tirou o colete e a camisa, arregaçou mais as calças eatirou-se ao mar. Levantei-me em sobressalto. Contudo, parameu espanto, vi-o nadar como um atleta até alcançar o chapéu eregressar, já mais lentamente, até À rocha.- Ponha-o aí de lado e deixe-o secar.- Obrigada. O senhor... Onde aprendeu a nadar assim?Riu-se, com um certo orgulho.- Desculpe o meu comentário, mas pensei que a maioria dospescadores não sabia nadar. Provavelmente é uma ideiaerrada...- Não, não é. Só que eu sempre gostei de mais do mar paranão o abraçar em toda a sua grandeza. - Fez um curto silêncioe prosseguiu: - Dantes nadava muito , sempre À noitinha, até apele se me enrugar e os ossos estalarem de frio. Agora...- O Du..., o neto da sua vizinha também passa a vida dentrode água.Sorriu, saboreando o sorriso.- O garoto não saiu À avó, teve sorte...- Saiu ao pai, talvez...- Ou ao avô.Calámo-nos. O que eu suspeitava, afinal, era verdade.Precisava de saber mais:- E porque não convive com ele?Encolheu os ombros.

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- É a vida.- Não entendo.- A velha é osso duro de roer.

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- Bem sei, mas o Luís havia de gostar de passar algum tempoconsigo.- Mal me conhece. Além de tudo, acho que tem medo de mim...Devem ter sido as patranhas que a avó Lhe contou. Aquela nuncame perdoou.Sabia que estávamos a pisar terreno escorregadio, massenti-me suficientemente À-vontade para continuar o meuinquérito.- O senhor fez-lhe alguma...- Um filho...- De quem ela parece gostar muito.- O rapaz ficou maluco com a morte da estrangeira.- Não tem tido notícias dele?- Sei que está lá para as Américas. Parece que tem umrestaurante, onde vende esparguete... Pf! Esparguete!...- E a segunda mulher do seu filho?- Não tem muito que se lhe diga. Deixou-o. Compreende-se. Orapaz andava doido de todo. Aquele casamento não lhe serviupara nada. A outra sim, fazia-o feliz. - Olhou longamente paramim e, observando-me seriamente, rematou: - Já lhe disseramque faz lembrar a estrangeira?Parei de respirar.- Como?- Só que ela tinha o cabelo muito escuro e mais comprido.Mas o rosto, os olhos, essa tristeza que vem de dentro, sãoiguais. A Sara não lhe disse isso?

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Comecei a arrepender-me seriamente de ter começado aquelaconversa que acendera cá dentro uma chama incómoda, a queimara pele do coração.- Está a ficar tarde. Tenho de ir.- Não diga ao garoto que estivemos a conversar disto. Avelha não pode nem ver-me e arranja sempre maneira de saber detudo.

* * *

Em casa, corri para o espelho do guarda-fatos e fiquei aolhar-me, como se me visse pela primeira vez. Antes nãotivesse falado com o velho da mata! Antes não tivesse ido vero Dunas naquele dia. De repente, uma esperança reconfortou-me:talvez o velho tivesse feito confusão, tivesse confundidotudo. A mãe do Dunas morrera havia quase doze anos, comopoderia ele lembrar-se da cara dela? E depois, certamentebebia muito, percebia-se isso pelos olhos, o que teria sido arazão mais provável de Sara não o querer e o deixar viverassim, abandonado À sua sorte, no meio da mata. Não, o velhosó podia ter feito uma enorme confusão, até porque paracoincidências já bastava a das conchas!Nessa noite deitei-me sem jantar. O vento soprou com força,varrendo o terraço como vassoura enraivecida, e o marchicoteava lá em baixo, ameaçando desfazer a praia. Encolhidasob o lençol, recordo que adormeci a rezar para que o Dunasnão visualizasse nunca em mim qualquer parecença com a mãe queele mal conhecera.

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Capítulo XV

UMA FOGUEIRA NA PRAIA

Como prometera, o Dunas veio visitar-me assim que a febre olargou e, como habitualmente, apareceu no terraço de cabelo apingar. Porque o tempo mudara, vinha com uma camisa Às riscas,azul e branca, de mangas arregaçadas.- Não me digas que já foste mergulhar, Dunas! Olha que podester uma recaída. - Calei-me. A minha voz soava a protecção eisso incomodou-me e a ele também.- Tão cedo não me apanham na cama! Fiquei farto! Até jápodia ter saído ontem, se não fosse a exagerada da minha avó.- Ela sabe o que é melhor para ti.- Não, não sabe, mas não faz mal, porque, um dia, vou viversozinho numa casa que eu vou construir ao pé da duna grande. Éum sítio muito bom para ter uma casa. Quando calhar levo-telá.- Fica-te bem essa camisa!

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Riu-se.- Também gosto. Foi a minha mãe que ma deu quando fiz anos.- A tua mãe? - inquiri, para logo de seguida me arrepender.- Pois teve bom gosto.- Não é a minha mãe verdadeira, sabes?Quis mudar de assunto, mas já não fui a tempo.- Quando será que vamos ter sol outra vez? Diz lá, tu quesabes tudo!- A minha mãe verdadeira tinha um vestido azul, que ficou láem casa.Engoli em seco. Como desviar o rumo da conversa?- Ainda não te contei: estou quase a acabar o meu livro!- Tu devias ficar bem com o vestido dela. Uma vez, há muitotempo, tirei-o Às escondidas da arca e peguei nele com as duasmãos. Depois, levantei-o no ar e fui pôr-me À frente doespelho que a minha avó tem no quarto dela. E foi fácil!- Que é que foi fácil, Dunas? - balbuciei.- Imaginá-la dentro dele, ali mesmo À minha frente, noespelho. - E repetiu o gesto que fizera com o vestido.Comecei a sentir outra vez um nó na garganta que queria Àviva força desfazer-se e desfazer-me em seguida.- Tu tens é muita imaginação, Dunas - respondi, desviando acara e forçando um sorriso.Ele, porém, continuou o seu discurso, alheio Às minhasintervenções:- As mulheres ficam quase todas melhor de vestido.- Achas? - voltei a encará-lo, um pouco mais tranquila.

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- Hum-hum. Mas eu disse quase...- Pois disseste... Suponho que te referias a mim.

