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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO SOLER GONZALEZ EDUCAÇÃO AMBIENTAL AUTOPOIÉTICA COM AS PRÁTICAS DO BAIRRO ILHA DAS CAIEIRAS ENTRE OS MANGUEZAIS E AS ESCOLAS VITÓRIA 2013

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO DE EDUCAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO

    SOLER GONZALEZ

    EDUCAO AMBIENTAL AUTOPOITICA COM AS PRTICAS DO BAIRRO ILHA DAS CAIEIRAS ENTRE

    OS MANGUEZAIS E AS ESCOLAS

    VITRIA 2013

  • SOLER GONZALEZ

    EDUCAO AMBIENTAL AUTOPOITICA COM AS PRTICAS DO BAIRRO ILHA DAS CAIEIRAS ENTRE

    OS MANGUEZAIS E AS ESCOLAS

    Tese apresentada ao Programa de Ps-

    Graduao em Educao ao Centro em

    Educao da Universidade Federal do Esprito

    Santo, como requisito parcial para obteno do

    grau de Doutor em Educao na linha de

    Pesquisa: Cultura, currculo e formao de

    educadores/as.

    Orientadora: Profa. Dra. Martha Tristo.

    Vitria 2013

  • Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Setorial de Educao,

    Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

    Gonzalez, Soler, 1974- G643e Educao ambiental autopoitica com as prticas do bairro ilha

    das caieiras entre os manguezais e as escolas / Soler Gonzalez. 2013.

    159 f. : il. Orientador: Martha Tristo. Tese (Doutorado em Educao) Universidade Federal do

    Esprito Santo, Centro de Educao. 1. Autopoiese. 2. Caieiras, Ilha das (ES). 3. Cartografia. 4.

    Comunicao Aspectos sociais Caieiras, Ilha das (ES). 5. Educao ambiental Narrativas pessoais. I. Tristo, Martha, 1957-. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Educao. III. Ttulo.

    CDU: 37

  • RESUMO

    Esta pesquisa em Educao Ambiental Autopoitica com as prticas do bairro Ilha

    das Caieiras entre os manguezais e as escolas aposta numa poltica cognitiva e de

    narratividade no campo da Educao Ambiental, no exerccio de acompanhar os

    movimentos dos saberesfazeres socioambientais que emergem com as redes de

    conversaes e com as relaes de convivncia e de convenincia entre os sujeitos

    praticantes e narradores da mar da pesquisa: pescadores, desfiadeiras de siris,

    catadores de caranguejos, comerciantes, estudantes, professores e professoras. As

    prticas do bairro Ilha das Caieiras so domnios cognitivos e de aes do narrar,

    morar, pescar e cozinhar potencializados pelo Turismo Gastronmico e a Semana

    Santa. A Educao Ambiental Autopoitica desloca a sustentabilidade praticada

    em discursos oficiais e pelo mercado verde, para o sustentabilizar como domnio de

    ao na convivncia e convenincia na vida cotidiana. O objetivo da tese

    cartografar e problematizar os saberesfazeres socioambientais das prticas do

    bairro e seus atravessamentos com as escolas e os manguezais da Baa de Vitria,

    potencializando os movimentos que a Educao Ambiental Autopoitica produz no

    cotidiano da pesquisa. So aportes metodolgicos: pesquisa em Educao

    Ambiental, cartogrfica e com os mltiplos cotidianos. Utiliza como intercessores

    Humberto Maturana (1999; 2006) e Michel de Certeau (2008; 2009). Capturamos os

    seguintes saberesfazeres socioambientais: ritmos da rua Felicidade Correia dos

    Santos, usos dos manguezais, museu, usos do per, restaurantes, linguajar ilhs

    comunitrio, crianas no Turismo Gastronmico e na Semana Santa, apetrechos e

    territrios do pescar, ofcios dos pescadores, movimentos das mars, feitura das

    canoas e tipos de embarcaes, espcies de peixes, crustceos e andadas e

    defesos, territrios do brincar, lendas, cantigas e msicas da grande mdia, receitas

    culinrias e temperos usados nas tortas, moquecas, mariscadas, modos de desfiar

    siris e camares, famlias nas caladas. Educao Ambiental Autopoitica

    produzidas nas relaes autopoiticas com tenses, conflitos e negociaes nos

    cotidianos com as redes de conversaes, apostando compartilhar na solidariedade

    e na aceitao do outro como legtimo outro junto a ns, no conviver amoroso.

    Palavras-chave: Educao Ambiental Autopoitica; Prticas do Bairro; Cartografia;

    Poltica da Narratividade; Redes de Conversaes.

  • ABSTRACT

    This research in Environmental Education aims to map and discuss the knowledge

    and environmental practices of Ilha das Caieiras, a neighborhood from the city of

    Vitoria (ES), and how it relate with schools and mangroves of Vitoria Bay, betting on

    an Autopoietic Environmental Education. This thesis bet on cognitive and narrative

    policy, in the exercise of monitoring the movements of environmental knowledge and

    practices that emerge from networks of talking and from relations of coexistence and

    convenience among subjects and storytellers: fishermen, crab desfiadeiras (women

    from traditional culture of Ilha das Caieiras who prepare and unravel the crab before

    cooking), crab pickers, merchants, students and teachers. The practices of Ilha das

    Caieiras are consequences of living, fishing and cooking enhanced by Gastronomic

    Tourism and Easter. Autopoietic Environmental Education as ethical, political,

    aesthetic and ontological dimension shifts the "sustainability" practiced for the green

    market and in official speeches to a domain of action in living and convenience in

    everyday life. This research covers crossings inspired by Humberto Maturana and

    Michel de Certeau. Methodological contributions are: narrative research in

    Environmental Education, cartographic research and research with the everyday. We

    captured the following social-environmental knowledge: rhythms of the street

    Felicidade Correia dos Santos, uses of mangroves, museum, uses the pier,

    restaurants, local language, children in Gastronomic Tourism and working during the

    Easter, tools and territories of fishing, fishermen work, movements tides, canoes

    construction, vessel types, fish species, crustaceans, crab reproduction seasons,

    types of play, legends, songs, songs of the mainstream media, recipes, spices used

    in pies, fish stew, traditional dishes and different ways of prepare crabs and shrimps

    for cooking. The choice of theoretical intercessors and the production of data with the

    subjects and storytellers indicate autopoietic environmental educations produced with

    the networks of talking with the practices of neighborhood take place between

    conflicts and negotiations in the relations of coexistence and convenience that was

    constructed between processes and relations with the everyday lives lived in

    mangroves and collectives alive and not alive of mangrove from Vitoria Bay.

    Key-words: Autopoietic Environmental Education; Neighborhood Practices; Policy of

    narrativity; Cartography; Network talking.

  • O abandono do lugar me abraou de com

    fora.

    E atingiu meu olhar para toda a vida.

    Tudo que conheci depois veio carregado

    de abandono.

    No havia no lugar nenhum caminho de

    fugir.

    A gente se inventava de caminhos com as palavras.

    A gente era como um pedao de

    formiga no cho.

    Por isso o nosso gosto era s de desver o mundo.

    Manoel de Barros

  • Professora e orientadora Martha Tristo, pela convivncia e companhia com os

    ventos de travessias com os mundos da lama dos manguezais da Baa de Vitria,

    proporcionando encontros e conversas problematizadoras que alimentaram nosso

    caminhar com a Educao Ambiental Autopoitica. Eu queria pegar na semente da

    palavra.

    Aos professores Janete Magalhes Carvalho e Carlos Eduardo Ferrao, pela

    generosidade, acolhida e pelos encontros com os Grupos de Pesquisa que em muito

    contriburam com as inspiraes para pensarmos a vida cotidiana no contexto da

    Educao Ambiental Autopoitica. Encontros que me ajudaram a usar palavras de

    ave para escrever.

    Aos professores Leandro Belinaso Guimares e Antnio Carlos Amorim, pelo apoio

    e afeto nos encontros e nas conversas com a Educao e a Educao Ambiental.

    Conversas tecidas com o gosto do absurdo divino das imagens.

    Ao professor Celso Snchez Pereira, que prontamente e carinhosamente aceitou o

    convite para compor a banca de defesa da tese, e o qual convido para ver a tarde

    pousada sobre as margens do rio.

    Aos professores e professoras do curso de Geografia Marisa Valladares, Jos

    Amrico, Gisele Girard, Cladia do Vale, Paulo Scarin e Luiz Cludio Zanotelli. Bons

    encontros e boas conversas que me fizeram regar o rio.

    s amizades, aos afetos, aos encontros, s conversas, s parcerias e aos incentivos

    dos colegas do Ncleo Interdisciplinar de Pesquisa e Estudos em Educao

    Ambiental (NIPEEA/UFES). Conversas que foram enredadas com a companhia dos

    nipeanos e amigos: Andreia, Gil, Patrcia, Flvia, Ana Paula, Rosinei, Denize,

    Denise, Fernanda, Toni, Cida, Nadja, Mrcia, Ktia e Ftima. Conversas que me

    inspiraram a desver o mundo e a Educao Ambiental, a brincar com as palavras, a

    e ouvir a voz das guas e dos caracis.

    Lidiane Pignaton e Flvia Martinelli, que me acompanharam nas andadas iniciais

    da pesquisa. Pensamos: a explicao afasta as falas da imaginao.

    s parcerias, alegrias, experincias, lugares, leituras, silncios, trabalhos, viagens

    de estudos, caminhadas, aventuras e conversas que fizeram brotar a amizade com

    Gilfredo Carrasco Maulin, meu amigo Gil, que carrega gua na peneira e cria peixes

    nos bolsos.

    Aos sujeitos praticantes da pesquisa, narradores da mar, frequentadores do per e

    moradores da rua Felicidade Correia dos Santos do bairro Ilha das Caieiras, que me

    permitiram mergulhar nos mundos da lama dos manguezais e nos saberes, fazeres,

    sabores, cheiros, gostos, conflitos, estrias e brincadeiras. Agradeo ao Seu B, Ao

    Ao Seu Silvrio, Paulo, Simone, Tia Laura, Piro, pescadores e desfiadeiras de siris

    da Ilha das Caieiras. Com eles aprendi que o rio encostava as margens na sua voz.

  • Aos estudantes, funcionrios e professores das EMEFs Francisco Lacerda de Aguiar

    e Eliane Rodrigues dos Santos, pela acolhida e confiana cultivada com as

    travessias da pesquisa e com os encontros com as turmas do 5 ano e do 6 ano.

    Meninos e meninas que passam para as palavras suas peraltagens e que brincam

    de fingir que pedra so lagartos.

    equipe de funcionrios do Museu do Pescador da Ilha das Caieiras, pelo apoio e

    pela confiana em mim depositada. Ele queria ser sonhado pelas garas.

    Aos estudantes, funcionrios e professores da EMEF Experimental de Vitria-UFES,

    e Professora e Diretora Rosemara, pelas colaboraes, companhias, afetos e

    apoios a mim dispensados nas travessias da pesquisa entre a escola, a escrita da

    tese e os compromissos acadmicos. Lugar mais bonito de um passarinho ficar a

    palavra.