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Acertei?- Hum-hum. Gosto de te ver de calças de ganga e mais aindaquando pões os calções de explorador! - Riu-se.- São uns calções velhíssimos de que nunca fui capaz deseparar-me, Dunas. E sabes a melhor? Eram do meu irmão maisvelho. Um dia, enchi-me de coragem e pedi-lhos. Ele achou umaparvoíce da minha parte, mas deu-mos.Então, para meu completo alívio, acrescentou:- Tu não ficarias bem de vestido, não.- Nem com o que pertenceu À tua mãe? - arrisquei.- Só com esse, porque esse ficaria bem a toda a gente.Respirei fundo. Aquele receio estranho que me assaltara apósa conversa com o velho da mata começava a desvanecer-se.- E que dizes da novidade sobre o meu livro, hein?- Não foi para isso que cá vieste? - perguntou com o ar maisnatural do mundo.- Ora, Dunas, claro que foi, mas não estás contente por euter conseguido finalmente avançar? Sabes como foi difícil aoprincípio...Riu-se com gosto. E eu mergulhei inteira naquele riso quelhe iluminava os enormes olhos castanhos.- No princípio não estavas com inspiração nenhuma! Nem umbocadinho! Parecias uma aluna na escola a tentar fazer umaredacção e a coçar a cabeça para as ideias saírem!Corei como se tivesse nove anos e estivesse na presença daprofessora primária.

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- Também não é preciso fazeres troça. Sou uma pessoa normal.Não estou sempre inspirada!Riu-se outra vez, para me arreliar.- Um dia vou ler um livro teu, quando tiver tempo epachorra.- É preciso ter lata! - indignei-me a sério.- Não. É preciso ter coragem para pegar num monte de folhase ler tudo do princípio ao fim. Eu não costumo ler muito,percebes?- Fazes mal. Podias aprender coisas importantes.- Como o quê?- Olha, por exemplo, coisas sobre o mar de que tu tantogostas. Sobre peixes, algas, gaivotas, barcos. Há livros sobretudo, Dunas. Sobre tudo!- Não, não há - retorquiu, tristemente.Pressenti que não devia explorar aquela questão, mas, semsaber porquê, inquiri:- Porque é que dizes isso? Foi só para me contrariares?- Não há livros sobre uma coisa que eu gostava mesmo desaber.Olhei-o expectante. Depois, como não obtive resposta,insisti:- Sobre o quê? Posso saber?- Não.Dizendo isto, virou-se e correu para o muro do terraço. Noinstante seguinte, voltou atrás, montou na minha bicicleta sempedir nada e gritou, já junto do portão.- Vou dar uma volta. Depois trago-ta.

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* * *

Fui deitar-me sem que o Dunas tivesse vindo devolver-me abicicleta. Adormeci muito cedo, contra o que tinha sidohabitual nos últimos dias. Contudo, poucas horas depois,estava de novo desperta. Um aroma estranho entrara pela janelado meu quarto e tive de levantar-me para ver o que era. Pus oroupão sobre os ombros e debrucei-me no peitoril da janela. Oaroma intenso era afinal o cheiro a lenha queimada. Olhei parao lado direito e vi um fumozinho ténue que vinha da praia. Semhesitar, vesti o roupão e saí para o terraço. Do muroespreitei lá para baixo e foi então que se me deparou umespectáculo simpático: o Dunas e quatro ou cinco pescadoresconfraternizavam À volta de uma pequena fogueira na praia. Umdeles que não tomava parte da animada conversa, cantava umacanção triste numa voz pastosa e quente. A seu lado, um vultomagro de cão rafeiro abanava a cauda ao ritmo da músicaindolente. Não consegui distinguir as palavras dos outros,mas, de quando em quando, ouvia-os rir - um riso demorado -embebido no vinho que iam bebendo da mesma garrafa. O Dunasparecia escutá-los com atenção e, em certos momentos,fixava-se no mar escuro perdendo-se no vaivém das ondas quaseadormecidas. A dada altura, o cão ladrou virado para a Luaredonda, e todos se calaram e olharam o céu pejado deestrelas. Tive vontade de me juntar a eles, mas a preguiçaimpediu-me de me ir vestir para sair de casa. Por esta razão,fiquei a vê-los do muro até o último homem partir em busca dasua sorte. O Dunas ficou um pouco mais na praia, até afogueira se extinguir completamente.

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Depois, como havia um luar generoso, consegui distinguir acabeça loura do meu amigo, em frente do mar. Subitamente,veio-me À ideia o pensamento macabro de que, sabendo o Dunasdo destino que fora dado À mãe, talvez se pusesse a procurá-lasozinho, nas noites enluaradas como aquela. Senti as pernasfraquejar e, sem me dar conta do que estava a fazer, desci atéÀ praia.Mal pisei o areal fofo e frio, uma sensação desagradávelcolou-se-me À alma e, por uns segundos, não consegui mexer-me.Para a maioria das pessoas, todas as praias têm um fascínioespecial À noite. Para mim, estar ali Àquela hora erapraticamente tenebroso. Quando consegui respirar fundo, olheiem volta e, sem compreender porquê, não encontrei o Dunas emcanto algum da praia. Então, pensando ter descoberto o seuesconderijo, dirigi-me À rocha grande, aquela onde ele seencontrava com a gaivota. Apenas dei com a minha bicicletadeitada na areia ao lado da rocha... A humidade caía, gelandoo tecido fino do meu pijama. Não havia vento, só se ouvia oruído suave das ondas. Ao longe, a presença reconfortante dosbarquinhos dos pescadores com as suas minúsculas luzinhasfez-me sentir mais calma. Porém, numa fracção de segundo, umamão vinda do nada agarrou-me os cabelos soltos e ouvi, numa

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voz arrastada, absolutamente do outro mundo:- Esta é a praia pro-i-bi-da... Quem és tu, mulher, que teatreves a vir aqui de nooooooite?...Virei-me, assustada como um coelho.- Que maldade, Dunas! E se eu tivesse aqui um ataque decoração? Eras tu que apanhavas um valente cagaço, como tudizes.Riu-se descaradamente.- Vieste ver os barcos?- Não, foi a ti que vim ver. Não acho bem que andes por aquia estas horas, palavra que não acho. É tardíssimo. E está umfrio de rachar!Ainda atrás de mim, abraçou-me carinhosamente como se eufosse uma criança e ele o pai. E, sem me largar, explicou:- Não há problema nenhum. Posso vir aqui a qualquer hora.Esta é a minha praia, lembras-te? Então Não vês que não hárazão nenhuma para ter medo?Falara novamente como se fosse adulto, o que quase meenervou.- Ouve láagora a sério: não te parece que já devias estar adormir.- E tu? Não pensas escrever amanhã? Não?Se não escreveres diz já, que podemos ir dar um grandepasseio.Posso levar-te ao sítio...Prometia mistério, mas voltei À carga:- Talvez não escreva amanhã, mas hás-de concordar que não éboa ideia comparares-te comigo no que se refere a horas dedeitar, Dunas...- Nem no estilo dos mergulhos... - troçou, voltando apuxar-me alegremente os cabelos.- Porque é que hás-de sempre ser tu a ganhar quando estamosa falar?! Isso irrita-me um bocado, Dunas. Qualquer dia, deixode conversar contigo, acabou-se!- E então como é que fazes? Escreves-me cartas na tuamáquina, é?Virei-me para trás, para o ver. A doçura que o envolviaacalmou todos os meus receios e até o mar deixou de se fazersentir.