    Aos meus familiares: meu pai Raul Tch, minha me Liana, minha irm Brisa, meu

    sobrinho amado Arthur, Gaia, Tia Dale, minha av Mezinha, Benito, Nelsinho e

    primos e primas. Com a famlia a gente aprende o que os passarinhos sabem sobre

    o vento.

    D. Lourdes, Rose, Joo, Lane, Rogrio, Gilson, Seu Ancelmo, Alesander, Alana,

    Ana Luize e Maria Luiza. Os afetos, a confiana, o apoio e a convivncia com vocs

    semearam em meus solos o carinho familiar e admirao que tenho por vocs.

    Agradeo por fazer parte desta famlia! No gorjeio dos pssaros tem um perfume de

    sol?

    Justine, que guarda a infncia da palavra e compartilha comigo esse momento. A

    Isadora, Vicente, D. Lourdinha, Sr. Antnio Raizer, Eugnio e D. Jacinta.

    Aos meus colegas do mestrado, doutorado e amigos da ONGAL pela compreenso

    e pelo apoio. A gente ento saa vagabundeando pelos matos sem aba.

    Aos meus colegas, amigos e funcionrios da comunidade universitria que

    acompanham o meu habitar e o praticar o campus da UFES. A gente se inventava

    de caminhos com as novas palavras.

    Aos meus amigos Flvio Pimentel e Marcius pela companhia repleta de

    despropsitos e pela amizade que cultivamos desde a infncia.

    Andria, meu amor... um amor autopoitico que no se guarda em palavras, est

    vivo e cultivado, conversado... e conversando nos deparamos com a Educao

    Ambiental Autopoitica em ns... nas nossas leituras, nas nossas vidas. Minha

    intercessora... Estar e viver com voc como ouvir a voz de Deus que habita nas

    crianas, nos passarinhos e nos tontos. Te amo muito... dedico esta tese a voc.

  • SUMRIO

    1. OS MUNDOS DA LAMA DOS MANGUEZAIS DA BAIA DE VITRIA ......... 10

    1.1. COMEANDO PELO MEIO ....................................................................... 16

    1.2. ANDADAS E DEVIR-CARANGUEJO .........................................................

    32

    2. EDUCAES AMBIENTAIS AUTOPOITICAS COM AS PRTICAS DO BAIRRO ENTRE OS MANGUEZAIS E OS COTIDIANOS ESCOLARES DA ILHA DAS CAIEIRAS .........................................................................................

    41

    2.1. CONVERSAS E APROXIMAES DE HUMBERTO MATURANA E MICHEL DE CERTEAU: PRTICAS DO BAIRRO E DOMNIOS DE AES, CONVENINCIA E CONVIVNCIA ....................................................................

    42

    2.2. EDUCAES AMBIENTAIS AUTOPOITICAS EM REDES DE CONVERSAES COM AS PRTICAS DO BAIRRO .......................................

    52

    3. POR ENTRE AS MARGENS DOS MANGUEZAIS DA BAIA DE VITORIA: ANDADAS E OUTROS MOVIMENTOS COM O CAMPO PROBLEMTICO DA PESQUISA ....................................................................................................

    67

    3.1. VENTOS DE TRAVESSIAS METODOLGICAS ........................................ 68

    3.2. NARRADORES DA MAR E A RUA FELICIDADE CORREIA DOS SANTOS: QUANTO VALE OU POR QUILO? .................................................

    80

    4. MERGULHOS COM OS COTIDIANOS ESCOLARES DA ILHA DAS CAIEIRAS ...........................................................................................................

    104

    4.1. SABERESFAZERES SOCIOAMBIENTAIS DOS SUJEITOS PRATICANTES NAS MARGENS DOS COTIDIANOS ESCOLARES ................

    105 4.2. CARTOGRAFIAS E OUTROS MOVIMENTOS NOS COTIDIANOS ESCOLARES ......................................................................................................

    124

    5. VENTOS DE TRAVESSIAS SEM FIM ............................................................ 143

    6. REFERNCIAS ............................................................................................... 150

  • Meu amor eu vou sair Num vento de travessia

    Na proa dessa canoa Sem rumo, remo nem quilha

    Lembrana revira o tempo Saudade, refgio, ilha

    Porto seguro seus braos Naufrgio da maravilha

    canoeiro, canoa.

    Lus Perequ: Cantilena

  • 1. OS MUNDOS DA LAMA DOS MANGUEZAIS DA BAA DE VITRIA

    Eu queria pegar na semente da palavra.

    Manoel de Barros

    Esta pesquisa-tese com o tema Educao Ambiental Autopoitica com as

    prticas do bairro Ilha das Caieiras entre os manguezais e as escolas um

    desdobramento da dissertao de Mestrado e das pesquisas nas travessias no

    Doutorado em Educao (CE/PPGE/UFES), com orientao da professora Dra.

    Martha Tristo, coordenadora do NIPEEA, Ncleo Interdisciplinar de Pesquisas

    e Estudos em Educao Ambiental.

    Os desdobramentos se iniciam neste Captulo I, por entre os manguezais,

    traando andadas e outros movimentos do pesquisador com os sujeitos

    praticantes (CERTEAU, 2009), que praticam e inventam as margens dos

    manguezais da Baa de Vitria, colocando-nos diante de inesperados ventos-

    de-travessias metodolgicas, frutos das expresses do campo da pesquisa.

    Da mesma forma, os movimentos por entre o mundo da lama1 e ruas do bairro

    Ilha das Caieiras deslizam e apontam algumas questes com o campo

    problemtico:

    a) Quais os saberesfazeres2 socioambientais que constituem as prticas

    do bairro (CERTEAU, 2009) Ilha das Caieiras e seus atravessamentos

    com as redes cotidianas escolares e os manguezais da Baa de Vitria?

    No sentido certeauniano entendo como prticas do bairro o narrar, o

    morar, o pescar e o cozinhar, aproximando dos domnios de aes

    (MATURANA, 2006) dos sujeitos praticantes das margens com os

    cotidianos. 1 O termo mundo da lama uma conotao artstica para as artes de fazer das prticas

    do bairro (morar, pescar e cozinhar), envolvendo tambm as coletividades vivas e no vivas dos manguezais da Baa de Vitria, as quais pude encontrar e experimentar. Mundo da lama enquanto narradores da mar que deslizam com vidas manguezeiras em planos de composio com a produo de dados da pesquisa-tese. 2 Para Alves (2010, p. 68), juntar os termos, pluraliz-los, algumas vezes invert-los,

    outras duplic-los, foi a forma que conseguimos, at o presente, para mostrar como as dicotomias necessrias na inveno da cincia moderna tm se mostrado limitantes ao que precisamos criar para pesquisar nos/dos/com os cotidianos.

  • b) Quais movimentos a Educao Ambiental Autopoitica (MATURANA,

    2006) produz nas prticas do bairro e entre os manguezais da Baa de

    Vitria e as redes cotidianas escolares? Pensamos a

    Educao Ambiental Autopoitica enquanto domnios cognitivos e

    ontolgicos produzidos com as redes de conversaes (MATURANA,

    1999) nas relaes de convivncia (MATURANA, 2006) e de

    convenincia (CERTEAU, 2009) nos processos de conhecer e no agir

    dos seres humanos nas coletividades da vida cotidiana.

    Questes que alimentaram nossos desejos, caminhos, experincias, encontros,

    compondo possibilidades e escolhas de um modo de praticar e caminhar no

    campo da Educao Ambiental (TRISTO, 2004a), indicando inspiraes e

    apostas ticas, polticas, estticas e cognitivas nos movimentos da escrita-tese,

    inventando outros possveis, com os ventos-de-travessias com o campo

    problemtico da pesquisa, delineando outras possibilidades de:

    a) problematizar os saberesfazeres socioambientais que constituem as

    prticas do bairro Ilha das Caieiras e seus atravessamentos com as

    redes cotidianas escolares e os manguezais da Baa de Vitria.

    b) cartografar os movimentos que a Educao Ambiental Autopoitica

    produz nas prticas do bairro entre os manguezais da Baa de Vitria e

    as redes cotidianas escolares.

    Apresentamos os movimentos da tese com aposta de se pensar o campo da

    Educao Ambiental diante da potncia da existncia dos narradores da mar

    e dos sujeitos praticantes produzidas nas redes de conversaes

    (MATURANA, 1999), afetos, conflitos e tenses com as redes cotidianas

    tecidas com os manguezais da Baa de Vitria.

    O devir caranguejo3 entra em cena povoado por conflitos, experincias,

    saberesfazeres, poderes, sabores, afetos, e pelos sujeitos praticantes e

    narradores da mar, peixes pequenos, que vivem nos manguezais e margem

    3 Posteriormente irei abordar a expresso devir caranguejo.

  • da sociedade. Apresentamos esses movimentos num devir caranguejo

    constitudo com os manguezais da Baa de Vitria.

    Do mesmo modo, mostramos mundos caticos em singularidades,

    territorialidades e temporalidades. Devir caranguejo inspirado com a

    sobreposio e atravessamento dos movimentos da andada, troca de casco e

    engorda dos caranguejos, e que nos (des)organizam, para nos organizarmos e

    pensarmos, com o campo problemtico da pesquisa, os tempos da pesquisa e

    do pesquisador, a poltica da narratividade e a poltica cognitiva da tese, as

    questes de investigao, o objeto de pesquisa e a tese em si. Esses

    movimentos continuam...

    Devir caranguejo!

    Os movimentos da pesquisa foram assim pensados: no Captulo II

    problematizamos as Educaes Ambientais Autopoiticas (MATURANA, 2006)

    tecidas com as prticas do bairro (CERTEAU, 2009) entre os manguezais e os

    cotidianos escolares da Ilha das Caieiras, com conversas com Humberto

    Maturana e suas noes de autopoiese, espaos de convivncias e redes de

    conversaes e as noes de sujeitos praticantes, prticas do bairro e

    convenincias segundo Michel de Certeau.

    Pensamos em problematizar os saberesfazeres socioambientais praticados

    cotidianamente, com as redes de conversaes nos espaos de convivncia

    entre os manguezais e os cotidianos escolares e entre os jogos de

    convenincia que atravessam a vida coletiva do bairro como possibilidades

    para pensarmos em Educaes Ambientais tecidas nos processos, nas

    relaes, nas redes entre as coletividades vivas e no vivas praticadas nos

    cotidianos das vidas manguezeiras.

    No Captulo III delineamos os aportes metodolgicos da tese sob o vis das

    pesquisas em Educao Ambiental, como proposto por Martha Tristo; nas

    perspectivas das pesquisas em Educao com os cotidianos, como propostas

    por Nilda Alves e Carlos Eduardo Ferrao; na pesquisa cartogrfica, baseada

  • em Gilles Deleuze, Flix Guattari, Virginia Kastrup e Janete Magalhes

    Carvalho; e, por fim, com a noo de problematizao segundo Michel

    Foucault.

    Apresentamos os sujeitos praticantes como narradores da mar dos

    manguezais da Baa de Vitria, catadores de caranguejos, desfiadeiras de siris,

    pescadores artesanais, educandos, educadores, educadoras, professoras e

    professores dos espaostempos das redes cotidianas escolares da regio.