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Coloquei o seu rosto entre as minhas mãos, soprei-lhe oscabelos da testa e disse:- Vou para casa. Estou a ficar com sono. Faz-me a vontade evai também...- Só depois de dar um mergulho. A água deve estar quentinha!- Dunas!

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Capítulo XVI

A DUNA SECRETA

Tal como havíamos combinado na véspera, depois dopequeno-almoço parti com o Dunas rumo ao sítio. Eu conduzi a

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bicicleta e ele foi sentado entre mim e o guiador, emsilêncio. Chegados ao lugar onde a terra mergulhava na lagoa,desmontámos, encostámos a bicicleta a uma árvore e metemo-nosno barquito que nos levou À outra margem. O Dunas insistiu emremar sozinho, o que fez com toda a perícia. Já do outro lado,vi-o sentar-se no areal branco.- Cansado, não? Remaste depressa de mais.- Estás sempre a enganar-te - disse-me, abanando a cabeçaloira. - É que eu não sei se sempre hei-de levar-te ao sítio,percebes?- Esta agora! - reclamei. - Porquê?- Porque é o lugar mais bonito e importante do mundo paramim.Amuei.

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- E achas que eu não mereço ir lá contigo, é isso?!Calou-se. Depois, lentamente, levantou-se, deu alguns passosem frente e, sem se virar para mim, declarou:- Podes seguír-me.Franzi o sobrolho e lá fui, atrás dele, porque percebi queele era o líder incontestável daquela expedição. Avistámos acasa onde ele morava, mas não fizemos qualquer comentário.Depois de mais alguns minutos de caminhada, o Dunas mandou-meparar e correu para a duna grande, desaparecendo atrás dela.Fiquei À espera, em pé, sob um sol que começava a queimar.Quando vi a mão dele acenar-me para que me aproximasse, prendio cabelo atrás com o lenço e fui ter com ele.- É aqui - disse, como se estivesse a mostrar-me um localhistórico.Olhei a duna, dei a volta devagar, mas não encontrei nadaque me chamasse a atenção. No entanto, não quis desapontá-lo:- É um lugar realmente... interessante, Dunas.Sorriu.- Venho cá muitas vezes, quando acordo de manhã com umpesadelo.- Tens assim tantos pesadelos?- Hum-hum. Mas já me habituei. É sempre o mesmo.A curiosidade subiu-me À garganta:- E... como é esse pesadelo que costumas ter?Não respondeu. Ajoelhou-se sobre a areia e começou a tocarnas plantas secas que despontavam da duna e a alisar a areia,como quem arruma a casa.- Só eu é que aqui venho - contou, com uma pontinha deorgulho na voz. - Dantes, vinha também o meu pai...

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- Vinha contigo, era?- Não. Também vinha sempre sozinho. Acho que era para pensarno futuro.- Estou a ver...- Eu ficava a vê-lo de longe. Seguia-o sem ele dar por nada.Nunca percebeu que eu estava a vigiá-lo.- E tu querias que ele percebesse?Calou-se.

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- Isto aqui é, de facto, muito sossegado. Bom para pensar...no futuro - disse-Lhe, só para quebrar o silêncio.- E no passado.- Também, claro. Mas creio que não é muito bom pensar demais no passado, não achas, Dunas? Já lá vai não é?- É pena...- O teu pai há-de voltar um dia, tenho a certeza. E há-deconversar muito contigo e há-de descobrir o rapaz fantásticoque tu és. É só uma questão de tempo, vais ver.Sorriu, como se não acreditasse em nada do que eu acabara dedizer.- Sabes o mais estúpido? - perguntou, com o mesmo sorriso dovelho da mata. - É que a América não pode ser mais bonita doque isto aqui. Não pode!- Concordo. Mas as pessoas nem sempre procuram o que é maisbonito, Dunas. Às vezes não sabem sequer o que é mais bonito,compreendes? Aquilo que para ti é extremamente simples podenão ser visível para outros.- Mas tu também achas que este é o sítio melhor do mundo,não achas?

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- As pessoas são todas diferentes. O teu pai é capaz de nãopensar como nós, de não gostar das mesmas coisas de quegostamos. E tem esse direito.- Porquê?...Calei-me. Um albatroz sobrevoou a duna em voos circulares edepois seguiu rumo Às nuvens altas. Seguimos-lhe a trajectóriaem silêncio, virados para o céu. Então, cansada daquelaposição que me incomodava o pescoço, deixei-me descair eencostei-me À duna.- Aí não! - gritou-me.Rapidamente mudei de lugar, sem fazer perguntas.- E aqui, posso?- Sim - respondeu, um pouco embaraçado. Depois, resolveuexplicar: - Onde tu estavas há umas coisas minhas, que euguardo há muito tempo.- Uma espécie de esconderijo?- Pois.- Está bem, Dunas, não é preciso contares-me nada sobreisso.- Eu sei, mas e se eu quiser contar?Sorri-lhe.- Gostava...- É ali que eu guardo algumas coisas que encontro e que sãosó minhas.- Entendo. Obrigada por me teres contado. Acho que ficámosainda mais amigos, não te parece?- Parece-me que não importa o que eu guardo ali debaixo,para ti não faz diferença, o importante era que eu te dissessealguma coisa. E se fosse... uma caveira?Assustei-me a valer.- Que disparate, Dunas!

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- Porquê? Uma caveira não tem nada de especial. É feita deossos feios. Toda a gente tem caveiras. Tu, eu, todas aspessoas. Não há quem escape.Arrepiei-me, ao mesmo tempo que me deu alguma vontade de riro sem-cerimónia com que o Dunas falava da nossa condição demortais.- Uma caveira não é coisa que valha a pena esconder, porisso mesmo que tu disseste. Não tem nada de especial.- Então porque foi que tiveste medo? Até te arrepiaste...- Medo? Eu? Ora, Dunas, apenas achei a ideia... bizarra -respondi, sabendo que ele iria mudar o rumo da conversa paraaquela palavra, certamente nova para ele.- Bizarra quer dizer esquisita, não é? Pois mas, como euestava a dizer, eu sei que tu tens medo dos mortos, e eles nãofazem mal nenhum.Comecei a sentir-me um pouco agoniada. E o calor apertava.- E se fôssemos dar um mergulho, Dunas, hein? Está um bocadoabafado, não concordas?Levantou-se e, sempre a sorrir com algum sarcasmo , deu-me amão e levou-me até À beira-mar. Aí, tirámos a roupa e, em fatode banho, entrámos depressa na água, onde nadámos até nãotermos mais forças. De regresso À praia, sentámo-nos na areiaa secar o corpo.- Soube-me muito bem este banho, Dunas. Melhor do que nenhumoutro até hoje!- Passou-te?- O quê? - inquiri, fingindo não perceber a que se referia omeu perspicaz interlocutor.

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- O cagaço, que é que havia de ser?!- Fica sabendo que eu não tenho medo nenhum dos mortos,palerma. Não acredito em fantasmas nem em coisas ligadas aespiritismos, estás a ouvir?- Estou a ouvir, mas sei que tens medo.- És muito teimoso!Fez uma cara séria e depois ficou pensativo por um instante.- Sabes, eu também não acredito em fantasmas, apesar denunca ter pensado muito nisso, nem conheço ninguém queacredite.- Não? Pois eu conheço... Quero dizer, há fantasmas efantasmas - disse, achando que ele não veria o fundo daquestão.- Pois há. Os teus fantasmas são pouco espertos, não têminspiração nem querem que tu tenhas, Às vezes. Por isso apagama folha de papel que tens na cabeça, cada palavra que tu iasescrever desaparece e deixam a folha toda branca, como elessão.Olhei-o estupefacta.- De onde é que tiraste essa ideia?- Ora, de onde é que havia de ser?!E não tocou mais no assunto.O sol depressa nos secou os corpos, deixando aparecermanchas de sal na nossa pele.- Devia ter posto creme antes de sair de casa - lembrei-me.- Estou a ver que hoje o sol pegou-me.

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Deu uma gargalhada.- Estás preocupada com aquilo do ozono?- Se sabes dessa tragédia, também tu devias preocupar-te,Dunas. É um assunto sério.- Pois é, mas a mim não me afecta. Eu e o sol somos amigosde longa data, como diz a minha avó. Nunca fiquei comqueimaduras. Isso dos cremes é mais para as pessoas que vêmdas cidades. Eu não preciso. Nasci aqui...- Tens sorte... Mas, mesmo assim, deves ter cuidado.A tua pele, por baixo desse bronzeado invejável, é comcerteza muito branca.- Por acaso até é - disse, rindo-se. - Vê-se onde os calçõestapam.Gostei de ter razão, pelo menos uma vez.- Foi na escola que te falaram do buraco na camada de ozono?- Foi e estou farto de olhar lá para cima a tentar descobriresse tal buraco, que eu vejo muito bem até de noite! Mas...nada. O céu continua liso para mim.- Nem tudo se vê só com os olhos, Dunas.- Pois, mas eu não sou cientista. Não tenho, como é que sechama, microscópios para ver o que se passa no cé u.- Telescópios! - corrigi.Ele, contudo, não pareceu ligar importância À minhacorrecção e levantou-se de repente. Depois, mansamenteconcluiu:- Se eu tivesse esses tais telescópios, ficava À espera denoite, o tempo que fosse preciso!- Preciso para quê?- Para ver Deus a deitar-se.

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Capítulo XVII

PASSADO E FUTURO

Dois ou três dias mais tarde, ouvi uma tosse aflitiva vindado terraço. Era manhã. Levantei-me de um salto e fui ver,temendo o pior. Virado para o muro, o Dunas esforçava-se pararespirar e, sem qualquer cerimónia, mal me sentiu aproximar,parou de tossir, fez uma cara muito séria e depois largou umagargalhada estridente.- Indecente, Dunas! Isso não se faz! Acreditei mesmo queestavas com um ataque! - indignei-me, falando tão alto comoonda em dia de tormenta.- E achas que eu teria um ataque ao pé do mar?!Ainda exaltada, retorqui:- Não sabia disso, mas não devias ter feito uma coisadaquelas. Pensei que...- Eu morria? - troçou. - Deixa lá, quando eu morrer, podesficar com a minha caveira - acrescentou brincando novamentecom a morte.- Credo! Que obsessão!

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- Quê?

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- Essa tua mania de falares de coisas que magoam!Ficou em silêncio por alguns segundos. Depois, como quemestá a reflectir, concluiu:- Morrer não dói nada. Eu sei... Já morri uma vez e voumorrer outra vez quando te fores embora.Calei-me, compreendendo que a primeira vez se deveria terdado aquando da partida do pai para a América.- Sabes perfeitamente que um dia vou ter de voltar paraminha casa, Dunas - disse-lhe com a maior serenidade de quefui capaz.- Ora! Só voltas se quiseres. Tu és crescida, por isso nãotens quem mande em ti.- Não é bem assim...- Não?! Então quem é que manda em ti? - inquiriu muitosurpreendido.- Não se trata de haver ou não quem mande em mim.Precisamente porque sou crescida, como tu disseste, assumicertas responsabilidades, compromissos, percebes? São coisas aque não posso virar as costas definitivamente.- Tretas...- Não, não são tretas, Dunas. São coisas sérias. É a minhavida!Retirou-se para o outro extremo do terraço e eu fui paradentro. Tomei um duche, vesti-me e voltei ao terraço com umcopo de leite frio na mão.- Queres comer alguma coisa? - perguntei-lhe, encostando-meao muro, junto dele.- Espero que não te vás embora já... - murmurou, sem meolhar.

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- Não, ainda fico por mais algum tempo.- Até acabares o livro?- Hum-hum - respondi, sorrindo.- Então espero que não acabes nunca! - riu-se.Passei-lhe a mão sobre os cabelos e olhei-o atentamente.- Sabes, Dunas, para mim também não vai ser fácil ir-meembora, como para o teu pai não deve ter sido.- Ora! Para o meu pai foi a coisa mais fácil do mundo.Foi de camioneta até À cidade e apanhou um avião, pronto.- O que eu quis dizer foi que lhe deve ter custado muitoseparar-se de ti. Tenho mesmo a certeza disso.- Não. Quando ele escreveu À minha avó até disse que nãoestava preocupado porque me tinha deixado bem entregue... Omeu pai não gosta de se preocupar. Acho que não aguenta certascoisas...Baixei os olhos, perante aquela perspicácia toda.- Bom, falando de outro assunto, hoje tenho de ir À vila,aos correios. Preciso de fazer um telefonema para a minhaeditora. Queres vir?- Que é que vais dizer ao telefone?- Vou dar notícias do meu livro.- Que notícias?- Mas que interrogatório! Afinal, queres vir comigo ou não?Pensou um pouco e declarou:- Hoje tenho de ir À mata, buscar umas ervas para a minha

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avó. Não posso ir contigo.Achei que mentia, mas não quis contradizê-lo.- Então vemo-nos amanhã, pode ser?Ia a saltar o muro, mas recuou.

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- Quanto é que falta para acabares o teu livro?- Hã?- Quantas páginas é que ainda te falta escrever?Não contive um sorriso.- Não sei, Dunas.- Não sabes?!- Quando se começa uma história, mesmo que se saiba como vaiacabar, é difícil prever quanto tempo e quantas páginas vamosocupar. É assim...Torceu o nariz.- Quer dizer que ainda pode demorar, não pode?Voltei a sorrir-Lhe, para o tranquilizar. Depois, saltouentão o muro e dirigiu-se À praia. Lá de baixo, gritou-me:- Hoje não vale a pena escreveres. Já vi que não estás muitoinspirada.