    Este captulo aborda ainda as prticas do bairro, ou seja, o narrar, o morar, o

    pescar e o cozinhar no bairro Ilha das Caieiras, com zoons nos narradores da

    mar e sujeitos praticantes dos manguezais, moradores da rua Felicidade

    Correia dos Santos, apostando numa poltica cognitiva e de narratividade na

    pesquisa-tese, que v o outro como legtimo outro na convivncia, tomando as

    vidas manguezeiras como coletividades da pesquisa e no como objetos.

    O Captulo IV mergulha e pousa nas nossas andanas pelos cotidianos de

    duas escolas da regio, por meio das redes de conversaes, tecidas com os

    movimentos desencadeados com as oficinas de mapas e as aulas de campo

    no bairro Ilha das Caieiras.

    Cotidianos escolares praticados pelos meninos-da-baa-de-Vitria4 que

    carregam guas nas peneiras e peixes nos bolsos5. Saberesfazeres molhados-

    de-peixe e enlameados pelo mundo da lama do bairroescola. Saberesfazeres

    praticados, vividos e negociados nos espaostempos escolares e na oficina do

    viver na Ilha das Caieiras.

    No Captulo V focamos nos ventos-de-travessias sem fim..., inconcluindo a

    pesquisa-tese, na provisoriedade. Acompanhamos processos com as redes de

    pesca, redes de conversaes, redes de afetos, redes cotidianas escolares,

    com as redes de conflitos. Redes...

    4 Termo inspirado na msica Os Meninos da Baa de Vitria, do Grupo capixaba Moxuara, CD Pontos e ns, ES, 1999. 5 Expresso inspirada na poesia do poeta do pantanal, Manoel de Barros.

  • Temperos, sabores, saberesfazeres, poderes. O bairro fervilhando, o calor

    cultural da Semana Santa e do Turismo Gastronmico. As guerras de mapas6

    riscando geografias-territrios das vidas manguezeiras, praticadas com as

    margens dos manguezais, e as geografias-territrios praticadas no mapa-

    mvel-da-vida, com as Unidades de Conservaes.

    Utilizamos algumas imagens que foram capturadas nas travessias com os

    espaostempos da pesquisa, na inteno potica de compor o texto e produzir

    sentidos. Inclumos tambm receitas culinrias dos principais pratos

    comercializados e preparados na Ilha das Caieiras e utilizadas de diferentes

    formas pelos sujeitos praticantes da pesquisa, no exerccio de trazer para o

    texto os gostos e cheiros da pesquisa.

    A expresso ilhs foi capturada do linguajar cotidiano em redes de

    conversaes com os sujeitos praticantes da pesquisa, e a expresso guerra

    de mapas denota os conflitos que atravessam as vidas dos sujeitos praticantes

    e seus domnios de ao no narrar, morar, pescar e cozinhar nos manguezais

    da Baa de Vitria, assim como a expresso margem, inspirada nas

    singularidades naturais dos manguezais, que so ecossistemas que ocupam as

    margens, e nas condies de vida dos que veem das margens e que so os

    sujeitos praticantes da pesquisa.

    Apresentamos tambm, inspirado nos ciclo de vida dos caranguejos, a noo

    de devir caranguejo para discutir as relaes e os conflitos que foram nos

    produzindo no exerccio de praticar o campo problemtico da pesquisa, com a

    ateno focada nas artes de narrar, no morar, no pescar e no cozinhar da Ilha

    das Caieiras e do praticar os cotidianos escolares da regio.

    Entrar pelo meio no campo da pesquisa! Entrar e ser afetado com o devir

    caranguejo, inspirado na noo de devir, que, segundo Deleuze e Parnet

    (1998, p. 3),

    6 Posteriormente explanarei o que denomino de guerra de mapas.

  • [...] no so fenmenos de imitao ou de assimilao, mas de dupla captura, de evoluo no paralela [...], no fingir, no fazer como ou imitar a criana, o animal, mas tornar-se tudo isso, para inventar novas foras e armas.

    Nas travessias da pesquisa exercitamos os movimentos do devir caranguejo

    com o curiosear, que, segundo Foucault, (2006, p. 196),

    [...] o nico tipo de curiosidade que, de qualquer forma, vale a pena ser praticada com um pouco de obstinao: no aquela que busca se assimilar ao que convm conhecer, mas a que permite desprender-se de si mesmo.

    Assim, com o devir caranguejo e o exerccio de curiosear com o campo

    problemtico, conversamos e convivemos com mltiplas facetas e apostas

    epistemolgicas em Educao Ambiental, deslocando-nos aos sentimentos de

    incertezas nas travessias da pesquisa, desejando outros modos de caminhar,

    em relao ao que havia feito no Mestrado.

    Para alinhavar a composio da tese buscamos inspiraes na poesia de

    Manoel de Barros, do livro Menino do Mato (2010), no exerccio de escrever e

    desver o mundo e tentar pegar a semente da palavra, como um menino do

    manguezal, um menino manguezeiro, menino da Baa de Vitria.

  • 1.1. COMEANDO PELO MEIO

    Invento para me conhecer.

    Manoel de Barros.

  • Vrios estudantes vm aqui para nossa comunidade,

    ...fazem suas pesquisas sobre pescadores,

    vo embora, no trazem um retorno,

    no falam o que que aconteceu nas pesquisas deles...

    (Desfiadeira de Siri)

    Meus encontros e aproximaes com os manguezais iniciaram no devir-criana

    nos ventos-de-travessias entre os manguezais de Guarapari, quando

    morvamos na localidade de Peroco, uma vila de pescadores s margens do

    rio de mesmo nome. Uma vila de pescadores com prticas do bairro

    atravessadas pelo mar e com os manguezais. Sol, Brisa, praias, passeios de

    barco, pescarias, brincadeiras na ponte e afetos familiares.

    Os mundos da lama que embalam encontros e experincias nos implicando

    politicamente no campo da Educao Ambiental e nas polticas cognitivas e de

    narratividade desta pesquisa-tese.

    Caminhos terrestres e flutuantes por entre as guas-turvas com a Educao

    Ambiental produzida nas redes de saberesfazeres socioambientais com o

    narrar, o morar, o pescar e cozinhar na Ilha das Caieiras entre os manguezais

    da Baa de Vitria e os cotidianos escolares da regio. Caminhos, ingredientes

    e experincias no navegar sem remo nem quilha, que atravessei e fui

    atravessado, alimentado e encorajado com a fluidez e as multiplicidades das

    guas-turvas da Baa de Vitria.

    Aos oito anos de idade eu j frequentava o Campus Universitrio de Goiabeiras

    e os cotidianos da comunidade universitria, devido s aproximaes familiares

    com o local, sendo que as minhas primeiras aproximaes (polticas, ativistas e

    acadmicas) com os manguezais aconteceram no incio do curso de graduao

    em Geografia. Lembro-me bem dos encontros entre estudantes de diversos

    cursos de graduao, pensando em aes que pudessem parar com a

    destruio dos manguezais ao redor da universidade.

    Queramos proteg-los da notria expanso da universidade e da duplicao

    da avenida que d acesso ao campus universitrio. Nesses encontros criamos

  • a Organizao No-Governamental Amigos do Lameiro (ONGAL).

    Participvamos intensamente das discusses em Conselhos de Meio Ambiente

    e nos fazamos presentes tambm nos cenrios que envolviam os eventos de

    Educao Ambiental na regio da Grande Vitria. Era a Educao Ambiental

    que eu habitava! Os manguezais foram minhas pontes de contato com a

    Educao Ambiental.

    Visitava constantemente os mundos da lama da Baa de Vitria, e, de forma

    mais intensa, os que recobriam as franjas da Ilha de Vitria. Foi assim por um

    bom tempo! Mas, quis ampliar os olhares, dissolver os pontos de vistas, os

    campos de viso. Ver o oposto, por entre os bosques dos manguezais, ver a

    partir das margens prximas ao monte Mestre lvaro.

    O monte Mestre lvaro, situado no municpio de Serra, e prximo foz do rio

    Santa Maria, foi um importante ponto referencial para os primeiros

    navegadores que desbravaram o litoral e os mares capixabas. O Mestre lvaro

    referncia na historiografia capixaba e fonte de imaginao. A lenda do

    Pssaro de Fogo uma destas inspiraes.

    A lenda narra o amor proibido entre uma jovem ndia chamada Amanari, filha

    do poderoso cacique Acau, com um jovem ndio, guerreiro de tribo rival,

    chamado Cairi. Como reza a lenda, diante do sofrimento dos apaixonados,

    uma ave misteriosa os conduzia a dois montes de onde podiam avistar um ao

    outro.

    Um dia, esse amor foi amaldioado por um encanto, que transformou o ndio no

    Monte Mestre lvaro, e a ndia, no Monte Moxuara. Mas o pag, autor do

    encanto, concedeu apenas a noite de So Joo, santo do amor, e padroeiro do

    municpio de Cariacica, para que eles se encontrassem. Neste dia, uma bola

    de fogo corta o cu... o Pssaro de Fogo!

    Lendas, mitos e histrias que compem uma regio, reunindo num s lugar a

    Baa Noroeste de Vitria, a Ilha das Caieiras, o pr-do-sol, o Moxuara, o Mestre

    lvaro, os manguezais, as comunidades ribeirinhas, enfim uma corrente

  • atmosfrica repleta de imaginrios, amores e tipos culturais capixabas,

    banhados e atravessados pelas guas do rio Santa Maria da Vitria.

    A regio, os manguezais e o bairro Ilha das Caieiras invadiram a pesquisa,

    deslocando-a para outros modos de caminhar, ao sabor das mars. Os

    encontros com o Grupo de Pesquisa em Educao Ambiental (GPEA) e com o

    Ncleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Educao Ambiental

    (NIPEEA), coordenados pela professora Dra. Martha Tristo, foram me

    constituindo, me autoproduzindo entre diferentes matizes, suscitando pistas e

    curiosidades.

    Com os atravessamentos e encontros nos horizontes do mestrado, desejei

    compreender de que modo as relaes socioambientais de uma determinada

    comunidade, situada na Baa Noroeste de Vitria, contribua com a

    sustentabilidade da regio. Essa comunidade escolhida foi a Ilha das Caieiras.

    Baa-me-das-guas dos rios Aribiri, Bubu, Itangu, Marinho e Santa Maria da

    Vitria. A Baa de Vitria est entre as maiores reas de manguezais do Estado

    Esprito Santo. Os manguezais abrangem quatro municpios da regio

    metropolitana da Grande Vitria: Cariacica, Serra, Vila Velha e Vitria, e, de

    acordo com o Censo de 2000 do IBGE, a populao desses municpios de

    aproximadamente 1.283.735, correspondendo a 41,44% da populao do

    Estado.

    As reas de manguezais da Baa de Vitria esto configuradas como Unidades

    de Conservao desses municpios, organizadas pela Lei 9.985/2000, que cria

    o Sistema Nacional de Unidades de Conservao da Natureza (SNUC),

    constituindo o Mosaico de reas Protegidas do Manguezal da Baa de Vitria,

    cobrindo uma rea de 3.300 hectares.

    O SNUC (2000) define uma Unidade de Conservao como um espao

    territorial com recursos ambientais, incluindo as guas jurisdicionais e de

    caractersticas naturais relevantes, legalmente institudos pelo poder pblico,

  • com o objetivo de conservar os limites definidos sob o regime especial de

    administrao, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteo.