* * *

Depois de sair dos correios, resolvi ir tomar um café antesde fazer algumas compras para a casa. Então, ao atravessar arua, cruzei-me com o velho da mata, que vinha com uma garrafade vinho tinto entalada no braço, certamente comprada nataberna que ficava ao lado da mercearia. Cumprimentei-o, masnão obtive resposta. Acho que nem me ouviu, entretido como ianos seus pensamentos. Quem não deixou de reparar foi oempregado do café, que logo quis meter a sua colherada:- Já conhece o velho?! Quase nunca sai da toca.Não gostei do desrespeito com que ele falara.- Já conheço, sim senhor. E não vive em nenhuma toca. É umhomem muito gentil até.

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O empregado franziu o sobrolho e perguntou:- É só o cafezinho?- Só - respondi secamente.Depois, quando trouxe o café, voltou À carga:- Ele não é homem para se meter em alhadas, não, mas...- Como? - perguntei, levantando os olhos do jornal quecomprara À porta do café.- O velho, estava a falar do velho. Só é pena beber tanto,sabe...- Não, por acaso não sabia - retorqui, tentando mostrar omaior desinteresse em prolongar aquela conversa.- Pois é, se não fosse o álcool, a velhota até era bem capazde lhe lavar as meias...Não me contive:- O senhor parece saber tudo de toda a gente! É fantástico!Porém, o empregado entendeu as minhas palavras como o maiorelogio que poderia receber e apressou-se a dar razão ao meu

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comentário:- Sempre cá vivi, compreende... Mas, voltando ao velho,dizem que ele ficou pior desde que o filho se foi embora.Também não é para admirar. Dizem que gostava muito dele.Subitamente, a conversa começou a interessar-me.- E o filho? Também gostava dele?- Ná. Aquele só gostava era da estrangeira. Mais nada. Foiisso que deu cabo dele. Endoideceu de todo. Parecia um lobo.Andava por aí a vaguear pelas ruas sem olhar para nada que sevisse, de olhos muito abertos...

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Virou do juízo, compreende? Agora, parece que já lhe passou.Dizem que arranjou outra lá na América, mas eu só acreditoquando vir com estes que a terra há-de comer. Um homem que fazo que ele fez nunca mais pode regular bem! É o que eu acho.Coitada da mãe dele... Não é que essa também tenha osparafusos todos, mas aquilo foi do desgosto, que ela dantesaté era simpática. Vinha muitas vezes cá À vila e tudo, até Àescola ela ia saber notícias do neto, para ver como ele ia nosestudos.- E agora já não vai?- Ná. Também já tem muita idade, não é? E o reumático é odiabo, eu sei, que o meu pai também sofre como um cão,desgraçado...- E que é que o senhor acha que vai acontecer depois de elamorrer?- A velhota? Oh, sabe-se lá. Talvez a segunda mulher dofilho venha buscar o miúdo, sabe-se lá. Aquela gente é umbocado esquisita, compreende? Não é gente normal, como nós.Apaguei a custo o sorriso que me invadiu a cara sem meavisar.- Compreendo... Bem, queria pagar.Voltei para casa na minha bicicleta, sempre a pensar no queo futuro reservaria ao Dunas. E tudo era realmente muitoincerto, como o empregado dissera. De facto, tudo poderiaacontecer, no entanto, acalentei uma esperança de que o paiviesse buscá-lo quando chegasse o momento e o levassefinalmente para viver com ele. Depois, uma angústia veioafogar-me os pensamentos: que faria o Dunas longe da suapraia, do seu mar?!...

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Capítulo XVIII

O INCëNDIO

A minha curiosidade em relação ao velho da mata tinhacrescido após a conversa com o empregado do café. E depoishavia também aquela história de ele me achar parecida com amãe do Dunas. Era uma ideia que me incomodava e que euprecisava de apagar. Assim, naquela tarde acabei a escritamais cedo e fui de bicicleta até À mata. Podia ser que tudonão passasse de confusão do velho ou da influência da bebida.

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De qualquer forma, ao penetrar pelos caminhos estreitos entreos pinheiros , fui invadida por um mal-estar, um arrepio.Depois, À medida que me fui aproximando, comecei a sentir umcheiro a queimado. Com o coração cada vez mais pequeno,pedalei energicamente até chegar À clareira. De lá, pudedistinguir as chamas e a fumarada intensa que pairava no ar,trazendo a notícia que logo adivinhei. Avancei um pouco mais,depois desmontei da bicicleta e fui a correr até À casa dovelho pescador.

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As chamas iam altas e não pude conter uma tosse que mal medeixava respirar. Chamei, gritei, mas, na verdade, nem sabia onome dele. Despi o casaco de malha, coloquei-o sobre a cabeçae, com muito custo, entrei pela porta já escuríssima do fogo.O velho estava deitado, junto a uma das paredes, encolhidocomo um feto, e foi difícil chegar até ele por entre as chamase o fumo. Então, convocando todas as minhas forças, arrastei-oaté À porta e depois para fora da casa. Estava ainda vivo,mas, de tão bêbado, não conseguia mexer-se nem falar. Tinha acara e as mãos queimadas, e a roupa chamuscada e negra. Eraurgente que alguém aparecesse e me ajudasse a levá-lo até aoposto, mas, por mais que eu gritasse por socorro, só ospássaros, assustados com o fumo, emitiam uns trinadosaflitivos, cruzando-se com o som da madeira que estalava aospoucos. Tentei pela milionésima vez levantá-lo, mas em vão. Ocorpo era pesado e ele não estava em condições de ajudar.Desesperada, corri até À lagoa, deixando o homem estendido naterra. Ao ver o barco a remos, pensei se valeria a penaatravessar para o outro lado, no intuito de chamar o Dunas oua avó. Acabei por entrar no barquito e remar o mais depressaque pude até À outra margem. Chegada À casa branca, bati Àporta. Ele não estava, e a avó veio atender-me. Rapidamente,expliquei-lhe o que estava a passar-se e ela, para meuespanto, prontificou-se a ajudar-me. Regressámos ambas nobarco, que ela fez questão de remar, com uma mestriainvejável. Depois, quando chegámo junto do velho, elaaproximou-se, ajoelhou-se ao lado dele e ficou a observá-lo,tentando tomar-lhe o pulso. No entanto, como os braços estavamdemasiado queimados, não foi possível sentir-lhe a pulsação efoi então que Sara se curvou sobre o rosto do pescador, paraver se ele respirava. Durante este tempo, mantive-me de pé,sem saber que fazer.Quando, por fim, sugeri que ela ficasse ali enquanto eu iade bicicleta pedir ajuda, Sara abanou a cabeça e respondeu,quase sem mexer os lábios:- Não vale a pena...Ajoelhei ao seu lado, sobre a terra quente. Só então olheipara a casa, em completo estado de ruína. O fogo estavaextinto, mas o ar era ainda uma fornalha. Quando voltei avirar-me, percebi que ela rezava baixinho. Depois, suavemente,como quem acaricia o rosto de uma criança, fechou os olhos dopescador.- Deve ter adormecido e deixado a vela ou o candeeiroaceso... - opinei, olhando para o velho.- Eu sabia que o vinho ia dar cabo dele - disse ela,