    Com o reconhecimento do Mosaico das reas Protegidas da Baa de Vitria

    (IPEMA, 2007) foram pensadas estratgias de gesto do conjunto de unidades

    de conservao e reas protegidas que ele contempla. De acordo com esse

    documento, a gesto ambiental das Unidades de Conservao seguir

    princpios de integrao e de participao poltica e social, considerando-se os

    seus distintos objetivos de conservao, de forma a compatibilizar a presena

    da biodiversidade, a valorizao da sociobiodiversidade e o desenvolvimento

    sustentvel no contexto regional.

    As gestes das Unidades de Conservao so feitas por cada secretaria

    municipal de meio ambiente dos municpios da Grande Vitria, perfazendo,

    nesse Mosaico de reas Protegidas da Baa de Vitria, as seguintes unidades

    de conservao: em Cariacica, a Reserva do Desenvolvimento Sustentvel do

    Manguezal de Cariacica e o Parque Natural Municipal do Itangu; em Vila

    Velha, o Parque Natural Municipal Morro da Manteigueira e o Monumento

    Natural Morro do Penedo; e, sob a gesto da Secretaria de Meio Ambiente de

    Vitria, a Estao Ecolgica Municipal Ilha do Lameiro, e o Parque Natural

    Municipal Dom Luiz Gonzaga Fernandes.

    No decorrer do Mestrado em Educao, me preocupei com a aposta no

    biorregionalismo (SATO, 2001) em Educao Ambiental, que enfatiza o local

    da cultura em suas dimenses geogrficas, biolgicas e inscritas na

    constituio histrica dos sujeitos. Com esse movimento de pesquisa

    apresentei a Dissertao, Educao Ambiental Biorregional: a comunidade

    aprendente na Ilha das Caieiras, Vitria, ES, (GONZALEZ, 2006) com

    orientao da professora Dra. Martha Tristo.

    Desde o Mestrado desejava dialogar com a pesquisa em Educao Ambiental,

    com mapas, com os espaos, com os territrios e com as representaes

    cartogrficas. Esse desejo nos inclinou s abordagens biorregionais.

  • Articulamos, com a pesquisa do Mestrado, mapas e a produo de narrativas

    com os pescadores da Ilha das Caieiras.

    No incio dos horizontes do Doutorado em Educao, algumas questes

    continuavam a me acompanhar, tornando-se potentes para o pensamento:

    Podemos pensar a abordagem Biorregional em Educao Ambiental diante dos

    processos de hibridizao das identidades culturais? Ou ainda: Os processos

    de hibridizao cultural atravessam os saberesfazeres das prticas do bairro

    Ilha das Caieiras?

    Os manguezais da Baa de Vitria so reconhecidos pelas coletividades vivas

    que nutrem famlias de pescadores e de catadores de caranguejos, as quais,

    na atualidade, vivem dificuldades na atividade pesqueira, devido aos impactos

    ambientais nos ecossistemas e principalmente por conta das proibies de

    pesca na regio. Os manguezais foram cercados!

    Prximo Ilha das Caieiras h um Parque e neste h um Centro de Educao

    Ambiental. Integrei, em 2004, a equipe do Centro de Educao Ambiental do

    Parque Natural Municipal da Baa Noroeste de Vitria organizando e

    planejando atividades em Educao Ambiental com escolas da regio, grupo

    de visitantes e comunidade em geral.

    Nesses movimentos com o Centro de Educao Ambiental, conheci

    pescadores e antigos moradores da Ilha das Caieiras. Era minha entrada pelo

    meio, no campo problemtico desta pesquisa-tese, acompanhada de

    conversas, memrias, marcas e acontecimentos; das artes de fazer e de narrar

    das vidas manguezeiras de quem vive com as mars e os manguezais da Baa

    de Vitria.

    Mundos da lama temperados por temporalidades, conflitos, saberesfazeres,

    poderes, cheiros e sabores, com estticas e ticas inventivas, produzidas pelos

    sujeitos praticantes (CERTEAU, 2008) nas margens da Baa de Vitria:

    Catadores de caranguejos, desfiadeiras de siris, pescadores artesanais,

  • educandos, educadores, educadoras, professoras e professores dos

    espaostempos das redes cotidianas escolares da regio.

    Os sujeitos praticantes para Certeau (2008) so sujeitos que inventam e

    reinventam seus mundos, nos fluxos cotidianos, nas coletividades, nas artes de

    fazer e narrar, com os usos de tticas e estratgias de resistncias,

    reapropriando-se, a seu jeito, dos espaos, dos usos e dos lugares praticados.

    Tentamos, nesta pesquisa-tese, acompanhar os movimentos dos territrios

    existenciais das coletividades dos sujeitos praticantes que vivem nas margens

    dos manguezais. Movimentos que compem mapas-mveis desta pesquisa

    cartogrfica, povoada por experincias e saberesfazeres no bairro Ilha das

    Caieiras. Os movimentos com sujeitos praticantes que vivem nas margens

    inspiraram nossa poltica de narratividade (PASSOS; KASTRUP; ESCSSIA,

    2010) para a tese.

    A poltica de narratividade (PASSOS; KASTRUP; ESCSSIA, 2010) enquanto

    escolha de uma posio narrativa o ethos desta pesquisa em Educao

    Ambiental. uma posio que tomamos quando, em relao ao mundo e a si

    mesmo, definimos uma forma de expresso do que se passa, do que acontece.

    Movimentos polticos me levaram aos terrenos lamacentos entre diferentes

    geografias que compem as reas protegidas de manguezais e delimitadas por

    leis ambientais. reas de preservao ambiental que so atravessadas por

    geografias dos cotidianos escolares, alimentadas na atualidade pelo calor

    cultural do Turismo Gastronmico e da Semana Santa na regio.

    Uma guerra de mapas, com conflitos, tenses e negociaes ambientais entre

    os territrios das vidas manguezeiras e os territrios de controle, de

    subjetivao e de preservao das reas de manguezais, coengendrando

    coletivos de foras, desejos, poderes e tticas de resistncias e de

    (re)existncias, que deixaram emergir saberesfazeres socioambientais

    produzidos nas prticas do bairro e nas redes de conversaes cotidianas.

  • Unidades de Conservao que emergiram das discusses governamentais em

    gabinetes, envolvendo representantes da sociedade civil, que foram engolidos

    como peixes pequenos pelos discursos da preservao e da sustentabilidade

    para um futuro melhor das geraes. Territrios de poderes que afetam as

    prticas do bairro principalmente o narrar, o morar, o pescar e o cozinhar na

    Ilha das Caieiras.

    Discursos e narratividades pautados na expanso do futuro e encolhimento do

    presente vieram tona, desperdiando as experincias e saberesfazeres das

    vidas manguezeiras das famlias que sobrevivem na atualidade da pesca na

    Baa de Vitria. Os manguezais sendo banhados pelos discursos e

    narratividades do mercado verde? Criao de Unidades de Conservao

    voltada para o fomento do Turismo Gastronmico? E as vidas manguezeiras?

    A Baa Noroeste de Vitria compe encantos e recantos. Suas guas geram

    afetos, conflitos e poderes. Vrios so os relatos de acontecimentos histricos

    na regio, dentre eles as lembranas dos canoeiros do rio Santa Maria.

    A obra Canoeiros do Rio Santa Maria, de Joo Ribas da Costa (1951),

    descreve, numa linguagem folclrica, os momentos de desenvolvimento

    econmico-social do municpio Santa Leopoldina, localizado na regio serrana

    do Estado e banhado tambm pela bacia hidrogrfica deste rio, tendo como

    foco desse progresso os canoeiros do Rio Santa Maria, [...] annimos

    trabalhadores desajustados pela invaso dos caminhes trazidos pelas mos

    do Progresso, que cobrou tributo usurrio a toda uma coletividade que vivia do

    transporte fluvial [...] (COSTA, 1951, p. 25).

    No sculo XIX, o escoamento da produo cafeeira da regio serrana do

    Estado era feito em tropas, por terras, at o ponto onde o rio no era

    encachoeirado, sendo que entre a ltima cachoeira e o porto de Vitria o

    trfego comercial se valia de canoas. [...] o trfego de canoas era e tinha de

    ser intenso, uma vez que servia de canal exclusivo para todo o comrcio

    exportador e importador de vastssima regio (COSTA, 1951 p. 27).

  • Em decorrncia dos movimentos migratrios do campo para a cidade,

    estimulados pela crise cafeeira da poca, o rio Santa Maria incorporou, no

    sculo XX, outra importncia socioeconmica frente recente ocupao

    humana sobre as margens da Baa Noroeste de Vitria.

    Nesses movimentos de ocupao, expanso e urbanizao das margens da

    Baa de Vitria, os manguezais se consolidaram como fonte de sobrevivncia,

    com a extrao de madeiras para habitao e com a atividade pesqueira. A

    Baa Noroeste de Vitria se destacou, diante desse panorama, como uma

    regio com enorme potencial pesqueiro, provendo de alimentos a crescente

    populao, que habitava suas margens.

    As desfiadeiras de siri, as paneleiras do bairro Goiabeiras, os catadores de

    caranguejos e pescadores so exemplos de grupos sociais lembrados quando

    nos referimos regio e tambm descritos em vrias obras e trabalhos

    documentais, incluindo a pesquisa de Mestrado em Educao (PPGE/UFES)

    por mim desenvolvida.

    Ilha-refgio! Geografias: de mosaicos de formas, foras e tenses

    interconectadas. A Ilha das Caieiras j foi ilha e atualmente est circundada por

    quase todos os lados pela Regio da Grande So Pedro, e nesse turbilho eu

    atuava como Educador Ambiental no Centro de Educao Ambiental do Parque

    Municipal da Baa Noroeste de Vitria. No decorrer do Mestrado e Doutorado

    visitei o Parque algumas vezes, e ao visit-lo questionava comigo mesmo:

    ativismo ambiental? Carreirismo ecolgico? Formao de educadores sobre o

    manguezal?

    Os mundos da lama e sua guerra de mapas, de geografias, reunies com

    grupos organizados de catadores de caranguejos, escolas locais, campanhas e

    aes educativas em perodos de andadas e defesos dos caranguejos. Que

    Educao Ambiental balizava o meu fazer educativo? De que modo me

    constituo poltico-tico e epistemologicamente com esta pesquisa-tese em

    Educao Ambiental?

  • Nas pocas de reproduo e de proteo dos caranguejos, nas andadas e nos

    defesos do caranguejo fazamos reunies com catadores de caranguejos. Da

    mesma forma, fazamos abordagens em bares e restaurantes, divulgando

    materiais informativos e atividades educativas em escolas, feiras livres e em

    outros espaos comunitrios. Prticas que ainda so referncias para as aes

    realizadas pela gerncia de Educao Ambiental, da Secretaria Municipal de

    Meio Ambiente de Vitria.

    A equipe do Centro de Educao Ambiental atuava basicamente com visitas

    tcnicas e parcerias pedaggicas, com escolas e grupos organizados locais,

    dentre eles os catadores de caranguejos, que nos acompanhavam em aes

    educativas, nos perodos da andada e defeso dos caranguejos, envolvendo

    tambm grupos de jovens organizados na rea de influncia do Centro de

    Educao Ambiental.