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levantando-se devagar. - Graças a Deus que as chamas nãochegaram Às árvores! - Depois, virando-se para o corpo,acrescentou: - Tantas vezes lhe pedi... Tantas vezes...Falava com uma sinceridade e uma ternura que me comoveram.- Ele tem família, quero dizer, para além do filho?... -perguntei, limpando a cara da fuligem que se colava a todos osporos.- Família? Não... Era só ele e um irmão que morreu no mar.Respirei fundo, tentando controlar a tosse.- Nesse caso, será melhor ir À aldeia pedir que telefonemaos bombeiros para que venham buscá-lo - sugeri.Ela, contudo, encolheu os ombros. Depois, limpando umalágrima imprevista, anuiu:

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- Vá lá então, que eu fico aqui...O Sol estava a pôr-se. As pernas doíam-me do esforço quefizera e não me deixaram pedalar tão depressa quanto eudesejava. Na minha cabeça começava a formar-se com nitidez aimagem do velho, do seu sorriso, no dia em que estivéramos apescar na lagoa. Depois, aquela imagem foi dando lugar aorosto do Dunas, iluminado pelo mesmo sorriso. Que fazer se mecruzasse com ele a caminho da aldeia? Porém, não o vi nemquando passei pela praia. Talvez tivesse ido nadar para longeou andasse a mergulhar em busca daquelas coisas bonitas quedepois guardava no sítio.Os bombeiros lá foram buscar o velho e levá-lo para a vila.Não se surpreenderam com a notícia do incêndio, sabendo comoele bebia. De facto, foram até de uma frieza que me magoou. Euassisti a tudo, como se a minha presença se tivesse, desúbito, tornado inevitável. Na verdade, percebi que tinha deestar ali até ao fim. Era como se as escassas horas quepassara com o velho da mata me tivessem ligado a ele parasempre, mas, no fundo, eu sabia que tudo partira daquelesorriso familiar que jamais me sairia da memória.

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Capítulo XIX

CONTANDO ESTRELAS

No fim-de-semana que se seguiu ao enterro do velho (ao qualquase ninguém assistiu), um bando vermelhuço de turistasnórdicos invadiram novamente a praia dos pescadores. Sentadano terraço em frente da minha velha máquina, pude vernitidamente a presença loira do meu amigo, sentado À beira-marcomo quem guarda a praia. Chamei-o duas ou três vezes, mas fezque não me ouvira , só para não largar o posto de vigia.Desconfiado e atento , seguia os passos de cada turista, derosto sobranceiro e incómodo. Só quando o grupo arrumou atralha e partiu no autocarro de dois andares, ele se levantou.Depois, olhando a praia toda, começou a recolher o lixodeixado no areal. Então, como já não pudesse ficar por maistempo a vê-lo sem nada fazer, desci até À praia e, emsilêncio, ajudei-o na recolha dos papéis, pacotes e frascos

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vazios.- O velho morreu - disse-me ao cabo de muito tempo.

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- Eu sei.- Estive a pensar numa coisa - murmurou, sentando-se ao meulado depois de ter despejado os últimos detritos no caixote. -Era capaz de reconstruir a casa da mata...- A que ardeu?- Sim. Aquilo não é de ninguém...- Mas para quê, Dunas?- Ora, para ir para lá quando me apetecesse.- Olha que não há-de ser fácil. Ficou tudo em ruínas.- Eu fazia aos poucos. Talvez o Miguel e o Pedro meajudassem. O pai deles tem uma carpintaria.- Ouve lá, Dunas, tu sabias quem era o velho, não sabias?- Toda a gente sabe isso - replicou, encolhendo os ombros. -Mas a mim ele não me era nada. Nunca falou comigo...- Talvez não tenha tido oportunidade...- Não interessa.Os olhos estavam húmidos e a voz vinha não sei donde.- Nunca tiveste vontade, curiosidade de falar com ele? Eraum homem interessante, sabes?- O meu pai e ele não se davam. E a minha avó não o gramava.- E... tu?- Eu quê?- Tu também não gostavas dele?- Sei lá. Acho que uma vez estive com ele, quando erapequeno, tinha aí uns cinco ou seis anos. Foi um dia em que omeu pai me deixou lá com ele, não me lembro porquê.

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- E então?- Então o quê?- Ele foi simpático contigo?- Acho que sim, sei lá. Deu-me uma cana de pesca e um chapéuvelho, tão velho que já não tinha cor. Um chapéu todoenrugado, que cheirava a sal.- Eu gostava dele, Dunas. Conversámos algumas vezes e, umaocasião, ajudou-me muito. Era um homem simples e muito só.- Tens pena?- Não, não tenho pena dos mortos, Dunas. Seria umaestupidez.- Quem é que o mandou beber assim como ele bebia! A culpaera dele.- Talvez não fosse só dele, talvez...- Agora não importa. Já morreu.- Quer dizer que nunca pensas nos que... já morreram? -arrisquei.Pôs os olhos na areia molhada. Do Sol apenas já se via umarisca intermitente e brilhante.- Vou dar um mergulho - anunciou, levantando-se de repente.- Mas antes vais responder À minha pergunta, não vais? -insisti.- Não, não vou.

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Dizendo isto, com a cara subitamente serena, caminhou emfrente e entrou no mar. Fiquei a vê-lo mergulhar como umgolfinho sedoso entre as pequenas ondas que a maré formava.Depois, cansado e feliz, voltou a sentar-se ao meu lado,sacudindo os cabelos para me molhar.- Dunas!

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Riu-se, voltando a sacudir-se para me fazer zangar.- Hoje vou jantar a tua casa - comunicou-me com a maiordescontracção.- Ai sim?...- Hum-hum.- E porquê? Posso saber? - perguntei, forçando um arrefilão.- Porque quero que me faças aquela mousse de chocolate queestavas a comer no outro dia.Dito isto, levantou-se, vestiu as calças e a camisa deriscas e, puxando-me por um braço, levou-me para casa.

* * *

Depois do jantar, sentou-se comodamente no parapeito dacozinha, de pernas a abanar sobre o terraço, enquanto eulavava os pratos.- Cento e vinte e seis - ouvi-o dizer.- É o teu número da sorte? - perguntei-lhe.Riu-se. Depois, ficou em silêncio até eu arrumar tudo noarmário e juntar-me a ele no parapeito.- Que é que tu estavas a contar, diz lá!- As estrelas que se vêem daqui quando não há nuvens. Sãocento e vinte e seis.Parei a olhá-lo. Um raio fugido do lado mais branco da Luapousava-lhe sobre o cabelo, dourando-o.- Tu vinhas aqui muitas vezes, quero dizer, antes de eu cáchegar, não era?- Antes e depois - respondeu sorrindo, sempre sem tirar osolhos do azul-escuro.- Contar estrelas não deve ser tarefa fácil...