    No perodo em que trabalhei na Secretaria Municipal de Meio Ambiente de

    Vitria aproximei-me do bairro Ilha das Caieiras, das prticas do bairro, dos

    saberesfazeres socioambientais dos moradores e de suas relaes com os

    manguezais. Bons encontros foram possveis e fundamentais nesse processo

    de produo de subjetividades. Os movimentos da pesquisa produziram em

    mim o devir caranguejo.

    Durante as andadas e os defesos dos caranguejos, a equipe do Centro de

    Educao Ambiental do Parque Municipal da Baa Noroeste de Vitria

    participava de campanhas educativas em parcerias com as equipes de outros

    setores da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Vitria (SEMMAM).

    Os catadores de caranguejos eram convidados a participar das campanhas

    durante as andadas e os defesos dos caranguejos. Saamos com eles em

    canoas manguezal a dentro, e eles indicavam os lugares preferidos para a

    captura dos caranguejos. Eram os saberesfazeres dos sujeitos praticantes nas

    margens orientando as aes dos tcnicos e peritos.

  • Essas prticas produziram em mim questes que me moveram o pensar-e-

    fazer enquanto Educador Ambiental. Desterritorializando-me diante da

    Educao Ambiental, andando em lamas... devir caranguejo.

    Pensava nas Educaes Ambientais que tambm se fazem no presente

    cambiante (MATURANA; YNEZ, 2009) e na inveno coletiva. Educaes

    Ambientais tecidas nas relaes e, no caso desta pesquisa-tese, no

    compartilhar saberesfazeres socioambientais que habitam as tenses e os

    conflitos cotidianos locais. Educaes Ambientais de quem as vivem, as

    inventam cotidianamente.

    Os municpios banhados pelos manguezais da Baa de Vitria tambm

    desenvolvem aes e projetos em Educao Ambiental em parcerias entre

    secretarias, com foco na preservao dos manguezais e fiscalizao da pesca

    e da venda de caranguejos e guaiamuns em pocas de defeso e de andada.

    So exemplos de aes em Educao Ambiental: Mangueando na Educao7,

    Projeto Mangue Vivo, Campanhas de Andada e Defeso do Caranguejo e de

    Gesto Sustentvel da Pesca de Caranguejos e Guaiamuns e o Programa

    Mar Viva.

    Nmeros de participantes envolvidos, objetivos e metas alcanadas, usos

    sustentveis dos habitantes dos mundos da lama, relatrios descritivos,

    reunies, limpeza dos manguezais, panfletagens, discusses de tcnicos e

    peritos, participao de pescadores: tempo chrnos organizando o mundo da

    lama dos manguezais.

    7 O Projeto Mangueando na Educao, da Gerncia de Educao Ambiental da

    Secretaria de Meio Ambiente, j atendeu 20 mil alunos em 72 escolas pblicas e particulares nos seus seis anos de existncia. So alunos de diferentes faixas etrias, de Ensino Fundamental, Mdio e Superior, inclusive de outros municpios. Alm do pblico escolar, o projeto tambm desenvolve atividades com grupos organizados; frequentadores e proprietrios de bares e restaurantes; catadores de caranguejo; Paneleiras; marisqueiras/desfiadeiras de siri; casqueiros; pescadores; instituies envolvidas com o tema; populao em geral. Disponvel em . Acessado em: 04 jul. 2013.

  • Aes nascidas em gabinetes e corredores distantes das lamas: mudanas de

    comportamentos, conscientizao da populao, falta de informao, falta

    disso e daquilo, busca por modelos, controles, formas, receitas, nmeros de

    estudantes e professores, busca por indicadores. Participao?! Ou participar-

    da-ao?!

    Nas andadas com o Doutorado em Educao conheci uma localidade, situada

    exatamente na outra extremidade da Ilha das Caieiras. Do lado de l do rio. O

    contato com os espaos educativos da Ilha das Caieiras e com os

    saberesfazeres produzidos na comunidade aguaram em mim o desejo em

    conhecer tambm o outro lado da mar.

    Nas aproximaes com o outro lado da mar, cheguei ao municpio de

    Cariacica, aos ps do Monte Moxuara. Entro nos sculos XVIII e XIX

    rastreando temporalidades em casarios, causos, lendas, festejos, carnaval dos

    Mascarados do Congo de Roda Dgua (RAMOS, 2013), histrias, localidades

    de Roda Dgua, Ibiapaba, Marirac, Roas Velhas, dentre outras, dissolvendo

    os pontos de vistas e potencializando outros olhares do municpio de Cariacica

    e da Baa de Vitria.

    Dentre os lugarejos que compem o chamado Circuito Histrico-Cultural de

    Cariacica, uma localidade me chamou a ateno: a Vila Cajueiro. Situada nas

    proximidades da foz do rio Santa Maria, e com exuberantes manguezais,

    margeando cenrios de nossa histria, como o Canal dos Escravos e o Porto

    das Pedras, com seus sambaquis8 e runas.

    A regio da foz do rio Santa Maria foi um importante acesso tanto s rotas de

    colonizao, como navegao dos destemidos Canoeiros do rio Santa Maria,

    e atualmente as marcas dos processos civilizatrios da modernidade impem

    uma nova funo ao lugar. O mercado verde se impe. Os manguezais virando

    loteamentos de luxo? O lugar de toda pobreza se metamorfoseando em

    lugares de todas as riquezas?

    8 Sambaquis so acmulos de restos e vestgios arqueolgicos de povos que ocuparam

    uma determinada regio.

  • Navegando nas proximidades da foz d-se a impresso de haver um tipo de

    invaso ou conflito, decorrente das interferncias ambientais, provocadas por

    empreendimentos imobilirios, que transformaram os manguezais da Baa de

    Vitria em grandes files para o mercado imobilirio, com a promessa de

    oferecer tranquilidade, segurana, qualidade de vida e sustentabilidades.

    Tanto a Vila Cajueiro como o Parque Natural Municipal do Itangu esto ambos

    na Reserva de Desenvolvimento Sustentvel dos Manguezais de Cariacica,

    criada em 2007, com o Mosaico das reas Protegidas de Manguezais da Baa

    de Vitria (IPEMA, 2007).

    Em 2010, algumas comunidades pesqueiras dessa Reserva de

    Desenvolvimento Sustentvel foram envolvidas em oficinas de produo de

    vdeo, como a comunidade de Nova Rosa da Penha, vizinha Vila Cajueiro.

    Os resultados dessas oficinas garantiram a elaborao de vdeos-

    documentrios, de cada uma delas, que integram o Projeto Povos e Mangues,

    apoiado pelas Secretarias Municipais de Educao e Meio Ambiente de

    Cariacica.

    Falando em vdeos e documentrios e em busca deles, deparei-me com

    produes audiovisuais locais e sobre a Baa de Vitria. Com ventos-de-

    travessias, transportei-me para 1993, quando os jornais, livros, televiso e

    documentrios da poca apresentavam a paisagem da regio, como Lugar de

    toda pobreza9, em aluso ao documentrio-denncia de mesmo nome,

    produzido pelo cineasta Amylton de Almeida, e que retrata o perodo em que a

    Grande So Pedro era um grande lixo cu aberto.

    9 Em So Pedro (bairro de Vitria, ES), sobreviviam, na dcada de 80, de forma quase

    inacreditvel milhares de pessoas que do lixo tiravam o sustento, a comear pela alimentao. As cenas de mulheres, crianas e homens misturados aos dejetos e aos urubus inspiraram o cineasta Amylton de Almeida. O documentrio chocou o pas e pressionou as autoridades a iniciarem o processo de urbanizao e humanizao da regio. Disponvel em: . Acessado em: 18 jul. 2013.

  • Um lugar de toda pobreza que foi escondido? Estratgias para a consolidao

    do Turismo Gastronmico? Estratgias do poder pblico e das agncias

    miditicas e de telecomunicaes aliciadas pelo mercado verde?

    Lugar (e tempo) de toda pobreza?! Lugar tambm de devires e de resistncias

    cotidianas. Lugares dos sambaquis-de-restos consumidos, descartados,

    acumulados e reinventados na contemporaneidade com seus diferentes usos.

    Lugar com temporalidades e territrios inventados, compondo uma rede de

    saberesfazeres socioambientais, numa guerra de mapas entre as reas de

    preservao ambiental criada por leis, territrios das vidas manguezeiras dos

    sujeitos praticantes nas margens e jogos de interesses, que mobilizam a

    especulao imobiliria e o Turismo Gastronmico.

    Ilha-refgio! Cercadas por conversas conectadas com as geografias

    sentimentais e afetivas dos mundos da lama, banhados por diferentes tempos

    e geografias: as mars, a pesca, as artes de cozinhar e de narrar.

    Os espaos de controle das Unidades de Conservao: geografias-molares?

    Diferentes ritmos, sons e cores entre os perodos de reproduo de

    coletividades vivas dos manguezais, a supervalorizao do Turismo

    Gastronmico na regio e a Semana Santa, que se prolonga por vrias luas!

    Tempos chrnos dos depsitos-sambaquis de lixos, inventando outra cidade,

    da regio da Grande So Pedro. Tempos kairs das coletividades vivas e no

    vivas dos manguezais, envolvidas em jogos de poderes que alimentam o

    caldeiro cultural do Turismo Gastronmico e da Semana Santa na Ilha das

    Caieiras. Tempos ains das intensidades, potencialidades, possibilidades,

    afetos, tenses, conflitos, saberesfazeres e de mudanas de vida, para os que

    comiam restos e que ainda vivem das margens dos manguezais.

    Temporalidades e territrios inventados com a criao do Turismo

    Gastronmico, atravessando os ritmos das prticas do bairro, apresentando

    pistas metodolgicas para a pesquisa-tese. Pistas e movimentos que veremos

  • a seguir, com os movimentos da pesquisa, acompanhados pelos sujeitos

    praticantes nas margens, moradores da rua Felicidade Correia dos Santos e

    narradores da mar.

  • CARANGUEJADA CAPIXABA 18 caranguejos gordos 2 pimentas-malagueta

    1 cebola grande 4 tomates

    Azeite Sal

  • 1.2. ANDADAS E DEVIR CARANGUEJO

    Eu fao travessuras com palavras. No sei nem me pular, quanto mais obstculos.

    Manoel de Barros

    Nas travessias desta tese em Educao Ambiental Autopoitica optamos pela

    atitude de problematizar a produo de dados da pesquisa aproximando-se da

    noo de problematizao de Foucault, destacadas no Dicionrio de

    Foucault, de Judith Revel (2011). Problematizar, no reformar, mas instaurar

    uma distncia crtica; fazer atuar o desprendimento, redescobrir os

    problemas.

    Nos movimentos de problematizar e em devires autopoiticos com o campo

    problemtico surgiram questes: Que saberesfazeres so praticados pelas

    famlias que vivem das coletividades vivas e no vivas dos manguezais da Baa

    de Vitria? A quem cabe proteger e garantir os sustentos das vidas

    manguezeiras que povoam essas guas, esses territrios e essas lamas, em

    busca dos leites das mars, das carnes dos caranguejos, siris e peixes? De

    que modo pensar a preservao dos manguezais, esteio da sobrevivncia de

    milhares de famlias manguezeiras da Baa de Vitria? Que ecologias polticas

    so praticadas na regio? Que Educaes Ambientais so praticadas?

    Bons-encontros! Educaes Ambientais em redes de conversaes!

    Autoproduo de si e de mundos! Educao Ambiental Autopoitica! Questes

    problematizadoras inflamando o caminhar e o praticar do campo problemtico.

    O que pode uma comunidade que vive na oficina do viver entre os

    manguezais? De que modo as sabedorias do caos dos mundos da lama na

    Baa de Vitria atravessam as prticas do bairro Ilha das Caieiras? Como as

    Unidades de Conservao interferem nas artes de narrar, morar, pescar e

    cozinhar, ou seja, nas prticas do bairro da Ilha das Caieiras?

    Nos manguezais as temporalidades so outras. Os veres so fervilhados com

    calor cultural que contagiam os sujeitos praticantes das margens e moradores

  • da Ilha das Caieiras. Os moradores, numa organizao comunitria e familiar,

    aceleram-se com os ritmos embalados com o Turismo Gastronmico e a

    proximidade da Semana Santa, quando so comercializadas tortas e

    moquecas capixabas, fazendo o bairro respirar temperos, gostos e cheiros.

    Inspirado no perodo ou ciclo de vida dos caranguejos, marcado pelas fases da

    andada, engorda e troca de casco, fui entrando nas travessias e me deixando

    atravessar por elas. O devir caranguejo meu prprio domnio de ao

    autopoitica e de atitude epistemolgica e metodolgica, tudo junto e

    misturado, como as carapaas dos caranguejos, embalando enlaces

    objetivosubjetivos da pesquisa e do pesquisador.

    Com as andadas nas Secretarias de Meio Ambiente e nos rgos ambientais

    federais, estaduais e municipais, encontramos calendrios oficiais, indicando

    os dias em que os caranguejos iro andar, facilitando assim o controle da

    captura e da comercializao dessas espcies. Mas as vidas manguezeiras

    so rizomticas. Caranguejos so rizomas. Devires a riscar e furar as margens

    das mars. Os caranguejos, no manguezal, no se deixam capitalizar e serem

    controlados pelo tempo chrnos. E os caranguejos nada se importam com

    esses calendrios! Caranguejo devir!

    Nas andadas, os hormnios dos caranguejos ficam alterados, sendo facilmente

    capturados, tanto machos e fmeas, que saem de suas tocas para acasalarem.

    Nesta fase proibida a captura e a comercializao dos caranguejos.

    As andadas so temporalidades das paixes nos berrios dos mares,

    territrios de coletividades vivas que acompanham luas, chuvas e o calor dos

    veres. Geralmente as andadas acontecem nas primeiras luas de Janeiro, lua

    cheia ou nova, e so anunciadas quando os machos espumam e exalam seus

    cheiros de hormnios nos manguezais, e que segundo os catadores de

    caranguejos: ...parece at com o cheiro do caranguejo cozido.

    Os tempos ains e kairs agem nas andadas dos caranguejos? Agem tambm

    nos veres das frias escolares, quando os meninos-da-baa-de-Vitria ficam

  • molhados de peixes e carregam guas nas peneiras? Os tempos ains e kairs

    povoam as coletividades das oficinas de viver da escolabairro?

    Questes atravessavam e acompanham os movimentos das mars e dos

    ventos-de-travessias com os sujeitos praticantes nas margens. Eu me

    organizando, posso me desorganizar... eu me desorganizando, posso me

    organizar. Da lama ao caos, do caos lama. O homem roubado nunca se

    engana (CHICO SCIENSE; NAO ZUMBI, 2000).

    As astcias dos jogos de poderes e das prticas do bairro nesse

    ambientemanguezal, rizomtico, da escolabairro e da oficina do viver ganham

    sonoridades e caricaturas nos ilhs. Um jeito singular e carnavalesco do

    conversar os encontros, tecendo redes de conversaes sobre as tticas de

    sobrevivncias dos sujeitos praticantes nas margens diante dos territrios de

    preservao ambiental.

    Nossas apostas andam tambm em direo s potncias dos saberesfazeres

    socioambientais, que riscam as geografias e os territrios das prticas do bairro

    da Ilha das Caieiras e das vidas manguezeiras criadas com os leites das mars

    da Baa de Vitria.

    So apostas epistemolgicas, ontolgicas, polticas e metodolgicas me

    autoproduzindo com o devir caranguejo, entre os fluxos das guas-turvas de

    um rio, e que trazem tona multiplicidades e singularidades de saberesfazeres

    socioambientais com as prticas do bairro Ilha das Caieiras.

    Apostas no sentido de pr entre parnteses (MATURANA, 2006) meus prprios

    olhares diante das Educaes Ambientais que pratico, entendendo que nossos

    territrios existenciais so praticados por Educaes Ambientais encarnadas e

    atualizadas, assim como as coletividades dos sujeitos praticantes nas margens.

    Manguezais em margens banhadas por coletivos de foras entre relaes de

    poderes e de controles. O homem um rio turvo. preciso ser um mar para,

    sem se toldar, receber um rio turvo (NIETZSCHE, 2002, p. 26).

  • Ambiente de manguezal rizomtico, rizo-flora, rizoflora! Catico em

    multiplicidades de foras e de poderes, num jogo de estratgias e tticas,

    inventando geografias cotidianas com o bairro e entre os manguezais, nutrindo

    vidas, saberesfazeres, sabores, poderes e desejos com as prticas do

    Bairroescola ou Escolabairro, que se com-fundem e se atravessam.

    Nas andadas com a escolabairro e as guas-turvas percebemos as

    proliferaes de Educaes Ambientais em fluxos nas coletividades, nos

    entres, nas margens! guas e ventos modelando corpos vibrteis, criando

    enlaces com as vidas cotidianas com as mars e com as interfaces msticas e

    sagradas das artes de narrar, cozinhar, morar, pescar e comercializar, e que

    alimentam o Turismo Gastronmico e a Semana Santa na regio.

    Andando por entre as abordagens do nosso Ncleo de pesquisa, o NIPEEA,

    coordenado pela professora Dra. Martha Tristo encontrei pesquisas em

    Educao Ambiental (TRISTO, 2012). Mapas, territrios, regies, lugares,

    rios, manguezais..., dimenses que me acompanham no caminhar da pesquisa

    e as andadas continuaram. Estvamos andando, trocando o casco e

    engordando! Alguns silncios e sussurros soavam fortes nas leituras do

    Doutorado.

    Um caminhar interessado em ventilar, furar e rachar as noes de identidades

    fixas, percebendo-as como fluidas, descentradas, inacabadas, hbridas e em

    negociaes nas redes de saberesfazeres e poderes das vidas cotidianas.

    Essa aposta poltica e epistemolgica assumida aqui advm tambm dos

    envolvimentos em elaborao de projetos e artigos com aproximaes

    cartogrficas e das leituras de engorda e de trocas do casco, com os grupos de

    pesquisas dos quais participamos na UFES, alm dos espaos de formao

    com professores/as das redes municipais de ensino.

    As leituras das pesquisas anteriormente comentadas, o devir caranguejo pelos

    caminhos do campo de pesquisa, as conversas, os movimentos tticos, o ilhs

    falado na comunidade e as vidas cotidianas dos sujeitos praticantes nas

  • margens deslocaram-me de maneira objetivasubjetiva entre os mundos da

    lama e os meus mundos e nos movimentos de pesquisa e de escrita desta

    tese.

    Com o devir caranguejo no campo problemtico da pesquisa, acompanhei

    pistas que indicaram Educaes Ambientais Autopoiticas produzidas com as

    prticas do bairro e com os ritmos das vidas cotidianas dos homens sem

    qualidades dos mundos da lama da Baa de Vitria.

    Educaes Ambientais Autopoiticas que acompanham as vidas manguezeiras

    de quem vive nas mars. Famlias que esto sendo proibidas de viver da pesca

    na Baa de Vitria. E o Turismo Gastronmico? E a Semana Santa?

    Sustentabilidade! Sustentabilidades! Que sustentabilidade essa? A quem ela

    serve?

    O que pode o devir caranguejo nas minhas andanas por entre o campo

    problemtico da pesquisa? O devir caranguejo e seus movimentos de

    desterritorializao, reterritorializao e territorializao do pesquisador,

    traando imagens-movimentos de Educaes Ambientais Autopoiticas,

    negociadas e enunciadas com as andadas, engordas e trocas de casco da

    pesquisa e com as prticas do bairro e os cotidianos escolares da regio da

    Ilha das Caieiras.

    Educaes Ambientais Autopoiticas produzidas com as conversas

    consideradas como dimenses ontolgicas, estticas e polticas dos seres

    humanos, geradas no linguajar, criando subjetividades e saberesfazeres

    socioambientais que problematizam discursos jurdicos, tcnicos, oficiais e os

    difundidos nas mdias.

    As conversas, as narrativas, as oficinas de mapas, as prticas do bairro, os

    dirios de campo, as fotografias, as Semanas Santa, os Turismos

    Gastronmicos, os ilhs falados na Ilha, as leituras e os cotidianos escolares

    proporcionaram-me encontros com diferentes Educaes Ambientais, em

  • caminhos solitrios, porm acompanhados, povoados e abertos s

    experincias metodolgicas no campo problemtico.

    A Educao Ambiental Autopoitica sendo engordada e discutida nos

    encontros no curso de Doutorado em Educao, com os pesquisadores do

    Ncleo Interdisciplinar de Pesquisas e Estudos em Educao Ambiental, o

    NIPEEA, coordenado pela professora Dra. Martha Tristo, e com os grupos de

    pesquisa em Educao, coordenados, pelos professores Carlos Eduardo

    Ferrao e Janete Magalhes Carvalho, do Ncleo de Pesquisa Culturas,

    Currculos e Cotidianos, o NUPEC.

    Dos encontros e das discusses nasceram parcerias e produes com a

    pesquisadora e mestra em Educao Andria Teixeira Ramos, que juntos

    apostamos em pensar em Educaes Ambientais Autopoiticas e que teve

    como dispositivo as redes de conversaes nos movimentos iniciais da

    produo do artigo Conversas com Humberto Maturana. Aproveito o devir para

    uma licena amorosa no texto e dizer que essas produes constituem e

    compem nossas vidas acadmicas, pessoais e profissionais em movimentos

    autopoiticos, com invenes de si e dos mundos praticados por ns.

    Foram produzidas tambm parceiras com orientandas e estudantes do

    Mestrado em Biologia (UFES), possibilitando a publicao de um artigo na

    Revista do Mestrado em Educao Ambiental, da UFRGS. Nessas parcerias,

    os cotidianos escolares e os manguezais se apresentaram em diferentes

    perspectivas.

    Os encontros, discusses e demais publicaes nos diferentes espaostempos

    acadmicos foram aqui compilados e adaptados ao corpo-movimento desta

    pesquisa em Educao Ambiental, concentrando esforos e criando espaos

    para nos colocarmos mesa de discusso e pormos conversa nossas

    apostas ontolgicas, ticas, estticas e polticas na Educao Ambiental

    Autopoitica, praticada nas coletividades das relaes com e no apenas para

    algum. Educao Ambiental Autopoitica enquanto fluxos, produes de

    subjetividades que se inventam a outros e a seus mundos.