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- Daqui vêem-se bem. Os meus olhos vêem muito melhor denoite, sabes, para mim, é fácil.- Como os gatos... - brinquei.As pernas continuavam a balançar num ritmo cadenciado, comose estivesse a seguir o compasso de uma música.- Este lugar é o melhor do mundo para se verem estrelas -comentou, absolutamente convicto. - Eu sei que há um lugar naAmérica, que até apareceu na televisão, onde puseram um tubogigante com uma lente especial para ver as estrelas por dentroe por fora, mas , como eu não posso lá ir, tenho de treinar osolhos. Treinar-me para ver muito longe, percebes? E, comocomecei muito pequeno, já consigo até contar os bicos dasestrelas.- Parece-me uma tarefa bastante solitária, essa de te pores

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a observar as luzinhas que há no céu...- É que eu nunca tenho muito sono e, além disso, a olhar lápara cima podem-se imaginar muitas coisas. Por exemplo, umavez imaginei que havia uma mulher muito branca naquela estrelaali À direita da maior, estás a ver? - perguntou, esticando oindicador.- Hum-hum.- E pus-me a pensar que essa mulher branca me ia convidar asubir para a estrela onde ela mora e depois era tudo muitomais simples.Não percebi de que falava.- O que é que era mais simples, Dunas?- Ora, vigiar a minha praia. Lá de cima era canja. Via tudo,como aqueles pássaros enormes que têm unhas em forma de bico.

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- As águias?- Pois.- Tu sabes que a praia não é só tua, não é, Dunas? Tambémpertence aos pescadores.- Sim, mas eles só lá vão para trabalhar - disse, com umcerto desdém.- E tu?... - arrisquei.- Ora, eu vou lá para fazer coisas muito mais importantes.- Nadar?...Olhou-me como se achasse que eu estava a troçar do que eleacabara de dizer. Depois, enraivecido, saltou do parapeito eatravessou o terraço até ao muro que dava para a praia.Segui-o, hesitante. Talvez o tivesse magoado. Quandofinalmente o alcancei, coloquei-lhe uma mão sobre o ombro e,com a outra mão, virei-lhe o rosto para mim. Os olhos estavamprestes a explodir, mas continha-se o mais que podia.- Desculpa, não quis ofender-te. Julguei que era para timuito claro que entre amigos não há nunca a vontade de fazersofrer, Dunas. E eu sou tua amiga, tu sabes isso, não sabes?- E tu sabes muito bem porque é que eu tenho de ir sempre Àpraia - murmurou, quase amuado.- Não, Dunas. na verdade, não sei muito bem o que vais láfazer assim de tão especial - avancei, com o coração nas mãos,mas com uma vontade imperiosa de tocar no assunto proibido. -Quero dizer, eu percebo que tu gostes muito de mergulhar enadar e essas manobras todas que tu fazes como um golfinho.Também já percebi que não gostas que poluam a areia nem aágua. Só acho que... é um bocado de mais.

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Não há dia nenhum que não vás lá. É assim... como é que euhei-de dizer... é um certo exagero, não concordas? E depois háoutra coisa: quando se vai demasiadas vezes a um lugar, esselugar acaba por perder o seu encanto e podemos até deixar detentar ir conhecer outros sítios, estás a entender?- Estou, mas não me interessa ir a outros sítios.Estava difícil arrancar-lhe a verdade. No entanto, havia queprosseguir.- Essa tua teimosia...

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Não me deixou acabar a frase. Gritou:- Eu tenho de guardar a praia, percebes ou não?! É lá queestá a... - E desabou num choro convulsivo que abafou porcompleto o rugir das ondas contra o pontão.Passei os dedos sobre aqueles cabelos feitos de luz e seda,cabelos de anjo. E chorei baixinho, com ele, a sua perda.Depois, para o consolar, disse-lhe palavras pequeninas, vindasda minha infância palavras que queriam enxugar-lhe aslágrimas e preencher o vazio redondo que Lhe perfurava a alma.- Pronto, Luís, não chores mais. Eu só queria que soubessesque admiro muito o teu amor pela tua mãe. É muito bonito. Émuito mais do que bonito... É maior do que as estrelas maioresque vês no céu, é...Subitamente, respirou fundo e ergueu a cabeça do meu ombro.Depois, olhou a praia e suspirou:- Se eu soubesse onde ela está mesmo...- Não faz mal, Du...- Faz, sim senhora! Não vês que alguém pode descobrir?!Alguém pode até sujar esse lugar!! Mesmo um cão...

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Compreendi o seu horror.- Já foi há muito tempo, Dunas. Sabes que todos, um dia, nostransformamos em pó, não é?...Olhou para mim como se eu tivesse acabado de dizer umaloucura.- pó?! pó?!- É. Pó. O corpo não vale grande coisa. Um dia, deixa de terimportância, meu amigo. Repara no que acontece Às conchas, porexemplo.- Que é que têm?- Quando passa muito tempo, acabam por transformar-se emfósseis e, mais tarde, desfazem-se e misturam-se com os grãosde areia, como esses milhões de grãozinhos que ali estão embaixo.Um sorriso de esperança inundou-lhe a cara.- E depois vão para o mar?- Suponho que sim.- Então quer dizer que tudo o que está enterrado na areiaacaba por ir parar ao fundo do mar, não é? - continuou,visivelmente feliz.- Claro - respondi sem hesitar.Contudo, uma sombra voltou a toldar-lhe o pensamento e acrispar-lhe a testa lisa:- E se não for, que é que pode acontecer?- Mas vai, Dunas, estou certa disso.- Como é que podes ter a certeza? Leste nalgum livro?- Li, evidentemente que li. Eu leio imenso, Dunas.Voltou a olhar-me com uma certa esperança.- Então posso ficar mais descansado?- Podes. Descansadíssimo.- E esses tais sítios que eu devia ir conhecer, quais são?- Bem, há muitos lugares bonitos para ver por esse mundofora, Dunas. E pessoas também! Amanhã, se quiseres, vamos atéÀ cidade e vou levar-te À biblioteca para tu veres algunsdesses lugares maravilhosos que há na Terra, queres? Vamos os

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dois abrir um atlas e fazer uma viagem muito grande até ao fimdo mundo, queres?- Mesmo até ao Japão?- Até ao Japão!E sorriu. Aquele sorriso que eu queria ver nascer haviatanto tempo. O sorriso que faltava À enorme colecção que eletinha para oferecer.