  • Nossa aposta pensar na Educao Ambiental Autopoitica com os estudos

    de Maturana (1994). pensar que produzimos, desde nossos ancestrais,

    modos de vida como seres amorosos no compartilhar alimentos e cuidados,

    nos acoplando com as realidades e constituindo aquilo que Maturana denomina

    de Biologia do Conhecer ou Autopoiese. Autopoiese vem do grego: auts,

    prprio; poieu, poiein, poiesis, fao, fazer, o feito, a produo de si mesmo,

    autofazimento um sistema autopoitico uma teia de processos que vo se

    produzindo atravs de transformaes e interaes (ASSMANN, 1998).

    Apostamos assim nas aprendizagens como processos pautados nos

    comprometimentos ticos e solidrios, no compartilhar a ideia de que No o

    conhecimento, mas sim o conhecimento do conhecimento que cria o

    comprometimento (MATURANA; VARELA, 1995, p. 270). Pensando assim, a

    Educao Ambiental Autopoitica um exerccio de compromisso e

    responsabilidade em propiciar aprendizagens coletivas, compartilhadas com

    solidariedades e cooperaes.

    Portanto, pensar a Educao Ambiental Autopoitica na sociedade

    contempornea pressupe relaes ticas fundamentais aos processos de

    aprendizagens coletivas, produzidas com as redes de conversaes escolares

    e em seus diferentes espaos de convivncias com os sujeitos, que, por sua

    vez, so potentes ao exercitarem, nessas coletividades, a aceitao do outro

    junto a ns, na convivncia, desejando potencializar redes de conversaes

    cotidianas alegres, afetuosas e acolhedoras.

    Queremos agora colocar mesa de discusso a Biologia do Conhecer e a

    Biologia do Amor, ressaltando a potncia da emoo do amor e seus

    entrelaamentos possveis com a Educao Ambiental Autopoitica,

    principalmente com o fenmeno biolgico das aprendizagens inventivas

    (KASTRUP, 2007a) nas coletividades vivas e no-vivas. Assim, com o devir

    caranguejo enquanto domnio autopoitico e biolgico dos seres vivos na

    oficina do viver e em ventos-de-travessias com as mars e os sujeitos

    praticantes nas margens dos manguezais da Baa de Vitria, encontrei as

  • noes-inspiraes epistemolgicas, polticas, filosficas, ontolgicas e

    metodolgicas para esta pesquisa-tese.

    Os caminhos e enlaces metodolgicos ganharam outros matizes e se

    aproximaram de noes e referenciais que entendem as identidades e as

    culturas como plurais, complexas, dinmicas, em processos de permanente

    inveno e de negociaes de sentidos, encarnados nas redes de

    saberesfazeres e de poderes, que tencionam incessantemente a vida cotidiana

    com as formas-foras e os processos de subjetivao da sociedade de

    controle.

    O devir caranguejo est sendo, com os encontros, os projetos em Educao

    Ambiental, as experincias com as Semanas Santas, o Turismo Gastronmico,

    os conflitos da pesca, as prticas do bairro, a carpintaria da canoa, passeios de

    barco, os restaurantes, a pesca do sururu, o cotidiano de trabalho dos

    pescadores e das desfiadeiras de siris, o permanguezal e seus embalos nos

    finais de semana, os meninos-da-baa-de-Vitria, que carregam guas nas

    peneiras, o Museu do Pescador, as escolas da regio, a Rua Felicidade

    Correia dos Santos.

    Nos ventos-de-travessias da pesquisa-tese, a produo de dados acompanhou

    processos: o morar na Ilha das Caieiras, as redes de conversaes nos

    espaostempos de convivncias e convenincias dos cotidianos escolares, os

    lugares, os trajetos cotidianos, os conflitos com as lei, as artes de narrar,

    cozinhar e pescar, as relaes de parentescos...

    Conflitos ambientais! Bifurcaes! Mesmo diante desse quadro pintado e

    veiculado nas mdias, divulgando as restries dos usos que os pescadores

    praticam e vangloriando os avanos e progressos dos peixes grandes; apesar

    disso, as vidas cotidianas e manguezeiras acontecem e escapam. As astcias

    dos sujeitos praticantes nas margens e as formas inventivas e de

    (re)existncias compem potencialidades e permitem a comunidade da Ilha das

    Caieiras navegar por outros modos de caminhar, inventando geografias,

  • prticas do bairro, saberesfazeres, levando alimentos e nutrindo os desejos da

    coletividade local.

  • 2. EDUCAES AMBIENTAIS AUTOPOITICAS COM AS PRTICAS DO

    BAIRRO ENTRE OS MANGUEZAIS E OS COTIDIANOS ESCOLARES DA

    ILHA DAS CAIEIRAS.

    Eu sustento com palavras o silncio do meu abandono.

    Manoel de Barros

  • 2.1. CONVERSAS E APROXIMAES COM HUMBERTO MATURANA E MICHEL DE CERTEAU: PRTICAS DO BAIRRO E DOMNIOS DE AES, CONVENINCIA E CONVIVNCIA.

    Eu sempre guardei nas palavras os meus desconcertos.

    Manoel de Barros

    Neste captulo acompanhamos os movimentos do narrar, morar, pescar,

    cozinhar, comercializar e dos cotidianos escolares, apostando e

    problematizando Educaes Ambientais Autopoiticas praticadas pelos sujeitos

    praticantes nas margens dos manguezais da Baa de Vitria. Um captulo que

    emergiu com o que acontece nos domnios de aes cotidianas em redes de

    conversaes na convivncia e nas convenincias e no compartilhar os

    espaos pblicos e privados da vida comunitria do bairro Ilha das Caieiras.

    As conversas reunidas neste captulo foram inspiraes produzidas a partir das

    leituras de Humberto Maturana e Michel de Certeau. Conversas que apontaram

    para uma poltica da narratividade que considera que os saberesfazeres

    socioambientais das prticas do bairro so inventados nas relaes de

    convivncia e convenincia, no linguajar das redes de conversaes com as

    artes de narrar que atravessam os manguezais e os cotidianos escolares da

    Ilha das Caieiras.

    Destacamos que a discusso de Maturana est circunscrita na sua condio de

    bilogo, refletindo sobre a cincia como domnio cognitivo gerado como

    atividade biolgica humana. Nesse sentido, reforamos as ideias de Maturana

    (2006) ao questionar as explicaes cientficas como uma verdade absoluta,

    inquestionvel e inerente aos discursos da racionalidade moderna, diluindo os

    pontos de vista e colocando entre parnteses a objetividade das explicaes

    cientficas. Apresentamos o trecho do livro Cognio, cincia e vida cotidiana

    de Humberto Maturana (2006, p. 147):

    Ns no encontramos problemas ou questes a serem estudados e explicados cientificamente fora de ns mesmos num mundo independente. [...] Ento, a cincia, como um domnio cognitivo, existe e se desenvolve como tal sempre expressando os interesses,

  • desejos, ambies, aspiraes e fantasias dos cientistas, apesar de suas alegaes de objetividade e independncia emocional.

    Suas proposies no pretendem oferecer respostas s dicotomias extremas

    que caracterizam o pensamento moderno; pelo contrrio, suas noes indicam

    que as histrias dessas distines a nossa histria enquanto seres biolgicos

    e sociais, e que o jogo das explicaes do nosso estar no mundo e na vida

    cotidiana um jogo cujas regras forjamos medida que vamos avanando no

    jogar.

    Iniciamos as conversas entre Maturana e Certeau com as redes de

    conversaes entre a escolabairro, o cotidianomanguezal, o bairromanguezal e

    a familiamanguezal. Assim, podemos afirmar que as noes de prticas do

    bairro em Certeau se aproximam das noes de domnios de aes de

    Maturana? O narrar, o morar, o pescar e o cozinhar so tambm domnios de

    aes ontolgicos dos seres humanos, no viver cotidiano e coletivo? As

    conversas e as artes de narrar em Certeau se aproximam das conversas com

    Maturana? Conversas que queremos costurar. Conversas que trazem pistas

    para pensamos a Educao Ambiental Autopoitica.

    Vamos aos lampejos dessas conversas, comeando com as noes de

    prticas do bairro e domnios de aes, que, neste caso, Maturana (2006, p.

    128) define do seguinte modo:

    Estou chamando de aes tudo o que fazemos em qualquer domnio operacional que geramos em nosso discurso, por mais abstrato que ele possa parecer. Assim, pensar agir no domnio do pensar, andar agir no domnio do andar, refletir agir no domnio do refletir, (...), e assim por diante, e explicar cientificamente agir no domnio do explicar cientfico.

    No bairro Ilha das Caieiras, as relaes familiares e parentais se destacam na

    organizao social e comunitria do narrar, morar, pescar e cozinhar. O

    praticar o cotidiano do bairro Ilha das Caieiras conviver em famlia, com os

    manguezais e com a estrutura fervilhante da rua (CERTEAU; GIARD; MAYOL,

    2009). As famlias, com seus ilhs, so os narradores da mar.

    Prticas do bairro que so aqui pensadas como os saberesfazeres

    socioambientais praticados nas relaes e nos vnculos que unem e organizam

  • os espaos privados e pblicos da vida do bairro, como um tecido social,

    organizado e inventado [...] como aes especficas, como tticas

    (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2009, p. 38), e reunindo condies de

    possibilidades da vida cotidiana no espao urbano do bairro.

    O narrar, o morar, o pescar e o cozinhar enquanto prticas do bairro e aes

    tticas permitem, de certa maneira, a permanncia dessas aes no contexto

    da guerra de mapas que atravessam as vidas manguezeiras e as reas de

    manguezais.

    As artes de narrar com o sonoro linguajar dos ilhs dos sujeitos praticantes das

    margens, percebemos as redes de conversaes e os comportamentos que

    organizam as prticas do bairro instaurando jogos de poder negociados na

    coletividade, traduzindo-os como benefcios simblicos conquistados com as

    regras de convivncias do bairro. Segundo Certeau, Giard e Mayol (2009, p.

    39), e pensando com os domnios de aes e as prticas do bairro, os

    benefcios simblicos aparecem [...] de maneira parcial, fragmentada, no modo

    como caminha, ou, de maneira mais geral, atravs do modo como consome o

    espao publico.

    Podemos pensar, com Maturana, o conviver com o outro como legtimo outro

    na convivncia, no conversar e a convenincia que organizam as vidas dos

    usurios do bairro, como nos apresenta Certeau? Que aproximaes podemos

    fazer entre a convivncia segundo Maturana e a convenincia de acordo com

    Certeau?

    As prticas do bairro entre os manguezais e os cotidianos escolares da Ilha das

    Caieiras so pensadas aqui como formas, fluxos e relaes de convivncias,

    criando espaos de aceitao, de tenses e conflitos, negociados nas relaes

    sociais, num domnio emocional que [...] constitui um espao de aceitao

    mtua no qual pode dar-se a convivncia (MATURANA, 2002, p. 74).

  • Assim, pensando com Certeau, quais as relaes e aproximaes entre a

    noo de convenincia com o dar-se a convivncia segundo Maturana, por

    suas palavras?

    [...] sem aceitao mtua no pode haver coincidncias nos desejos no h harmonia na convivncia, nem na ao nem na razo e, portanto, no h liberdade social. Alm do mais, se no compreendermos isto, no podemos compreender porque h tantas divergncias que nunca iro se resolver sem um ato declarativo que as elimine (MATURANA, 2002, p. 74-75).

    As prticas do bairro entre os manguezais e os cotidianos escolares da Ilha das

    Caieiras, considerados como espaos de convivncias (MATURANA, 2002),

    geram tambm espaos de convenincias (CERTEAU; GIARD; MAYOL, 2009)

    e polticas do bairro, que atravessam os espaos pblicos e privados com as

    artes de pescar, cozinhar, morar e narrar. Espaos de desejos que inventam a

    vida cotidiana no bairro. Certeau, Giard e Mayol (2009, p. 39) nos apresenta a

    convenincia em jogo com a vida coletiva.

    A convenincia grosso modo comparvel ao sistema de caixinha (ou vaquinha): representa, no nvel dos comportamentos, um compromisso pelo qual cada pessoa, renunciando anarquia das pulses individuais, contribui com sua cota para a vida coletiva, com o filtro de retirar da benefcios simblicos necessariamente protelados. Por esse preo a pagar (saber comportar-se, ser conveniente), o usurio se torna parceiro de um contrato social que ele se obriga a respeitar para que seja possvel a vida cotidiana.

    Nesse sentido, as prticas do bairro entre os manguezais e os cotidianos

    escolares da Ilha das Caieiras inventam Educaes Ambientais Autopoiticas

    nas redes de conversaes cotidianas? Que saberesfazeres socioambientais

    so praticados na convivncia entre os sujeitos praticantes nas margens dos

    manguezais da Baa de Vitria?

    Na convivncia com o bairro, so tecidos tambm os benefcios simblicos que

    se espera obter pela maneira de se portar no bairro; neste caso, pela maneira

    de se portar no narrar, morar, pescar e cozinhar, pensados enquanto

    materializao das relaes de convivncia e produtora de benefcios

    simblicos, assentados em relaes culturais que organizam e possibilitam a

    vida no bairro.

  • As artes de narrar, morar, pescar e cozinhar na Ilha das Caieiras so

    coengendradas por relaes de convivncias e de convenincias familiares e

    comunitrias, com ritmos de usos e consumos dos espaostempos da vida do

    bairro, entremeados de conflitos, afetos, interesses e poderes que atravessam

    as vidas dos sujeitos praticantes nas margens.

    Como afirma Certeau, Giard e Mayol (2009), a convenincia da vida no bairro

    como um contrato social que, no caso da Ilha das Caieiras, os sujeitos

    praticantes nas margens negociam para que seja possvel a convivncia no

    bairro e na vida cotidiana. Convenincia tem a ver com os pontos de vistas dos

    observadores? O conveniente no bairro Ilha das Caieiras a vida manguezeira

    alimentar o Turismo Gastronmico?

    Pensando nisso, a convenincia e convivncia entre os sujeitos praticantes nas

    margens inventam saberesfazeres socioambientais entre as prticas do bairro,

    os manguezais e os cotidianos escolares, constituindo o que denomino de

    Educaes Ambientais Autopoiticas, enquanto domnios de aes cognitivos e

    ontolgicos produzidos nas redes de conversaes nos processos de conhecer

    e no agir nas coletividades da vida cotidiana.

    Os domnios de aes cognitivos e ontolgicos do ser humano enquanto ser

    social e biolgico so prticas que nos ajudaram a problematizar, como nas

    palavras de Certeau, Giard e Mayol (2009, p. 39-40), essa grande

    desconhecida que a vida cotidiana,

    [...] a combinao mais ou menos coerente, mais ou menos fluida, de elementos cotidianos concretos (menu gastronmico) ou ideolgicos (religiosos, polticos), ao mesmo tempo passados por uma tradio (de uma famlia, de um grupo social) e realizados dia a dia atravs dos comportamentos que traduzem em uma visibilidade social fragmentos desse dispositivo cultural, da mesma maneira que a enunciao traduz na palavra fragmentos de discurso. Prtico vem a ser aquilo que decisivo para a identidade de um usurio ou de um grupo, na medida em que essa identidade lhe permite assumir o seu lugar na rede de relaes sociais inscritas no ambiente.

    Praticamos o campo problemtico da pesquisa-tese em Educao Ambiental

    com as prticas do bairro Ilha das Caieiras e com ateno flutuante por entre

  • as margens dos manguezais e dos cotidianos escolares da regio. Com isso,

    nossos zoons esto menos focados na descrio dos sujeitos praticantes e

    mais nas relaes, nas redes de conversaes, nas artes de narrar, nos fluxos,

    nas travessias e nos saberesfazeres socioambientais que realizam no

    bairroescola.

    A noo de bairro, nas palavras de Certeau, Giard e Mayol (2009, p. 42), pode

    ser considerada [...] como a privatizao progressiva do espao pblico.

    Ainda para esse autor,

    [...] o bairro pensado enquanto [...] dispositivo prtico que tem por funo garantir uma soluo de continuidade entre aquilo que mais ntimo (o espao privado da residncia) e o que mais desconhecido (CERTEAU, 2009, p. 42).

    Assim, as singularidades das prticas do bairro produzem saberesfazeres

    socioambientais que atravessam os cotidianos escolares e a vida comunitria

    praticada na oficina do viver (MATURANA, 2006) do bairroescolamanguezal.

    Para Maturana (2006), vivemos em nossos cotidianos uma oficina do viver e do

    aprender. Desse modo, pensando com Certeau, Giard e Mayol (2009), o narrar,

    o morar, o pescar e o cozinhar so domnios de aes cognitivos e ontolgicos

    dessa oficina do viver e do aprender humano sobre o espao da vida

    comunitria, na qual os sujeitos praticantes poetizam o bairro a sua maneira,

    numa autoproduo de saberesfazeres e da vida coletiva do bairro. Nas

    palavras de Certeau, Giard e Mayol (2009, p. 42), caminhante assumido, o

    bairro

    [...] constitui o termo mdio de uma dialtica existencial entre o dentro e o fora. E na tenso entre esses dois termos, um dentro e um fora, que vai aos poucos se tornando o prolongamento de um dentro, que se efetua na apropriao do espao. O bairro, poder-se-ia dizer, assim a ampliao do habitculo; para o usurio, ele se resume soma das trajetrias inauguradas a partir do seu local de habitao. No propriamente uma superfcie urbana transparente para todos ou estatisticamente mensurvel, mas antes a possibilidade oferecida a cada um de inscrever na cidade um sem-nmero de trajetrias cujo ncleo irredutvel continua sendo a esfera do privado.

  • O bairroescola une a vida privada e a vida pblica de quem vive na coletividade

    do bairro, de quem pratica o bairro, numa caminhada que, conforme Certeau,

    Giard e Mayol (2009, p. 42),

    [...] sempre portadora de diversos sentidos [...], inmeros segmentos de sentido que podem ir um tomando o lugar do outro conforme se vai caminhando, sem ordem e sem regra, despertadas ao acaso dos encontros, suscitadas pela ateno flutuante aos acontecimentos que, sem cessar, se vo produzindo na rua.

    A vida em coletividade enredada entre o narrar, o morar, o pescar e o

    cozinhar com os manguezais e os cotidianos de duas escolas da regio,

    inventando espaos de relaes com o outro, e acordos de convivncia e

    convenincia, entre o que pode e no pode fazer ou deixar de ser feito.

    Os cotidianos escolares dessas escolas so atravessados pelos manguezais e

    o narrar, o morar, o pescar e o cozinhar na Ilha das Caieiras, com corredores e

    quadras escolares se tornando rizomas. Rhizophora mangle10 que invadem e

    torcem as formas, temporalidades, saberesfazeres, poderes, impregnando as

    cozinhas escolares e as casas dos estudantes e professores/as.

    Os cotidianos escolares praticados pelos narradores da mar provocaram

    encontros e atividades com os estudantes e professores/as de duas escolas

    que acompanhamos. Corredores, ptios, salas de aulas, per, rua Felicidade

    Correia dos Santos, familiares, manguezal, fotos, vdeos, mapas, msicas,

    conversas, narrativas, com encontros molhados-de-peixe e rodeados de

    conflitos e afetos.

    Nesses encontros foram problematizadas as redes de saberesfazeres das

    prticas do bairro e seus atravessamentos com os manguezais e os cotidianos

    escolares como possibilidades para pensarmos em Educaes Ambientais que

    so produzidas nas relaes entre as coletividades vivas e no vivas,

    configurando em Educaes Ambientais Autopoiticas encharcadas de

    resistncias das vidas manguezeiras.

    10

    Nome cientfico da rvore do mangue-vermelho.

  • A aposta em pensar na Educao Ambiental Autopoitica foi inspirada nos

    pensamentos do bilogo chileno Humberto Maturana, que nasceu em 1928, e

    que, em 1948, ingressou no Curso de Medicina. Logo nos primeiros anos de

    estudos, como bilogo, pesquisou o funcionamento dos seres vivos, do sistema

    nervoso e da cognio. Maturana evidencia no trecho abaixo, as suas

    experincias e curiosidades cientficas:

    Eu como bilogo, interessei-me pelo estudo do sistema nervoso e dos fenmenos da percepo, em particular [...] desde muito jovem me preparei no mbito biolgico mais amplo possvel: interessaram-me a anatomia, a biologia, a gentica, a antropologia, a cardiologia. Quer dizer, na minha curiosidade, eu me movi nesse mbito amplamente. Tambm me interessei pela filosofia. Fiz ainda medicina durante quatro anos (MATURANA, 2006, p. 20).

    Humberto Maturana, em parceria com Francisco Varela, abalaram as fortes

    influncias do representacionismo, principalmente com a noo de Autopoiese.

    Autopoiese vem do grego: auts, prprio; poieu, poiein, poiesis, fao, fazer, o

    feito. Autopoiese a produo de si mesmo, um autofazimento de um sistema

    autopoitico, por fluxos, transformaes e interaes. Abaixo segue, nas

    palavras de Maturana e Varela, um conceito sobre sermos seres vivos e

    autopoiticos:

    O que nos define como seres vivos, que somos sistemas autopoiticos moleculares, e que entre tantos sistemas moleculares diferentes, somos sistemas autopoiticos. [...] Considero que necessrio tomar conscincia de que os seres vivos so entes histricos partcipes de um presente histrico em contnua transformao para compreender [...] que como seres vivos somos sistemas autopoiticos moleculares, e o que dizemos ao afirmar que o viver se d na realizao da autopoiese (MATURANA; VARELA, 1997, pp. 18; 31).

    Os estudos da cognio desenvolvidos por Maturana com a Biologia do

    Conhecer ou Autopoiese desencadearam mudanas no campo dos estudos da

    cognio, inspirando epistemologicamente a escrita desta tese e nossos modos

    de ver e entender os domnios do viver e do aprender. Como o prprio

    Matur