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Capítulo XX

LIÇÃO DE GEOGRAFIA

A bibliotecária era uma mulher enrugada e zangada com avida, dessas mulheres de cara azeda que murmuram pequenosinsultos, porque não se atrevem nunca a levantar a voz.Deu-nos o atlas, arqueando as sobrancelhas cinzentas e fez umtrejeito suspeito com os lábios.- Não se pode falar alto - recomendou-nos.O meu amigo e eu sorrimos cumplicemente e fomos sentar-nos auma das longas mesas de cerejeira. Apenas dois senhores deidade se encontravam na biblioteca, um folheando um livro decapa muito deteriorada, e outro que lia um jornal, como seestivesse numa esplanada. Ao fundo, atrás do balcão austero, avigilante olhava-nos, À espera de poder a todo o momentorepreender-nos por qualquer motivo.- Isto é que é um atlas? - perguntou o Dunas.- Hum-hum.- Deixa-me abri-lo.

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- Tens de falar mais baixo ou então somos corridos -expliquei-lhe com um sorriso.- É só mapas! - exclamou, parecendo um pouco desapontado.- E é por aí que vamos. Ora fecha-o lá - pedi-lhe. - Agora,abre-o num sítio ao calhar. - Assim fez. - Pronto. Fecha osolhos e deixa cair o dedo num lugar qualquer, Dunas.- Onde é que estamos? - perguntou mais entusiasmado.- Deixa cá ver... Nem imaginas! Na Grécia!- Chui - sentenciou a bibliotecária, olhando-me de soslaio.- Na Grécia? Como é?- Não sei muito bem, Dunas, nunca lá fui, mas possocontar-te uma história muito interessante de um grego quetinha um grande problema com um calcanhar...- Estás a brincar... - riu-se.- Qual quê! Ora ouve só...O Dunas ouviu com a maior atenção do mundo a tragédia deAquiles, que lhe contei com o mesmo prazer com que o meu paicontava as suas histórias depois do jantar. Depois, falei-lhedo Olimpo, dos jogos, dos argonautas...- Quero ir para outra terra. Já sei tudo da Grécia. Possoabrir noutra página? - perguntou o meu amigo, curioso porconhecer novos mundos.- Podes, Dunas, mas só mais uma, porque temos de apanhar acamioneta das cinco.

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A seguir, o indicador foi pousar sobre a Suíça, e falámos dechocolate, relógios, banqueiros e montanhas cobertas de neve.

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Imaginámo-nos a subir num teleférico , olhando de cima ospicos gelados e as pistas de esqui, onde, no instanteseguinte, já estávamos a deslizar velozmente, de gorro nacabeça e mãos enluvadas contra o frio.A tarde passou a correr, alheia aos chius da bibliotecária eao cheiro a pó e a papel. Foram horas inesquecíveis, deaventura e prazer. Por uma tarde, o Dunas e eu viajámosjuntos, numa biblioteca mal iluminada. E descobrimos como ébom saber que tantos lugares na Terra esperam por nós. Eaprendemos a outra Geografia, a que não nos deixam explorar naescola...

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Capítulo XXI

NO FUNDO DO MAR

O tempo estava a chegar ao fim. Eu sabia-o e o Dunaspressentia, como sempre. Quando finalmente acabei o últimocapítulo do meu romance, guardei todas as folhas sem as reler,arrumei a máquina e fui ao terraço ver se o descobria lá embaixo na praia. E lá estava ele, sentado À beira-mar, decostas para o areal branco. Havia ondas pequeninas quedesenhavam bainhas de espuma sobre a areia molhada. O Solriscava o céu de cor de laranja e preparava-se, como eu, paraa despedida.Desci até ao areal. Pé ante pé, aproximei-me sem que o Dunasvirasse a cabeça para trás. Porém, quando me sentei ao seulado, falou-me como se soubesse há muito da minha presença;como se soubesse há muito de tudo o que eu tinha para lhedizer.- E agora? - perguntou.- Agora, tenho de voltar - respondi-lhe, olhando a linhaazul molhada lá ao fundo.

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- Tens a certeza de que acabaste mesmo?- O livro?- Hum-hum.- Tenho, Dunas.Levantou-se num ápice e correu para a água, sem sequer tirara camisola de manga curta. Sem pensar, segui-o também mesmovestida e mergulhei atrás dele, receando nunca mais o ver,perdê-lo para sempre ali no mar. Quando voltei À superfície,olhei em frente e vi-o já bem longe, a nadar rumo ao céu quedescia, agora mais escuro, sobre as águas. Nadeidesenfreadamente para o apanhar e, não fosse o seu cansaço,tê-lo-ia perdido no meio do azul. Então, a menos de doispalmos de distância, estendi-lhe a mão e mergulhámos ambos atéao fundo, ao mais fundo do mar e de nós mesmos. Não sei

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descrever as inúmeras sensações que se apoderaram do meucorpo, recordo apenas que não tive medo. Nem frio. Nem vontadede voltar À superfície. Mas voltei. Voltámos. Ao mesmo tempo.E tinham já passado muitas vidas. Era como se ambos tivéssemosacabado de chegar de uma viagem pelo tempo, em que tudo nostinha sido revelado. Todos os segredos do Universo, todos osmistérios da vida e da morte. E tudo o que havia na nossamemória era agora apenas uma luz branca que saía pelos nossosolhos e faiscava em cada gota de água sobre a pele do nossorosto, que era um só.Olhámo-nos em silêncio. Acho que chorámos, mas não tenho acerteza. Se o fizemos, foi porque toda a água de que éramosfeitos, se evaporou de nós, À passagem do último raio de Sol.E permanecemos assim por muito tempo, de corpo enraizado nomar e cabeça À flor da água, a boiar como plantas aquáticas.Tudo se havia desprendido de nós, como se a água em quehavíamos mergulhado não fosse apenas água mas um filtroabsorvente, com o poder de tudo reter que fosse supérfluo,como as palavras. Depois, vazios de tudo o que fôramos antes,nadámos em silêncio até à praia.Suavemente. Sem pressas. Sabíamos que, ao chegar, a praianos receberia como sempre, mas nada seria como dantes. Nada.De pé, olhámos então a praia e o muro da casa que foranossa. Duas ou três gaivotas acompanhavam o voo guerreiro deum albatroz. O ar cheirava já a Outono. Era o fim do Verão.Soubemo-lo ali mesmo, naquela hora de nudez total. A casaesperava-me para o ritual de esvaziar gavetas e prateleiras.Tudo ficaria vazio de novo, como eu. E a casa chamou-me,apressando os meus passos, encurtando a despedida.Subi ao terraço, sem olhar para trás. Lembro-me claramentede que não senti o coração. Não apenas o bater, mas todo ocoração. E percebi que o tinha deixado ficar na praia ondeaportara, de alma nova, vinda de uma viagem muito longa com omeu companheiro de sempre. E soube que ele o guardaria napraia imensa e generosa do seu peito. Para sempre.

FIM

Scannerização e Arranjo

Amadora, Janeiro de 2000